conhecimento tÁcito e conhecimento escolar

Upload: robert-loureiro

Post on 08-Apr-2018

234 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    1/25

    601Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLARNA FORMAO DO PROFESSOR

    (POR QUE DONALD SCHN NO ENTENDEU LURIA)

    NEWTON DUARTE*

    Como as coisas no se mostram ao homem diretamente

    tal qual so e como o homem no tem a faculdade dever as coisas diretamente na sua essncia, a humanida-de faz um dtourpara conhecer as coisas e sua estrutu-ra. Justamente porque tal dtour o nico caminhoacessvel ao homem para chegar verdade, periodica-mente a humanidade tenta poupar-se o trabalho dessedesvio e procura observar diretamentea essncia dascoisas.

    (Karel Kosik, 1976, p. 21)

    RESUMO: O objetivo do texto mostrar que os estudos deDonald Schn no campo da formao profissional em geral e daformao de professores em particular pautam-se numa episte-mologia que desvaloriza o conhecimento cientfico/terico/acad-mico e numa pedagogia que desvaloriza o saber escolar. Nestadireo feita uma anlise crtica das idias de Schn acerca doconhecimento tcito e do conhecimento escolar. Essa anlise cr-tica das idias de Schn inserida no contexto de uma crtica aospressupostos epistemolgicos hegemnicos atualmente no campodos estudos sobre formao de professores.

    Palavras-chave: Formao de professores. Epistemologia da prtica.Professor reflexivo. Conhecimento tcito. Conheci-mento escolar.

    * Livre-docente em Psicologia da Educao, professor da Universidade Estadual Paulista J-lio de Mesquita Filho (UNESP, Araraquara) e bolsista de produtividade em pesquisa doCNPQ. E-mail: [email protected]

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    2/25

    602 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    TACITKNOWLEDGEANDSCHOOLKNOWLEDGEINTEACHERS EDUCATION(WHYDONALD SCHNDIDNTUNDERSTAND LURIA)

    ABSTRACT: This paper defends that Donald Schns works onprofessional education in general and more particularly on teachers

    education are based both on an epistemology that devalues scientificknowledge and on a pedagogy that devalues school knowledge. Acritical analysis of Schns concepts of tacit knowledge (or reflection-in-action) and school knowledge is presented. This critical analysis isinserted in the context of a criticism of the currently hegemonicepistemological ideas in the field of studies on teachers education.

    Key words: Teachers education. Epistemology of practice. Reflectivepractitioner. Tacit knowledge. School knowledge.

    omo sabido, os estudos realizados por Donald Schn, sobreos processos de formao do profissional reflexivo (Schn,1987, 1997 e 2000), tornaram-se referncia para muitas pes-

    quisas e propostas no campo da formao de professores. No centrodas proposies de Schn para a formao profissional encontra-se adistino entre o conhecimento tcito, o qual Schn denomina tam-bm como reflexo na ao, e o conhecimento escolar. Neste artigopretendo problematizar os pressupostos epistemolgicos e pedaggi-

    cos contidos na oposio que Schn estabelece entre esses dois tiposde conhecimento. Pretendo argumentar que Schn adota uma peda-gogia que desvaloriza o conhecimento escolar e uma epistemologiaque desvaloriza o conhecimento terico/cientfico/acadmico. Antes,porm, de analisar as idias de Schn, iniciarei este artigo mostrandoque a questo da desvalorizao do saber terico est presente em v-rios autores que se tornaram referncia no campo dos estudos sobreformao de professores.

    1. A questo epistemolgica no centrodo debate sobre a formao de professores

    A questo epistemolgica que est no centro do debate sobreformao de professores explicitada por vrios autores. Um deles Maurice Tardif, cujo artigo publicado no ano 2000 na Revista Brasi-leira de Educao, peridico da Associao Nacional de Ps-Gradua-

    o e Pesquisa em Educao (ANPEd), intitulou-se Saberes profissio-nais dos professores e conhecimentos universitrios: elementos parauma epistemologia da prtica profissional dos professores e suas con-

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    3/25

    603Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    seqncias em relao formao para o magistrio (Tardif, 2000).Nesse artigo, Tardif inicia sua anlise pela constatao da existnciade um paradoxo na conjuntura contempornea relativa formao deprofessores: por um lado haveria um movimento no sentido da

    profissionalizao do trabalho docente e, por outro, as profisses e aformao profissional estariam passando por um perodo de profundacrise. Essa crise das profisses poderia ser resumida, segundo Tardif,em quatro pontos: crise da percia profissional; crise de confiana nacapacidade da universidade em formar bons profissionais; crise do po-der profissional ou da confiana do pblico em relao aos profissio-nais e, por fim, crise da tica profissional. Nesse contexto de pressopor profissionalizao do trabalho docente e, ao mesmo tempo, decrise das profisses, sobressai a questo da epistemologia da prtica:

    , portanto, nesse contexto duplamente coercitivo que a questo de umaepistemologia da prtica profissional acha sua verdadeira pertinncia. Defato, se admitirmos que o movimento de profissionalizao , em grandeparte, uma tentativa de renovar os fundamentos epistemolgicos do ofciode professor, ento devemos examinar seriamente a natureza desses funda-mentos e extrair da elementos que nos permitam entrar num processo re-flexivo e crtico a respeito de nossas prprias prticas como formadores ecomo pesquisadores. (...) chamamos de epistemologia da prtica profissio-

    nal o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos professo-res em seu espao de trabalho cotidiano para desempenhar sua tarefa.(Tardif, 2000, p. 10)

    A partir dessa definio de epistemologia da prtica profissio-nal, Tardif desenvolve toda sua argumentao no sentido de mostrarque os cursos de formao no mbito da universidade no tm dadoconta adequadamente da formao profissional por estarem centradosno saber acadmico, terico, cientfico. A proposta de Tardif justa-

    mente a de que as pesquisas desenvolvidas no mbito educacional sevoltem quase que inteiramente para a investigao dos saberes que osprofessores utilizariam em seu cotidiano profissional, frisando bemclaramente que no se devem confundir os saberes profissionais comos conhecimentos transmitidos no mbito da formao universitria(idem, ibid., p. 11). Esse autor tambm bastante taxativo quantos conseqncias, para a pesquisa educacional, de sua definio deepistemologia da prtica profissional:

    Do ponto de vista metodolgico, essa definio exige o que poderamos cha-mar de um distanciamento etnogrfico em relao aos conhecimentos uni-

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    4/25

    604 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    versitrios. Dizendo de maneira polmica, se os pesquisadores universitriosquerem estudar os saberes profissionais da rea de ensino, devem sair de seuslaboratrios, sair de seus gabinetes na universidade, largar seus computado-res, largar seus livros e os livros escritos por seus colegas que definem a natu-reza do ensino, os grandes valores educativos ou as leis da aprendizagem, e

    ir diretamente aos lugares onde os profissionais do ensino trabalham, paraver como eles pensam e falam, como trabalham na sala de aula, como trans-formam programas escolares para torn-los efetivos, como interagem com ospais dos alunos, com seus colegas etc. (Idem, ibid., p. 12)

