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41 ENTREVISTA Profa. Ms. Nacelice Barbosa Freitas Prof. Nacelice Barbosa Freitas é Licenciada em Estudos Sociais pela Universi- dade Estadual de Feira de Santana - UEFS, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia UFBA. Professora Assistente da Universidade Estadual de Feira de Santana, desenvolvendo trabalhos na Graduação e Pós-graduação de Geografia, especificamente Geografia Humana e Regional. Coordena Projeto de Extensão, trabalhando com formação continuada de professores do campo em municípios do Semi- árido Baiano. Atualmente é Coordenadora de Extensão da UEFS e desenvolve pesquisa em Análise Urbana e Regional. O conceito de identidade não tem sua origem na ciência geográfica, mas esta ciência desenvolve o conceito de identidade territorial. Como você analisa esta discussão? Nacelice Freitas A Geografia cabe estudar, analisar, explicar as relações entre a sociedade e a natureza, com a intenção de apontar caminhos que viabilizem equilíbrio sócio-espacial. O objeto da Geografia - o espaço geográfico - deve ser analisado, entendido e explicado, a partir da relação sociedade-natureza, ou seja, produção numa perspectiva de reprodução sócio-espacial: passado – presente – futuro, numa relação dialética, jamais evolutiva. Ruy Moreira, na década de 70, mais precisamente em 1978, indicou que “a Geografia serve para desvendar máscaras sociais”, ou seja, para “desvendar as relações sociais que produzem” o espaço geográfico, este espaço, estatuto epistemológico sobre o qual a geografia deve erigir-se como ciência. Então o mesmo deve “prestar-se a alguma utilidade na prática da transformação social” um espaço geográfico que é “parte fundamental do processo de produção social e do mecanismo de controle da sociedade”. Nesse sentido, os conceitos e categorias de análise da Geografia devem ser discutidos sob o ponto crítico, associados ao cotidiano, conduzindo portanto, para o entendimento da realidade. O primeiro caminho é iniciar estudando/ensinando a partir do Espaço, Território, Região, Paisagem e Lugar, observando e identificando, quem os definiu, quando, como, em qual contexto, a partir de qual corrente teórica e assumir uma postura hermenêutica, de interpretação dos mesmos. Digo isto, pois sabemos da necessidade que temos, de conhecer de forma aprofundada o arcabouço teórico-conceitual da ciência geográfica, e vocês iniciam perguntando sobre o conceito de identidade territorial, e para apreendê-lo, é necessária a compreensão sobre o conceito de território. Esse debate é recente na Geografia e amplia o entendimento sobre a base conceitual da ciência geográfica, pois se antes território era explicado sob o ponto de vista da ciência política, como lócus do exercício do poder, hoje podemos dizer que a idéia de pertencimento é fundamental para explicação da territorialidade, desterritorialidade e reterritorialidade na visão de Rogério Haesbaert. Assim, a identidade territorial se estabelece como mais uma forma de Foto: Prof. B.N.Patel - UEFS +Geografia´s, Feira de Santana, n. 1, p. 41 – 44, maio / nov. 2008

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ENTREVISTA

Profa. Ms. Nacelice Barbosa Freitas

Prof. Nacelice Barbosa Freitas é

Licenciada em Estudos Sociais pela Universi-dade Estadual de Feira de Santana - UEFS, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia UFBA. Professora Assistente da Universidade Estadual de Feira de Santana, desenvolvendo trabalhos na Graduação e Pós-graduação de Geografia, especificamente Geografia Humana e Regional. Coordena Projeto de Extensão, trabalhando com formação continuada de professores do campo em municípios do Semi-árido Baiano. Atualmente é Coordenadora de Extensão da UEFS e desenvolve pesquisa em Análise Urbana e Regional. O conceito de identidade não tem sua origem na ciência geográfica, mas esta ciência desenvolve o conceito de identidade territorial. Como você analisa esta discussão?

Nacelice Freitas A Geografia cabe estudar, analisar, explicar as relações entre a sociedade e a natureza, com a intenção de apontar caminhos que viabilizem equilíbrio sócio-espacial. O

objeto da Geografia - o espaço geográfico - deve ser analisado, entendido e explicado, a partir da relação sociedade-natureza, ou seja, produção numa perspectiva de reprodução sócio-espacial: passado – presente – futuro, numa relação dialética, jamais evolutiva. Ruy Moreira, na década de 70, mais precisamente em 1978, indicou que “a Geografia serve para desvendar máscaras sociais”, ou seja, para “desvendar as relações sociais que produzem” o espaço geográfico, este espaço, estatuto epistemológico sobre o qual a geografia deve erigir-se como ciência. Então o mesmo deve “prestar-se a alguma utilidade na prática da transformação social” um espaço geográfico que é “parte fundamental do processo de produção social e do mecanismo de controle da sociedade”. Nesse sentido, os conceitos e categorias de análise da Geografia devem ser discutidos sob o ponto crítico, associados ao cotidiano, conduzindo portanto, para o entendimento da realidade. O primeiro caminho é iniciar estudando/ensinando a partir do Espaço, Território, Região, Paisagem e Lugar, observando e identificando, quem os definiu, quando, como, em qual contexto, a partir de qual corrente teórica e assumir uma postura hermenêutica, de interpretação dos mesmos. Digo isto, pois sabemos da necessidade que temos, de conhecer de forma aprofundada o arcabouço teórico-conceitual da ciência geográfica, e vocês iniciam perguntando sobre o conceito de identidade territorial, e para apreendê-lo, é necessária a compreensão sobre o conceito de território. Esse debate é recente na Geografia e amplia o entendimento sobre a base conceitual da ciência geográfica, pois se antes território era explicado sob o ponto de vista da ciência política, como lócus do exercício do poder, hoje podemos dizer que a idéia de pertencimento é fundamental para explicação da territorialidade, desterritorialidade e reterritorialidade na visão de Rogério Haesbaert. Assim, a identidade territorial se estabelece como mais uma forma de

