conexao magia - helena gomes

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E se a magia existir aqui, agora, sem varinhas mágicas ou vassouras voadoras? E se muito pouco for preciso para se enxergar além do véu que esconde o inacreditável, oculta a conexão com a magia? E se os povos mágicos existiram entre nós o tempo todo, seus poderes disfarçados para não serem perseguidos, dizimados, queimados em fogueiras?Vamos encontrá-los nesta história, porém não em locais míticos ou castelos distantes. Os clãs pertencentes à magia estão pelo mundo e nas cidades brasileiras, como São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, carregando tradições, convivendo com a modernidade – e ainda recordando as palavras de poder ancestral.Gael, um estranho adolescente que foi adotado ainda bebê por uma família humana, descobre que é alguém que jamais deveria ter nascido. Caçado como um animal, ele precisará correr contra o tempo para escapar da morte e salvar sua família adotiva. Enquanto isso, uma terrível guerra entre os clãs mágicos está prestes a explodir, sem que os humanos sequer desconfiem do perigo que estão correndo.

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A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

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compra futura.

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pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.link ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

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HELENA GOMES ROSANA RIOS

CONEXÃOMAGIA

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A

CAPÍTULO 1

Execução

São Paulo, catorze anos antes

PAIXÃO É A MAIS

TERRÍVEL DAS

ARMADILHAS. Ela nosleva a cometer atos abomináveisaté contra quem amamos. Porsua culpa, perdi meu espírito.

Protegido pela escuridão danoite, avancei em silêncio pelas

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ruas desertas. Apesar de serverão, garoava na chamada terrada garoa. Sempre gostei dos tonscinzentos da metrópole que nãopode dar-se o luxo de parar: SãoPaulo receberia em breve amadrugada. No meu colo, ominúsculo monstro apenasdormia, embalado por seu sonode bebê.

Monstro…Não encontrei nome melhor

para chamá-lo. Era um filho dadesesperança, o pivôinvoluntário de uma crise e aarma necessária para a inveja

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atingir seus objetivos imundos.Antes de entrar na estação de

metrô, eu o escondi, enroladonum cobertor, sob a discriçãode meu manto. Um conto defadas me veio à mente. Sorri,num misto de asco e pena demim mesmo. Eu era o caçador aserviço da rainha, aquele quecarregava um ser inocente para amorte. Pelo menos, não teria deentregar à rainha o coração davítima para convencê-la dosucesso da execução. Tambémnão havia um bosque verdejantepara testemunhar meu crime, e

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sim a selva de pedra doshumanos. Senti um gostoamargo na boca. Apesar doconcreto, existia magia ali, comoem tudo… Em mim, em outroscomo eu, nas várias raças ocultasentre humanos que enxergamapenas o que desejam enxergar.

Não queria eu mesmo tirar avida de um ser tão frágil. Jábastava a culpa que espremiameu coração. Ter o sangue deum inocente em minhas mãos…seria demais. Precisava, porém,cumprir as ordens que recebera– e que me queimavam como

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ferros em brasa na pele. Permitique o acaso me guiasse. E, paraliberar a catraca da estação demetrô Jabaquara, estalei osdedos, usando magia.

Ignorei a escada rolante e descia escadaria até a plataforma deembarque. Um único humano,sonolento, aguardava o últimotrem da noite. Ele devia tercerca de trinta anos, de pelenegra, vestido com roupassimples que o denunciavamcomo alguém do povo, maisum que sobrevivia na camadapobre daquela sociedade com

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milhões de miseráveisesquecidos por uma elite deprivilegiados.

Exceto por nós dois, não haviamais ninguém no local. Oumelhor, exceto por nós três, seeu considerasse o pequenomonstro, em meu colo, comoalgo digno de entrar na conta.Mas, se fizesse isso, estaria aponto de admitir que eleocupava um patamar acima dorótulo de aberração, uma coisacom direito de ser chamada de“alguém”. E essa possibilidadeapavorava minha consciência.

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Aproximei-me da beirada daplataforma, avaliei os trilhoslogo abaixo. O acaso memostrava que a morte poderiaser rápida e talvez indolor para avítima. O som vindo do túnel àminha direita indicava que otrem estava a caminho. Atrás demim, senti que o humano seespreguiçava antes de se levantardo banco.

O som se tornouensurdecedor para o ambientesilencioso. Fechei os olhos ebloqueei a vontade de sentirqualquer emoção. Naquele

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momento, obedecia a ordens.Era apenas o carrasco.

Meus braços não mepertenciam mais. Elesestenderam o pequeno monstropara a frente. O trem passariapor nós em milésimos desegundos. Foram minhas mãos,aquelas que eu ansiava poupardo sangue, que deram oimpulso para arremessar avítima. Ergui as pálpebras atempo de vê-la cair, indefesa,sobre os trilhos.

O humano gritou comigo aoperceber o que eu acabara de

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fazer, mas sua voz foi abafadapela chegada dos vagõesbarulhentos. Da minha parte, aexecução fora um sucesso. Vireias costas para o humano, não vias portas dos vagões se abrirem eretornei, com pressa, ao andarsuperior.

Minha culpa, porém, não medeixou sair da estação etampouco atravessar a catraca.Ela exigia que eu enfrentasse adimensão do meu crime. Euprecisava ver… Sob o olhardesconfiado de um dosfuncionários do metrô, rumei

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de volta à escada.– Corre que o trem já vai sair!

– avisou ele.Não respondi. Desci um

degrau, depois outro.Interrompi meus movimentosao avistar o humano de pelenegra. Imóvel, ele não ousavaentrar no vagão à sua frente.Um pensamento tolo me disseque o sujeito perderia sua últimaoportunidade de ir de metrôpara casa.

Quando as portas se fecharam,o trem partiu em direção aotúnel, acelerando para ganhar

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velocidade. O humanopermanecia no mesmo lugar.Espiava o que havia nos trilhos.Minha mente imaginou osestragos em um cadáver infantilagora irreconhecível. Não deviater sobrado muito dele para…

Surpreso, vi que o homem seabaixava. O que elepretendia…? Nesse instante,outro funcionário apareceucorrendo atrás do passageiro,que estava pulando daplataforma para os trilhos.

– Ei, o senhor não pode ficaraí! – gritou o funcionário para

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ele. – Não pode ultrapassar afaixa amarela!

Segurei-me para não interferir.O funcionário, na beirada daplataforma, chamava reforçopelo rádio. A seguir, abaixou-separa ajudar o outro homem asair da área dos trilhos. Mas estenão retornou sozinho. Paraminha total incredulidade, traziaem um dos braços minhapequena vítima, intacta, aindaenrodilhada no cobertor. E elachoramingava, um chorodolorido, de abandono, quecontrastava com a sorte por ter

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escapado da execução.– Você não viu o maluco que

apareceu aqui e jogou o bebê nafrente do trem? – cobrou osujeito, dirigindo-se aofuncionário.

– É mesmo um bebê? –duvidou o outro. – Não parecechoro de criança…

Recuei. Os dois humanosestavam prestes a descobrir oque se ocultava sob a manta.Meus ouvidos captaram orestante da conversa, trazidopelo eco, enquanto minha culpase desfazia. Havia um sorriso

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J

genuíno de felicidade em meurosto.

– Eita! – o funcionárioresmungou. – Você pulou nostrilhos só pra pegar um filhotehorrível como esse?!

***

OÃO TEVE PENA DO BICHO

ESQUISITO. O que eraaquilo, afinal? Um filhote

de gato ou de cachorro? Tinhao tamanho de um bebê, só queera tão peludo que mal se via o

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focinho. E o pobre estavaassustado, chorava bastante.Devia estar com fome, frio emuito medo.

– Ele lembra aquele cachorrodo Cebolinha – comparou ofuncionário. – A gente nemsabe onde fica a cabeça!

O pelo do filhote era negro,como cabelo de gente. Indecisosobre o que fazer, João oestreitou contra o corpo apenaspara descobrir que um coraçãominúsculo batia junto com oseu. O gesto acalmou ochoramingo em segundos.

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– Pretende ficar com isso aí? –perguntou o funcionário. – Seeu fosse você, jogava na lata delixo mais próxima.

Seria crueldade demais. Joãorefletiu que, esquisito ou não, ofilhote merecia um destinomelhor do que minguar até amorte numa lata de lixo. Aindamais depois de ganhar umasegunda chance de modo tãoinacreditável. Tinha o dedo deDeus ali, só podia ter! O filhoteescapara de ser retalhado pelosvagões porque seu corpo ficaraespremido em um dos vãos

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entre os trilhos.– Ô amigo, você está de

carro? – perguntou João comsua sempre útil cara de pau. –Que tal uma carona?

CAROLINA LUTOU ATÉ ONDE

CONSEGUIU contra a vontadede dormir. O tio, que foraresolver um assunto no litoral,tinha prometido voltar a tempopara seu aniversário. Nuncaperdera um aniversário dasobrinha e aquele, o sétimo, nãopoderia ser diferente.

Desabando de sono, a menina

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foi deixada na cama pelo pai, noandar de cima do bar que, desdea morte da mãe dela, ele e oirmão administravam juntos nasredondezas do TerminalRodoviário do Tietê. João, otio, não era exatamente ohomem trabalhador que o paida menina, Tiago, esperava tercomo sócio. Sempre dava umjeito de escapulir do serviçopesado, de conseguir umamoleza qualquer para se darbem. Para Carolina, no entanto,ele era o tio atencioso e semprebrincalhão.

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– Cheguei, Carol… – chamoua voz de João, quase numsussurro, perto do ouvido dacriança. – Atrasado, mascheguei!

Foi o suficiente para despertá-la. Ao abrir os olhos e descobrirque havia um presente, amenina se sentou na cama namaior rapidez possível. Tiagoestava em pé junto à porta doquarto, com a pior carranca domundo.

– Bar não é lugar pracachorro! – brigava ele. – AVigilância Sanitária vai me

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multar, isso sim!Carolina fez um “oh” de

espanto e alegria. O tio acabavade depositar em seu colo umbichinho ainda bebê, o maisestranho que a menina já vira navida.

– Não é cachorro, pai! –corrigiu ela, com firmeza, antesde dar um beijo molhado natesta de seu primeiro animal deestimação. Sempre sonhara emter um, mas o pai sempre foracontra.

– O que é, então? –perguntou João, feliz com o

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entusiasmo infantil.– Ah, tio, você não sabe?– Estou na dúvida…– É um gatinho lindo!Tiago escancarou a torneira de

broncas, mais que furioso. Claroque agora Carolina não ia maisdormir, que ele ia levar multa,que o gato ia fazer sujeira pelobar inteiro, que espantaria afreguesia, que isso, que aquilo…

– E como vai ser o nomedele? – perguntou o tio,fazendo de conta que o irmãonão existia.

A menina franziu a testa.

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Queria um nome bemdiferente. Um que não fosse degato. E que combinasse com ofilhote que dormia como umanjinho em seu colo.

– Já sei! – decidiu, inspirada. –O nome dele vai ser Gael.

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O

CAPÍTULO 2

Monstro

GATINHO ESQUISITO

realmente tinha algumproblema. Ou vários,

se João parasse para pensarmelhor. Primeiro, o filhotedormia a maior parte do tempo

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e acordava apenas para tomar amamadeira que Carolinapreparava no melhor de seuinstinto maternal. Segundo:como mal se mexia, ainda nãotivera oportunidade de aprendera usar a caixinha de areia,instalada num canto dobanheiro, obrigando a menina adeixá-lo sempre de fralda.Terceiro: para um gato, estavacrescendo demais. Sem dinheiroou coragem de mostrá-lo a umveterinário, João coçava acabeça. Para Carolina, o gatinhoera perfeito. Um pouco

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diferente dos outros animais, éverdade, mas isso não diminuíao carinho que ela lhe dedicava.Já Tiago preferiu ignorar apresença do filhote nos dias,semanas e meses que seseguiram. Sequer o olhava.

Carolina, ansiosa, não via ahora de o gato acordar de vez.Gastava minutos escovando opelo longo, que recebiatrancinhas caprichadas e cheiasde laçarotes cor-de-rosa naspontas. Quando chegava daescola, corria para o andar decima do bar apenas para checar

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se o filhote estava bem.Decepcionada, dizia para o tioque o gatinho era dorminhocodemais. Queria muito que elemiasse, que corresse de um ladopara o outro atrás de algumabolinha de papel.

– O Gael chega lá, Carolina –explicava o tio. – Ele só é meiodevagar.

Numa madrugada friorenta,João, que dividia o quarto comTiago, acordou com a voz deCarolina no aposento ao lado.Um único e apertado banheiroservia a todos os ocupantes da

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casa. No térreo, havia a cozinha,o banheiro para os fregueses e,claro, o espaço ocupado pelobar.

Sem fazer barulho, João foi atéo quarto da sobrinha. Abriulentamente a porta apenasencostada e se esticou para espiaro que estava acontecendo. Comuma tesoura, Carolina cortava opelo do gatinho, sentado muitoquieto sobre a cama.

– O Gael acordou! – disseCarolina, eufórica, ao notar apresença do tio.

– Tô vendo… Escuta, você

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não é muito pequena parabrincar com a tesoura?

– Mas o pelo dele tá caindo,tio! Só tô tentando consertar.

– Pelo de gato vive caindoe…

João engoliu o que falava aodescobrir sobre o lençol umaquantidade imensa de pelos. Sófaltava agora uma doença depele para forçar uma ida aoveterinário.

– Tio…– Que é?– Acho que o Gael não é mais

um gatinho.

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Foi quando João entrou nocômodo para avaliar melhor ogato, que o fitava com seusolhos imensos.

– Ai… – murmurou o tio, emchoque, sem nada melhor paradizer.

TIAGO DEMOROU A PERCEBER

O INEVITÁVEL. Quando desceupara preparar o café da manhã,descobriu, surpreso, que a filhae seu irmão já estavam à mesa,comendo requentado o pão davéspera.