    Dando continuidade a seu artigo, Tardif apresenta uma ca-racterizao dos saberes profissionais dos professores, pautado, se-gundo afirma, em seus prprios estudos sobre o trabalho docente eem estudos recentes realizados nos Estados Unidos, nos quais foram

    apresentadas snteses de pesquisas empricas sobre os saberes docen-tes. Os saberes profissionais dos professores so ento caracterizadospor Tardif como saberes temporais, plurais, heterogneos, persona-lizados, situados e, por fim, como saberes que carregam as marcasdo ser humano em conseqncia de o objeto do trabalho docenteser constitudo por seres humanos (idem, ibid., p. 13-18). Esses sa-beres deveriam ento, segundo Tardif, ocupar lugar central nos cur-sos de formao de professores, o que exigiria no s uma mudana

    curricular nesses cursos como tambm uma verdadeira reforma uni-versitria, de maneira que a carreira acadmica concedesse menosimportncia ao trabalho de pesquisa no campo das disciplinas aca-dmicas e concedesse mais importncia ao trabalho de investigaodos saberes profissionais e de sua utilizao nos cursos de formaode professores. Os cursos deveriam abandonar o modelo aplica-cionista, abandonar a lgica disciplinar e passar a trabalhar se-gundo uma lgica profissional centrada no estudo das tarefas e rea-

    lidades do trabalho dos professores (idem, p. 19). A conseqnciadesse tipo de proposta para a discusso sobre os cursos de formaode professores no poderia ser diferente:

    (...) preciso quebrar a lgica disciplinar universitria nos cursos de forma-o profissional. No estamos dizendo que preciso fazer as disciplinas daformao de professores desaparecerem; dizemos somente que preciso fazercom que contribuam de outras maneira e tirar delas, onde ainda existe, ocontrole total na organizao dos cursos. Essa tarefa difcil porque exige

    uma transformao nos modelos de carreira na universidade, com todos osprestgios simblicos e materiais que os justificam. (...) A lgica da socializa-o profissional(...) deve progressivamente excluir a lgica disciplinar como fun-damento da formao. (Idem, ibid., p. 21; grifo meu)

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    5/25

    605Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Diante dessa concluso coerente com o artigo em seu todo,sou levado a afirmar que a discusso, entre os educadores brasilei-ros, sobre a instituio mais adequada para a formao de professo-res (se a universidade ou se outro tipo de instituio) deveria ser

    reformulada, pois, mesmo mantendo-se a formao de professoresno mbito da universidade, a qualidade dessa formao poder noser assegurada. Em outras palavras, o que estou querendo dizer que Tardif prope uma mudana estrutural no s nos cursos de for-mao como tambm na carreira universitria, de maneira que se re-leguem a um segundo plano os conhecimentos acadmicos, cient-ficos, tericos. Creio ser fcil perceber que isso tem implicaes atmesmo em termos do nmero de vagas existentes nas universidadespara contratao de docentes e pesquisadores no campo dos chama-dos fundamentos da educao. Isso para no falar da questo doscritrios adotados para anlise dos pedidos de financiamento pes-quisa educacional (na tica de Tardif, o que seria considerado umaboa pesquisa em Filosofia da Educao, por exemplo?). E para queno se diga que estou exagerando na constatao das conseqnciasda proposta de Tardif, vejamos como ele mesmo encerra seu artigo,defendendo a necessidade de os professores universitrios investiga-rem suas prprias prticas de ensino:

    Na universidade, temos com muita freqncia a iluso de que no temosprticas de ensino, que ns mesmos no somos profissionais do ensino ouque nossas prticas de ensino no constituem objetos legtimos para a pes-quisa. Esse erro faz que evitemos os questionamentos sobre os fundamen-tos de nossas prticas pedaggicas, em particular nossos prprios postula-dos implcitos sobre a natureza dos saberes relativos ao ensino. Noproblematizada, nossa prpria relao com os saberes adquire, com o pas-sar do tempo, a opacidade de um vu que turva nossa viso e restringe nos-

    sas capacidades de reao. Enfim, essa iluso faz com que exista um abis-mo enorme entre nossas teorias professadas e nossas teorias praticadas:elaboramos teorias do ensino e da aprendizagem que s so boas para osoutros, para nossos alunos e para os professores. Ento, se elas s so boaspara os outros e no para ns mesmos, talvez isso seja a prova de que essasteorias no valem nada do ponto de vista da ao profissional, a comear pelanossa. (Idem, ibid., p. 21; grifo meu)

    Concordo que devamos fazer constantemente a crtica aos fun-damentos de nosso prprio trabalho como professores universitrios.

    Concordo tambm que no estamos imunes a contradies entre oque professamos e o que fazemos. Mas meu questionamento dirige-sea outro ponto: o argumento de Tardif visa justamente a solapar a va-

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    6/25

    606 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    lorizao do conhecimento terico, acadmico, cientfico, visa a mos-trar que esse tipo de conhecimento no vale nada do ponto de vistada ao profissional. Note o leitor que Tardif no apresentou a con-tradio entre teorias professadas e teorias praticadas como uma

    exceo, mas sim como a regra. Em conseqncia, a superao desseproblema no estaria na busca de coerncia com a teoria professada,mas sim no seu abandono e no reconhecimento de que a verdadeirateoria aquela que est implcita na prtica.

    Ao longo de todo o artigo os argumentos de Tardif vo se so-mando e encadeando-se a fim de conduzir concluso sobre airrelevncia ou at mesmo sobre o carter prejudicial do saber cient-fico/terico/acadmico tanto na formao de professores como na pes-

    quisa educacional. No posso deixar de identificar nessa proposiode Tardif aquele movimento caracterizado por Maria Clia Marcondesde Moraes como o recuo da teoria na pesquisa em educao:

    A celebrao do fim da teoria movimento que prioriza a eficincia e aconstruo de um terreno consensual que toma por base a experincia ime-diata ou o conceito corrente de prtica reflexiva se faz acompanhar dapromessa de uma utopia alimentada por um indigesto pragmatismo (...).Em tal utopia pragmatista, basta o saber fazer e a teoria considerada per-

    da de tempo ou especulao metafsica e, quando no, restrita a uma orat-ria persuasiva e fragmentria, presa sua prpria estrutura discursiva.(Moraes, 2001, p. 3)

    Outro autor que tambm situa a questo epistemolgica nocentro do debate sobre formao de professores PhilippePerrenoud. Em um livro recente, intitulado A prtica reflexiva noofcio de professor: profissionalizao e razo pedaggica, Perrenoud(2002) afirma que embora a universidade, por desenvolver pesqui-

    sas, parea ser a instituio adequada para a formao do professorreflexivo, na realidade a formao desse tipo de profissional nodecorre espontaneamente da existncia de um ambiente de pes-quisa, pois a mesma no est dirigida formao profissional. Se auniversidade deseja formar professores reflexivos ento ela deveria,segundo Perrenoud (2002, p. 89-105), abandonar quatro ilusessobre o estado dos saberes tericos e sua pertinncia para fundaruma prtica profissional: a iluso cientificista, a iluso disci-

    plinar, a iluso da objetividade e a iluso metodolgica. A ca-racterizao que Perrenoud faz dessas quatro iluses aponta, nofundamental, para a mesma direo que o texto de Tardif, isto ,

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    7/25

    607Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    para a desvalorizao do papel do conhecimento cientfico/teri-co/acadmico na formao do professor. O tema do papel da uni-versidade e dos conhecimentos tericos na formao de professo-res j fora tratado por Perrenoud na conferncia de abertura da

