conto e jogo: a hora e a vez da cultura popular
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
BRÍGIDA FIGUEIRÊDO COSTA DE QUEIROZ
CONTO E JOGO: A HORA E A VEZ DA CULTURA
POPULAR
JOÃO PESSOA
2007
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BRÍGIDA FIGUEIRÊDO COSTA DE QUEIROZ
CONTO E JOGO: A HORA E A VEZ DA CULTURA
POPULAR
Dissertação apresentada para obtenção do Título de Mestre, na Universidade Federal da Paraíba, na área de Linguagem e ensino, sob a orientação da Profª. Drª. Ana Cristina Marinho Lúcio.
JOÃO PESSOA
2007
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BRÍGIDA FIGUEIRÊDO COSTA DE QUEIROZ
CONTO E JOGO: A HORA E A VEZ DA CULTURA POPULAR
Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do
Título de Mestre, na área de concentração Linguagem e Ensino, à
comissão julgadora da Universidade Federal da Paraíba.
Aprovada em ___/____/____
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Ana Cristina Marinho Lúcio - UFPB
Orientadora
Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves - UFCG
Examinador
_______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Tavares Silva – UFRN Examinadora
Profª. Drª. Valéria Andrade – UFPB
Suplente
___________________________________________________________________________Prof.ª Drª. Marta Maria dos Santos Silva Nóbrega - UFCG
Suplente
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A meus pais por terem sempre acreditado em mim e
ao meu filho, João Gabriel, sempre tão carinhoso...
5
AGRADECIMENTO
São diversas as pessoas a quem devo agradecer por terem lutado por mim e acreditado que eu
poderia ir além quanto aos meus objetivos e aos meus sonhos. Entre elas está o meu avô
materno Inaldo Brito Costa que por ter falecido em 2002 não pôde presenciar este momento
em vida terrena. Em seguida à minha mãe, Inalristéia, que assumiu o papel de mãe para o meu
filho enquanto eu estudava fora da cidade em que ele residia. Ao meu pai, Eudo, pelos
ensinamentos, orações, atenção e carinho dispensados a minha pessoa. Agradeço aos meus
irmãos Daniel, Paula e Lucas que dá sua maneira ajudaram-me a concretizar esse trabalho.
Agradeço também ao meu tio Lêdo e a sua esposa Tatjane pelo carinho e hospitalidade. Aos
professores doutores que ministraram excelentes disciplinas durante os meus estudos
principalmente ao professor doutor José Hélder Pinheiro Alves e à professora doutora Valéria
Andrade pelas reflexões feitas sobre o meu trabalho. E, em especial, agradeço a minha
orientadora Prof.ª Dr.ª Ana Cristina Marinho Lúcio que, com paciência e calma, guiou-me a
reflexões importantes acerca do meu objeto de estudo e a quem tenho grande admiração,
respeito e carinho, apesar do pouco tempo de convivência. Paralelamente à minha família, à
minha orientadora e aos meus professores, agradeço à minha amiga Fabiana que esteve ao
meu lado, de uma maneira ou de outra, ajudando-me na concretização de meus estudos. Por
último, mas não menos importante, agradeço ao Alexsandre que mesmo à distância conseguiu
dar-me assistência, esperança e alegrias quando os momentos difíceis surgiam. Todavia, esses
agradecimentos e a realização deste trabalho não seriam possíveis se não houvesse a bênção
de Deus. Por isso, OBRIGADA MEU DEUS, pelo trabalho, estudo, preocupações, angústias,
alegrias, enfim, por tudo.
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“Si on écoute bien des histories, elles peuvent nous
faire droits comme des allumettes, bons comme le
pain, doux comme le sucre, sages comme le sel et
pleins… comme um oeuf.”
Sam Cannarozzi
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RESUMO
A literatura popular costuma ser trabalhada nas escolas em datas comemorativas e de forma
utilitária. Isso inquieta-nos, pois conhecemos a riqueza da literatura popular e acreditamos que
sua abordagem no ambiente escolar pode trazer grandes benefícios à formação humana do
educando, como contribuir para que ele valorize as diversas manifestações culturais, construa
conceitos éticos, respeite a vida humana. Paralelamente à literatura popular, defendemos a
utilização do jogo na sala de aula, visto que por meio dele o ser humano consegue sentir-se
livre, espontâneo e criativo. Deste modo, o professor poderá criar não apenas um ambiente
agradável à aprendizagem, mas aproximar-se e compreender melhor seus alunos.
Apresentamos nessa dissertação um estudo sobre o conto popular e o jogo além do relato de
uma experiência desenvolvida com alunos de duas turmas do Ensino Fundamental II, da rede
pública de Fortaleza. Acreditamos estar contribuindo, de alguma forma, para que o educador
possa levar a cultura popular à escola sem o utilitarismo que quase sempre ocorre.
PALAVRA-CHAVES: Cultura popular; Conto popular; Jogo.
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ABSTRACT
The popular culture usually worked in the schools in commemorative dates
and in utilitarian way. This uneasy us, therefore we know the wealth of
popular literature and believe that its adopting and pertaining to
school environment can bring great benefits to the formation of the
human being educating, as to contribute so that it values the diverse
cultural displays, constructs ethical concepts, respects the life human.
Parallel to popular literature, we defend the use of
the game in the classroom, since by means of it the human being obtains
to feel itself free, spontaneous and creative. In this way, the
professor will be able to not only create a pleasant environment to the
learning, to come close them and to understand its pupils better. We show in this dissertation
a study about the popular story and the
dramatical game, apart from account of an experience to been developed with
students of two classes the school of Fortaleza. We believe to be contributing, of
some form, so that the educator can
take the popular culture to the school without the utilitarian way that
almost occurs.
KEY WORDS: Popular culture; Popular story; Game.
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SUMÁRIO
1 ENTROU POR UMA PERNA DE PINTO E SAIU POR UMA DE PATO 10
2 LITERATURA POPULAR E ENSINO
2.1 Considerações sobre a literatura popular 12 2.2 Da literatura popular à literatura infantil 15 2.3 Literatura popular na escola: alegria no contato com essa arte 20
3 CONTO POPULAR
3.1 Origem, definição e classificação 26 3.2 Algumas propostas de análise morfológica do conto 32 3.3 Os níveis de percepção do conto popular 35 3.4 Contador-história-ouvinte 41 3.4.1 O novo contador de histórias 44 3.4.2 A performance 48 3.5 Por que o conto popular? 51
4 JOGO
4.1 Jogo, brinquedo, brincadeira 53 4.2 Jogo e educação 55 4.3 Jogo teatral 61 4.4 Jogo dramático 64 4.5 Jogo dramático e conto popular 66
5 CONTO E JOGO: A HORA E A VEZ DA CULTURA POPULAR
5.1 “Contar histórias é oferecer o pão, mas não o mesmo pedaço” 70 5.2 Contexto da escola 77 5.3 Relato de uma experiência: conto popular em jogo 78 5.3.1 Primeiro encontro 78 5.3.2 Considerações sobre a pesquisa aplicada à 6ª série A 79 5.3.3 Um caso particular: 6ª série B 90 5.4 Uma experiência anterior 956 MANDOU DIZER EL-REI MEU SENHOR QUE ME CONTASSE
QUATRO... 98
REFERÊNCIAS 104 ANEXOS 108
10
1 ENTROU POR UMA PERNA DE PINTO E SAIU POR UMA DE
PATO...
Edgar Morin foi solicitado pela Unesco a expor suas idéias sobre a educação do
amanhã resultando no livro Os sete saberes necessários à educação do futuro. Destes sete
saberes destacamos ensinar a condição, ensinar a compreensão mútua e ensinar a ética do
gênero humano. Esses saberes podem ser trabalhados em sala de aula através do conto
popular e do jogo dramático.
O conto popular é rico em ensinamentos, experiências que são passadas de pessoa a
pessoa, de geração a geração de uma forma agradável, prazerosa e não utilitarista. Ele também
nos possibilita compreender a vida, o ser humano e respeitar as diversas culturas presentes no
mundo.
O jogo dramático, por sua vez, provoca a liberdade, a espontaneidade em quem está
jogando. E desta forma, ensina brincando a respeitar o outro e às diferenças de cada
indivíduo, além de proporcionar um clima deleitável à aproximação do educador com seus
educandos, quando abordado na escola. Assim, propomos um trabalho unindo conto popular e
jogo dramático na sala de aula, a fim de contribuirmos com algumas reflexões sobre a
educação.
No primeiro capítulo, Literatura popular e ensino, destacamos a importância da
literatura para a vida humana e, em seguida, da literatura oral, apresentando o interesse que
diversos estudiosos manifestaram sobre essa forma de arte. Logo após, discorremos sobre a
influência da literatura popular em algumas obras da literatura infantil. Ainda nesse capítulo,
abordamos a relevância de levar à sala de aula a cultura popular, sem o pragmatismo que
costuma ocorrer. Para este capítulo fundamentamo-nos nos estudos de Antonio Candido,
Câmara Cascudo, Nelly N. Coelho, Regina Zilberman, Renato Ortiz e outros.
No segundo capítulo intitulado Conto Popular, abordamos a origem, definição e
classificação desse gênero da literatura popular, como também enfatizamos algumas propostas
de análise morfológica do conto de acordo com o teórico André Jolles e os estudos de
Michèle Simonsen. Apresentamos ainda os níveis de percepção do conto designados por
Amadou Hampâté Bâ; a relação contador-história-ouvinte; as características do contador de
histórias contemporâneo e a performance. Dentre os estudiosos que nos auxiliaram a
11
desenvolver esses assuntos estão Benjamim, Gislayne A. Matos, Maria de Lourdes Patrini,
Maria I. N. Ayala, Propp, Zumthor e outros.
Jogo é o título do terceiro capítulo o qual tratamos inicialmente sobre jogo, brinquedo,
brincadeira. Logo após, discorremos sobre a relação do jogo com a educação; em seguida,
sobre o jogo teatral e o jogo dramático no ambiente escolar. Muitas idéias contribuíram para a
formulação desse capítulo dentre as quais destacamos as dos teóricos Benjamim, Brougère,
Courtney, Huizinga, Koudela, Slade para citar alguns.
No último capítulo, Conto e jogo: a hora e a vez da cultura popular, encontra-se o
estudo de alguns contos populares utilizados na pesquisa de campo e o relato de experiência
evolvendo turmas de 6ª série – antiga 5ª série - do Ensino Fundamental II, de uma escola
pública da cidade de Fortaleza/CE. Acrescentamos ainda a este capítulo, uma experiência com
conto popular e jogo dramático realizada antes de iniciarmos os estudos do Curso de Pós-
Graduação. Acreditamos ser este capítulo nossa principal contribuição para que se reflita
sobre o trabalho realizado em séries do Ensino Fundamental II com a literatura popular, bem
como sobre a utilização do jogo nessas séries escolares a fim de promover um ambiente
agradável ao aprendizado do educando e levar a cultura popular, sem o utilitarismo que quase
sempre acontece quando ela é abordada em sala de aula, à escola.
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2 LITERATURA POPULAR E ENSINO
2.1 Considerações sobre a literatura popular
O contato com toda forma de arte redimensiona a realidade e propõe ao indivíduo
diversas possibilidades de olhar para si e para o outro o que ocasiona em uma experiência
simbólica1. Esta experiência ocorre principalmente quando o ser humano aproxima-se da
Literatura, pois ele consegue concretizar o abstrato por meio dos símbolos, comparações,
alegorias, e outras características presentes nessa arte.
A Literatura é uma linguagem específica que comunica “uma determinada experiência
humana e dificilmente poderá ser definida com exatidão”, como ressalva Nelly Novaes
Coelho (2000, p. 27). Ela auxilia o amadurecimento do ser humano ao retratar seus conflitos e
anseios, o mundo e a vida, visto ser representativa e imagística.
O ser humano não consegue viver sem imaginar, sem elaboração ficcional porque a
fabulação faz parte da sua natureza. E é através dela, fabulação, que a Literatura transforma
ou enriquece a existência e vida humana, como afirma Antonio Candido (1995, p. 244):
Não há povo e não há homem que possa viver sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito -, como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco.
O estudioso Antonio Candido2 entende literatura no sentido mais amplo e com um
papel humanizador – que seria a capacidade de reflexão, de aprender, de afinamento das
emoções, de penetrar nos problemas da vida, de perceber a complexidade do mundo e dos
seres, ou seja, capacidade de compreensão do indivíduo em relação a si mesmo e ao mundo. 1 A experiência simbólica ocorre quando o ser humano consegue sentir prazer, emoção; realizar descobertas; suscitar questionamentos por meio de qualquer forma de arte. A expressão ‘experiência simbólica’ é utilizada por Joana Cavalcanti, em seu livro Caminhos da Literatura Infantil e Juvenil. 2 CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. IN: Vários Escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
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A Literatura originou-se da necessidade que o ser humano teve em comunicar suas
idéias, emoções, sentimentos, experiências. E isso aconteceu inicialmente por meio da
linguagem oral. As primeiras formas de literatura eram relatos sobre a origem do mundo
marcados por rituais de iniciação e magia, e transmitidos através da oralidade. Com o passar
do tempo, esses relatos transformaram-se no gênero narrativo chamado mito. Outros gêneros
narrativos surgiram após o mito, como a gesta ou saga, a lenda, o conto, a anedota, para
citarmos alguns.
Com o advento da escrita, o ser humano passou a registrar os costumes e relatos orais
populares com diferentes finalidades - como discorreremos a seguir conforme o estudo de
Renato Ortiz3 (s/d.) e sem nenhuma pretensão de pesquisa histórica e científica.
No século XVI, escritores procuraram coletar costumes populares adotando uma
perspectiva normativa e reformista. Grande parte desses escritos foi produzida por sacerdotes
com o objetivo de apresentar à comunidade os erros e as crendices das classes inferiores, o que
estava de acordo com a tendência moralizante e a hostilidade às manifestações de caráter
popular da época.
O interesse pelos costumes e narrativas populares intensificou-se no século XVIII,
acarretando no surgimento do antiquário, que era um intelectual (estudioso) interessado em
coletar as manifestações populares movido pela curiosidade sobre o passado e não possuindo
nenhuma preferência pelo povo, pois mostrava um desvalor para com a fala popular e
apontava os erros gramaticais presentes nessa fala.
O século XIX foi caracterizado pelo Romantismo. Nesse período, a sensibilidade e
espontaneidade permearam os estudos sobre as manifestações populares, “enquanto
qualidades diluídas no anonimato da criação. Não é pois o indivíduo o ponto modal, mas o
coletivo” (ORTIZ, s/d, p. 18). Ou seja, a manifestação registrada não era mais observada como
realização de um indivíduo, como os antiquários acreditavam, mas de um grupo. Esse grupo
constituiu-se de pessoas do campo que por se encontrarem isoladas da civilização,
corresponderiam ao sentido de povo adotado pelos românticos: “grupo homogêneo, com
hábitos mentais similares, cujos integrantes são os guardiões da memória esquecida” (Ibidem,
s/d, p. 26). A valorização do meio rural ocorreu conforme a suposição de que o camponês
seria mais tradicional, ingênuo, conservador, rude e inculto, elementos tidos como
caracterizadores do folclore.
3 ORTIZ, Renato. Cultura popular: romântico e folcloristas. São Paulo: Olho d’Água, s/d.
14
O romântico era um nacionalista e via no folclore a expressão da nacionalidade. Esse
interesse dos poetas pela identidade nacional promoveu a “descoberta” da tradição popular e o
aumento do número de publicações sobre as manifestações populares – baladas, canções, fala,
etc. Alguns pesquisadores receberam destaque nesse período, dentre os quais mencionamos os
irmãos Grimm, por adotarem uma metodologia de coleta das narrativas populares até então
desconhecida pelos antiquários.
Os irmãos Grimm buscaram as histórias da tradição oral diretamente da fala dos
camponeses e as publicaram informando ao leitor o local onde a narrativa fora ouvida. Essa
metodologia de trabalho favoreceu um estudo mais sistemático das tradições populares.
Porém, como seus livros dirigiram-se à classe média, eles corrigiram muitas histórias nos
aspectos da sintaxe, do conteúdo e das “grosserias”, apoiados pela ideologia da unidade e do
anonimato:
A pessoa é apenas um médium entre o pesquisador e o tesouro perdido. Mas, como os contos são anônimos, e nenhuma versão é preferível à outra, pode-se corrigir ou remanejar esta ou aquela expressão literária, desde que se respeite, religiosamente, o fundo sobre o qual elas se apóiam; justifica-se assim a supressão das passagens licenciosas e das alusões satíricas (ORTIZ, s/d, p. 25).
A segunda metade do século XIX emergiu com os folcloristas, que, como os
românticos, dedicaram-se à tradição. Eles foram guiados pelas idéias das Ciências Sociais;
procuraram tornar o Folclore uma ciência e tiveram o trabalho de coleta dos românticos como
algo adulterado e diluído pela forma literária. Enfatizamos que a idéia de povo tida por eles é a
mesma dos românticos.
Os folcloristas buscaram coletar a arte popular na tentativa de resguardá-la diante das
transformações ocasionadas pela modernidade, pois para eles essa cultura encontrava-se em
vias de extinção.
Tanto os folcloristas quanto os românticos não perceberam a cultura popular como
algo que se acomoda às transformações sociais, mas como algo que se extingue pela
modernidade, necessitando, deste modo, ser resgatada. Essa visão da cultura popular tende a
ser anacrônica porque não a observa em um contexto sócio-cultural determinado
historicamente.
Essas narrativas repassadas pela Tradição Oral, apesar de terem sido compiladas entre
os séculos XVII e XIX por estudiosos das manifestações culturais populares e impressas para
15
a publicação, permanecem sendo transmitidas de pessoa a pessoa, de geração a geração,
repletas do conhecimento da alma e do sentir.
2.2 Da literatura popular à literatura infantil
Durante o período conhecido por Idade Média, apesar da distância entre as várias
regiões européias e das guerras constantes, as narrativas populares circulavam entre os povos
através de indivíduos que superavam as dificuldades viajando em montarias, embarcações ou a
pé.
A preponderância da religião cristã nesse período deram às narrativas um caráter
sentencioso, didático e moralizante porque, como declara (1991, p. 33):
No fundo é sempre uma literatura que divulga ideais, que busca ensinar, divertindo, num momento em que a palavra literária (privilégio de poucos e difundida pelos jograis, menestréis, rapsodos, trovadores...) era vista como atividade superior do espírito: a atividade de um homem que tinha o Conhecimento das Coisas.
As guerras e os conflitos que caracterizavam essa época, além das crenças religiosas,
deixaram marcas de violência em muitas narrativas, como em versões de Pele de Asno e
Griselidis, em que o marido mata a esposa brutalmente por desejar a própria filha. À medida
que a humanidade vai alterando seus costumes, a violência vai desaparecendo dessas
narrativas como podemos observar nas versões de Charles Perrault para as dos Irmãos Grimm
e destes para as versões atuais:
Hoje, transformados em literatura infantil, perderam toda a agressividade original. (Veja-se Chapeuzinho Vermelho: na versão original, registrada por Perrault, o lobo devorava a avó e a neta; na versão de Grimm, essa violência é “atenuada” com o aparecimento do caçador, que abre a barriga do lobo, de onde as duas saem vivas; e nas versões modernas, o lobo é “bonzinho”...) (COELHO, 1991, p. 34).
As narrativas populares, na sociedade medieval, não possuíam um público específico
como tem a literatura infantil. Os contos, mitos, lendas circulavam indistintamente entre
adultos e crianças, ou seja, as crianças tinham contato com as narrativas marcadas pela
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crueldade, ódio, inveja, adultério e conflitos de interesses. Isso acontecia porque, conforme
Ariès (1981, p. 99), não havia o sentimento de infância:
O sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia destes.
No texto de Ariès, um primeiro sentimento da infância surge a partir dos séculos XVI e
XVII que percebia a criança como “uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto, um
sentimento que poderíamos chamar de ‘paparicação’” (ARIÈS, 1981, p. 100). Esse sentimento
iniciou-se no meio familiar com a companhia de crianças pequenas e pertencerá às mulheres –
mães ou amas.
Os moralistas e educadores tiveram um outro “olhar” para a infância a partir do século
XVII, que inspirou a educação até o século XX. Para eles, os interesses nesses pequenos seres
em formação eram de nível psicológico e moral, como apresenta-nos Ariès (1981, p. 104):
Tentava-se penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptar a seu nível os métodos de educação. Pois as pessoas se preocupavam muito com as crianças, consideradas testemunhos da inocência batismal, semelhantes aos anjos e próximos de Cristo, que as havia amado. Mas esse interesse impunha que se desenvolvesse nas crianças uma razão ainda frágil e que se fizesse delas homens racionais e cristãos.
Esse segundo sentimento de infância ocorreu na Idade Moderna – do século XVI ao
início do século XX. Um período caracterizado pelo movimento renascentista e que
corresponde às eras Clássica (do século XVI a XVII) e Romântica (do século XIX ao início do
século XX). É durante a primeira Era citada que surgem os “livros pioneiros do mundo da
literatura infantil, tal como hoje conhecemos” (COELHO, 1991, p. 75): As Fábulas (1668), de
La Fontaine; Os Contos da Mãe Ganso (1691-1697), de Charles Perrault; Contos de fadas
(1696-1699), de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699), de Fénelon. Destes autores destacamos
as obras de La Fontaine e Perrault.
Jean La Fontaine (1621-1692), apesar de escrever para adultos, tem sua obra As
Fábulas lida pelo público infantil. O escritor restituiu a fábula em verso e elevou-a “ao nível
da alta poesia, alimentada por um novo pensamento filosófico” (COELHO, 1991, p. 81).
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Charles Perrault (1628-1703) organizou e publicou uma coletânea de contos populares,
Os contos da Mãe Ganso, caracterizados pelo despojamento do conteúdo considerado pelo
autor como vulgar, e uma moral no fim de cada narrativa, objetivando uma conduta adequada
do ser humano na sociedade.
No século XVIII, passagem do Classicismo para o Romantismo, o ser humano não era
mais valorizado pela sua classe social, mas pelo seu conhecimento. Assim, como havia uma
exigência de reformas pedagógicas que alfabetizassem todos os cidadãos, “a leitura passou a
ser o ideal básico de todos, inclusive para a educação infantil” (COELHO, 2000, p. 118).
Portanto, devido à falta de uma literatura escrita propriamente dita para crianças e jovens,
surgem adaptações de romances ou novelas das quais destacamos: As aventuras de Robinson
Crusoé (1719), do inglês Daniel Defoe e Viagens de Gulliver (1726), do irlandês Jonathan
Swift.
Em seguida, temos o século XIX em que a criança é percebida como “adulto em
miniatura, cujo período infantil deveria ser encurtado o mais depressa possível para que ela
pudesse superá-lo e alcançar o estado adulto ideal” (Grifo nosso) (COELHO, 1991, p. 139). É
nessa época que ocorre o apogeu do Romantismo e a exaltação do espírito nacionalista,
provocando nos escritores uma busca pela identidade nacional na literatura popular. Assim,
destacamos os escritores alemães Jacob (1785-1863), Wilhem Grimm (1786-1759) e o
dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), cujas obras foram classificadas como
clássicos da Literatura Infantil.
Os irmãos Grimm publicaram uma coletânea de contos populares entre os anos 1812 e
1822. Como eles recolheram as narrativas, lendas ou sagas germânicas diretamente da
memória popular, com o fim de encontrar a origem histórica nacional, esses contos foram
publicados inicialmente com grandes marcas de violência ou crueldade (características ainda
presentes na sociedade da época). Entretanto, como nesse período passa a existir uma
preocupação em não tratar a criança no mesmo plano da mentalidade adulta, os irmãos Grimm
publicaram em 1819 uma edição de Contos de Fadas para Crianças e Adultos, em que as
narrativas foram “suavizadas” quanto aos traços possíveis de chocar a consciência da criança.
Andersen viveu perto do povo, em contato direto com a literatura popular. Esse fato
auxiliou-o na publicação de seus contos, pois se utilizou de sua experiência e dos
acontecimentos da vida real para elaborar sua obra. Esta é caracterizada pela presença do
realismo, do maravilhoso, da valorização do ser humano e da defesa dos direitos iguais a
todos, visto o escritor em questão conhecer bem “os contrastes da abundância organizada, ao
lado da miséria sem horizontes” (COELHO, 1991, p. 149).
18
Sobre Perrault, os irmãos Grimm e Andersen, o estudioso Jesualdo Sosa (1978, p. 133)
afirma:
A diferença entre Perrault, Grimm e Andersen estriba em que Perrault fala pela extraordinária sabedoria de sua captação e tem rara habilidade para reproduzir tom e acento de seus personagens, os irmãos Grimm as características que anotamos linhas atrás, isto é, de recolher diretamente essa experiência, sem observação nem psicologia expressiva, e Andersen tem essas fontes populares em sua própria alma (p. 133).
De fato Charles Perrault observou, coletou e adaptou os contos repletos de riquezas
folclóricas, procurando um novo gênero em meio ao Classicismo-barroco; os irmãos Grimm
registraram as narrativas orais movidos pelas idéias do Romantismo, preocupados em retratar,
pesquisar e recolher a tradição de seu povo; Andersen não coletou histórias, ele as viveu e
elaborou seus contos com os elementos folclóricos, conseguindo penetrar nos dramas mais
íntimos do ser humano.
Com a publicação dos contos de Perrault, dos irmãos Grimm e Andersen, todos com
base nas narrativas populares, histórias como Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira, João
e Maria, Bela Adormecida e outras passaram a ser sinônimos de literatura infantil.
No Brasil, os primeiros livros para crianças começaram a ser escritos e publicados por
brasileiros no final do século XIX. Como não havia no país uma tradição em Literatura
Infantil para dar continuidade, os livros se restringiram em tradução de obras estrangeiras,
adaptações para crianças de obras destinadas aos adultos, reciclagem de material escolar e
histórias da Tradição Popular.
Podemos citar como exemplo de reciclagem de livros didáticos, conforme Coelho
(1991), podemos citar: O Livro do Povo (1861), de Antônio Marques Rodrigues; Método
Abílio (1868), de Abílio César Borges; Série Instrutiva (1882), de Hilário Ribeiro de Andrada
e Silva; Livros de Leitura e Série Didática (1890), por Felisberto de Carvalho, entre outros.
Segundo Albergaria (1996), Carl Jansen (1823 ou 1829-1889), por exemplo, traduziu
clássicos como Robinson Crusoé, Viagens de Guilliver, As Aventuras do Celebérrimo Barão
de Münchhausen e D. Quixote de la Mancha; enquanto Júlio César de Mello e Souza (1895-
1974), pseudônimo Malba Tahan, reuniu narrativas originárias da tradição oriental, algumas
extraídas dos Contos das Mil e Uma Noites. Além disso, ele publicou obras que ainda hoje se
encontram no catálogo de editoras como Maktub (1935), Lendas do Céu e da Terra (1935), O
Homem que Calculava (1938).
19
O livro Contos da Carochinha (1895), de Alberto Figueirêdo Pimentel, é um exemplo
de obras com histórias da Tradição Popular. Coletânea de “61 contos populares, morais e
proveitosos, de vários países, traduzidos ou recolhidos diretamente da tradição local”
(COELHO, 1991, p. 216).
Muitos são os autores que se propuseram a escrever para crianças no início do século
XX. Dentre eles destacamos Alexina de Magalhães Pinto, por ser uma pioneira no esforço de
renovação da Literatura Infantil com o livro As Nossas Histórias (1907), uma coletânea
folclórica brasileira, e Lobato por concretizar a Literatura Infantil brasileira com suas trinta e
nove estórias – trinta e duas originais e sete adaptações de Andersen, Grimm, Perrault e Lewis
Carrol.
José Bento Marcondes Monteiro Lobato (1882-1948) publicou Histórias de Tia
Nastácia (1937), calcado no livro Contos Populares do Brasil – antologia que reunia
narrativas da tradição oral brasileira, de Sílvio Romero. Sobre esse grande escritor e a
presença da literatura popular em sua obra, Carvalho (s/d, p. 236-7) afirma:
O folclore é, pela primeira vez, levado à criança de modo direto, atraente e vivo, o que é absolutamente maravilhoso. As estórias não são contadas apenas, como uma série de narrações inócuas, elas são vividas pela turminha do “Pica-pau Amarelo”. [...] As lendas folclóricas, contadas pela tia Nastácia são discutidas pela criançada, criticadas, aprovadas ou não pelo pequeno júri que, quando não vive, em carne e osso, as façanhas, vive todas elas e as julga com inteligência, concluindo e traçando paralelos, mas nunca deixando-as na abstração das fórmulas.
Ao lermos ou ouvirmos as histórias lobatianas entramos em contato com os
sentimentos de justiça, beleza, admiração pelos valores humanos; de amor à verdade e à
liberdade.
Outros escritores também tiveram no folclore brasileiro a base de seus escritos, ou seja,
extraíram o melhor das narrativas orais para compor suas histórias. Assim realizou Joel Rufino
dos Santos com História de Trancoso (1983) e A Festa no Céu (1980), ambos os livros
formados por narrativas populares brasileiras.
