conhecimento geogrÁfico e geografia · discutiremos essas questões neste capítulo e analisaremos...

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CONHECIMENTO GEOGRÁFICO E GEOGRAFIA Desde a Antiguidade, os conhecimentos geográficos ajudam os seres humanos a conhecer e a dominar o espaço. Nos dias atuais, a Geografia assume um papel importante para compreender a relação entre as sociedades e a natureza, mas se deve considerar que essa ciência resulta de um longo processo histórico de construção. Ou seja, ela não é um saber pronto, dado pela visão de apenas um indivíduo em um certo momento, mas é uma ciência derivada de séculos de pesquisas, descobertas e debates. A Geografia é essencial nas análises atuais sobre o processo de organização e reorganização do espaço, para o qual cada indivíduo, sozinho ou coletivamente, dá a sua contribuição. Ela permite com- preender as transformações promovidas no espaço e tem ajudado os grupos sociais a se posicionar de forma mais ética e crítica diante das questões ambientais, sociais, económicas e culturais. É importante refletir sobre como esse conhecimento geográfico se constitui. O que a Geografia estuda? Como as sociedades usam os saberes geográficos acumulados? Como aplicar conhecimentos geográficos no cotidiano? Discutiremos essas questões neste capítulo e analisaremos também o que é o espaço geográfico, objeto de estudo da Geografia. Antes, porém, vamos pensar no papel do geógrafo na sociedade contemporânea e nas suas possibilidades de atuação. No texto a seguir, o papel desse profissional é discutido. r Interagindo Profissão geógrafo Geografia?! Para que serve a Geografia? Sempre que sou questionado sobre o porquê de minha escolha profissional, lembro-me do instigante diálogo travado entre o pequeno príncipe e o geógrafo na clássica obra de Antoine de Saint-Exupéry: - Que livro é esse? -perguntou-lhe o principezinho. - Que faz o senhor aqui? - Sou geógrafo - respondeu o velho. - Que é umgeógrafo? -perguntou o principezinho. -Éum sábio que sabe onde se encontram os mares, os rios, as cidades, as montanhas, os desertos. - É beminteressante - disse o principezinho. - Eis, afinal, uma verdadeira profissão! No meu imaginário infantil - quando tive contato com o livro - e, muito provavelmente, no pensamento da maioria das pessoas, esta é a definição do trabalho do geógrafo, que, como diz a própria etimologia da palavra, trata da descrição da Terra ou do estudo da localização de mares, rios, cidades, montanhas e desertos. Se por um lado não podemos desprezar essa definição tão arraigada, por outro é importante mencionar o quanto as discussões das últimas décadas trouxeram contribui- ções para a Geografia, abordando os seus conceitos, como lugar, região, território, paisagem, e, principalmente, seu objeto de estudo maior, o espaço geográfico. Além, portanto, de simplesmente enumerar rios e mon- tanhas, a Geografia envolve um conjunto muito maior de saberes, dos quais o ensino representa uma importante parte, mas não a única. Outras funções são exercidas em universidades, institutos de pesquisa, órgãos de gestão e planejamento - públicos e privados -, empresas de con- sultoria, organizações não governamentais e em diferentes agências, de instâncias locais a supranacionais. Nos últimos anos, por exemplo, muitos geógrafos de- senvolveram pesquisas que vão de estudos de distribuição espacial de doenças, que direcionam políticas públicas na área da saúde, passando por avaliações de impacto ambiental, por meio do sensoriamento remoto, até chegar às pesquisas que procuram contribuir para a solução de problemas urbanos e para o planejamento regional. Além da carreira académica, ao bacharel, mestre e doutor é permitido atuar como geógrafo propriamente dito, uma profissão regulamentada no Brasil desde 1979 e certificada pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea). De volta ao livro de Saint-Exupéry, mais adiante no diálogo, o personagem geógrafo lembra o pequeno príncipe da total falta de exploradores para desenvolver pesquisas e lecionar. Talvez aí, um importante alento àqueles que buscam, nesta ciência do espaço, o seu lu- gar ao sol. Fonte: Outras formações da Terra. Discutindo Geografia, São Paulo, ano 4, n. 21. Texto do autor.