    XXII Reunio Anual da ANPEd ocorrida em 1999, conferncia essadepois publicada como artigo na Revista Brasileira de Educao,com o ttulo Formar professores em contextos sociais em mudan-a: prtica reflexiva e participao crtica (Perrenoud, 1999). Nes-se artigo se l o seguinte:

    A universidade parece ser o lugar, por excelncia, da reflexo e do pensamen-to crtico. Pode-se ento ser tentado a dizer que formar os professores segun-do esse paradigma uma tarefa natural das universidades. Todavia, salvo

    em medicina, engenharia e administrao, a universidade no est organiza-da para desenvolver competncias profissionais de alto nvel. Mesmo nessesdomnios, Tardif mostra que os saberes disciplinares superam o desenvolvi-mento de competncias. Isso levou algumas faculdades de medicina a ope-rarem uma revoluo, introduzindo a aprendizagem por problemas, que co-loca a abordagem terica a servio da resoluo do problema clnico desde oprimeiro ano. (Idem, ibid., p. 14)

    Quando essa conferncia foi proferida por Perrenoud, algumas

    pessoas ficaram chocadas com o fato de esse autor questionar que auniversidade seja o melhor local para a formao de professores. Na-quela ocasio fiquei um tanto surpreso com a reao dessas pessoaspois o questionamento formulado por Perrenoud uma conseqn-cia lgica dos pressupostos epistemolgicos que do sustentao aosestudos por ele realizados. Tais pressupostos j estavam bastante cla-ros na coletnea de textos desse autor intitulada Prticas sociolgi-cas, profisso docente e formao: perspectivas sociolgicas(Perrenoud,1997), cuja primeira edio em portugus foi lanada em 1993 comapresentao de Antnio Nvoa. Alm dos pressupostos propria-mente epistemolgicos de Perrenoud, tambm seus pressupostos pe-daggicos endeream para a desvalorizao do saber escolar. Esse au-tor nunca escondeu seu vnculo ao iderio escolanovista, isto , schamadas pedagogias ativas (idem, p. 71-90). Em meu artigointitulado As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilusesda assim chamada sociedade do conhecimento (Duarte, 2001a),mostrei que o prprio Perrenoud estabelece uma linha de continui-

    dade entre as pedagogias ativas, o construtivismo e a pedagogia dascompetncias. Nesta perspectiva, defende que os professores trans-formem-se em formadores:

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    8/25

    608 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Em ltima instncia, seja qual for seu pblico, desejamos que todos os pro-fessores tambm se tornem formadores, tanto no caso de crianas quanto node estudantes mais velhos. Lutar contra a excluso, contra o fracasso escolar,contra a violncia; desenvolver a cidadania, a autonomia, criar uma relaocrtica com o saber: tudo isso exige que os professores de todos os nveis

    transformem-se em formadores. Sem dvida, esta a razo fundamental deprivilegiar a postura reflexiva. (Perrenoud, 2002, p. 186-187)

    Perrenoud apresenta, num quadro, as caractersticas que distin-guiriam o professor do formador. Mencionarei algumas delas: o pro-fessor d prioridade aos conhecimentos, j o formador d prioridades competncias; o professor concebe a aprendizagem como assimila-o de conhecimentos, j o formador concebe a aprendizagem comotransformao da pessoa; o professor adota uma postura de sbio quecompartilha seu saber, j o formador adota uma postura de treinadorque orienta com firmeza uma autoformao; o professor parte de umprograma, ao passo que o formador parte das necessidades, prticas eproblemas encontrados (Perrenoud, 2002, p. 187). Todas essas dife-renas entre o professor e o formador coadunam perfeitamente com oque caracterizei como sendo os quatro princpios valorativos contidosno lema aprender a aprender (Duarte, 2001b e 2001a), o que equi-vale a afirmar que h uma indissocivel ligao, nos trabalhos de

    Perrenoud, entre as pedagogias do aprender a aprender (escola nova,construtivismo) e a formao do professor reflexivo. Como mostrareimais adiante neste artigo, tal relao tambm est presente nos tra-balhos de Donald Schn.

    Essa relao entre os estudos no campo da formao de profes-sores e a descaracterizao do professor, o qual deixa de ser visto comoagente da transmisso do saber escolar, tambm pode ser identificadano contexto educacional brasileiro. Isabel Alice Lelis (2001) aborda

    essa questo em artigo publicado na revista Educao & Sociedade,intitulado Do ensino de contedos aos saberes do professor: mudan-a de idioma pedaggico?. J no resumo do artigo essa questo explicitada de forma bastante clara:

    Este trabalho tem o objetivo de decifrar algumas das tendncias da produ-o intelectual sobre formao de professores nos ltimos vinte anos noBrasil, chamando a ateno para os idiomas pedaggicos que tiveram im-pacto entre os educadores. No mapeamento da literatura especializada, al-

    guns autores/textos foram tomados como exemplares por representarem l-gicas de pensamento marcantes a respeito do papel da teoria e da prticana formao docente. Do balano efetuado, o que se verificou foi a ruptu-

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    9/25

    609Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    ra de um idioma pedaggico, passando-se de uma pedagogia marcadamen-te conteudista sob a hegemonia de uma razo terica para uma perspecti-va que aponta para uma epistemologia da prtica.

    O adjetivo conteudista tem uma clara conotao negativa, a

    qual confirmada pela anlise formulada ao longo do texto. Lelisconsidera um avano a ruptura com uma pedagogia que valorizava atransmisso dos contedos pela escola e valorizava tambm o conhe-cimento terico na formao de professores. Em substituio a essapedagogia difundida entre os educadores brasileiros na dcada de80 do sculo XX, teria ocorrido, na dcada de 90, uma mudanade foco, em grande parte influenciada pela ampla difuso dos tra-balhos de autores estrangeiros no campo da formao de professo-

    res. Segundo Lelis:(...) sob ngulos diversos, esses autores ajudaram a pensar a constituio dossaberes dos professores, em uma pauta diversa de uma pedagogia centradano saber elaborado ao refletirem sobre os limites da formao prvia e, nela,dos conhecimentos acadmicos na constituio do saber docente; ao afirma-rem a centralidade da instituio escolar enquanto lcusde formao do ma-gistrio; ao revelarem a fora da experincia escolar passada enquanto alunono desenvolvimento da prtica pedaggica; e, finalmente, ao assinalarem ocarter de improvisao a marcar o trabalho docente. (Lelis, 2001, p. 53-54)

    Todo o texto de Lelis dirigido para a anlise da questoepistemolgica e pedaggica que estaria no centro dessa mudana,isto , o distanciamento com relao a uma pedagogia centrada nosaber elaborado.