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analisarmos o território explicando-o como base das identidades, portanto das resistências, da pluralidade cultural. O conceito de identidade é fundamentalmente importante para o fortalecimento da identidade nacional. O Brasil não é ainda uma nação, mas Estado-nação. Então, têm-se identidades locais e até regionais, mas não a identidade nacional - esta é essencial para a explicação sobre limites e fronteiras, e como base para a abrangência do território. A base teórica e conceitual da Geografia tem como conferir uma excelente contribuição para a sociedade brasileira, principalmente para entender como o território foi formado antes da nação. Temos então a ampliação do campo de análise da Geografia, e nessa perspectiva, precisamos estar atentos e atentos à nossa formação territorial a partir da “invasão” portuguesa. Nós, professores e professoras de Geografia, que pretendemos efetivar um ensino que luta contra a exclusão social, devemos iniciar a discussão a partir dos conceitos de território e espaço geográfico, etc., utilizar Bula Inter Coetera e principalmente o Tratado de Tordesilhas como categorias para entender, que uma das coisas mais complexas que temos é a formação do território brasileiro. Ele foi formado na realidade em 1494, em Tordesilhas, fora do Brasil, antes de formar a nação brasileira, sem um povo unido pelos interesses brasileiros e uma das principais conseqüências é não termos estruturado uma identidade nacional, uma identidade territorial brasileira, e isto torna mais fácil a consolidação da dominação. Assim, estudar a identidade territorial é mais um caminho para fortalecer a ciência geográfica, indicando a sua importância para o entendimento da realidade. Qual a importância em estudar a identidade territorial no Nordeste?

N.F. A explicação sobre a Identidade territorial depende da apreensão do conceito de território.

Isso implica em visualizar claramente a importância dos/das geógrafo/as em conhecer os conceitos geográficos para elucidar a dimensão sócio-espacial. Estudar a identidade territorial, assim como a identidade regional, no Nordeste é buscar entender e explicar como surge a “realidade nordestina” compreendendo como é possível “inventar” o Nordeste como afirma o Durval Muniz Albuquerque Júnior. Este autor em seu livro, A Invenção do Nordeste e Outras Artes, deixa bem claro que a Identidade do Nordeste não é construída pelo nordestino: é uma identidade construída a partir do Sul, daí a visão de pobreza, atraso, miséria que é conferida ao que é delimitado como Região Nordeste; vejam que isso ocorre entre o final do século XIX e início do século XX, quando da ascensão do café no sul - lembrar que até este período o Nordeste representa a região onde era produzida a riqueza e não a pobreza. Cria-se então a imagem de “região problema” e isso como resultado de um processo histórico iniciado no momento em que as políticas territoriais se direcionaram para favorecer as elites regionais, mas isso não contribuía para fortalecer a realidade regional nordestina. A semi-aridez, por exemplo, é vinculada - sob viés determinista - ao clima semi-árido e é utilizado como essencial para explicar as desigualdades sociais na região, mas, sabe-se que estas são provocadas pela forma como a sociedade produz e consome o espaço numa sociedade capitalista - fato que não é só dessa região, mas de todo o país. A Região Nordeste constitui-se como espaço geográfico complexo, pois nele são identificados espaços urbanos, rurais, agricultura de sequeiro e irrigada, agricultura moderna e de subsistência, áreas com industrialização moderna, áreas de serviços,

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etc., mesmo assim é sempre definido – especialmente na literatura e pela mídia - a partir das características apresentadas pela Natureza, quando a semi-aridez é mostrada como aspecto negativo. Nesse sentido, não são evidenciadas as potencialidades socioambi-entais da região. Assim, negligenciam-se as suas “possibilidades” e “capacidade” de auto-sustentabilidade, sendo apontada sempre como um “problema” regional/nacional. A imagem de “região problema” é conseqüência da organização espacial iniciada desde o período colonial, onde as políticas territoriais eram destinadas à atender as elites regionais, não colaborando para melhorar a qualidade de vida da maioria da população, gerando graves problemas sociais e econômicos. A semi-aridez é atrelada de forma determinista ao clima semi-árido e foi sempre utilizada como artifício para explicar as desigualdades sócio-econômicas, mas, sabe-se que elas são provocadas pela forma como a sociedade capitalista produz e utiliza o espaço não apenas regional, mas também nacional. Assim, o semi-árido é delimitável e/ou rede limitável a partir do contexto histórico e geográfico e a semi-aridez, definida como a forma de utilização do clima para atribuir uma identidade regional/territorial. Têm-se, portanto, o clima semi-árido e a concepção de semi-aridez como determinações da Natureza que “induzem” e “produzem” a pobreza, miséria e a desgraça: o clima utilizado apenas como fator negativo e definidor da Região Nordeste, esquecendo-se do “Nordeste úmido”, pois a semi-aridez é utilizada como recurso para as elites expandirem os espaços/territórios de poder. O conceito de território estudado na Geografia é aquele explicado não somente a partir da definição sustentada na política, mas também leva em