– Deixei um pãozinho para o

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senhor, pai – avisou Carolina. –E passei bastante margarina,como o senhor gosta!

Ele sorriu distraidamente paraa filha e pegou um copo paraencher de café. Pingou umpouco de leite, adoçou amistura e só então se acomodouà mesa. João e a meninatrocaram um olhar de culpa.

– Nem vem! – resmungouTiago. – Vocês trouxeram ogato pra cozinha, não foi?

– É que… – tentou explicar oirmão.

Tiago bufou, exasperado,

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recusando-se a sequer enxergaro animal à sua esquerda,acomodado na quarta cadeira.

– Ou esse gato fica no quartoou vai morar na rua! – avisou,abafando a raiva.

– Mas ele é um bebê… –choramingou Carolina, jáimaginando o pobre tremendode frio e sozinho no mundo.

Dessa vez, Tiago não cederiaàs vontades da filha. Ter umgato no bar lhe traria dor decabeça e mais trabalho. Estavacansado de carregar tudosozinho nas costas.

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– Hora de abrir o bar – dissepara o irmão. Este bebericou ocafé antes de apresentar adesculpa de sempre.

– Preciso resolver uns assuntos– desconversou. – Volto só denoite.

Foi o suficiente para piorar omau humor de Tiago. Eledeixou a mesa, retrucandobaixinho, e atravessou a cozinhapara chegar ao bar, logo adiante.

Tinha serviço demais à suaespera.

DINHEIRO CURTO, TRABALHO

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PARA TRÊSrealizado apenas porum e a vida corrida, semperspectiva de melhora. Tiagoabria o bar, de segunda asegunda, às 6 horas da manhã, esó fechava quando o últimofreguês ia embora, por volta deuma da madrugada. E, parapiorar, volta e meia apareciaalguma dívida extra. Da últimavez, tivera que desembolsar umaquantia violenta para pagar oque João devia a um certoamigo, por coincidência, umdos chefes do jogo de bicho dacidade.

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– Não sou viciado emjogatina! – defendia-se o irmãocaçula. – Jogo só pra refrescar acabeça.

Refrescar o quê, dentrodaquela cabeça preguiçosa echeia de vento? Tiago lamentavagostar tanto do irmão, mal ver afilha, passar dia após dia atrás deum balcão. Sentia falta daesposa, seu braço direito e aúnica dona de seu coração. Elamorrera tão cedo… Carolinasequer tinha dois anos.

Tiago espantou ospensamentos para concentrar-se

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no trabalho, como sempre fazia.E como fez no dia seguinte enos outros. A mesma rotinaestressante.

– Faz tempo que você nãoolha pro Gael, né? – perguntouJoão na primeira manhã em quefinalmente resolveu ajudar atrásdo balcão.

– Que Gael?– O gato da Carolina.– Já falei que aquele gato está

proibido de descer pro bar. Seela quiser ficar com o bicho,então que deixe ele lá em cima,preso no quarto!

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O pano de prato nas mãos deJoão enxugou dois copos antesde retomar o assunto.

– O Gael andou perdendopelo…

– Pois você que limpe asujeirada! – rugiu Tiago. – Foivocê que inventou de trazerbicho aqui pra casa!

João se limitou a um longosuspiro. A entrada do primeirocliente do dia adiou a conversapara outra oportunidade. Estasurgiu três dias depois,novamente durante o café damanhã. Os dois irmãos estavam

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na cozinha e Carolina, ainda noandar superior da casa,preparava-se para ir à escola.

– Você já reparou que o Gaelperdeu os pelos?

Tiago pretendia ignorar apergunta e, assim, evitar umabriga indesejada.

– Já reparou que agora eleanda com as duas pernas? –insistiu João.

O gato tinha virado o quê?Artista de circo? O irmão maisvelho não tinha nenhumavontade de escutar aquela ouqualquer outra piada ridícula.

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– Olha, algo me diz que oGael não é mais um gatinhoesquisito… – continuou João,num tom zombeteiro, aoindicar, com o queixo, a portada cozinha.

Num movimento automático,Tiago virou o rosto paraacompanhar seu gesto.Encontrou a filha com umaexpressão ansiosa, parada juntoao batente. Parecia desejar emuito a aprovação paterna. Enão vinha sozinha. Segurava nocolo um menininho que deviater um pouco mais de um ano.

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– Mas quem é esse…?O pai engoliu a palavra

“menino”. Não tinha certeza deque estava mesmo diante deuma criança. Perdido sob umacamiseta de Carolina, imensapara ele, o menino, ou o quequer que fosse, fitava-o comolhos grandes, de um tomcastanho quase dourado. Oscabelos negros e cacheadosdestacavam a pele pálida eencobriam parcialmente asorelhas triangulares, iguais às deum gato. A avaliação de Tiagose deteve por alguns segundos

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no rosto humano, de traçosbonitos, antes de seguir para osbraços e terminar em patasocupando o lugar de mãos.Estranhas patas sem pelos e comdedos um pouco maiscompridos que dedos felinos. Aroupa escondia de sua análise ospontos salientes da espinha, quemarcavam a pele em suatrajetória da nuca até as nádegas.

– E ele não tem rabo! –garantiu João, na maiortranquilidade.

– É só isso que você tem adizer? – explodiu Tiago, a voz

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esganiçada.– É.Assustada, Carolina recuou.– Ora, ele era peludão, parecia

um filhote… – justificou João,dando de ombros. – Como euia adivinhar que era um bebê?

A mente do irmão mais velhodeu um nó. Gael era o gato e ogato era um bebê que era oGael. Não, aquilo jamais poderiaser um bebê! Aquilo não era nemhumano!

De repente, Tiago se sentiusufocar. Precisava de ar com amáxima urgência! Atarantado,

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abandonou a cozinha, desviouda filha no meio do caminho,alcançou a escada e foi diretopara o quarto abrir a únicajanela da casa que dava para arua. Um final de madrugada orecebeu com as primeiras luzesda manhã. Demorou umaeternidade até a respiração voltarao ritmo normal.

– Aquele… hum… filhote…deve ter uma família atrás dele –disse, em voz baixa, ao perceberque João o seguira.

– Não tem.– Como você pode saber?

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– Porque eu vi o pai, umadolescente, jogar ele na frentedo metrô.

Tiago estreitou os olhos para oirmão.

– Jogou?– Foi.– Adolescente, é?– É.João se aproximou, apoiando

os cotovelos sobre o parapeitoda janela.

– O moleque tentou matar opróprio filho porque ele nasceudiferente dos outros.

– Diferente?! Aquilo é um…

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– Uma criança, Tiago –reforçou. – Uma criança quenasceu defeituosa. Podeacontecer com qualquer um,sabia? Mas Deus salvou a vidado Gael. E se Ele fez isso, quemsomos nós para não aceitar umacriança assim?

Ah, não! Só faltava Joãocolocar Deus naquela históriamal contada!

– Mas eu não tenho obrigaçãonenhuma de cuidar daquilo! –protestou Tiago.

O irmão caçula franziu onariz.

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– É aí que você se engana –disse, com um meio sorriso. –Ahn… lembra daquele meuamigo que trabalha no cartório?

Não, ele não lembrava etampouco queria ouvir o que ooutro tinha a lhe contar. Deumeia-volta, afastou-se da janela ejá estava a centímetros da portaquando o irmão lançou a novabomba atômica.

– Pois é, registramos o Gaelcomo teu filho.

Tiago estacou, mais quefurioso. Voltou-se rugindo parao irmão.

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– Como você teve coragem de…?– O menino precisava de uma

certidão de nascimento. Agoraele pode ir no médico quandoficar doente, frequentar a escola,votar quando chegar aos 18 e…

– Eu mato você! E vou tedenunciar pra polícia porfalsificar documentos!

– Veja o lado bom. A Carolsempre quis um irmãozinho e…

– Nós somos negros! E aquele…aquilo é mais branco que folhade caderno!

– Não faça drama, Tiago.– Você não enxerga? Ele é

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branco!– Você está sendo racista!– Racista, eu?– Claro que está! Por que uma

família de negros não pode criarum menino branco?

– Ele não é meu filho!– Você pode dizer que ele

puxou a mãe. Que ela era loira,de olho azul.

– Que mãe?!– A que eu inventei pra

colocar na certidão denascimento, ora! O Gael nãopodia ficar sem mãe.

– Ele não é meu filho! –

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repetiu Tiago, inutilmente.Como sempre, o caçula tentavaenrolá-lo para escapar daspróprias responsabilidades. Sóque, daquela vez, não ia se safar.João abusara demais daconfiança do irmão mais velho.

– O que você tem contraadoção?

– Não tenho nada contra!– Ah, já sei! Você é daqueles

que só querem adotar criançasbonitinhas, que nasceramperfeitas!

– Mas eu não quero adotarninguém!

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– E por que não? Tem tantacriança abandonada por aí e…

Um grito desesperado deCarolina encerrou a discussão demodo abrupto. Imediatamente,os dois adultos correram parasocorrê-la.

– A gente ia subindo e eutropecei… – soluçou a menina.

Gael estava caído aos pés daescada. O excesso de sangueescorrendo da testa se misturavaàs suas lágrimas de filhote.

Tiago apenas reagiu. Práticocomo de costume, enrolou omonstrinho num casaco e

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disparou para a rua, na direçãodo pronto-socorro maispróximo.

NO PRONTO-SOCORRO

MUNICIPAL, o caso ganhoustatus de emergência e Gael foiencaminhado a um dos médicosde plantão. O monstrinho,assustado, resistiu ao máximopara não sair do colo de Tiago,prendendo-se a ele com toda aforça que lhe permitiam as patasesquisitas. Com muito custo foicolocado numa maca, ondeduas enfermeiras o imobilizaram

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para que o médico fechasse otalho em sua testa com algunspontos. Por fim, acalmou-se. Omédico, boquiaberto, não seconteve após examiná-lomelhor.

– Este caso é um tesouro paraa ciência! – exclamou,empolgado.

Tiago juntou as sobrancelhas.O que aquele homempretendia? Transformar omonstrinho numa cobaia?

– Imagine o quantoaprenderemos com ele! –continuou o médico, pegando

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uma máquina fotográfica dagaveta de sua mesa. – Seráperfeito para o artigo que estoupreparando…

As enfermeiras, agora afastadasda maca, espiavam com horror etambém piedade.

– Onde o senhor oencontrou? Na rua? – arriscouuma delas.

Tiago não respondeu.Enxergava o que elasenxergavam: uma criança quetivera a infelicidade de nascerdeformada, que ilustraria artigosem revistas científicas, apareceria

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como aberração em reportagensna TV… Engoliu em seco.

O médico, com a câmera empunho, já enquadrava asmãozinhas felinas de Gael. Este,em sua inocência, abriu umdelicioso sorriso de bebê para osadultos que não o consideravamgente. E se Carolina tivessenascido diferente das outrascrianças? E se as mãozinhas delafossem tortas ou se elaapresentasse alguma deficiênciamental? Também seria vistacomo uma aberração? Do fundode seu coração, Tiago teve

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certeza de que amaria a filha domesmo jeito, fosse ela comofosse. Já Gael não tinha ninguémpara defendê-lo, para amá-locomo ele era. O próprio pai nãotentara se livrar dele? Não tinhajogado o filho para serestraçalhado pelos trilhos dometrô?

Foi naquele exato momento,para Tiago, que Gael deixou deser um monstrinho para setornar apenas uma criançasozinha no mundo.

– Doutor, o que o senhorpensa que está fazendo? –

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cobrou, indignado.Surpreso, o médico abaixou a

máquina fotográfica.– Qual é mesmo sua relação

com o paciente? – perguntou,enquanto esticava o olho para aagenda aberta sobre a mesa. – Osenhor poderia trazê-lo aqui àsquintas, às quinze horas? Nessehorário estou com meus alunosde Medicina e seriaextremamente importante que ocaso fosse mostrado para…

– Não posso.– Sem problema. Tenho

também horário na sexta de

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manhã e…– Este bebê não vai virar rato

de laboratório!O médico respirou fundo.

Não pretendia perder umobjeto de estudo tãoexcepcional.

– Se o senhor me disser ondeencontro a família dele, pedireiautorização e…

– Não.– Mas ele é um caso raro! A

ciência…– A ciência que se dane! –

estourou Tiago.Esticou os braços para o

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menino, que praticamente sejogou em seu colo à procura desegurança. Sentindo a cabecinhade Gael apoiada em seu ombro,virou-se para deixar a sala deatendimento.

– Vou chamar a assistentesocial! – ameaçou o médico. –Esta criança deve ter pai e mãe eo senhor não tem o direito de…

– Ele é meu filho! – disse Tiago,já na porta, com um orgulhoque não sabia de onde vinha. –Tenho a certidão de nascimentopara provar.

– Mas o menino é branco! –

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lembrou a segunda enfermeira.Sem sequer olhar para trás,

Tiago xingou o irmão pelamilésima vez antes de repetir apior explicação do dia:

– A mãe era loira, de olhoazul – disse, entre dentes,amparando com firmeza o bebêindefeso em seus braços paradeixá-lo o mais longe possívelde qualquer experiênciacientífica. E ai de quem seatrevesse a ficar em seucaminho!

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S***

EMPRE ME INTRIGOU acapacidade da naturezahumana em criar como

filhos aqueles que não têm seusangue. Em doar amor a filhotesvulneráveis, em protegê-loscontra tudo e todos. Umacapacidade ambígua, naverdade. Humanos tambémmatam crianças. De fome, defrio, de abandono. Quando nãoas matam de pancada. Pequenasvítimas da violência diária em

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uma civilização egoísta.Assisti, ano após ano, ao

crescimento do pequenomonstro numa família que otratava como gente. Com nomee sobrenome, ele atingiu a faseque, para os humanos, não passade adolescência, mas que, paranós, é sinônimo deresponsabilidades inadiáveis.