    Os estudos que tenho realizado sobre as relaes entre oconstrutivismo e outros iderios pedaggicos1 me levam a afirmar queLelis est correta quando afirma que no Brasil os estudos sobre for-

    mao de professores realizados na dcada de 1990 teriam significa-do uma mudana de enfoque pedaggico na direo de um distancia-mento com relao a uma pedagogia centrada no saber escolar.Entretanto, ao contrrio de Lelis, que considera esse processo umavano, eu o considero um retrocesso. Alm disso tambm diferen-te a maneira como analiso as relaes entre tal processo de mudanadas referncias predominantes no campo da formao de professorese o contexto poltico-ideolgico da dcada de 1990. Neste sentido

    destacarei duas questes ausentes do trabalho de Lelis. A primeiraquesto a das relaes entre a difuso dessa linha de estudos sobre aformao de professores e o boom construtivista. No foi obra do aca-

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    10/25

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    11/25

    611Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    dade. O filsofo Karel Kosik (1976, p. 41), ao tratar da concepomarxista de totalidade concreta, mostra que Hayek estava equivoca-do quando criticou a epistemologia marxista, pois Hayek afirmou serimpossvel o conhecimento na perspectiva da totalidade em conseq-

    ncia da impossibilidade de se conhecerem todos os fatos que com-pem o real, isto , em conseqncia daquilo que Lelis chamou deinfinitude do real. Kosik mostra que o equvoco desse argumentoreside justamente em que a perspectiva marxista da totalidade nosignifica a pretenso de esgotar todos os fatos:

    Existe uma diferena fundamental entre a opinio dos que consideram a re-alidade como totalidade concreta, isto , como um todo estruturado em cur-so de desenvolvimento e de autocriao, e a posio dos que afirmam que o

    conhecimento humano pode ou no atingir a totalidade dos aspectos edos fatos, isto , das propriedades das coisas, das relaes e dos processos darealidade. Como o conhecimento humano no pode jamais, por princpio,abranger todos os fatos pois sempre possvel acrescentar fatos e aspectosulteriores a tese da concreticidade ou da totalidade considerada uma ms-tica. Na realidade, totalidade no significa todos os fatos. Totalidade signifi-ca: realidade como um todo estruturado, dialtico, no qual ou do qual umfato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmen-te compreendido. (Idem, p. 35)

    Alis, a epistemologia neoliberal e a epistemologia ps-moder-na convergem na abordagem que condena a perspectiva marxista detotalidade, ainda que o faam por distintas razes tericas e prticas.Os estudos no campo da epistemologia da prtica e do professorreflexivo esto fortemente impregnados dos temas e das abordagensprprios do universo ideolgico neoliberal e ps-moderno. Isso ficamuito evidente, por exemplo, na leitura dos textos reunidos porAntnio Nvoa na coletnea intitulada Os professores e a sua formao

    (Nvoa, 1997). O artigo de Thomas S. Popkewitz, nessa coletnea,aborda a relao entre profissionalizao e formao de professores,sendo explcito na defesa da necessidade de se passar, na anlise daquesto da profissionalizao do trabalho do professor, de uma tra-dio iluminista a uma tradio ps-moderna (Popkewitz, 1997,p. 46). Coerente com sua linha ps-estruturalista foucaultiana de an-lise, Popkewitz acrescenta um certo tom de ceticismo s anlises daprofissionalizao, da formao de professores e dos currculos, apon-

    tando para as relaes de poder que penetrariam a educao de formacapilar, na linha da microfsica do poder. Tambm dentro de umalinha ps-moderna de anlise mas menos preocupado com as relaes

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    12/25

    612 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    de poder, Angel Prez Gmez, em artigo intitulado O pensamentoprtico do professor, publicado nessa mesma coletnea, deixa clarasas relaes entre, por um lado, o esprito anticientfico e subjetivistada epistemologia ps-moderna e, por outro lado, o esprito pragma-

    tista tpico da ideologia neoliberal, isto , a ideologia do capitalismocontemporneo:

    Na vida profissional, o professor defronta-se com mltiplas situaes para asquais no encontra respostas pr-elaboradas e que no so suscetveis de seranalisadas pelo processo clssico de investigao cientfica. Na prtica profis-sional, o processo de dilogo com a situao deixa transparecer aspectos ocul-tos da realidade divergente e cria novos marcos de referncia, novas formas eperspectivas de perceber e reagir. A criao e construo de uma nova reali-

    dade obrigam a ir alm das regras, fatos, teorias e procedimentos conhecidose disponveis: Na base dessa perspectiva, que confirma o processo de refle-xo na ao do profissional, encontra-se uma concepo construtivista da re-alidade com que ele se defronta (Schn). No h realidades objetivas pass-veis de serem conhecidas; as realidades criam-se e constroem-se no intercm-bio psicossocial da sala de aula. As percepes, apreciaes, juzos e credos doprofessor so um fator decisivo na orientao desse processo de construoda realidade educativa. (Prez Gmez, 1997, p. 110)

    A afirmao de que no h realidades objetivas passveis de

    serem conhecidas tipicamente ps-moderna. Por outro lado, opragmatismo presente nos argumentos de Prez Gmez tipicamen-te neoliberal. Na verdade no to fcil quanto algumas pessoaspensam separar os iderios pedaggicos afinados com a ideologianeoliberal daqueles iderios afinados com ideologias ps-modernaspretensamente de esquerda. Em meu livro Vigotski e o aprender aaprender: crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernas da te-oria vigotskiana (Duarte, 2001b) abordei essa questo no que se re-

    fere s interpretaes da psicologia de Vigotski, pautando-me na tesede que ps-modernismo e neoliberalismo formam duas faces de ummesmo universo ideolgico, ainda que muitos autores ps-moder-nos se considerem de esquerda e vejam a si mesmos comoopositores do neoliberalismo. Ambos, o pragmatismo neoliberal e oceticismo epistemolgico ps-moderno, esto unidos na veneraoda subjetividade imersa no cotidiano alienado da sociedade capita-lista contempornea:

    Instaurou-se a poca ctica e pragmtica, dos textos e das interpretaes queno podem mais expressar ou, at mesmo, se aproximar da realidade, mas seconstituem em simples relatos ou narrativas que, presas das injunes de uma

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    13/25

    613Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    cultura, acabam por arrimar-se no contingente e na prtica imediata oque se pode denominar de metafsica do presente, ou como define Jameson,uma histria de presentes perptuos (...). O ceticismo, todavia, no apenasepistemolgico, mas tambm tico e poltico. E importa para ns tanto emsua verso conservadora, enquanto pea retrica, consciente ou no, de ve-

    nerao ao mercado, como igualmente em sua verso crtica e radical. Naverdade, esses momentos, conservador e crtico, com freqncia se super-pem de tal modo que, muitas vezes, fica difcil identific-los em sua con-fluncia. (Moraes, 2001, p. 4)

    Nesse ambiente ideolgico vo aos poucos se mostrando as afi-nidades existentes entre vrios tipos de abordagens educacionais. Porexemplo, Joe L. Kincheloe (1997) no livro intitulado A formao doprofessor como compromisso poltico: mapeando o ps-moderno, defen-

    de uma determinada abordagem sobre a formao de professores, naqual os estudos de autores como Schn e Zeichner so inseridos numreferencial que se nutre das contribuies do ps-modernismo de au-tores como Lyotard, Foucault e Derrida; do multiculturalismo dePeter Mclaren; da pedagogia crtica de Henry Giroux; do constru-tivismo crtico de Catherine Fosnot e de vrios outros autores. Todosconvergem, na abordagem defendida por Kincheloe (1997), para aformao do professor como um profissional ps-formal.

