contos de aula_ e.t.a

27
7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 1/27 A Mulher Vampiro O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo antes. O solar da família era situado numa das mais pitorescas regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embelezá‐lo custosamente. O conde resolveu reproduzir ali tudo o que durante as suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência e bom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo a embelezar, ou para melhor dizer, a reconstruir o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério. Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou‐se completamente a esta ocupação. E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela idéia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras, a fim de desposar a melhor, a mais bela e a mais nobre de todas. Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai. Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou‐se logo de que o pai se lhe referia sempre com uma mistura da mais profunda indignação e certo receio. Sem explicar o perigo que havia na convivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam em pedir‐lhe explicações, o conde respondia que havia coisas em que era melhor não falar. O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera envolvida e em conseqüência do qual se havia separado do marido e fora obrigada a retirar‐se para o campo. Todavia o príncipe perdoara‐lhe. Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação da pessoa detestada pelo pai apesar de desconhecer as razões dessa aversão. Os deveres da hospitalidade, que se respeitam principalmente no campo, impunham‐lhe, porém, a necessidade de receber a importuna visita. A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma produzira no conde repugnância tão manifesta. Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendiado, mas logo baixou os olhos, e pediu‐lhe desculpa da sua visita nos termos mais aviltantes de rasteira humildade. Lastimou que o pai do conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas maldosamente pelos seus

Upload: robson-rios

Post on 17-Feb-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 1/27

A Mulher Vampiro

O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do

pai, que morrera pouco tempo antes. O solar da família era situado numa das mais pitorescasregiões, e as rendas do patrimônio permitiam embelezá‐lo custosamente. O conde resolveureproduzir ali tudo o que durante as suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência ebom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo a embelezar, oupara melhor dizer, a reconstruir o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do maisgrandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério.Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou‐secompletamente a esta ocupação.E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela idéia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio

velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras, a fim de desposar amelhor, a mais bela e a mais nobre de todas.Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma nova construção, quando lheanunciaram uma parente de seu pai.Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou‐se logo de que o pai se lhe referia sempre comuma mistura da mais profunda indignação e certo receio. Sem explicar o perigo que havia naconvivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam em pedir‐lheexplicações, o conde respondia que havia coisas em que era melhor não falar.O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um processo criminal muitosingular, em que a baronesa estivera envolvida e em conseqüência do qual se havia separado domarido e fora obrigada a retirar‐se para o campo. Todavia o príncipe perdoara‐lhe.Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação da pessoa detestada pelo paiapesar de desconhecer as razões dessa aversão. Os deveres da hospitalidade, que se respeitamprincipalmente no campo, impunham‐lhe, porém, a necessidade de receber a importuna visita.A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma produzira no conde repugnânciatão manifesta.Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendiado, mas logo baixou os olhos, e

pediu‐lhe desculpa da sua visita nos termos mais aviltantes de rasteira humildade. Lastimou que opai do conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas maldosamente pelos seus

Page 2: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 2/27

inimigos, a tivesse odiado de maneira tão acirrada. Apesar de ter caído em profunda miséria,chegando quase a padecer de fome, o conde nunca a socorrera. Ia agora refugiar‐se numa cidadeda província, tendo acabado de receber inesperadamente uma pequena quantia. Rematoudizendo que não pudera resistir ao desejo de ver o filho do homem, a cujo ódio irreconciliávelsempre correspondera com profunda estima.Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade, conseguiram comover o conde,para o que também muito contribuiu a presença da graciosa e encantadora menina que

acompanhava a baronesa. Calou‐se esta finalmente, mas o conde pareceu não reparar em tal, eficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu‐lhe então desculpa duma falta em que oembaraço a fizera incorrer e apresentou‐lhe a sua filha Aurélia.Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o conde suplicou‐lhe que lhe permitissereparar os agravos do pai, devidos certamente a uma inadvertência, oferecendo‐lhe hospitalidadeno castelo. Ao certificar‐lhe as suas boas disposições, pegou‐lhe na mão e estremeceu de terror.Sentiu‐lhe os dedos gelados, sem vida, ao mesmo tempo que o vulto descarnado da baronesa, quefixava nele uns olhos embaçados, tomava o aspecto dum cadáver vestido de brocado.

‐ Valha‐me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! ‐ exclamou Aurélia.E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua desgraçada mãe tinha às vezesataques de catalepsia, mas que estas sincopes passavam de pronto sem auxílio de remédios.O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava nervosamente, e, noarroubamento dum amor nascente, pegou na de Aurélia cobrindo‐a de beijos.Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela primeira vez uma forte paixão, tornando‐se impossível dissimular o que sentia, tanto mais que era animado pela graça encantadora comque Aurélia lhe acolhia as amabilidades.A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se recordar do que lhe tinha acontecido.

Afirmou ao conde que se sentia honrada com aquele convite, e que este procedimento lheapagava para sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente. Chegava a crer que um favor especialdo destino lhe trouxera a única pessoa que podia, como esposa, dar‐lhe a suprema ventura.A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria, reservada, deixava a propósitotransparecer uma alma cheia de paz e de bons sentimentos. O conde acostumara‐se àquele rostosingularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e atribuía tudo à má saúde dasua hóspede e ao gosto que ela tinha por sombrios passatempos. Com efeito os criados contaram‐lhe que a baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do cemitério.

Sentiu‐se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo, pelas prevenções do pai, e o tiovelho despendeu em vão a inesgotável eloqüência, exortando‐o a renunciar ao sentimento que odominava e a relações que um dia poderiam desgraçá‐lo. Convencido de que Aurélia o amava,pediu‐a em casamento. É fácil de imaginar o quanto a baronesa ficou encantada com estaproposta, que a arrancava à miséria e lhe assegurava uma existência feliz.A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma expressão de invencível pesar, e asdelícias do amor deram‐lhe aos olhos suave brilho e às faces frescura e colorido.Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos desejos do conde. Na manhã do

dia da boda, encontraram a baronesa estendida e sem movimento no parque, a pouca distância docemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de levantar‐se e pusera‐se à janela,pensando com embriaguez na felicidade que ia gozar, quando trouxeram a baronesa para ocastelo. Pensou que se tratava dum ataque cataléptico, como era costume, mas todos os meiosempregados para a chamar à vida foram inúteis. Estava morta!Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia consternada e atônita por causa desteimprevisto golpe do destino, mas não verteu uma única lágrima.O conde, temendo melindrá‐la, observou‐lhe, com precaução e delicadeza infinitas, que eranecessário pôr de parte as conveniências e apressar o mais possível o casamento não obstante a

morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi‐lo, Aurélia deitou‐lhe os braços aopescoço e, derramando muitas lágrimas, exclamou:

Page 3: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 3/27

‐ Sim, pela minha salvação, consinto!O conde atribuiu esta exaltação à desconsoladora idéia de que, órfã e sem asilo, Aurélia não tinhapara onde ir e que o decoro lhe não permitia ficar no castelo. Teve o cuidado de colocar junto deAurélia, até ao dia fixado para a cerimônia, uma aia, matrona respeitável.No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente mais da angústia cruciante que aperseguia incessantemente, do que do desgosto causado pela morte da mãe.Um dia, quando conversava amorosamente com o conde, ergueu‐se de súbito, pálida, num mortal

terror, e banhada em lágrimas refugiou‐se nos seus braços como se quisesse fugir a umperseguidor invisível. Exclamou:‐ Não, nunca, nunca!Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum contratempo, é que a perturbação e aansiedade de Aurélia pareceram dissiparem‐se.Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração de sua esposa existisse algumacausa desconhecida, que a atormentava. Contudo, foi bastante delicado para não a interrogarenquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntou‐lhe o que produzira aquela

extraordinária disposição de espírito. Aurélia significou‐lhe que ia com vivo prazer patentear ocoração ao esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a perturbação de Auréliaprovinha do procedimento criminoso da mãe.‐ Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo‐nos obrigados a aborrecer, e odiar a nossaprópria mãe?Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não se haviam enganado, e que a baronesacaptara este último por meio de requintada hipocrisia.O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe parecia mercê da Providência, masAurélia declarou‐lhe que fora precisamente a morte da mãe que a enchera de pressentimentos

sombrios, e que o receio de que não poderia ainda triunfar, lhe dizia que a mãe havia deressuscitar algum dia, para vir precipitá‐la num abismo, depois de arrancá‐la dos braços do seuamado esposo.E falou das recordações que tinha conservado da sua infância.Eram estas.Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem. Abriam‐se e fechavam‐se as portas comestrondo, ouviam‐se gritos soltos por vozes desconhecidas. Quando o sossego se restabeleceu, aama de Aurélia pegou‐lhe ao colo e levou‐a para uma vasta sala onde estava muita gente. Sobreuma grande mesa, no meio da casa, viu estendido um homem, que brincava sempre muito com

ela e lhe dava bolos, e a quem a pequena chamava papá. Estendeu‐lhe os braços para o beijar,mas aqueles lábios, que tinha conhecido quentes e cheios de vida, estavam gelados. Desatou achorar sem saber porquê. Dali a ama levou‐a para uma casa desconhecida, onde ficou por muitosdias. Passado tempo a mãe foi buscá‐la de carruagem e levou‐a para a capital.Completava Aurélia dezesseis anos, quando se apresentou em casa da baronesa um homem aquem ela recebeu com alegria e familiaridade, como antigo conhecimento. Multiplicaram‐se asvisitas e dentro em pouco operou‐se considerável mudança na vida da baronesa. Em vez de morarnuma água‐furtada, de vestir pobremente, de passar mal, foi habitar uma casa esplêndida no

melhor bairro da cidade, passou a ter fatos magníficos, e mesa lauta, sendo seu inseparávelcomensal o desconhecido, e, finalmente, não faltava a nenhum divertimento público.Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil de conhecer, provinha dodesconhecido. Não vestia melhor do que dantes e estava sempre fechada no quarto, ao passo quea mãe ia às festas com o tal homem.Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia muito mais novo. Bonito desemblante e esbelto de figura, nem por isso deixava de repugnar a Aurélia, porque às vezes eraordinário e desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que tinha a homemamável e afidalgado.

Por este tempo, começou a deitar à menina certos olhares, que lhe infundiam inexplicável horror.Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara‐se a dizer‐lhe o seu nome e que o

Page 4: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 4/27

barão era um parente afastado, possuidor de colossal fortuna. Outra vez, gabou‐lhe os dotes físicose perguntou à filha que tal o achava, e, como esta não ocultasse a repugnância que tinha por ele,chamou‐a de tola e dardejou‐lhe um olhar de meter medo, mas passou depois a tratá‐la comagrado, deu‐lhe bons vestidos, e levou‐a aos divertimentos. O intitulado barão manifestava tantasolicitude e um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe tornou verdadeiramente insuportável,tanto mais que ela um dia presenciou, cheia de mágoa, uma cena escandalosa, que lhe tiroutodas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este, meio ébrio, apertou‐a nos braços,

mostrando‐lhe claramente as suas intenções abomináveis. O desespero deu forças à donzela, querepeliu o miserável com vigor, fazendo‐o cair para trás, e correu a fechar‐se no quarto.A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que se deixasse de esquisitices forade propósito, pois era o titular quem fazia todas as despesas da casa. Como não estava para recairna miséria de outros tempos, aconselhou‐a a ceder à vontade do barão, o qual, em caso de recusa,já ameaçara deixá‐las. Longe de se impressionar com as lágrimas e queixumes de Aurélia, a velharecebeu‐os às gargalhadas e com zombaria provocante. Gabou‐lhe impudicamente uma ligação,que lhe ofereceria todas as voluptuosidades mundanas, servindo‐se de termos tão abomináveis e

desbragados que Aurélia ficou aterrorizada.Julgando‐se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou meio de apanhar a chave da porta darua, e à meia noite, depois de fazer uma trouxa com as coisas mais indispensáveis, encaminhou‐se para a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que a mãe estaria dormindo ejá ia sair, quando alguém subiu precipitadamente a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelosgrisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a descoberto os braços e o peito, abaronesa entrou na antecâmara e foi cair aos pés de Aurélia. O suposto barão perseguia‐a, armadocom uma bengala nodosa, e bradando:‐ Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do inferno, espera que já vou dar‐te a refeição de

núpcias!E, arrastando‐a pelos cabelos para o meio da casa, começou a maltratá‐la cruelmente,espancando‐a com a bengala.A baronesa desatou a gritar desapoderadamente, e Aurélia, quase desfalecida, abriu a vidraça eclamou por socorro. Por acaso ia passando uma patrulha policial e acudiu logo.‐ Prendam‐no! ‐ bradou aos soldados a baronesa, louca de aflição e de raiva. Prendam‐no! Olhempara o ombro, que está a descoberto! É Urian!Assim que ela pronunciou este nome, o sargento comandante da patrulha soltou um grito e disse:‐ Olá! Apanhei‐te finalmente!