Mesmo após catorze anos,desde a noite dolorosa da quase-execução, minha consciência decarrasco não permitia que meesquecesse dele. Eu escapava nasbrechas das viagens que me

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mandavam fazer e ia a SãoPaulo. Zelei por ele à distância,procurando mantê-lo noanonimato. Em minhas orações,pedia à nossa deusa-mãe Cal-leach que o protegesse contra oódio dos clãs.

Tudo em vão.Cedo ou tarde, ele teria de

enfrentar seu destino.E eu, o meu.

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F

CAPÍTULO 3

Parque da Luz

São Paulo, nos dias de hoje

ASCINADO COM ASPALAVRAS LUMINOSAS

que tomavam forma e serefletiam por todo o ambienteescuro, Gael não conseguiapiscar. Uma única vozdominava o ar para a leitura doúltimo poema. Imagens

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brotavam nas paredes. Era comoestar literalmente dentro de umlivro, com palavras e sentidosque ganhavam vida e luzpróprias. Um planetário depalavras…

Quando a apresentaçãochegou ao final e a porta foiaberta para que os participantespudessem sair da Praça daLíngua, praticamente todomundo fez questão de ler ostrechos de poesias, contos eromances gravados em letrasbrilhantes no piso negro, aocentro das arquibancadas em

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semicírculo da sala.– E aí? – perguntou Lucas,

entediado. – Tá com fome? Eutô faminto!

Ele não esperou pela respostade Gael. Foi um dos poucos arodear a professora dePortuguês, doido para irembora. O restante da turmaestava empolgado demais parasair do Museu da LínguaPortuguesa. E ainda haveria opasseio à Pinacoteca do Estado,bem em frente. Bastavaatravessar a rua.

A visita que o colégio de Gael,

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o Marista Arquidiocesano,realizava ao museu começara noauditório do terceiro andar,com a projeção de um filmesobre as origens da línguaportuguesa, seguida pelaestonteante dinâmica noplanetário de palavras. Oadolescente foi com a turma atéo segundo andar do prédio paraconhecer a Linha do Tempo, oprocesso de evolução do idiomadesde a Antiguidade até os diasde hoje. Para um apaixonadopor línguas como ele, o local eraum paraíso multimídia. Foi

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difícil arrancar Gael do Beco dasPalavras, uma sala com umdivertido jogo eletrônico deformar palavras.

Após o almoço, a turmarumou para a Pinacoteca, oelegante prédio inaugurado em1905, abrigo para mais dequatro mil peças. Arte brasileirado século XIX ao XXI.

– Não se esqueçam de fazeranotações sobre os quadros deCândido Portinari, AnitaMalfatti, Victor Brecheret, LasarSegall, Tarsila do Amaral e DiCavalcanti – a professora

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recomendou. – Terão de fazerum trabalho sobre Modernismona aula de Arte.

Apesar da careta dos alunos,que já deveriam redigir umrelatório imenso sobre os doismuseus, a professora os enxotoupara dentro da Pinacoteca,direto para a educadora queconduziria a visita monitorada.Gael se separou do grupo, deuduas voltas no andar térreo,xeretou as pinturas e esculturasdo andar superior e tiroualgumas fotos com a câmeradigital.

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Por uma janela, avistou Lucaspendurado numa das esculturasdo Parque da Luz, junto àPinacoteca. Rindo, oadolescente desceu correndo aantiga escadaria de madeira esaiu do prédio a tempo de tiraruma foto do amigo levandouma bronca gigantesca de umdos funcionários do local. Claroque a foto iria direto para oFacebook! Obrigado a ir paraterra firme, Lucas limitou-se adar de ombros, antes de sumirnuma das alamedas do parque.

Gael achou curiosa a ideia de

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colocarem esculturas ao ar livre,espalhadas pela área de mais decem metros quadrados, entreárvores e plantas. E foi só.Cansado de tentar entenderobras de arte, guardou a canetae o bloco de anotações no bolsoda calça jeans e se distraiu com ocenário. Algumas pessoas,sentadas nos bancos, aqui e ali,aproveitavam a tarde de junho,uma sexta-feira, para conversar,ler ou apenas tomar sol. Umcontraste no meio de umametrópole enlouquecida comoSão Paulo.

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O garoto tocou as luvas decouro que usava eternamentepara esconder as mãos. Oscabelos, batendo nos ombros,garantiam-lhe a coberturaperfeita para as orelhas felinas. Ea camiseta larga disfarçava bemas espáduas e a coluna de nóssalientes. Na prática, ele pareciaapenas um adolescente comvisual estiloso, um poucoencurvado por ser alto demaispara seus catorze anos. Nadaque o diferenciasse muito dosalunos do colégio onde estudavadesde a primeira série, após

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obter uma valiosa bolsa deestudos.

Quando um mendigo cruzouseu caminho, Gael decidiuguardar a câmera no outrobolso, por segurança. Carolainda estava pagando oequipamento, um presente doúltimo Natal, parcelado em dezvezes no cartão de crédito.

– Melhor voltar… – disse parasi mesmo. Afastara-se demais doprédio da Pinacoteca e agoranão avistava mais ninguém porperto, nem mesmo o mendigo.

Do nada, algo pulou na sua

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frente, quase derrubando-o nochão.

Era… era um cavalo! Que doidoandaria a galope em plenoParque da Luz? Numa reaçãoprevisível, Gael recuou,tentando manter-se longe dealgum coice. Seu movimentoatraiu a atenção do cavaleiro,que girou o rosto sinistro paraele.

– Cai fora! – brigou Gael,apesar da visível desvantagem.

Lição número um: jamaisbrigue com um cavaleiro aindasobre a sela! O homem voltou

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sua montaria para o adolescentee a empinou para assustá-lo. Aspatas do animal se agitaramfuriosamente sobre sua cabeça.Gael caiu sentado e cobriu acabeça com os braços,encolhendo-se ao máximocontra o piso da alameda.

– Como consegues ver ocavalo? – vociferou o cavaleiro,num sotaque próximo aolusitano.

“Vendo, ora!” Gael, porém,achou mais prudente dispensarqualquer resposta malcriada.Não satisfeito, o outro retirou a

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Instintivamente, Gael roloupara a direita e se levantou numpulo antes de correr para escaparda morte certeira. Tinha aimpressão de estar numa dascenas da trilogia O Senhor dosAnéis, possivelmente algumaversão adaptada para as terrastupiniquins. A diferença era quenada ali pertencia à ficção. Ocavaleiro pretendia matá-lo deverdade!

Aliviado, o adolescente sentiuque o outro não o perseguia.Talvez o ataque fosse mesmo dementirinha, uma brincadeira

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sem graça de alguém fantasiadoque estava ensaiando umaperformance qualquer para seapresentar no Anime Friends ouno Encontro Internacional deRPG. De qualquer forma, eramelhor continuar correndo,pedir ajuda a algum PM nocaminho… Gael se infiltrou porentre a vegetação. Iria despistaro doido e… Foi quando umzunido atravessou o ar e, numgolpe seco, o empurrou parafrente, cravando-o de bruços aochão. A espada. Por sorte, alâmina o acertara de raspão na

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lateral do corpo, prendendo-opela camiseta. O sangue brotouno mesmo instante.

O cavaleiro desmontou e, apassos rápidos, aproximou-se doadolescente. Com um dos pés, oprensou pelas costas, enquantoarrancava a espada presa ao solo.

– Nenhum humano pode nosver como somos – resmungouele. – O que és, então?

Algo despertou seu interesse.Com a ponta da espada, eleafastou os fios dos cabelos deGael, o que revelou sua orelhade formato triangular e pontas

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arredondadas.– Tira a luva! – ordenou,

secamente, parecendoperturbado.

Lição número dois: nãodiscuta ordens quando há umaarma encostada na sua orelha!Lutando para controlar atremedeira, Gael puxou com osdentes a luva direita. Os dedos,de unhas finas, surgiram em suamais completa esquisitice. Apalma da mão, as típicas“almofadinhas” felinaspermaneceram viradas para aterra.

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– Tu ainda vives… – rosnou ocavaleiro, enfurecido.

A espada se afastou da orelhado garoto para ganhar altura.“Vou ser decapitado!”,constatou ele, em pânico. Eaquele seria seu últimopensamento…

Ah, não mesmo! As unhasfelinas seriam úteis pela primeiravez em sua vida!

De novo guiado pelo instinto,Gael girou sobre si mesmo,driblando a força do pé que omantinha colado ao chão, eafundou as unhas das duas mãos

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nas pernas do cavaleiro. Unhasretráteis, que saltavam de seusdedos como verdadeiras garras.

O ataque surpresadesequilibrou o adversário, queerrou feio o percurso da espada.E assim Gael escapuliunovamente, ganhando maisvelocidade do que jamaispoderia imaginar que tivesse.

GENTE. SIM, GAEL PRECISAVAESTAR CERCADO DE GENTE.

Quanto mais, melhor. Maisseguro estaria. Ainda correndo,ele não retornou à Pinacoteca,

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ignorando qualquer proteçãoque poderia ser oferecida pelaprofessora de Português e seuscolegas, ainda no interior doprédio. Atravessou a rua paraentrar na Estação da Luz.

Sentiu-se mais seguro quandoescolheu o vagão de metrô maislotado e se espremeu num cantopróximo à porta. O sangue nacamiseta da escola lhe rendeuolhares cheios de desconfiança.Com pressa, desembarcou trêsestações depois, na Portuguesa-Tietê. Na rua, correu comolouco para casa, distante algumas

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quadras.Tiago, ocupado demais no

atendimento aos fregueses, nãopercebeu sua chegada ligeira,rumo ao andar superior do bar.Foi Carol, que ajudava o paiatrás do balcão, quem largoutudo para ir atrás dele.

A jovem o encontrouescondido no vão entre oguarda-roupa e uma das camasde solteiro, no quarto quedividiam.

– Gael, que sangue é esse nasua roupa? – perguntou,preocupada.

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Adiantaria contar a verdadepara a irmã? Ainda mais sobre oataque de um cavaleiro quedeveria existir só nos filmes?

– Tentaram roubar acâmera… – mentiu ele.

– Usaram… usaram uma facaem você?

O garoto assentiu com ummovimento de cabeça.

– Mas não é grave. Foi só umarranhão.

Carol o puxou com firmezapara sentá-lo na cama. Avaliou ocorte superficial, depois foipegar os remédios no armário

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do banheiro e se pôs a cuidardele.

– Onde você estava quandotentaram te assaltar?

– No jardim da Pinacoteca.– E a professora, não fez nada?– Eu estava sozinho.Foi a deixa para a bronca após

o alívio de vê-lo são e salvo.– Quantas vezes tenho de falar

pra você que não é seguro andarsozinho por aí com celular ecâmera dando moleza?

– Mas eu não tenho celular…Lição número três: nunca

atrapalhe a bronca da irmã mais

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velha que ainda trata você comoum filho ainda bebê! Carolfechou a carranca. Seus 21 anosendossavam ainda mais suaautoridade de irmã-quase-mãe.

– Você podia ter morrido,sabia?

– Sabia.– Sabia que adolescentes

morrem todos os dias, vítimasde assalto?

– Sabia.– Você não pensa, é? Tinha de

ir se meter sozinho num jardimdeserto e perigoso?

– Mas não era um jardim

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desert…Gael cerrou a boca a tempo.

Lição número quatro: jamaisesquecer a lição número três!

– Carol?– Que é?– Você vai contar pra eles?Eles eram Tiago e João, o pai e

o tio que o adotaram aindarecém-nascido, depois quealguém o deixara numa cestinha,na porta do bar. Tiago até oregistrara como filho. Talvezseus pais verdadeiros nãoquisessem uma criançadeformada por perto…

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Assim como os adultos, Gaelevitava tocar naquela história. Seos pais não o queriam, azar odeles. Vivia muito bem,obrigado, com a irmã, o pai e otio adotivos.

– Eles precisam saber quevocê quase foi assaltado.

– Não precisam não, Carol!Por favor, não conta pra eles!

A jovem acabouconcordando. João faria umatempestade em um copo d’águae Tiago, um tsunami.

– Mas conto tudo se você seexibir de novo com a câmera na

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rua! – prometeu ela antes de sairdo quarto e retomar seutrabalho no bar.

Sozinho, o garoto afundou nocolchão.

Lembrava-se de já ter vistoantes coisas que ninguém maisvia, pessoas tão fora da realidadequanto aquele cavaleiro. Umavez, há tempos, descobrira umadelas ao fitar o reflexo da janelado ônibus em movimento.Também vestia fantasia medievale trazia a mesma tatuagem nolado esquerdo da testa… Odesenho estilizado de uma taça.

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E uma outra vez… Quandoacontecera mesmo? Tinhaquantos anos? Uns cinco?Chovia e, sentado no degraudiante do bar, Gael observava aspoças d’água na calçada. Numpiscar de olhos, a superfície daágua refletiu as folhagens deuma árvore que não existia…Depois a imagem sumira paracontinuar refletindo parte dafachada do bar.

O único mundo queconhecia, de repente, ganhavauma dimensão obscura epossibilidades incompreensíveis,

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E

que Gael achava melhor nãovislumbrar.

***

Curitiba

U SABIA ONDE ENCONTRÁ-

LA. Apesar de seu poderde impedir que a

detectassem pela magia, eudescobrira seu paradeiro faziamais de uma década. Nunca orevelei a ninguém. Orianadesejava paz, uma nova vida queapagasse a tristeza da anterior. E

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tivera sucesso: vivia entrehumanos que sequerdesconfiavam de seus poderesou da existência de tantos serescomo nós. Morava em Curitiba,no sul do país, e trabalhavacomo esteticista em um salão debeleza.

Protegido pela magia, oshumanos me enxergavam comoum deles. No lugar das vestes earmas de guerreiro, viam-me desobretudo, camisa e calça social.