    Concluindo este item, esclareo que no foi minha intenoapresentar aqui um inventrio crtico exaustivo dos estudos contem-porneos no campo da formao de professores, mas apenas mostrarque a desvalorizao do conhecimento cientfico/terico/acadmico edo conhecimento escolar nos estudos de Donald Schn no um casoisolado. Trata-se, isto sim, da tendncia principal e dominante nesseterreno dos estudos educacionais. J o momento, ento, de passar anlise das idias de Donald Schn.

    2. As concepes de conhecimentotcito e conhecimento escolar em Donald Schn

    Inicialmente preciso esclarecer por que no dispensarei especialateno diferenciao feita por Schn entre conhecer-na-ao e re-flexo-na-ao. No livro intitulado Educando o profissional reflexivo:um novo design para o ensino e a aprendizagem,Schn (2000, p. 29-

    36) diferencia o que ele chama de conhecer-na-ao e o que ele cha-ma de reflexo-na-ao. O conhecer-na-ao mais automtico,rotineiro, espontneo, isto , tcito. A reflexo-na-ao surgiria a

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    14/25

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    15/25

    615Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    (...) O movimento crescente no sentido de uma prtica reflexiva, cujas ori-gens remontam a John Dewey, a Montessori, a Tolstoi, a Froebel, aPestalozzi, e mesmo ao Emlio de Rosseau, encontra-se no centro de um con-flito epistemolgico. (Schn, 1997, p. 80 e 91)

    Esse conflito epistemolgico entre o conhecimento escolar e a re-flexo-na-ao (ou conhecimento tcito) analisado por Schn tantono que diz respeito formao do professor como no que diz respeitos maneiras por meio das quais a escola trabalha com o conhecimentoque os alunos construiriam em seu cotidiano no-escolar.

    Schn estabelece uma forte ligao entre o conhecimento tci-to (conhecimento cotidiano) que o aluno traz para a sala de aula e oconhecimento tambm tcito que o professor constri ao dar ateno

    aos processos de conhecimento e de pensamento de seus alunos pormeio da reflexo-na-ao. Schn, apoiando-se no filsofo MichaelPolanyi, afirma que o conhecimento tcito :

    espontneo, intuitivo, experimental, conhecimento cotidiano, do tipo reve-lado pela criana que faz um bom jogo de basquetebol, (...) ou que toca rit-mos complicados no tambor, apesar de no saber fazer operaes aritmticaselementares. Tal como um aluno meu me dizia, falando de um seu aluno:Ele sabe fazer trocos mas no sabe somar os nmeros. Se o professor quiser fami-

    liarizar-se com este tipo de saber, tem de lhe prestar ateno, ser curioso, ouvi-lo, surpreender-se, e atuar como uma espcie de detetive que procura desco-brir as razes que levam as crianas a dizer certas coisas. Esse tipo de profes-sor se esfora por ir ao encontro do aluno e entender o seu prprio processode conhecimento, ajudando-o a articular o seu conhecimento-na-ao como saber escolar. Este tipo de ensino uma forma de reflexo-na-ao que exi-ge do professor uma capacidade de individualizar, isto , de prestar atenoa um aluno, mesmo numa turma de trinta, tendo a noo do seu grau decompreenso e das suas dificuldades. (Idem, ibid., p. 82)

    Pode parecer primeira vista que, ao referir-se ao professorque ajuda o aluno a articular o seu conhecimento-na-ao com osaber escolar, Schn estaria valorizando o saber escolar. Issodesautorizaria minha tese de que a pedagogia adotada por Schndesvalorizaria o saber escolar. Mas essa concluso de que Schn va-lorizaria o saber escolar no se sustenta luz de uma anlise maiscuidadosa da argumentao apresentada por Schn, especialmenteno que se refere sua concepo do que seja o conhecimento esco-

    lar. Convm, de passagem, esclarecer que utilizo neste artigo indis-tintamente os termos conhecimento escolar e saber escolar, atporque em Schn (1987) o termo utilizado school knowledge.

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    16/25

    616 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Para esse autor, a uma determinada abordagem do que seja o co-nhecimento e o ato de conhecer corresponderia uma abordagem doque seja a aprendizagem por parte do aluno e do que seja o ensinopor parte do professor. Neste, sentido Schn (1997, p. 81) contra-

    pe duas formas diferentes de considerar o conhecimento, a apren-dizagem e o ensino. A primeira abordagem analisada por Schn se-ria aquela centrada na noo de saber escolar. Vejamos como elecaracteriza o saber escolar:

    Existe, primeiro que tudo, a noo de saber escolar, isto , um tipo de co-nhecimento que os professores so supostos possuir e transmitir aos alu-nos. uma viso dos saberes como fatos e teorias aceites, como proposi-es estabelecidas na seqncia de pesquisas. O saber escolar tido como

    certo, significando uma profunda e quase mstica crena em respostasexatas. molecular, feito de peas isoladas, que podem ser combinadasem sistemas cada vez mais elaborados de modo a formar um conhecimen-to avanado. A progresso dos nveis mais elementares para os nveis maisavanados vista como um movimento das unidades bsicas para a suacombinao em estruturas complexas de conhecimento. (...) o saber es-colar categorial. Finalmente, existe a idia muito importante de que oconhecimento molecular, certo, factual e categorial, tambm privilegia-do. (Schn, 1997, p. 81-82)

    No necessria muita argcia para perceber o tom fortemen-te negativo dessa caracterizao do saber escolar. Compare o leitoressa passagem com aquela anteriormente citada, extrada do textode Prez Gmez, publicado na mesma coletnea que esse texto deSchn. Num texto o autor espanhol critica a idia de uma realida-de objetiva que possa ser conhecida pela cincia, noutro texto o au-tor norte-americano critica a idia de que o saber escolar seja trans-mitido ao aluno como fatos e teorias aceites. Em ambos ressalta o

    relativismo e o subjetivismo tpicos do esprito anticientfico ps-moderno. Schn tambm critica o que considera ser o cartermolecular do saber escolar, o qual seria constitudo de peas iso-ladas. Assim caracterizado o saber escolar, quem sairia em sua defe-sa? Quem defenderia uma pedagogia na qual o professor vistocomo algum que transmite aos seus alunos peas isoladas? O raci-ocnio bastante simples e imediato: se o saber escolar assimcomo o descreve Schn, ento passemos a defender uma pedagogia

    que no esteja baseada no saber escolar.Como mostrei, Schn caracteriza o saber escolar como sendo

    categorial. Como se sabe, um conhecimento categorial trabalha com

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    17/25

    617Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    estruturas lgicas classificatrias do tipo: uma rosa uma flor, umaflor uma planta, uma planta um ser vivo. Justamente no mo-mento no qual Schn analisa o saber escolar como um sabercategorial, ele menciona uma pesquisa realizada pelo psiclogo so-

    vitico Alexander R. Luria:Por outro lado, o saber escolar organiza-se em categorias. Como exemploconsideremos o psiclogo russo Luria, que estudou o desenvolvimentocognitivo em camponeses no momento da coletivizao da agricultura.Luria mostrava-lhes uma coleo de imagens de objetos e dizia: Associem ascoisas que tm a ver umas com as outras. Uma dessas colees continha umaserra, um martelo, um machado e um tronco. Quando Luria dizia Associ-em as coisas que tm a ver umas com as outras, os camponeses afirmavam:Bom, pode usar-se a serra para cortar a madeira para as fogueiras; pode usar-seo machado para cortar a madeira para as fogueiras; por isso possvel associaro tronco, o machado e a serra. Ento Luria retorquiu-lhes: Eu tenho um ami-go que diz que todos os utenslios esto associados. A resposta dos camponesesfoi pronta: O seu amigo deve ter muita lenha para fazer fogueiras!. Agruparobjetos de acordo com os contextos situacionais muito diferente do queagrup-los numa s categoria. Neste sentido, o saber escolar categorial.(Schn, 1997, p. 81)