Os guardas agarraram o desconhecido e levaram‐no, a despeito da resistência que empregava paradesenvencilhar‐se.Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa percebeu o que a filha estiveraprestes a fazer. Agarrou‐a brutalmente por um braço, empurrou‐a para o quarto e fechou a porta àchave, sem dizer palavra.No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto Aurélia, ali encerrada não viu nemouviu pessoa alguma, e padeceu as torturas da fome e da sede. Nos dias seguintes não recebeumuito melhor tratamento. A mãe deitava‐lhe por vezes uns olhos cintilantes de cólera e parecia

meditar qualquer projeto sinistro. Afinal recebeu, certa noite, uma carta que pareceu alegrá‐la, edisse a Aurélia:‐ Foste tu, criatura disparatada, a causa de tudo isto, mas agora, felizmente, tudo vai bem e Deusqueira que evites o terrível castigo, que o demônio te reservava.Dali por diante tornou‐se mais complacente, e Aurélia, que desde que Urian se fora já nãopensava em fugir, passou a gozar de mais ampla liberdade.Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu um grande barulho na rua.A criada de quarto entrou precipitadamente e disse‐lhe que a polícia levava preso o filho docarrasco de **. O facínora, acusado do crime de roubo à mão armada, fôra, tempos antes marcado

a ferro em brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à escolta. Desta vez nãolograria escapar, certamente.

Page 5: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 5/27

Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela. Adivinhara. Era o suposto barão que iapassando algemado e amarrado a uma carroça. Transferiam‐no para outra prisão, a fim de cumprira pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo furioso olhar que o malvado ergueu paraela, ao mesmo tempo que lhe fazia um gesto de ameaça, Aurélia sentiu‐se esmorecer e foi cairnuma poltrona.A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao abandono, pensando tristementenas desventuras que ainda lhe estariam iminentes.

A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena noturna, e, sabendo que o ladrão tiverarelações íntimas com a ama, disse um dia a Aurélia que lastimava sinceramente a senhorabaronesa, por ter sido enganada tão indignamente por aquele infame. Aurélia bem sabia o quehavia de pensar a este respeito. Parecia‐lhe impossível que os guardas, que tinham prendidoUrian em casa da baronesa, não ficassem cientes das verdadeiras relações que existiam entreambos, pois que ela lhes dissera o nome do criminoso e indicara o sinal infamante que ele tinhano ombro.Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava‐se muito àquele respeito. Andava de

boca em boca o fato de que a justiça fizera uma severa sindicância e que ameaçara a baronesacom a prisão, porque o filho do carrasco tinha revelado casos verdadeiramente extraordinários.A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da mãe, visto que, depois daqueleterrível acontecimento ela continuava ainda a residir na capital.A baronesa viu‐se enfim reduzida à necessidade de sair de uma cidade onde estava exposta ainfames suspeitas, aliás muito bem fundadas, e de fugir para lugar distante. Durante esta viagemé que tinha ido ter ao castelo do conde.Aurélia considerava‐se sumamente venturosa e ao abrigo de receios, mas qual não foi o seuespanto quando, num dia em que manifestava à mãe a alegria que o céu lhe concedera, esta,

com os olhos cintilantes, exclamou desabridamente:‐ Foste a causa da minha desgraça, criatura abjeta e maldita; mas ainda que a morte me leverepentinamente, a vingança virá surpreender‐te no meio da tua imaginária felicidade. É nestesacessos nervosos, cuja origem remonta ao teu nascimento, que os artifícios de Satanás...A mulher do conde calou‐se de repente, e, abraçando‐se ao marido, pediu‐lhe que a dispensassede repetir as palavras que a mãe pronunciara numa crise de furor insensato. Sentia o coraçãoesfacelar‐se, ao recordar as medonhas ameaças daquela possessa do demônio, ameaças queexcediam todos os horrores imagináveis. O conde consolou a esposa o melhor que pôde, semcontudo esquivar‐se a ter medo.

Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que os crimes da baronesa, apesar deela já ter falecido, haviam lançado uma sombra funesta numa existência que ele futurará cheiade felicidade.Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A palidez do rosto e o olhar extintopareciam indicar doença, mas ao mesmo tempo os seus modos extraordinários e inquietos faziamsuspeitar novo mistério. Afastava‐se de todos, até do marido; fechava‐me no quarto ou buscava ossítios mais solitários do parque; quando aparecia, trazia os olhos vermelhos de chorar, o rostodesfigurado, denunciando o pesar que a devorava.

Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham a mulher naquele estado. Auréliacaiu em profundo abatimento, de que saiu tão somente depois de consultar uma celebridademédica.O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade nervosa da condessa e os seusincômodos de saúde podiam fazer conceber a esperança de que ia ter fruto aquele casamentoventuroso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia. Esta, a princípio, não deuatenção à conversa do doutor com o conde, mas aplicou depois o ouvido, quando ouviu falar nossingulares caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a que não podiam resistir semprejuízo da sua saúde e até da saúde do filho. Fez então ao médico perguntas sobre perguntas, e

este não se cansou de lhe citar muitos fatos, alguns altamente burlescos.‐ Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos desregrados, que levaram diversas

Page 6: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 6/27

mulheres a ações verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulher dum ferreiro sentiairresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços baldados para se dominar, mas um diaem que o viu entrar em casa embriagado, atirou‐se a ele com uma faca, e feriu‐o tão cruelmente,que o desgraçado expirou poucas horas depois.Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa desmaiou, e as convulsões que seseguiram ao desmaio acalmaram‐se com grande dificuldade. O médico reconheceu que andaramal contando semelhante aventura na presença duma senhora tão impressionável.

Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no estado da condessa, dando‐lhe algumsossego, mas pouco depois caía ela novamente num acesso de profunda melancolia.Brilhavam‐lhe os olhos com estranho fulgor e seu rosto cobria‐se de palidez mortal, semprecrescente. O conde tornou a inquietar‐se com a saúde da esposa. Havia no seu estado uma coisainexplicável: não tomava o mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas as iguarias,especialmente pela carne. Quando se servia qualquer prato desta substância, era obrigada alevantar‐se da mesa, dando evidentes sinais de nojo.Foi inútil toda a ciência do médico, porque Aurélia não quis nunca tocar em remédios, apesar das

súplicas do marido.Passaram‐se semanas e meses sem que a condessa tomasse alimento algum. O mistériocontinuava impenetrável e o médico era de opinião que havia ali qualquer coisa que frustrava osaber humano. Afinal despediu‐se, apresentando um vago pretexto, mas o conde percebeuclaramente que o estado da esposa parecera muito perigoso e enigmático ao hábil clínico e queele não quisera tratar por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava absolutamenteimpossível de curar.Imaginem‐se as desagradáveis disposições em que estaria o infeliz. A desgraça, porém, aindahavia de ir mais longe. Um criado velho aproveitou um momento, em que o encontrou sozinho,

para o avisar de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de madrugada. O condeestremeceu e lembrou‐se de que, havia tempos, ao soar a meia noite, se apossava dele umaextraordinária sonolência. Atribuiu‐a a qualquer narcótico, que a condessa lhe ministrasse sem eledar por isso, para poder sair clandestinamente do quarto de cama, que tinham em comuminfringindo o estabelecido na sua classe. Aguilhoado pelas mais terríveis suspeitas, Hipólitorecordou‐se da sogra e do espírito mau de que ela estivera possuída, e que talvez houvessepassado para a filha. Lembrou‐se também do filho do carrasco e suspeitou de qualquer ligaçãoadultera.A noite seguinte ia desvendar‐lhe o mistério abominável, causa única do estado singular de

Aurélia.Tinha ela por hábito ir deitar‐se depois de fazer o chá, que só o conde bebia. Teve este o cuidadode não o tomar naquela noite, meteu‐se na cama, leu como de costume, e não sentiu a sonolênciahabitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu que dormia profundamente. Acondessa levantou‐se então, sem fazer o mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido,examinou‐o por momentos, e saiu devagarinho do quarto.Todo a tremer, o conde ergueu‐se, embuçou‐se numa capa e seguiu a mulher cautelosamente.Esta já ia longe, mas como fazia luar, avistava‐se distintamente o seu vestido branco. Atravessou o

parque e dirigiu‐se para o cemitério, desaparecendo por trás do muro Hipólito segui‐a, quase decorrida; achou aberta a porta e entrou.Viu à claridade do luar um espetáculo medonho.A curta distância, aparições hediondas acocoravam‐se no chão, formando círculo. Eram velhasseminuas, de cabelos desgrenhados, dilacerando com os dentes, como feras, o cadáver dumhomem.E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e profundo horror o desgraçadofugiu àquela cena infernal! Correu ao acaso pelas alas do parque, e só caiu em si quando, demadrugada, se encontrou em frente da porta do castelo. Subiu rápida e maquinalmente a

escadaria, atravessou as salas e entrou no quarto de cama. A condessa parecia dormirserenamente.

Page 7: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 7/27

Publicada por Helena Maria à(s) 06:18 

Etiquetas: E.T.A. Hoffmann

Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que estava ainda úmida do orvalho a capa. Ainda assimtentou persuadir‐se de que tinha sido joguete duma alucinação.Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a cavalo. A beleza da manhã, os aromasdos bosques, o gorjeio das aves fizeram‐lhe esquecer os fantasmas noturnos.Voltou mais tranqüilo ao castelo e sentou‐se à mesa com a mulher. Quando, porém, serviam umprato de carne cosida e a condessa quis retirar‐se mostrando repugnância, o conde reconheceu arealidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com violência:

‐ Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que provém a tua aversão pelo comer doshomens. É nas sepulturas que te vais banquetear!Mal ouviu estas palavras, Aurélia atirou‐se a ele rugindo, e mordeu‐o no peito, com a fúria dumahiena. O marido repeliu violentamente a possessa, que morreu no meio de atrozes convulsões.Veio a enlouquecer o desgraçado.

E.T.A. HoffmannAlemanha

28/06/2011

Os espiões

Quando se falava do último cerco de Dresden , Anselmo, habitualmente pálido, tornava‐se maispálido ainda. Ficava de mãos postas, com os joelhos a baterem um no outro. O olhar fixo indicava a

agitação que lhe ia na alma e a perturbação das suas ideias.‐ Deus de bondade! ‐ resmungava ele. Não sei como descalcei aquela bota! Não dei atenção à

Page 8: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 8/27

metralha, nem às granadas que rebentavam; o que sei é que entrei na cidade pela ponte nova. Eaquele homem tão alto que encontrei! Que triste é estarmos encerrados num recinto cheio debaluartes, de parapeitos, de fortins, de caminhos cobertos! Quantos trabalhos e misérias tive depadecer! E não havia nada que trincar! Se ao folhearmos o dicionário, para matar o tempo, seencontrava a palavra comer, exclamávamos com admiração: "Comer? O que vem a ser isto?"Pessoas, outrora gordas, abotoavam a própria pele como uma camisola bem larga, como um paletónatural. Santo Deus! Se o arquivista Lindhorst fosse ainda vivo! Papowicz queria desancar‐me, mas

a argentina ninfa das águas salvou‐me a vida... Oh Agafia!...Anselmo tinha por costume, quando pronunciava este nome, saltar da cadeira, dar uma corrida edois ou três pulos, e tornar depois a sentar‐se.Era completamente inútil perguntar‐lhe o que significavam aqueles trejeitos e exclamaçõesdisparatadas; contentava‐se com responder:‐ Posso lá contar‐lhes o que me aconteceu com Papowicz e Agafia, sem que me tomem por doido?E pelos rostos dos circunstantes passava um sorriso equívoco que queria dizer:‐ Ora, meu caro! Não é preciso isso, para ficarmos, certos de que o senhor não tem o juízo todo!Numa noite sombria e silenciosa de outubro, Anselmo, que julgavam longe da localidade, entroude improviso em casa de um amigo. Vinha profundamente terno, mais terno e mais afetuoso doque de costume, quase triste. O seu gênio turbulento e por vezes selvagem fora suavizado edomado pelo misterioso poder que se lhe apoderara do espírito.Como era noite fechada, o amigo de Anselmo quis pedir luz, este pegou‐lhe nos dois braços,dizendo:‐ Fazes‐me o favor de, ao menos por esta vez, procederes segundo a minha fantasia? Não mandesvir luz. Contentemo‐nos com a débil claridade do candeeiro que daquele gabinete nos envia unspálidos raios. Podes fazer tudo o que quiseres, beber chá, fumar; mas não quebres a chávena

nem atires com a isca acesa para cima do meu casaco novo. Não só isso me faria zangar, comoperturbaria a tranqüilidade e o silêncio deste jardim encantado, onde entrei hoje e onde estougozando delícias mil. Vou sentar‐me neste sofá.Sentou‐se e, após longa pausa, continuou nestes termos:‐ Amanhã de manhã, às oito horas, faz precisamente dois anos que o conde de Lobau fez umasortida em Dresden, com doze mil homens e vinte e quatro peças de artilharia, a fim de abrir umapassagem para as serras de Misnie...‐ Por vida minha! ‐ disse o amigo de Anselmo, rindo a bandeiras despregadas ‐ ao ouvir‐te falar emjardim encantado, esperava que se evolasse alguma aparição celeste. O que tenho eu com o teu