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CONHECIMENTO GEOGRÁFICO E GEOGRAFIA

Desde a Antiguidade, os conhecimentos geográficos ajudam os seres humanos a conhecer e a dominar

o espaço. Nos dias atuais, a Geografia assume um papel importante para compreender a relação entre as

sociedades e a natureza, mas se deve considerar que essa ciência resulta de um longo processo histórico

de construção. Ou seja, ela não é um saber pronto, dado pela visão de apenas um indivíduo em um certo

momento, mas é uma ciência derivada de séculos de pesquisas, descobertas e debates.

A Geografia é essencial nas análises atuais sobre o processo de organização e reorganização do

espaço, para o qual cada indivíduo, sozinho ou coletivamente, dá a sua contribuição. Ela permite com-

preender as transformações promovidas no espaço e tem ajudado os grupos sociais a se posicionar

de forma mais ética e crítica diante das questões ambientais, sociais, económicas e culturais.

É importante refletir sobre como esse conhecimento geográfico se constitui. O que a Geografia

estuda? Como as sociedades usam os saberes geográficos acumulados? Como aplicar conhecimentos

geográficos no cotidiano? Discutiremos essas questões neste capítulo e analisaremos também o que

é o espaço geográfico, objeto de estudo da Geografia.

Antes, porém, vamos pensar no papel do geógrafo na sociedade contemporânea e nas suas

possibilidades de atuação. No texto a seguir, o papel desse profissional é discutido.

r Interagindo

Profissão geógrafo

Geografia?! Para que serve a Geografia? Sempreque sou questionado sobre o porquê de minha escolhaprofissional, lembro-me do instigante diálogo travadoentre o pequeno príncipe e o geógrafo na clássica obrade Antoine de Saint-Exupéry:

- Que livro é esse? -perguntou-lhe o principezinho.- Que faz o senhor aqui?

- Sou geógrafo - respondeu o velho.- Que é um geógrafo? -perguntou o principezinho.-Éum sábio que sabe onde se encontram os mares,

os rios, as cidades, as montanhas, os desertos.- É bem interessante - disse o principezinho. - Eis,

afinal, uma verdadeira profissão!No meu imaginário infantil - quando tive contato

com o livro - e, muito provavelmente, no pensamentoda maioria das pessoas, esta é a definição do trabalho dogeógrafo, que, como diz a própria etimologia da palavra,trata da descrição da Terra ou do estudo da localizaçãode mares, rios, cidades, montanhas e desertos.

Se por um lado não podemos desprezar essa definiçãotão arraigada, por outro é importante mencionar o quantoas discussões das últimas décadas trouxeram contribui-ções para a Geografia, abordando os seus conceitos, comolugar, região, território, paisagem, e, principalmente, seuobjeto de estudo maior, o espaço geográfico.

Além, portanto, de simplesmente enumerar rios e mon-tanhas, a Geografia envolve um conjunto muito maior de

saberes, dos quais o ensino representa uma importanteparte, mas não a única. Outras funções são exercidas emuniversidades, institutos de pesquisa, órgãos de gestão eplanejamento - públicos e privados -, empresas de con-sultoria, organizações não governamentais e em diferentesagências, de instâncias locais a supranacionais.

Nos últimos anos, por exemplo, muitos geógrafos de-senvolveram pesquisas que vão de estudos de distribuiçãoespacial de doenças, que direcionam políticas públicasna área da saúde, passando por avaliações de impactoambiental, por meio do sensoriamento remoto, até chegaràs pesquisas que procuram contribuir para a solução deproblemas urbanos e para o planejamento regional.

Além da carreira académica, ao bacharel, mestre edoutor é permitido atuar como geógrafo propriamentedito, uma profissão regulamentada no Brasil desde 1979e certificada pelo Conselho Regional de Engenharia eArquitetura (Crea).

De volta ao livro de Saint-Exupéry, mais adianteno diálogo, o personagem geógrafo lembra o pequenopríncipe da total falta de exploradores para desenvolverpesquisas e lecionar. Talvez aí, um importante alentoàqueles que buscam, nesta ciência do espaço, o seu lu-gar ao sol.