    Ao final deste texto voltarei a essa pesquisa de Luria para mos-

    trar por que Donald Schn no a entendeu. Por enquanto devo pros-seguir com o raciocnio de Schn. Para ele, haveria uma importanteconseqncia pedaggica dessa diferena psicolgica entre agruparobjetos de acordo com seus contextos situacionais e agrup-los numas categoria. A primeira forma de agrupamento trabalharia com oque Schn chama de representaes figurativas, ao passo que a se-gunda forma de agrupamento trabalharia com representaes for-mais. O professor reflexivo seria aquele que adota uma pedagogia no

    pautada no saber escolar e concentra sua ao nas representaes fi-gurativas contidas no conhecimento-na-ao dos alunos (o conheci-mento cotidiano, tcito):

    Tipicamente, a reflexo-na-ao de um professor implica a questo impor-tantssima das representaes mltiplas. J mencionei o exemplo de Luria emrelao lenha. (...) Todos estes exemplos ilustram a diferena entre o que eue Jeanne Bamberger designamos por representaes figurativas e formais.As figurativas implicam agrupamentos situacionais, contextualizados: as re-

    laes que se estabelecem na maior proximidade possvel das experincias co-tidianas. As formais implicam referncia fixas, numa palavra, o saber escolar.Atravs da reflexo-na-ao, um professor poder entender a compreensofigurativa que um aluno traz para a escola, compreenso que est muitas ve-

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    18/25

    618 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    zes subjacente s suas confuses e mal-entendidos em relao ao saber esco-lar. Quando um professor auxilia uma criana a coordenar as representaes fi-gurativas e formais, no deve considerar a passagem do figurativo para o formalcomo um progresso. Pelo contrrio, deve ajudar a criana a associar estas dife-rentes estratgias de representao. (Idem, ibid., p. 83 e 85; grifo meu)

    A ao pedaggica que fizesse a criana passar do conheci-mento cotidiano e tcito ao conhecimento escolar no deveria,portanto, ser considerada um progresso. Haveria apenas uma co-ordenao ou uma associao de duas diferentes estratgiasrepresentativas. Por essa razo que Schn critica o carter privi-legiado que tradicionalmente tem sido atribudo ao saber escolar.Assim como Schn entende no haver progresso na passagem dosaber cotidiano do aluno ao saber escolar, tambm no haveriaprogresso na passagem do saber prtico do professor ao saber ci-entfico e filosfico sobre a educao. A formao de professoresdeveria, ao invs de concentrar-se no domnio de teorias cientfi-cas, voltar-se para o saber experiencial do professor.

    Apesar de mencionar a coordenao ou a associao entre asduas diferentes formas de representao, uma das quais constitui osaber escolar, Schn, em todo o seu texto, no deixa dvidas quanto sua viso negativa sobre o saber escolar. Ele chega mesmo a estabele-cer uma ligao entre o que ele chama de sistema burocrtico da es-cola e o saber escolar:

    O sistema burocrtico e regulador da escola construdo em torno do saberescolar. Uma iniciativa que ameace esta viso do conhecimento tambmameaa a escola. Quando um professor tenta ouvir os seus alunos e refletir-na-ao sobre o que aprende, entra inevitavelmente em conflito com a bu-rocracia da escola. (Idem, ibid., p. 87)

    Ao mesmo tempo, o saber escolar estaria tambm, segundoSchn, na base das reformas educacionais autoritrias que no ouvemas escolas e os professores, da mesma forma como as escolas no ou-vem os seus alunos:

    A estratgia de ensino baseada no saber escolar anloga estratgia e con-cepo do conhecimento implcitas na vaga atual de reformas educativas.Uma mensagem difundida do centro para a periferia atravs de uma lgi-ca de comunicao e de controle. O conhecimento emanado do centro im-posto na periferia, no se admitindo a sua reelaborao. De fato, quando ogoverno procura reformar a educao, tenta educar as escolas, do mesmomodo que estas procuram educar as crianas. (Idem, ibid., p. 82)

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    19/25

    619Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Nessa linha, seria ento necessrio mudar: 1) a concepo deconhecimento, passando da valorizao do conhecimento escolar va-lorizao do conhecimento tcito, cotidiano, no-cientfico; 2) a pe-dagogia, passando de uma pedagogia centrada na transmisso do sa-

    ber escolar para uma pedagogia centrada na ateno aos processospelos quais os alunos constroem seu conhecimento; 3) a formao deprofessores, passando de uma formao centrada no saber terico, ci-entfico, acadmico para uma formao centrada na prtica reflexiva,centrada na reflexo-na-ao. Nesta perspectiva, o lema aprender fa-zendo da pedagogia escolanovista de inspirao deweyana deveria seradotado tanto em relao educao das crianas e dos adolescentescomo no que diz respeito formao profissional, includa a forma-o de professores:

    O que significa, ento, formar um professor para que ele se torne mais ca-paz de refletir na e sobre a sua prtica? Creio que temos mais a aprendercom as tradies da educao artstica que com os currculos profissionaisnormativos do sistema universitrio de vocao profissionalizante. As ins-tituies de formao artstica (os ateliersde pintura, escultura e design, osconservatrios de msica e de dana) tm longas tradies de formaoprofissional. Mas evidente que muitas dessas instituies ou no estodentro da Universidade ou vivem desconfortavelmente no seu seio. E isso

    por uma boa razo: baseiam-se numa concepo do saber escolar diferenteda epistemologia subjacente Universidade. As tradies desviantes daformao artstica, bem como do treino fsico e da aprendizagem profissio-nal, contm, no seu melhor, as caractersticas de um practicum reflexivo.Implicam um tipo de aprender fazendo, em que os alunos comeam a pra-ticar, juntamente com os que esto em idntica situao, mesmo antes decompreenderem racionalmente o que esto a fazer. Nos ateliersde designarquitetnico, por exemplo, os alunos comeam por desenhar antes de sa-berem o que design. (idem, ibid., p. 88-89)

    A epistemologia e a pedagogia adotadas por Schn levam, por-tanto, assim como acontece com outros autores no campo da forma-o de professores, ao tema da alegada inadequao da universidade,tal como ela se encontra estruturada, no que diz respeito tarefa deformar profissionais, entre eles os professores. Reafirmo o que j afir-mei acima: de pouco ou nada servir a defesa da tese de que formaode professores no Brasil deva ser feita nas universidades, se no fordesenvolvida uma anlise crtica da desvalorizao do conhecimento

    escolar, cientfico, terico, contida nesse iderio que se tornou domi-nante no campo da didtica e da formao de professores, isto , esseiderio representado por autores como Schn, Tardif, Perrenoud,