conde de Lobau e a sua sortida? Como te podes lembrar desses números exatos: doze mil homense vinte e quatro peças de artilharia? Desde quando é que os fatos militares se gravaram tão bemno teu cérebro?‐ Ora essa! ‐ replicou Anselmo ‐ então já esqueceste esse tempo tão cheio de acontecimentosvariados? Já não te lembras de que todos nós fomos invadidos por veleidades belicosas?... O noliturbare não nos livrou dessas veleidades. Se nem sequer admitíamos que nos livrassem. Não seique demônio nos dilacerava o peito, nos esporeava, nos excitava a batalhar. Pegamos em armaspela primeira vez, não para nos defendermos, mas para nos consolarmos buscando na morte ocastigo duma vergonhosa fraqueza. Pois foi este ardor estranho que, arrancando‐me às artes e àsciências, atirou comigo para o meio da selvagem e sanguinolenta peleja... e esse ardor que porvezes me inflamava nos negros dias dessa época apoderou‐se precisamente de mim naquelanoite... Não me era possível estar sentado diante da secretária! Vagueava pelas ruas, seguia, detão longe quanto possível, as tropas nas suas sortidas, unicamente para ver com os meus própriosolhos, procurando uma esperança no que via, porque não ligava importância alguma aos editaismentirosos, nem às proclamações empoladas. Deu‐se finalmente a batalha de Leipzig .A Alemanha inteira, orgulhosa e feliz por ter reconquistado a liberdade, estrondeou em gritos dealegria... e estávamos ainda acorrentados à escravidão! Pareceu‐me que devia, por uma ação

extraordinária, procurar conquistar a liberdade para mim e para todos os que, como eu, estavamcativos. Isto pode parecer‐te extravagante, talvez ridículo, em vista da índole que me supões,

Page 9: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 9/27

mas tive a louca ideia de incendiar, de fazer ir pelos ares um forte, onde sabia que os franceseshaviam depositado grande quantidade de pólvora... O amigo não pôde deixar de sorrir daquelesúbito heroísmo do pacífico Anselmo, que, não lhe podendo ver o sorriso, por causa daobscuridade, continuou a falar, depois de um momento de silêncio.‐ Todos vocês me têm dito freqüentemente que uma disposição particular do meu espírito me fazdar aos acontecimentos que me impressionam, circunstâncias fabulosas em que ninguémacredita. Também a mim, ao princípio, essas circunstâncias me parecem fruto da minha

imaginação; mas depressa tomam forma exteriormente ao meu ser, qual místico símbolo domaravilhoso que encontramos na vida a cada passo. Foi o que me aconteceu em Dresden, faz hojedois anos. O dia passara‐se num triste silêncio, repleto de pressentimentos nas portas haviatranqüilidade completa; não se disparou um único tiro. Às dez horas da noite, entrei num café domercado velho. Num gabinete retirado e oculto, onde nenhum estrangeiro podia entrar, reuniam‐se amigos das mesmas opiniões, animando‐se, consolando‐se mutuamente, expondo as suasesperanças. Foi ali que, destruindo as mentiras oficiosas, nos foram comunicadas as verdadeirasnotícias das batalhas de Katzbach e de Culm; foi ali que o nosso amigo R... nos anunciou a vitóriade Leipzig, que soubera não sei como. Ao passar em frente do palácio de Bruhl, habitado peloMarechal, notara extraordinária iluminação nas salas e grande tumulto no vestíbulo. Dei partedisto aos meus amigos, observando que indubitavelmente os franceses maquinavam qualquercoisa. Neste momento entrou R... com precipitação, todo afogueado.‐ Ouçam as notícias mais recentes, gritou‐nos ele. Agora mesmo está reunido o conselho deguerra, em casa do marechal. O general Mouton, conde de Lobau, vai retirar‐se para Meissen comdoze mil homens e vinte e quatro peças de artilharia. A sortida realiza‐se amanhã de manhã.Discutiu‐se muitíssimo e segundo a opinião de R... a activa vigilância dos russos podia tornaraquele plano funesto para os franceses, e forçar o marechal a capitular mais depressa, pondo‐se

assim termo aos nossos males.Quando voltei para casa, à meia noite, pus‐me a reflectir: como podia R... ter sabido, durante areunião do conselho, o que este havia decidido?Daí a pouco ecoou, no meio do fúnebre silêncio da noite, um estrondear abafado. Uma força deartilharia, seguida de viaturas carregadas de forragens, passava devagar pela minha frente,dirigindo‐se para o lado da ponte do Elba.‐ R... tinha razão, fui obrigado a dizer comigo mesmo.Segui o comboio até ao meio da ponte, parando junto ao arco que fora pelos ares e que tinha sidosubstituído por um tabuleiro de macieira, de cada lado do qual se erguiam sólidas obras de

fortificação com altas paliçadas e entrincheiradas de terra.Agachei‐me junto ao parapeito, para não ser notado. De súbito pareceu‐me que uma das estacasda paliçada saía do seu lugar, mexendo‐se em todos os sentidos, e que se inclinava para mim,murmurando em voz baixa palavras incompreensíveis. O céu estava toldado de nuvens e aescuridão espessa da noite impediam‐me de ver nitidamente. Logo que a artilharia acabou depassar e que reinou na ponte um silêncio de morte, ouvi os arrancos duma respiração difícil,acompanhados de surdos gemidos; o negro pedaço de madeira pareceu crescer e um horror glacialatordoou‐me os sentidos. Atemorizado por aquele pesadelo, não pude mover‐me. Parecia dechumbo o meu corpo. Levantou‐se o vento da noite varrendo o nevoeiro para além das serras, e alua dardejou uns raios enfraquecidos por entre as nuvens esfarrapadas. Avistei então a poucadistância um velho muito alto, de barba e cabelo compridos e dum branco prateado. Trazia umacapa que lhe chegava só até à cintura, caindo em amplas e numerosas pregas. Tinha na mão umcomprido cajado, que estendia para o rio com o braço nu. Era ele que murmurava e gemia.Neste momento vi brilhar canos de espingardas do lado da cidade, e ouvi bulha de passos.Atravessava a ponte, em profundo silêncio, um batalhão francês. O velho acocorou‐se e pôs‐se agemer, apresentando o barrete como para pedir esmola.‐ Voilà Saint‐Pierre qui veut pêcher, disse rindo um oficial francês.

O homem que marchava após ele parou, deitou dinheiro para o barrete do velho e disse com modosério:

Page 10: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 10/27

‐ Eh bien! Moi, pêcheur, je lui aiderai à pécher.Vários oficiais e soldados saíram da forma e deram dinheiro ao velho. Alguns preocupados com aidéia de morte próxima, suspiravam baixinho. A cada esmola que recebia, o velho inclinava acabeça dum modo singular, dando soluços abafados.Um oficial general, que reconheci como o conde de Lobau, passou tão perto do ancião que por umpouco não o esmagou com o cavalo coberto de espuma. O general voltou‐se rapidamente para umajudante, e, ajeitando o chapéu na cabeça, perguntou com voz forte:

‐ Qui est cet homme?Os cavaleiros que o escoltavam ficaram silenciosos, mas um porta‐machado já idoso, quemarchava fora da fileira com o machado ao ombro, respondeu:‐ C'est un pauvre maniaque bien connu ici. On l'appelle Saint‐Pierre pêcheur.A força continuou a passar. Aquela marcha era triste e taciturna, desacompanhada dos petulantesgracejos do costume.Assim que o exército desapareceu, embrenhando‐se nas trevas longínquas, o velho ergueu‐sedevagar e ficou de pé, com a cabeça levantada. Com o cajado erguido em atitude majestosa eimponente, parecia comandar as ondas tempestuosas, como um santo dotado da faculdade defazer milagres. O Elba espumava, redemoinhando com furor sempre crescente numa agitação quelhe revolvia os abismos.No meio do fragor das águas, julguei ouvir uma voz abafada, que parecia vir do rio e subir atémim.‐ Michaël Popowicz, Michaël Popowicz! Não vês o homem de fogo? ‐ dizia a voz, em russo.O velho, que resmungava não sei que oração, exclamou:‐ Agafia!Neste momento iluminou‐lhe o rosto um clarão vermelho sanguíneo, que o Elba projectava em

direcção a ele. Turbilhões de chamas subiam para os ares, ao longe, nas serras de Misnie.Muito perto de mim, debaixo dos madeiros da ponte, ouviu‐se um marulhar semelhante ao queproduz um nadador, e lobriguei um vulto, que trepou custosamente por um barrote e saltou oparapeito com espantosa agilidade.‐ Agafia! ‐ disse o velho ‐ minha filha! Foi Deus que assim o quis!‐ Como? Dorothea aqui! ‐ exclamei eu.Ia continuar, mas senti os seus braços a apertarem‐me, arrastando‐me com força.‐ Oh! Em nome de Deus, segue‐me, meu caro Anselmo, senão matam‐te! murmurou a rapariga,que acabava de sair das águas.

Estava defronte de mim, a tremer, quase morta de frio. Os compridos cabelos negros seespalhavam pelos ombros, e o fato molhado se colava ao corpo esbelto. Caiu no chão, extenuadade fadiga, e disse com doçura:‐ Faz tanto frio ali dentro! Cuidado, não digas nada, meu caro Anselmo, senão matam‐nos!Iluminava‐lhe o rosto o clarão das fogueiras longínquas. Era bem ela, Dorothea, a bonita aldeã,que, quando a sua aldeia fora saqueada e lhe assassinaram o pai, se refugiara em casa do dono dahospedaria, onde eu estava alojado.‐ Seria excelente pessoa, dizia amiúde o hospedeiro, se a desgraça a não tivesse tornadoestúpida.O homenzinho tinha razão. A rapariga só dizia coisas ininteligíveis. Um sorriso apagado edesagradável alterava‐lhe a fisionomia, que devia ter sido encantadora. Trazia‐me todas asmanhãs o café ao quarto, e tive ocasião de notar, como fato para mim positivo, que as suasmaneiras, a sua carnação, a sua tez, não eram as duma camponesa.‐ Ora, senhor Anselmo, dizia‐me o hospedeiro, a rapariga é filha dum rendeiro e, o que é mais,nasceu na Saxônia.Ao vê‐la molhada até aos ossos, trémula, respirando a custo e meio deitada a meus pés, tirei logoa capa e cobria com ela.

‐ Aquece‐te, disse‐lhe baixinho, aquece‐te, querida Dorothea, senão morres. Mas o que faziasdentro deste rio gelado?

Page 11: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 11/27

‐ Cala‐te, cala‐te! ‐ respondeu a rapariga, afastando a gola da capa que lhe tapava o rosto, edeitando para trás os cabelos gotejando água. Vamos para aquele banco de pedra. Meu pai não nosouve. Está conversando com Santo André .Fomos devagarinho até ao sítio indicado. Sentia‐me dominado por extraordinária comoção.Excitado pelo horror e pela admiração, tomei a rapariga nos braços. A pobrezinha sentou‐se nosmeus joelhos sem dificuldade. Passou o braço em torno do meu pescoço, e senti a água fria, quelhe escorria dos cabelos, cair‐me pelas costas. Mas as gotas de água que caem num brasido

aumentam‐lhe a intensidade. Sentia‐me invadido pelo fogo do amor e do desejo.‐ Anselmo, balbuciou a rapariga, tu és um honrado mancebo. Quando cantas, o som da tua vozentra‐me no coração, e além disso és tão delicado! Não me atraiçoas, não é assim? Quem tearranjaria depois o café? Ouve, quando chegar a fome, quando nada tiveres que comer, entro noteu quarto de noite, sozinha, sem que ninguém o saiba, e faço‐te no fogão manjares deliciosos.Tenho farinha, farinha fina, escondida no meu quarto de cama. Comeremos ambos excelentesbolos de núpcias, muito branquinhos.Tinha estado a rir, mas, quando pronunciou estas palavras, soluçava.‐ Ah! continuou ela, há de ser como em Moscovo! Oh meu Alexis! Meu belo noivo! Nada, nada! Lásai das ondas! Não te espera a tua noiva fiel?Baixou a cabeça e a voz foi enfraquecendo gradualmente. A respiração se entrecortou de suspiros.Pareceu adormecer. Olhei para o velho. Lá estava, de braços cruzados, dizendo num tom lúgubre:‐ Meus valentes irmãos! O homem do fogo faz‐lhes sinal. Olhem para ele. Com que força sacode asfulgurantes madeixas da sua barba de chamas! Com que afã estende pela turba as suas colunas defumarada! Não lhe ouvem o retumbar dos passos? Não os anima o seu sopro inflamado ? Marchempara o lugar onde brilham as fagulhas. Corram, meus valentes irmãos!A voz de Popowicz tinha silvos como os do vento ao aproximar‐se o furacão. Em quanto falava,

continuavam a chamejar os sinais nas serras de Misnie.‐ Ampara‐me, Santo André, ampara‐me! balbuciou a rapariga adormecida.Acometida por subitâneo terror, levantou‐se, abraçou‐me fortemente com o braço esquerdo, emurmurou‐me ao ouvido:‐ Anselmo, antes quero matar‐te!E vi brilhar uma faca na sua mão direita. Repeli‐a aterrado, e dei um grito.‐ Insensata, que fazes?‐ Não, continuou sem responder, não tenho ânimo para isso, mas agora estás perdido.O velho bradou nesta ocasião:

‐ Com quem estás falando Agafia?E, sem me dar tempo para reflectir, veio ter ao pé de mim, de bordão levantado e jogou‐me umatal pancada que me partiria o crânio, se Agafia não me tivesse puxado para trás com violência. Opau fez‐se em pedaços na calçada e Popowicz caiu de joelhos.‐ Marche! Marche! ‐ gritavam de todos os lados.Fui obrigado a erguer‐me de repente e a abrir passagem, para não ser esmagado pela artilharia epelas viaturas que recolhiam.Na manhã seguinte os russos repeliam das serras o infeliz general e obrigavam‐no a refugiar‐se napraça.‐ É extraordinário, dizia‐se, os russos conheciam o projeto do inimigo. As fogueiras acesas nasserras de Misnie fizeram convergir as suas tropas para os lugares onde os franceses esperavamderrota‐los, por encontrarem pouca resistência.Passaram‐se muitos dias e Dorothea já não me trazia o café. O hospedeiro, pálido de medo,contou‐me que vira Dorothea e o mendigo louco da ponte do Elba serem conduzidos por uma forteescolta desde a casa do marechal até à cidade nova.‐ Oh Deus! ‐ disse nesta altura o amigo de Anselmo ‐ foram descobertos e executados?Mas Anselmo respondeu, sorrindo de modo singular:

‐ Não. Agafia calou‐se e, depois da capitulação, recebi das suas mãos um bonito bolo de núpcias,que ela própria cozinhara.

Page 12: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 12/27

Publicada por Helena Maria à(s) 06:01 

Etiquetas: E.T.A. Hoffmann

E foi tudo o que Anselmo contou a respeito daquela extraordinária aventura. Ninguém podearrancar‐lhe mais palavra.

E.T.A. HoffmannAlemanha

29/03/2011

A máscara da morte

No dia de S. Miguel, quando as ave‐marias batiam no convento do Carmo, uma elegante berlindade viagem puxada por quatro cavalos de posta rolava com estrondo pelas ruas da pequena cidadede Lilinitz, nas fronteiras da Polônia, indo parar diante do portão da casa que o velho burgomestrealemão habitava.Os filhos do burgomestre, cheios de curiosidade, correram para a janela; mas a dona da casalevantou‐se e atirou zangada para cima da mesa com os apetrechos de costura.‐ Maldita idéia a tua de mandares dourar a pomba de pedra, que encima a porta! ‐ disse ela aomarido, que saía precipitadamente dum quarto próximo. ‐ Aí tens mais viajantes, que tomam anossa casa por uma hospedaria!

O velho sorriu com malícia, sem responder uma única palavra. Despiu num instante o roupão evestiu o seu fato de cerimônia, o qual, escovado com cuidado quando o envergara para ir à igreja,estava estendido nas costas duma cadeira. Antes que a mulher estupefata tivesse aberto a bocapara o interrogar, correra para a portinhola da berlinda que um criado abrira. O burgomestre tinhadebaixo do braço o seu boné de veludo, e na obscuridade do crepúsculo brilhava‐lhe a cabeçacom reflexos de prata.Uma senhora idosa, envolvida num manto cinzento de viagem, desceu da carruagem, seguida poroutra mais nova com o rosto velado; esta encostou‐se ao braço do burgomestre e encaminhou‐separa a habitação, mais arrastando‐se do que andando. Logo que entrou no aposento foi cair, meio

desmaiada, numa poltrona, que, a um sinal do marido, a dona da casa se apressara em oferecer‐lhe.

Page 13: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 13/27

‐ Pobre criança! ‐ disse a senhora idosa ao burgomestre, em voz baixa e melancólica. precisoque fique alguns instantes ao pé dela.E, ajudada pela filha mais velha do burgomestre, tirou o manto de viagem. O seu vestido de freirae a brilhante cruz, que trazia ao peito, denunciavam‐na como abadessa dum convento da ordemde Cister.Entretanto a dama velada não dera sinais de vida a não ser um gemido fraco, pouco perceptível.Pediu por fim um copo d'água à dona da casa. Esta foi buscar toda a qualidade de elixires e de

licores fortificantes, cujas propriedades maravilhosas elogiou, e pediu licença à dama para lhetirar o véu espesso, que devia dificultar‐lhe a respiração. Mas foram inúteis as instâncias damulher do burgomestre; a dama repeliu‐lhe a mão voltando a cabeça com sinais de terror. Adoente bebeu dois os três goles d'água, na qual a serviçal dona da casa deitara algumas gotas dumpoderoso cordial; consentiu também em respirar um frasco de sais, mas sem levantar o véu.‐ Preparou tudo como lhe foi indicado? ‐ perguntou a abadessa ao burgomestre.‐ Sim, minha senhora, respondeu o ancião; espero que o nosso sereníssimo príncipe fiquecontente comigo, bem como esta senhora, para quem tudo preparei o melhor que pude.‐ Bem. Deixem‐me por alguns instantes a sós com a pobre criança, tornou a abadessa.A família saiu do aposento. Ouviram a abadessa falar à dama com fervor e unção e esta pronunciaralgumas palavras num tom que comovia profundamente o coração.Sem querer escutar, a dona da casa ficara junto à porta do quarto. Falavam italiano, o quecontribuía para tornar a aventura mais misteriosa e aumentava a angústia da mulher doburgomestre.Este disse à filha e à mulher que preparassem vinho e refrescos e tornou logo a entrar noaposento.A dama velada estava em frente da abadessa, com a cabeça inclinada, as mãos postas, parecendo

mais sossegada. A abadessa aceitou alguns refrescos, que a dona da casa lhe ofereceu. Depoisdisse comovida:‐ Vamos, já é tempo!A dama velada caiu de joelhos. A abadessa estendeu‐lhe as mãos sobre a cabeça e murmurou umaoração.Depois abraçou‐a, apertando‐a contra o coração com urna veemência que bem provava o excessoda sua dor, e o rosto banhou‐se‐lhe de lágrimas. Com uma imponente dignidade abençoou afamília e, ajudada pelo velho, subiu precipitadamente para a berlinda, cujo tiro havia sidorenovado.

O postilhão excitou os cavalos, que rinchavam ruidosamente, e a carruagem afastou‐se comrapidez.Quando a dona da casa compreendeu que a dama velada, para quem haviam tirado da berlindaduas pesadas malas, ia ficar talvez por mui tempo ali hospedada, não pôde evitar um penososentimento de inquietação e de curiosidade. Foi ter com o marido ao vestíbulo, detendo‐o naocasião em que ia voltar para o aposento.‐ Em nome do Cristo, murmurou ela com voz perturbada; quem meteste em casa? Porquê, estandotu prevenido de tudo, nada me disseste?‐ Dir‐te‐ei tudo o que sei, respondeu tranqüilamente o ancião.‐ Ah! Ah! ‐ prosseguiu a mulher redobrando de agitação; mas talvez que tu não saibas tudo, poisnão estavas há pouco no aposento. Logo que a senhora abadessa saiu, a dama, naturalmenteincomodada pelo espesso véu, tirou‐o e vi...‐ Então o que viste? ‐ interrompeu o velho.A mulher tremia e passeava em torno de si uns olhares espantados, como se houvesse visto umespectro.‐ Nada, continuou ela. Não pude distinguir completamente as feições, porque o rosto ficou cobertopor outro véu mais fino, mas pareceram‐me as dum cadáver, duma horrorosa cor de cadáver. E

também deves notar que é evidente, o mais evidente possível, claro como o dia, que a dama estágrávida. O parto não deve demorar‐se muitas semanas.

Page 14: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 14/27

‐ Já o sabia, mulher, disse o burgomestre com modos desagradáveis. E com medo de que caiasdoente de inquietação e curiosidade, vou esclarecer‐te este mistério em duas palavras. Opríncipe Zapolski, nosso poderoso protetor, escreveu‐me há algumas semanas, dizendo‐me que aabadessa do convento cisterciense de Oppeln me traria uma dama, pediu que eu a recebesse emminha casa, sem ruído, e evitando com cuidado olhares indiscretos. A dama, apresentada com onome de Celestina, terá em minha casa o parto e depois ir‐se‐á embora com a criança. O prínciperecomendou‐me com instância que tivesse para com ela as maiores atenções. Para me indenizar

de despesas e trabalhos, mandou‐me uma grande bolsa cheia de ducados, que podes ver, sequiseres remexer na minha cômoda. Acabaram‐se‐te os escrúpulos?‐ Somos então obrigados, disse a mulher, a auxiliar os pecados que os grandes cometem?Antes que o ancião tivesse tempo de responder, a filha saiu do aposento e disse que a dama,tendo necessidade de descanso, desejava ser conduzida ao quarto que lhe era destinado.

II

O burgomestre fizera arranjar o melhor possível dois pequenos quartos no andar superior e ficouseriamente embaraçado quando Celestina lhe perguntou se, além daquelas duas divisões, nãotinha nenhuma outra, cuja janela desse para as traseiras da casa.Respondeu negativamente, ajuntando, por descargo de consciência, que havia outro quarto muipequeno, com uma só janela para o jardim, mas que a bem dizer não era um quarto e sim umapéssima mansarda, uma miserável cela, em que só cabia uma cama, uma mesa e uma cadeira.Celestina pediu logo para ver o tal quarto e, assim que entrou, declarou que era exatamente oque desejava, e que mudaria para outro mais espaçoso, se tivesse necessidade duma enfermeira.O burgomestre comparara o pequeno quarto a uma cela; desde o dia seguinte esta comparação

tornou‐se bem exata. Celestina pregou na parede uma imagem da Virgem Maria e colocou emcima da mesa um crucifixo. O leito era um saco de palha com um cobertor de lá. Exceto umescabelo de pau e outra mesa mais pequena, Celestina recusou quaisquer outros móveis.A dona da casa, reconciliada com a desconhecida pela compaixão que lhe causava a profunda edilacerante dor demonstrada pelo seu aspecto, julgou do seu dever ir fazer‐lhe uma visita, elaporém, rogou‐lhe com as mais enternecedoras instâncias que não lhe perturbasse a solidão ondeencontrava as consolações que a Virgem e os santos lhe dispensavam.Todas as manhãs, logo ao despontar do dia, Celestina ia ouvir a missa das almas ao convento doCarmo.

Parecia consagrar o resto do dia a exercícios de devoção, pois que, sempre que havia necessidadede entrar no quarto, a encontravam orando ou lendo livros religiosos.Só comia legumes e só bebia água. O burgomestre representou‐lhe que o seu estado e aconservação da sua saúde exigiam melhor alimentação, mas só à força de muitas súplicasconseguiu que ela aceitasse um pouco de caldo e de vinho.As pessoas de casa consideravam este modo de vida austero, claustral, como expiação duma faltagrave; todavia sentiam pela desconhecida uma comiseração e veneração profundas, aumentadaspela nobreza das suas maneiras e pela cativante graça dos seus movimentos. Mas a persistênciaem nunca levantar o véu, misturava a estes sentimentos uma espécie de terror. A não ser oburgomestre e a família, ninguém dela se aproximava, e os habitantes, que nunca haviam saídoda pequena cidade, não podiam reconhecer as feições dum rosto que nunca tinham visto e nãoconseguiam assim desvendar o mistério. Para que servia então o tal véu?A ativa imaginação feminina inventou logo uma história medonha.Um terrível sinal, diziam as mulheres, a marca das garras do diabo, arrogara horrorosamente orosto da desconhecida; daí o uso do véu.O burgomestre teve mui trabalho em reprimir as murmurações, e em impedir que, pelo menosdefronte da casa, não se juntassem fazendo errôneas conjecturas a respeito da desconhecida,

cujos passeios ao convento do Carmo também foram notados. Passaram a chamar‐lhe "a damanegra do burgomestre", qualificação que envolvia a idéia duma aparição sobrenatural.