Fonte: Outras formações da Terra. Discutindo Geografia,

São Paulo, ano 4, n. 21. Texto do autor.

Em todas as sociedades, em diversos períodos históricos, os saberes geográficos foram impres-

cindíveis e continuam sendo até hoje. Não existe sociedade que não tenha construído noções

espaciais. Para as sociedades nómades dos períodos paleolítico e neolítico, por exemplo, os referenciais

espaciais eram fundamentais, visto que esses grupos se deslocavam constantemente para poder

sobreviver. Era fundamental, então, conhecer o espaço percorrido ou a percorrer.

As representações espaciais desses períodos indicam tal preocupação. Não bastava apenas per-

correr um determinado percurso na busca de alimentos e de proteção, era necessário conhecer o

espaço percorrido para que se pudesse retornar em outro momento. Era assim que um determinado

saber sobre o espaço habitado ia compondo a vida daquelas sociedades e suprindo parte de suas

necessidades.

Esse conhecimento não era necessariamente geográfico, como o compreendemos hoje, porém

foi de fundamental importância para o desenvolvimento de muitos grupos humanos.

Ainda hoje existem grupos que vivem com base em uma Geografia muito próxima a essa. É

o caso daqueles que ainda dependem de movimentos migratórios para obter os bens para sua

sobrevivência, e também dos que vivem distanciados das sociedades mais tecnológicas e cons-

tróem um saber próprio, que lhes permite dominar o espaço e desenvolver estratégias de defesa

e modos devida.

Os grupos indígenas que vivem isolados na Amazónia, como este mostrado em uma foto de 2008, sofrem ameaças de garimpeiros ede madeireiros, que desejam tornar-lhes o território. Para sobreviver, proteger suas terras e se defender das ameaças, esses povos, dealgum modo, usam seus conhecimentos sobre o espaço.

Na Antiguidade, os conhecimentos geográficos passaram a ter outras características em com-

paração aos desenvolvidos pelas sociedades pré-históricas, visto que a ocupação do espaço e

a organização de Estados ocorrem de modo mais estruturado e baseado em alguns saberes. A

escrita e os mapeamentos, por exemplo, possibilitaram a certos grupos, como os egípcios, ter

maior domínio espacial, e permitiram também localizar as riquezas naturais, como as minas de

metais preciosos.

Nas sociedades grega, romana, mesopotâmica, chinesa, inça, maia, asteca, entre outras, os conhe-

cimentos geográficos permitiram formar e expandir seus territórios. Essas civilizações descobriam

o espaço e o dominavam.

Foram os gregos que desenvolveram as primeiras noções de poios, linhas imaginárias, esfericidade

da Terra, projeções cartográficas, latitude e longitude.

Sobre a Geografia na Antiguidade, podem-se citar as contribuições de expedições e da biblioteca

de Alexandria. Nesse período, destacam-se as obras de pensadores como:

• Anaximandro (610 a.C-546 a.C), criador da obra Descrição da Terra;

• Hecateu (550 a.C.-475 a.C.), responsável pelo primeiro mapa-múndi (ver a primeira imagem

abaixo);

• Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), criador de Tratado dos ares, das águas e dos lugares, em que se

discute a influência do meio ambiente sobre o ser humano;

• Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), o qual provou que nosso planeta é esférico baseando-se na

observação da sombra da Terra projetada na Lua durante um eclipse;

• Eratóstenes (275 a.C.-194 a.C.), que calculou a primeira medida da circunferência da Terra, muito

próxima aos dados atuais;

• Estrabão (63 a.C.-25 d.C), responsável pela obra Geografia, que deu origem ao nome conhecido

até hoje para essa área do conhecimento;

• Cláudio Ptolomeu (90-168), que defendeu a ideia de que a Terra era o centro do Universo.