Contornei a recepção sem queas funcionárias se dessem contae, com pressa, tomei um

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corredor para as salas do fundodo salão, onde Oriana terminavade modelar as sobrancelhas deuma cliente. Ao me descobrirdo lado de fora da sala, ela nempiscou. Apenas pediu licença àoutra mulher, fechou a portaatrás de si e foi ao meuencontro.

– O que fazes aqui? – disparou,agressiva.

Aos vinte e nove anos, Orianacontinuava tão linda quanto eume lembrava. Não perdera amajestade da postura etampouco a altivez de seu olhar,

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herdados de uma linhagemnobre e valente.

– Ele sobreviveu à execução –respondi, com simplicidade.

Ela não compreendeu deimediato o que aquelas palavrassignificavam.

– O próprio Galaor estava empatrulha quando o descobriuentre os humanos – prossegui. –Tentou matá-lo, mas não tevesucesso.

As lágrimas surgiram sem queOriana pudesse evitá-las.Expunham sua felicidade, a dor,o medo de perder o que

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descobria reconquistar.– Os clãs… Todos já sabem,

Viriato? – murmurou ela.Confirmei, baixando meu

rosto. A notícia se espalhara empoucas horas. Percebi odesespero tomando conta deOriana naquele segundo, masela não permitiu que viesse àtona.

– Senhora, assim que elessouberam, enviaram os melhoresguerreiros do clã para caçá-lo –acrescentei. – Eu aproveitei acomoção geral para vir avisá-la.Mas acho que nada poderá

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evitar que o menino sejaexecutado desta vez.

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-V

CAPÍTULO 4

Caça

São Paulo

OCÊ NÃO VAI PRA

ESCOLA HOJE? – estranhouTiago ao ver o garoto atrás dobalcão do bar, logo no começoda manhã. – Hoje é segunda,esqueceu?

– Não tem aula – respondeuGael, sem desviar sua

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concentração dos copos quelavava. Carol, com a vassoura apostos para limpar a calçada,olhou-o de esguelha.

Desde sexta, o garoto andavamuito quieto, com um jeitoarredio que não era dele. Claroque Tiago farejou mentira noar, meio que sem acreditar naprópria desconfiança. Gael nãoera de mentir. Um meninoestranhamente maduro para aidade, responsável até demais,um braço direito indispensávelao bar. Além de atenderfregueses e ajudar na limpeza, o

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garoto cuidava pessoalmente dochurrasquinho vendido nacalçada, à noite. Ele mesmotemperava a carne, armava achurrasqueira, montava osespetinhos e os vigiava comatenção até ficarem prontos,revirando-os sobre a grelha.

– Na sexta, sua professoraligou – disse Tiago. Um copoensaboado quase escorregou dasluvas de borracha que Gaelusava ao trabalhar no bar. –Apavorada, porque você tinhasumido no museu. Só seacalmou quando falei que você

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estava aqui.Carol fez de conta que não

escutava a conversa,comprimindo com mais força asfibras de piaçaba da vassouracontra o chão.

– Você não podia terabandonado a excursão daescola – repreendeu Tiago. –Apavorou sua professora e, pior,ficou andando sozinho por aí!

– Eu sei.– Se sabe, por que aprontou

uma dessas?– Porque… – disse Gael, sua

voz quase inaudível – … eu

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queria ficar com vocês.Tiago não entendeu o sentido

da resposta. Obrigou o garoto adeixar a louça e a olhá-lo bemnos olhos.

– O que está acontecendo,hein? – cobrou.

A reação de Gael osurpreendeu. Num impulso, eleo abraçou como se tivesse medode perdê-lo. A demonstração deafeto, porém, não durou maisque milésimos de segundos.Gael se afastou, embaraçado.Sua fase de adolescente não lhepermitia se comportar como

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criancinha.– Ainda dá tempo de ir pra

escola – disse ele, com pressa,antes de correr para o quarto.Era só vestir o uniforme e pegara mochila.

– NENHUM SINAL DA

ABERRAÇÃO – constatouGalaor, mais para si mesmo quepara Hélio, o guerreiro que oacompanhava na sentinela àescola. Parados na RuaDomingos de Morais, junto aoShopping Metrô Santa Cruz,acompanhavam o movimento

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dos alunos que chegavam para amanhã de aula no ColégioArquidiocesano, do outro ladoda rua. Mais três guerreirosvigiavam pontos estratégicos aoredor do colégio que seespalhava por um quarteirãoimenso.

– Era esse mesmo o nome daescola? – quis confirmar ocompanheiro.

Questionar as certezas dopoderoso Galaor significavacometer um dos piores erros navida. Ao perceber que falarademais, o guerreiro quis

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consertar a situação:– Digo, viste o uniforme

escolar e… hum… essessímbolos podem ser muitoparecidos e… ahn… foi tudomuito rápido, e ele conseguiufugir de ti no parque e…

O olhar terrível, inspiradopelo gênio vingativo de Galaor,deixou de controlar o queocorria diante do colégio para sefocar em Hélio. Este malconseguiu respirar.

– Estás a me chamar deincompetente? – rosnou Galaor.

– N-não… Claro que não! Eu

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não… ahn…– Jamais cometo enganos.– Cla-claro, senhor! Não quis

dizer isso…– Se a execução estivesse sob

minha responsabilidade e nãodaquele incapaz do Viriato, aaberração jamais sobreviveria.

– Eu… não soube usarcorretamente as palavras.Perdoa-me!

O guerreiro se curvou,submisso. Ainda bem queGalaor tinha outra prioridade, eesta não era puni-lo. Pelomenos não naquele minuto.

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– Deves manter este posto devigilância – disse o líder, ríspido.– Vigiarei a saída do metrô aolado da escola.

TALVEZ NÃO CONSEGUISSE

PEGAR A PRIMEIRA AULA, mas,mesmo assim, Gael ia tentar.Embarcara esbaforido na estaçãoPortuguesa-Tietê; agitadodemais para procurar um assentono trem, permaneceu em pé,espiando pela janela a paredecinzenta do túnel subterrâneo.Às vezes tinha a impressão deque ela estava em movimento, e

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não o trem.Perto do garoto, uma mulher

não desviava sua atenção domapa das estações, com medode desembarcar em lugarerrado. “Essa não é daqui”,pensou Gael. Paulistano está tãoacostumado com a sequênciadas estações que nem liga paraos mapas sobre as portas, emtodos os vagões, nem para a vozque anuncia a próxima parada.

Como o bom paulistano queimaginava ser, Gaelautomaticamente desembarcouna estação Santa Cruz. Subiu

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correndo a escada rolante econtinuou no pique aceleradoao passar pela catraca. Virou àesquerda, indo direto para asaída pela Domingos de Morais,a poucos metros de um dosportões do Arqui. Estava quasena escada rolante quandotrombou com uma garota que osegurou com firmeza pelocotovelo.

– Se queres viver, vemcomigo! – disse ela, num tomque pedia urgência.

Pelo canto do olho, elereconheceu alguém que descia a

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escada como um loucosanguinário: o mesmo guerreiroque por pouco não o decapitarano Parque da Luz!

Gael prendeu sua mão entreos dedos da garota e, juntos,retornaram correndo para ointerior da estação. Aoalcançarem a catraca, nemprecisou usar o cartão do bilheteúnico escolar. Um estalo dededos da garota liberou duascatracas, uma ao lado da outra,para que passassem semproblemas.

Os dois continuaram fugindo

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até a plataforma, com o loucoem seu encalço. Sorte que agarota era tão rápida quantoGael. E sorte maior ainda que otrem estava fechando as portasnaquele minuto. Numavelocidade impressionante, ogaroto entrou no vagão aomesmo tempo em que suacompanheira de fuga o fazia. Otrem partiu e o guerreiro ficoupara trás. Pelo vidro da janela,Gael pôde ouvir seutranstornado urro de ódio edecepção, algo que,estranhamente, passou

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despercebido pelos demaispassageiros, inclusive por quemcirculava na plataforma deembarque.

– Obrigado – disse para agarota, que, com um sorrisinhomalicioso, também espiava seuperseguidor pelo vidro.

Impressionado, Gael admiroua pele morena e cabelos negrose lisos da garota, presos numatrança única que batia em suascostas. E os olhos? Pequenos eorgulhosos, atentos a cadamovimento do dono da mãoque ainda segurava. Um corpo

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de mulher se escondia sob suaaparência de adolescente. Deviater uns catorze anos, comoGael.

– Sou Anuk – disse ela,livrando-se do toque dos dedosmasculinos sob a luva.

Anuk também tinha umsotaque parecido com o lusitanoe vestia roupas de cosplay. Umcorpete de couro vermelhodelineava sua cintura e os seios,por cima de uma camisa branca,franzida na gola arredondada enas pontas das mangascompridas. Ela ainda usava uma

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calça preta, justa, e botas decano alto e salto fino que adeixavam quase da altura dogaroto. Aliás, só na ficçãoalguém poderia correr tãorápido com saltos daqueles.Como ela conseguia?

– Meu nome é…– Sei teu nome – cortou ela.– Como você sabe? Quem é

aquele cara atrás de mim? Porque ele quer me matar? E você?Por que está me ajudando e…?Caramba, você estalou os dedose liberou a catraca! Como fezaquilo?

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– Conversaremos quandoestiveres em segurança, na tuacasa.

Gael ainda insistiu, fazendonovas perguntas, mas não tevenenhuma resposta. Por uminstante, achou que nenhumpassageiro do vagão enxergavaAnuk, pois suas roupasincomuns passavamdespercebidas. A teoria caducoutão logo um velhinho pediulicença à garota para se sentar nobanco vazio à sua frente.

Muito quieto, Gael fechou osolhos por alguns segundos. O

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coração batia de mododesordenado, consequência daperseguição e do pânicoimpostos pelo guerreiro.

– Aquele era Galaor – disseela.

– E por que ele…? –recomeçou Gael, erguendo aspálpebras para fitá-la.

– Já te falei que conversaremosna tua casa – interrompeu ela,desta vez encerrando de verdadeo assunto.

NAQUELA MANHÃ, apóssemanas de ausências justificadas

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pelas desculpas de sempre, Joãose dignara a ajudar. Algunsclientes terminaram o café antesde encarar o trabalho edeixaram o local para retornarno dia seguinte, como dehábito. Foi no instante em queo bar esvaziou que um rapazapareceu e se postoudiscretamente junto ao balcão.Carol limpava as mesas e Joãobrigava com o espremedor delaranja, tentando limpar osfiapos da fruta que seacumulavam nos cantos da peçade plástico. Tiago foi atender o

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cliente. Não era um rapaz tãonovo quanto imaginara àprimeira vista; não devia ter maisde trinta anos. E vestia-se bem,sobretudo escuro sobre camisa ecalça sociais.

– Um café, por favor – pediuele, no que parecia ser umsotaque lusitano.

Carol, que tirava as migalhasde pão de uma mesa próxima,disfarçou mal o interesse pelorapaz de pele clara, olhos azuis ecabelos castanhos. Ele nãopareceu notá-la, mas o ciúmepaterno, claro, fez Tiago

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amarrar a cara e, com muita mávontade, servir uma xícara decafé requentado aodesconhecido.

Antes, porém, que ele tocassea bebida, João veio do fundo dobalcão, apontando-lhe a facamais afiada que encontrara nagaveta de talheres.

– O que quer aqui, seumiserável? – gritou, fora de si. –Achou que eu ia esquecer suacara, é? Fora daqui, já! E nuncamais se atreva a botar os pésneste bar!

O rapaz não se deixou

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intimidar. Carol, amedrontada,não se mexia. Tiago nunca virao irmão daquele jeito. Foi atéele e segurou-lhe o braço.

– O que você pensa que estáfazendo?

– Foi ele!– Ele quem?– Ele é o sujeito que jogou o

Gael nos trilhos do metrô hácatorze anos!

Tiago não teve tempo dereagir, nem de expulsar apontapés o vilão que vinha dopassado para ameaçar seu filhoadotivo. Gael, acompanhado

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por uma menina da idade dele,estava parado na porta do bar.Chegara bem a tempo de ouvira explicação do tio.

TRILHOS DO METRÔ?! Gael malsentiu as lágrimas nublarem suavisão. Aquele homem paradojunto ao balcão, outro guerreirocom roupas medievais, tentaramatá-lo ainda bebê? Então foraassim que o tio o encontrara?No meio dos trilhos, porquealguém quisera se livrar de umacriança deformada…?

O guerreiro empalideceu ao

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devolver-lhe o olhar, masrecobrou a expressão indiferenteao se fixar em Anuk.

– Estás atrasado para cumprirteu dever, não é mesmo,Viriato? – ironizou ela.

– Vim corrigir meu erro,senhora – respondeu ele, comuma reverência respeitosa para agarota.

– E não é um pouco tardepara isso? Os clãs agora queremtua cabeça.

– Talvez meu castigo seja maisbrando se eu levar a eles acabeça da aberração.

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– Pois agora esta valiosa cabeçaé um prêmio meu!

“Mas eles estão falando daminha cabeça!”, revoltou-seGael. Seu pai e o tio, ainda atrásdo balcão, assustavam-se com orumo da conversa. Carolescorregou sutilmente a mãopara dentro do bolso do avental,à procura do celular. Bastavadiscar três números para chamara polícia sem quedesconfiassem…

Viriato, ágil, pôs-se atrás dela.Uma adaga surgiu, apontandopara sua garganta.

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– Nem penses nisso, humana– ameaçou ele.

Tiago agora alternava umavigilância desesperada ora sobrea filha, ora sobre o filho adotivo.João apertou o cabo da faca,ofegante.

– Para o bem de tua sobrinha,larga a arma e joga-a comcuidado para fora do balcão –Viriato acrescentou.

Foi obedecido com relutância.No mesmo minuto, dois novosguerreiros entraram no bar,empurrando Gael para dentro.Usavam túnicas sobre calças

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compridas folgadas, botas,turbantes e mantos negros, oque os deixava parecidos com osárabes do filme A Múmia. Umdeles aproveitou para desenrolara porta de aço e baixá-la até ochão, o que isolou os reféns domundo exterior e de qualquerchance de obter ajuda.