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    20/25

    620 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Zeichner, Nvoa e outros. De pouco ou nada servir mantermos a for-mao de professores nas universidades se o contedo dessa formaofor maciamente reduzido ao exerccio de uma reflexo sobre os sabe-res profissionais, de carter tcito, pessoal, particularizado, subjetivo

    etc. De pouco ou nada adiantar defendermos a necessidade de os for-madores de professores serem pesquisadores em educao, se as pes-quisas em educao se renderem ao recuo da teoria. Em um textoque apresentei no Encontro Nacional de Didtica e Prtica de Ensi-no (ENDIPE), realizado em 1996 na Universidade Federal de SantaCatarina, e que foi publicado em 1998 na revista CadernosCEDES como ttulo Concepes afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar(Duarte, 1998), afirmei que o escolanovismo e o construtivismo seri-am concepes negativas sobre o ato de ensinar. Agora estendo a mes-ma afirmao aos estudos na linha da epistemologia da prtica, doprofessor reflexivo e da pedagogia das competncias, pois esses es-tudos negam duplamente o ato de ensinar, ou seja, a transmisso doconhecimento escolar: negam que essa seja a tarefa do professor e ne-gam que essa seja a tarefa dos formadores de professores.

    Para encerrar, passarei agora a uma rpida explicao de por queafirmei no ttulo deste artigo que Donald Schn no entendeu Luria.

    3. Por que Donald Schn no entendeu Luria

    Como j mostrei acima, Donald Schn, em certo momento deseu texto, cita uma pesquisa de Luria, objetivando exemplificar acontraposio entre o saber tcito (cotidiano) e o saber escolar. Schncita Luria como se a pesquisa realizada por este desse apoio tese de-fendida por aquele, isto , a tese de que o conhecimento escolar, porsua natureza formal e categorial, ficaria aqum do pensamento coti-diano, ou melhor, do conhecimento tcito, o qual estaria em melho-res condies para lidar com a riqueza e a complexidade das situaesprticas. Como se pode ver, Schn defende que a escola deve deslocarseu foco de ateno do conhecimento escolar para o conhecimento t-cito (cotidiano), deve deixar de considerar o saber escolar superior aosaber cotidiano e deve valorizar as formas de percepo e pensamentoprprias da prtica cotidiana. Esse tipo de educao escolar que de-veria, segundo Schn, constituir o fundamento da formao do pro-

    fessor reflexivo. por esta razo que o saber escolar (o saber acadmi-co, terico, cientfico) tambm deveria deixar de ser o fundamentodos cursos de formao de professores.

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    21/25

    621Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Acontece que Luria (1988 e 1990), ao relatar a pesquisa queplanejou juntamente com Vigotski,4 bastante explcito quanto vi-so que tinha da educao escolar e de seu papel na superao daslimitaes prprias do pensamento cotidiano. Essa superao decor-

    reria, entre outras coisas, justamente do carter categorial do saber es-colar. Na pesquisa realizada por Luria e sua equipe, foram realizadosvrios tipos de entrevistas clnicas com pessoas em diferentes nveisde acesso ao conhecimento escolar e vivendo em diferentes realidadessociais. Foram entrevistadas desde pessoas totalmente analfabetas queviviam e trabalhavam na zona rural, em uma situao de grande iso-lamento, at pessoas que j tinham um certo grau de escolarizao eparticipavam de formas mais socializadas de trabalho. Para explicar

    melhor o tipo de pressuposto psicolgico com o qual essa pesquisatrabalhava, Luria menciona pesquisas anteriormente realizadas porVigotski, nas quais se mostrou que, diferentemente das crianas queagrupam objetos de maneira grfico-funcional (relacionando osobjetos a uma situao prtica do cotidiano), os adolescentes agru-pam os objetos de maneira categorial, isto , taxionmica, como, porexemplo, uma rosa uma flor, uma flor uma planta, uma planta parte do mundo orgnico (Luria, 1988, p. 48). Neste sentido, Luriaafirmou o seguinte com relao aos sujeitos de sua pesquisa:

    Uma vez que toda atividade , inicialmente, fixada nas operaes grficas e pr-ticas, acreditamos que o desenvolvimento do pensamento conceitual, ta-xionmico, articula-se com as operaes tericas que uma criana aprende aexecutar na escola. Se o desenvolvimento do pensamento taxionmico depen-de da escolaridade formal, ns ento esperaramos ver formas taxionmicas deabstrao e generalizao apenas naqueles sujeitos adultos que estiveram expos-tos a algum tipo de escolaridade formal. Uma vez que grande parte dos sujei-tos de nossas pesquisas ou no tinham freqentado a escola ou o fizeram du-

    rante um curto perodo, estvamos curiosos quanto ao princpio que aplicari-am para agrupar objetos encontrados em sua vida diria. (Idem, ibid.)

    Quando Donald Schn citou a pesquisa de Luria, mencionou jus-tamente o caso de um campons analfabeto que se recusou a excluir atora do grupo formado pelas ferramentas, isto , uma serra, um macha-do e um martelo. A resposta dada por esse campons, de que a tora spoderia ser excluda do grupo por algum que tivesse bastante lenha,mostra que esse sujeito da pesquisa realizada por Luria apresentava um

    raciocnio que trabalhava com agrupamentos grfico-funcionais e nocom o pensamento categorial, taxionmico. Luria (idem, p. 50) diz queesta tendncia em contar com operaes usadas na vida prtica foi o

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    22/25

    622 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    fator controlador no caso de pessoas analfabetas e que no tinham rece-bido qualquer educao (educao escolar). Os sujeitos da pesquisa quehaviam alcanado um certo grau de escolarizao apresentavam um pen-samento no mais dominado pelo agrupamento grfico-funcional, mas

    sim um pensamento capaz de trabalhar de forma categorial:A maior parte dos sujeitos classificou os objetos no de acordo com princpi-os verbais e lgicos, mas de acordo com esquemas prticos. Entretanto, essepensamento concreto no inato, nem genericamente determinado. Resultado analfabetismo e dos tipos rudimentares de atividade predominantes naexperincia cotidiana desses sujeitos. Quando muda o padro de vida e seampliam as dimenses da prpria experincia, quando eles aprendem a ler ea escrever, a ser parte de uma cultura mais avanada, esta maior complexida-de de sua atividade estimula novas idias. Tais modificaes, por sua vez, oca-sionam uma reorganizao radical de seus hbitos de pensamento, de modoque eles aprendem a usar e a compreender o valor de procedimentos teri-cos que anteriormente pareciam irrelevantes. (Luria, 1990, p. 106-107)

    Ento a pergunta : como Luria avaliava o fato de que o contextosocial da vida das pessoas possa determinar que o pensamento se limitea operar de forma presa s situaes cotidianas? Eis a resposta:

    Se as pessoas agrupam os objetos e definem palavras com base em experin-

    cias prticas, poder-se-ia esperar que a concluso que tiram de uma premissadada em um problema lgico dependeria tambm de sua experincia prti-ca imediata. Isso dificultaria, e talvez at tornasse impossvel, a aquisio deum novo conhecimento, de maneira discursiva e lgico-verbal. Tal mudanarepresentaria a transio da conscincia sensvel para a racional, fenmeno queos autores marxistas clssicos consideram um dos mais importantes da histria hu-mana. (Luria, 1988, p. 52-53; grifo meu)