Page 15: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 15/27

O acaso quis que um dia, quando a filha do burgomestre levava o jantar a Celestina, uma correntede ar erguesse o véu. A desconhecida voltou‐se com a rapidez do relâmpago, para se subtrair aoolhar da rapariga; esta empalideceu e pôs‐se a tremer; não lhe distinguira as feições, mas comosua mãe, vira uma face cadavérica dum branco marmóreo, e, profundamente encovados, unsolhos de fulgor estranho.O burgomestre combateu com razões as idéias da rapariga, mas ele próprio não estava mui longede as partilhar e desejava ver sair de sua casa essa desconhecida, que ali levara a inquietação,

não obstante a devoção de que fazia tanto alarde.Uma noite, o ancião acordou a mulher e disse‐lhe que já há alguns minutos ouvia queixumes, egemidos, acompanhados de ligeiras pancadas, que pareciam vir do quarto de Celestina. A dona dacasa, pressentindo o que seria, correu ao quarto da desconhecida. Foi encontra‐la vestida eenvolvida no véu, deitada na cama quase sem sentidos e convenceu‐se de que o parto estavapróximo. Desde há mui que os preparativos necessários se achavam feitos, e, pouco tempodepois, nasceu um menino encantador e bem constituído.Este acontecimento teve por efeito o acabar com o constrangimento que tornava pouco agradáveisas relações da família com Celestina. A criança era como que o medianeiro da reconciliação damãe com a humanidade. O estado de Celestina não lhe permitia as práticas ascéticas, e anecessidade que tinha dos cuidados assíduos dos seus semelhantes habituou‐a gradualmente àsua presença. A dona da casa, que tratava da doente e que por suas próprias mãos lhe preparavaos caldos nutritivos, esqueceu, entregando‐se a estes trabalhos domésticos, a desconfiança quedesde o começo lhe inspirara a enigmática desconhecida. O burgomestre, todo contente, brincavae ria com o pequeno como se ele fosse seu neto e acostumou‐se, assim como o resto da família, aver Celestina sempre com o véu, que nem mesmo por ocasião das dores de parto quisera tirar. Aparteira fora obrigada a jurar‐lhe que, mesmo no caso dum desmaio, não lhe tiraria o véu, o que

só faria, no caso de eminente perigo. Era certo que a mulher do burgomestre vira Celestina sem ovéu, mas aquela limitava‐se a dizer:‐ Pobre senhora! Bem precisa de esconder o rosto!Dias depois voltou o monge do convento do Carmo que batizou a criança. A sua conversação comCelestina, que ninguém se atreveu a ir perturbar, durou mais de duas horas. Ouviram‐no falaracaloradamente e orar. Logo que ele saiu, foram encontrar Celestina sentada numa poltrona, como filho deitado nos joelhos; a criança tinha os ombros cobertos com um escapulário e via‐se‐lhe aopeito um Agnus Dei.Semanas e meses se passaram sem que viessem buscar Celestina e o filho, como o burgomestre

esperava e como lhe afirmara o príncipe Zapolski. A desconhecida entraria na intimidade dafamília se não fosse o fatal véu. O burgomestre lembrou‐se um dia de lhe pedir explicações,porém ela respondeu com voz surda e solene:‐ Só trocarei este véu pela mortalha.O burgomestre calou‐se e de novo desejou a volta da berlinda e da abadessa.

III

Tornara a primavera; a família do burgomestre voltava dum passeio e trazia ramalhetes de flores,as mais belas das quais eram destinadas à devota Celestina.Na ocasião em que iam a entrar em casa, parou um cavaleiro defronte da porta. Trazia ofardamento dos oficiais de caçadores da guarda imperial francesa; perguntou com instância peloburgomestre.‐ Sou eu, disse o ancião, e está à minha porta.O cavaleiro apeou‐se rapidamente, prendeu o cavalo a um poste e correu para dentro de casa,gritando com voz estridente:‐ Ela está aqui! Ela está aqui!

Subiu rapidamente a escada. Ouviu‐se uma porta que se abria, e Celestina dar um grito deangústia. O burgomestre acudiu cheio de medo.

Page 16: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 16/27

O desconhecido arrancara a criança do berço, envolvera‐a no manto, e agarrava‐lhe com o braçoesquerdo enquanto com o direito repelia Celestina, que empregava todos os esforços para tirar ofilho ao raptor. Nesta luta, o oficial fez cair o véu e viram então um rosto pálido e inanimado,assombreado por madeixas de cabelos negros, uns olhos que dardejavam relâmpagos e uns lábiosimóveis e entreabertos donde saíam clamores estridentes.O burgomestre compreendeu que Celestina tinha uma máscara branca estreitamente ligada aorosto, cujos contornos desenhava.

‐ Horrível mulher! ‐ gritou o oficial, queres que eu partilhe a tua loucura?

E repeliu Celestina com tanta força que esta caiu no chão. A pobre senhora abraçou‐lhe os joelhos,esmagada por urna dor invencível.‐ Deixa‐me essa criança, disse ela num tom suplicante, que dilacerava o coração. Pela tuasalvação eterna, não ma roubes! Em nome do Cristo e da Virgem Santa, dá‐me essa criança!E, apesar destas veementes lamentações, nenhum músculo mexia; os lábios daquele rosto decadáver ficavam imóveis; os circunstantes sentiam que o sangue se lhes gelava nas veias, dehorror.‐ Não! ‐ retorquiu o oficial, como que arrebatado pelo desespero, não, mulher desumana einexorável! Podes arrancar‐me o coração, mas, no teu delírio funesto, não deves perder este ente,que o céu destinou a minorar as dores duma ferida que sangra ainda!O oficial apertou com mais força a criança contra o seio; esta pôs‐se a chorar e a gritar.‐ Vingança! ‐ uivou Celestina com voz surda ‐ que o castigo do céu caia sobre ti, assassino!‐ Deixa‐me, deixa‐me, afasta‐te, aparição saída do inferno ‐ exclamou o oficial.E, empurrando com o pé Celestina, com um movimento brusco, tentou alcançar a porta. Oburgomestre embargou‐lhe a passagem, mas o oficial puxou rapidamente por uma pistola e

apontou‐a ao velho.‐ Uma bala na cabeça daquele que tentar tirar o filho a seu pai!Dizendo isto, desceu precipitadamente a escada, correu para o cavalo, sem largar a criança, epartiu a galope.A dona da casa, com o coração comprimido, dominando o horror que lhe inspirava a terrívelmáscara de cadáver, entrou no quarto no intuito de consolar Celestina; foi encontrar a pobre mãeno meio da casa, imóvel e muda como uma estátua, com os braços pendentes. Não podendosuportar a vista da máscara, a mulher do burgomestre pôs a Celestina o véu que caíra no chão.Esta não pronunciou uma palavra, não fez um movimento; estava reduzida ao estado de autômato.

Ao vê‐la assim, a mulher sentiu redobrar a sua inquietação e ansiedade e pediu a Deus que alivrasse da funesta desconhecida.Fora ouvida aquela prece, porque imediatamente a berlinda que trouxera Celestina paroudefronte da porta. A abadessa entrou acompanhada pelo príncipe Zapolski.Quando este soube o que acabava de passar‐se, disse com mui sossego, suavemente:‐ Chegamos mui tarde! Submetamo‐nos à vontade de Deus!Celestina foi levada e colocada na carruagem, sem movimento, sem fala, sem dar o mínimo sinalde vontade, de pensamento. A berlinda partiu.O ancião e a família como que acordavam dum mau sonho, que os enchera de inquietações.Pouco depois das cenas passadas em casa do burgomestre, era enterrada com uma solenidadedesacostumada, uma religiosa da ordem de Cister, em Oppeln. Correu o boato de que esta freiraera a condessa Hermenegilda de Czernski, que todos julgavam estar em Itália com a irmã do pai, aprincesa Zapolski.Pela mesma época, o conde Nepomuceno Czernski, pai de Hermenegilda, veio a Varsóvia ereservando para si apenas uma pequena propriedade na Ucrânia, renunciou ao resto dos seus bensa favor dos dois filhos do príncipe Zapolski, seus sobrinhos. Perguntaram‐lhe se dotava a filha; porúnica resposta ergueu ao céu os olhos úmidos de lágrimas, dizendo com voz surda:

‐ Já está dotada!Não empregou meio algum para confirmar o boato da morte de Hermenegilda no convento de

Page 17: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 17/27

Oppeln, nem para destruir as suposições que faziam sobre a sorte da filha, que todos julgavamcomo vítima levada prematuramente ao túmulo pela dor.Vários patriotas polacos, humilhados, mas não abatidos pela queda da pátria, procuraram fazerentrar de novo o conde numa associação secreta, que se destinava à libertação da Polônia; masnão encontraram já nele o homem ardente, amante entusiástico da liberdade e da pátria, cujacoragem heróica outrora os auxiliara nas suas nobres empresas. Tornara‐se um velho sem energia,feito misantropo por uma dor profunda, estranho a todas as cousas mundanas.

IV

Outrora, na época em que o primeiro desmembramento da Polônia excitou uma sanguinolentainsurreição, o castelo do conde Nepomuceno de Czernski fora teatro das secretas reuniões dospatriotas.Ali, em banquetes solenes exaltavam‐se os conjurados, jurando combater pela oprimida pátria.Hermenegilda aparecia no meio destes heróis, como um anjo descido dos céus para os abençoar.Tinha a índole das mulheres da sua nação; tomava parte em tudo, até mesmo nas deliberaçõespolíticas; examinava com atenção o estado das cousas, e, apesar de não ter ainda dezessete anos,combatia por vezes o modo de ver geral; a sua opinião, ditada pelo bom senso e por umaextraordinária penetração, arrastava a maioria da assembléia.Segundo Hermenegilda, ninguém era melhor conselheiro, ninguém examinava melhor as questõesdo que o conde Estanislau de Ramskay, mancebo de vinte anos, ardente e dotado de grandesqualidades. Acontecia, pois, que, por vezes, Hermenegilda e Estanislau dirigiam o curso dasdiscussões difíceis. A sós, examinavam, aceitavam, rejeitavam e emendavam as propostas; equase sempre o resultado destas conferências era adotada por velhos hábeis em tratar dos

negócios do Estado, e cuja prudência e capacidade eram comprovadas pelos seus conselhos deoutrora.Natural era pensar numa união entre os dois jovens, cujos maravilhosos talentos podiam serinstrumento da salvação da pátria. Além disto a política parecia exigir uma aliança estreita entreas duas famílias, porque as julgavam animadas, uma contra a outra, por interesses opostos,circunstância esta que já arrastara à ruína muitas famílias polacas.A donzela, compenetrada destas idéias, aceitou como dádiva da pátria, o esposo que lhedestinavam. As patrióticas reuniões do castelo terminaram pelos solenes esponsais deHermenegilda e Estanislau.

Sabe‐se como sucumbiram os polacos e como a queda de Kosciusko produziu a ruína de umaempresa baseada na demasiada confiança que os combatentes tinham em si próprios, em falsasprevisões e numa fidelidade cavalheiresca.O conde Estanislau, cuja estréia na carreira militar, juventude e força lhe marcavam um lugar noexército, bateu‐se com a coragem do leão; a custo escapou a um vergonhoso cativeiro e ficougravemente ferido. Só Hermenegilda o prendia então à vida; julgava ir encontrar nos seus braçosconsolações e a esperança que perdera. Logo que as feridas começaram a cicatrizar, correu aocastelo do conde Nepomuceno, onde ia ser ferido de novo e mais profundamente.Hermenegilda recebeu‐o com altivez quase desdenhosa.‐ Onde está o herói que queria morrer pela pátria? ‐ perguntou ela, indo‐lhe ao encontro.No seu louco entusiasmo parecia considerar o noivo como um paladino dos tempos heróicos, cujaespada podia, por si só, aniquilar exércitos.Em vão o conde implorou com o mais apaixonado amor, em vão protestou que nenhum poderhumano podia lutar contra a torrente devastadora, que caíra mugindo sobre a malfadada Polônia;foi tudo inútil. Hermenegilda, cujo coração frio como a morte só podia aquecer no turbilhão dascousas mundanas, persistiu na resolução de só conceder a sua mão ao conde Estanislau, quando osestrangeiros fossem expulsos da pátria.