Observe que no mapa A Terra segundo Hecateu, do século

VI a.C., é possível ver as áreas conhecidas na época. A África

ainda não recebia essa denominação, visto que apenas a

parte norte, a Líbia (Libya), era conhecida; na Europa (Europe)

podem-se verificar porções de terras que hoje correspondem

à Itália, à península Ibérica e aos Bálcãs. Na porção oriental,

estão representadas partes da Arábia Saudita e da índia,

Podemos perceber, ainda, o traçado de rios, alguns mares e

montanhas (em marrom) e a esfericidade da Terra, aspecto

que ainda estava em debate na época.

Interdisciplinaridade-^

Reprodução do mapa-múndi de

acordo com Ptolomeu (90-168),

astrónomo, geógrafo e matemático

grego. Observe que este mapa é

uma espécie de planisfério. Ele

representa a ideia de esfericidade

da Terra, apresenta as terras, os

mares e os rios conhecidos na

época e faz referência aos ventos,

simbolizados pelas figuras de anjos

que sopram em várias direções.

Durante a Idade Média, a Igreja Católica emergiu como centro do poder na Europa e considerou

inapropriada grande parte do conhecimento geográfico produzido até então, por não ter origem

nas escrituras. Para alguns estudiosos, contudo, os clérigos da Igreja Católica apropriaram-se desse

conhecimento e reinterpretaram-no sob o ponto de vista cristão. Pode-se dizer, portanto, que a

produção da Antiguidade clássica não teve grande difusão nesse período e local, mas influenciou

significativamente os pensadores da época.

O debate entre as teorias que aceitavam ou rejeitavam a esfericidade da Terra, por exemplo,

teve início na Antiguidade e continuou na Idade Média. Nessa época, é possível destacar a obra de

copistas e os relatos de viajantes, missionários e enciclopedistas cristãos. Ferramentas de navegação e

localização também foram criadas, o que favoreceu a expansão das áreas conhecidas pelos europeus

em todo o mundo.

Nesse mesmo período, os árabes, que não estavam sob a dominação da Igreja Católica, traduziram

e divulgaram grande parte dos textos da Antiguidade. Além disso, elaboraram inventários geográ-

ficos sobre as terras conhecidas, utilizando textos clássicos e suas experiências com a navegação,

delimitando rotas, descrevendo lugares distantes e mapeando-os, especialmente com objetivos

comerciais e de dominação territorial.

Os árabes foram responsáveis pela tradução de inúmeros textos clássicos daGeografia, contribuindo na sistematização desse conhecimento. Na foto, o mapa--múndi estense de 1450, é possível observara influência dos conhecimentos deHecateu. Note a representação da esfericidade da Terra e a localização dos oceanosnas bordas da esfera.

Mas foi com o desenvolvimento do

modo de produção capitalista e com

o expansionismo europeu, iniciados

no final do século XV, que o conheci-

mento geográfico evoluiu mais rapi-

damente e assumiu maior importância

para a sociedade. Novos horizontes se

abriram, novas ferramentas de análise

do espaço surgiram.

Houve um avanço do conhecimen-

to não só geográfico, como também

artístico e cartográfico, constituídos à

medida que se estabeleceram novos

domínios territoriais, económicos, so-

ciais, políticos e culturais. Exemplos

disso são a descrição e o mapeamento

dos novos espaços "descobertos".

O geógrafo brasileiro Douglas

Santos, em seu livro A reinvenção do

espaço, destaca a importância da con-

quista de novos territórios nos séculos

XV e XVI e discute as representações e

leituras desse período, como a litera-

tura de Camões e o mapa-múndi de

Martin Behaim (veja-os no próximo

quadro).

As palavras que esconhecimentos.

:o são explicadas no Glossário, no fim do livro. Consulte-o para ampliar seus

IO] Interagindo LÍNGUAPORTUGUESA

Os Lusíadas l Canto primeiro

Por mares nunca dantes navegados

As armas e os Barões assinaladosQue, da Ocidental praia Lusitana,Por mares nunca de antes navegadosPassaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçados,Mais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando,E aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da Morte libertando,Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandre e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Netuno e Marte obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta

Fonte: CAMÕES, Luís de. Os lusíadas (1572).In: . Obra completa. Rio de Janeiro: NovaAguilar,2008.p. 8.