consideração os valores materiais, afetivos, éticos e simbólicos, numa perspectiva integrada e integradora, então, estudar a identidade territorial do Nordeste, sob o ponto de vista geográfico, implica em desvendar a realidade sobre a definição da mesma. Há algum tempo você leciona a disciplina intitulada Geografia do nordeste. De que forma você avalia as discussões, no ensino de Geografia, acerca do conceito de identidade regional?

N.F. Geografia do Nordeste é um componente curricular, que faz parte da estrutura do curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), antes da Reforma Curricular. O objetivo principal é desenvolver uma análise aprofundada sobre a organização do espaço regional nordestino, debatendo sobre os elementos que serviram de base para esse processo. Explicar a Identidade Regional nordestina significa buscar as informações sobre a realidade regional a partir da identidade. A complexidade do tema, por exemplo, permite concluir que existem Nordeste e “Nordestes”: o primeiro é oficial, definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tendo por base a Divisão Regional Brasileira; o segundo é determinado pelo significado das identidades que são construídas, ou mesmo em decorrências das territorialidades que são estabelecidas, ou da forma como se deu a reprodução ampliada do capital. Assim, segundo Francisco de Oliveira, tem-se o Nordeste açucareiro, o Nordeste algodoeiro-pecuário, o Nordeste da Superinten-dência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Se analisarmos o contexto regional produzido ao longo desses pouco mais de

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quinhentos anos, poderemos e então compreender as diversas definições de Região Nordeste. O Nordeste da pobreza, inventado no início do Século XX, resulta da necessidade que tinha o Sul em se estruturar como espaço nacional/regional hegemônico, tendo em vista a consolidação do capital cafeeiro. Segundo Durval Muniz Albuquerque Junior, muito do que se diz sobre o Nordeste reflete um discurso pronto, preparado e arranjado sobre o mesmo. Ele afirma que, “a região se institui, paulatinamente por meio de práticas e discursos, imagens e textos que podem ter, ou não, relação entre si” (...), indicando que geógrafos e geógrafas devem procurar o desvendamento da realidade, pois, “a verdade sobre a região é construída a partir da batalha entre o visível e o dizível”. Pode-se concluir que o que é visto sobre a Região, pode não representar a realidade, mas uma construção a partir do que se quer ver. O ensino e a pesquisa em Geografia, especificamente sobre esse tema, devem então se encaminhar para esse desvendamento da realidade, porque a produção do conhecimento tem como objetivo básico a aproximação da essência da mesma, tendo a clareza que não há verdades absolutas. O estudo sobre Região Nordeste, nesse sentido, deve direcionar-se para a compreensão da realidade socioespacial brasileira, isto é, o espaço geográfico nacional/regional, situado em um determinado contexto histórico, cabendo, portanto, aos professores e estudantes de Geografia ampliar o espaço da discussão.

Recentemente, a Superin-tendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) elaborou o mapa de território de identidade subdividindo a Bahia em territórios

de identidade. Qual o seu ponto de vista com relação a essa produção?

N.F. O Território de Identidade representa um avanço no que se refere aos critérios de delimitação do espaço. Sabemos que o mesmo está vinculado a uma estratégia de desenvolvimento territorial que se estabelece ao nível nacional, sendo, portanto, mais um meio para compreender e explicar as desigualdades sócio-espaciais. Além disso, sustenta-se na busca de consolidação da cidadania, pois a necessidade de procurarmos novos rumos políticos para ampliação da participação da sociedade civil organizada, isto é, da participação popular nas decisões políticas, devem contribuir para estruturação dos Territórios de Identidade. As divisões regionais anteriormente utilizadas têm por base, principalmente, os aspectos naturais, assim como o desenvolvimento das atividades econô-micas. Os Territórios de Identidade, além de levar em consideração essas questões, tomam também como referências a identidade local e a capacidade que os municípios têm para consti-tuir relações, e estas como reflexo das afini-dades que são estabelecidas e elaboradas a partir do contexto histórico-geográfico, isto é, como se deu na realidade a “construção” da identidade territorial. Os Territórios de Identidade, além de ser mais uma forma de analisarmos o espaço, é também uma forma institucionalizada de território para definição de políticas públicas, cabendo aos geógrafos e geógrafas se apropriarem dessa discussão e participarem ativamente do processo.

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