O conde viu já tarde que Hermenegilda o não amava; a condição que esta lhe impunha, se viessea realizar‐se, só se daria num tempo mui longínquo. Jurou à sua bem amada que lhe seria fiel até

Page 18: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 18/27

à morte, e deixou‐a para ir alistar‐se no exército francês, que combatia em Itália.Diz‐se que as mulheres polacas têm uma índole fantástica que lhes é própria. Sensibilidadeprofunda, inconstância, abandono, abnegação estóica, paixões ardentes, frieza glacial, tudo istose contém à mistura na sua alma, e produz à superfície espantosas instabilidades. Os caprichos doseu gênio variável, assemelham‐se aos redemoinhos dum ribeiro revolvido nas suas profundezas,à superfície do qual sobem sem cessar novas ondas mugidoras.Hermenegilda viu com indiferença o noivo afastar‐se; mas, passados alguns dias, sentiu apoderar‐

se dela um desejo inexprimível, desejo que só o mais ardente amor podia gerar.O vendaval da guerra passara. Proclamada uma anistia, foram postos em liberdade os oficiaispolacos prisioneiros. Vários irmãos de armas de Estanislau chegaram ao castelo; conversaram comprofunda dor do dia da derrota, e da intrepidez que todos, sobretudo Estanislau, haviam mostrado.No momento em que a batalha parecia perdida, o conde fez voltar ao combate os batalhões querecuavam, e conseguiu com a cavalaria romper as fileiras inimigas. Era duvidosa a sorte da batalhaquando o atingiu uma bala. Caiu banhado em sangue, repetindo estas palavras:‐ Pátria!... Hermenegilda!Cada palavra daquela narrativa era uma punhalada que trespassava o coração da donzela.‐ Não, não sabia que o amava ardentemente, disse ela. Que demônio me cegou e me induziu emerro? Que demônio me fez crer que podia viver sem aquele que é a minha vida? Enviei‐o à morte!Não voltará!E assim Hermenegilda desafogava as tempestuosas dores que lhe iam na alma. Sem sono, incapazde tomar o mínimo descanso, errava pelo parque, de noite, e, como se o vento pudesse levar aoamado ausente as suas palavras, gritava:‐ Estanislau! Estanislau, volta! Sou eu, é Hermenegilda que te chama! Não me ouves? Volta oumorrerei de inquietação, de amor e de desespero!

V

A agitação de Hermenegilda ameaçava degenerar em verdadeira loucura, que se manifestava pormil extravagâncias. O conde Nepomuceno, cheio de temor e de ansiedade pelo estado da filhaquerida, julgou que talvez lhe fossem salutares os socorros da medicina, e conseguiu encontrarum doutor que condescendeu em passar algum tempo no castelo e em tomar conta da doente.O seu método, mais moral do que físico, não produziu resultado algum.A cura de Hermenegilda tornou‐se mui duvidosa. Após longos intervalos de tranqüilidade, a jovem

recaía de improviso nos mais estranhos paroxismos.Uma aventura íntima deu à doença de Hermenegilda uma nova direção sintomática.Tinha ela um boneco vestido de ulano, ao qual testemunhava viva ternura e prodigalizava os maisdoces epítetos, como se ele fosse o seu bem amado. Atirou‐o ao fogo do salão, despeitada, porqueele não tinha querido cantar uma canção polaca que principiava assim:"Podrosz twoia nam nie mila""Milsza przyiazin w kraiu byla"(Não nos foi agradável a tua viagem,A tua amizade era‐nos preciosa no país)Quando atravessava o vestíbulo, para ir para os seus aposentos, ouviu um tinido e a bulha depassos. Olhou em torno de si e viu um oficial com o grande uniforme da guarda imperial francesa,que trazia um braço ao peito.‐ Estanislau! Meu Estanislau! ‐ exclamou ela, correndo para ele e caindo desmaiada nos seusbraços.O estupefato oficial a custo susteve Hermenegilda com o braço livre, pois que a jovem, alta enutrida, estava longe de ser um fardo ligeiro; conduziu‐a para uma sala lateral, apertando‐a contrao peito numa pressão crescente. Ao sentir o coração da jovem bater tão perto do seu, o oficial

confessou que era esta a aventura mais deliciosa que até ali lhe acontecera.Os minutos passavam; o oficial sentiu invadi‐lo o fogo dos desejos, cujas centelhas elétricas

Page 19: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 19/27

jorravam do corpo encantador que apertava nos braços.O conde Nepomuceno, que saía dos seus aposentos, foi encontrar a filha ainda desmaiada nosbraços do oficial; mas neste momento Hermenegilda voltou a si, beijou o oficial com calor, eexclamou de novo, no seu delírio:‐ Estanislau! Meu bem amado! Meu esposo!O oficial todo trêmulo, com o rosto vermelho, perdeu a firmeza, recuou um passo edesenvencilhou‐se com brandura do convulsivo amplexo de Hermenegilda.

‐ É este o mais suave momento da minha vida, balbuciou ele com timidez, mas não quero gozarduma ventura proporcionada por um equívoco. Não sou Estanislau, com pesar meu, não souEstanislau!Ao ouvir estas palavras, Hermenegilda espantada deu um salto para trás, fixou no oficial um olharpenetrante, convenceu‐se de que fora enganada por uma extraordinária semelhança e afastou‐selastimando‐se.O oficial deu‐se a conhecer pelo conde Xavier de Ramskay, primo de Estanislau. O condeNepomuceno mal podia acreditar que, em tão pouco tempo, a criança que conhecera se houvessemetamorfoseado num homem alto e robusto, a cujo rosto as fadigas da guerra tinham dado umtipo másculo.O conde Xavier deixara a pátria ao mesmo tempo que o primo e amigo conde Estanislau e, comoeste fora servir no exército francês e fizera a campanha de Itália.Tendo então apenas dezoito anos, distinguiu‐se mostrando tanta coragem, que o general emchefe o nomeara ajudante de campo e que aos vinte anos alcançara o posto de coronel.Como as feridas que recebera exigiam algum tempo de repouso, voltara à pátria, e, portador dumacarta de Estanislau para a sua noiva, vinha ao castelo do conde Nepomuceno, onde Hermenegilda,numa alucinação febril, o tomou pelo primo.

O conde Nepomuceno e o médico tentaram, mas em vão, acalmar Hermenegilda, que resolveunão sair dos seus aposentos em quanto o recém‐vindo estivesse no castelo.

VI

Xavier ficou aflito com a decisão de Hermenegilda. Escreveu‐lhe dizendo que lhe fazia expiarbem rigorosamente uma desgraçada semelhança de que não era culpado. Acrescentou que a suagrande desventura atingia também a Estanislau, porquanto este lhe confiara uma carta de amordizendo que comunicasse a Hermenegilda de viva voz o que não tinha tido tempo de escrever.

Pela resolução da jovem, via‐se impossibilitado de cumprir aquela missão.A criada de quarto de Hermenegilda, que Xavier comprara, encarregou‐se de lhe apresentar obilhete aproveitando‐se duma ocasião favorável e as poucas linhas de Xavier fizeram o que o pai eo médico não tinham podido fazer. Hermenegilda consentiu em recebe‐lo.Esperou‐o no seu quarto, silenciosa, de olhos baixos. Xavier entrou a passos um tanto hesitantes eveio sentar‐se defronte da jovem, mas, inclinando‐se na cadeira, mais parecia ajoelhado do quesentado.Nesta postura, pediu‐lhe perdão nos mais tocantes termos, como se acusasse dum crimeirremissível que, no fim de contas, provinha dum equívoco. Depois, entregou‐lhe a carta ecomeçou falando de Estanislau, dizendo‐lhe com que fidelidade cavalheiresca pensava sempre nasua dama quando combatia, com que ardor amava a liberdade e a pátria. O fogo e a vivacidade danarração de Xavier arrebataram Hermenegilda, que, pela primeira vez desde o começo daentrevista, fixou no mancebo os seus encantadores olhares; e este, como Calaf, embriagado deamor pelo olhar de Turandot, a custo continuou a narrativa. Sem mesmo dar por isso, epreocupado pela luta que sustentava contra uma paixão cujo ardor ameaçava aumentar, perdeu‐se numa confusa descrição de batalhas. Falou de cargas de cavalaria, de batalhões esmagados, debaterias tomadas. Hermenegilda interrompeu‐o com impaciência:

‐ Malditas sejam essas cenas sanguinolentas preparadas pelo inferno! Diga‐me só que ele me ama!Xavier, mui impressionado, pegou na mão da jovem e apoiou‐a contra o coração.

Page 20: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 20/27

‐ Escuta‐o, a ele próprio, ao teu Estanislau! ‐ exclamou, deixando sair dos lábios uma torrente deprotestos de ardente amor, como que inspirados na mais devoradora paixão.Caíra aos pés de Hermenegilda, enlaçara‐a nos braços e procurava atraí‐la a si, quando a jovem orepeliu, fixando‐o com um olhar estranho.‐ Vaidoso boneco! ‐ disse com voz surda. Ainda que te desse vida com o calor do meu seio, nuncaserias, não és o meu Estanislau!E saiu do quarto lentamente, sem ruído;

Xavier viu já tarde a sua leviandade; sentiu que amava perdidamente Hermenegilda, a noiva dumparente e amigo, e que corria o risco de atraiçoar a amizade que o unia a Estanislau. Adotou aheróica resolução de partir sem tornar a ver a donzela e mandou arranjar as malas e preparar acarruagem.O conde Nepomuceno ficou admirado, quando Xavier se foi despedir dele. Empregou todos osmeios para o fazer desistir daquele propósito, mas Xavier, a pretexto de negócios urgentes,recusou‐se com uma firmeza que mais provinha do nervosismo do que da força de vontade.Quando o criado de Xavier estava na antecâmara com a capa do amo e este, de espada à cinta,pegava no boné para se dirigir para a carruagem cujos cavalos relinchavam de impaciência, abriu‐se a porta do salão e Hermenegilda entrou com o pai, aproximou‐se do conde Xavier e disse‐lhecom um sorriso de inexprimível graça:‐ Vai‐se embora, meu caro Xavier? E eu que contava ouvi‐lo falar mais vezes do meu amadoEstanislau! Não sabe que as suas narrativas me consolam maravilhosamente?Xavier corou e baixou os olhos. Sentaram‐se. O conde Nepomuceno assegurou por várias vezes quedesde muitos meses não via Hermenegilda tão tranqüila e expansiva. Chegou a hora da ceia. Auma ordem do conde, foi a refeição servida no salão em que estavam. Com o rosto animado,Hermenegilda encheu uma taça de espumante vinho da Hungria e bebeu pelo noivo, pela

liberdade e pela pátria.‐ Partirei esta noite, disse Xavier consigo mesmo.Levantada a mesa, Xavier perguntou ao criado se a carruagem o estava esperando. Esterespondeu‐lhe que, por ordem do conde Nepomuceno, as bagagens haviam sido descarregadas epostas de novo no quarto, a carruagem voltara para a cocheira e os cavalos para a cavalariça.Xavier tomou um partido. A imprevista aparição de Hermenegilda convencera‐o de que erapossível e, mais ainda, conveniente que ficasse, e desta convicção resultou uma outra: devia sersenhor de si, isto é, reprimir os arrebatamentos da paixão, os quais, irritando o espírito doentio deHermenegilda, lhe podiam ser prejudiciais. E terminou estas reflexões dizendo que podia esperar

tudo das circunstâncias, e que Hermenegilda, tirada dos seus devaneios, viria talvez a preferir umpresente tranqüilo a um futuro duvidoso, e que, ficando no castelo, não era nem desleal nemtraidor para com o amigo.

VII

No dia seguinte, Xavier tornou a ver Hermenegilda. Comedindo‐se com cuidado, conseguiuacalmar o ardor do sangue e lutar eficazmente contra a paixão. Conservando‐se nos limites dasmais estritas conveniências, deu à conversação o tom melífluo de galantaria que muitas vezesoculta um veneno funesto para a mulher.Xavier, mancebo de vinte anos, pouco hábil nas astúcias amorosas, mais guiado por um fino tacto,demonstrou a arte dum experimentado mestre. Só falou de Estanislau, do seu inexprimível amorpela bela noiva; mas, com o fogo que ativou, soube‐se destramente iluminar a si próprio, demaneira que Hermenegilda, apossada dum penoso desvairamento, não sabia como separar as duasimagens, a de Estanislau ausente e a de Xavier presente.Em breve a presença deste se tornou indispensável para Hermenegilda, completamentefascinada; viram‐nos então quase sempre juntos e conversando familiarmente como dois

namorados. O hábito foi gradualmente vencendo a timidez de Hermenegilda, e ao mesmo tempoXavier transpôs a barreira que entre eles levantavam as frias conveniências e em cujos limites se

