coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · um mostruário de velas de todos os...

23
Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade

Upload: dinhnhan

Post on 08-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

Coordenaccedilatildeo editorialjorge schwartz e gecircnese andrade

Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andradedeacutecio de almeida prado

O Rei da Velarenato borghi

O Rei da Vela Manifesto do Oficinajoseacute celso martinez correcirca

Copyright copy 2017 by herdeiros de Oswald de Andrade

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990

que entrou em vigor no Brasil em 2009

pesquisa revisatildeo e estabelecimento do texto oswaldiano Gecircnese Andrade

cronologia Orna Messer Levin

capa e projeto graacutefico Elisa von Randow

caricatura do autor Loredano Oswald de Andrade 2015 Nanquim sobre papel 21 x 297 cm

publicada em O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 28 jan 2017

quarta capa Nonecirc (Oswald de Andrade Filho) Retrato de Oswald de Andrade deacutecada de 1960

Capa da segunda ediccedilatildeo de O Rei da Vela Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1967

preparaccedilatildeo Maria Fernanda Alvares

revisatildeo Ana Maria Barbosa e Adriana Bairrada

[2017]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532-002 ndash Satildeo Paulo ndash spTelefone (11) 3707-3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip)(Cacircmara Brasileira do Livro sp Brasil)

Andrade Oswald de 1890-1954O Rei da Vela Oswald de Andrade mdash 1a ed mdash Satildeo Paulo

Com pa nhia das Letras 2017

Inclui Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado O Rei da Vela Renato Borghi O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

isbn 978 -85 -359 -2929-4

1 Teatro brasileiro i Prado Deacutecio de Almeida ii Borghi Renato iii Correcirca Joseacute Celso Martinez

17-03900 cdd -8692 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Teatro Literatura brasileira 8692

o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato

73 nota sobre o estabelecimento de texto

fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi

91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

105 Leituras recomendadas 107 Cronologia

O Ei DA

VLAPEccedila M trecircS aToS

A Aacutelvaro Moreyrae

Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra

na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro

nacionalO A

Satildeo Paulo junho 1937

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 2: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andradedeacutecio de almeida prado

O Rei da Velarenato borghi

O Rei da Vela Manifesto do Oficinajoseacute celso martinez correcirca

Copyright copy 2017 by herdeiros de Oswald de Andrade

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990

que entrou em vigor no Brasil em 2009

pesquisa revisatildeo e estabelecimento do texto oswaldiano Gecircnese Andrade

cronologia Orna Messer Levin

capa e projeto graacutefico Elisa von Randow

caricatura do autor Loredano Oswald de Andrade 2015 Nanquim sobre papel 21 x 297 cm

publicada em O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 28 jan 2017

quarta capa Nonecirc (Oswald de Andrade Filho) Retrato de Oswald de Andrade deacutecada de 1960

Capa da segunda ediccedilatildeo de O Rei da Vela Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1967

preparaccedilatildeo Maria Fernanda Alvares

revisatildeo Ana Maria Barbosa e Adriana Bairrada

[2017]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532-002 ndash Satildeo Paulo ndash spTelefone (11) 3707-3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip)(Cacircmara Brasileira do Livro sp Brasil)

Andrade Oswald de 1890-1954O Rei da Vela Oswald de Andrade mdash 1a ed mdash Satildeo Paulo

Com pa nhia das Letras 2017

Inclui Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado O Rei da Vela Renato Borghi O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

isbn 978 -85 -359 -2929-4

1 Teatro brasileiro i Prado Deacutecio de Almeida ii Borghi Renato iii Correcirca Joseacute Celso Martinez

17-03900 cdd -8692 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Teatro Literatura brasileira 8692

o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato

73 nota sobre o estabelecimento de texto

fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi

91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

105 Leituras recomendadas 107 Cronologia

O Ei DA

VLAPEccedila M trecircS aToS

A Aacutelvaro Moreyrae

Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra

na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro

nacionalO A

Satildeo Paulo junho 1937

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 3: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

Copyright copy 2017 by herdeiros de Oswald de Andrade

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990

que entrou em vigor no Brasil em 2009

pesquisa revisatildeo e estabelecimento do texto oswaldiano Gecircnese Andrade

cronologia Orna Messer Levin

capa e projeto graacutefico Elisa von Randow

caricatura do autor Loredano Oswald de Andrade 2015 Nanquim sobre papel 21 x 297 cm

publicada em O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 28 jan 2017

quarta capa Nonecirc (Oswald de Andrade Filho) Retrato de Oswald de Andrade deacutecada de 1960