Haroldo Bruno também se valeu da riqueza do folclore brasileiro. Ele publicou O
Misterioso Rapto de Flor-do-Sereno (1979), narrado conforme os moldes da literatura de
cordel nordestina.
Citamos alguns escritores que envolveram de forma direta ou indireta a tradição oral
em suas obras e não poderiam deixar de ser mencionados. Entretanto, salientamos a existência
de outros que, sob o signo da invenção ou não, se utilizaram da nossa cultura popular para
20
encantar crianças, como Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ângela Lago, Ciça Fittipali,
Cecília Meireles, Sylvia Orthof4, entre outros.
Em síntese, observamos que a cultura popular tem sido uma fonte para a Literatura
Infantil, pois os primeiros contos destinados ao público infantil surgiram inicialmente das
formas mais genuínas das narrativas proferidas em comunidade e continuam sendo
exploradas, sobretudo na literatura para crianças.
2.3 Literatura popular na escola: alegria no contato com essa arte
Professores, estudiosos e pesquisadores em literatura apontam, segundo Magnani
(1989), a falta de hábito de leitura como uma das principais causas do fracasso escolar do
educando e, conseqüentemente, do seu fracasso como cidadão. Essas conseqüências da falta
de hábito de leitura decorrem do fato de ser uma das funções da escola formar o indivíduo
para a vida em sociedade e a leitura ocupar um lugar essencial na formação do ser humano,
por ser através dela que o aluno obtém um contato com a literatura, ou seja, com
sentimentos de justiça, beleza, de amor à verdade e à liberdade; com a formação de
conceitos éticos; de respeito o próximo, etc. O que ocasiona, principalmente, essa falta de
hábito de leitura do ser em formação é ele não sentir prazer ou gosto em ler.
Múltiplos são os fatores que podem ser observados para que se constate essa
afirmação, como: a falta de gosto pela leitura afirmada por muitos professores e a formação
debilitada de alguns deles; o ensino de literatura com o objetivo de reproduzir padrões e
valores da ideologia dominante; ato de impor, julgar e avaliar a capacidade de leitura dos
educandos praticada pela escola; a falta de bibliotecas ou ambientes adequados à prática da
leitura; entre outros.
A formação de professores para o ensino de literatura, especialmente nas séries do
Ensino Infantil e Fundamental I e II, é fragilizada. Muitos desses profissionais detêm pouco
conhecimento sobre o objeto de ensino, “optam, freqüentemente, por ações de caráter prático,
técnico, estratégias, receitas prontas, ‘dicas’ facilitadoras para copiar e usar em seus espaços de
trabalho” (LEAHY-DIOS, 2005, p. 42). Eles preferem fragmentos e retalhos de informação 4 Encontramos um estudo sobre a obra de Sylvia Orthof em: LACERDA, Andréa Maria de Araújo. Vamos todos cirandar: a literatura infantil, a cultura popular e a escola. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Letras da UFPB, 2006, p. 119.
21
mascarados como leitura literária: publicação de cadernos com resumos de obras literárias ao
invés da própria obra literária. Isso acarreta em um maior afastamento do aluno em relação à
leitura e, conseqüentemente, à literatura, pois os professores não conseguirão argumentos
suficientes para aproximar o educando desse universo rico em símbolos, que é a literatura.
Além disso, esses educadores não buscam formas diversificadas para trabalhar o texto
literário. As atividades normalmente realizadas, tomando o texto literário como ponto de
partida, possuem principalmente um objetivo gramatical ou pretendem que seus leitores
cheguem todos à mesma interpretação.
Outro fator que merece nossa atenção está na forma como é trabalhado pelo professor o
texto literário. Muitas vezes esse modo de trabalho volta-se para a veiculação de normas de
obediência e bom comportamento ou de regras gramaticais e não atende às necessidades
inerentes a esses leitores em formação: o aluno do Ensino Fundamental II lê, normalmente,
com a finalidade de analisar o texto – personagens, espaço, narrador ou no caso de poema,
analisa rima, ritmo... -, de fazer um resumo ou estudar gramática e ainda é obrigado a
responder as fichas de leitura dos livros “paradidáticos”.
A seleção dos livros para serem abordados em sala de aula feita pelo educador pode
dificultar o envolvimento do leitor com o texto. Conforme Magnani (1989), os livros infanto-
juvenis tiveram uma produção altíssima nas últimas décadas devido à estimulação do gosto
pela leitura defendida pela escola. A quantidade era enorme, mas a qualidade e a forma como
eram utilizados na sala de aula não auxiliaram nem auxiliam o estímulo à leitura.
Deste modo, alguns livros juvenis abordam com dificuldade o universo do adolescente,
a visão e as expectativas do leitor. Eles detêm um posicionamento pedagógico e adulto,
buscando transmitir valores, idealizações dos padrões sociais para o jovem. Com isso,
apresentam-se compactos, padronizados quanto ao formato, texto e conteúdo das histórias; as
temáticas são realistas e utilitaristas, como AIDS, drogas, gravidez na adolescência, pobreza,
preconceito racial e social, entre outras.
Discursos objetivos, unívocos; personagens previsíveis, abstratos; um mundo simétrico,
lógico, equilibrado, coerente, são características inseridas em muitos livros selecionados pela
escola. Esses livros defendem, também, como propósito, que o leitor-aluno organize e
sistematize um certo conjunto de informações impostas para a compreensão da sociedade, para
sua vida e seu desenvolvimento. Observemos o que afirma Carvalho (s/d, p. 224):
Entendemos que o livro infantil, como o juvenil, deve observar dois aspectos básicos: o literário e o técnico. Técnico, aqui, significa a adequação à natureza
22
infantil em cada fase, para não agredi-la e não se transformar numa arma negativa. Não por ser mau o livro ou o conto, mas apenas por não atingir a criança, por não estabelecer comunicação, ou ainda, por não correr o perigo de fixar certos aspectos sujeitos a distorções, no terreno imprevisível da imaginação infantil. Por esse motivo, a fantasia da ficção deve andar ao lado da realidade psico-pedagógica, ou seja: tema literário e adequação psicológica.
O educando não se encontra apenas no plano educacional, mas sim no plano de uma
existência concreta, particular e repleta de situações contraditórias e inesperadas. Logo,
quando a escola assume uma postura reprodutora e disciplinadora, ela não atende às
necessidades inerentes a todo ser humano. No tocante a essas necessidades, Regina Zilberman
(2003, p. 132) declara:
Ao contrário das outras modalidades artísticas, que se defrontam com um horizonte solidificado, a literatura infantil possui um tipo de leitor que carece de uma perspectiva histórica e temporal que lhe permita pôr em questão o universo representado. Por isso, ela é necessariamente formadora, mas não educativa no sentido escolar do termo; e cabe-lhe uma formação especial que antes de tudo, interrogue a circunstância social de onde provém o destinatário e seu lugar dentro dela.
Entre leitor e texto precisa existir uma harmonia com base na identificação, no prazer,
no interesse e na liberdade de interpretar, exigindo do leitor um esforço que se encontra na
decodificação de símbolos escritos, de sentidos ideológicos e reflexão sobre os significados
lidos e construídos. E a escola torna-se um dos melhores veículos para que essa relação leitor e
texto aconteça de forma efetiva ou significativa.
Segundo Magnani, o problema da leitura e da literatura na escola “envolve questões das
quais nem a psicologia educacional, nem o saudosismo elitista, nem a denúncia de ‘conteúdos
ideológicos’ conseguem dar conta, isoladamente” (MAGNANI, 1989, p.20). Porém,
acreditamos que essa realidade possa vir a ser alterada ou amenizada conforme se modifique a
metodologia5 de utilização do texto literário.
Conforme Bragato Filho, a utilização do texto literário em sala de aula acarreta em
experiências significativas para o educador e educando:
1) Nas experiências de sala de aula, sempre que patrocinamos a leitura de textos literários, tivemos índices de participação e entusiasmo muito bons da maioria dos alunos, a ponto de os mesmos externarem o desejo de continuidade e até de aumento dessas aulas; 2) a maioria das crianças com as
5 Sugerimos como recurso didático-pedagógico o jogo que será discutido no terceiro capítulo.
23
quais temos tido contato, quer intra-escola, quer fora dela, tem demonstrado viva recepção e bom gosto pelas histórias que lhes são contadas ou lidas... (BRAGATO FILHO, 1995, p. 85).
O texto literário consegue entrar nas construções do imaginário do leitor e responder às
suas inquietações, todavia ao ser utilizado de um modo pragmático perde o encanto e afasta o
aluno da experiência simbólica, isto é, da leitura do mundo em seus diversos níveis e da
consciência do eu em relação ao outro. Assim, é necessário encontrar metodologias mais
interativas para trabalhar o texto literário em sala de aula, como defende Aparecida Paiva
(2003, p. 267):
É preciso buscar estratégias que possibilitem ler, no processo de compreender a vida, para poder atribuir sentido à existência, uma vez que estamos envolvidos, como co-autores, na multiplicidade de textos que circulam. Compreendê-los é poder resgatar a nós mesmos e a nossa história, reconhecendo-nos e recriando-nos novamente. Trata-se, pois, de uma contínua criação de significados, como possibilidade de rever e assumir a própria vida (Grifo nosso).
A estudiosa Aparecida Paiva (2003) nos atribui o estatuto de co-autores dos muitos
textos que circulam no nosso entorno. Isso se justifica ao observarmos que na infância,
através da literatura oral, ouvimos histórias, lendas, mitos, cantigas, cirandas, etc. de nossos
pais, avós, tios... que contavam e cantavam. Essas narrativas e canções comunicam-se
conosco porque falam das nossas dificuldades e apontam soluções para elas, auxiliando-nos a
conhecermo-nos melhor. Logo, a presença da cultura popular no ambiente escolar pode
propiciar o encanto do educando para com a leitura e, deste modo, para com a literatura.
A escola seria o espaço privilegiado para abordar os conteúdos escolares a partir da
experiência do aluno com a literatura oral, com a sua cultura. No entanto, nem sempre o faz,
relegando a um segundo plano a cultura popular:
“A escola costuma transmitir idéias inertes.” Inertes quer dizer que não agem. Ora, isto é cultura? Inicialmente nós pensaríamos que sim, que a cultura são aqueles livros. Mas a cultura não são esses objetos, a cultura é o trabalho feito pelas pessoas que querem realmente conhecer por dentro os mecanismos, ou da Natureza ou do estado, no caso, as duas coisas acabam ficando juntas (BORNHEIM, 1987, p.43).
O contexto escolar que envolve o educando do Ensino Fundamental I e II aborda a
literatura popular principalmente nas aulas de educação física e educação artística – por meio
de cantigas de roda, cirandas, brincadeiras... –, nas datas comemorativas – Dia do folclore,
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Dia do índio, etc. --; não permitindo que ela invada sempre a sala de aula através das aulas de
leitura, fazendo ponte com outras disciplinas, através de debates, discussões mediadas pelo
educador.
A presença de textos da tradição popular na escola pode contribuir para valorizar a
diversidade cultural e estimular reflexões a seu respeito ao conter características particulares
dos vários povos participantes do processo de formação das identidades, etnias. Essa
literatura tem sido difundida graças à relação ouvinte e narrador que visa preservar as
histórias proferidas.
De acordo com Guimarães, a valorização das manifestações culturais dos educandos
concorre para uma efetivação do ensino-aprendizagem:
Os alunos, ao perceberem a importância que damos às suas manifestações culturais aparentemente mais simples, irão dispor-se a participar mais efetivamente das atividades escolares propostas. Isso não é mera suposição. (...). O contato mais direto com as expressões de folclore dos estudantes acaba por desenvolver nos docentes a percepção e a valorização de suas próprias manifestações de cultura espontâneas. Isso pode resultar em tomada de consciência por parte de ambos de que são, antes de tudo, pessoas, seres humanos portadores de cultura, antes mesmo de serem professores e alunos (GUIMARÃES, 2002, p. 104-5).
Nas sociedades tradicionais, os momentos destinados a contar e a ouvir histórias – serões
– além de serem prazerosos, “eram um recurso educativo por excelência, tanto para as crianças
quanto para os adultos, por proporcionarem a reflexão sobre as relações e a ética” (MATOS,
2005, p. XXII).
À respeito da educação por meio dos serões, Matos (2005, p. XXII) afirma:
Essa educação servia à vida. Por meio dela aprendia-se como abrir as portas para o afeto, para o trabalho, para as relações. Aprendia-se como viver bem em comunidade e como morrer bem, deixando na memória dos vivos a lembrança das nossas ações. A propósito disso, meu avô, primeiro contador de história da minha infância, costumava nos ensinar com seus contos que “um homem morre como viveu e ressuscita como morreu”.
Conforme Matos (2005) “essa educação servia à vida”. No entanto, frisamos que ela
serve à vida. E que a incorporação e a vivência da cultura popular no ambiente escolar podem
oferecer um novo significado à escolarização, visto propiciar aos educandos maior sintonia e
identificação. Ao entrar em contato com essa cultura, é possível que o educando reconheça o
conto, a lenda, a cantiga, etc. que ouviu em alguma fase da vida e se entusiasme com a aula,
25
resultando, desta maneira, uma aprendizagem bem-sucedida, como declara Cascudo (1978, p.
30):
Para o ensinamento recebido pela forma ordinária e legal o menino comportar-se-á passivamente, aprendendo, usando, decorando. Para o “saber tradicional”, fora do âmbito majestático e religioso, o estudante reage e colabora porque essa ciência clandestina e semi-proibida é uma excitação ao seu raciocínio, apelando diretamente para um sentido ativo e pronto de utilização imediata e realística.
Caso ele não reconheça o material trabalhado em sala de aula, poderá disseminá-lo na
comunidade quando contar o conto, a lenda, etc. aos familiares, vizinhos e retornar à escola
com novas narrativas, estas contadas por quem vive ao seu redor. Portanto, a cultura popular
na escola não apenas pode favorecer a educação como também o reconhecimento desta cultura
pela comunidade.
Nesse sentido, a inserção da literatura popular no âmbito escolar implica na abertura
para um universo riquíssimo de símbolos e de uma forma própria de olhar para o mundo que
nos cerca; além de poder contribuir para o reconhecimento da tradição, da importância do ato
de narrar, da transmissão de valores e da visão de mundo representada nessas obras. Como
também, para combater um certo preconceito que persiste em nossas escolas e
conseqüentemente em nossas comunidades para com a arte do povo, tendo em vista que esta é
geralmente concebida como uma produção menor em relação às criações tidas como cultas.
O desprezo e a insistência em acreditar que não é cultura aquilo que iletrados e semi-
iletrados fazem, ocasiona um grande obstáculo tanto para a formação de leitores simbólicos
como na construção de uma sociedade mais justa e humana.
Destarte, urge que os educadores despertem para o fato de que a presença da
literatura popular no dia-a-dia da sala de aula poderá trazer grandes benefícios para o processo
ensino-aprendizagem, principalmente no sentido de valorizar a cultura do aluno. Visto que o
contato com as manifestações culturais populares pode favorecer a participação efetiva do
educando nas atividades escolares propostas, como também, pode desenvolver a percepção e
valorização das manifestações culturais do povo. Dessa forma, educadores e educandos
conscientizam-se de que são seres humanos portadores de cultura e da concretização do papel
primordial da educação: formar cidadãos mais críticos, expressivos e humanos.
26
3 CONTO POPULAR
3.1 Origem, definição e classificação
De acordo com Simonsen (1987), os folcloristas do século XIX, ao se preocuparem,
principalmente, com a origem dos contos propuseram teorias convergentes que hoje estão
sendo abandonadas pelos estudiosos do assunto.
Uma dessas teorias é a Indo-Européia ou Mítica de autoria dos irmãos Wilhelm e
Jacob Grimm, e retomada pelo lingüista Max Muller. Segundo ela, os contos vieram de mitos
cosmológicos arianos, em circulação na pré-história da Índia, “suposto berço do povo indo-
europeu” (SIMONSEN, 1987, p. 35).
Outra teoria denominada Indianista foi lançada por Theodor Benfeu, em 1859, e
retomada pelo folclorista Emmanuel Cosquin. Os indianistas afirmam que os contos
provinham da Índia, onde podem ter servido de parábolas no ensino dos monges budistas, e
teriam emigrado em pequena quantidade no período histórico – antes do século X – e, em
maior quantidade a partir das incursões mulçumanas.
A Teoria Etnográfica representada por Andrew Lang, na Inglaterra, propunha que o
conto seria uma forma anterior ao mito, mais primitiva e rudimentar. Defendia que seu
surgimento ocorreu em vários locais ao mesmo tempo, “em culturas com freqüência muito
distantes geograficamente” (SIMOSEN, 1987, p. 37), mas nas fases culturais do animismo e
do totemismo. Declarou ainda que os motivos dos contos eram vestígios de crenças e de
práticas arcaicas reais. Nessa teoria, Van Gennep destacou-se por considerar que a evolução
da narrativa oral se deu a partir dos gêneros mais utilitários, ou seja, “o mito que comenta um
rito, e a lenda, que impõe um dever, para o mais ‘gratuito’, o conto maravilhoso...” (Ibidem).
Paul Saintyves retomou e sistematizou a visão dos etnógrafos e propôs a Teoria
Ritualística. Ela postulava que as personagens dos contos eram lembranças de personagens
cerimoniais de ritos populares caídos no esquecimento. Para exemplificar essa teoria,
observemos o texto de Simonsen (1987, p. 38):
Cinderela e Pele de Asno seriam “rainhas de Carnaval”, uma presidindo a domesticidade interior, o lar, a outra a domesticidade exterior, o quintal, em
27
um ritual de carnaval, mágico – sazonal, destinado a favorecer as uniões e a fertilidade. O motivo do quarto proibido, em Barba Azul, lembraria a “casa dos homens” das sociedades primitivas, proibidas às mulheres e aos não-iniciados. A floresta na qual se perdeu o Pequeno Polegar e seus irmãos seria o recinto sagrado dos ritos de iniciação primitivos, no qual se opera a transformação do adolescente em homem.
A Teoria Marxista, representada pelo folclorista russo Vladimir Propp, inaugura as
pesquisas de caráter estrutural do conto maravilhoso. Propp estabelece ligações entre os
contos maravilhosos, ritos e crenças das sociedades de clãs, além de retraçar de modo geral a
história das transformações desses elementos, em que alguns correspondem a ritos primitivos,
outros a ritos que não existiram propriamente ditos, mas foram “falsamente imaginados ou
reconstituídos, portanto deformados e racionalizados, por culturas mais tardias”
(SIMONSEN, 1987, p. 38).
Cada teoria desenvolvida sobre a origem do conto possuiu seu momento, suscitou
idéias e polêmicas. Entretanto, todas se caracterizavam por um totalitarismo extremo que
buscava explicar a origem dos contos por um fenômeno único.
Existem alguns estudiosos que acreditam ter o conto surgido alguns milhares de anos
antes de Cristo. Conforme Moisés (1997), esses estudiosos consideram contos o conflito de
Caim e Abel; os episódios de Salomé, Rute, Judite, Susana, Rabi-Akiva, a parábola do filho
pródigo, ressurreição de Lázaro e a história da Mãe Judia. “No antigo Egito, Os Dois Irmãos
e Satná e o Livro Mágico, de autor desconhecido, do século 14 a.C., mover-se-iam na área do
conto” (MOISÈS, 1997, p.33). Os episódios entre Afrodite e Mercúrio, na Odisséia; de Orfeu
e Eurídice, nas Metamorfoses, de Ovídio; A Matrona de Éfeso, de Petrônio; A Casa Mal-
Assombrada, de Plínio; O Sonho, de Apuleio e as fábulas de Esopo e Fedro, segundo esses
estudiosos também seriam exemplares do conto.
Para Moisés (1997), esses estudiosos ainda considerariam como exemplares do conto
Mil e Uma Noites; Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; Simbad, O Marujo; etc. do Oriente.
Panchatantra e Jataka, da Índia antiga. Durante a Idade Média, “o conto conhece uma época
áurea” (MOISÈS, 1997, p.34), com Decameron, de Boccaccio; Heptâmeron, de Margarida de
Navarra e Canterburry Tales, de Chaucer.
A opinião mais disseminada atualmente sobre essa questão é de que as origens
históricas do conto popular são difíceis de serem encontradas e que o universo do conto
difundiu-se nas múltiplas tradições heterogêneas.
Discorremos sobre as várias possibilidades de origem desse gênero narrativo, no
entanto ainda não buscamos definir o gênero conto. Para isso, utilizaremos o método de
28
André Jolles (1976) que procura definir o conto através da oposição da Forma Simples à
Forma Artística quanto à linguagem e atualização.
As duas Formas distinguem-se quanto à linguagem pelo fato de a Simples possuir uma
linguagem “fluida, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de renovação constante”
(JOLLES, 1976, p. 195), enquanto a Artística, tem uma linguagem “sólida, peculiar e única”
(Ibidem).
A atualização é aplicada em ambas as Formas: ao ser proposto uma atualização na
Forma Artística, “tal obra é única” (JOLLES, 1976, p. 196), enquanto a Forma Simples terá
sua atualização apoiada “sempre na mobilidade, generalidade e pluralidade da própria forma”
(Ibidem).
Observando essa distinção, percebemos que o conto popular oral, aproxima-se da
fábula, do apólogo, das histórias de proveito e exemplo, etc. como Forma Simples. E como
Forma Artística, ele seria literário propriamente dito, pois estaria desligado da tradição
folclórica, possuiria autor próprio, como explica Jolles (1976, p. 195):
Forma Artística ou Forma Simples, poder-se-á sempre falar de “palavras próprias”; nas Formas artísticas, todavia, trata-se das palavras próprias do poeta, que são a execução única e definitiva da forma, ao passo que, na Forma Simples, trata-se das palavras próprias da forma, que de cada vez e da mesma maneira se dá a si mesma uma nova execução.
Conforme Jolles (1976) como toda Forma Simples o conto possui um princípio
denominado “disposição mental”, em que o universo pode transformar-se no conto. Ou seja, é
“a idéia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com a nossa expectativa”
(JOLLES, 1976, p.199).
Jolles (1976), para explicar melhor a disposição mental, afirma que as personagens e o
enredo do conto não nos oferecem a impressão de serem morais, mas nos proporcionam uma
satisfação. Isso porque apraz tanto a nossa inclinação para o maravilhoso, nosso amor ao
natural e verdadeiro como pelo desenrolar das histórias que ocorre como desejaríamos que
ocorresse no universo ou “como deveriam acontecer” (JOLLES, 1976, p.198).
Outras particularidades do conto abordadas por Jolles (1976) são a ação, as
personagens e o gesto verbal. A primeira, segundo o estudioso, não tem uma localização nem
um tempo definido: “Num país distante, longe, muito longe daqui; há muito, muito tempo”
(JOLLES, 1976, p. 202). As personagens são indeterminadas:
29
Se o príncipe do Conto tivesse o nome de um príncipe da História, seríamos logo transportados da ética do acontecimento para a ética da ação. Já não perguntaríamos, “Que acontece então ao príncipe?” e começar-se-ia a duvidar da necessidade das coisas (JOLLES, 1976, p. 202-3).
De acordo com Jolles (1976), o acontecimento ordena-se no gesto verbal de modo tão
determinado que alguns especialistas do Conto quiseram ver no gesto o “verdadeiro
‘conteúdo’” (JOLLES, 1976, p.203) desse gênero narrativo. Tendo o gesto verbal como o
motivo do Conto, esses especialistas propuseram-se a classificar os contos conforme os
motivos:
Chegaram até a afirmar que o Conto seria meramente, uma montagem bastante arbitrária de motivos dessa ordem e que era possível decompô-lo em seus motivos para reconstituir a partir de outros motivos; enfim, que era possível fabricar contos usando os motivos como peças de um mosaico (JOLLES, 1976, p. 203).
A proposta dos especialistas do Conto não é aceita por Jolles (1976). Pois ao serem
destacados o “acontecimento com o seu princípio trágico, o progresso no sentido da justiça, os
obstáculos trágicos e o desfecho ético” (JOLLES, 1976, p. 203), obteremos apenas um
esqueleto que não possui sentido, nem proporciona uma satisfação moral, servindo, no
máximo, “como veículo mnemotécnico para reconstituir a forma” (Ibidem, p. 204).
Observadas as propriedades do Conto por André Jolles (1976), podemos dizer que o
conto popular descreve um acontecimento que não se encerra em si mesmo de modo
determinado; trabalha no plano maravilhoso constantemente; possui tempo, espaço,
personagens indeterminados; exprime um gesto verbal elementar e possui uma disposição
mental ou “moral ingênua” específica que satisfaz as necessidades inerentes a todo ser
humano.
O estudo do conto promoveu uma série de classificações do mesmo, seguindo critérios
muitas vezes heterogêneos, elaborados pelos folcloristas. Destas classificações, uma das mais
conhecidas é feita pelo método Aarne-Thompson.
Antti Aarne foi quem primeiro sistematizou os tipos de contos, classificando os
motivos. Essa classificação não levou em conta a origem étnica, a cor local e o religionalismo
temático. Ele publicou Verzeichnis der Marchentypen (1910) que foi traduzido e publicado
por Stith Thompson, da Universidade de Indiana, Estados Unidos, com o título The types of
the Folk-Tale, a classification and bibliography (1929). Thompson ampliou o trabalho de
Aarne, acrescentado-lhe os elementos constitutivos nos contos.
30
A classificação de Aarne reuniu 2399 motivos-tipos de contos que tomaram números
dentro de três seções:
• Primeira seção, Contos de Animais (Animal Tales) – aqui estão os motivos-tipos: animais
selvagens (1-99), animais selvagens e animais domésticos (100-149), homem e animais
selvagens (150-199), animais domésticos (200-219), pássaros (220-249), peixes (250-274),
outros animais e objetos (275-299);
• Segunda seção, Contos Ordinários (Ordinary Folktales) – divide-se em: contos de magia
(300-349), adversários sobrenaturais (350-399), marido (ou esposa) encantado ou sobrenatural
e outros temas relativos (400-459), tarefas sobre-humanas (460-499), auxílios sobrenaturais
(500-559), objetos mágicos (560-649), conhecimento ou poder sobrenatural (650-699), outros
contos do Sobrenatural (700-749), contos religiosos (750-849), novelas (contos românticos)
(850-999), contos de Papão Estúpido (1000-1199);
• Terceira seção, Gracejos e Anedotas (Jokes and Anecdotes) – encontram-se aqui: estórias
de tolos (1200-1349), estórias sobre casados (1350-1439), estórias sobre a mulher (moça)
(1440-1524), estórias sobre o homem (rapaz) (1525-1574), Homem sagaz (1575-1639),
acidentes felizes (1640-1674), Homem estúpido (1675-1724), anedotas sobre sacerdotes
(Parsons) (1725-1874), contos de mentira (1875-1999), contos de fórmulas (2000-2399) e
contos não classificados (Unclassified Tales) (2400-2499).
Thompson, ampliando a classificação de Aarne, publicou cinco volumes sobre os
motivos com as variantes e adendos em Motif-Index of Folk-Literature. Em sua divisão, ele
adotou as letras do alfabeto em que A anuncia a sistematização de todos os elementos
referentes aos motivos mitológicos; B, animais; C, tabu; D, magia; E, morte; F, maravilhas;
G, ogres; H, provas, testes; J, sábio e tolo; K, decepções; L, inversão da fortuna; M,
disposição ao futuro; N, oportunidade e destino; P, sociedade; Q, recompensas e punições; R,
cativos e fugitivos; S, crueldade desumana; T, sexo; U, natureza da vida; V, religião; W,
traços do caráter; X, humor; Z, miscelânea de motivos.
A partir dos trabalhos de Antti Aarne e Stith Thompson, o estudo do conto popular ficou
mais simplificado, com uma visão clara de sua extensão, universalidade e importância. Assim,
outros estudiosos do conto se propuseram a classificá-lo seguindo o estabelecido no catálogo
internacional Aarne-Thompson. Alguns deles são: Paul Delarue, Marie-Louise Tenèse e
Câmara Cascudo.
Os dois primeiros estudiosos citados adotaram a seguinte classificação: (A) Contos
propriamente ditos que se subdivide em contos maravilhosos, contos realistas ou novelas,
31
contos religiosos e histórias de ogros estúpidos; (B) Contos de animais e (C) Contos
humorísticos. Já a classificação do brasileiro Câmara Cascudo ocorre da seguinte forma:
• Contos de encantamento – caracterizados pelo sobrenatural e maravilhoso;
• Contos de exemplo – contos morais, com ação doutrinária;
• Contos de animais – são as fábulas, em que os animais são dados de qualidades, defeitos e
sentimentos humanos;
• Facécias – conhecidas popularmente como “piadas”, são relatos sintéticos de uma
aventura, cujas características principais se acham na sua comicidade ou inesperabilidade do
desejo;
• Contos religiosos – caracterizam-se pela presença ou interferência divina;
• Contos etiológicos – explica a origem de um aspecto, forma, hábito, disposição de um
animal, vegetal;
• Demônio logrado – relatos em que o demônio intervém, perde a aposta e é derrotado;
• Contos de adivinhação – apresenta um enigma sob a forma de estória, resultante do
processo de associar e comparar as coisas pela percepção de semelhanças e diferenças;
• Natureza denunciante – contos em que o ato criminoso é revelado pela denúncia de ramos,
pedras, ossos, flores, aves, animais;
• Contos acumulativos – são contos nos quais os episódios são sucessivamente encadeados,
com ações e gestos que se articulam em longa seriação;
• Ciclo da Morte – relatos que em vão o homem tenta enganar a Morte, utilizando todos os
recursos da inteligência, o pagamento fatal de dívida. A Morte sempre vence.