    Luria entendia, portanto, que pensamento abstrato, terico,

    categorial, o qual se desenvolveria a partir da educao escolar, seriasuperior ao pensamento grfico-funcional:

    O pensamento conceitual envolve uma enorme expanso das formas resul-tantes da atividade cognitiva. Uma pessoa capaz de pensamento abstrato re-flete o mundo externo mais profunda e completamente e chega a conclusese inferncias a respeito do fenmeno percebido, tomando por base no s asua experincia pessoal, mas tambm os esquemas de pensamento lgico queobjetivamente se formam em um estgio avanado do desenvolvimento daatividade cognitiva. (Luria, 1990, p. 135)

    Quo longe esto essas idias defendidas por Luria daquelas de-fendidas por Schn! Quo opostas so as concepes de Schn e de

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    23/25

    623Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Luria no que diz respeito ao valor do saber escolar, do saber terico,abstrato, racional! Quo opostos so pressupostos epistemolgicos deDonald Schn com relao aos pressupostos epistemolgicos marxis-tas de Luria e Vigotski! E aqui chegamos explicao de por que

    Donald Schn no entendeu Luria, por que o autor norte-americanono se deu conta de que o psiclogo sovitico defendia exatamenteuma posio oposta sua. A resposta est no fato de que Schn ex-traiu da pesquisa de Luria um exemplo, sem contextualizar esse exem-plo no conjunto dos pressupostos terico-filosficos da pesquisa rea-lizada por Luria. Os pressupostos epistemolgicos de Schn estoenraizados no pragmatismo de John Dewey, diferentemente dos pres-supostos epistemolgicos da pesquisa de Luria e Vigotski, os quais es-to enraizados no marxismo. E, como mostrou George Novack(1978), em seu livro Pragmatism versus Marxism, h um conflito in-supervel entre essas duas correntes filosficas. No se dando contadesse conflito, Schn no se deu conta da utilizao indevida que fezda pesquisa de Luria.

    Concluindo este artigo, esclareo que, ao chamar a ateno parao equvoco de Schn, meu intuito no o de desqualificar esse autor,mas sim o de alertar para a necessidade de anlises rigorosas dos fun-damentos filosficos dos autores que vm sendo largamente adotadospela intelectualidade da educao brasileira. J tempo de reagirmosao recuo da teoria, de unirmos os esforos de todos os que no seresignaram perante a passageira hegemonia do ceticismo ps-moder-no e do pragmatismo neoliberal.

    Recebido em dezembro de 2002 e aprovado em abril de 2003.

    Notas1. Contei com apoio do CNPq, durante o perodo de agosto de 1998 a julho de 2002, para

    desenvolvimento de pesquisa intitulada O construtivismo: suas muitas faces, suasfiliaes e suas interfaces com outros modismos.

    2. Sobre as aproximaes entre as polticas neoliberais no campo da formao de professorese os estudos sobre professor reflexivo, vide o texto de Alessandra Arce (2001), publicadono mesmo nmero da revista Educao & Sociedadeem que foi publicado o citado artigode Isabel Alice Lelis.

    3. This reflection-in-action is tacit and spontaneous and often delivered without taking

    thought, and is not a particularly intellectual activity (Schn, 1987).4. Vigotski no pde realizar com Luria o trabalho de campo, pela fragilidade de sua condi-

    o fsica em conseqncia da tuberculose que o acometeu.

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    24/25

    624 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003Disponvel em

    Referncias bibliogrficas

    ARCE, A. Compre o kit neoliberal para a educao infantil e ganhegrtis os dez passos para se tornar um professor reflexivo. Educao &

    Sociedade, Campinas, v. 22, n. 74, p. 251-283, 2001.DUARTE, N. Concepes afirmativas e negativas sobre o ato de en-sinar. Cadernos Cedes, Campinas, n. 44, p. 85-106, 1998.

    DUARTE, N. As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilu-ses da assim chamada sociedade do conhecimento. Revista Brasileirade Educao, Belo Horizonte, n. 18, p. 35-40, 2001a.

    DUARTE, N. Vigotski e o aprender a aprender: crtica s apropria-es neoliberais e ps-modernas da teoria vigotskiana.2 ed. Campi-nas: Autores Associados, 2001b.

    KINCHELOE, J.L. A formao do professor como compromisso poltico.Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997.

    KOSIK, K. Dialtica do concreto. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1976.

    LELIS, I.A. Do ensino de contedos aos saberes do professor: mu-

    dana de idioma pedaggico? Educao & Sociedade, Campinas, v. 22,n. 74, p. 43-58, 2001.

    LURIA, A.R. Diferenas culturais de pensamento.In: VIGOTSKI, L.S.;LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendiza-gem.So Paulo: cone; EDUSP, 1988.

    LURIA, A.R. Desenvolvimento cognitivo.So Paulo: cone, 1990.

    MORAES, M.C.M. Recuo da teoria: dilemas na pesquisa em educa-o. In: INTELECTUAIS, conhecimento e espao pblico; anais da 24Reunio Anual da ANPEd. Caxamb, ANPEd, 2001. CD-ROM.

    NOVACK, G. Pragmatism versus marxism: an appraisal of JohnDeweys philosophy.2 ed. New York: Pathfinder, 1978.

    NVOA, A. (Org.). Os professores e a sua formao. 3 ed. Lisboa:Dom Quixote, 1997.

    PREZ-GOMEZ, A. O pensamento prtico do professor: a formao doprofessor como profissional reflexivo. In: NVOA, A. (Org.). Os professorese a sua formao. 3 ed.Lisboa: Dom Quixote, 1997. p. 95-114.

  • 8/7/2019 CONHECIMENTO TCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR

    25/25

    6

    PERRENOUD, P. Prticas pedaggicas, profisso docente e formao:perspectivas sociolgicas.2 ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997.

    PERRENOUD, P. Formar professores em contextos sociais em mu-dana: prtica reflexiva e participao crtica. Revista Brasileira de Edu-cao, Belo Horizonte, n. 12, p. 5-19, 1999.

    PERRENOUD, P. A prtica reflexiva no ofcio de professor:profissiona-lizao e razo pedaggica.Porto Alegre: Artes Mdicas, 2002.

    POPKEWITZ, T.S. Profissionalizao e formao de professores: al-gumas notas sobre a sua histria, ideologia e potencial. In: NVOA,A. (Org.). Os professores e a sua formao. 3 ed.Lisboa: DomQuixote, 1997. p. 37-50.

    SCHN, D. Educating the reflective practitioner; Donald Schnspresentation to the 1987 meeting of theAmerican EducationalResearch Association. Washington, DC, 1987. Disponvel em: Acessoem: 2003.

    SCHN, D. Formar professores como profissionais reflexivos. In:NVOA, A. (Org.). Os professores e a sua formao. 3. ed.Lisboa: Dom

    Quixote, 1997. p. 79-91.SCHN, D. Educando o profissional reflexivo: um novo designpara oensino e a aprendizagem.Porto Alegre: Artes Mdicas, 2000.

    TARDIF, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentosuniversitrios: elementos para uma epistemologia da prtica profissi-onal dos professores e suas conseqncias em relao formao parao magistrio. Revista Brasileira de Educao, Belo Horizonte, n. 13, p.

    5-24, 2000.