Capa da segunda ediccedilatildeo de O Rei da Vela Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1967

preparaccedilatildeo Maria Fernanda Alvares

revisatildeo Ana Maria Barbosa e Adriana Bairrada

[2017]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532-002 ndash Satildeo Paulo ndash spTelefone (11) 3707-3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip)(Cacircmara Brasileira do Livro sp Brasil)

Andrade Oswald de 1890-1954O Rei da Vela Oswald de Andrade mdash 1a ed mdash Satildeo Paulo

Com pa nhia das Letras 2017

Inclui Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado O Rei da Vela Renato Borghi O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

isbn 978 -85 -359 -2929-4

1 Teatro brasileiro i Prado Deacutecio de Almeida ii Borghi Renato iii Correcirca Joseacute Celso Martinez

17-03900 cdd -8692 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Teatro Literatura brasileira 8692

o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato

73 nota sobre o estabelecimento de texto

fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi

91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

105 Leituras recomendadas 107 Cronologia

O Ei DA

VLAPEccedila M trecircS aToS

A Aacutelvaro Moreyrae

Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra

na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro

nacionalO A

Satildeo Paulo junho 1937

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 4: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato

73 nota sobre o estabelecimento de texto

fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi

91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca

105 Leituras recomendadas 107 Cronologia

O Ei DA

VLAPEccedila M trecircS aToS

A Aacutelvaro Moreyrae

Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra

na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro

nacionalO A

Satildeo Paulo junho 1937

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 5: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

O Ei DA

VLAPEccedila M trecircS aToS

A Aacutelvaro Moreyrae

Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra

na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro

nacionalO A

Satildeo Paulo junho 1937

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 6: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

A Aacutelvaro Moreyrae

Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra

na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro

nacionalO A

Satildeo Paulo junho 1937

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 7: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

Personagens dramaacuteticos

abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 8: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

15

1o ATO

em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas

Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 9: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

16

Abelardo i Abelardo ii e o Cliente

abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip

abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo

abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-

da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira

vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip

abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)

abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip

o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip

abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 10: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

17

o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num

acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo

abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-

gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip

abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip

o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip

abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui

o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz

abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo

o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 11: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

18

procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar

abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital

Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-

curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei

o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-

liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip

o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje

mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa

o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde

Menos o Cliente

abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante

o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 12: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

19

clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip

abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena

abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip

abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse

homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip

abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo

abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde

abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha

famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio

abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute

conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 13: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

20

restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias

abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-

nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo

abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo

abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa

abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-

los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses

abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-

gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip

abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 14: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

21

abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip

abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip

abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui

abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-

nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber

onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo

abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui

abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram

abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas

velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip

abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me

pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 15: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

22

abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro

abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o

que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila

Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-

tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano

abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim

abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip

abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo

abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz

que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip

abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade

abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear

o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 16: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

23

quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula

Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii

abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila

as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia

abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas

as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias

abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem

Abelardo ii faz estalar o chicote de domador

as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam

Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 17: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

24

uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada

as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui

um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire

Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente

as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu

marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam

canalhas

Menos o Cliente

Telefone

abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip

abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 18: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

25

abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip

abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-

cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-

tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-

meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip

Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip

abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa

abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 19: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

26

abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip

abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-

nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila

abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram

abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip

abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 20: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

27

abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta

Abelardo ii sai

Abelardo i e a Secretaacuteria no 3

a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo

abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes

a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento

abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)

a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu

amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a

Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu

tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 21: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

28

Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena

a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)

Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa

abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc

faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as

Page 22: Coordenação editorial jorge schwartz e gênese andrade · Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas

29

abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute

Mais Abelardo ii

abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo

abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer

fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso

abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo

Mais o Intelectual Pinote

pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre

heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-

-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui

pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-

fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute

uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-

guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i

senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as