• Tradição – é chamada de tradição nos contos populares, “o que, não constituindo história
nem lenda, mantém persistente citação nas narrativas tradicionais” (CASCUDO, 2001, p.22).
Cascudo (2001) procurou dividir os contos populares em doze seções, atendendo aos
“motivos” que ele afirma serem inúmeros para todo o Mundo. Segundo o folclorista as
múltiplas narrativas que existem são combinações de diversos motivos essenciais, de
ambientes, situações psicológicas e particularidades típicas.
32
3.2 Algumas propostas de análise morfológica do conto
Os estudiosos Michèle Simonsen, com seu livro O conto popular (1976) e Francisco
Assis de Sousa Lima, com Conto popular e comunidade narrativa (1985), realizam
comentários sobre algumas propostas de estudo do conto. Como não possuímos a pretensão
de avançar limites sobre o estudo desse gênero narrativo popular, comentaremos algumas
propostas de análise do conto de acordo com as discussões de Simonsen (1976) e Lima
(1985).
Ambos os pesquisadores comentam em seus textos a proposta de análise morfológica
do conto elaborada pelos folcloristas Propp e Dundes. O primeiro, Vladimir Propp, analisou
cem contos maravilhosos russos, desejando classificá-los conforme sua estrutura, já que para
ele todas as classificações estariam baseadas na estrutura do conto quando esta ainda não teria
sido definida.
Propp ao introduzir uma unidade mínima nova, a função, afirmou que para a estrutura
do conto só importava a função das personagens em relação ao enredo. Deste modo, ele
concluiu que os contos maravilhosos russos são compostos por trinta e uma funções e que a
ausência de algumas delas não comprometeria a ordem das funções existentes nem o seu
reconhecimento como tipo estrutural. São estas as funções: afastamento; proibição e
transgressão; interrogatório e informação; logro e cumplicidade; dano (ou carência);
mediação; início da ação contrária; partida do herói; função do doador e reação do herói
(prova); recepção do objeto mágico; deslocamento no espaço; combate; marca do herói;
pretensões do falso-herói; tarefa difícil e tarefa cumprida; reconhecimento do herói e
descoberta do falso-herói; transfiguração do herói; castigo ou punição do falso-herói;
casamento (recompensa).
Um segundo modelo que ordena as personagens em número de sete também foi
elaborado por Propp. Neste modelo cada personagem possui sua esfera de ação. Esta
“corresponde à respectiva personagem, podendo uma única personagem ocupar várias esferas
e, contrariamente, podendo uma única esfera ser compartilhada por várias personagens”
(LIMA, 1985, p.16). Observemos:
• Personagem agressor – com esfera de ação compreendida entre dano ou carência, combate
e perseguição;
• Personagem doador – sua esfera de ação é a preparação da transmissão do objeto mágico e
a passagem deste objeto à disposição do herói;
33
• Personagem auxiliar – com esfera de ação abrangindo o deslocamento do herói no espaço,
reparação do dano ou carência, auxílio ao longo da perseguição e transfiguração do herói;
• Personagem buscada (princesa) – com esfera de ação compreendendo a realização de
tarefas perdidas, imposição de uma marca, descoberta do falso-herói, castigo do segundo
agressor e casamento;
• Personagem mandatário – com esfera de ação envolvendo o envio do herói;
• Personagem herói – com esfera de ação estabelecida na realização de sua partida para
efetuação da busca, sua reação ante as exigências do doador e do “desejado” matrimônio;
• Personagem falso-herói – com esfera de ação implicando sua partida objetivando a busca,
reação sempre negativa diante as exigências do doador e pretensões enganosas.
Conforme Simonsen (1876) e Lima (1985), Propp ainda estabelece como elementos
variáveis do conto, os atributos. Estes são compostos por idade, sexo, situação, aparência
exterior das personagens, o que consentiria localizar as marcas particulares à produção de
determinado contador como: informações sobre uma cultura específica, uma ética, um estilo e
sobre a “incorporação de dados do cotidiano como suporte vivificador e atualizador da prática
tradicional do contar histórias” (LIMA, 1985, p.18).
Outro modelo de análise do conto discutido tanto por Simonsen (1976) como Lima
(1985) é o do folclorista americano Alan Dundes. Ao estudar a morfologia dos contos
indígenas da América do Norte, ele confirmou os princípios fundamentais da colocação de
Vladimir Propp; mas se opôs ao modelo proppiano em dois pontos: primeiro distingue com
cautela a função – para Dundes, motifema – e as várias formas sob as quais ela se manifesta -
alomotivos – e, em segundo, descobriu que dentre as 31 funções (motifemas) observadas por
Propp, algumas mais gerais permitem agrupar todas as outras. Assim, Dundes estabelece oito
motifemas, formados em quatro pares, cujos membros ligam-se um ao outro:
1. Falta + Interdição + Transgressão + Supressão da falta;
2. Interdição e Transgressão;
3. Atribuição de tarefa e Cumprimento de tarefa;
4. Manobra de enganar e Vítima enganada.
Por mais diferente que seja o conto maravilhoso russo, os quatro pares de motifemas
permitem aplicar a análise morfológica no conto. Todavia, pode ocorrer de um conto reduzir-
se a duas funções, Falta e Supressão da falta, ocasionando em três tipos principais de quatro
motifemas:
1. Falta + Interdição + Transgressão + Supressão da Falta;
34
2. Falta + Atribuição de Tarefa + Cumprimento de Tarefa + Supressão da Falta;
3. Falta + Manobra de enganar + Vítima enganada + Supressão da Falta.
Para Dudens, os oito motifemas fundamentais compõem as combinações dos contos
indígenas mais complexos.
Claude Bremond, mencionado por Simonsen (1976), procurou elaborar seu modelo de
análise do conto buscando não privilegiar o ponto de vista do herói, como fez Alan Dundes.
Em princípio, o seu modelo pode ser aplicado a todo conto que possui uma intenção
moralizadora forte.
Assim, Bremond trabalhou em seu modelo a partir de uma matriz inicial de três
seqüências – Degradação; Melhoria, Mérito; Recompensa, Demérito; Castigo –, associadas
conforme o agrupamento: Degradação de A → Melhoria de A graças ao benfeitor merecedor
C → recompensa do benfeitor C; por causa do malfeitor desmerecedor B → castigo do
malfeitor B.
A matriz, nessa ordem, elaborada por Bremond nem sempre é realizada completamente
em cada conto. A seqüência Degradação - Melhoria acontece, mas as outras são facultativas.
A partir dessa matriz, o estudioso propõe uma primeira classificação diferenciando quatro
tipos de conto: um tipo integral e três lacunares.
Um outro modelo de análise morfológica do conto que mereceu destaque na obra de
Simonsen (1976) foi o Modelo Actancial de Greimas. Esse modelo partiu de uma revisão feita
por Greimas do esquema das sete personagens de Vladimir Propp, originando o seguinte
modelo que, em princípio, pode ser aplicado a todos os tipos de conto:
Remetente Objeto → Destinatário
↑
Ajudante → Sujeito ← Opositor
Greimas invalidou o Auxiliar de Propp – especificação do Doador -, o Falso herói – o
desdobramento do adversário - e adicionou o Destinatário, “contraparte lógica do Mandante
de Propp, para incluir nesse esquema actancial universal a modalidade essencial do Contrato”
(SIMONSEN, 1976, p.46).
Para Greimas, a relação que envolve os seis actantes possui correlação às modalidades
fundamentais da atividade humana:
Querer (o Sujeito deseja o objeto), Saber (o Remetente destina o Objeto ao Destinatário), Poder (o Sujeito, contrariado pelo Opositor é ajudado pelo Ajudante). Elas estabelecem além disso um esquema narrativo geral, o da Busca ou Procura (Quête), e três tipos de elementos narrativos fundamentais:
35
elementos de desempenho, as provas; contractuais (estabelecimento de um pacto, execução ou ruptura desse pacto, recompensa ou castigo); enfim disjuntivos (partidas, separações) e conjuntivos (retornos, reuniões) (SIMONSEN, 1976, p. 46).
De acordo com Simonsen (1976), quanto mais a “forma figurativa” do relato
assemelha-se às estruturas dos modelos de Bremond e Greimas, mais próximos nos
encontraremos de um contato com uma forma pura de conto. Mas ao se afastar dos modelos
citados, o relato tenderá para o gênero novela, anedota ou o humanismo na tradição oral.
3.3 Os níveis de percepção do conto popular
Gislayne A. Matos (2005) afirma em seus estudos que as narrativas orais importam
funções sóciais, pedagógicas, terapeutas e iniciáticas que não podem ser estudadas
separadamente, pois elas se complementam. Por isso, ela opta trabalhar sobre os níveis de
percepção indicados por Amadou Hampâté Bâ:
Um conto de tradição oral pode ser percebido em vários níveis. No primeiro nível, ele é puramente recreativo, e seu objetivo é divertir e distrair crianças e adultos. Mas, para seus familiares ou colegas, ele constitui também uma forma de aprendizagem da língua e de certos mecanismos do pensamento. Num outro nível, o conto é um suporte de ensinamento para iniciação às regras morais, sociais e tradicionais da sociedade, na medida em que revela um comportamento ideal de um ser humano no seio da família ou da comunidade. Enfim, o conto é dito iniciático na medida em que ilustra as atitudes a imitar ou a rejeitar, as armadilhas a discernir e as etapas a vencer quando se está engajado no difícil caminho da conquista e da realização de si mesmo (HAMPÂTÉ BÂ apud MATOS, 2005, p. 19).
No texto citado observamos que o primeiro nível do conto é visto como algo
recreativo, que serve para divertir, distrair e, também, se constitui como forma de
aprendizagem da língua materna.
O conto popular provoca prazer, diverte e distrai porque cria “um espaço ‘fora’, onde a
telescopagem do passado e do presente e a igualdade fundamental dos participantes tornam-se
possíveis” (MATOS, 2005, p.20). Esse espaço “fora”, segundo Matos (2005), faz alusão ao
36
espaço potencial de Winnicot6, que é “a área onde se dá a brincadeira, o lúdico, contrastada
com a realidade psíquica interna, ou pessoal, e com o mundo real em que o indivíduo vive,
que pode ser objetivamente percebido ((MATOS, 2005, p. 21).
Assim, o espaço do conto seria um espaço potencial “na medida em que ele
aconchega, quebra barreiras, institui as igualdades; é um espaço de confiança e de afeto”
(MATOS, 2005, p. 21). E para ser transportado ao espaço “fora”, basta o indivíduo ter contato
com as fórmulas introdutórias: “Era uma vez”, “Conta-se”, “Há muito tempo” e outras. Essas
fórmulas conseguem atuar desse modo no ouvinte, porque o convida a se aventurar através da
imaginação.
Matos afirma que é “por meio da imaginação criadora” que o ser humano “reorganiza
os elementos provenientes de suas experiências passadas, dando-lhes nova forma” ((MATOS,
2005, p.25). Ela ainda acrescenta ao seu estudo as seis funções da imaginação relacionadas
por Eliana Stort7:
• Função objetivadora e libertadora – em que a imaginação facilita a libertação afetiva por
compensação simbólica;
• Função comunicativa, de autoconhecimento e de conhecimento do mundo – o imaginário
possibilita ao indivíduo “a comunicação consigo mesmo” (MATOS, 2005, p.24), bem como
trará informações sobre sentimento e conhecimento do imaginário do outro sujeito;
• Função crítica – “o imaginário cria uma distância entre o mundo objetivo e o idealizado,
afinando o espírito critico e fazendo-nos refletir” (MATOS, 2005, p. 27);
• Função de apoio ao desenvolvimento racional – a imaginação se for bem educada, pode
favorecer a racionalidade porque aprendemos “a manipulá-la cada vez com maior habilidade
e distância (MATOS, 2005, p. 27);
• Função motivadora – em que a imaginação “alimenta sonhos e desejos, constringe à
resistência, cria a esperança e dá origem à fé” (MATOS, 2005, p. 29);
• Função criadora – a imaginação possibilita a resolução de problemas, visto ela ser capaz de
propor elementos, “pontos de partida capazes de auxiliar a refletir, dialogar e elaborar, pouco
a pouco, as respostas” (MATOS, 2005, p.30).
6 WINNICOT, D.W. O brincar e a realidade. Trad. José Otavio de Aguiar Abreu e Vanede Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 7 STORT, Eliana V.R. Cultura, imaginação e conhecimento: a educação e a formalização da experiência. Campinas: Unicamp, 1993.
37
Quanto à aprendizagem da língua indicada por Hampâté Bâ no primeiro nível de
percepção, Matos (2005) toma por base o estudo da lingüística Suzy Platiel8 que trata das
distintas funções do conto em uma sociedade de tradição exclusivamente oral - sociedade
sanan, etnia de Burkina Fasso.
Segundo Matos (2005), Platiel diz que apesar de ser uma das funções menos
estudadas, a aprendizagem da língua é uma das mais importantes. Assim, a lingüista salienta
três pontos:
- ativação dos mecanismos de simbolização que sustentam a utilização das palavras e o funcionamento da linguagem; - construção da relação espaço / tempo; - domínio da linguagem e desenvolvimento das estruturas discursivas (MATOS, 2005, p. 32-3).
A fim de compreendermos o primeiro ponto, Platiel explica que a criança quando
começa a falar pronuncia as palavras apenas se estiver “na presença dos objetos ou das
pessoas ligadas a ela” (MATOS, 2005, p. 32). Essa é a primeira etapa na aprendizagem da
linguagem. Após essa etapa, a criança precisará compreender que as palavras podem referir-se
a um objeto ou pessoa ausente; deverá, ainda, entender “que cada palavra corresponde a uma
noção que representa não um objeto único mas uma classe de objetos com características
comuns” (Ibidem).
A criança constrói a noção de que os objetos não são estritamente idênticos através de
um processo de distanciamento do objeto, ou seja, processo de abstração e de generalização.
Os contos orais auxiliam o desenvolvimento dessa etapa da aprendizagem da
linguagem, porque a criança compreende “que o campo semântico das palavras se fragmenta
e que de acordo com o contexto em que aparecem sua significação pode se modificar”
(MATOS 2005, p. 33).
Com relação ao segundo ponto, o espaço, Platiel ressalta que sua análise volta-se para
o corpus de contos sanan, impedindo-a de afirmar que as mesmas observações seriam
referentes a outros corpora. Mas a lingüística acredita que o procedimento deva ser o mesmo.
Segundo Platiel, quase todos os contos sanan desenrolam-se através de dois espaços
que se opõem: espaço interior e espaço exterior. O primeiro é o ‘aqui’, a aldeia
“delimitada e protegida por um cinturão de plantas e no interior da qual se está 8 PLATIEL, Suzy. Le Conte, un plaisir, un modile, un outil. IN: Le Renouveau du Conte. Paris: CNRS, 2001.
38
protegido” (MATOS, 2005, p.34); o segundo é o ‘outro lugar’, “a floresta, zona de
perigos e de insegurança” (Ibidem). Conforme Matos (2005), Platiel ao analisar o
vocabulário utilizado para descrever esses dois espaços enfatiza que: ...o “aqui” é descrito com procedimentos exclusivamente estáticos, os personagens estão aqui, depois aqui, depois aqui, apenas os lugares são mencionados – o mercado, a cada casa, o poço... Mas como eles vão de um lugar a outro nunca é mencionado. Ao contrário, quando se descreve o “outro lugar”, o espaço da floresta, o desconhecido, o fenômeno se inverte, o espaço não se organiza mais em relação aos lugares, e esses nem são nomeados (MATOS, 2005, p.34).
Assim, Platiel conclui que a aplicação de vocabulários distintos a dois espaços
também distintos em contos “irá permitir à criança aprender mais facilmente a dissociar as
duas categorias de vocabulário pelas quais se podem exprimir as diferentes noções referentes
ao espaço” (MATOS, 2005, p.34).
O mesmo acontece com o tempo - tempo pontual e tempo que dura - em que o tempo
preciso, localizado no acontecimento, para se diferenciar do tempo que dura, terá como
vocabulário utilizado para sua descrição a conjugação dos verbos. Já para exprimir a noção de
duração, o vocabulário utilizado remete aos advérbios e as locuções temporais.
O espaço e o tempo dos contos são importantes para a criança por auxiliarem o seu
entendimento sobre a sua localização no tempo e espaço; a criança “deve perceber que, de um
lugar a outro, de onde ela se encontra e no instante presente, existe um ‘além’ e um ‘amanhã’,
que ela pode conceber e dos quais pode falar” (MATOS, 2005, p. 35).
Sobre o desenvolvimento das estruturas discursivas, último ponto, Platiel diz que os
contos ajudam nesta etapa porque proporcionam ao discurso os modelos de encadeamento
lógico. Esses modelos são fornecidos ao mesmo tempo em que a sucessão das seqüências –
dirigidas ou pela simples progressão temporal, ou pelas relações de causa e efeito – é
geralmente caracterizada pela repetição de um motivo ou pelas passagens contadas, ambas
intercaladas entre cada seqüência.
O segundo nível de percepção do conto relaciona-se com o primeiro ao percebermos
que a narrativa oral distrai, diverte, criando um “espaço potencial” que aconchega os ouvintes,
podendo permitir que os mesmos brinquem com seu imaginário. Com isso, o momento do
conto torna-se favorável à aproximação das pessoas, “que muito naturalmente se sentirão
unidas pelos laços sociais e estarão receptivas à iniciação nas regras morais e sociais”
(MATOS, 2005, p.36).
39
Os serões de contos, que acorriam nas sociedades tradicionais, promoviam “a
solidariedade intergeracional, pois a narrativa oral circula entre gerações distintas, sem
encontrar obstáculos” (MATOS, 2005, p.36). Nessas sociedades, adultos e idosos conviviam
com crianças, todos participavam juntos dos serões por acreditarem que deste modo as
crianças seriam inseridas harmoniosamente no meio social.
Matos frisa que para Aminata Sow Fall9 o conto popular revelava os ideais mais
profundos da comunidade, garantindo sua harmonia “em torno dos sistemas de valores e
crenças que deveriam ser consolidados para o equilíbrio e a sobrevivência da sociedade”
(MATOS, 2005, p.38). As personagens marginais e oportunistas são castigadas seja pelo ser
humano, seja por forças sobrenaturais, para mostrar aos indivíduos que a harmonia deverá
sempre ser restabelecida:
Essa é a promessa que nos fazem seus heróis, que não desistem no caminho, por mais difícil que as provas possam parecer. Eles nos ensinam que não se deve desistir de trabalhar pela harmonia e pela unidade (MATOS, 2005, p.39).
As narrativas transmitem a informação de que para viver em grupo a fraternidade, a
solidariedade e a cooperação são valores necessários. E para a criança, de acordo com Matos,
esse ensinamento difundido pelos contos “é o de uma moral prática” (MATOS, 2005, p.39),
fazendo com que ela use seu imaginário a fim de poder “contextualizar pelas imagens mentais
o ensinamento neles contidos” (Ibidem).
Salientamos que os encontros destinados a contar e ouvir histórias ocorrem ainda hoje.
Todavia não são como os serões mencionados. Centros culturais, shoppings, contratam grupos
de contação de histórias, com objetivos distintos. E durante as apresentações desses grupos,
percebemos que não existem apenas crianças assistindo, mas famílias inteiras. Esse fato nos
mostra como o “juntar-se em torno da palavra viva, do relato, continua sendo um desejo na
comunidade contemporânea” (MATOS, 2005, p.39).
O terceiro nível trata o conto como dito iniciático. Matos afirma que os etnólogos
identificam três tipos de iniciação:
• Tribal – tipo de iniciação profana, “ligada a uma mudança biológica pela qual todo ser
deve passar” (MATOS, 2005, p.42);
9 SOW FALL, Aminata. Nas histórias africanas os anseios da comunidade. Correio Unesco. Rio de Janeiro, nº 8, ano 10, ago. 1982, pp. 23-5.
40
• Religiosa – garante “a passagem do profano ao sagrado, permitindo integrar o indivíduo
ao sagrado” (MATOS, 2005, p.42);
• Mágica ou xamânica – “exige o abandono da condição humana profana para ascender à
posse de valores sobrenaturais” (MATOS, 2005, p. 42).
A iniciação é vista filosoficamente, sob muitos aspectos e através de distintas
fórmulas, como algo que introduz o sagrado. Ela “implica uma relação com o corpo, com o
afeto, com a ética e até mesmo com o mágico” (MATOS, 2005, p.42); é característica das
sociedades tradicionais, mas também está presente de alguma forma na vida humana
contemporânea.
O indivíduo das sociedades tradicionais tinha o sagrado como referência ao
representar o mundo. Para ele, a natureza e a sociedade estavam ligadas, constituindo um todo
coerente que não se distingue:
Formando uma grande sociedade da vida, os reinos mineral, vegetal, animal, e a própria sociedade estão intrínseca e misteriosamente ligados numa cadeia de relações equânimes e interdependentes, e não há nenhuma linha de demarcação entre eles (MATOS, 2005, p.44).
A sociedade tradicional organizou-se “em torno das tradições, das crenças”, se
firmando “na idéia de que ‘tudo’ sempre foi assim e continuará sendo” (MATOS, 2005, p. 44) a
fim de garantir a permanência da ordem e da harmonia. Isso aconteceu devido à crença de que
o mundo é sustentado e os seres humanos têm seu destino dirigido por uma ordem imutável,
fundamentada na tradição.
Essa ordem é definida pelo sagrado. Matos (2005, p. 44) diz que para o ser humano,
valores sagrados são os que fornecem “significado à sua vida e o colocam em sintonia com o
universo”. Assim, o indivíduo da sociedade tradicional pode transcender os contrários, atingir
a síntese e compartilhar valores.
Matos (2005) ressalta a análise de Mircea Eliade10 sobre o sagrado na sociedade
contemporânea em que o indivíduo deixou de lado os deuses, adotando um novo
comportamento: a-religioso; se vê como único e agente da História; recusa a transcendência;
“faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza
e o mundo” (ELIADE apud MATOS, 2005, p.45).
10 ELIADE, Mircea: Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965. trad.bras. O sagrado e o profano São Paulo: Martins Fontes, 2001.
41
Com essa postura, Eliade afirma que o ser humano da atualidade sofre uma crise
existencial, isto é, ele questiona a realidade do mundo e o seu lugar nesse mundo. Essa crise
existencial remete este ser “à ontologia e, por meio dela, à busca de um sentido real para a
existência” (MATOS, 2005, p.45).
Os contos populares parecem “estar sendo uma opção para as pessoas cuja busca do
entendimento de si mesmas no mundo é latente” (MATOS, 2005, p.46). Isso porque eles,
segundo René-Lucien Rousseau11, podem ser incluídos no campo de ação do sagrado, visto
possuírem uma linguagem simbólica. Observemos o que diz Eliade citado por Matos (2005, p.
47):
... graças aos símbolos, o homem sai de sua situação particular e se abre para o geral e o universal. Os símbolos despertam a experiência individual e transmutam-na em ato espiritual, em compreensão metafísica do Mundo.
A narrativa oral pode estabelecer uma relação mútua com o mundo interior do ser
humano quando, de acordo com Matos (2005), o percebemos na dimensão espiritual. Dentre
as narrativas orais, o conto popular é repleto de significados, de símbolos que podem permitir
ao ser humano refletir sobre sua vida e encontrar um sentido para ela quando apreende os
significados transmitidos.
Esses três níveis de percepção designados por Hampâté Bâ nos auxiliam a
compreender a riqueza do conto popular e suas particularidades.
3.4 Contador-história-ouvinte
O ser humano encontra-se inserido em uma tradição e é constituído por ela. Isso
porque tradição – em latim traditio, cujo verbo latino é tradire – significa o ato de passar algo
para outro indivíduo, ou passar de geração a geração. Deste modo, Bornheim (1987)
compreende tradição como “conjunto dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos” e
alerta para que não se entenda os valores apenas como “formas de conhecimento ou das
opiniões” que o ser humano possui, mas também como a totalidade do comportamento
humano, “que só se deixa elucidar a partir do conjunto de valores constitutivos de uma
sociedade” (BORNHEIM, 1987, p.20). 11 ROUSSEAU, René – Lucien. L´envers des contes. Saint – Jean – de – Braye, France: Dangles, 1988.
42
Em síntese, a tradição é formada por valores, práticas simbólicas estabelecidas e
vividas pelo indivíduo no seio da sociedade que podem ser transmitidos tanto pelo
conhecimento oral – objeto de nosso estudo -, como pelo escrito. Para comunicar esses
valores, práticas, conhecimentos através da oralidade, o ser humano utiliza-se do ato de
narrar:
(...) se narrar é colher os fatos da própria experiência transformando-os em experiências para os ouvintes, o ato de narrar significa também o encontro com os mistérios que envolvem o homem e a vida nos diversos momentos de sua existência (PATRINI, 2005, p. 105).
O indivíduo, ao iniciar o seu processo comunicativo por meio da fala, narrou histórias
repletas de elementos da sua própria experiência com o fim de expressar seus anseios, medos,
desejos e outros sentimentos que fazem parte de si.
Essas histórias proferidas, hoje conhecidas como gêneros narrativos populares – lenda,
conto, anedota, provérbio, etc. –, e pertencentes à Literatura Popular, dependem da relação
contador-história-ouvinte para existirem, como nos explica Ayala (1989, p. 266):
Os contos populares não podem ser nivelados a outros sistemas literários populares, orais ou escritos, ainda que estes absorvam as narrativas populares, como é o caso do folheto, a literatura popular impressa nordestina. Isso porque, antes de tudo, a narrativa popular oral é atividade que depende de uma comunidade. Pertence a um sistema literário específico que, para existir, precisa ter uma rede de relações que envolve contadores – histórias – ouvintes.
Assim, a narrativa oral desenvolve-se quando há uma reunião de pessoas – seja no
trabalho ou depois dele, em festas, etc. -, normalmente durante as primeiras horas da noite. A
prosa da Literatura Oral pede um ambiente sereno para a evocação e atenção dos ouvintes,
para a troca de experiências. Essa troca de experiências pode ser exemplificada a partir do
trecho a seguir, retirado do texto Experiência e pobreza, de Benjamim (1985, p. 114):
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio de tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.
43
Nessa situação observamos que o pai ao desejar ensinar algo aos filhos, conta-lhes
uma história, a partir de seu conhecimento adquirido através da experiência. Benjamim (1985)
ainda declara que a experiência transmitida de pessoa a pessoa é a que recorreram todos os
narradores. Acrescenta ainda que as narrativas escritas que mais agradam os leitores “são as
que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”
(BENJAMIN, 1985, p. 198).
O saber, a experiência ou o conhecimento transmitido pelo contador ao ouvinte pode
ser recebido com proveito, pois, segundo Gramsci (1968), ele é prático e de modo sutil conduz
o ouvinte a seguir um comportamento moral estreitamente ligado às reais crenças religiosas.
Gramsci (1969, p. 185) declara também possuir esta moral imperativos “mais fortes, tenazes e
eficientes do que os da moral ‘oficial’ ” (p. 185).
Sobre o estudo do contador de histórias, Ayala (1989) o distingue pela especificidade e
pela especialização. Pela especificidade porque o ato de narrar histórias é tido “como uma
atividade específica reconhecida pelo grupo social em que se desenvolve” (AYALA, 1989, p.
266). E pela especialização porque muitos indivíduos conhecem os contos proferidos,
entretanto apenas alguns sabem narrá-los “e estes são reconhecidos por sua comunidade como
contadores de histórias” (Ibidem).
Não existe uma técnica propriamente dita usada pelo contador de histórias, mas é fato
que para atrair a atenção do público ele recorre ao uso da voz e do corpo de forma hábil. A
primeira altera o timbre indicando pluralidade do elenco: torna-se enfática, enérgica, doce,
violenta, rouca, langue conforme a personagem seja príncipe, princesa, rainha má, rapaz
valente, moça bondosa e tímida, fada, homem bruto, etc. Já o uso do corpo ocorre através da
gesticulação, movimentos de corpo, andar, mudança de ritmos que tornam a narrativa
agradável e bela, como nos diz Cascudo (2006, p. 254):
A narração é viva, entusiástica, apaixonada. Não ouvi uma estória desinteressante nos anos em que vivi no sertão. Só conta uma história quem está disposto a viver-lhe a vibração incontida, transmitindo-a ao ouvinte ou ao auditório. Não há cânon para os processos de entonação, silabação, divisão de períodos, fases do enredo.
Apesar de não existir uma técnica propriamente dita para o ato de narrar, alguns
contadores de histórias possuem consciência tanto do seu papel dentro da comunidade como
“dos procedimentos estéticos necessários à composição oral”, conforme os estudos de Ayala
(1989, p. 262). Eles, em alguns momentos, chegam a apresentar a técnica de composição do
conto popular, tecendo “comparações com outro sistema literário popular” (Ibidem).