Page 21: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 21/27

conservara até ali. Hermenegilda e Xavier passeavam, de braço dado, pelo parque e a jovemabandonava‐lhe negligentemente a mão quando, sentado junto dela no seu quarto, o mancebofalava de Estanislau.Absorvido pelos negócios de Estado, e por tudo que se relacionava com a pátria, o condeNepomuceno era incapaz de sondar corações. Contentava‐se em ver o que se passava àsuperfície; o seu pensamento, morto para qualquer outro assunto, não podia refletir senãopassageiramente, como um espelho, às fugitivas imagens da vida, que se desvaneciam sem

deixar vestígios. De modo algum suspeitou do estado do coração de Hermenegilda e não achoumau que a filha trocasse um mancebo vivo pelo boneco que o delírio lhe fazia tomar pelo noivo.Julgou mostrar mui finura ao prever que Xavier, genro tão conveniente como o outro, não tardariaa substituir Estanislau, e deixou de pensar neste último.Xavier teve análogas idéias; persuadiu‐se de que, ao cabo de alguns meses, Hermenegilda, pormais preocupada que estivesse com o pensar em Estanislau, consentiria em escutar os juramentosdaquele que o substituía.Uma manhã, disseram que Hermenegilda se fechara nos seus aposentos, com a criada de quarto,e que não queria ver pessoa alguma.O conde Nepomuceno julgou que se tratava dum novo paroxismo, que pouco duraria. Rogou aoconde Xavier que empregasse na cura da filha o império que sobre esta exercia, mas qual foi oseu espanto quando Xavier não só se recusava a ir ter com Hermenegilda sob pretexto algum, mastambém mostrava mudança completa na sua conduta! Em lugar de ostentar, como dantes, umaousadia excessiva, estava perturbado como se houvesse visto fantasmas; tinha a voz trêmula,exprimia‐se com dificuldade e a sua conversação era vaga, incoerente.Declarou que se via obrigado a voltar a Varsóvia; que nunca mais tornaria a ver Hermenegilda;que, nos últimos tempos, o desvairamento da doente o enchera de espanto; que renunciava a

todas as venturas do amor; que a felicidade de Hermenegilda, levada até ao delírio, lhe faziacruelmente sentir a extensão da perfídia de que ia tornar‐se culpado para com o amigo, e queuma pronta fuga era o único recurso que se lhe antolhava.O conde Nepomuceno nada compreendeu desta conversa, e esteve tentado a crer que odesvairamento de Hermenegilda contagiara o mancebo. Em vão procurou tranqüilizá‐lo. Quantomais o conde provava a necessidade de ver a filha para a curar das suas extravagâncias, maisXavier teimava em recusar. O oficial abreviou esta discussão atirando‐se para dentro da suacarruagem, e afastando‐se como que impulsionado por um poder oculto e incompreensível.O conde Nepomuceno, irritado e pesaroso com a conduta da filha, não mais se importou dela e

Hermenegilda passou muitos dias metida nos aposentos com a criada.Um dia o conde Nepomuceno estava no quarto, sentado e mergulhado nas suas reflexões. Pensavanas façanhas do homem que os polacos invocavam então como um ídolo, ídolo falso. De repenteabriu‐se uma porta e Hermenegilda apareceu de luto carregado, quase totalmente coberta por umcomprido véu preto; aproximou‐se do pai a passos lentos, solenes e caiu de joelhos, dizendo comvoz trêmula:‐ Meu pai! O conde Estanislau, meu mui amado noivo, já não existe! Caiu como um bravo numcombate sangrento! Está ajoelhada a teus pés a sua inconsolável viúva!O conde Nepomuceno considerou estas palavras como uma nova prova do desequilíbrio mental deHermenegilda, tanto mais que, no dia precedente, recebera notícias da boa saúde de Estanislau.Ergueu‐a com brandura, dizendo:‐ Tranqüiliza‐te, querida filha. Estanislau está de saúde; dentro em pouco o terás nos teus braços.Hermenegilda deu um suspiro, que mais parecia o estertor dum moribundo e, ferida por dorestranha, foi cair sobre os coxins, ao lado do pai. Levou alguns instantes a restabelecer‐se daqueledelíquio, e disse com singular tranqüilidade:‐ Deixe‐me dizer‐lhe, meu caro pai, o que se passou, para que possa reconhecer‐me como viúvado conde Estanislau. Há seis dias, à tardinha, achava‐me no pavilhão situado no sul do parque.

Todo o meu ser, todos os meus pensamentos eram para o meu bem amado. Senti que os olhos seme fechavam involuntariamente; não dormia mas estava num estranho estado a que não posso dar

Page 22: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 22/27

outro nome senão o de alucinação. Zumbiram‐me os ouvidos e pareceu‐me que a casa andava àroda; ouvi um tumulto sinistro e um estrondear de tiros, que se aproximavam cada vez mais.Levantei‐me e mui espantada fiquei de me achar numa barraca de campanha. Ele, o meuEstanislau, estava de joelhos em frente de mim! Abracei‐o. ‐ "Deus seja louvado! exclamei; vives,és meu!" Disse‐me que logo apôs a cerimônia nupcial eu caíra num profundo desmaio. Lembrei‐me então da benção que nos fora dada, numa capela vizinha, pelo padre Cipriano, no meio dotroar da artilharia e do ruído do combate. Cintilava‐me no dedo o anel de casamento; era

inexprimível a ventura que sentia em apertar meu esposo nos braços; um arroubamento semnome, e que nunca experimentara, me enchia a alma; perturbaram‐me os sentidos; apoderou‐sede mim um frio de gelo; fechei os olhos. Espetáculo horroroso! De repente, acho‐me no meioduma refrega furiosa. A tenda, donde provavelmente me haviam arrancado, arde. Estanislau érodeado por cavaleiros inimigos; os amigos voam em seu socorro, mas é tarde! Um dos cavaleirosderruba o meu querido esposo...Esmagada pela dor, Hermenegilda caiu de novo desmaiada. Nepomuceno correu em busca decordiais, que não teve tempo de aplicar porque a filha recuperou os sentidos sob a ação dumaenergia singular.‐ Cumpra‐se a vontade do céu! ‐ disse ela, surda e solenemente; não devo lastimar‐me; mas, fielao meu esposo ate à morte, respeitarei a sua memória e jamais tomarei ligação alguma terrestre!Chora‐lo, orar por ele e pela nossa salvação, eis o dever a que nunca faltarei!

VIII

O conde Nepomuceno julgou que a loucura da filha criara aquela visão. Esperou que o luto deHermenegilda contribuiria para mudar tão desordenada agitação em uma dor tranqüila e

concentrada, e contou com o regresso do conde Estanislau para pôr termo a esta novaextravagância.Por vezes o velho fidalgo pronunciava as palavras: devaneios, visões; mas Hermenegilda sorriacom amargura, unia aos lábios o anel de ouro, que trazia no dedo, e banhava‐o em lágrimasardentes.O conde notou com espanto que aquele anel não pertencia realmente à filha; nunca lho vira; fezmil conjecturas sobre a sua proveniência, mas sem se dar ao trabalho de uma investigação séria.Veio afligi‐lo uma má nova: o conde Estanislau fora feito prisioneiro.Por esta época chegou ao castelo o príncipe Zapolski com sua mulher. Morta a mãe de

Hermenegilda, a princesa substituíra‐a para com a órfã, que lhe testemunhava dedicação filial. Ajovem, patenteando‐lhe o coração, lastimou‐se amargamente de que, embora tivesse as maisconvincentes provas da sua união com Estanislau, a tratassem como visionária e insensata. Aprincesa, já sabedora do desequilíbrio mental de Hermenegilda, de modo algum a quiscontradizer; contentou‐se em lhe assegurar, que com o tempo tudo se esclareceria e que porenquanto era conveniente que se submetesse à vontade do céu.A princesa tornou‐se mais atenta quando Hermenegilda lhe falou do seu estado físico, e lhedescreveu os sintomas singulares duma indisposição que sentia. Viram a princesa velar porHermenegilda com a mais viva solicitude e surpreendente ansiedade, à medida que a jovemparecia restabelecer‐se. Uma vermelhidão bem pronunciada foi substituindo, a pouco e pouco, apalidez lívida do rosto e dos lábios de Hermenegilda, e os olhos perdiam o fogo sombrio, sinistro,que dantes os animava, e tornavam‐se suaves e serenos. As suas formas emagrecidasarredondavam‐se a olhos vistos, e dentro em pouco voltaram a frescura e a beleza.Todavia a princesa parecia considera‐la mais doente do que nunca, porque, logo que ela suspiravaou empalidecia um pouco, lhe perguntava com inquietação bem visível:‐ Como estás? O que tens? O que sentes, minha filha?O conde Nepomuceno, o príncipe e a princesa, reuniram‐se um dia, discutindo o estado de

Hermenegilda e a sua idéia fixa de que era viúva de Estanislau.‐ Infelizmente creio o seu delírio incurável, disse o príncipe, porque não estando fisicamente

Page 23: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 23/27

doente, as forças corporais mantêm‐lhe a perturbação da alma.A princesa levantou os olhos ao céu com um modo triste e pensativo.‐ Sim, continuou o príncipe, não sofre e contudo, em seu detrimento, atormentam‐na fora depropósito como se fora uma doente.A princesa, a quem se dirigiam estas palavras, olhou de frente para o conde Nepomuceno eredarguiu num tom vivo e resoluto:‐ Não, Hermenegilda não está doente; mas se não fosse impossível ela ter‐se entregado a alguém,

diria, convencida, que está grávida.E, dizendo isto ergueu‐se e saiu do salão.O conde e o príncipe ficaram atônitos, como que feridos por um raio. O príncipe foi quem primeirotomou a palavra, dizendo que a mulher também tinha por vezes visões singulares.O conde respondeu de modo severo:‐ A princesa tem razão; uma tal falta da parte de Hermenegilda está no rol das cousas impossíveis.Mas, se te disser que o mesmo pensamento me ocorreu ontem quando a vi, que esta idéia me foifacilmente sugerida pelo seu aspecto, compreenderás naturalmente quanta comoção, quantopesar me causaram as palavras da princesa.‐ Pois é preciso que um médico ou uma parteira decidam a questão, tornou o príncipe, para queseja aniquilado o juízo talvez precipitado da princesa ou comprovada a nossa vergonha.Durante muitos dias divagaram sobre vários projetos. Pareceu‐lhes cada vez mais suspeito oestado de Hermenegilda e decidiram consultar a princesa sobre o que se devia fazer. Esta rejeitoua intervenção dum médico tagarela e acrescentou que dentro de cinco meses seriam precisosoutros socorros.‐ Quais? ‐ perguntaram ao mesmo tempo o conde e o príncipe.‐ Já não tenho dúvidas, prosseguiu a princesa com modo firme. Ou Hermenegilda é uma hipócrita

infame ou há nisto um mistério inconcebível. Está positivamente grávida.Esmagado pela consternação, o conde não pôde a princípio articular palavra; mas depois,dominando‐se com esforço, pediu à princesa para que a todo o custo soubesse de Hermenegilda onome do miserável que imprimira no seu nome uma nódoa indelével.‐ Hermenegilda ainda não suspeita de que conheço o seu estado, disse a princesa, e decertosaberei tudo logo que lho diga. Cairá a máscara da hipocrisia ou terei brilhantes provas da suainocência, o que, devo confessar, me parece mui problemática.

IX

Naquela mesma noite, a princesa foi ter com Hermenegilda, cuja gravidez era cada vez maisaparente. Pegou‐lhe nos dois braços, encarou‐a bem e disse‐lhe de repente e com intimativa:‐ Minha querida, tu estás grávida!Hermenegilda ergueu os olhos ao céu como num êxtase celeste, e exclamou com a mais vivaalegria:‐ Oh! Minha mãe, minha mãe, eu bem o sei! Sei‐o há mui tempo e sinto um inexprimível bemestar, não obstante o meu caro esposo ter caído sob os golpes homicidas dos inimigos. Sim, sintoainda os momentos da minha maior felicidade terrestre. e o meu bem amado revive no ternopenhor duma doce união!Pareceu à princesa que tudo dançava em volta de si e que ia perder a cabeça. A ingenuidade dasexpressões de Hermenegilda, o seu arroubamento, aquele tom de verdade, não permitiam acusá‐la de perfídia, e só se podia compreender que o delírio a cegasse a respeito da grandeza do seuerro.Ferida por esta última idéia, a princesa repeliu a jovem e exclamou colérica:‐ Insensata! Podia um sonho pôr‐te nesse estado, que a todos nós nos vota à ignomínia? Julgaslograr‐me com essas narrativas absurdas? Reflete; invoca as tuas recordações; só uma confissão

ditada pelo arrependimento te pode reconciliar conosco.Banhada em lágrimas de dor, Hermenegilda caiu aos pés da princesa, dizendo com voz