Muito tranquila, Anuk sedirigiu aos recém-chegados.

– E Galaor? – perguntou.– Não conseguiu seguir-vos –

disse um deles.A garota sorriu, saboreando a

resposta. Depois, afastou-se de

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Gael para estudá-lo de cima abaixo.

– Ainda permaneces leal ao clãde minha mãe, Viriato?

– Nunca desobedeci anenhuma ordem.

– Mesmo? – duvidou Anuk,com sarcasmo. – Então provatua obediência ao acatar umaordem minha.

– O que desejas, senhora?– Mostra-me o que faz esta

aberração ser o que é.

O RAPAZ AFASTOU A LÂMINA

DE CAROL, mas tirou-lhe o

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celular do bolso do avental eguardou-o no sobretudo. Elaimaginava quem seria aquelagente esquisita. A meninaarrogante que ditava ordens nãopassava de uma adolescentecomum, de camiseta, minissaia etênis. Os dois estranhos, tãomorenos quanto a garota,também usavam sobretudos,como o tal Viriato. Este, então,com sua aparência angelical, aenganara direitinho. Comopudera considerar charmoso umbandido como aquele?

Viriato aproximou-se de Gael

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e, sem que o garoto esperasse,agarrou-o pela orelha paraexibi-la como um item exótico.A garota não evitou a surpresa e,dando início a uma brincadeiraimpiedosa, exigiu mais. Gael, noentanto, não aceitaria serridicularizado. Começou adebater-se quando o outro quisarrancar suas luvas.

– Mostra as mãos – exigiuViriato, sem perder a frieza. –Ou tua família sofrerá.

– FORAM ESTAS AS GARRAS

que perfuraram as perninhas

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sensíveis de Galaor? – riu Anuk,revelando maldade no rostoinocente.

Gael sentiu raiva dela. As mãosfelinas eram alvo da zombaria dagarota e dos recém-chegados.Tentou escondê-las atrás docorpo, mas Viriato, sombrio, osegurou pelos pulsos.

– O que mais a aberraçãooculta de nós? – disse Anuk,decidida a atormentá-lo.

– Deixe meu filho em paz,menina! – brigou Tiago,inconformado. Carol choravaem silêncio e João espiava a faca

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jogada do lado de fora dobalcão, imaginando comopoderia recuperá-la sem queninguém percebesse.

Um dos guerreiros foi atéTiago e, com brutalidade,atingiu-o com o cabo da espadana altura do peito, derrubando-o. Os braços do irmão oimpediram de bater as costascontra o piso. Carol reprimiuum grito.

– Não ouses dirigir-te àsenhora, humano – justificou oagressor.

– Por favor, não machuquem

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mais ninguém – pediu Gael.Encontrando coragem em

algum lugar no fundo da alma,ele libertou os pulsos aindapresos por Viriato, largou amochila numa cadeira e,engolindo o orgulho, tirou acamiseta da escola. Lentamente,virou as costas nuas e encurvadaspara Anuk.

– Olhai esta coluna cheia denós! – disse ela, zombeteira, paraos companheiros. – Mas…haverá uma cauda?

A pergunta provocou maisrisos nos três. Gael olhou para o

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teto, sufocou a dor trazida pelahumilhação e abriu a calça jeanspara tirá-la do corpo. Livrou-sedo par de tênis e das meias.

– Onde está a cauda? –perguntou Anuk, desapontada.– Tira tudo, aberração!

– A senhora te disse para tirartudo! – cuspiu o guerreiro queferira Tiago.

O garoto foi obrigado a acatara ordem. Ainda de costas paraela, abaixou a última peça deroupa, provando que aquelaparte de seu corpo era igual à dequalquer pessoa. Lágrimas de

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vergonha e raiva escorreram atéseu queixo. Estava nu, indefesodiante das provocações que oreduziam a menos que nada.Sua postura, porém, se mantevedesafiante. Podiam arrancar-lheas roupas, mas jamais a coragem.

Quando, enfim, a brincadeirainfeliz perdeu a graça, Anukmandou que ele se vestisse.Depois, voltou-se para Viriato, oúnico que não demonstrara amínima vontade de se divertircom a situação.

– Por que nunca mudas tuacara de paisagem? – criticou a

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garota, com desprezo.– Não vejo motivo para risos,

senhora.– Ah, claro, o sempre sério

Viriato… Nesse caso, vai diretoao ponto, sem qualquerdiversão!

O guerreiro franziu a testa,sem entender a nova ordem.

– Que chateação! – reclamouAnuk. – Ainda terei de teexplicar em detalhes?

Desta vez, ele apenas abaixoua cabeça, um gesto desubmissão. Com um muxoxo, agarota indicou aos outros dois

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guerreiros o que esperava deles.Gael calçava os tênis quandoeles o pegaram pelos braços paraarrastá-lo dali. A porta de açofoi aberta apenas o suficientepara que alcançassem a rua.Anuk foi a primeira a sair.

O garoto olhou para trás, empânico. Viriato puxava a espadada bainha, pronto para eliminaras testemunhas humanas.

***

SSIM QUE A PORTA DE AÇO foinovamente fechada, ouvi o

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Adesespero de Gael, sualuta insana para fugirdos guerreiros e salvar a

família, as pancadas que recebeuaté perder a consciência. Nointerior do bar, os três humanosme encaravam, horrorizados.Mas eu tinha de fazer o que aprimeira filha de Shanteldesejava. Era a única chance derecuperar a confiança quedepositavam em mim, algoperdido com a descoberta deque eu falhara ao executar aaberração.

Ergui a espada até que a ponta

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da lâmina ameaçasse outra vez agarganta da jovem humana.

– Grita… – sussurrei.Ela, entretanto, mordeu os

lábios, recusando-se a emitirqualquer som.

– Grita… – repeti, ainda numsussurro.

Seu olhar encontrou o meu.Ela precisava entender o que eunão podia dizer. Anuk e osguerreiros ainda estavampróximos demais do bar.

A jovem humana hesitava. Sóque eu não podia esperar mais.Um movimento meu fez a

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espada cortar o espaço invisívelque nos separava, de cima abaixo. O movimento a rasgariade ponta a ponta, se eu quisesse.

Ela gritou muito alto,aterrorizada, e caiu sentada sobreas pernas. Larguei a arma eesperei os dois irmãos, queacabavam de contornar o balcãopara me atacar. O mais novodeles, João, recuperou a faca eveio com tudo para cima demim. Antes que eu o impedisse,parou, ao descobrir que asobrinha, ilesa e muito viva,acompanhava sua trajetória com

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os olhos arregalados. Já o paidela demorou a perceber oóbvio. Ele me arremessou umacadeira, que quebrou ao acertara parede quando me desvieidela. Aproveitei para empurrarmesas, arrebentar cadeiras,produzir mais e mais barulho.

– Podes parar com aencenação, Viriato – disse a vozque vinha do alto da escada, nosfundos do estabelecimento. –Eles já partiram.

Virei meu rosto preocupadopara Oriana. Ela se expunhademais ao aparecer naquele

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local, mesmo tendo entradopelo andar superior. E se…?

– Eles não sentiram minhapresença – garantiu.

Oriana desceu rapidamente osdegraus e veio até mim, semreparar nos humanos cada vezmais confusos.

– Vai! – disse, enquanto eu lhededicava uma reverência sincera.– Cuidarei de tudo por aqui.

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Q

CAPÍTULO 5

Carrasco

UANDO GAEL

DESPERTOU, estavano banco de trás de

um carro que atravessava aregião da Rua Vinte e Cinco deMarço. A movimentação de

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pessoas entre lojas e barracas decamelôs comprovava que aqueleé um dos mais importantescentros de compras do país.Numa das ruas próximas, ocarro subiu na calçada, cruzouum enorme portão de ferro,aberto especialmente para ele, eseguiu por alguns metros atéparar junto ao jardim do queparecia ser uma pequena cidadedentro de São Paulo! Haviainúmeras construções de doisandares, coladas umas às outras,em ruas estreitas e sinuosas. Osom de um mercado ao ar livre,

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onde vendedores de turbantes etúnicas longas gritavam paraatrair os consumidores até suastendas repletas de mercadorias,fez Gael pensar, por uminstante, que estava em algumpaís árabe…

Amortecido pela dor da surra,ele apenas se deixou levar,puxado de modo truculentopelos dois guerreiros. Aospoucos, deu-se conta de estarem um palácio imenso esuntuoso, de inspiração moura.O trajeto para o primeiro andarrevelou luzes refletidas em

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azulejos coloridos, sombras sobarcos multifoliados e fontes comespelhos de água nos pátiosinternos da construção. Comopoderia haver um lugar assimem pleno centro de São Paulosem que ninguém reparasse emsua existência?

Com Anuk à frente, o grupochegou a uma sala ampla,iluminada pelo sol que invadia oterraço e entrava pelas inúmerasjanelas. A agitação do bairrosoava como um burburinhodistante no ambiente dedecoração luxuosa. Os móveis

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de madeira escura se resumiam auma gigantesca estante de livros,uma mesa e cadeiras de encostoalto.

– Onde está meu pai? – agarota perguntou a uma serva.

– O senhor Tariq foi avisado eestá vindo – a mulherrespondeu, olhos no chão.

Afinal um homem alto emoreno, parecendo contrariado,entrou na sala. Três vultosenrolados em capas verdesvieram com ele, mas ficaramatrás, além da porta.

– O que significa isto? – o

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recém-chegado perguntou.– O que a ti parece? – disse

Anuk, decepcionada. Aquelareação não era exatamente a queesperava encontrar. – Não vêsque agora o prisioneiro mepertence? Estou trazendo poderao nosso clã!

– Quebraste minha palavra.A frase, dita num tom

sombrio, provocou uma pausadifícil. Bufando, Anukextravasou a frustraçãodesferindo um tapa na orelha deGael. Depois limpou nas roupaso sangue que escorria pela face

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do adolescente e que lhe sujaraos dedos.

O dono da casa se aproximoue avaliou o prisioneiro duranteum minuto.

– Devias trabalhar ao lado deGalaor, não trair a confiançadele – disse, por fim.

– E desde quando aqueleestúpido confia em alguém?

– Anuk, não ofendas o maridode tua mãe.

– “Estúpido” é uma palavragentil – ironizou ela. –Conheces muito bem as palavrasque ele utiliza quando se refere

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a nós!– Isso não justifica o que…– Não justifica?! – retrucou

ela, estridente. – Galaordestruirá o pacto de paz entre osclãs! Destruirá tudo… tudo!

– E se ele esperava um bommotivo para começar uma novaguerra, acabaste de lhe entregarum excelente.

Lágrimas de raiva brotaramnos olhos de Anuk.

– Nada do que faço te agrada,pai! – murmurou ela, semperder o tom agressivo. – Esimplesmente porque não sou a

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Mirele!O homem inspirou e não

desmentiu a teoria, o que fezaumentar a revolta da filha.

– Devias ter me consultadoantes de roubar um prisioneiroque pertence aos brácaros.

– Ele também pertence aos al-gharbios! – gritou Anuk. – Foipor culpa desta aberração quefalhou a única tentativa de unirde verdade os clãs!

O pai, enfim, desviou o olharpara a garota. Pareciaimensamente cansado. Anukherdara dele os olhos pequenos,

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a pele morena, os cabelos negrose os traços do rosto que odistinguiam como alguém deorigem árabe. Não usava roupasde guerreiro e sim jeans,camiseta e tênis de marca.Apenas sua postura de líder orevelava como tal.

– Ele não teve culpa por ternascido. E a tentativa não foiperdida. Além disso, por contado ocorrido ganhei duas filhasque… – tentou.

– … que amas mais do queamaste Oriana? – provocouAnuk. Pela expressão paterna de

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fúria, Gael teve certeza de que afilha mimada passara dos limites.Ela, porém, continuaria ainstigá-lo até se dar por satisfeita.– Por isso que Mirele é tua filhapreferida, não? Porque telembra de como Oriana era nopassado!

– Cala-te!– E eu, o que sou para ti? Um

estorvo, porque não sou igual aelas?

Os guerreiros que prendiamGael pelos braços mantinham acabeça baixa diante da situaçãoembaraçosa. Pelo jeito, era uma

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discussão que se repetia comfrequência.

– Já chega! – ordenou o pai,pela primeira vez alterando ovolume da voz.

Anuk engoliu o restante daprovocação, tudo o queprovavelmente ainda tinha adizer, e forçou um sorriso triste.Sua voz saiu inesperadamentesuave.

– Ainda me consideras a filhaerrada, não é?

O pai não respondeu. Ou fezde conta que não tinha ouvido apergunta ao reparar no novo

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recém-chegado: Viriato. Esteparou antes de alcançar a porta ese curvou numa reverência, àespera de autorização paraentrar. Duas lágrimas escaparamdo olhar fuzilante de Anuk, masninguém reparou.

Com pressa, ela as enxugou ese antecipou ao pai para ir falarcom o carrasco.

– Cumpriste minha ordem? –perguntou, ríspida.

Viriato assentiu. O desesperoretornou com força ao coraçãode Gael. Sua família foraassassinada. Todos mortos…

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S

Como Anuk, ele tambémengoliu o choro. Apenas gemeubaixinho e, sem se importarcom mais nada, isolou-se nosofrimento.

***

USTENTEI COM FIRMEZA amáscara da mentira. Agarota, desconfiada,

vigiava cada reação minha:– Exijo provas, Viriato!– O noticiário confirmará

minha lealdade, senhora –afirmei, seguro.

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Procurei não olhar para Gael,consumido pelo sofrimentomudo que o dobrava sobre opiso. Tariq, o pai de Anuk,surgiu em meu campo de visão.

– E o que dirá o noticiário? –duvidou a garota, erguendouma sobrancelha.

– Que a explosão de umbotijão de gás provocou umincêndio num bar próximo àestação Tietê, matando doishomens e uma mulher. Osbombeiros encontrarão oscorpos carbonizados assim queas chamas forem debeladas.