44
Possuindo ou não o contador uma consciência artística ao contar uma história, o importante é
que o ato de narrar proporciona um pretexto para que ocorra um novo encontro e uma nova
troca de experiências.
Entretanto, estes encontros destinados a contar e ouvir histórias estão com dificuldades
para acontecerem, segundo depoimentos de contadores registrados nos estudos de Silveira
(2004). Isso acontece porque muitos ouvintes das narrativas orais estão optando por outros
tipos de entretenimento. Ou seja, os momentos que antes eram destinados aos encontros das
pessoas na comunidade para contar e ouvir histórias estão sendo substituídas pelos aparatos
tecnológicos e mídias eletrônicas presentes na sociedade atual. E a televisão é um desses
aparatos que envolvem o indivíduo e proporciona o desinteresse dele por uma outra atividade,
“como a de reunir-se para ouvir/contar histórias” (SILVEIRA, 2004, p. 455).
De acordo com Silveira (2004), a televisão prende a atenção dos que estão a sua volta
por criar a ilusão de ser possível ao ser humano ter uma vida mais agradável, porque nesse
aparato há apresentações de novelas, séries, filmes, etc., repletos de “personagens
identificadas com as pessoas comuns, os fatos reais, exibindo características com as quais as
pessoas podem identificar-se” (SILVEIRA, 2004, p. 456).
A presença desses aparatos tecnológicos pode ter contribuído para diminuir a
freqüência dos encontros entre contadores de histórias e ouvintes, mas não fez desaparecer
nem essas figuras nem o gosto por narrar e ouvir uma boa história. O contador de histórias
pode ter tido sua atividade com lugar alterado, com retrações sofridas, todavia ela apresenta-se
suficientemente forte a ponto de não se extinguir.
3.4.1 O novo contador de histórias
É nesse contexto industrial, tecnológico e informatizado que se apresenta o novo
contador de histórias na sociedade contemporânea. Segundo Patrini (2005), esse contador
difere do tradicional porque “o último vive a permanência, a segurança e um papel bem
determinado” (PATRINI, 2005, p.76), já o outro “conhece a instabilidade, e sua arte parece
submissa ao efêmero, que é o produto de uma modernidade radicalizada” (Ibidem).
Sobre o contador moderno, Patrini (2005) afirma ser difícil defini-lo apesar de todas as
tentativas de definição. Ela diz que “faltam ainda elementos para formulá-la” (PATRINI,
2005, p. 81), e que, o motivo para essa ocorrência não está apenas no fato de buscar as
45
palavras certas, mas também na “dificuldade causada pelo movimento da sociedade moderna”
(Ibidem).
O contador tradicional contava de modo espontâneo, diante de um público conhecido.
O contador atual “não conhece o público com o qual ele deve estabelecer relações”, nem
“sabe que espaço lhe será ofertado no seu próximo trabalho” (PATRINI, 2005, p.97). Ele se
apresenta na forma de espetáculo, pois procura utilizar-se de meios tecnológicos –
sonorização, jogos de luzes, etc. – e procedimentos técnicos do ator para contar uma história.
Logo, sendo um homem de espetáculo, esse contador além de lidar com a variável
público desconhecido – que o contador encontra pela primeira vez e ao término do espetáculo,
provavelmente ele, contador, não o encontrará - ele trabalha em seu repertório.
De acordo com Matos, o repertório do contador tradicional encontrava-se “no
reservatório comum a todo o grupo, e ele o herdava diretamente, podendo escolher o que
melhor se adaptava à sua personalidade” (MATOS, 2005, p. 114). Ele também aprendia a
contar a partir se sua experiência como ouvinte; tinha seu corpus originado de sua própria
cultura e, para ele, não era difícil “formular seu conto, pois bastava seguir as regras e critérios
de sua sociedade já impregnados no espírito dos ouvintes” (Ibidem).
O contador da atualidade precisa “construir um repertório e dar-lhe uma forma
conveniente” (MATOS, 2005, p. 115) antes de encontrar-se com seus ouvintes. Ele não
adquiriu as narrativas oriundas e retidas na memória de sua comunidade, ou seja, “ele não as
retira da própria memória” (Ibidem, p. 116).
Como o novo contador não utiliza contos advindos de sua memória por herança, ele os
busca na fonte escrita:
Trata-se de uma busca muitas vezes ingrata, pois nem sempre as leituras brindam o contador com o encantamento. Não se pode esquecer também a verdadeira “provação”, que é a leitura de contos freqüentemente mal escritos (MATOS, 2005, p.117).
O fato de freqüentemente buscar na fonte escrita material para sua contação faz com
que o processo de contar seja “diferente daquele de quando os contos chegam pelos ouvidos”
(MATOS, 2005, p.116). Pois o contador precisa escolher palavras que se harmonizem com as
imagens que ele pretende apresentar. Além disso, é importante que o intérprete faça uma
adaptação dos contos obtidos das fontes para a oralidade, como faz a contadora Walkíria
Angélica, mencionada por Matos (2005, p. 119):
46
É sempre assim, eu preparei a estrutura, me apropriei dela (...) e na hora me vem uma história que eu li, que eu estou com a estrutura e dou conta de contar (...). Quanto menos eu preparo mais engraçada fica a história. (...). É sempre assim, faço uns esqueminhas...mas sempre dá certo.
Matos (2005, p. 120) ainda acrescenta que o contador deve dar ao conto “uma alma,
insuflar-lhe vida”, porque assim contador e conto tornam-se uma unidade provocando
emoções e prazer tanto para quem está contando como para quem está ouvindo, já que sua
arte estará fluindo livremente, sem preocupação com a forma.
O corpus do contador atual é um item relevante abordado por Matos (2005).
Principalmente porque sua fonte é escrita e, deste modo, ele pode escolher contos de sua
cultura. Isso facilita a transmissão da mensagem, “pois os significados simbólicos contidos
neles são conhecidos e assimilados por todos” (MATOS, 2005, p. 121).
Entretanto, quando o contador opta por contos de uma cultura diferente da sua, ele
“deverá apreender o contexto vivo do conto, ou seja, as sutilezas da língua, os símbolos que
são próprios da cultura etc.” (MATOS, 2005, p. 121) a fim de estabelecer com seus ouvintes
um vínculo de cumplicidade.
Matos também fala de outra situação difícil que acomete o contador: quando ele
“transmite um conto de própria cultura a um público que não é” (Grifo nosso) (MATOS,
2005, p.123), pois o intérprete terá dificuldades não só com a língua, “cujos termos e
expressões lhe são próprias” (Ibidem), mas com os significados e os símbolos. Nesse caso,
será necessário estabelecer uma comunicação total entre o contador e os ouvintes, dissipando
qualquer dúvida sobre o conto. Isto é, o contador precisará fornecer explicações sobre algo
que comprometa a compreensão do conto, como realiza o contador Roberto Carlos Ramos
citado por Matos (2005, p. 123):
Havia palavras que não faziam parte da nossa linguagem, como fiar. Eu teria que descrever o que era uma roca, que era uma máquina de fiar, aquela coisa toda. É muito melhor ser mágico: bibiti, bibiti, e pow, transforma em ouro.
Os novos contadores vêem-se diante de um outro fator na formação do seu repertório:
as “encomendas”. Matos (2005) cita Praline Gay-Para12 para retratar a problemática da
encomenda:
12 GAY–PARA, Praline. Le repertoire du conteur. IN: Le renouveau du conte. Paris: CNRS, 2001.
47
A questão da encomenda às vezes é muito difícil, pois a pessoa que contrata o contador, tendo pouco contato (...) com essa palavra anônima e antiga, solicita temas como: Papai Noel, Natal, sobre uma comemoração como a “Revolução”, nesse caso o contador deverá explicar que não há contos propriamente sobre a revolução, mas há muitos contos cuja idéia central é a de que os fracos podem vencer os fortes (GAY-PARA apud MATOS, 2005, p. 125).
As encomendas são proveitosas quando obrigam o contador a buscar informações
sobre determinado tema ou cultura. No entanto, podem se tornar um problema quando as
pessoas fazem pedidos de temas exemplificados por Gay–Para. A solicitação de encomendas
aos contadores contemporâneos ocorre por causa do fator econômico:
As escolas, as bibliotecas, os teatros estão sempre solicitando espetáculos de todo gênero. Quando se trata da iluminação, da sonorização, do tamanho do palco, um contador é bem menos exigente e dispendioso do que ator ou um grupo de atores (PATRINI, 2005, p.84).
Patrini (2005, p. 84) afirma que é pequena a “porcentagem de contadores ligados ao
objeto conto, à noção de prazer nos jogos de palavras”. Entretanto, é grande a quantidade de
pessoas que usam o conto para “ganhar a vida, fazendo um bom trabalho” (Ibidem). Essas
pessoas versam entre professores, atores, músicos e outros.
Com essa nova característica, contar como meio de sobrevivência e existência, Patrini
(2005, p. 85) declara:
Como um número crescente de atividades que desde muito tempo tem sido consideradas livres, o conto é utilizado agora no quadro de uma profissão. Se os jograis e menestréis já eram conhecidos na Idade Média como profissionais, o contador da tradição oral jamais exerceu esta atividade de forma remunerada.
Segundo Patrini (2005), o novo contador de histórias não é reconhecido de forma
oficial nem dispõe de direitos regulamentados. “Contar tornou-se uma profissão, é verdade.
Mas é uma profissão marginal” (PATRINI, 2005, p. 85).
Não pretendemos neste trabalho aprofundar na questão da profissionalização do
contador atual, mas apresentar as suas características. Público desconhecido; apresentação
como espetáculo; corpus advindo de fontes escritas; remuneração são fatores que marcam a
vida do contador de hoje e o distancia do contador tradicional. Todavia, o papel de
proporcionar momentos de felicidade e prazer aos ouvintes os aproxima.
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Em linhas gerais, o contador contemporâneo é influenciado pelas tendências
globalizadoras da modernidade quer seja ele do meio urbano, quer seja do meio rural.
3.4.2 A performance
A poética dos contadores de histórias é formada pela performance – termo tomado por
Zumthor (1997) na sua acepção anglo-saxônica. Ela “é a ação complexa pela qual uma
mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida” (ZUMTHOR,
1997, p. 33). Na performance locutor, destinatário e circunstância encontram-se confrontados
de forma concreta e indiscutível.
O evento da performance é criado pela conjugação dos elementos tempo, lugar e
participantes, implicando um tipo singular de conhecimento que “só é compreensível e
analisável do ponto de vista de uma fenomenologia da recepção” (ZUMTHOR, 1997, p. 155).
A performance, segundo Zumthor, implica:
competência. Além de um saber-fazer e de um saber- dizer, a performance manifesta um saber-ser no tempo e no espaço. (...). É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: voz proclama emanação do nosso ser. (...) É por isso que a performance é também instância de simbolização: de integração de nossa relatividade corporal na harmonia cósmica significada pela voz; de integração da multiplicidade das trocas semânticas na unicidade de uma presença (ZUMTHOR, 1997, p.157).
O saber-fazer na performance é identificado quando o poeta modela seu discurso
utilizando os recursos próprios da voz – “palavra e silêncio, golpes de glote, respiração” – ou
os do corpo, como apertar “o microfone sobre o coração, para que se perceba seus
batimentos” (ZUMTHOR, 1997, p.172). Ou seja, o saber-fazer ocorre quando a performance
cria uma impressão rítmica que é originada por dois fatores: corporal e vocal.
Já o saber-dizer refere-se ao conto, às cantorias dos poetas acompanhados ou não por
instrumento musical:
No dito a presença física do locutor se atenua mais ou menos, tendendo a se diluir nas circunstâncias. No conto, ela se firma, reivindicando a totalidade do espaço. Por isso, a maior parte das performances poéticas, em todas as civilizações, sempre foram cantadas; e, por isso, no mundo de hoje, a canção,
49
apesar se sua banalização pelo comércio, constitui a única verdadeira poesia de massa (ZUMTHOR, 1997, p. 188).
O saber-fazer trata dos gestos, das roupas e dos cenários que junto com a voz
projetam-se “no lugar da performance” (ZUMTHOR, 1997, p.216) . No entanto, os elementos
que os compõe – movimentos corporais, formas, cores, tonalidades, palavras da linguagem –,
unidos, formam “um código simbólico do espaço” (Ibidem). Esse espaço é suporte simbólico
porque “depois que as palavras foram suprimidas” o gesto se mantém na memória
(ZUMTHOR, 1997, p.216).
Matos (2005) inspirando-se no trabalho sobre a performance do poeta de Zumthor,
adaptou a tríade saber-fazer, saber-dizer e saber-ser às necessidades do seu estudo sobre o
contador de histórias e sua palavra. Em seu livro, ela usa esses termos na língua francesa;
savoir-faire, savoir-dire e savoir-être, respectivamente.
Assim, o savoir-faire na performance do contador está relacionado aos movimentos do
corpo, aos gestos ou gestualidade. Os recursos indumentária, cenário e instrumentos musicais
também podem ser utilizados na contação.
Os gestos favorecem a veiculação da mensagem do conto da mesma forma que a
entonação e o ritmo emitidos pela voz. Matos (2005) a fim de salientar a relevância do gesto,
coloca em seu texto a fala da contadora Walkíria Angélica:
O gesto é muito importante, ele [o contador] fala muito através da sua gesticulação, então, isso é uma coisa que tem que ser observada na medida. A expressão corporal do contador é fundamental, sentado ou em pé ele deve se comunicar (MATOS, 2005, p. 60).
Quanto aos recursos adicionais citados por Matos, eles desempenham um papel
importante na impressão do ouvinte porque o atraem, ajudam com que ele “mergulhe numa
temporalidade outra, diversa desta realidade concreta”( MATOS, 2005, p. 68).
A roupa do contador toma diversos valores como o de se ritualizar, ao investir-se de
valores simbólicos no grupo social. O cenário auxilia o indivíduo a atualizar o imaginário para
transportar-se à outra realidade. E o instrumento musical causa impacto no ouvinte, podendo
exercer, conforme Zumthor, uma função dêitica ou simbólica.
De acordo com Matos (2005), o savoir-dire remete-se à palavra falada como
linguagem emitida pela voz foneticamente. Sendo assim, uma expressão pode ter seu sentido
alterado, provocando emoções diferentes, “dependendo do centro de ressonância do corpo de
onde” a voz “partirá – peito, garganta, cabeça” (MATOS, 2005, p.74).
50
A voz pode seduzir, informar sobre o caráter de um indivíduo como, exemplifica
Matos (2005), ao dizer que uma voz feminina estridente afasta pretendentes porque é
associada a um temperamento ranzinza; a voz nasalizada é interpretada como sinal de morte.
Com o fim de transmitir sua mensagem, o contador de histórias brinca com as
qualidades materiais da voz - o tom, o timbre, a amplitude, a altura e a fluência. Esses
elementos concretizam a voz como linguagem, detentora de vocabulário, sintaxe e código
produzido pelo ser humano, através “de seu pensamento e de sua auto-escuta. Pela ação do
pensamento a voz se torna, então, mensagem” (MATOS, 2005, p.75).
O savoir-être para Matos “diz respeito à revelação entre o contador, os ouvintes e o
texto, na performance da poesia oral”( MATOS, 2005, p.79).
A recepção da história pelos ouvintes é única para cada um deles que recria, à sua
maneira e conforme as suas configurações interiores, o universo significante que lhes é
transmitido. Assim, o ouvinte percebe o conto de um jeito diferente e se apropria da história
podendo contá-la a seu modo, com seus próprios gestos e palavras.
Desse modo, percebemos que o texto oral encontra-se aberto, ou seja, ele pode ser
construído na voz do contador ou do ouvinte. Matos (2005, p. 81) afirma que:
O conto é a arte da palavra que se expressa na relação com o outro, o que explica porque, na performance da poesia oral, nada está pronto, e um conto nunca é reproduzido duas vezes, da mesma maneira.
Na performance, o texto oral é adaptado constantemente e de modo espontâneo pelo
contador que altera tom ou gesto, modula a enunciação, entre outros. Isso ocorre porque o
ouvinte é “co-autor ou ouvinte-autor” (MATOS, 2005, p. 81); ele espera que o texto
corresponda às suas expectativas:
Mobilidade do texto, reformulação do tempo na narrativa, desestabilização saudável dos papéis desempenhados pelos atores: o contador pode surpreender-se consigo mesmo a cada novo encorajamento dos ouvintes, que o impulsionam a recriar sempre mais e mais (MATOS, 2005, p. 85).
Ao observarmos os estudos de Zumthor e Matos abordados, entendemos essa relação
contador-histórias-ouvinte como algo indispensável à sociabilidade e harmonia da vivência
em comunidade.
51
3.5 Por que o conto popular?
Um conto popular ao ser narrado apresenta elementos de diversos povos, como por
exemplo, o conto popular encontrado no Brasil: as narrativas orais são constituídas
principalmente por caracteres indígenas, portugueses e africanos, as três raças que formaram
esse país. No conto podemos encontrar informações históricas, etnográficas, sociológicas,
jurídicas, sociais, como afirma Cascudo (2006, p. 258):
É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós é o primeiro leite intelectual. Encontramos nos contos vestígios de usus estranhos, de hábitos desaparecidos que julgávamos tratar-se de pura invenção do narrador.
Ao levarmos o conto popular à sala de aula, poderemos auxiliar o estímulo de
reflexões sobre as diferenças étnicas, religiosas e introduzir conceitos éticos. Além desse
material da cultura popular poder servir também como estímulo ao estudo das disciplinas:
História, Artes, Geografia e outras. Não queremos aqui dizer que a narrativa popular vai
auxiliar o educando na aprendizagem das disciplinas curriculares, não! Mas a sua abordagem
na sala de aula pode promover debates relevantes e contribuir para o processo de formação
dos alunos, como afirma Busatto (2003, p. 38):
Ao trazermos para a sala de aula histórias de outros povos, não estaremos apenas contribuindo para que a diversidade cultural se torne um fato, mas também apresentando à criança a oportunidade de conhecer aquele povo através do olhar poético que ele lança para sua realidade. Perceber como ele pode se articular para produzir significados para a sua existência, qual o valor que ele atribui às manifestações sociais, como ele se percebe e percebe os indivíduos na sua comunidade.
Além de poder promover a valorização das diferenças étnicas, religiosas; introduzir
conceitos éticos e estimular a interdisciplinaridade, o conto popular detém uma mensagem,
um saber ou uma experiência que pode ser recebida com proveito para quem entra em contato
com esse gênero narrativo. Essa experiência surge de acontecimentos reais vividos, que foram
recolhidos e guardados na memória popular, porque eles significam lições que com o tempo
tornaram-se a base moral da comunidade. O objetivo da narração de um conto popular não é
apenas entreter ou distrair, mas também é a formação do humano, do respeito às diferenças e
à vida.
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O contador Roberto Carlos Ramos citado por Matos (2005) afirma que o educador
pode utilizar-se da técnica do contador para contar histórias. E, com isso, ele poderá conseguir
se pôr em sintonia com seus educandos, acarretando em “perceber melhor as necessidade e
possibilidades de seus alunos” (MATOS, 2005, p. 140). Ele ainda salienta a necessidade de:
Trabalhar conceitos, criando-os junto com os alunos à maneira do contador de histórias que, estimulando o imaginário dos seus ouvintes, constrói o texto com eles na situação da performance (MATOS, 2005, p. 143).
O contador também recomenda ao educador exercitar seu próprio imaginário:
[O professor] só vai ter ginga de cintura se ele for imaginativo, se ele for criativo, se ele tiver vivenciado, sabe, essa extraordinariedade, não pode ser comum em todo o processo dele, ele tem que ser diferente. E geralmente os professores que fazem mais sucesso lá na escola são aqueles que são extraordinários, são diferentes (MATOS, 2005, p. 145).
De fato, o conto popular pode ser um excelente instrumento para promover a
aprendizagem no educando. Todavia, é necessário termos a consciência da urgência em levar
às aulas a Cultura Popular, não apenas em datas comemorativas relacionadas ao Folclore, mas
sempre que possível. Porque, deste modo, além de podermos estar contribuindo para a
valorização da cultura do próprio aluno, poderemos auxiliar a sua formação como cidadão
mais humano.
53
4 JOGO
4.1 Jogo, brinquedo, brincadeira
A linguagem, primeiro e importante instrumento utilizado pelo ser humano para se
comunicar, transmitir saberes e comandar, surgiu da necessidade que o indivíduo sentiu em
compreender a sua origem e o Universo. Durante o seu desenvolvimento, o ser humano,
segundo Huizinga (1980), brincou ao “distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em
resumo designá-las”, pois ele teve a sensação de o espírito estar “constantemente saltando
entre a matéria e as coisas pensadas”. Isso porque quando o indivíduo começou a dar
expressão à vida, ele criou um mundo poético através de metáforas que existem “por detrás de
toda expressão abstrata”. Ou seja, ao desenvolver a fala, o ser humano elaborou histórias para
tentar explicar a sua existência, a natureza, o mundo. Essas histórias, conhecidas por mitos,
possuíam um fundamento divino e “um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a
brincadeira e a seriedade” (HUIZINGA, 1980, p. 7). Deste modo, percebemos que o jogo
esteve presente na vida humana desde o seu surgimento.
Apesar de muitos estudiosos afirmarem ser difícil conceituar jogo, inclusive Huizinga
(1980, p. 10), este último afirma que o conceito de jogo deve “permanecer distinto de todas as
outras formas de pensamento através dos quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e
social”. E apresenta ainda as principais características do jogo que são: liberdade; “evasão da
vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (HUIZINGA,
1980, p. 11); isolamento, limitação; “cria ordem e é ordem” (Ibidem, p. 13).
Conforme Huizinga (1980), o jogo é uma atividade que se desfruta com liberdade, por
vontade do jogador; com fantasia, ou seja, faz de conta; com isolamento, limitação, pois
possui um momento determinado, e com ordem específica, absoluta, já que “a menor
desobediência a esta ‘estraga o jogo’, privando-o de seu caráter próprio e todo e qualquer
valor” (HUIZINGA, 1980, p. 13). Essa última característica do jogo possui o objetivo de
introduzir uma perfeição temporária e limitada durante a atividade.
54
Para o estudioso em questão, o jogo possui uma qualidade fundamental que é a
capacidade de repetição. Mesmo quando se chega ao fim do jogo, este pode ser iniciado
novamente “como uma criação nova do espírito” (HUIZINGA, 1980, p. 13).
Monteiro (1994) diz que a repetição de um jogo pelo indivíduo ocorre porque através
do jogo o ser humano pode conseguir conhecer bem suas experiências essenciais, além de
poder obter uma sensação gratificante por meio do triunfo ao vencer suas dificuldades:
No jogo se luta, se representa, se imagina ou se sensibiliza para alguma coisa. É neste sentido que o jogo enfeita a vida, ornamenta-a e se constitui em uma necessidade para o homem, ao lhe dar uma consciência de ser diferente da “vida cotidiana”, de compreender e influenciar o mundo que vive (MONTEIRO, 1994, p. 19-20).
A função do jogo pode de modo geral, ser compreendida pela “luta por alguma coisa”
ou pela “representação de alguma coisa” (HUIZINGA, 1980, p. 16). Esses dois aspectos
podem em alguns momentos confundirem-se: o jogo pode representar uma luta ou, então, uma
luta pode ser a “melhor representação de alguma coisa” (Ibidem, p. 17).
O ato de representar é desempenhar “um papel como se fosse outra pessoa, ou melhor,
é outra pessoa” (HUIZINGA, 1980, p. 16); é o faz de conta, a brincadeira em que a criança
finge ser uma mãe, um príncipe, uma princesa, um pai, um animal feroz, uma fada, uma
bruxa, etc., e sente-se repleta de prazer, superando-se a si mesma a ponto de quase chegar a
acreditar que realmente é o papel representado, sem perder totalmente o sentido da realidade.
A brincadeira, entretanto, não acontece apenas como representação de um papel.
Segundo Tizuko Kishimoto (1993), brincadeira é a ação que o sujeito desenvolve ao brincar; é
a ação de representação dramática lúdica com brinquedos possuidores de certas regras
implícitas à própria situação imaginária. Por sua vez, o brinquedo é utilizado para designar
objetos que servem ao sujeito no ato de brincar, tanto objetos elaborados especificamente para
as brincadeiras e os criados pelo indivíduo a partir de qualquer material ou investidos de
ludicidade.
Brougère (2003) afirma que o jogo não poderia ser associado ao termo brinquedo,
como ocorre frequentemente ao designarmos certos objetos lúdicos, de jogo e outros, de
brinquedo, visto o último ser bastante específico:
O brinquedo supõe uma relação com infância e uma abertura, uma indeterminação quanto ao uso, isto é a ausência de relação direta com um sistema de regras que organize sua utilização. Por conseguinte o brinquedo não é a materialização de um jogo, mas é uma imagem que evoca um
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aspecto da realidade e que o jogador pode manipular conforme sua vontade. Os jogos enquanto material, ao contrário, implicam de maneira explícita um uso lúdido que assume freqüentemente a forma de uma regra (jogos de sociedade) ou de uma restrição interna ao material (jogo de habilidade, jogo de construção) que constituem uma estrutura preexistente ao material (BROUGÈRE, 2003, p. 15).
Na relação brinquedo e brincadeira, “acreditava-se erroneamente que o conteúdo
imaginário do brinquedo determinava a brincadeira da criança, quando, na verdade dá-se o
contrário” (BENJAMIM, 1984, p.69). Ou seja, por meio de qualquer objeto, seja ele
específico ou não para uma determinada brincadeira, o ser humano é capaz de brincar
utilizando-se da sua capacidade imaginativa.
O brincar encontra-se tão presente na vida humana que se tornou hábito, como declara
Benjamim (1984, p. 75): “a essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer
sempre de novo”, transformando-se em hábito”. Assim, o hábito de “comer, dormir, beber,
vestir-se, lavar-se” (Ibidem) são inseridos na criança por meio de brincadeiras.
A presença do jogo na vida do ser humano permite que ele busque novas formas de
enfrentar os desafios da vida, de encontrar-se consigo mesmo e libertar sua espontaneidade
criativa. O indivíduo quer jogar, porque jogando ele sente um prazer natural, espontâneo;
consegue expressar-se por meio de múltiplas linguagens; descobre regras e toma decisões.
4.2 Jogo e educação
O ser humano é caracterizado, principalmente, por sua imaginação, criativa que o
habilita a dominar seu meio, superando as limitações de seu cérebro, corpo e do universo
material. Essa imaginação criativa possui uma natureza essencial dramática que pode ser
formada a partir do desenvolvimento da criança:
A criança em desenvolvimento tem um primeiro ano de vida que é essencialmente motor; e então – com algumas crianças isso acontece de maneira súbita – ocorre a mudança: passa a jogar, desenvolve seu humor, finge ser ela mesma ou outro alguém (COURTNEY, 1980, p. 3).
Quando criança, segundo Courtney (1980), ao encontrarmos algo no mundo externo
que não compreendemos, jogamos com isso dramaticamente até que possamos compreendê-
lo. Ao envelhecermos, esse processo torna-se mais interno, até que, atingindo a idade adulta,
56
ele “passa a ser automático e jogamos dramaticamente em nossa imaginação – a tal ponto,
inclusive, que podemos nem mesmo perceber que o fazemos” (COURTNEY, 1980, p. 4). Ou
seja, podemos “fazer de conta” fisicamente quando crianças ou internamente quando adultos.
A partir da exemplificação da existência da dramatização na vida do sujeito quando
criança e quando adulto, percebemos que o jogo – processo dramático – é uma atividade vital
para o ser humano, pois sem ele o indivíduo seria uma massa repleta de reflexos motores e
detentora de poucas qualidades humanas.
A relação do jogo com a educação deu-se quando a sociedade sentiu a necessidade de
proporcionar uma educação que habilitasse o indivíduo a desenvolver suas qualidades
humanas.
Essa visão do processo educativo juntamente com a compreensão da natureza
educacional do jogo tem sido compreendida por diversos pensadores em épocas distintas,
como abordaremos a seguir.
Antes da ruptura romântica existiam três formas de estabelecer relações entre o jogo e
a educação. A primeira delas tem o jogo como recreação, como relaxamento indispensável ao
esforço em geral. Nessa primeira forma de relação, o jogo contribui indiretamente à educação,
porque permite ao aluno relaxar e conseqüentemente ser mais eficiente em seus exercícios e
em sua atenção. O jogo como forma de relaxar era defendido por Aristóteles citado por
Courtney (1980, p. 6):
O movimento lúdico deveria ser encorajado para prevenir a indolência, enquanto que o jogo em geral “conviria não ser nem iliberal, nem muito árduo, nem muito ocioso”. Era indicado também para o relaxamento “como um remédio”. Define esses dois propósitos do jogo porque faz distinção entre atividades que têm um fim em si mesmas e podem ser desfrutadas por seus próprios objetivos (que é felicidade) e aquelas que são recursos para um fim. Como a educação deve preparar para a vida prática e ao mesmo tempo proporcionar lazer, o jogo é de máxima importância.