Mapa-múndi do explorador alemão Martin Behaim, de 1492.

Como os conhecimentos geográficos medievais influenciaram Camões na ela-

boração desses versos e Martin Behaim na confecção desse mapa?

Os conhecimentos geográficos desse período resumem-se, então, a livros que contêm dados

estatísticos, relatos de viajantes sobre lugares desconhecidos, obras sobre determinados elementos

naturais, catálogos sobre os continentes e os países do globo, entre outros.

Para alguns pesquisadores, toda essa produção representa apenas a"pré-história"da Geografia,

em virtude da ausência de métodos científicos, que vão surgir apenas a partir do século XIX.

A história inicial dessa ciência se relacionou com fatos importantes da Europa do início da Idade

Moderna: o desenvolvimento do capitalismo, a constituição dos Estados Nacionais e a expansão dos

domínios europeus. Somente em períodos mais recentes é que surgiram referências às produções

geográficas de outras áreas do planeta.

No século XIX, portanto, destacaram-se como principais autores Cari Ritter (1 779-1 859) e Alexander

von Humboldt (1 769-1 859). Esses alemães trouxeram uma nova abordagem sobre o espaço que

vinha sendo ocupado e transformado. É importante destacar que o centro de suas análises era a

natureza, e, para fazer esse trabalho, desenvolveram um método. É a produção desses autores que

vai dar corpo ao que hoje conhecemos como Geografia.

Pode-se afirmar que a Geografia, assim como as outras ciências modernas, é fruto de transfor-

mações significativas no modo como se constituiu o conhecimento. As transformações promovidas

pelo Iluminismo, no século XVIII, formaram a base de sistematização do conhecimento geográfico.

Com isso, a racionalidade tornou-se a principal referência para a Geografia, no lugar da concepção

teológica pregada pela Igreja Católica, que predominou anteriormente no Ocidente. Com o acúmulo

de conhecimentos e com novos procedimentos para organizá-los, a Geografia passou a constituir

uma ciência com método, objetivos e objeto de estudo próprios.Interdisciplinarida

Interagindo

Observe o quadro do pintor holandês

Johannes Vermeer (1632-1675) e responda

às questões:1. Que elementos podem ser observados

nessa pintura do século XVII que se rela-cionem ao trabalho do geógrafo naquelaépoca?

2. Em sua opinião, como o pintor carac-teriza a figura do geógrafo no períodoretratado?

O geógrafo, óleo sobre tela do pintor holandês Johannes Vermeer, 1659,

Geografia escolar

Para compreender a história da Geografia a partir do século XIX, é necessário também analisar o

seu papel como disciplina escolar, que vai sendo desenvolvido paralelamente, porém com propósitos

distintos do que ocorreu na constituição da ciência. Nesse período, a Geografia sofre influência da

recém-criada escola e dos métodos pedagógicos adotados na ocasião.

Na constituição dos Estados Nacionais, as disciplinas escolares tiveram importante papel, pois

difundiram os ideais nacionalistas - valores como a identidade, o idioma, o território e a história de

seus heróis. Nesse contexto, a Geografia buscava valorizar o território como base da nação, constituído

de um determinado grupo social. Era preciso que todos falassem o mesmo idioma, projetassem o

mesmo ideal de identidade e de nação.

Nessa concepção, para defender e expandir o território era necessário conhecer suas riquezas

e elementos naturais, suas cidades e regiões, suas grandes construções. A escola seria o espaço

adequado para divulgar esses conhecimentos. O modelo escolar foi introduzido no processo

de constituição dos Estados Nacionais europeus e americanos, principalmente entre os séculosXVIII e XIX.

Atualmente, a escola tem outros objetivos e o ensino de Geografia não se limita mais a apenas

nomear e elencar as riquezas naturais e as construções humanas. A Geografia escolar possibilita

compreender as relações sociais, económicas, culturais e até afetivas que acontecem no espaço. Além

disso, a conquista da cidadania e a consciência do papel de sujeito transformador do espaço geográfico

são algumas das finalidades que a escola busca e que a Geografia procura desenvolver.