Page 24: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 24/27

gemebunda:‐ Também tu, minha mãe, me chamas visionária? Também tu recusas crer que a Igreja me uniu aEstanislau; que sou sua mulher? Não vês o anel que trago no dedo? Mas o que estou eu a dizer?Pois conhecendo tu o meu estado, não achas isto bastante para te convenceres de que nãosonhei?Com grande espanto seu, a princesa reconheceu que nunca o pensamento duma falta ocorrera aHermenegilda e que esta não compreendia as censuras que lhe dirigira. A triste, apertando com

fogo contra o coração as mãos da mãe adotiva, suplicou‐lhe que acreditasse no casamento,comprovado como era pelo seu estado. A boa senhora, desconcertada, fora de si, não soube o queresponder, nem que meio devia empregar para descobrir algum vislumbre do segredo queenvolvia Hermenegilda.Só muitos dias depois é que a princesa declarou ao conde Nepomuceno que era impossível saberqualquer cousa pela jovem, que julgava, com profunda convicção, trazer no seio um fruto do amorde seu esposo.O conde e o príncipe, irritados, alcunharam Hermenegilda de hipócrita, e Nepomuceno jurou que,se os meios brandos não conseguissem dissipar‐lhe a loucura e arrancar‐lhe a confissão da suadesonra, usaria de medidas de rigor.A princesa foi de opinião que o emprego da força seria tão cruel como inútil, pois que estavaconvencida de que Hermenegilda, longe dum embuste, acreditava com toda a alma no que dizia.E acrescentou:‐ No mundo há ainda muitos mistérios que estamos mui longe de compreender. Quem sabe seuma ardente união do pensamento terá uma ação física e se as relações espirituais de Estanislau eHermenegilda produziram esse estado que nos parece incompreensível?Não obstante a cólera e as inquietações do presente, o príncipe e o conde não puderam deixar de

rir, e classificaram a idéia da princesa como uma das mais sublimes e etéreas que o espiritualismopode ainda produzir.A princesa, excessivamente corada, disse que semelhantes cousas se achavam fora do alcance doespírito dos homens; persuadida, como estava, da inocência de Hermenegilda, não deixava dejulgar crítica a posição. Propôs uma viagem com Hermenegilda, como o único meio de a subtrair àvergonha.O conde concordou com esta proposta, porque Hermenegilda mistério algum fazia da gravidez e,se queria conservar a reputação, devia afastar‐se do círculo das suas habituais relações.Regulada a questão, todos se sentiram mais tranqüilos, especialmente o conde, perante a

possibilidade de esconder o funesto segredo ao mundo, cujo escárnio era o que ele mais temia. Opríncipe julgou com razão que, dado o estranho encadeamento das circunstâncias e o desarranjomental de Hermenegilda, se devia esperar que o tempo trouxesse o desfecho de tãoextraordinário acontecimento.Fechada a discussão, iam separar‐se, quando a repentina chegada do conde Xavier veio causarnovos cuidados e embaraços.Afogueado por uma rápida correria, coberto de pó, Xavier precipitou‐se no salão com o ardor queproduz uma paixão desordenada, e, sem cumprimentar, nem dar atenção a pessoa alguma, gritoucom voz estridente:‐ Morreu! O conde Estanislau morreu! Não caiu prisioneiro... não... foi morto pelo inimigo... aquiestão as provas!...E, dizendo isto, tirou rapidamente da algibeira várias cartas e entregou‐as ao conde Nepomuceno,que ficou transtornado com o conteúdo. A princesa deitou um olhar a uma das cartas; logo àsprimeiras linhas pôs as mãos, ergueu os olhos ao céu e exclamou dolorosamente:‐ Hermenegilda! Pobre criança! Que inexplicável mistérioVira que o dia da morte de Estanislau era precisamente o que Hermenegilda designara comosendo o da sua entrevista com o noivo, e que estes dois acontecimentos deviam ter sido

simultâneos.‐ Morreu, disse Xavier vivamente. Hermenegilda está livre. Obstáculo algum se levanta entre ela e

Page 25: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 25/27

mim, e eu amo‐a mais do que a vida. Peço a sua mão!O conde Nepomuceno estava incapaz de responder. A princesa tomou a palavra, e declarou quecertas circunstâncias os colocavam na impossibilidade de bem acolherem aquele pedido, quepresentemente ele não podia ver Hermenegilda e que lhe pediam para partir o mais depressapossível.Xavier respondeu, que mui bem conhecia a perturbação do espírito de Hermenegilda, à qualnaturalmente queriam aludir, mas que não a considerava como obstáculo, pois que o casamento

poria termo àquele estado funesto.A princesa afirmou‐lhe que Hermenegilda jurara conservar‐se fiel a Estanislau até à morte, querepeliria qualquer aliança e que finalmente a jovem não estava no castelo.Xavier pôs‐se a rir, dizendo que lhe bastava o consentimento do pai e que tomaria o cuidado derestabelecer a tranqüilidade na alma de Hermenegilda.Irritado ao último ponto com a importunidade do mancebo, o conde Nepomuceno declarou que erainútil contar com o seu consentimento e convidou Xavier a sair do castelo.Xavier encarou‐o fixamente, abriu a porta do vestíbulo e gritou ao cocheiro que apeasse asbagagens, que desarreasse os cavalos e os metesse na cavalariça. Depois voltou para o salão esentou‐se numa poltrona junto à janela, dizendo num tom tranqüilo e severo:‐ Só à força me arrancarão do castelo antes de ter visto Hermenegilda, antes de lhe ter falado.‐ Então ficará aqui por mui tempo, respondeu o conde Nepomuceno. Em quanto a mim cedo‐lhe olugar e peço‐lhe licença para deixar o castelo.O conde Nepomuceno, o príncipe e a princesa saíram logo do salão para prepararem a partidaimediata de Hermenegilda.Quis o acaso que a jovem, contra os seus hábitos saísse a passear no parque. Xavier avistou‐a dajanela, correu e alcançou‐a quando entrava no fatal pavilhão do sul. O seu estado era bem visível.

‐ Oh! Poder celeste ‐ exclamou Xavier.E caiu de joelhos diante dela, fazendo‐lhe os mais ardentes protestos de amor e suplicando‐lheque o aceitasse por esposo.‐ Conduziu‐o aqui um mau gênio, respondeu Hermenegilda com temor e surpresa. Não procureperturbar a minha tranqüilidade. Conservar‐me‐ei fiel até à morte ao meu bem amado; nunca,nunca serei mulher de outro!Xavier, vendo repelidas as suas instâncias e súplicas, disse‐lhe que se enganava a si própria, quejá lhe dera, a ele Xavier, as mais doces provas de amor; mas quando se levantou e quis aperta‐lanos braços, Hermenegilda, numa palidez mortal, repeliu‐o cheia de horror e desdém, dizendo:

‐ Miserável! Louco presunçoso! Não poderás determinar‐me a violar a fé jurada, como não podesanular a prova da minha união com Estanislau! Sai da minha presença!Xavier cerrou os punhos, e, dando uma gargalhada de desprezo, exclamou:‐ Insensata! Não quebraste tu mesmo esses absurdos juramentos? A criança que trazes no seio émeu filho! Fui eu que te apertei nos braços aqui, neste mesmo lugar! Foste minha amante e só terestará este título, se o não trocares pelo de esposa!Hermenegilda fixou‐o com um olhar onde brilhavam as chamas do inferno.‐ Monstro! ‐ exclamou ela.E, como que ferida de morte súbita, caiu no chão.

X

Xavier voltou correndo ao castelo, como se fosse perseguido por todas as fúrias do inferno;encontrou a princesa no caminho, pegou‐lhe na mão e arrastou‐a para o salão.‐ Repeliu‐me com horror, a mim, ao pai de seu filho!‐ Por todos os santos do paraíso! Tu, Xavier! Fala! Será possível?‐ Podem condenar‐me, disse ele um pouco mais sossegado; mas quem tiver nas veias um sangue

ardente como o meu, tornar‐se‐á também culpado num momento de fascinação. EncontreiHermenegilda no pavilhão; era tão extraordinário o seu estado que não posso descreve‐lo. Estava

Page 26: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 26/27

estendida num canapé e parecia sonhar, entregue a sono profundo. Apenas entrei, levantou‐se,veio ter comigo, pegou‐me na mão e conduziu‐me para o meio da sala com passos lentos, solenes.Ajoelhou e eu fiz o mesmo; pôs‐se a orar e compreendi que imaginava ter um padre na suapresença. Tirou do dedo um anel e apresentou‐o ao invisível sacerdote. Recebi‐o e dei‐lhe o meuem troca. Em seguida deixou‐se cair nos meus braços, num acesso de amor ardente... Quandofugi, Hermenegilda ficou mergulhada em profunda modorra...‐ Miserável! Que horrendo crime! ‐ exclamou a princesa, fora de si.

O conde Nepomuceno e o príncipe entraram e ficaram ao fato das confissões de Xavier; a princesasentiu‐se ferida na sua delicadeza, quando declararam a ação criminosa de Xavier muidesculpável, já que podia reparar‐se pelo casamento.‐ Não, disse a princesa, jamais Hermenegilda concedera a mão aquele que, à laia de génio mau,lhe envenenou a existência com um crime odioso.‐ Pois é preciso que seja minha mulher, disse o conde Xavier com fria e desdenhosa altivez; assimé necessário, para a salvação da sua honra. Fico e tudo se há de arranjar.Neste momento ouviu‐se um ruído surdo; traziam para o castelo Hermenegilda, que o jardineiroencontrara desmaiada no pavilhão. Colocaram‐na num sofá; antes que a princesa tivesse tempo deo impedir, Xavier pegou na mão de Hermenegilda. Esta, de súbito levantou‐se, dando umhorroroso grito que nada tinha de humano; imóvel, inteiriçada em medonha convulsão, fixou noconde um olhar cintilante.Era tão fulminante o seu olhar, que Xavier cambaleou e murmurou com voz inteligível a custo:‐ Um cavalo!A um sinal da princesa, saíram a aprontar um.‐ Vinho! vinho! ‐ exclamou o mancebo.Depois de beber precipitadamente alguns copos, montou dum pulo no cavalo e desapareceu.

O estado de Hermenegilda, cujo sombrio delírio parecia querer degenerar em loucura furiosa,mudou as disposições do pai e do príncipe, que reconheceram pela primeira vez o horror dairremediável ação de Xavier. Quiseram mandar chamar um médico, mas a princesa rejeitou ossocorros da ciência, pois que o caso só requeria, talvez, consolações espirituais; por isso foichamado o padre Cipriano, frade da ordem mendicante do Carmo e confessor da casa, o qualconseguiu tirar Hermenegilda do seu abatimento e delírio. As melhoras acentuaram‐se. Teve coma princesa conversas bem orientadas e exprimiu‐lhe o desejo de ir, após o parto, viver penitente,desolada, no convento da ordem de Cister, em Oppeln.Acrescentou aos fatos de luto, um véu que lhe escondia completamente o rosto e que nunca mais

ergueu.O padre Cipriano saiu do castelo, mas voltou no fim de alguns dias. Entretanto o príncipe Zapolskiescrevia ao burgomestre de Lilinitz, em casa de quem Hermenegilda devia ter o parto; a abadessado convento de Cister, parente da casa, devia conduzi‐la a Lilinitz; durante este tempo a princesaviajaria pela Itália, acompanhada, na aparência, por Hermenegilda.Era meia‐noite; a berlinda que devia transportar a infeliz ao convento parou à porta. Acabrunhadopela dor, Nepomuceno, o príncipe e a princesa, esperavam a pobre criança para fazerem as suasdespedidas.Apareceu coberta com o véu, ao lado do frade, que trazia na mão um candelabro, cuja luziluminou o vestíbulo.‐ A irmã Celestina, disse Cipriano com voz solene, pecou gravemente quando ainda pertencia aomundo; um crime de Satanás lhe poluiu a pureza; mas um voto, que nunca quebrará, há de dar‐lhe consolação, tranqüilidade e a ventura eterna! Nunca mais o mundo tornara a ver o rosto, cujabeleza tentou o demônio! Olhem: é assim que Celestina vai começar a expiação.O monge levantou o véu e todos deram um grito, Hermenegilda escondera para sempre a angélicabeleza do rosto sob uma máscara de palidez mortal.Sem proferir uma única palavra, a jovem separou‐se do pai, que, esmagado pela dor, julgou não

poder suportar a vida; o príncipe, homem de mais firmeza, verteu contudo uma torrente delágrimas; só a princesa, domando com todas os forças o horror que lhe inspirava aquele voto,

Page 27: Contos de Aula_ E.T.A

7/23/2019 Contos de Aula_ E.T.A

http://slidepdf.com/reader/full/contos-de-aula-eta 27/27

conseguiu ser senhora de si.Nunca se pôde explicar como o conde Xavier descobriu o retiro de Hermenegilda, como soube aconsagração do recém‐nascido à igreja. Foi inútil o rapto do filho, porque, quando chegou a Pragae o quis entregar a uma mulher de confiança, não estava desmaiado de frio, como Xavier pensara,mas sim morto. O conde Xavier desapareceu sem deixar vestígios; pensou‐se num suicídio.

*

Eram passados muitos anos quando o príncipe Boleslau Zapolski, durante uma viagem a Nápoles,foi visitar o monte Pausilippo, onde se ergue, no meio da mais deliciosa região, o convento dosCamaldulos. O príncipe dirigiu‐se para ali a fim de gozar um panorama dos mais afamados do reinonapolitano.Ao passar pelo jardim do convento, reparou num frade sentado numa grande pedra, com um livrode horas aberto sobre os joelhos e os olhos perdidos no horizonte. No rosto, ainda juvenil, tinhaimpresso um profundo pesar.Uma vaga recordação assaltou o príncipe à medida que se aproximava. Cuidadosamente foiprostrar‐se atrás dele e reconheceu que o livro era escrito em polaco. Em polaco falou ao religioso,mas este voltou‐se com espanto e, apenas reparou no príncipe, velou o rosto e fugiu por entre asmoitas, como que perseguido por um gênio mau.Quando o príncipe contou o incidente ao conde Nepomuceno, este assegurou‐lhe que o frade erao conde Xavier.

E.T.A. Hoffmann

Alemanha