A segunda forma vê o jogo como artifício pedagógico. O interesse da criança “pelo
jogo deve poder ser utilizado para uma boa causa”, isto é, pode-se “dar o aspecto de jogo a
exercícios escolares” (BROUGÈRE, 2003, p. 54). E a terceira forma percebe o jogo como
meio para “explicar a personalidade infantil e eventualmente adaptar a esta o ensino e a
orientação do aluno” (Ibidem).
Assim o jogo poderia ser o lugar de uma educação física porque a criança despediria
seu esforço físico, ou seja, relaxaria e, em seguida, teria uma melhor atenção ao trabalho
escolar.
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O jogo não contribuía em si mesmo para a educação, mas o seu uso como meio em um
conjunto controlado poderia contribuir indiretamente à educação. Essa visão negativa do jogo
ocorreu porque a construção da sua noção o colocou em um domínio que não poderia ser
pensado com o esforço escolar, e sim, como alternativa radical:
O jogo está do lado da frivolidade, da futilidade e permanece marcado por elas. A oposição é insuperável, mas utilizável. O encontro entre jogo e educação é da ordem da exploração, da recuperação para aqueles que querem aproveitar todas as possibilidades (BROUGÈRE, 2003, p. 202).
Essa percepção do jogo está de acordo com a representação da criança desse período.
Este pequeno ser era marcado pela visão negativa originada do pensamento cristão. A criança
era caracterizada pelo pecado original, logo deveria ser corrigida e não poderia “inspirar
nenhuma confiança quanto as suas ações espontâneas” (BROUGÈRE, 2003, p. 59). Desse
modo, para educar uma criança era preciso romper com as manifestações espontâneas
infantis:
Nada do que é espontâneo pode diretamente, fora da invenção do adulto, levar à educação. E, para isso, não é necessário continuar a veicular a idéia do pecado original, basta considerar como sem valor e insignificante a atividade espontânea da criança. Nela, só há desperdício de energia, cujo o único interesse é o de poder tornar mais eficaz o retorno ao estudo e ao trabalho (BROUGÈRE, 2003, p. 202).
Com o Romantismo, essa representação da criança mudou e, conseqüentemente, a
concepção de jogo também. Para os românticos, a criança ligava-se ao primitivo, ao popular,
à verdade. Ela possuía “um dinamismo interno, fator de desenvolvimento do indivíduo que
encontra tudo em si mesmo” (BROUGÈRE, 2003, p.73). Este pequeno ser não era mais visto
como um adulto em miniatura, mas como “um adulto em germinação” (Ibidem).
A partir dessa visão positiva da criança como portadora de valores, as idéias de Jean-
Jacques Rousseau (1712 – 1778) e da corrente romântica mudam a concepção de educação e
de atividade espontânea da criança que prevaleciam até então.
Rousseau combatia a idéia de que a educação deveria ser voltada aos interesses do
adulto, defendia a importância da atividade física do educando nos processos formais de
ensino e do jogo como fonte de aprendizado, como podemos observar no texto abaixo:
Ame a infância; estimule seus jogos, seus prazeres, seus encantadores instintos... Considere o homem no homem e a criança na criança... A natureza
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deseja que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se tentarmos inverter a ordem, produziremos frutos precoces que não terão nem maturação nem sabor, e logo estarão estragados... A infância tem seus meios próprios de ver, pensar, sentir, que lhe são convenientes; nada é menos razoável que substituir o que nos é próprio (ROUSSEAU apud COURTNEY, 1980, p. 17).
Assim, o educador deveria considerar o jogo infantil como expressão por excelência
das atividades espontâneas desse ser. O jogo, nesse momento era tido como uma atividade
séria, capaz de revelar a existência de mecanismos psicológicos essenciais ao
desenvolvimento infantil. Mecanismo estes que apenas o jogo poderia pôr em andamento.
Logo, muitos estudiosos vão abordar o jogo, seja de forma biológica ou psicológica,
elaborando diversas teorias sobre o mesmo13.
O advento do processo de industrialização promoveu discussões sobre a relevância da
criatividade para o desenvolvimento de equipamentos tecnológicos necessários às indústrias,
como também para o aperfeiçoamento do design de mercadorias industrializadas. Portanto, a
presença do jogo na educação foi justificada por ser um estímulo à capacidade criativa do
indivíduo, já que nesse período iniciava-se um novo modelo de ensino que objetivava atender
as idéias democráticas de “liberdade de expressão” e “livre iniciativa”.
Desse modo, a criatividade – importante aspecto da inteligência humana – começou a
ser estimulada no âmbito educacional, com uma perspectiva liberal, progressista,
fundamentada nos princípios da Escola Ativa, movimento baseado nas idéias de Rousseau.
Esse movimento foi liderado pelo professor doutor norte-americano John Dewey (1859-
1952), da Columbia University.
Dewey criticou a educação tradicional, principalmente na sua ênfase ao
intelectualismo, a memorização e propôs uma educação pela ação. Para ele, as idéias são
hipóteses de ação, e são verdadeiras ao funcionarem como orientadoras dessa ação:
... a fonte primária de toda atividade educativa está nas atitudes e atividades instintivas e impulsivas da criança, e não na apresentação e aplicação de material externo, seja através de idéias de outros ou através dos sentidos; e, conseqüentemente, inúmeras atividades espontâneas das crianças, jogos, brincadeiras, mímicas... são passíveis de uso educacional, e não apenas isso, são as pedras fundamentais dos métodos educacionais (DEWEY apud COURTNEY, 1980, p. 42).
Muitos estudiosos defenderam o movimento Escola Ativa: Claparède, Decroly,
Freinet, Fröebel, Montessori, Pestalozzi, Piaget, Wallon, Vygotsky. A partir do século XX, 13 Diversas teorias do jogo podem ser encontradas no livro Jogo, Teatro e Pensamento de Richard Courtney.
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com a repercussão desse movimento, ele passou a ser conhecido no Brasil como Escola Nova,
tendo Anísio Teixeira como seu principal divulgador e defensor.
O romantismo ampliou a visão das significações do jogo, tornando possível fazermos
novas associações ao termo e possibilitando chamarmos de jogo novas atividades, como por
exemplo, a atividade dramática. Diversas abordagens do jogo na educação surgiram desde
então. Mas todas elas “unem-se em um único completo conceito – Educação Dramática”
(COURTNEY, 1980, p. 44). São exemplos de abordagens da atividade dramática: o método
dramático, o jogo dramático, o movimento criativo, a linguagem criativa e o jogo teatral.
A primeira formulação do método dramático de aprendizagem foi de Caldwell Cook,
e encontra-se no livro The Play Way (1917). Antes da formulação do Play Way, o trabalho
dramático desenvolvido na escola era a encenação de uma peça ou a leitura simples de um
diálogo durante a aula de Latim ou Francês. Cook alterou a realidade escolar inglesa ao
perceber que o jogo facilita a aprendizagem, pois atuar é uma forma concreta de aprender.
Assim, fundamentou o seu método em três princípios básicos:
1) Proficiência e aprendizado não advêm da disposição de ler ou escutar, mas da ação do fazer, e da experiência. 2) O bom trabalho é mais freqüentemente resultado do esforço espontâneo e livre interesse, que da compulsão e aplicação forçada. 3) O meio natural de estudo, para a juventude, é o jogo. (COOK apud COURTNEY, 1980, p. 45).
O método dramático consiste na encenação de situações para que o aluno assimile de
forma efetiva os conteúdos trabalhados nas aulas:
No estudo da história, por exemplo, o método implicava usar o livro-texto como um estímulo (como uma base para a história da história) que as crianças, então, representavam – o “faz-de-conta” permitia-lhes realmente compreender (e assim aprender) os fatos históricos (COURTNEY, 1980, p. 44).
O Play Way, método dramático de ensino, defende o ensino de Literatura inglesa por
intermédio da improvisação dramática e não pelo recurso da memorização textual. Entretanto,
não apenas em Literatura ele foi aplicado, mas em diversas disciplinas do currículo de muitas
escolas inglesas, como linguagem, história, arte e outras.
Outra atividade dramática é o jogo dramático. Para Peter Slade a atividade dramática
deve ser “uma ‘disciplina’ independente, com seu próprio lugar no horário escolar”
(COURTNEY, 1980, p. 46). Esse jogo é caracterizado pela improvisação: a criança cria sua
própria história e personificação na medida em que ela necessita. Se a improvisação voltar-se
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para a estória e personificação, haverá movimento e fala elaborados pelo sujeito de forma
criativa.
O movimento criativo foi um trabalho pioneiro de Rudolf Laban, que teve grande
impacto em alguns setores da educação. Laban percebeu que a primeira tarefa da educação
seria a de estimular o movimento “e que a dança consistia em seqüências de movimento nas
quais um determinado esforço da pessoa é a base de cada movimento” (COURTNEY, 1980,
p. 49). Assim, Laban diferencia oito esforços básicos que são torcer, pressionar, deslizar,
flutuar, sacudir, talhar, socar e pontuar, contendo cada um “três dos seis elementos de
movimento: forte, leve, contido, rápido, direto e flexível” (Ibidem).
Alan Garrard baseando-se na análise de movimento de Laban, promoveu uma forma
de teatro-dança que permite “à criança trabalhar dentro de tal estrutura técnica, de forma a
produzir teatro espontâneo” (COURTNEY, 1980, p. 49).
A linguagem criativa é outra atividade dramática que merece destaque por ter sido
elaborado de acordo com a relação linguagem e fala. Majorie Hourd observou que a criança
abaixo dos cinco anos de idade utiliza-se do jogo para identificar-se:
A dramatização é, ao mesmo tempo, o meio pelo qual ela se aventura a entrar nas características e vidas dos outros, e a maneira pela qual os incorpora como símbolos, na sua própria pessoa (HOURD apud COURTNEY, 1980, p. 50).
Segundo a estudiosa, o sentido dramático encontra-se sempre presente para as
crianças, quer elas estejam realizando uma leitura silenciosa ou acompanhando uma leitura,
contribuindo deste modo para o aperfeiçoamento da clareza e da fluência da fala infantil.
O jogo teatral é repleto de procedimentos específicos formulados por Viola Spolin,
em Improvisação para o Teatro, cujo objetivo é transmitir um “sistema de atuação que pode
ser desenvolvido por todos os que desejem se expressar através do teatro, sejam eles
profissionais, amadores ou crianças” (KOUDELA, 2004, p. 40). Essa atividade dramática
volta-se principalmente para o ensino de teatro, como disciplina curricular.
A Educação Dramática, conforme Courtney (1980), é pedocêntrica. Seu princípio está
em permitir que a criança evolua de forma completa e inteira; em reconhecer o jogo da
criança como “uma entidade em si mesma, com seu valor próprio” (COURTNEY, 1980, p.
56). Adota uma “abordagem evolucionista e, embora não necessariamente instintivo,
considera que haja nele uma base fisiológica e psicológica” (Ibidem). Ela ainda encara a
educação como um todo, admitindo que a imaginação dramática seja uma parte vital do
61
desenvolvimento humano, além de incitar-nos a reexaminar o sistema educacional com seus
currículos, programas, métodos e filosofias.
Dentre as muitas abordagens dramáticas criativas utilizadas para o benefício da
aprendizagem, destacaremos duas para um estudo mais atento: jogo teatral e jogo dramático.
4.3 Jogo Teatral
Os jogos teatrais forma elaborados, pioneiramente, por Viola Spolin, com o objetivo
“de ensinar a linguagem artística do teatro a crianças, jovens, atores e diretores” (KOUDELA,
1999, p. 15), isto é, incluir uma arte como disciplina curricular nas escolas. Suas pesquisas
duraram quase três décadas e envolveram crianças, adolescentes, adultos e idosos nos Estados
Unidos da América.
Sua proposta desenvolveu-se a partir da idéia de que a aprendizagem ocorre através da
experiência, intuição e espontaneidade. Segundo Spolin (2005, p. 3), o ser humano aprende
por meio da experiência, “e ninguém ensina nada a ninguém”. Ao experienciar, o indivíduo
envolve-se totalmente nos níveis intelectual, físico e intuitivo. Este último nível apesar de ser
o mais essencial para a aprendizagem é negligenciado. Spolin (2005, p. 3) explica o que seria
a intuição:
A intuição é sempre tida sendo uma dotação ou uma força mística possuída pelos privilegiados somente. No entanto, todos nós tivemos momentos em que a resposta certa “simplesmente surgiu do nada” ou “fizemos a coisa sem pensar”.
Muitas vezes, é em momentos de crise, perigo ou choque que a intuição ocorre no
sujeito, como resposta ou solução para a situação em questão. Assim, para Spolin (2005),
quando a resposta de uma experiência se dá no nível intuitivo é porque o indivíduo encontra-
se aberto a aprendizagem.
A espontaneidade é “um momento de liberdade pessoal”(SPOLIN, 2005, p. 4), é
quando o ser humano encontra-se frente a frente com a realidade e a explora e age “em
conformidade com ela” (Ibidem). Como o nível intuitivo só pode responder no imediato, é no
momento de liberdade, espontaneidade que ele produz suas dádivas.
62
De acordo com Spolin (2005), esses três níveis primordiais para a aprendizagem –
intelectual, físico e intuitivo - são alcançados com o jogo:
O jogo é uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o exato momento em que ela está verdadeiramente aberta para recebê-las (SPOLIN, 2005, p. 4).
O jogador ao envolver-se no jogo, desenvolve uma liberdade dentro do limite de
regras estabelecidas e elabora técnicas e habilidades próprias para o jogo. À medida que ele
vai interiorizando essas habilidades e essa liberdade ou espontaneidade, se transforma em um
jogador criativo.
Para que o jogo teatral aconteça é necessário ter sempre o acordo de grupo - elemento
propulsor da ação - em um problema a ser solucionado (o objeto do jogo ou Foco); em regras
do jogo que incluem a estrutura Onde, Quem, O Que. “A participação e o acordo de grupo
eliminam todas as tensões e exaustões da competição e abrem caminho para a harmonia”
(SPOLIN, 2005, p. 9), por isso o acordo de grupo é tão importante.
O Foco é o ponto de concentração do jogador; ele determina o objeto comum; elimina
modelos de comparação, critérios de qualidade, julgamentos de valor e respostas subjetivas.
Koudela (2004, p. 46) exemplifica o Foco da seguinte forma:
Tomemos o exemplo do jogo teatral Cabo-de-Guerra: o Foco desse jogo reside em dar realidade ao objeto, que nesse caso é a corda imaginária. A dupla de jogadores no palco mobiliza toda sua atenção e energia para dar realidade à corda. Quando a concentração é plena, a dupla sai do jogo com toda evidência de ter realmente jogado o Cabo-de-Guerra sem fôlego, com dor nos músculos do braço etc.
Logo, o Foco não é, no jogo teatral, fixação em um ponto determinado, mas “fazer
aparecer alguma coisa no palco (os alunos utilizaram apenas o palco nu, sem nenhum recurso
auxiliar como cenários, adereços de cena, etc.)” (KOUDELA, 2004, p. 54). Através do gesto
utilizado pelos alunos, a platéia conseguiu distinguir que a encenação envolvia o jogo Cabo-
de-Guerra.
O gesto e a platéia são dois elementos que fazem parte do jogo teatral. O primeiro é a
atitude consciente, a expressão corporal dirigida a observadores ou o movimento consciente
com intenção comunicativa ou significativa:
63
O gestus do teatro é dirigido à platéia, sua parte mais reverenciada. Desde os ensaios iniciais até o aplauso, a arte do ator, diretores, cenógrafo, e a de outros artistas participantes da criação estética é dirigida à platéia. No exercício artístico coletivo não existe mais esse gestus do teatro – a platéia é participante do processo de aprendizagem. (KOUDELA, 1999, p. 14)
A platéia assume um papel ativo, pois a experiência compartilhada no palco, também é
compartilhada com ela. É ela quem ao observar a atividade dramática faz uma avaliação
objetiva, visando à solução de um problema comum. Observemos o que Spolin (2005, p. 11)
afirma sobre a relevância da platéia:
Cada técnica aprendida pelo ator, cada cortina e plataforma no palco, cada análise feita cuidadosamente pelo diretor, cada cena coordenada é para o deleite da platéia. Eles são nossos convidados, nossos avaliadores e o último elemento na roda que pode então começar a girar. Ela dá significado ao espetáculo.
As regras do jogo visam libertar a espontaneidade. Elas são estabelecidas entre os
participantes do jogo e definem “leis que asseguram a reciprocidade dos meios pregados para
ganhar”(KOUDELA, 2004, p. 47). Ou seja, ao perceber “que não existe a imposição de
modelos ou critérios de julgamento e que o esquema é claro” (Ibidem, p. 48), o indivíduo
sente a confiança necessária para participar do jogo. Essas regras incluem a estrutura Onde,
Quem, O que. Termos usados para substituir os termos teatrais cenário, personagem e ação de
cena.
A estrutura Onde, Quem e O que ocorre conforme o estabelecimento do Foco do jogo
que se divide em Foco primário e Foco secundário. Para compreendermos essa estrutura,
tomemos como exemplo o usado por Koudela (2002), em que o Foco primário está no Onde e
o Foco secundário, no Quem e no O que:
O Foco primário no Onde é estabelecido pela identificação dos objetos físicos que o caracterizam. Para auxiliar na visualização do ambiente, o grupo elabora uma planta-baixa do palco, onde relaciona os objetos organizando assim o espaço do jogo. A planta-baixa, que define o ambiente, são acrescentados, através de acordo de grupo, Quem está dentro desse espaço, e O Que (uma atividade entre os jogadores) (KOUDELA, 2004, p. 55).
Segundo Koudela (2004), Theatre Game File (1975) de Viola Spolin representa uma
atualização de Improvisação para o Teatro (1963). Ele é o resultado de um projeto
experimental envolvendo o sistema de jogos teatrais que apresentou a contribuição do jogo
64
tanto na formação de educadores como na ampliação do universo perceptivo do educando.
Entretanto, outros estudiosos utilizaram-se da proposta de Spolin com o fim de trabalhar o
teatro enquanto assunto da disciplina de educação artística, como a estudiosa e pesquisadora
Koudela.
4.4 Jogo Dramático
Alguns professores tendem a confundir Jogo Teatral com Jogo Dramático,
considerando-os como sinônimos ou acreditando que são a mesma coisa.
Jogo dramático e jogo teatral diferem entre si tanto nos conceitos como nos
procedimentos de ensino. Mas, possuem uma característica comum: são excelentes meios de
estimular nossa capacidade de expressão.
Em 1954, Peter Slade publica o livro Child Drama com base em trabalhos
experimentais utilizando o jogo dramático. Seu trabalho foi desenvolvido na Inglaterra,
durante vinte anos. Ele define jogo dramático como uma forma de arte que detém um lugar
próprio. Isso porque o jogo é a brincadeira infantil em que a criança encontra a sua maneira de
“pensar, comprovar, relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver”,
utilizando-se em alguns momentos de uma caracterização e de uma situação emocional nítida
(SLADE, 1978, p. 18).
Slade (1978) delimita o campo do teatro realizado com a criança e apresenta como este
ser em formação se manifesta em cada campo, ao fazer uma distinção entre drama e teatro:
Teatro significa uma ocasião de entretenimento ordenada e uma experiência emocional compartilhada; há atores e públicos, diferenciados. Mas a criança, enquanto ainda ilibada, não sente tal diferenciação, particularmente nos primeiros anos – cada pessoa é tanto ator como auditório. Esta é a importância da palavra drama no seu sentido original, da palavra grega drao – “eu faço, eu luto”. No drama, i.e., no fazer e lutar, a criança descobre a vida e a si mesma através de tentativas emocionais e físicas e depois através da prática repetitiva, que é o jogo dramático. As experiências são emocionais e pessoais e podem desenvolver em direção a experiências de grupo. Mas nem na experiência pessoal nem na experiência de grupo existe qualquer consideração de teatro no sentido adulto, a não ser que nós a imponhamos (SLADE, 1978, p. 18).
65
Segundo Slade (1978), existem alguns momentos do jogo tão intensos que poderíamos
querer chamar de teatro, mas é drama. Pois, a ação ocorre em toda parte, não existindo a
distinção de quem deve representar e quem deve ficar assistindo. Nesse drama, duas
qualidades sobressaem-se: a absorção e a sinceridade. A primeira está relacionada com o fato
de o sujeito encontrar-se totalmente envolvido no drama; a segunda diz respeito à forma
completa de representar um papel com um sentimento intenso de realidade.
Essas duas qualidades manifestam-se a partir dos estágios mais precoces de duas
formas de jogo, o jogo pessoal e o jogo projetado.
O jogo pessoal utiliza o eu total. É marcado pela movimentação; caracterização;
experiência de representar com responsabilidade um papel; presença de barulho e esforço
físico; fala e música. Por existir uma fé absoluta no papel representado, o sujeito consegue
desenvolver a qualidade da sinceridade e, posteriormente, a liderança e o controle pessoal:
A isto deve-se acrescentar a arte de representar no seu sentido completo. A representação infantil também contém essas coisas, às vezes antes do ator saber como fazê-las. Misturam-se imaginação e imitação (SLADE, 1978, p. 20).
O jogo projetado é assinalado pelo uso da mente toda e o corpo não totalmente. A
ação tem lugar fora do corpo, objetos utilizados no ato de brincar “criam vida e exercem a
atuação” (SLADE, 1978, p. 19). “A fala e a música são empregadas às vezes,
intermitantemente, outras à guisa de comentário corrente” (Ibidem, p. 21). Esse jogo
desenvolve a qualidade de absorção e, posteriormente, a observação, concentração,
organização, paciência e governo sábio.
Segundo Slade (1978, p. 20), o jogo projetado precede o jogo pessoal, visto ser o primeiro
“mais evidente nos estágios mais precoces da criança pequena, que ainda não está pronta para
usar o seu corpo totalmente”. Já o segundo, o jogo pessoal, pode ser identificado a partir dos
cinco anos de idade. Ele ainda afirma que essas duas formas de jogo “acrescentam qualidades
uma à outra e também à pessoa que está jogando” e que o ser humano é feliz ou infeliz
durante toda sua vida “na medida em que descobre para si mesmo a mistura correta dessas
duas maneiras tão distintas de usar a energia” (SLADE, 1978, p. 20).
Japiassu14 chama jogo pessoal como faz de conta com personificação e jogo projetado
como faz de conta projetado. Conforme o pesquisador, o faz de conta com personificação
14 Texto on-line acessado em outubro de 2006: www.ricardojapiassu.pro.br
66
ocorre quando a criança ao brincar experimenta papéis sociais do seu meio cultural, como
mãe, pai, médico, motorista, etc.; procura agir “como se fosse” uma personagem, como a
heroína de um conto de fadas, o super-herói de TV ou quadrinhos, etc.; busca representar
objetos, como automóveis; ou seres vivos reais e imaginários, como animais, plantas,
alienígenas; ou elementos e fenômenos da natureza, como fogo, trovão, sempre os
antropomorfizando. Enquanto que o faz de conta projetado pode ser exemplificado quando a
criança brinca com objetos projetando-se neles a partir de uma trama subjetiva e intramental,
como a manipulação de bonecos soldados durante uma “batalha”.
Enfim, o jogo dramático tem como objetivo conduzir o indivíduo a descobrir a vida e a si
mesmo através das suas experiências pessoais e emocionais, valorizando a espontaneidade
que é desenvolvida durante o jogo por meio das qualidades de absorção e sinceridade, e
propiciando, deste modo um aquecimento para que se desenvolva a criatividade e a
aprendizagem, quando utilizado no âmbito escolar, principalmente.
4.5 Jogo dramático e conto popular
No primeiro capítulo mencionamos a dificuldade que existe atualmente em formar leitores
que sintam prazer pelo ato de ler. Enfatizamos juntos com Magnani (1989), que a falta de
hábito de leitura é um dos obstáculos para a realização de uma aprendizagem efetiva.
Destacamos, ainda, alguns empecilhos para que o gosto pela leitura ocorra no educando, e
propomos como um ponto de partida a aplicação do jogo dramático como recurso pedagógico
a fim de alterar ou amenizar essa realidade.
Os motivos que nos leva a acreditar que o jogo pode vir a aguçar o prazer pela leitura são
diversos, e alguns já foram expostos no decorrer desse capítulo, em virtude das próprias
características do jogo. No entanto, acreditamos ser relevante citarmos a importância do jogo
como estímulo à imaginação mencionada por Sosa (1978). O estudioso distingue jogos
motores, interessantes à mobilidade; jogos sensitivos, relacionados à educação dos sentidos;
jogos intelectuais, próprios ao desenvolvimento da inteligência; jogos afetivos, apropriados ao
cultivo da sensibilidade e da vontade e, jogos artísticos, que satisfazem à imaginação. Sobre
esses tipos de jogos, Sosa declara:
67
Considerados do ponto de vista de sua função educativa, os jogos, além de tonificarem o corpo e desenvolverem em geral o espírito, proporcionam novas imagens, aguçam as faculdades de observação e o poder de combinação e, além disso, exercem grande influência sobre o caráter, enquanto fontes de contentamento e prazer (SOSA, 1978, p. 83).
O jogo artístico aludido por Sosa (1978, p. 84) ocorre quando a criança brinca com
objetos e animais dando-lhes caráter, personalidade, fala e, também, quando “cria gênio no ar,
brinquedos absolutamente fictícios, espécies aladas e inverossímeis”.
Assim como o jogo, a leitura também pode ser um estímulo à imaginação, como nos
diz Aguiar (2003, p. 254):
Ao mergulhar na leitura, entra em outra esfera, mas não perde o sentido do real e aí está, a nosso ver, a função mágica da literatura: através dela vivemos uma outra realidade, com suas emoções e perigos, sem sofrer as conseqüências daquilo que fazemos e sentimos enquanto lemos. Essa consciência do brinquedo que a arte é leva-nos a experimentar o prazer de entrar em seu jogo.
Aguiar (2003) ainda afirma que a leitura é um jogo em que existe a possibilidade de o
leitor fazer combinações por meio das peças escolhidas, das regras, ou seja, da montagem do
texto realizada pelo autor. Ao concordar com as regras desse jogo, a leitura faz sentido para o
leitor e o “transporta para o mundo imaginário criado” (AGUIAR, 2003, p. 254).
Todavia, a leitura para o educando precisa superar enquadramentos, em sua maioria
esvaziados de sentido, para ocasionar o ensejo de se viver, ouvir e sentir o mundo de uma
forma lúdica e significativa. Ela deve ter para o aluno a mesma importância que possui a
brincadeira. A fim de tentar amenizar essa realidade para o discente, propomos um trabalho
em sala de aula com o jogo dramático e o conto popular.
A utilização do jogo dramático no âmbito escolar provoca a espontaneidade e o
comprometimento com o jogo. Logo, se ele estiver presente nas aulas que envolvem a leitura
de obras, poderá incitar o educando a participar da aula mais efetivamente, “atentar para a sua
própria ação, e a descobrir seu papel no jogo da leitura” (AGUIAR, 2003, p. 254).
Diversos são os estudiosos, pesquisadores e educadores que afirmam ser o jogo um
importante aliado para aguçar o clima de espontaneidade e criatividade, podendo propiciar ao
aluno atingir a aprendizagem e o prazer pela leitura, como Pinheiro & Lúcio (2001, p. 86):
À dimensão lúdica e prazerosa do jogo articula-se a descoberta das virtualidades individuais e grupais – capacidade de inventar, de descobrir, de
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experimentar qualquer aventura sem os riscos da realidade. (...) Trata-se de uma improvisação a partir de qualquer situação.
Olga Reverbel (1989) salienta que o jogo dramático aplicado na sala de aula auxilia o
desenvolvimento das capacidades de expressão do educando. Este, ao jogar, “se diverte e
libera espontaneamente suas fantasias e seus fantasmas interiores” (REVERBEL, 1989, p.
108). O aluno ao dramatizar uma história, “ao contrário do ator, que finge ser a personagem, é
a personagem que inventa ou imita” (Ibidem).
Outra distinção que ocorre entre o ator e o não-ator, durante a dramatização de um
texto, está no uso da linguagem teatral explicada por Boal (2004, p. IX):
Os atores falam, andam, exprimem idéias e revelam paixões, exatamente como todos nós em nossas vidas no corriqueiro dia-a-dia. A única diferença entre nós e eles consiste em que os atores são conscientes de estar usando essa linguagem, tornando-se, com isso, mais aptos a utilizá-la. Os não-atores, ao contrário, ignoram estar fazendo teatro, falando teatro, isto é, usando a linguagem teatral, assim como Monsieur Jourdain, o personagem de O burguês fidalgo de Molière, ignorava estar falando em prosa, quando falava.
Ao se restringir à transmissão pura e simples da palavra, o educador não estimula o
educando a desenvolver o seu comportamento social, seu juízo crítico e sua criatividade. Mas
ao utilizar a atividade dramática em suas aulas poderá ter essa realidade alterada, porque ao
usarmos a linguagem teatral estaremos usando “a linguagem humana por excelência que é a
mais essencial a nossa vida” (BOAL, 2004, p. IX).
O gênero narrativo escolhido por nós para, ao lado do jogo dramático, provocar no
educando o gosto pela leitura e, conseqüentemente, pela literatura, foi o conto popular.