A Geografia Moderna e o modo de produção capitalista

Para vários autores da atualidade, algumas condições históricas relacionadas ao desenvolvimento

do capitalismo favoreceram a constituição da Geografia como ciência, no século XIX:

• o conhecimento do mundo como um todo. Era necessário conhecer a forma e a dimensão real dos

continentes para que se pudessem elaborar estudos sobre a Terra em sua totalidade. Para que o

capitalismo se tornasse um sistema hegemónico mundial, isso foi um aspecto primordial e teve

início com as Grandes Navegações do final do século XV. O estabelecimento do domínio colonial

europeu ocorreu entre os séculos XVI e XIX. Nesse período, a maior parte das terras emersas do

globo, mesmo que não estivesse ocupada por europeus, já era conhecida por eles;

• o acúmulo de informações sobre os vários lugares da Terra. À medida que o mercantilismo

ia se estabelecendo e as colónias iam surgindo, foi se formando uma base de dados sobre os

lugares. As metrópoles enviaram missões às colónias e dessa prática resultaram inventários

que descreviam, com exatidão e detalhes, as riquezas naturais existentes que poderiam ser

exploradas. Esses inventários passaram a compor os arquivos de institutos fundados na Europa

nesse período, formando um banco de dados;

• o aprimoramento das técnicas cartográficas. Os conhecimentos e as técnicas cartográficas eram

necessários para possibilitar a representação e a localização dos fenómenos estudados. Com o

desenvolvimento do comércio intercontinental, as navegações exigiam maior domínio técnico

cartográfico, além de representações e localizações de lugares, portos, rotas, correntes marítimas

e ventos. Portanto, a expansão do capitalismo dependeu, entre outros fatores, da elaboração

de mapas e cartas mais precisos.

Die Ebbe und Fluth (Fluxo e refluxo.), mapa do cartógrafo alemão Eberhard Werner Happel, 1675.

Interdisciplinaridade—^

Outro aspecto que contribuiu para a constituição da ciência geográfica moderna foi a evolução

do pensamento resultante de debates teóricos que envolveram diversas áreas do conhecimento e

novas visões de mundo.

O debate filosófico, que superou a visão teológica de mundo predominante na Idade Média; o debate

político fundamentado no Iluminismo (século XVIII); e os debates de economia política (séculos XVIII e

XIX) foram algumas das visões que colaboraram para o desenvolvimento da Geografia Moderna.

É importante perceber, portanto, que o processo de constituição da ciência geográfica não se deu

de forma rápida, mas resultou das contribuições de muitos pesquisadores; alguns deles estabeleceram

rupturas com visões que predominaram anteriormente, enquanto outros deram continuidade ao

pensamento vigente.

No século XIX, a Geografia foi sistematizada em um contexto de transformações ocorridas no

período. Na busca por organizar a ciência, surgiram debates que tentavam definir seu objeto de

estudo. Assim surgiram as escolas geográficas, com destaque para a alemã (também conhecida

como determinista) e a francesa (denominada possibilista).

Essas escolas geográficas se diferenciavam pela compreensão que tinham da relação entre a so-

ciedade e a natureza, pelo seu posicionamento sobre o que deveria ser o objeto da Geografia e por

sua ideia de organização dos Estados Nacionais. Enquanto a escola alemã defendia que a natureza

exercia forte influência sobre a sociedade e sustentava a ideia de que o meio natural era definidor

da ação humana, a escola francesa defendia que o ser humano, embora fosse influenciado pela na-

tureza, também agia sobre ela e a transformava de acordo com suas necessidades e seus interesses.

Em comum, elas traziam o método descritivo, o empirismo, a defesa das classes dominantes e de

seus ideais, e a divulgação favorável ao capitalismo vigente.

Dois geógrafos se destacaram na organização dos fundamentos dessas escolas geográficas (co-

nhecidas como Geografias Modernas): o alemão Friedrich Ratzel (1844-1904) e o francês Paul Vidal

deLaBlache(1845-1918).

Perfil

Vidal de La Blache e a Geografia francesa

Vidal de La Blache é considerado o precursor da Geografia francesa.