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Anuk franziu a testa, aindasem acreditar, e se retirou doaposento. Não duvidei de suapróxima parada: diante daprimeira TV que achasse pelocaminho. Já Tariq mandou queseus guerreiros levassem Gaelpara um quarto no andarsuperior do palácio. Permanecidiante da porta, ainda nocorredor, pronto para uma novamentira. E novamente eviteiolhar para Gael quando elepassou por mim, arrastado semqualquer cuidado pelosbrutamontes.

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Somente então Tariqautorizou minha entrada.

– O menino se parece maiscontigo que com a mãe –comentou ele, quando parei àsua frente.

Não consegui disfarçar asurpresa. Abri a boca, mas nãoarticulei nenhum som. Haviaestranhos por perto, usandocapas verdes. Quem seriam?

– Tendes o mesmo formatode olhos, de rosto – prosseguiuo pai de Anuk. – O nariztambém é o mesmo.

Sorri sem querer,

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demonstrando o quanto aquelassemelhanças faziam sentido nomeio de uma vida sem qualquersignificado. A minha.

Tariq acompanhava,interessado, meus pensamentos.As palavras seguintes, porém,roubaram-me a alegria.

– Nós dois amamos demais,Viriato. E tu, mais queninguém, pagaste um preçoexorbitante por isso.

Engoli em seco. Era necessárioredirecionar aquele diálogo omais depressa possível.Falávamos baixo, mas os

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estranhos poderiam ouvir…– Gostaria de tua permissão,

senhor, para também vigiar aaberração – pedi. – Falhei emexecutá-la na primeira vez e estaé…

–… tua última oportunidadede completar o serviço?

– Sim, senhor. Fuiincompetente uma vez e nãoposso mais…

–… falhar?– Sim, senhor.Tariq trincou os dentes,

furioso.– Não mintas para mim, escravo!

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O líder do clã dos al-gharbiostinha o direito de punir com amorte um escravo mentiroso,mesmo que não lhe pertencesse.Preferi correr o risco e não cedi,confrontando a ira quepretendia me subjugar. Haviacoisas demais em jogo para seapostar na verdade.

– Tenho tua permissão? –insisti, imaginando se aquelasseriam minhas últimas palavras.

Não foram. Tariq pareciavislumbrar em mim umamudança que eu mesmo aindanão compreendia. Fingiu ter-me

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O

acreditado.– Faze o que deve ser feito –

disse ele, com um meio sorriso,antes de me deixar sozinho nasala e se reunir aos estranhos emsuas capas verdes.

***

NOTICIÁRIO DAHORA DO ALMOÇO

confirmou o queViriato contara. Incêndio,corpos carbonizados, estavatudo ali. Anuk sentia-se indecisaem confiar no escravo brácaro.

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E se tudo não passasse de magia?Era tão fácil enganar a visãohumana! Se fosse magia…Viriato, apesar de ser escravo,também era guerreiro edominava encantamentos maiscomplexos. Isto, porém, nãosignificava nada se comparadoao poder ilusionista de criarvítimas fatais onde elas nãoexistiam…

Anuk apertou os lábios commais raiva. Era certo que elecontava com uma ajudapoderosa. “Oriana!”, deduziu,quase se ferindo com os dentes.

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E se Oriana estivesse de volta,Tariq faria de tudo para agradá-la, talvez entregasse o prisioneirosem obter nenhuma vantagemem troca! O que tambémsignificava algo ainda maisdoloroso para Anuk: ela jamaisteria o apoio do próprio pai.Estava sozinha no mundo.

POUCO DEPOIS DE SERTRANCADO NUM QUARTO,

um aposento simples e limpo,com um banheirinho anexo, avoz do carrasco, que entrara e sesentara na lateral da cama,

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ganhou destaque na menteangustiada de Gael.

– Teus ferimentos precisam decurativos – justificou Viriato,enquanto mexia no interior deuma pequena caixa de madeira,separando gaze e algunsmedicamentos.

O ódio devolveu a Gael partede sua força, arrancada pelasurra. As garras lhe saltaram dosdedos e ele avançou veloz, sempensar na dor, em especial naproduzida pelas costelas quetalvez estivessem quebradas. Acaixa de remédios tombou no

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chão.Desprevenido, Viriato se

defendeu como pôde. Tentousegurar os punhos do garoto,impedir que ele se machucasseainda mais. Nada. A saída foiempurrá-lo contra o colchão, oque o fez gritar de dor.Enfraquecido, Gael quaseperdeu a consciência.

– Se me atacares de novo,quebrarei as costelas restantesuma a uma – ameaçou, cansado.– E arrebentarei teu nariz, senão me deixares fazer oscurativos!

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NOVAMENTE ENTREGUE À

TRISTEZA, Gael não reagiumais. Permitiu que o outrocuidasse dele, que o entupisse deremédios, que o melecasse compomadas e o cobrisse com gaze,faixas e esparadrapos. Sentia-sesonolento, sem raciocínio…

Nos dias que se seguiram,Viriato retornou para obrigá-loa comer, ajudando-o tambémna hora do banho e nosmomentos em que precisava iraté o banheiro.

Quando se sentiu fortalecido,

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Gael decidiu entender o queestava acontecendo. Pelaprimeira vez, recusou o prato decomida e, sentado na cama,cravou as pupilas nos olhos doassassino que lhe dedicava umaatenção paternal.

– Odeio você por tudo o quefez contra mim e minha família– disse, com honestidade. – Maspor que cuida de mim? Vocêestá recebendo ordens, não é?De quem? Do dono desta casa?Daquela tal de Anuk?

Viriato preferiu não encarar ogaroto.

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– Come tua refeição – disse,com seu sotaque estranho.

Quanto mais Gael escutava suavoz, mais tinha certeza de queele não nascera em Portugal. Oguerreiro usava o “tu” e o “vós”numa fala carregada, só que nãoparecia um português falando.Muito estranho mesmo.

– Quem são vocês? Por queninguém enxerga como vocês sevestem de verdade?

– Ainda estás em recuperaçãoe não podes ficar sem alimento.

– Por que você me jogou nafrente do metrô?

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Foi a única pergunta queobrigou o rapaz a fitar suaquase-vítima nos olhos.

– Porque obedeço ordens.– Ordens de quem? Por que

todo mundo quer me matar?Viriato largou o prato sobre a

cama e se colocou em pé.Retirou a espada da bainha eofereceu o punho para umsurpreso Gael.

– Quando estiveres forte osuficiente, irei te ensinar a usaruma espada – avisou ele. – E tetreinarei para lutar como umguerreiro.

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Gael analisou a arma. Erabrilhante, afiada, mortal.Estremeceu.

– Não entendo por que vocêe os outros usam espadas, comose estivessem num filme depiratas. É muito mais fácil mataralguém com um revólver, nãoé? Ou um fuzil. Ou umametralhadora. Ou…

– Em nosso clã não usamosarmas de fogo – interrompeu ooutro. – São proibidas para nóse para muitos clãs. Existe maishonra, mais arte, numa luta comarmas brancas do que com

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simples disparos. Então… devesaprender a lutar com honra.

– Por quê?– Para que possas defender tua

vida!– Hum, não.– Não?!– Como vou lutar se nem sei

contra quem estou lutando?Uma argumentação bem

válida, aliás, que fez Viriatosentar-se outra vez na cama e,distraído, fazer desenhos no arcom a ponta da lâmina.

– Tu perguntaste quem somosnós… Pois somos brasileiros –

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revelou, novamentesurpreendendo Gael. –Conheces a história de Portugale Espanha?

– Acho que não. Uma parte,só.

– A Península Ibérica foihabitada por vários povos,inclusive os celtas, de quem osbrácaros descendem. Com ainvasão dos romanos, e depoiscom a dos visigodos, nossosantepassados fizeram umaescolha: a conexão com a magia.

– Não entendi…– A única forma de escapar à

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destruição de nossa cultura foicriar uma espécie de sociedadeparalela, protegida porencantamentos. Vários líderes declãs, através dos séculos,seguiram o exemplo dos seresmágicos e passaram a usar amagia para esconder-se. Foi oque salvou a eles e a nós, seusdescendentes. Imagina o estragoque a Inquisição teria feitonuma sociedade politeísta econectada com forças que vêmda Terra…

Politeísta. Gael refletiu sobre osignificado da palavra. Aqueles

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sujeitos acreditavam em váriosdeuses. Mas outra expressãochamara ainda mais sua atenção.

– Você falou em seresmágicos? Tipo fadas e gnomos?– quis entender, confuso.

– Sim.– E eles existem de verdade?– Existem.Gael capturou uma das

batatinhas fritas no prato queantes recusara.

– E tem também coisasescondidas pela magia e queninguém vê – o garotocontinuou, de boca cheia. –

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Como gente vestida com roupasmedievais, um palácio gigantenuma das regiões maismovimentadas do país e…

– Coisas que consegues verporque és um de nós.

– E o que eu sou? – O garotopegou outra batatinha.

– Tens sangue brácaro, comoeu.

“Você é meu pai?”, pensou,mas teve medo de perguntar.Não queria saber se o própriopai tentara matá-lo ainda bebê,se era o assassino que continuavaa odiar…

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– Os brácaros são um dos clãsantigos que escolheram seconectar à magia – continuouViriato. – Nossos antepassadosmoravam no norte de Portugalquando decidiram vir para oBrasil, na época da colonização.Por isso somos tão brasileirosquanto qualquer um que nasceuneste país.

– Mas vocês não falam igualaos brasileiros…

– Porque as tradições sãopreservadas ao máximo. Éverdade que muito já se perdeu.E mesmo a linguagem se

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modernizou bastante com otempo. Os brácaros de hoje sãobem menos arcaicos que asgerações anteriores.

– Anuk e o pai dela tambémsão brácaros?

– Tariq é um al-gharbio,outro clã que escolheu viver namagia. Anuk e sua irmã sãofilhas dele com a senhoraShantel, a mais influente mulherdo clã brácaro. Mas ela, hoje, éesposa de Galaor.

Gael estremeceu ao ouvir onome do guerreiro que oatacara no parque. Estava

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começando a entender algumasdas coisas que Anuk dissera. Elamencionara uma irmã…Recordou o rosto moreno dagarota, parecido com o do pai.

– Eles me parecem árabes.– Brasileiros descendentes de

portugueses com ascendênciamoura. É um clã que veio dosul de Portugal.

– É, a Península Ibérica foiinvadida pelos árabes…

– No ano 711. Foram oitoséculos de ocupação. E, atravésda magia, os al-gharbiosescaparam das garras da

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Reconquista.Silêncio. Havia tantas

perguntas, mas…– Faz mal comer comida fria

– disse Viriato.– Não faz, não.Um novo silêncio. Gael

atacou de vez as batatinhas.– Brácaros e al-gharbios são

inimigos mortais? – quisconfirmar, lembrando-se darepreensão que Tariq despejarana filha.

– Eram. Um pacto de paz foifirmado há quase três décadas.

– Se eles têm um pacto…

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Então o pai de Anuk vai ter deme entregar aos sujeitos que meperseguiram? Os brácaros?

– Sim.– Mas por quê? – o garoto

berrou. – O que eu tenho a vercom tudo isso?!

– És alguém que não devia ternascido.

– E só por isso querem mematar?

– É por tudo isso que queremte matar.

Gael, de repente, perdeu avontade de comer. E decontinuar com as inúmeras

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perguntas que não fizera. Tantaperseguição e violência apenaspara punir um menino que nãodevia ter nascido? Agora, porsua culpa, Tiago, João e Carolestavam mortos. Pessoas boas einocentes que jamais deveriamter ajudado uma criança-monstro…

As lágrimas vieram numturbilhão. E ele não enxergoumais nada, exceto o assassinoainda a seu lado.

– Sai daqui! – gritou paraexpulsá-lo do quarto. – Sai já!!!

Viriato se ergueu, guardou a

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N

espada na bainha e retirou-sesem olhar para trás. O garotoafundou o rosto no travesseiro.Acabava de descobrir que oassassino não era a única pessoaque odiava.

***

AQUELA NOITE, sonheicom a risada do velhoKían. Muitas vezes ela

me machucara mais que osgolpes de seu bastão.

– Levanta-te, criança. Eurico nãovai querer ouvir dos teus fracassos.

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Há quanto tempo ocorreraaquela lembrança? Lembro-mede estar caído no chão, todomachucado, mas não de terfracassado. Tampouco eracriança. Tinha dezessete anos efazia pouquíssimo tempo querecebera permissão do chefe doclã para me aperfeiçoar no usoda espada e na pronúncia daspalavras de poder. Era naturalnão conseguir me defender dosgolpes do mestre-de-armas, quetinha décadas de prática emostrava um prazer especial emme derrubar e castigar-me. E eu

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sabia que não era um fracassado:já possuía habilidade para vencermetade dos guerreiros sob asordens de Galaor, emboranenhum deles se dignasse acruzar espadas com alguémcomo eu.

Para Kían, porém, que eramais velho que a velhice, eusempre seria uma criança. Esempre seria derrubado esurrado…

Esqueci o sonho quandoacordei, preocupado com Gael.Não demorou para que seucorpo recuperasse rapidamente a

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saúde. O espírito, entretanto,não o acompanhou. Era pena eunão poder contar-lhe certasverdades, ainda. De qualquerforma, o garoto deixou asperguntas de lado, imerso emgrande tristeza, o que mepreocupou bastante. Mas aquelasituação se tornou secundárianuma noite, no final de junho,quando um capitão al-gharbio,Hanef, me procurou com umrecado urgente e confidencial.

– Viriato, bem sabes que Tariqarrumou inúmeros entravesdiplomáticos para adiar este

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momento – disse ele. – Masagora nosso clã não tem maiscomo impedir que o meninoseja entregue aos brácaros.