Nossa opção pela Literatura Popular deve-se ao fato de acreditarmos que as
manifestações populares podem auxiliar a educação do aluno, como esclarece Guimarães
(2002, p. 153):
Educação e folclore podem ser tratados como termos complementares, se entendermos que as manifestações folclóricas fazem parte da nossa cultura e, como tal, podem contribuir para a formação do caráter humano quando nos oferecem as oportunidades de vivenciar experiências cotidianas, nas quais o bem comum é sempre uma prioridade.
Além disso, enfatizamos que a escola detém papel de relevo no que tange ao
reconhecimento da cultura popular, considerando o que preconiza o texto dos Parâmetros
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Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000, p. 53-4) no tocante a uma das funções precípuas do
ensino da literatura e da arte:
[Configura-se em um dos objetivos do ensino da arte] Compreender e saber identificar a arte como fato histórico contextualizado nas diversas culturas, conhecendo, respeitando e podendo observar as produções presentes no entorno, assim como as demais do patrimônio cultural e do universo natural, identificando a existência de diferenças nos padrões artísticos e estéticos.
Ao entrar em contato com um conto popular, o educando pode refletir sobre o
processo de evolução do ser humano, valorizar a diversidade cultural e tomar conhecimento
sobre conceitos éticos.
De acordo com Cavalcanti (2002, p. 66), os contos populares fazem sentido para o ser
em formação “porque dizem respeito aos diversos aspectos e conteúdos experimentados
simbolicamente” por ele. Isso ocorre porque essas narrativas são repletas da experiência que
passa do contador ao ouvinte.
Enfim, apresentamos a possibilidade de o educador trabalhar em sala de aula o conto
popular e o jogo dramático juntos, visando uma aula agradável, estimulante para a apreciação
da leitura e para a formação de conceitos éticos. Visto que por meio do conto popular o aluno
pode conhecer valores que estão caindo em desuso e pode tornar-se mais humano. E quanto
ao jogo como recurso didático-pedagógico, salientamos que ele pode auxiliar na transmissão
de informações, pois tem o lúdico como um elemento indispensável ao processo de
aprendizagem, além de poder proporcionar o aquecimento para que se desenvolva a
espontaneidade, criatividade e aprendizagem no educando.
70
5 CONTO E JOGO: A HORA E A VEZ DA CULTURA POPULAR
5.1 “Contar histórias é oferecer o pão, mas não o mesmo pedaço”
Antes de iniciarmos a exposição da experiência realizada na escola, apresentamos um
estudo de alguns contos populares trabalhados em sala de aula. Os contos populares estudados
foram: História da Carochinha e Príncipe Santo João, registrados no livro Conto popular e
comunidade narrativa, de Francisco Assis de Sousa Lima; Os compadres corcundas; O
caboclo, o padre e o estudante; Quirino, vaqueiro do rei; O conselho do Dr. Doido; A Moura
Torta e Bicho de Palha que podem ser lidos no livro de Câmara Cascudo, intitulado Contos
Tradicionais do Brasil.
O conto História da Carochinha narra a tristeza de D. Carochinha ao perder seu amigo
D. Ratim. Como D. Ratim estava com muita fome, tentou tirar alguns caroços de feijão e caiu
na panela, que se encontrava fervendo. O choro de D. Carochinha comoveu a janela, a
laranjeira, o pássaro, o capim, o boi, a fonte, a negra e o homem; todos manifestaram de
alguma forma o seu pesar: a janela passou a abrir e fechar; a laranjeira ficou sem folha; o
pássaro caiu a pena; o capim secou; o boi quebrou a ponta do chifre; a fonte secou; a negra
quebrou o pote e o homem queimou o bigode.
Essa narrativa é caracterizada pela presença de diversas personagens; encadeamento de
ações realizadas pelas personagens e sempre repetidas pelo narrador na fala de alguma
personagem, como no trecho: “É porque D. Ratim morreu, D. Carochinha chora, janela abre e
fecha, laranjeira caiu a folha, passarinho caiu a pena, capim secou, boi quebrou a ponta do
chifre e eu sequei” (LIMA, 1984, p. 168). Há também a presença do humor quando, no fim do
conto, o homem diz: “Então eu queimo o bigode” (Ibidem). A narrativa está disposta em
discurso direto:
Foi pra fonte beber água. Chegando lá a fonte perguntou: -- Que é que tem o boi, que quebrou a ponta? -- É porque D. Ratim morreu, D. Carochinha chora, a janela abre e fecha, a laranjeira caiu a folha, passarinho caiu a pena, capim secou e eu quebrei o chifre (LIMA, 1984, p. 168).
71
O conto Príncipe Santo João relata a história de João, filho de pescador, que ainda
menino foi “adotado” pelo rei, seu padrinho, para viver no palácio. Isso ocorreu a pedido da
princesa, por sentir-se muito só e desejar um amigo. Quando cresceram, João e a princesa,
iniciaram um namoro, fazendo com que o rei se aconselhasse com o conselheiro. Este propôs
que seu filho e João partissem em navios distintos para fazer fortuna durante um ano e aquele
que retornasse com maior fortuna se casaria com a princesa.
Interessado que seu filho fosse o vencedor dessa aventura, o conselheiro deu um barco
muito fraco para João, que não passou muito tempo em alto mar. Chegando a uma praia, ele
adormeceu e sonhou com uma voz feminina que lhe dizia o que fazer ao acordar. Seguindo as
recomendações da voz, João chegou a um povoado necessitado de ajuda médica. Ele não era
médico, mas possuía folhas de uma planta medicinal que foi mencionada no sonho para que
trouxesse consigo. Curou a todos que precisavam inclusive o rei do povoado, que por gratidão
deu a João metade de sua fortuna e um navio para que retornasse à sua casa.
Ao término do prazo de um ano, João e o filho do conselheiro já podiam ser vistos
aproximando-se do palácio. O filho de pescador por ter sido bem-sucedido em sua tarefa,
casa-se com a princesa que o humilha na noite de núpcias, pois ele preferiu rezar a dar-lhe
atenção. Com isso, João parte em seu navio para o povoado que lhe acolhera anteriormente.
A princesa sentindo falta do marido viaja a pé e trajada de homem, com o fim de
encontrar seu marido. Ela passa por situações difíceis, chegando perto até de morrer, quando é
salva por João. O casal faz as pazes e retorna ao palácio.
Essa narrativa é longa e nela podemos observar algumas funções designadas por Propp
(1997) no seu estudo sobre o conto popular, como: a realização de uma tarefa que tem como
resposta o casamento de acordo com o trecho: “vamos preparar dois navios. João segue com
um e o seu filho com o outro. Vão andar um ano no mar. O que fizer melhor fortuna no
decorrer do ano se casa com a princesa” (LIMA, 1984, p. 138); a presença de um auxiliar
mágico, a voz feminina: “Quando ele desmaiou, ele ouviu uma voz falar com ele. A voz de
uma mulher...” (LIMA, 1984, p. 139); a obtenção do recurso mágico: “tire um pouco das
folhas daquele pé de fruta e leve, que o pé daquela fruta cura toda enfermidade... um pouco
dessa água que cura todo mal” (Ibidem); uma desgraça e a reação a ela, quando após ser
humilhado pela esposa, João retorna ao povoado que o acolhera na realização da tarefa, e a
princesa, percebendo que havia perdido o marido, parte em busca dele: “Fez uma maca, fogou
a maca nas costa e saiu de alpercata viajando atrás do homem” (Ibidem, p. 142).
Outro elemento presente no conto é a religiosidade que pode ser notada quando João
parte para cumprir a tarefa em um barco que está quebrado e diz: “Sabe, Nossa Senhora, se
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essa gaiola encostar naquela areia acolá, eu saio de dentro dela e nunca mais eu cruzo meus
pés dentro dela” (grifo nosso) (LIMA, 1984, p. 139); ao chegar em um povoado, passa a curar
as doenças de todos e com isso as pessoas o chamam de santo: “E na saída ele cobriu a cidade
de luto, de sentimento de João, de Príncipe Santo João” (grifo nosso) (Ibidem, p. 141), e após
o casamento com a princesa, na noite de núpcias, quando põe-se a rezar: “...João tava sentado
cuidando em oração, que com certeza ele tinha costume de orar...” (grifo nosso) (Ibidem).
Em Os Compadres Corcundas, o corcunda pobre, ao ir caçar, adormeceu na floresta e
quando acordou já era noite. Com medo de voltar para casa, ficou escondido até que ouviu
uma cantoria que pensou ser de uma desmancha de farinha. Seguiu as vozes e encontrou
pessoas esquisitas cantando. Como era metido a improvisador e batedor de viola, cantou um
verso a mais do que era cantado pelo povo e este o ouviu. Ao ser descoberto, o velho daquele
povo tirou-lhe a corcunda e deu-lhe dinheiro em troca do verso.
O corcunda pobre quando encontrou o corcunda rico contou-lhe o ocorrido. O amigo
invejoso foi procurar as pessoas esquisitas de que seu compadre lhe falara para cantar outro
verso e, em troca, ter sua corcunda retirada e ganhar dinheiro. Ao fazer isso, o velho deu-lhe
mais uma corcunda e o expulsou de lá.
Esse conto foi classificado por Cascudo como conto de encantamento, caracterizado
pelo elemento sobrenatural. Este elemento pode ser observado na narrativa quando o velho
retira a corcunda do pobre: “Passou a mão nas costas do caçador e este tornou-se esbelto como
uma rapaz, sem corcunda nem nada” (CASCUDO, 2001, p. 32), e quando acrescenta uma
corcunda no rico: “O velho passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a outra, aquela de
que o compadre pobre se livrara” (Ibidem, p.33). O velho materializa os extremos espirituais,
ele seria um bruxo, visto na versão portuguesa dessa narrativa, o povo “esquisito” ser formado
por bruxas.
A religiosidade também está presente nesse conto. É por ferir a “crença” ao cantar o
verso “Sexta, sábado e domingo! Também!” (CASCUDO, 2001, p.32), que o corcunda rico é
castigado: “você não sabe que gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que
morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o filho do pecado, e domingo, dia em que
ressuscitou quem nunca morre?” (Ibidem, p. 33).
No conto O cabloco, o padre e o estudante, temos esses três personagens do título
como viajantes pelo sertão. Eles se hospedam em uma casa humilde e oferecem-lhes apenas
um pequeno pedaço de queijo de cabra para comer. Decidido de que o alimento não seria
suficiente para dividir em três pedaços, o padre disse que comeria o queijo aquele que tivesse
o sonho mais bonito. Ao acordarem, contaram o sonho o padre e o estudante. Chegada a vez
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do caboclo, esse disse-lhes que os dois companheiros de viagem o mandaram comer o queijo
durante o sonho e, como parecia muito real, ele o comeu.
Na classificação de Cascudo, essa narrativa faz parte das facécias. Estas são marcadas
pelo humor e pela situação imprevista em que os vitoriosos são os pobres: “a tradição popular
encarna infalivelmente os vitoriosos do amor e da fortuna nos pobres, nos humildes, nos
desprotegidos” (CASCUDO, 2006, p. 219).
Assim, comprovamos o humor presente no conto com a passagem:
-- Eu sonhei que via seu padre subindo a escada e seu doutor lá dentro, rodeado de amigos. Eu ficava na terra e gritava: -- Seu padre, seu doutor, o queijo! Vosmincês esqueceram o queijo. Então, vosmincês respondiam de longe, do céu: -- Come o queijo, caboclo! Come o queijo, caboclo! Nós estamos no céu, não queremos o queijo. O sonho foi tão forte que eu pensei que era verdade, levantei-me, enquanto vosmincês dormiam, e comi o queijo... (CASCUDO, 2001, p. 218).
A situação imprevista é notada pelo fato de que o padre, com seus recursos oratórios,
seria o ganhador do pedaço de queijo e não o caboclo, como ocorreu.
O conto Quirino, vaqueiro do rei trata da história de um vaqueiro fiel a seu patrão,
incapaz de mentir, que passa por uma provação. Um fidalgo sentindo inveja do Rei por ter um
empregado tão fiel, aposta com o Rei que Quirino é capaz de mentir. Então, o fidalgo pede a
sua filha Rosa que seduza o vaqueiro e o faça matar o animal mais precioso do rei, Boi
Barroso.
Rosa engravida de Quirino e afirmando sentir desejos, exige comer o fígado do Boi
Barroso. O vaqueiro mata o boi e quando se encontra com o rei, conta-lhe a verdade. O patrão,
feliz pela fidelidade de seu empregado, dá-lhe o dinheiro que recebeu da aposta como dote
para que Quirino case-se com Rosa.
Cascudo classifica essa narrativa como conto de exemplo, pois ele transmite uma
mensagem sensível e popular sobre falar sempre a verdade. E mostra que o ser humano
dominado pela inveja é castigado, pois no conto o fidalgo perde o dinheiro:
Quirino contou toda a história e , quando terminou, disse: - Assim é que fala Quirino, Vaqueiro do Rei! O fidalgo ficou preto de vergonha. O rei findou dizendo: - Quirino, Vaqueiro do Rei, o que eu ganhei na aposta com esse amigo é o dote para casares com a mãe do teu filhinho... (CASCUDO, 2001, p. 140).
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Em O conselho do Doutor Doido, um rapaz rico e solteiro ao decidir se casar, começou
a buscar uma noiva. Ele conheceu três mulheres e ficou em dúvida sobre com qual delas
deveria casar-se. Então, procurou o padre-vigário para aconselhar-se e este o mandou
conversar com o Doutor Doido.
O rapaz explicou ao Doutor Doido a sua dúvida e mencionou as mulheres: uma era
mulher-dama, a outra viúva e a terceira moça donzela. O Doutor aconselhou-o a casar-se com
a donzela e assim ele o fez.
Esse conto também está classificado por Cascudo como facécia. O humor nessa
narrativa está no comportamento do Doutor Doido, que não pára de andar de um lado a outro
da calçada: “O Doutor veio cá e foi lá, e, sem parar a marcha, respondeu...” (CASCUDO,
2001, p. 237), e na resposta que dá ao rapaz: “-- Quem sempre foi, sempre é! Besta velha não
se acostuma em pasto novo! Quem nunca foi, vai-se fazer!” (Ibidem).
Por trás do humor dessa narrativa existe um forte pensamento popular sobre o tipo de
mulher com que o homem deve se casar. A mulher-dama não inspira confiança; a viúva não
conseguirá se acostumar a uma nova vida de casada; já a donzela, inexperiente quanto a
relacionamentos amorosos, seria a opção correta.
Esta narrativa é uma forma de guia matrimonial em que há uma valorização da donzela
por ser ela apta ao ensinamento marital, visto não possuir experiência de relacionamentos
anteriores como ocorre com a mulher-dama e a viúva.
Em A Moura Torta, um príncipe ao ajudar uma velha dando-lhe esmola e carregando-
lhe um feixe de gravetos, ganha da mesma três laranjas com a recomendação de só abri-las
perto das águas correntes.
O príncipe não seguiu a recomendação da velha ao abrir duas laranjas, mas a seguiu
quando abriu a terceira laranja. Esta se transformou numa linda moça por quem o príncipe se
apaixonou. Estando a moça sem roupas, o príncipe pediu que ela subisse em uma árvore, a
beira do rio, enquanto ele iria ao palácio buscar vestimentas para cobrir-lhe o corpo.
A moça estando escondida em cima da árvore observou uma escrava negra, cega de
olho, chamada Moura Torta, encher um pote com água do rio. A Moura ao ver o reflexo da
moça na água achou que tinha tornado-se bonita e voltou ao palácio sem o pote, dizendo que
estava formosa. Como não havia mudado em nada sua aparência, as pessoas brigaram com ela
e a mandaram de volta ao rio.
Novamente a Moura Torta viu o reflexo da moça na água, mas desta vez ouviu a
gargalhada da boa moça. Fingindo-se de amiga, a escrava iniciou uma conversa carinhosa com
a moça que lhe contou sobre o encantamento e o príncipe. A Moura aproveitou um momento
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de distração da jovem e fincou um alfinete encantado na cabeça dela, fazendo-a transformar-se
em uma rolinha.
Quando o príncipe chegou ao rio encontrou a Moura Torta passando-se pela moça. Ela
explicou-lhe que sua feiúra ocorreu devido ao sol ter queimado sua pele e aos espinhos que
furaram seu olho. O príncipe a levou ao palácio e anunciou o casamento. Mas antes que este
acontecesse, o príncipe inquietou-se com uma rolinha que aparecia sempre no jardim e voava
ao redor dele. Assim, pediu a um criado que a capturasse, e tendo-a em suas mãos descobriu o
alfinete e retirou-o da cabeça do pássaro. Este voltou a ser a moça com quem o príncipe casou.
Quanto à Moura Torta, ele a condenou a morrer queimada e ter suas cinzas atiradas ao vento.
De acordo com a proposta de análise de Propp (1997), encontramos nesse conto as
funções partida de herói: “Era uma vez um rei que tinha um filho único, e este, chegando a ser
rapaz, pediu para correr mundo”; recepção do objeto mágico: “Meu netinho, não tenho nada
para lhe dar: leve essas frutas para regalo, mas só abra perto das águas correntes”
(CASCUDO, 2001, p. 122).
O príncipe recebe o objeto mágico, três laranjas, em retribuição ao auxílio que
concedeu à velha: “O Príncipe, com pena da velhinha, deu dinheiro bastante e colocou nos
ombros o feixe de gravetos, levando a carga até pertinho das ruas” (CASCUDO, 2001, p.
122). Dessas três laranjas, apenas a terceira conseguiu virar uma moça, pois o príncipe pode
dar-lhe água.
A moça é a recompensa do príncipe por ajudar o próximo, mas ela também se torna
vítima, quando por ingenuidade relata sobre o encantamento e sobre o príncipe a Moura Torta
e esta a transforma em rolinha. Todavia, é salva pelo herói que descobre um caroço na sua
cabeça e puxa-o: “coçou a cabeçinha da avezinha e encontrou um caroço duro. Puxou e saiu
um alfinete fino. Imediatamente a moça desencantou-se...” (CASCUDO, 2001, p. 124).
A Moura Torta foi punida pelo príncipe que mandou prendê-la “e contou a todo mundo
a perversidade dela, condenando-a a morrer queimada e as cinzas atiradas ao vento”
(CASCUDO, 2001, p. 124).
Mais um conto classificado como de encantamento por Cascudo é Bicho de Palha em
que uma jovem chamada Maria passa a ser maltratada quando o pai casa-se novamente.
Cansada de tanto sofrimento, ela decide fugir de casa e procurar um trabalho bem longe dali.
Como conversava sempre com uma velhinha perto do rio, esta deu-lhe uma varinha mágica e
pediu-lhe que se cobrisse com uma capa. Maria encontra trabalho de serviçal num palácio e
logo se apaixona pelo príncipe.
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Um baile de três dias é anunciado pelo reino vizinho e o príncipe comparece todos os
dias. Durante o baile, depois de ter usado a varinha para adquirir vestido e sapatos, Maria
dança com o príncipe. Este se interessa pela moça e a questiona sobre o lugar onde mora
recebendo respostas diferentes em cada dia: Rua das Bacias, no primeiro dia; Rua das Toalhas,
no segundo dia e Rua dos Pentes, no terceiro dia. As respostas referiam-se aos objetos pedidos
por ele – bacia, toalha, pente - à serviçal antes de ir ao baile.
Quando tentava fugir da festa, Bicho de Palha perde um sapatinho. O príncipe
encontra-o e promete casar-se com aquela que o usasse perfeitamente. Assim, todas as moças
com idade de se casar provam o sapatinho. Chegada a vez de Maria, ela pede à varinha que
apareça o vestido da última noite de festa por baixo da capa de palha. Calçando o sapato e
retirando a capa, todos a reconhecem e a protagonista casa-se com o príncipe.
Esse conto está classificado por Cascudo como conto de encantamento. Nele podemos
observar algumas funções mencionadas por Propp (1997), como: a desgraça e reação à mesma
quando o pai de Maria casa-se e sua nova esposa passa a tratar mal a protagonista e esta
resolve fugir de casa: “Como a madrasta fosse se tornando mais violenta e brutal, a enteada
resolveu abandonar a casa e ir procurar trabalho longe daquele inferno” (CASCUDO, 2001, p.
46); a presença do auxiliar que é representado pela velhinha – no fim do conto descobre-se
que ela era Nossa Senhora - com quem Maria conversava e o objeto mágico oferecido pelo
auxiliar: “-- Leva esta varinha, Maria, e, quando estiveres em perigo... E tudo sucederá como
pedires” (Ibidem).
Outro elemento presente na narrativa é o religioso que pode ser observado em três
momentos: o primeiro, quando Maria sofre com o maltrato da madrasta: “A vida ficou
insuportável para a moça que se consolava rezando e chorando” (grifo nosso) (CASCUDO,
2001, p 46); o segundo momento está na forma como a protagonista deve realizar o pedido à
varinha: “minha varinha de condão, pelo condão que Deus te deu, dai-me...” (grifo nosso)
(Ibidem) e o terceiro encontra-se no final do enredo, quando o narrador declara: “Bicho de
Palha contou sua história, e a varinha de condão, cumprida a vontade da velhinha, que era
Nossa Senhora, desapareceu, deixando-os muito felizes na terra” (grifo nosso) (CASCUDO,
2001, p. 49).
Os contos populares abordados foram utilizados em pesquisa de campo, conforme
afirmamos inicialmente. A seleção das narrativas ocorreu de acordo com a apreciação que os
educandos apresentavam durante os encontros e, segundo a classificação de Cascudo, são os
contos de encantamento e as facécias que mais os agradam. A seguir apresentamos o relato de
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experiência realizada em uma escola pública da cidade de Fortaleza, Ceará, unindo conto
popular e jogo dramático.
5.2 Contexto da escola
A experiência ocorreu em turmas de 6ª série15 do Ensino Fundamental II, durante o
turno da manhã, na Escola de Ensino Fundamental e Médio Marechal Juarez Távora,
localizada no bairro de Fátima, em Fortaleza – CE. Os alunos da série em questão provinham
das favelas Maravilha e Borba, e também dos bairros Fátima e Centro.
O ambiente físico dessa escola estava marcado, no período, por salas de aula com
cadeiras de madeira antigas, lousa dividida em metade a giz e a outra a pincel – as professoras
utilizam essa segunda opção. A estrutura física da escola estava sendo pintada; a quadra de
esportes, a sala de vídeo, o auditório e a biblioteca passavam por reformas. Entretanto,
conseguimos perceber que a biblioteca possuía um espaço muito amplo, mas com pouca
luminosidade para auxiliar as leituras realizadas no local.
Em face da reforma que estava sendo realizada durante o período do nosso trabalho,
muitos alunos achavam-se irritados por causa de dores de cabeça e crises alérgicas provocadas
pela poeira e pelo cheiro de tinta que se instalou por toda a escola, principalmente nas salas
das 6ª e 7ª séries, pois situavam-se próximas da quadra de esportes, da biblioteca e do
auditório.
As aulas na 6ª série do Ensino Fundamental II eram ministradas por duas professoras
que dividiam entre si as disciplinas: uma leciona língua portuguesa, geografia, educação
artística e língua inglesa; a outra, matemática, ciências, história e educação religiosa. A
disciplina de educação física era ministrada por uma terceira professora que lecionava apenas
aulas de atividade física.
Observamos as aulas de língua portuguesa que são organizadas pela professora da
seguinte forma: duas aulas para interpretação de textos e leitura; duas para o ensino de
gramática e uma para produção textual. Ao todo, a turma de 6ª série possui cinco aulas por
15 A nomenclatura das séries escolares foi alterada no ano 2007 porque a série Alfabetização deixou de pertencer à Educação Infantil para integrar o Ensino Fundamental I. Deste modo, a antiga Alfabetização passa a ser conhecida como 1ª série do Ensino Fundamental I, e seguindo-se a ordem, a antiga 5ª série do Ensino Fundamental II agora é 6ª série do Ensino Fundamental II.
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semana com duração de cinqüenta minutos cada. O livro adotado para essa disciplina – todos
os alunos o possuíam – era Português para todos, de Ernani Terra e Floriana Cavallete.
Duas 6ª séries funcionavam no turno da manhã: a turma A formada por trinta e oito
alunos dentro da faixa etária, entre 11 e 12 anos, e a turma B composta por trinta e dois alunos
fora de faixa etária, entre 13 e 16 anos, dos quais dois alunos eram portadores de necessidades
especiais.
A experiência inicialmente organizou-se a partir de oito encontros que aconteceriam às
sextas-feiras durante dois meses. No entanto, como foi deflagrada a greve por parte dos
professores estaduais, o corpo docente da escola decidiu primeiramente reduzir em dez
minutos o tempo de cada aula, e em seguida, por paralisar totalmente as atividades. Com isso,
tivemos nossa atividade interrompida temporariamente.
Ao término da greve, no mês de agosto, retomamos a pesquisa com dificuldades, pois
nos meses de agosto e setembro aconteceram na escola atividades esportivas e culturais.
Nesse caso, os professores necessitavam trabalhar com projetos em suas aulas, dificultando o
nosso acesso às aulas. Assim, para que não ocorresse prejuízo a nenhuma das partes, a
professora de língua portuguesa da 6ª série do Ensino Fundamental II sugeriu que nosso
trabalho fosse realizado à freqüência de três aulas por duas semanas a fim de podermos
concluí-lo no tem previsto.
A professora de linguagens e códigos presenciou por ordem da direção da escola,
todos os encontro durante a aplicação de nossa pesquisa, dos quais alguns foram registramos
com o auxílio de câmera filmadora.
5.3 Relato de uma experiência: conto popular em jogo
5.3.1 Primeiro encontro
Antes de iniciarmos o trabalho de campo propriamente dito, observamos uma aula de
língua portuguesa ministrada pela professora a fim de conhecermos um pouco a metodologia
utilizada por ela, como também a participação e motivação dos alunos durante a aula.
A professora tinha por hábito iniciar suas aulas expondo na lousa uma agenda
informando as atividades que aconteceriam no decorrer da aula que, neste dia, era voltada
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para o estudo de texto e leitura. Assim, a professora trabalhou o texto Assalto, encontrado no
livro de português adotado, enfatizando o vocabulário e, em seguida, a leitura oral. Ela
desejava que os educandos lessem dramatizando o texto, procurando abordar o conteúdo
gramatical em estudo naquela fase: pontuação.
Quanto à participação dos educandos durante a atividade coordenada pela professora,
percebemos que alguns discentes da 6ªA tentaram seguir as orientações estabelecidas,
enquanto os alunos da 6ª B não o fizeram nem durante a proposta de leitura individual nem de
leitura coletiva.
Os alunos da 6ª A apreciavam uma aula que envolvesse textos dramáticos; trabalhos
em equipe e gostavam de expressar suas opiniões.
Posteriormente, ao longo da aplicação de nosso trabalho de campo, constatamos que
os educandos da 6ª B apresentavam-se desmotivados para a aula, não participavam de
nenhuma atividade proposta pela professora. Eles eram violentos, agrediam-se
constantemente seja de forma verbal, seja de forma física; não respeitavam a docente; alguns
se assumiam como usuários de drogas e, muitas vezes chegavam à sala de aula drogados.
5.3.2 Considerações sobre a pesquisa aplicada à 6ª série A
Após as apresentações ocorridas entre docente e educandos da 6ª A, explicamo-lhes
que desenvolveríamos uma aula de leitura diferente da que eles conheciam. Imediatamente
fomos bombardeados de perguntas – “Vamos ler um livro?”; “Como é isso?”; “Que livro a
gente vai ler?”; etc. – e afirmações sobre o fato de a biblioteca não estar disponibilizando todo
o seu acervo em virtude da reforma.
Com os ânimos mais serenos, dissemo-lhes que não iríamos precisar de livros, pois
todos nós conhecíamos histórias que poderiam fazer parte dos nossos encontros. Então, os
convidamos a afastar as cadeiras e sentarmos no chão formando um círculo. Mostramo-lhes
como ocorreriam as aulas ao contarmos Dona Carochinha e Príncipe Santo João, narrativas
inseridas no livro Conto popular e comunidade narrativa, de Francisco Assis de Sousa Lima.
A escolha desses contos deu-se pelo fato de terem sido registrados no Ceará, possibilitando
que alguns alunos os reconhecessem.
Dona Carochinha também foi selecionada pelo humor presente na narrativa, assim
como pela movimentação que ela poderia causar nos alunos quando bem utilizada. Logo,
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através desse conto iniciamos a atividade. Contamos aos educandos e, depois, recontamos,
sugerindo que todos juntos tentássemos produzir o som dos objetos, das plantas, dos animais e
do homem. Desse modo, quando a janela abre e fecha, os discentes abrem e fecham as mãos;
a laranjeira cai a folha, os alunos produzem o som de árvores balançando; o pássaro cai a
pena, os educandos imaginam um canto triste de ave e o produzem; o capim secou, a turma
deita-se no chão, como se estivessem mortos; o boi quebrou a ponta do chifre, todos murgem;
a fonte secou, os alunos caem “mortos” no chão; a moça quebrou o pote, os educandos
derrubam cadernos no chão; o homem queimou o bigode, os discentes representam a dor
pulando na sala, gritando “aiaiai...”, gemendo e outros desmaiando.