Nasceu no sul da França, em 1845, mas realizou seus estudos em Paris,

onde se formou historiador e se doutorou com uma tese sobre História

antiga. Posteriormente ingressou na Universidade de Nancy e estudou as

obras clássicas dos geógrafos alemães (Humboldt e Ritter), aprofundando

seus conhecimentos de Geologia e Ecologia.

Vidal publicou artigos nas áreas de ensino e metodologia, buscando

definir um projeto científico para a Geografia. Entre seus trabalhos de maior

repercussão estão Quadro Geográfico da França, publicado em 1903, no qual

enfatiza a relação homem-meio e paisagem; e A França do Leste, de 1917,

um trabalho mais maduro no qual incorpora uma nova visão do espaço

geográfico, baseado em noções modernas como fluxos e polarização.

Vidal coordenou a revista Annales de Géographie e lecionou na Sorbonne até 1908, onde formou uma

escola francesa de Geografia, fazendo vários discípulos. Morreu em 1918, quando redigia um trabalho sobre

Geografia Humana, posteriormente organizado por Emmanuel de Martonne (ver a página 199).

Vidal de La Blache, geógrafo francês, em

1883.

Algumas concepções defendidas por essas correntes teóricas alemã e francesa passaram a ser

questionadas na década de 1950, com os debates surgidos após a Segunda Guerra Mundial e com a

nova organização do espaço geográfico mundial. O desenvolvimento do capitalismo se intensificou,

e os Estados Unidos ocuparam uma posição de destaque e hegemonia no cenário mundial.

Nesse período, os pesquisadores iniciaram uma série de críticas ao método descritivo adotado

pela Geografia Moderna e, dessa forma, contribuíram para o surgimento da Nova Geografia ou New

Geogmphy. Essa vertente, de origem anglo-saxônica, fundamenta sua análise espacial na Matemática e

trabalha com modelos voltados ao planejamento, como estudaremos mais adiante no capítulo 10.

Estudiosos afirmam que essa Nova Geografia, apesar de criticar o método descritivo da Geografia

Moderna e de adotar análises estatísticas do espaço, continua servindo aos objetivos das classes

dominantes e ao modo de produção capitalista.

A partir dos anos 1970, as questões sociais, económicas e políticas do mundo contemporâneo,

como o desenvolvimento desigual do capitalismo, ganharam força dentro da Geografia.

Os autores que compartilhavam e compartilham dessa nova perspectiva teórica se posicionaram

criticamente diante da realidade e propuseram o uso dos saberes geográficos para a transformação do

mundo. Contrariamente aos pensadores anteriormente apresentados, eles usaram os conhecimentos

científicos para defender suas posições políticas e mostrar que os discursos geográficos escondiam

os reais propósitos dessa ciência.

Essa corrente ficou conhecida como Geografia Crítica, na qual os geógrafos destacam as contra-

dições que ocorrem na organização do espaço promovidas pelas sociedades contemporâneas e

decorrentes da produção capitalista. Essa Geografia não se constitui de forma homogénea, e dela

derivam, entre outras, a Geografia Humanística e a Geografia Cultural.

A Geografia Crítica envolve pesquisadores que apresentam em comum o fato de considerar o

espaço geográfico o conceito central dessa ciência. Entretanto, cada uma das vertentes da Geografia

Crítica constrói o conceito de espaço com base em teorias próprias. Nesse sentido, dois autores em

especial contribuíram para essa discussão: o geógrafo francês Yves Lacoste e o geógrafo brasileiro

Milton Santos, autores cujos pressupostos teóricos retomaremos ao longo desta coleção.

Rupturas e continuidades na constituição de uma ciência não ocorrem apenas na Geografia,

nenhuma ciência apresenta uma verdade definitiva, mas sim ideias temporárias, que podem ser

questionadas, reelaboradas ou descartadas.