– Quanto tempo me resta? –perguntei, aflito, apertando opunho da espada, a mesma armaque recebera do próprio Kíanno final do treinamento.Pretendia usá-la para treinarGael, se um dia tivéssemostempo para isso.

Tempo. Sempre ele. Eracomo se toda a minha vida atéaquele momento tivesse sidouma tentativa de enganar o

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tempo.– Galaor chegará daqui a uma

hora – avisou Hanef.

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P

CAPÍTULO 6

Esconderijo

Santo André

IOR QUE PERDER opatrimônio de toda umavida, só mesmo viver

confinado, sem qualquerperspectiva sobre o dia deamanhã. Carol sentia-se tãoimpotente quanto Tiago e João.Sabia que Gael estava em algum

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lugar desconhecido, sofrendomuito, acreditando que suafamília fora assassinada. E aindaocorrera o incêndio no bar, narealidade provocado pelamisteriosa e calada Oriana. Foraela quem levara os “humanos” –como se referia aos três – atéSanto André, onde os esconderaem um prédio no que pareciaser a rua mais tranquila da regiãodo Grande ABC.

Como uma carcereira, Orianaos proibira de sair doapartamento de dois quartos,mobiliado com o essencial. Não

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havia telefone ou computador eapenas um velho aparelho deTV funcionava como distração.

– Se quereis a liberdade deGael, deveis obedecer-me –dizia ela, com seu sotaqueesquisito.

A princípio grata pela ajuda daestranha, Carol não demorou ase sentir ameaçada. Não gostavada postura intimidante com queOriana se dirigia a ela. Era comose apenas tolerasse a presença dahumana, o que não aconteciacom Tiago e João; a anfitriãchegava até a conversar com eles

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sobre assuntos variados, novelase futebol.

Se para Carol aquele cativeiroera insuportável, para Joãotornara-se tortura. Ele viviaandando de um lado para ooutro, como um animalenjaulado. Por amor a Gael,segurava a muito custo avontade de retomar sua valiosaliberdade. Já Tiago não reagia.De uma hora para outra,perdera o bar, algo por quetanto lutara, que amara etambém odiara por anos. Agoraestava sem rumo, incapaz de

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enxergar qualquer futuro.Então, após muitos dias, o

celular de Oriana tocou. Fatoinédito, pois o aparelho só erautilizado para solicitar a entregade refeições. Estavam na sala,assistindo à TV. Oriana foi àcozinha atender a ligação. Carola seguiu, sorrateira.

– Estarei no ponto deencontro – ouviu-a dizer.

Quem seria do outro lado dotelefone? Viriato?

Apressada, Oriana encerrou aconversa e quase tropeçou emCarol na porta da cozinha.

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Ignorando a humana, explicouaos dois homens:

– Devo sair. Quanto a vós,permanecereis aqui. E nãoatendais à porta, de formaalguma! Voltarei no menortempo possível.

JOÃO FOI O PRIMEIRO adesobedecer à recomendação.Apesar dos protestos de Tiago,não resistiu aos apelos de um barque havia na esquina, visível dajanela da sala.

– Só vou tomar umacervejinha! – jurou ele,

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escapulindo pela porta doapartamento.

– Mas tem cerveja nageladeira! – tentou Tiago, agorafalando sozinho.

Carol, tão agitada quanto otio, esperou que o pai entrasseno banho para sair.

Entendia perfeitamente anecessidade de João de respirarar puro, de fazer algo tão toloquanto ir até o boteco maispróximo. Ou de dar uma voltana quadra, como ela faria.

Já na rua, enfiou as mãosgeladas nos bolsos do casaco. Era

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a primeira vez, em tantos dias,que sentia a friagem da noitebatendo contra seu corpo. Ah,sim, valia a pena cada minuto deliberdade… Poucos, na verdade.

Uma esquina, depois outra.Carol acelerou o passo,sorrindo. Duas esquinas maistarde e estava outra vez diantedo portão do prédio. Antes deentrar, ela olhou para os lados econfirmou o óbvio: o mundocontinuava do mesmo jeito.

OCULTO DE QUALQUER

OLHAR HUMANO, o Fradinho

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acompanhou de longe a jovemhumana retornar para oesconderijo. Ele coçou,distraído, o furo em sua mão.Depois, tocou a cabeçadescoberta, ruminando seu ódiopela perda do barrete vermelho.

Pelo menos, o pequenodemônio iria se divertir muitocom a próxima maldade. E semter praticamente trabalhonenhum.

Afinal, os humanos queGalaor procurava não eramassim tão difíceis de encontrar.

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-A

CAPÍTULO 7

A mouraencantada

São Paulo

CORDA, GAEL. Precisamospartir.A voz de Viriato soou comoum eco no meio do cochilo. Ogaroto ergueu as pálpebras, semver nada com muita consciência.

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Com pressa, o outro o obrigoua sentar-se, enquanto lheentregava um blusão demoletom e luvas de couro. Aseguir, ajoelhou-se para lhecolocar as meias e o par de tênis.

– Estamos fugindo? – quisconfirmar Gael, aindasonolento.

– Sim. Galaor vem te buscar.Tariq não pode mais teproteger.

Gael voltou a deitar-se.Espantado, Viriato o ergueunovamente, pelos ombros.

– Não ouviste? Galaor vai te

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matar!– E daí?– O que há contigo? Temos

de fugir!– E vai adiantar alguma coisa?– Não podes perder a

esperança!Agoniado, Viriato quase o

sacudiu.– Minha família foi assassinada,

esqueceu? – justificou o garoto.– Ela vive. Enganamos teus

perseguidores para ganhartempo.

– E-eles não… Você nãomatou…?

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– Não – garantiu o outro,com um sorriso.

Veio primeiro a desconfiança,depois a dúvida. Se eles nãohaviam morrido… EntãoViriato era, mesmo, um aliado.Seu rosto sincero pareciaendossar a fala. Relutante, Gaelpermitiu-se acreditar naesperança. E só um motivoexplicaria tudo.

– Você é meu pai? – deixouescapar, certo de ouvir um“sim” como resposta.

Viriato enrubesceu, chocadocom a possibilidade.

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– Eu jamais poderia ser teupai! – rebateu, com veemência.

Gael, morto de vergonha,desejou ser invisível. A mágoalogo ocupou o lugar dadecepção. Devia ser umatremenda desonra, para umguerreiro, ter um filhodeformado.

– Não entendeste… – disseViriato, tentando esclarecer oconstrangimento. – O que mechocou foi a ideia do incesto.Tua mãe e eu temos o mesmopai.

O garoto demorou a entender

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o óbvio.– E nós dois somos parecidos

com ele – prosseguiu o rapaz,emocionado.

– Com ele quem?– Teu avô Eurico.– Então você é meu tio!– Sou.Foi uma afirmativa de alguém

que se orgulhava em tê-lo comosobrinho. Que valorizava,naquele momento, o fato dehaver uma ligação entre ambos.

– Apressa-te – disse o brácaro,disfarçando a emoção enquantolhe indicava o agasalho e as

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luvas. – Vou te levar para tuafamília humana.

OS DOIS ESCAPARAM PARA O

CORREDOR, sem encontrarvigilância. Tariq deixara ocaminho livre para a fuga. Aoalcançarem o alto de umaescadaria, Viriato estacou,impedindo Gael de pisar osdegraus. No andar inferior,Galaor, à frente de um grupo deguerreiros, vinha em suadireção. Chegara quase umahora antes do previsto.

– Rodoviária de Santo André

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– cochichou Viriato para Gael,mostrando-lhe que deveriaencontrar outra saída. – Agoravai!

O que ele pretendia?!Enfrentar sozinho um bando deassassinos? Não mesmo!

– Você vem comigo! –protestou o adolescente,agarrando o tio pelo manto.

Quase perdendo o equilíbrio,Viriato se viu arrastado para umacorrida afobada até a pontaextrema do corredor. Osguerreiros, com Galaor à frente,galgavam os degraus numa

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velocidade ensandecida. Derepente, três conhecidossurgiram na rota de fuga ebloquearam a passagem: Anuk eseus dois violentossubordinados.

– Estás roubando meuprisioneiro! – reclamou ela,tirando a espada da bainha.

Viriato, na defensiva, fez omesmo. Um sinal da garotamandou que seus guarda-costaso atacassem. Por outro lado,Galaor e seus homens chegavamcada vez mais perto. Osfugitivos estavam entre al-

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gharbios e brácaros…Num gesto instintivo, as garras

saltaram dos dedos de Gael,cortando as pontas das luvas. Elepulou para atacar um dosguerreiros e impedi-lo degolpear Viriato. As garrasrasgaram pele e carne do braçoque movia a espada. O outrobraço preparou um murro nacara do garoto, mas este,extremamente ágil, esquivou-sea tempo.

As garras atingiram o peito doatacante, provocando maisestragos.

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A espada de Galaor, enfim,chocou-se com a de Viriato,que ainda lutava contra oprimeiro oponente. Dois contraum, três, quatro, cinco…Viriato seria estraçalhado.

Gael voltou-se para ajudar otio assim que conseguiuderrubar seu atacante ferido.Deu de frente com a espada deAnuk.

– Vem comigo! – mandouela.

– Sai da minha frente!E também contra a garota ele

apontou as garras. A ameaça,

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porém, não surtiu efeito e, emsegundos, os dois estavam seengalfinhando. Espantado, Gaeldescobriu que lidava com umaadversária difícil, que conseguiaevitar os cortes da mesma formaque ele escapava de sua espada.Os dois rolaram pelo piso,medindo força e agilidade.

O inevitável, claro, aconteceu.Uma lâmina adversáriaatravessou o ombro de Viriato.E o sangue se uniu a outrosferimentos que ele nãoconseguia mais evitar.

– Parai! – berrou Galaor,

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detendo a futura matança.Exausto, Viriato tombou dejoelhos, largando a arma agoraensanguentada.

No instante em que uma desuas unhas finalmente riscou opescoço de Anuk, Gael foiarrancado do chão pelosbrácaros. A garota recebeu omesmo tratamento.

– Eu mandei parar! – rugiuGalaor para os adolescentes.

Ainda espumando ódio,Galaor colocou-se diante de umvulnerável Viriato. Apertandocom fúria o cabo da espada, ele

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a ergueu como que paraexecutá-lo. Gael, enlouquecido,tentou se livrar das mãos que oaprisionavam, sem sucesso.

– Galaor não pode matá-lo –sussurrou Anuk, já livre dosguerreiros que a prendiam. –Eles são meio-irmãos.

Estava certa. A espada, apóscruzar o vazio, parara aoencostar na pele de Viriato.

– Ele perderá o poucorespeito que conquistou comoescravo – acrescentou ela. – Opai, líder dos brácaros, irácondená-lo por traição. E o

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abandonará à morte humilhante.Viriato era um escravo?! Gael

estremeceu quando aquele queacabara de descobrir também serseu tio, Galaor, cuspiu na facedo meio-irmão. Este não reagiu.Apenas levantou o olhar altivopara o outro que, ultrajado, oesmurrou até que caísse.

A mão suada de Anukencontrou a palma da mão deGael, protegida pela luva. Seusdedos se entrelaçaram aos dele,tomando o cuidado de nãotocar as garras ainda expostas.Sem entender nada, o garoto a

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olhou de esguelha. Com a mãolivre, ela retirou do decote dablusa um medalhão de ouro…

E tudo ficou para trás.

NA VERDADE, nem tudo ficoupara trás. Atordoado, Gaeldescobriu que não estava maisno palácio. Os pés afundavamna grama de um jardimgigantesco e bem-cuidado.Sobrepondo-se ao cenário, numnível superior, estava omagnífico prédio renascentistado Museu do Ipiranga. Atrás daconstrução, um bosque

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ampliava a escuridão da noite.Ninguém mais o prendia,

exceto a psicopata da Anuk.Estavam sozinhos no Parque daIndependência, sob a chuva finae gelada do inverno paulistano.Com asco da mão que aindatocava, Gael livrou-se dela eameaçou a adolescente com asgarras.

– De novo? – queixou-se ela,entediada. – Não és nadaoriginal!

– Vá buscar o Viriato!– E para quê? És meu

prisioneiro, mas ele, não.

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– O cara vai morrer!– E eu com isso?Ah, ela ia buscá-lo, por bem

ou por mal! E os dois seatracaram pela segunda vez,caindo por cima das azaleias quedelimitavam um canteiro derosas. De dia, era comumescutar o canto de sabiás e assistirao voo de tico-ticos e pardais,entre outras aves atraídas pelasárvores. Naquele momento, ossons sinistros da noitequebravam o monótonobarulho da chuva, sem abafar aluta ruidosa entre os dois

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adolescentes.Após destruírem as flores, eles

rolaram para perto de umespelho d’água, alimentadopelos pingos dos delicados jatosde um chafariz. Gael provocoumais um corte em Anuk,próximo ao primeiro. Elagritou, irritada, redobrando suaforça na espada que nãoconseguia usar. Foi quando umapresença assustadora pareceuinterpor-se entre eles.

Com um arrepio medonho, ogaroto se afastou abruptamenteda adversária. Anuk, ao perceber

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o que acontecia, caiu nagargalhada. Ali ao lado, em pé,com metade do corpo dentroda água, a mais bela dasmulheres sorria, encantadora,para Gael.

Hipnotizado, ele nãoconseguiu piscar. O terror sedesfez por completo para cederespaço a um desejo que aindanão conhecia direito. Devoroucom os olhos o corpoestonteante da mulher,imaginando o que a túnica justae longa escondia, antes de sefixar no rosto de traços

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inesquecíveis, emoldurado porcabelos negros. Anuk trocou oriso por uma careta emburrada.Não era mais o centro dasatenções.

– É uma moura que foiencantada por um antepassadomeu – explicou, numresmungo. – Agora é minhaescrava!

Empinou o nariz ao exibir omedalhão, que tirou novamentedo decote. Ao avistar o objeto, amoura se curvou, submissa. Seubrilho desapareceu com ahumilhação.