Ao término desse conto, eles pediram que contássemos mais uma história. Assim,
narramos Príncipe Santo João. Nessa narrativa, oito alunos dramatizaram as personagens
João, Princesa, pai da princesa, Conselheiro, filho do Conselheiro, mulher que tem a família
ajudada por João, voz feminina, rei da Terra dos Bichos.
A seleção de quem representaria determinado personagem foi feita pelos próprios
alunos da seguinte forma: informamos quantos personagens masculinos e femininos
precisaríamos para o jogo, então os meninos e meninas que desejavam participar ficavam em
pé e realizavam a brincadeira Zero ou um16, em que aquele que saía do jogo assumia a
personagem que desejava representar. Os dois últimos alunos que sobravam no jogo,
jogavam Par e ímpar para escolher seus personagens. Observamos em outras aplicações
posteriores que os educandos selecionaram seus personagens com a concordância de todos,
sem a necessidade de jogar zero ou um.
Os alunos que não assumiam papéis durante a atividade participavam da mesma na
medida em que representavam os sons da natureza – mar, floresta, animais -, cantavam a
marcha nupcial durante o casamento de João com a Princesa e davam sugestões de como
representar a personagem em determinadas situações, como por exemplo, quando João em um
barco muito frágil, temendo afogar-se a qualquer momento, os discentes sugeriram ao jogador
que fizesse “cara de desespero, chame por Deus, pela mãe...”
Quando terminamos a atividade, conversamos sobre ela. Eles gostaram dos dois
contos, mas acharam Príncipe Santo João muito longo. Perguntamos sobre o que poderíamos
destacar nessa narrativa e as respostas foram: arrogância, inveja, ganância do ser humano; a fé
16 Durante a brincadeira Zero ou um, os participantes posicionam-se em forma de círculo, fecham a mão e colocam-na para trás do seu corpo e, em seguida lançam-na ao mesmo tempo para o centro do círculo, representando na mão o número zero (com a mão fechada) ou um (com o dedo indicador). Sai da brincadeira o jogador que colocar o número que os outros jogadores não colocaram, por exemplo: A, B e C jogam respectivamente um, zero e zero. Logo, o jogador A sai da brincadeira.
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em Deus auxilia o indivíduo quando este se encontra em dificuldade. Questionamos os
educandos sobre de quem poderia ser aquela voz feminina e todos foram unânimes em
afirmar que seria de Nossa Senhora.
Sobre Dona Carochinha, alguns alunos disseram que o conto parecia uma piada;
outras afirmaram se tratar da perda de um ente querido, em que a dor é tão grande que talvez
fosse o mesmo que perder uma parte de si mesmo, representado na história pela laranjeira sem
folha, pássaro sem pena, capim seco, boi com a ponta do chifre quebrado.
Ao perguntarmos se alguém já conhecia esses contos, obtivemos uma resposta
negativa. Sempre realizamos esse tipo de questionamento ao fim de cada atividade, pois
acreditamos que por meio do contato com a literatura popular os alunos possam reconhecer
sua cultura e auxiliar a comunidade a reconhecê-la também, ao pedir aos pais, tios, vizinhos,
entre outros, que lhes contem uma narrativa popular.
O terceiro encontro aconteceu sobre o contexto de greve dos professores estaduais.
Entretanto, a escola em que desenvolvemos nossa pesquisa optou, inicialmente, por reduzir
em dez minutos o tempo de cada aula. Assim, tivemos nesse dia uma atividade com duração
de quarenta minutos.
Os procedimentos iniciais para o jogo foram os mesmos do encontro anterior, ou seja,
cadeiras afastadas; todos sentados no chão, formando um círculo; a escolha das personagens e
de quem iria representá-las foi feita pelos educandos. No entanto, aqueles que participaram do
jogo no segundo encontro não participaram desse, para que todos pudessem participar em
algum momento como personagem.
Antes de mencionarmos os contos populares que seriam abordados na aula,
perguntamos aos alunos se eles conheciam alguma narrativa. Apesar de termos obtido muitas
respostas afirmativas, os discentes não quiseram narrar suas histórias alegando serem tímidos.
Enfim, selecionamos para este encontro as narrativas Os compadres corcundas e O
caboclo, o padre e o estudante, inseridas no livro Contos Tradicionais do Brasil, de Câmara
Cascudo. O motivo que nos levou a optar por esses dois contos foi o fato deles serem
narrativas curtas, já que nesse encontro teríamos uma redução de dez minutos da aula devido
à greve dos professores, e, também, por serem divertidas, visto percebermos certa apreciação
dos estudantes pelo humor.
Em Os compadres corcundas três alunos representaram as personagens corcunda
pobre, corcunda rico e velho sábio. Os outros discentes dramatizaram o povo esquisito. Os
educandos que faziam os corcundas procuraram objetos para criarem a sua corcunda. Como
alguns alunos costumavam vestir uma camisa de malha por baixo da farda, duas dessas
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camisas foram enroladas cada uma por um jogador para que se parecesse com uma bola, a fim
de representar as corcundas. Uma terceira camisa foi usada sob a cabeça do educando que
dramatizaria o velho sábio. A idéia de buscar objetos para caracterizar personagens foi dos
discentes.
Na atividade que envolveu o conto O caboclo, o padre e o estudante, quatro alunos,
diferentes dos que participaram de Os compadres corcundas, dramatizaram as personagens do
título da narrativa e, uma aluna, a senhora dona da hospedaria. Os outros participaram
apresentando idéias de objetos que poderiam servir de acessório para a caracterização das
personagens: para o caboclo, pediram que o aluno ficasse descalço e fizesse cara de malandro;
já com o padre, pediram emprestado à professora o terço que ela sempre trazia consigo,
objetivando que a personagem o carregasse na mão junto com o livro que simbolizava a
Bíblia; para o estudante, pediram que o educando fizesse “cara de CDF”; o queijo foi
representado por uma pequena borracha.
Para que os discentes pudessem caracterizar as personagens de ambas as histórias, nós
mencionamos os títulos dos contos e incitamos os alunos a pensarem quem seriam esses
personagens; como se vestiriam, falariam, andariam... Essa conversa ocorreu depois que as
personagens foram escolhidas e antes de iniciarmos o jogo com cada narrativa.
Como o nosso tempo havia sido reduzido, não conseguimos debater da forma que
gostaríamos as duas atividades realizadas nessa aula. Mas tomamos o conhecimento de que o
conto popular Os compadres corcundas foi reconhecido por uma aluna que afirmou tê-lo
conhecido pela primeira vez através do programa televisivo TV Xuxa.
Após esse encontro, a greve tornou-se efetiva na Escola de Ensino Fundamental e
Médio Marechal Juarez Távora e, conseqüentemente, nossos encontros com a 6ª série A
foram interrompidos.
Com o retorno às aulas, procuramos a professora e a coordenadora pedagógica a fim
de recebermos a confirmação de que poderíamos retornar às nossas atividades com a 6ª série
A. Elas nos expuseram os empecilhos que dificultariam o nosso trabalho: existiam projetos e
conteúdos a serem abordados em sala de aula num tempo muito restrito, pois, devido a greve,
as avaliações da Segunda Etapa ocorreriam na primeira semana do mês seguinte.
Assim, a professora sugeriu que a atividade aplicada pudesse ser aproveitada no
projeto que envolveria a disciplina de educação artística, também ministrada por ela. Com o
aceite da coordenadora, a nossa atividade prosseguiu. No entanto, com um novo contexto:
dentro do projeto de Artes, como uma das avaliações parciais da Etapa.
83
Devido ao novo contexto que se estabelecia, conversamos com os alunos sobre
realizarmos algumas apresentações. Eles se organizariam em equipes, com a quantidade de
participantes que desejassem; escolheriam um nome para seu grupo, uma história e uma
forma de contá-la que poderia ser através de dramatizações, de histórias em quadrinhos, etc.
Durante toda a nossa conversa a professora interferiu e, ao final, avisou-lhes que daria “nota”.
Apesar da situação desconfortável, pois não desejávamos que os educandos se
sentissem forçados a realizar o jogo, a atividade ocorreu de forma espontânea, porque após
esse dia, em nenhum outro foi mencionada a questão avaliativa da atividade.
O nosso quarto encontro com a turma A aconteceu conforme os encontros anteriores.
O diferencial ficou por conta da presença da câmera filmadora que utilizaríamos para registrar
a atividade. Explicamo-lhes que usaríamos esse recurso para gravar as apresentações com o
fim de poder revê-las e divertirmo-nos quando nosso trabalho encerrasse. Justificamos dessa
forma para que os educandos não se intimidassem com a filmagem, sentindo receio de que
outras pessoas os veriam. Nossa intenção foi tentar garantir a espontaneidade durante o jogo.
A professora registrou nossa atividade, mas como não conseguiu manusear a câmera
filmadora adequadamente - não deu o zoom necessário - a filmagem ficou péssima, não
focando todos os educandos que participavam.
O conto selecionado para esta atividade foi Quirino, vaqueiro do rei encontrado no
livro Contos Tradicionais do Brasil de Câmara Cascudo. Selecionamos este conto por existir
nele um elemento apreciado pelos alunos, o humor; por ser um conto classificado por
Cascudo como Conto de Exemplo e desejarmos conhecer o gosto dos discentes sobre esse
tipo de conto.
Os discentes optaram por colocar as cadeiras em forma de meia lua e sentaram-se
nelas, visto o chão encontrar-se bastante empoeirado. A partir do título da narrativa,
discutimos sobre a profissão do vaqueiro, o que ele faz, onde viveria, se alguém conhecia um
vaqueiro... Durante a nossa conversa, dois alunos afirmaram reconhecer a história de um
programa televisivo da TV Cultura, e um outro aluno afirmou que seu pai já havia contado um
conto sobre um vaqueiro que não mentia.
Após essa conversa inicial, apresentamos as personagens da narrativa – Rei; fidalgo
amigo do Rei; Rosa, filha do fidalgo; Quirino, vaqueiro -, incentivando-os a pensarem como
poderia ser cada personagem. Os três educandos que reconheceram a história pelo título
auxiliaram os colegas a caracterizarem as personagens.
Durante o jogo, percebemos que tantos os alunos que dramatizavam quanto os que
observavam estavam um pouco retraídos por causa da câmera filmadora. Com o término da
84
atividade, debatemos sobre o conteúdo da história. Todos afirmaram que a narrativa ensinava-
nos a sempre falar a verdade.
O quinto encontro foi caracterizado pelo início das apresentações elaboradas pelos
discentes. A primeira equipe, denominada Além da Imaginação, possuía seis integrantes, mas
um deles faltou neste dia.
Além da Imaginação não se organizou para a atividade, então os incentivamos a
realizar o jogo envolvendo uma história que conhecessem e a contassem da forma desejada.
Assim, Chapeuzinho vermelho, conhecido pela equipe através de programas televisivos, foi o
conto selecionado.
Convidaram-nos para representar a mãe da protagonista como voz. Os educandos
queriam aproveitar todos os integrantes do grupo e, por isso, colocaram dois caçadores para
matar o lobo. Este personagem, ao entrar na casa da vovó trancou-a no armário, pois o seu
interesse era devorar Chapeuzinho vermelho.
A presença da câmera filmadora deixou alguns alunos constrangidos e outros com
vontade de aparecer na filmagem.
Como o grupo achava que não tinha feito uma boa apresentação, pediram que
contássemos uma história para que eles pudessem dramatizá-la. Então, narramos O conselho
do Dr. Doido, inserida no livro Contos Tradicionais do Brasil de Câmara Cascudo. A escolha
dessa narrativa deveu-se ao fato dela ser divertida e curta, visto ter restado pouco tempo de
aula. Não pudemos discutir com os discentes sobre o título e as personagens da história.
A equipe convidou duas alunas para completar as personagens que eram: rapaz, viúva,
mulher-dama, donzela, padre e Dr. Doido. Nessa atividade, os educandos encenaram o
casamento do rapaz com a donzela e, no conto, diferenciando da versão de Cascudo em que é
apenas mencionado que o rapaz viajaria a fim de encontrar-se com a donzela.
Ao término desse jogo, debatemos com os discentes a frase dita pelo Dr. Doido:
“Quem sempre foi, sempre é! Besta velha não se acostuma em pasto novo! Quem nunca foi,
vai-se fazer!” (CASCUDO, 2001, p. 237). Os alunos disseram tratar-se da viúva, da mulher-
dama e da donzela, em que as duas primeiras não se acostumariam com um casamento, pois
ambas eram mulheres livres e independentes. Já a donzela poderia contrair matrimônio,
“porque ela é novinha, não sabe de nada”, afirmou um aluno.
No sexto encontro, a equipe Amigas Inseparáveis apresentou-se com a história João e
Maria. As integrantes do grupo foram buscar a narrativa em um livro da biblioteca, apesar de
enfatizarmos de que isso não era necessário, pois desejávamos que eles procurassem os contos
populares na sua memória e na dos que vivem em seu entorno.
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Ao dramatizarem a narrativa percebemos diferenças em relação a encontrada nos
livros de histórias. No jogo dos alunos, as crianças brincam na floresta com a autorização da
mãe que lhes recomenda tomar cuidado com o bruxo. Entretanto João e Maria aproximam-se
da casa do bruxo que os rapta e os coloca para fazerem os serviços domésticos de sua casa. A
mãe, preocupada com a demora de seus filhos, parte em busca dos mesmos. Não os
encontrando ela vai à casa do bruxo e recupera as crianças.
Amigas Inseparáveis elaboraram um cenário para o jogo utilizando as cadeiras;
trouxeram roupas de casa para caracterizar as personagens. Quando questionados sobre o
porquê da escolha do conto e da busca em um livro, o grupo respondeu que apreciava a
narrativa e sentia medo de esquecer a história durante a atividade.
Nesse mesmo encontro, a equipe Kung-Fu pediu para apresentar-se também. Ao
concordarmos, eles dramatizaram João e o pé de feijão. Os alunos utilizaram uma mochila
durante a encenação para representar o tesouro do gigante. Além disso, o educando que
representava o gigante, para mostrar o seu tamanho enorme, subiu em uma cadeira. Já o
discente que interpretava João conseguiu por meio de gestos fazer com que os observadores
imaginassem um grande pé de feijão e um machado, utilizado para cortar a árvore.
O grupo afirmou ter escolhido João e o pé de feijão porque continha apenas uma
personagem feminina e, entre eles, só havia uma menina. Relataram conhecer essa história de
um programa televisivo da TV Cultura.
O sétimo encontro foi destinado à apresentação do grupo C17, formado por meninas.
Como precisavam de um personagem masculino, convidaram um colega para participar da
atividade.
A história que a equipe escolheu foi narrada por uma aluna que a ouviu de sua mãe. A
discente a conhece como A bela aborrecida e trata de uma princesa que depois de cem anos
de sono profundo acorda com o beijo do príncipe. Mas ao conversarem, a princesa queixa-se
de tudo ao rapaz que cansado dela, dá-lhe outro beijo e a faz adormecer. Em seguida, ele parte
do castelo da princesa com o intuito de nunca mais voltar.
A educanda que conhecia a história relatou-nos que sua mãe a contava para mostrar-
lhe que gente aborrecida, queixosa do que tem, acaba sem nada. Isso porque muitas vezes sua
mãe trazia-lhe roupas usadas e ela não as queria, apesar de se encontrarem em bom estado e
de saber que a mãe não poderia comprar vestimentas novas.
17 Denominamos essa equipe de C porque seus integrantes não quiseram dar-lhe um nome específico.
86
Essa narrativa provocou um debate na turma A, em que todos desejavam expressar
suas opiniões sobre desejar objetos e não poder tê-los. Conversamos sobre a influência das
propagandas na vida humana; sobre o furto, que eles afirmavam não praticar; sobre drogas e
os danos que elas causam aos usuários.
No oitavo encontro, o grupo D18 apresentou-se com o conto popular Os três
porquinhos. Na versão dos alunos, os porquinhos chamavam-se Lucas, João e Henrique. Eles
viviam tranqüilos na floresta, pois o lobo encontrava-se preso no zoológico da cidade.
No entanto, o lobo conseguiu fugir e os porquinhos souberam disso pelo noticiário da
televisão. A notícia enfatizou também a fuga de todos os animais da floresta por causa do
medo que o lobo lhes causava. Os porquinhos decidiram não fugir e seguir com suas vidas na
mata. Assim, cada um construiu sua casa e foi morar nela.
Entretanto, as casas de palha e de madeira foram destruídas pelo lobo que passou a
perseguir Lucas e João. Os dois irmãos refugiaram-se na casa de tijolos feita por Henrique.
Como não conseguiu destruir a casa do terceiro porquinho, o lobo pegou um tronco de árvore
e tentou derrubá-la. Porém não conseguiu e resolveu entrar na casa descendo pela chaminé,
mas se queimou no caldeirão de água fervente.
O grupo utilizou a cadeira e uma pasta para representar a televisão; novamente a pasta
para fazer o tronco utilizado pelo lobo na sua tentativa de derrubar a casa de tijolos. Os alunos
que observaram a atividade, participaram dela ao imitarem a música que anuncia o noticiário
e ao assoprarem a fim de mostrarem a força do lobo.
Os educandos disseram, durante a discussão sobre a atividade, que escolheram o conto
porque desejavam brincar. E para que a narrativa ficasse um pouco diferente da conhecida por
todos, inseriram nela os ambientes cidade e zoológico; os objetos televisão e tronco. Uma
aluna afirmou não gostar dessa história na versão que circula em livros, programas de TV,
porque o lobo lhe causava medo da forma como era representado. Já na versão dos colegas,
ela gostou muito, pois não viu o lobo malvado das outras versões conhecidas por ela.
Nesse mesmo encontro, a equipe Além da Imaginação pediu para se apresentar
novamente, com a história que haviam selecionado e não puderam dramatizar por falta de um
integrante.
Esse grupo baseou sua história no conto Quirino, vaqueiro do rei. Ela encontra-se na
íntegra no anexo deste trabalho. A versão dos discentes envolveu empresários, gravidez
inesperada e inveja, como podemos observar nesse pequeno resumo.
18 Esse grupo também não escolheu um nome por isso o chamamos D.
87
Henrique, empresário muito famoso, possuía um empregado de confiança chamado
Daniel que cuidava de seus negócios. Certa vez, esse empresário apostou com seu amigo
Eduardo que Daniel não era capaz de enganá-lo.
Eduardo, sentindo inveja de Henrique, pede a sua filha, Flor, que seduza e faça Daniel
enganar o patrão. Assim, a moça engravida do funcionário e pede dinheiro a ele a fim de criar
o filho. O rapaz realiza um desfalque na empresa para ajudar Flor, mas conta a Henrique o
motivo que o levou a fazer isso. O empresário perdoa Daniel e oferece-lhe dinheiro ganho na
aposta.
Ao perguntarmos ao grupo o motivo que os levou a utilizar essa narrativa na atividade,
eles declararam que haviam gostado do conto Quirino, vaqueiro do rei e queriam saber como
ela ficaria numa versão “mais moderna”.
O nono encontro foi marcado pela apresentação grupo E19 formado por dois alunos
que escolheram uma narrativa contada pelo pai de um deles, O bicho folha.
Esses discentes do grupo E optaram por realizar a atividade de um modo diferente do
que vinha ocorrendo na turma A. Eles contaram a história através do gênero história em
quadrinho, pois gostavam de desenhar.
Os educandos que observavam a atividade não gostaram muito porque as gravuras
eram muito pequenas. Logo, eles pediram para que o conto fosse encenado. O grupo aceitou
dramatizar a história e convidou cinco colegas para interpretarem as personagens: onça,
quatro filhotes de onça e um coelho. Durante o jogo, os alunos utilizaram um pedaço de uma
cadeira quebrada para representar a comida da onça.
A narrativa20 diferenciou-se da encontrada no livro Contos tradicionais do Brasil de
Câmara Cascudo. Na versão do grupo, o coelho, desejando um emprego, começa a trabalhar
para a onça, cuidando de seus quatro filhotes. A onça também desejou que o coelho
cozinhasse, mas ela não havia caçado nenhum animal para que o seu empregado pudesse
cozinhar. Assim, temendo ser devorado pela onça, o coelho cozinhou um filhote por dia para
alimentá-la.
Quando a onça descobriu o que havia acontecido, passou a perseguir o coelho a fim de
matá-lo. Este resolveu enganá-la disfarçando-se com folhas de árvores e apresentando-se
como Bicho Folha. Após a descoberta da mentira, o coelho refugiou-se em um buraco, mas
cansado de ficar lá, saiu e foi devorado pela onça que estava de tocaia.
19 Escolhemos a letra E para diferenciar esse grupo dos outros que não intitularam sua equipe. 20 Essa narrativa pode ser encontrada no anexo deste trabalho.
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Ao término da dramatização, conversamos sobre a narrativa com os educandos. Estes
afirmaram não apreciar essa história, mas acharam “bem feito” o castigo do coelho. Então,
prosseguiram o debate argumentando que o coelho errou ao matar os filhotes da onça para
fazer as refeições da mesma. Concluíram dizendo que “quem faz o mal, paga com o mal”.
O décimo encontro caracterizou-se pela história A Moura Torta, segundo a versão de
Cascudo. A divisão das personagens e a escolha de quem as representaria foi realizada como
de costume. Seis personagens foram selecionados: a Moura Torta, o príncipe, a moça
encantada, o pai e a mãe do príncipe, o criado que captura a rolinha para o príncipe. Os
educandos divertiram-se bastante nesse jogo. E ao término do mesmo, iniciamos as nossas
habituais discussões acerca do conto popular trabalhado no dia.
No debate, os alunos afirmaram terem gostado do final que teve a Moura Torta –
morreu queimada e suas cinzas foram levadas pelo vento. “Ela foi ruim, tinha que ser
castigada!”, disse um educando. Eles relembraram o que disse uma aluna sobre o conto Bicho
folha “quem faz o mal, paga com o mal” e repetiram a frase. Questionamos se todos
acreditavam nisso e obtivemos resposta afirmativa com o seguinte comentário: “tia, pode ser
ladrão, usar droga, traficar e político... pode demorar, mas todo mundo vai ter castigo. Porque
Deus castiga! A gente pode ir pro bem ou pro mal, né?! Se [for] pro mal, tem castigo de
Deus!”.
Algumas educandas reclamaram da ingenuidade da personagem moça encantada,
chamando-a de “burra, besta” e dizendo que ela mereceu ter sido transformada em rolinha.
Outros alunos defenderam a personagem, afirmando que ela não conhecia nada sobre o
mundo, sobre a inveja. Esse sentimento rendeu histórias que eles conheciam como essa
relatada por uma aluna em que sua mãe cultivava plantas em jarros, até uma vizinha nova
passar pela casa dela e elogiar o cultivo. As plantas murcharam meia hora depois, segundo a
discente.
Nesse mesmo encontro, os alunos recordaram do conto Bicho de palha e pediram que
o contássemos novamente. Isso porque no quinto encontro iniciamos uma atividade com essa
narrativa, mas ela não pôde ser concluída devido a greve deflagrada pelos professores da
escola. Como não havia mais tempo para jogarmos com esse conto, todos concordaram em
trabalharmos com ele no encontro seguinte.
O conto Bicho de palha, versão encontrada no livro Contos Tradicionais do Brasil de
Câmara Cascudo, foi abordado em sala de aula. A seleção de quem representaria as
personagens – pai, madrasta, velha, Maria, príncipe, criados – ocorreu como de costume.
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Como os alunos já conheciam o início da narrativa, optamos por incitar comentários quando o
jogo terminasse.
Uma sapatilha e uma caneta foram os objetos utilizados durante a atividade. Os
educandos que não dramatizaram as personagens citadas participavam como donzelas que
flertavam o príncipe durante o baile; como rapazes que estavam admirados com a beleza de
Maria e moças que sentiam despeito por tamanha beleza; como criados que menosprezavam
Bicho de palha quando ela provava o sapatinho.
A discussão do conto iniciou-se em torno do nosso questionamento “Vocês gostaram
desse conto?” As opiniões ficaram divididas. Alguns não apreciaram a narrativa porque já não
gostavam de Cinderela, “é história de menina”, disse um aluno; outros afirmaram ser esse
conto melhor que a versão que passa na televisão porque a protagonista não ficava chorando,
sem tomar uma atitude: “quando ela cansou da vida dela foi embora. Fugiu!”, declarou uma
educanda. Todos os discentes afirmaram conhecer esse conto como Gata Borralheira, no
entanto, alguns alunos disseram ter assistido a versão narrada em um programa televisivo da
TV Cultura.
Os alunos perceberam que nesse conto popular não aparecia a fada madrinha nem os
animais – ratos e pássaros – comum em determinadas versões de Gata Borralheira. Todavia,
identificaram a senhora idosa que ofereceu a varinha de condão à Maria como Nossa Senhora.
A turma A interrompeu a discussão em torno do conto porque encontrava-se ansiosa e
preocupada com o tempo de aula que nos restava para assistirmos a filmagem das
dramatizações realizadas por eles. O vídeo não foi assistido completamente pelos educandos,
assim marcamos um novo encontro a fim de que as apresentações registradas pudessem ser
vistas por inteiro.
No décimo segundo encontro mostramos para os alunos a filmagem que foi realizada.
Eles se divertiram muito e pediram à professora que a atividade continuasse com ela. Esta
deu-lhes uma resposta afirmativa.
Os três últimos encontros aconteceram no espaço da sala de vídeo21, pois queríamos
observar como os alunos se comportariam fora da sala de aula. O jogo que envolveu A Moura
Torta e Bicho de palha ocorreu nesse ambiente e resultou em uma atividade muito rica: os
alunos se expressaram mais e jogaram melhor. Ou seja, o fato de termos alterado o ambiente
para aprendizagem implicou em curiosidade maior sobre a atividade e, conseqüentemente,
mais atenção e sintonia com o trabalho realizado.
21 A reforma deste ambiente havia sido concluída, entretanto, a da biblioteca, não.
90
As discussões que ocorreram após o jogo e acerca dos contos populares cresceram
muito. O que mencionamos nos primeiros capítulos sobre a identificação do educando com a
narrativa oral pôde ser constatado com essa experiência: os educandos associavam fatos da
sua vida, do seu conhecimento de mundo com o enredo das histórias dramatizadas em sala.
Os discentes ao apresentarem suas interpretações durante os debates expressavam, por
meio de palavras, ora raiva por personagens antagonistas - por exemplo, o conselheiro da
narrativa Príncipe Santo João; o fidalgo de Quirino, vaqueiro do rei; etc. -, ora indignação
por personagens passíveis, que não agiam, como a moça encantada do conto A Moura Torta.
Outro ponto desse relato que destacamos refere-se ao reconhecimento de alguns
contos populares feito pelos educandos. Muitos deles quando identificavam uma narrativa o
faziam por tê-la visto, principalmente, em programas televisivos. Sugerimos que eles
buscassem histórias de parentes, amigos, vizinhos, ou seja, da sua comunidade. No entanto,
isso não acontecia. Alguns educandos procuraram contos em livros e, ao apresentarem a
narrativa em sala de aula o fizeram com o apoio de um texto escrito por eles sobre a história.
Com o passar do tempo essa realidade foi se modificando, eles passaram a “puxar” da
memória as histórias.
5.3.3 Um caso particular: 6ª série B
No início deste capítulo mencionamos que o nosso trabalho se desenvolveu em duas
turmas de 6ª série, mas até o momento, apresentamos apenas as atividades realizadas com a
turma A. Isso porque essa turma era formada por alunos com a faixa etária adequada para a
série escolar em questão. Já os discentes da turma B possuíam uma faixa etária que variava
dos 13 aos 16 anos. Além disso, eles eram considerados alunos problemáticos, pois muitos
estavam repetindo essa série pela segunda vez por motivo de abandono. Destacamos que
muitos dos alunos que abandonam o ano letivo o fazem após receberem a carteira de
estudante.
A importância da identidade estudantil na vida desses estudantes encontra-se no fato
de que ela auxilia o ingresso deles no mercado de trabalho como empregado doméstico,
auxiliar de pedreiro, etc. e com isso, eles passam a ajudar no sustento da família. Com a
carteira de estudante esses jovens só precisam pagar a metade do valor do transporte coletivo,
tornando sua mão-de-obra sem qualificação ainda mais barata.
91
Esses alunos não eram considerados problemáticos apenas por serem repetentes, mas
também por sua agressividade, falta de respeito para com o próximo e pelo uso de drogas que
alguns faziam. Nessa turma ainda existiam dois alunos especiais, um rapaz e uma moça,
ambos calmos, porém ele sendo mais participativo do que ela.
A professora relatou diversas vezes as dificuldades que sentia em ministrar suas aulas
na 6ª B. Dificuldades estas que presenciamos ao observarmos uma de suas aulas, como foi
relatado anteriormente. Os discentes não faziam os exercícios escolares propostos, não
respeitavam à professora, mas respeitavam uma aluna que nos pareceu ter a liderança da
turma.
Essa aluna “líder” não afirmava ser usuária de drogas, entretanto possuía o respeito
dos colegas que eram usuários ou não. Ao comando dela, os discentes bagunçavam as aulas
ou ficavam quietos, fingindo prestar atenção ao que estava sendo dito em sala de aula. Apenas
três alunos, duas meninas e o aluno especial, dedicavam-se às atividades escolares
independente da aprovação da “líder”.