• O CONCEITO DE ESPAÇO GEOGRÁFICO:UMA RELAÇÃO ENTRE SOCIEDADE E NATUREZA

A palavra "espaço" tem várias definições, como mostra o dicionário Aurélio:

Espaço: l. Distância entre dois pontos, ou a área ou o volume entre limites determinados. 2. Lugar

mais ou menos bem delimitado, cuja área pode conter alguma coisa; lugar. 3. Extensão indefinida.

4. Extensão onde existe o sistema solar, as estrelas, as galáxias; o Universo. 5. Período ou intervalo

de tempo. 6. Vagar, demora, delonga; entre outras definições.

Fonte: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

Edição eletrônica. Curitiba: Positivo, 2009.

Certamente você usa essa palavra, até mesmo com outros significados além desses, já que ela

é de uso corrente no vocabulário cotidiano. Mas esse termo representa um importante conceitogeográfico.

Ao longo da construção da Geografia como ciência, vem-se estabelecendo historicamente que

o seu objeto de estudo é o espaço geográfico. Para tanto, discute-se o que é o espaço e com queconceito de espaço a Geografia deve trabalhar. Nem todos os geógrafos entendem o espaço geo-

gráfico da mesma forma e, assim, há visões diferentes em relação ao tema. Isso ocorre com todasas ciências, pois, como vimos, elas são dinâmicas e constantemente reavaliadas. É esse movimento

que possibilita à ciência avançar.O conceito de espaço foi sendo construído nas perspectivas teóricas da Nova Geografia e da

Geografia Crítica. Aqui, apresentaremos somente o debate trazido pela Geografia Crítica, pois esseintadiscipiinaridade-, conceito será abordado na coleção com base nessa corrente.

É preciso destacar que grande parte dos geógrafos críticos se baseiam nas ideias do filósofo e

economista alemão Karl Marx (1818-1883). A análise espacial baseada na teoria marxista originou-seda intensificação das contradições sociais e espaciais nos países centrais e periféricos, por causa da

crise do capitalismo, a partir da década de 1960.A concepção de espaço como lugar da reprodução das relações sociais de produção, proposta

pelo filósofo francês Henry Lefébvre (1901-1991), influenciou muitos geógrafos críticos na décadade 1970, entre eles o brasileiro Milton Santos (1926-2001). Para fundamentar sua análise e baseado

em Marx, esse autor defende que existem duas naturezas: a primeira natureza, intocada pelo serhumano, não transformada; e a segunda natureza, ou natureza artificial, aquela transformada pelo

trabalho humano. Leia no texto a seguir como Santos define o conceito de espaço.

Ampliando conceitos

Discutindo conceitos: o espaçogeográfico

O espaço é formado por um conjunto indissociável,solidário e também contraditório, de sistemas de objetose sistemas de ações, não considerados isoladamente,mas como o quadro único no qual a história se dá. Nocomeço era a natureza selvagem, formada por objetosnaturais, que ao longo da história vão sendo substituídospor objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizadose, depois cibernéticos, fazendo com que a natureza ar-tificial tenda a funcionar como uma máquina. Atravésda presença desses objetos técnicos - hidrelétricas, fá-bricas, fazendas, fazendas modernas, portos, estradasde rodagem, estradas de ferro, cidades -, o espaço émarcado por esses acréscimos, que lhe dão um conteúdoextremamente técnico.

O espaço é hoje um sistema de objetos cada vez maisartificiais, povoado por sistemas de ações igualmenteimbuídos de artificialidade, e cada vez mais tendentesa fins estranhos ao lugar e aos seus habitantes.

Os objetos não nos permitem o conhecimento, se osvemos separados dos sistemas de ações. Os sistemas deações também não se dão sem os sistemas de objetos.

Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem.De um lado, os sistemas de objetos condicionam a for-ma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema deações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobreobjetos preexistentes. É assim que o espaço encontra asua dinâmica e se transforma.

O antigo porto de Belém (PA) em 2009, foi no passado ponto de

chegada e saída de mercadorias. Teve sua função modificada e hoje é

usado como área de lazer.

Fonte: SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 51-52.

Como se pode perceber, Milton Santos compreende o espaço como resultado das ações humanas no

passado e no presente. Vamos entender melhor essa abordagem do conceito na atividade a seguir.