Em nosso primeiro encontro abordamos as mesmas histórias tratadas na 6ª série A:
Dona Carochinha e Príncipe Santo João. Convidamos os alunos a afastarem as cadeiras e
sentarem-se no chão formando um círculo. Este convite não foi bem aceito por eles:
queixaram-se de que a sala de aula era suja. Reforçamos nosso pedido, tentado aguçar a
curiosidade deles para a atividade e assim, parte da turma sentou-se no chão, pois cinco
alunos continuaram relutantes, ficando nas cadeiras.
Iniciamos com o conto Dona Carochinha e, em seguida, Príncipe Santo João.
Propusemos que uma canção popular fosse cantada no intervalo entre as narrativas. Essa idéia
foi inicialmente recusada por eles, mas depois cantaram e participaram da roda que envolveu
Ciranda, cirandinha.
Durante as histórias, os educandos faziam gracinhas, soltavam piadas a fim de não
permitir que realizássemos o trabalho. Então, pedimos que a aluna “líder” e outros alunos que
interrompiam a atividade dramatizassem a narrativa. Foi desta forma que conseguimos
silêncio e atenção dos integrantes da turma B.
A discussão sobre a narrativa Príncipe Santo João promoveu reflexões sobre
arrogância, preconceito: arrogância na atitude da princesa com João durante a noite de
núpcias e preconceito dela pela origem do marido – filho de pescador. Quanto ao conto Dona
Carochinha, eles disseram conhecer “piadas” melhores que essa. Nenhum dos discentes
reconheceu esses contos.
92
Para o terceiro encontro, selecionamos a narrativa Os compadres corcundas e O
caboclo, o padre e o estudante. Antes de começarmos a atividade com essas narrativas,
indagamos se algum aluno conhecia o conto popular e se gostaria de contá-lo. A resposta foi
negativa.
Apesar da apatia e da falta de interesse apresentados no encontro anterior, eles
estavam ansiosos no terceiro encontro. Os educandos participaram do jogo envolvendo os
dois contos, inclusive os cinco alunos apáticos do segundo encontro. Eles propuseram
sugestões aos discentes que dramatizavam as histórias à medida que as narrávamos.
Sugeriram objetos – mochilas – para representarem as corcundas dos compadres.
Durante o debate sobre a atividade realizada, os educandos falaram sobre a inveja.
Muitos relacionaram esse sentimento à sua realidade de vida: esse sentimento os envolvia
quando ao buscarem um trabalho honesto recebiam muito pouco pelo serviço, apesar da
dedicação; já seus colegas, ganhavam bem trabalhando para o tráfico de drogas. Esses jovens
não acreditavam em um futuro. Acreditavam que teriam que ser espertos como o caboclo do
conto O caboclo, o padre e o estudante para driblar os obstáculos que aparecem na vida. Para
esses discentes, a personagem em questão não comeu o queijo por ser ingênuo, mas por ser
astuto. Apesar desses contos renderem uma boa discussão com a turma B, os educandos não
reconheceram essas narrativas.
O encontro seguinte não ocorreu por causa da greve dos professores que havia sido
deflagrada.
Após o fim da greve, procuramos a coordenação da escola e a professora de
linguagens e códigos para que permitissem o retorno do nosso trabalho. Dificuldades foram
impostas, como já relatamos no sub-capítulo anterior. Assim, a alternativa utilizada foi a
mesma da 6ª série A: apresentações de narrativas em equipe, realizadas da forma que eles
considerassem melhor.
Os encontros que se seguiram depois do término da greve foram muito difíceis. A
turma B estava agora com vinte alunos dos trinta e dois iniciais. A educanda que controlava a
sala, seja para bagunça ou não, havia abandonado o ano letivo. Logo, o cenário da liderança
da turma mudou: um aluno com passagem pelo Centro Educacional – antiga Febem – e
usuário de drogas assumiu esse “cargo”. Esse discente provocava temor nos colegas e
professores.
Assim, nosso trabalho tentou prosseguir em meio às ameaças de roubo da câmera
filmadora que usávamos a fim de registrar as atividades e às agressões verbais.
93
O quarto encontro iniciou-se com uma agressão física entre três alunos, dentre os
quais um era o atual “líder”. Nesse dia, a coordenadora e diretora da escola estavam ausentes,
fazendo com que a professora tivesse que manter esses discentes em sala.
Os contos escolhidos para essa aula foram Quirino, vaqueiro do Rei e O conselheiro
do Dr. Doido. Convidamos os educandos a sentarem-se no chão formando um círculo. Eles
não aceitaram por ordem do aluno “líder”. Então, permitimos que ficassem nas cadeiras. Esse
foi o primeiro dia que levamos a câmera filmadora para registrar a atividade.
A professora realizou a filmagem que não ficou boa porque ela não soube dar o zoom
necessário para enquadrar a imagem.
No começo da atividade os alunos sentiram-se inibidos com a filmadora, mas depois
relaxaram.
Os problemas ocorridos no início deste encontro impediram-nos de dramatizar a
história O conselheiro do Dr. Doido, bem como discutir Quirino, vaqueiro do Rei. Esta última
narrativa foi reconhecida por alguns educandos que afirmaram tê-la estudado no ano anterior -
ela estava no livro adotado pela escola.
O quinto encontro seria marcado pelas apresentações em equipe. A turma B só
formou três equipes das quais apenas duas se apresentaram.
Esse encontro não ocorreu, pois ao chegarmos à sala de aula desta turma, encontramos
um forte odor de urina. Os rapazes urinaram por todo ambiente, impedindo que as aulas
ocorressem. Dez alunos foram suspensos e o resto foi dispensado.
No sexto encontro, uma equipe chamada As Fadas apresentou-se, apesar de não ter se
organizado para a atividade. Nós incentivamos as alunas a pensarem em uma história e
realizarem a atividade. Assim, escolheram Os três porquinhos e pediram à professora que
fizesse o papel da narradora.
As Fadas utilizou a mesa da professora com o recurso para esconder os vendedores de
materiais como palha, madeira e tijolo. Em alguns momentos, a narradora se referia às
personagens no feminino e em outros, no masculino.
Durante a atividade, as integrantes do grupo sofreram agressões verbais dos colegas.
Foram chamadas de porcas, pejorativamente, gordas, burras... Ocorreu também a interferência
de uma criança de três anos de idade que entrou na sala para agredir fisicamente o irmão –
“líder” da turma. Ela estava acompanhada da tia que desejava conversar com a professora
sobre o sobrinho.
Não conseguimos promover uma discussão sobre o conto abordado, porque os
discentes não permitiam: falavam alto, brincavam uns com os outros, diziam que a história era
94
besta, de criança. Toda essa situação culminou na expulsão de sala pela professora de três
alunos, incluindo o “líder”. Como nosso tempo de aula – cinqüenta minutos – havia
encerrado, não pudemos debater.
O sétimo encontro não aconteceu, porque a polícia militar foi acionada pela escola a
fim de realizar uma vistoria entre os discentes, inclusive os da 6ª série B.
No oitavo encontro, o grupo Malucos terroristas, formado por rapazes, decidiu não se
apresentar. Eles diziam não conhecer nenhuma história. Então, a equipe As Fadas pediu para
se apresentar novamente: queriam dançar e representar uma música – Enquanto seu lobo não
vem - da série Xuxa, só para baixinhos. Permitimos a fim de observar aquela turma.
Ao término da apresentação das alunas, o grupo Malucos terroristas pediu para
apresentar uma roda de capoeira. Animados por estes alunos estarem de alguma forma
participando de algo, deixamos que a roda fosse feita e, em seguida, perguntamos se eles
conheciam a história da capoeira. Um aluno relatou um pouco sobre a capoeira e nós não
pudemos abordar mais o assunto porque o tempo havia encerrado. Então, combinamos um
novo encontro para tratarmos sobre a capoeira.
Entretanto, nenhum outro encontro ocorreu com essa turma. Isso porque os discentes
estavam chegando às aulas drogados e conseqüentemente, violentos. Todos os dias cinco ou
mais alunos dessa turma eram suspensos. Assim, a professora e a coordenadora acharam
melhor o trabalho não continuar.
Atendemos aos pedidos da professora e da coordenadora e nos voltamos ao trabalho
com a turma A. Todavia, continuamos a receber ameaças de furto por parte de alguns alunos
da turma B sempre que eles nos encontravam na escola.
A professora sempre esteve presente em todos os encontros, pois não era permitido
pela coordenação da escola que ela se retirasse da sala de aula. Queremos chamar atenção
também para o vocábulo líder utilizado neste texto: ele não se refere ao líder escolhido pelos
alunos para representar a turma nas reuniões promovidas pela escola, mas ao fato de existir
um aluno que deixa os outros temerosos quanto às suas atitudes. Segundo alguns professores
da rede pública de ensino, alunos com esse “poder” costumam fazer parte do tráfico.
Os educandos da turma B são carentes de afeto, não têm a família como uma presença
forte nas suas vidas e a perspectiva de um futuro para eles é quase inexistente. Eles sentem
dificuldades em participar de qualquer atividade proposta por receio de serem motivo de
“piada” dos colegas o que ocorreu quando a equipe As fadas apresentou sua história.
95
5.4 Uma experiência anterior
A nossa intenção ao elaborarmos esse sub-capítulo foi mostrarmos que a sugestão de
trabalhar o conto popular e o jogo na sala de aula em turmas de 6ª série de Ensino
Fundamental II não foi desenvolvida apenas como propósito para um curso de Pós-Graduação
Strict Sensu. Foi a partir de uma atividade desenvolvida com esses dois elementos, em anos
anteriores, que optamos por nos encaminhar ao curso de Mestrado.
Em 2003, começamos a lecionar a disciplina de língua portuguesa, nas séries 6ª, 7ª e 8ª
do Ensino Fundamental II, de um colégio particular da cidade de Fortaleza/Ce. Salientamos
que antes desse período não trabalhamos em escolas da rede pública de ensino.
Nesse colégio, a turma de 6ª série apresentou-se muito arredia à leitura de livros
paradidáticos que foram selecionados por uma professora do Ensino Médio. Conversamos
com nossos alunos e descobrimos que eles não queriam ler os livros para fazer prova, como
acontecia nos anos anteriores a essa série.
Apresentamos à série a lista dos livros adotados para o ano letivo e eles se mostraram
apáticos à adaptação de Romeu e Julieta indicada para a Primeira Etapa22. Determinamos que
fosse feita uma leitura individual, em casa, mas no decorrer das aulas eles caracterizavam a
história de “chata, boba”.
Nossa aflição aumentava porque sempre encontrávamos magia no que líamos e isso não
ocorria com nossos alunos. Então, dividimos a turma em equipes de quatro componentes,
explicando que eles ajudar-se-iam mutuamente na leitura e, ao término da mesma, elaborariam
a sua versão de Romeu e Julieta, expondo em seguida aos colegas, da forma preferida. Como
ficaram assustados no início, resolvemos dramatizar a história através de fantoches.
Uma sexta-feira foi eleita para as apresentações de todos os grupos. Os mais tímidos
participaram auxiliando os colegas com materiais, eles não dramatizaram como a maioria. A
criatividade e o sucesso foram garantidos, todavia ambicionávamos mais. Queríamos uma
participação efetiva. Assim, definimos como livro seguinte Armazém do Folclore de Ricardo
Azevedo.
O sexto dia da semana tornou-se especial para aquela classe. Buscamos inovar um
pouco com os contos: eles liam em casa um conto por semana e, no dia pré-determinado,
afastávamos as cadeiras, escolhíamos os personagens e encenava-se a narrativa. Começamos
22 O sistema de ensino nacional dividi o ano letivo em quatro partes que são chamados de Bimestres ou Etapas.
96
como narrador, depois passamos a ser personagem e terminamos como espectador. Tudo
ocorreu como opção dos discentes. Nesse momento, já havíamos alcançado nossa ambição:
todos participavam, todos liam e sentiam prazer nisso.
O gosto de ler, ouvir, contar e participar das histórias pôde ser observado quando
estávamos numa aula de campo. Eles visitaram Aquiraz, pequena cidade distante 25Km de
Fortaleza, primeira capital do Ceará, onde predomina arquitetura da época colonial, e ao
realizarem perguntas à senhora mais idosa da cidade (que deveriam ser sobre a história
daquele lugar e a sua própria história para o jornal da escola) surpreenderam-nos: “A senhora
conhece alguma história? Pode contar?” Foi a questão levantada por eles que, na obtenção de
uma resposta afirmativa, sentaram-se ao redor dela, ouviram-na e alguns até gravaram aquelas
encantadoras narrativas.
No ônibus escolar, enquanto retornávamos à Fortaleza, eles explicaram-nos que como
estávamos terminando o terceiro livro paradidático adotado naquele ano (foram adotados
quatro livros) e ainda nos encontrávamos em meados de junho, precisaríamos de mais histórias
para as nossas “tradicionais” sextas-feiras. Logo, por iniciativa própria, eles buscaram contos
para preencher os dias que faltavam.
O motivo pelo qual já estávamos concluindo o terceiro livro em meados do mês de
junho, ou seja, na segunda etapa, deveu-se ao fato das aulas nas sextas-feiras estarem
caminhando tão bem que não queríamos parar. Assim, na terceira etapa concluímos o quarto
livro paradidático que fazia parte da grade curricular e continuamos até o fim do ano letivo
com o jogo dramático nas sextas-feiras. Pois a “caça” por histórias não havia ficado apenas na
aula de campo mencionada. Eles passaram a freqüentar a biblioteca da escola; perguntavam
aos pais, avós, vizinhos, enfim, pessoas com quem tinham uma proximidade, visando
conhecer outras versões de narrativas. Também indicavam e teciam comentários sobre leituras
nas aulas. Claro, nem todos se manifestavam em torno do ato de ler da mesma forma, todavia
percebia-se que o encanto preenchia a vida de cada educando.
Com esse sucinto relato queremos indicar caminhos que podem modificar o sentimento
negativo que o educando possa vir a ter sobre a leitura, como também mostrar que o nosso
trabalho não decorreu de uma idéia solta, mas de uma experiência anterior em que nos vimos
“encurralados” por uma circunstância e buscamos alternativas para alterar esse estado de
apatia em relação à leitura. Verificamos, em decorrência dessas aulas ministradas durante o
período escolar, a relevância do jogo dramático para despertar nos educandos, além do gosto
pela leitura, o interesse pelo conto popular, o que nos induziu à idéia de realizar essa pesquisa
97
com o objetivo de analisar e constatar, ou não, a real importância do jogo dramático como
instrumento capaz de possibilitar um ambiente propício à apreciação da literatura popular.
98
6 MANDOU DIZER EL-REI MEU SENHOR QUE ME CONTASSE QUATRO...
Nestas considerações utilizaremos a primeira pessoa do singular em situações nas
quais o uso da primeira pessoa do plural possa soar artificial, pois acreditamos que o trabalho
desenvolvido tem seu ápice na experiência realizada, e, com isso, queremos ressaltar alguns
aspectos dessa atividade de campo que consideramos essenciais.
Essa dissertação foi desenvolvida em quatro capítulos que de certo modo estão ligados
entre si. Primeiro destacamos a importância da arte na vida humana, e, dentre as muitas
formas de arte, abordamos a literatura, por ter essa arte uma disciplina específica ao seu
estudo na escola.
O contato com a literatura não se dá apenas através da leitura, apesar de esta ser uma
das formas mais praticadas. Podemos nos encantar com a literatura por meio da oralidade, ou
seja, de um conto popular, por exemplo, proferido pelo professor ou pelo discente, por que
não?!
Acentuo que as aulas destinadas ao trabalho de livros paradidáticos não necessitam ser
apenas realizadas com esse material. Mas também com o material que se encontra na nossa
memória, que faz parte da nossa vida. E o educador ao utilizar esse material, poderá
enriquecer a sua aula, introduzir valores e estimular a construção de conceitos éticos aos seus
educandos. Além disso, poderá incitar o aluno ao hábito da leitura, pois ele poderá sentir-se
livre da obrigação de ler com o fim de ser avaliado por fichamentos ou provas.
Toda essa “conversa” sobre a importância da literatura, do gosto pela leitura, dos
livros paradidáticos, das avaliações, enfim, toda essa reflexão já é conhecida por muitos. No
entanto, a utilização do conto popular e do jogo dramático em sala de aula, não o são. Então,
por que o conto e o jogo?
Confesso que caí nas graças do conto e do jogo sem uma intenção prévia. Quero dizer,
no fundo existia sim uma intenção: a de procurar uma alternativa para o trabalho com livros
paradidáticos.
Quando comecei a ministrar aulas de língua portuguesa em um colégio particular de
Fortaleza, procurei uma forma diferente de abordar os livros paradidáticos que não haviam
sido escolhidos por mim. Assim, como sempre tive prazer com o teatro, lancei mão da idéia
de fazer um teatro de fantoches com a adaptação de Romeu e Julieta – primeiro livro
trabalhado.
99
O teatro de fantoches com ajuda do conto popular levou-me ao jogo dramático. Pois,
durante o trabalho com Romeu e Julieta os grupos que se apresentaram mostraram a história
como teatro de fantoche, teatro, ou história em quadrinho.
O jogo dramático entrou na nossa sala de aula quando percebi que o segundo livro
paradidático a ser trabalhado era Armazém do Folclore de Ricardo Azevedo. Como este livro
é repleto de gêneros da literatura popular, pensei em utilizar cada narrativa em uma aula por
semana com diferentes grupos de alunos dramatizando-a.
Essa idéia deu certo, mas surpeendeu-me em algo: meus educandos não queriam que
essas aulas acabassem por falta de história. Deste modo, ao realizarem uma aula de campo em
Aquiraz/CE e conhecerem a senhora mais idosa da cidade perguntaram-lhe se ela conhecia
histórias e se poderia contá-las. Essa atitude deu-se a fim de termos mais material para nossas
aulas.
Não apenas esse momento de “caça” por contos ocorreu. Os educandos também
perguntavam aos familiares, vizinhos, conhecidos sobre narrativas, como também passaram a
freqüentar mais a biblioteca do colégio.
A partir dessa vivência percebi como a cultura popular me encantava e como ela foi
muito pouco abordada no meu curso de graduação. Logo, dirigi minha atenção a ela e ao jogo
dramático, resultando nesta dissertação.
A literatura popular é muito rica e quando utilizada em sala de aula pode trazer
benefícios à aprendizagem do aluno e como também auxiliar o desenvolvimento de certas
habilidades pelo educador ao fazer com que ele consiga estabelecer uma sintonia com seus
educandos e melhor compreender as necessidades e possibilidades dos seus alunos.
Quanto ao jogo dramático, afirmo que ele trouxe a espontaneidade para a sala de aula
e, com isso, facilitou o desenvolvimento da atividade e a discussão em torno dos contos
populares tanto no jogo utilizado na experiência com a escola pública – principalmente com a
6ª série A – quanto no colégio particular. Ele pôde permitir que os alunos refletissem sobre
valores humanos, construíssem conceitos éticos através da brincadeira, desenvolvessem
criatividade, se tornassem desinibidos, participassem de atividades coletivas bem
coordenadas, muitas vezes por eles próprios.
O jogo no âmbito educacional é muito explorado nas séries da Educação Infantil;
passa a ter seu lugar apenas nas aulas de recreação no Ensino Fundamental I e, depois é visto
como atividade física nos Ensinos Fundamental II e Médio. Ou seja, à medida que o aluno se
desenvolve o jogo é posto de lado pelo educador, ou melhor, pelo sistema de ensino.
100
Essa realidade incomoda-nos porque o jogo faz parte do ser humano e por meio dele o
professor pode alcançar seus objetivos para aula, bem como superar suas expectativas. Claro
que o jogo da forma que aplicamos na 6ª série do Ensino Fundamental II não deve ser
aplicado nas séries mais avançadas. Courtney (1980) sugere que o jogo dramático seja
trabalhado com educandos de 5 a 11 anos; o jogo dramático combinado com o teatro, de 11 a
18 anos e o teatro com base no jogo dramático, a partir de 18 anos.
No corpo deste trabalho a relevância do jogo foi ressaltada muitas vezes, contudo
queremos enfatizar a sua importância no âmbito educional, principalmente, nas séries em que
o jogo é tido como atividade física. Os alunos muitas vezes não assimilam o conteúdo
abordado em sala de aula por sentirem-se obrigados, forçados a aprender. No entanto, quando
o educador introduz o jogo poderá ter a certeza de que a assimilação da atividade realizada
ocorrerá de fato, porque o aluno conseguirá sentir-se espontâneo, livre, motivado e, acima de
tudo, não verá o exercício como obrigação, mas, como brincadeira, desejando realizá-lo.
Foi esse desejo que me fez buscar uma alternativa para minha turma apática em
relação à leitura quando comecei a lecionar, que me fez realizar esse presente trabalho e,
enfim, tentar provocar nos meus educandos o prazer e o interesse de ler, ouvir e contar
histórias.
Minhas considerações sobre a pesquisa de campo são várias. Todavia, antes de abordá-
las quero salientar que às vezes irei comparar a minha experiência anterior com a pesquisa de
campo, por se tratarem de realidades diferentes e, contrastando-as, poderemos refletir melhor
sobre o assunto em questão.
A primeira turma, chamada de A, possuía alunos dentro da faixa etária designada para
esta série escolar; envolveu-se com a atividade gradativamente; os educandos gostaram do
jogo e dos contos, a ponto de pedir à professora que prosseguisse com o trabalho uma vez por
semana. Esta turma participou das discussões e reconheceu algumas narrativas trabalhadas.
No entanto, grande parte desse reconhecimento não ocorreu porque os alunos ouviram as
histórias de alguém, mas porque as viram ser apresentadas em programas televisivos, como
TV Xuxa e TV Cultura, citados por eles.
Nas apresentações de contos populares pelos educandos percebi a dificuldade que eles
sentiam em deixar de lado o texto escrito. Pedi que buscassem histórias conhecidas, contadas
por alguém. Todavia, alguns sentiram necessidade de escrever as histórias. Dois desses grupos
modificaram a narrativa Quirino, vaqueiro do Rei, e outro elaborou uma história misturando
elementos da Bela Adormecida. Ambos os textos escritos pelos alunos encontram-se no anexo
deste trabalho.
101
No entanto, quando observamos os alunos da 6ª série do colégio particular, que
estavam dentro da mesma faixa etária que os da escola pública, percebemos que esses
discentes reconheciam narrativas que lhes foram contadas, outras lidas e trabalhadas em sala
de aula. Eles buscavam ouvir histórias de conhecidos, procuravam livros na biblioteca, e não
sentiam dificuldade em deixar de lado o texto escrito.
Benjamin, no seu texto Experiência e pobreza, fala sobre a pobreza de experiência que
acomete a vida humana. O indivíduo em meio à violência, cansado com as dificuldade da vida
diária torna-se pobre em comunicar experiências sejam elas concisas, como os provérbios,
sejam prolixas, como as narrativas. Com isso, a dificuldade em narrar um conto e reconhecer
um conto proferido aumenta como aconteceu com a 6ª série A do colégio público: os alunos
sentiram necessidade em buscar nos livros histórias populares para contar em sala e, quando
contavam muitos se apoiaram na leitura do texto que escreveram cobre a narrativa; o
reconhecimento de grande parte dos contos populares abordados em sala deu-se não por meio
da memória coletiva, mas por programas televisivos.
Os alunos da escola pública, da 6ª série A, ao apoiarem-se em fontes escritas,
mostraram insegurança no desenvolvimento dos trabalhos apresentados. Não buscavam
contos na comunidade porque não estabeleciam diálogos com os familiares. Enquanto isso,
os discentes da escola particular dialogavam com seus familiares a respeito das atividades
realizadas, reflexo de maior presença da família na vida desses educandos.
A turma 6ª B do colégio público era formada por alunos fora de faixa etária, repetentes
e sem interesse pelo estudo. No início acreditei que a atividade nessa turma teria sucesso, pois
havia conseguido envolver a aluna “líder” com o jogo e, como os discentes seguiam seus
passos, o trabalho estava caminhando bem. Entretanto, após a greve, essa discente abandonou
o ano letivo e, com isso, um rapaz assumiu a “liderança” da turma. Esse aluno conseguiu
deixar a turma B totalmente avessa a qualquer tipo de atividade, fosse ela realizada por mim
ou pela professora. Sofri ameaças de roubo, presenciei agressões físicas entre discentes dessa
turma quando chegavam drogados à sala de aula. A polícia militar visitava a escola
constantemente, mas no dia de sua visita – que era aleatório – esse aluno não estava na escola.
Apenas dois grupos se apresentaram nessa turma. Um deles formado por meninas, se
apresentou duas vezes. Durante a atividade das alunas, elas foram agredidas verbalmente
pelos rapazes.
Um grupo formado por rapazes desejou apresentar uma roda de capoeira. Deixei que
eles a fizessem, e tentei conversar sobre capoeira com eles. Nesse momento, acreditei que
tinha encontrado algo de que eles gostavam, ou melhor, que o “líder” apreciasse. No entanto,
102
minhas intenções arrefeceram-se quando três palavras foram pronunciadas por este aluno aos
outros: “Não dá bola!”. Obedientes ao “líder”, ignoraram-me durante o restante da aula.
O trabalho com a turma B pode não ter dado certo, se comparado ao realizado com a
da turma A, mas nos traz reflexões sobre o papel do educador. Alunos como os da turma B
são desacreditados pela família, não vêem o estudo como um futuro, não confiam nas pessoas.
O profissional que lida com eles precisa conquistá-los através daquilo que lhes causa
interesse. E isso precisa de tempo. Por se tratar de uma pesquisa com tempo limitado, eu só
descobri o interesse do aluno “líder” pela capoeira no fim do trabalho. Mas consegui atrair a
atenção da aluna “líder”.
Outro empecilho para o desenvolvimento da atividade na turma B era o fato de eles
me verem como estagiária – foi assim que me apresentaram -, circunstância desvalorizante
nas suas concepções a respeito da habilitação, liderança e influência exercida pelo docente, a
ponto de ser considerada aluna como eles que faria umas “besteiras” – palavra dita pelos
educandos - na sala de aula e desapareceria ao término do trabalho.
O fato de esses alunos me verem como estagiária provocou em mim reflexões sobre o
papel do estagiário na escola pública, principalmente em séries compostas por alunos como os
da turma B. Porque esses alunos são carentes de afeto, esperança, confiança e, às vezes, eles
podem se identificar com algum estagiário e, este, quando tiver seu trabalho concluído,
deixará a escola. Conseqüentemente, os educandos que se identificaram com ele sentem-se
(mais uma vez) abandonados. Além disso, o ingresso do estagiário nesse tipo de turma pode
dificultar um trabalho de socialização que o educador esteja realizando.
Voltando o nosso olhar para a atividade ocorrida na escola pública, o trabalho
desenvolveu-se bem, graças à utilização do jogo dramático nos encontros, pois ele facilitou o
meu entrosamento com os educandos da turma A e da turma B - esta no início do jogo-, bem
como possibilitou aos alunos sentirem-se livres, espontâneos e criativos. E tudo isso ocorreu
em pouco tempo e como estagiária, na visão deles. Provavelmente com a função de
educadora, eu teria conseguido melhores resultados com esses educandos; resultados como os
que obtive com os discentes do colégio particular, onde por ser professora, eu tinha mais
autonomia, liberdade e tempo para desenvolver qualquer trabalho com os alunos. E, nessa
função de professor, nós, educadores e educandos, poderemos conseguir promover um
ambiente agradável à aprendizagem desde que assim o desejemos.
Com isso, queremos assinalar a importância de encontrarmos caminhos para a
aprendizagem do educando. Caminhos diferentes da memorização, didatização, do
utilitarismo. Caminhos que envolvam a liberdade, a espontaneidade e a criatividade do
103
educando a fim de alcançarmos a reflexão, a valorização de conceitos éticos, a compreensão
do ser humano em relação a si mesmo e ao Universo.
Decorre da realização desse trabalho e pesquisa, essencialmente, a constatação da
relevância do jogo dramático como instrumento coadjuvante no estudo do conto popular no
Ensino Fundamental II, proporcionando um aprendizado de forma lúdica, prazerosa e,
conseqüentemente, da contribuição valiosa que pode oferecer para sua maior difusão – conto
popular -, além do estímulo à leitura ao intensificar ou despertar nos educandos o gosto de ler.
Acreditamos que o caminho unindo conto popular e jogo dramático pode auxiliar
educadores a encontrarem alternativas para as diversas realidades em que se encontram.
Ressaltamos ser esse trabalho apenas o início de um estudo, de uma análise, pois muitas
idéias, reflexões, críticas e discordâncias enriquecedoras serão pretexto para o
desenvolvimento de pesquisas sobre o tema.
104
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ANEXOS
109
ANEXO A – A BELA ABORRECIDA
110
111
ANEXO B – TEXTO DO GRUPO ALÉM DA IMAGINAÇÃO (BASEADO
NA VERSÃO DE QUIRINO, VAQUEIRO DO REI)
112
ANEXO C – O BICHO FOLHA
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