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– Eu a desencantei, ganhei otesouro que ela esconde sob aágua e depois a encantei denovo para me obedecer – disseAnuk, ansiosa em exibir opróprio poder.

– E foi ela quem nos trouxeaté aqui?

– Ao meu simples comando!– Se não perdesses tanto

tempo alardeando teus feitos…– soou uma voz que vinha deuma das alamedas –… não seriatão rápido e fácil te encontrar.

Amedrontada, Anuk deixouque o medalhão escorregasse de

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seus dedos. A voz pertencia auma mulher de beleza suave,cabelos loiros e harmoniososolhos azuis. Usava um vestidolongo, verde-musgo, com acapa escura jogada sobre osombros e presa por uma joia.Era escoltada por váriosguerreiros, demonstrando suaautoridade.

– Anuk, não foi nada ético datua parte quebrar a confiançaque Galaor depositava em ti –repreendeu a jovem.

– O que queres, mãe?– Conversar. E fazer com que

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recuperes o bom senso.Então aquela era Shantel, a

esposa de Galaor e mãe deAnuk? Viriato comentaraalguma coisa sobre o fato de elaser a mulher mais influente doclã brácaro.

– Bom senso?! – zombouAnuk, em sua eterna vontade decomprar briga. Empinou oqueixo e, em fúria, rumou atéos recém-chegados. – Achas quesou ingênua?

– És uma criança – disse amãe.

– Não sou burra, isso sim!

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Era a chance de Gael.Cauteloso ao máximo, ele seabaixou para capturar omedalhão que caíra sobre agrama. Não tinha a mínimaideia de como desencantar enovamente encantar uma mourapara obedecê-lo. E, mesmo quesoubesse, escravizar os outrosjamais seria uma alternativa.

– Você me ajuda a fugir? –cochichou para a moura. Mãe efilha, concentradas na discussãosobre quem deveria ficar com oprisioneiro, não notaram seusmovimentos.

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– Podes me libertar?– E como faço isso?– Trazes pão sem sal?– Hum, não.– E leite?– Também não.A moura exibiu um sorriso

sedutor. Ainda com parte docorpo na água, ela se aproximoudo garoto e lhe tomou as mãose o medalhão de ouro.

– Pensa para onde desejas ir –sussurrou, quase colando seuslábios aos dele.

Um estremecimento gostosopercorreu Gael de cima a baixo.

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Não sentiu o momento em quefoi levado para dentro da água,o mesmo em que Anukfinalmente percebeu queestavam roubando o prisioneiro,debaixo de seu nariz. Xingou amoura antes de retornarcorrendo para o espelho d’água,seguida pela mãe e pelosguerreiros.

– Um beijo me libertará… –pediu a moura.

Foi atendida com euforia eprazer. Seus lábios eramdeliciosos, excitantes, prometiamo paraíso mais irresistível. E Gael

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foi desejando cada vez mais,muito mais, enquanto eraarrastado para o fundo doespelho, raso apenas para oshumanos.

Rapidamente, a água chegou aseus ombros, às orelhas, à nuca enada de o beijo terminar.Alguém o agarrou pelos cabelos,lutando para puxá-lo de volta àsuperfície.

A moura, porém, estava emseu elemento e tinha total podersobre o garoto que a libertava.

Sem que ninguém pudesseimpedi-los, eles afundaram na

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escuridão.

PARA SUA TOTAL

FRUSTRAÇÃO, Gael nãoalcançou o paraíso. O beijo oabandonou de repente,largando-o sobre um pisogelado e sem vida. E, pior, juntocom a mesma pessoa que aindao agarrava pelos cabelos: Anuk.

– Tens ideia do quanto é raroencontrar no Brasil uma mouraencantada? – fuzilou ela,arrancando de propósito algunsfios molhados do prisioneiro aose separar dele. – Eu te odeio,

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estúpido!O garoto tocou o couro

cabeludo dolorido, numa careta.Isso queria dizer que tiverasucesso em libertar a moura?Não pôde evitar um sorriso,ainda sentindo o sabor deixadopor aqueles lábios ardentes.

– Eu disse que te odeio! – rosnoua garota ao vê-lo feliz. Elafechou os punhos e os usoucom toda a força para batercontra seu peito. – Maldito!!!

Gael a segurou pelos pulsos,mas não conseguiu evitar oschutes possantes. Numa

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dificuldade incrível, eleconseguiu domar o surto dagarota, usando o próprio corpopara prendê-la de barriga parabaixo contra o piso.

– Quer parar de bancar alouca? – mandou ele. Secontinuasse a se debater, Anukacabaria acertando a cabeçacontra o primeiro de uma sériede mictórios. – A gente estánum banheiro masculino!

O aviso funcionou paraacalmá-la. Anuk olhou paracima, confirmando o óbvio.

– E por que estamos aqui? –

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perguntou.– Foi meu trato com a moura.– Tudo isso só para ir ao

banheiro? – provocou ela,maldosa. – Se estavas apertado,por que não foste atrás dealguma moita?

Gael segurou a vontade de lhedar uma resposta malcriada.

– Sua mãe seguiu você atéaqui? – quis confirmar.

– Claro que não! Fui a única apegar carona na tua fuga inútil.

– E os guerreiros?– O que achas, otário?

Ninguém é mais rápido que eu!

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Pretensiosa, mimada,autoritária e histérica. Faltavaalgum adjetivo para descreveralguém tão insuportável?

Nesse minuto, um homem demeia-idade entrou no banheiro.Não gostou nada de encontrarum casal de adolescentes nochão, encharcados, ele por cimadela…

– Mas que sem-vergonhice éessa? – brigou o homem. –Saiam já daqui, vocês dois, queeu vou chamar a polícia!

Antes que ele cumprisse aameaça, os adolescentes

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escaparam do local. Passarampela catraca, despertando osonolento funcionário quecobrava pelo uso do banheiromasculino – e do feminino, aolado –, e tentaram se misturar aomovimento da rodoviária deSanto André.

– Quem viemos encontraraqui? – disse Anuk. – Apostocomo é a Oriana!

– E quem é essa?O sorriso da garota só

aumentou seu ar de deboche:– Viriato não te falou sobre

ela?

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– Por que você não some,hein? – retrucou Gael,apontando uma plataforma deembarque, atrás deles. – Pegaqualquer um desses ônibus e vêse me esquec…

– Oriana é tua mãe.

A PROVOCAÇÃO PERDEU A

GRAÇA com a reaçãoemocionada de Gael. Pálido, elecomeçou a procurar com osolhos qualquer mulher quepudesse, de alguma forma,identificar como mãe.

Não se sentia pena de uma

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aberração como ele, abaixo dequalquer ser vivo. Anuk,porém, não conseguiu evitar aporção de piedade que nasceuem seu coração endurecido. Ogaroto tremia. E não era culpadas roupas molhadas e damadrugada fria. Acabara deavistar uma jovem loira que osobservava à distância, paradadiante de uma lanchonete. Aocontrário de Anuk, não usavamagia para disfarçar suas roupassimplesmente porque se vestiacomo a maioria dos humanos:jeans, jaqueta, tênis.

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Ao reparar que também eraobservada, a moça veio até osdois adolescentes. Gael esboçouum sorriso tímido, enfiando asmãos nos bolsos da calça paraesconder o nervosismo. Comdesprezo, Anuk avaliou a outramulher, a cada passo maispróxima. Oriana não era tãobonita quanto diziam.Aparentava bem ter vinte enove anos, a mesma idade deShantel. Esta, sim, parecia terpassado dos vinte hápouquíssimo tempo. Os cabelosde Oriana eram crespos e curtos,

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um ultraje para as mulheresbrácaras e para as al-gharbias,todas acostumadas, por tradição,a cultivar longas madeixasalisadas com pentes de ouro.Nada, porém, lhe roubava oimpacto do olhar azul.

Gael, no entanto, enxergava amãe perfeita. Impressionado,abriu a boca para dizer algoassim que ela os alcançou, masOriana o ignorou para falarapenas com Anuk.

– Onde está Viriato? –cobrou, num tom rude.

O quase sorriso de Gael

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desapareceu ao sentir que a mãerejeitava a aberração. E suatristeza se tornou a tristeza deAnuk, que conhecia muito bemo sentimento de rejeição. Aresposta da garota seguiu opadrão de sempre: agredir antesde se machucar.

– Viriato foi promovido –disse, sem esquecer a boa dosede sarcasmo. – Ele se tornou onovo saco de pancadas deGalaor.

A adolescente descobriu tardedemais que brincava com fogo.Oriana a golpeou na altura do

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peito para lhe cravar umaespécie de broche prateado eperfurante, que penetrou emsua carne para se prender nelacomo um gancho. Semconseguir se defender, Anuk sedobrou sobre si mesma,perdendo força velozmente.Sentiu frio, as roupas molhadascoladas à sua pele, o desconfortodas botas de salto altíssimo, acerteza de que os humanosagora a enxergavam com suasvestimentas al-gharbias…

O broche sugava toda a magiaa que era capaz de se conectar.

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– O que você fez com ela? – Gaelreagiu, tentando arrancá-la dopoder de Oriana. Esta o afastoucom um empurrão. Depois,desarmou a adolescente eescondeu sua espada sob aprópria jaqueta.

A situação começava a atrair ointeresse dos humanos narodoviária. O garoto voltou àcarga para defender a garota queodiava. Agarrou a mãe por umantebraço. Os dois erampraticamente da mesma altura.

– Tira essa coisa do peito dela!– Como podes defendê-la? –

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questionou Oriana, não sedeixando intimidar. –Esqueceste que ela te raptou? Eordenou a Viriato que matassetua família humana?

– Não esqueci. Mas matar aAnuk também não resolve nada.

– O broche não irá matá-la.Apenas a impede de usar amagia. E somente eu sei comotirá-lo. Se tentares, tu a matarás.

Gael hesitou em acreditar naexplicação. O brochepressionava o corpo de Anukcomo um objeto de tortura queagora atingia seus ossos. Era

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difícil suportar a dor.– Estamos chamando muita

atenção – alertou Oriana. –Vamos sair daqui.

– Ela está sangrando.– E vai sangrar mais se

continuar resistindo.– Tire isso dela!– Tirarei quando eu a trocar

por tua liberdade.Apesar de seu estado bastante

vulnerável, Anuk quase caiu nagargalhada. Se esse era o plano,então Gael não teria qualquerchance de sobreviver. TantoShantel, entre os brácaros,

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quanto Tariq, entre os al-gharbios, fariam qualquer trocapara salvar Mirele. Mas parasalvar Anuk, a ovelha negra dosdois clãs…

– Vamos ao encontro da tuafamília humana – propôsOriana, enfim conquistando umvoto de confiança do filho. –Estão em um esconderijoseguro, a meia hora daqui.

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O

CAPÍTULO 8

Pesadelo

Santo André

FRADINHODIMINUIU DE

TAMANHO para passarpelo buraco da fechadura.Dentro do apartamento,escolheu o quarto da jovemhumana, Carol. Ela fora se deitarcedo e agora dormia, encolhida

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sob o cobertor e tranquila emum sonho doce…

Risonho, o pequeno demônioreadquiriu sua altura normal, dequase trinta centímetros, pulousobre a cama e escalou o corpoda jovem até se deitar sobre seupescoço, sentindo-lhe arespiração pausada. “Ora, ora…a tola sonha com Viriato!”,descobriu, rindo. Ah, erairresistível transformar tantadoçura em puro terror…

Com satisfação, pressionou agarganta de Carol,automaticamente obrigando-a a

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muito esforço para respirar.Quanto ao sonho… O tomidílico foi perdendo inocênciapara ganhar cores sombrias. Oclima opressivo cresceu comoconsequência. Cheia de medo, ahumana se sentiu sozinha. Seucorpo começou a transpirar e ase remexer em espasmos. OFradinho só ficaria feliz quandoela estivesse completamenteaterrorizada.

A porta do quarto foi abertacom estrondo, despertando agarota. Ágil, o Fradinho tentouescapulir, mas Galaor o prendeu

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pelo pescoço. Carol gritou,assustada, puxando o cobertoraté o nariz, como se este fossecapaz de defendê-la. Com amão livre, o brácaro a arrancouda cama, jogando-a ao chão.

– Devolve meu barrete! –cobrou o Fradinho, vendo ocapuz vermelho preso nocinturão de Galaor. – Achei oshumanos para ti, não foi?Cumpri minha parte do trato!

Grosseiro como de costume,Galaor não respondeu e oarremessou contra a parede maispróxima. A criaturinha rolou

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para o piso feito uma lata derefrigerante vazia. Era assim queo guerreiro tratava a todos.Vassalos e lixo eram sinônimospara ele.

A humana não teve destinomuito diferente. Ele a agarroupelos cabelos, na altura da nuca,e a arrastou até a sala, onde maisguerreiros vigiavam os outrosdois humanos, Tiago e João.Ferido e ensanguentado, Viriatomal se aguentava em pé.

– É esta a família humana daaberração, escravo? – perguntouGalaor para ele.

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Viriato não titubeou.– É outra, Galaor. Invadiste a

casa errada.A mentira lhe custou um

murro no estômago. Ele só nãocaiu porque um sofá velhoserviu-lhe de apoio.

– Oriana passou as últimassemanas vigiando estes humanos,achando que assim protegia ofilho – cuspiu Galaor, irônico.Depois, apontou para oFradinho que os seguira. –Aquele diabrete, nestemomento, é uma fonte muitomais confiável que tu!

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Os olhares se fecharam nacriaturinha que massageava ascostas doloridas. Os humanostentaram enxergá-la, mas eraimpossível para eles. Se tivessemacesso à magia, enxergariam odemônio minúsculo, com seuhábito de frade e cara de gente.E ainda seriam capazes de ver osguerreiros como realmente sevestiam, as armas que portavame a verdadeira ameaça quepodiam significar.

Ainda puxando Carol peloscabelos, Galaor a colocou de pé.O punho livre se ergueu para

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acertá-la, guiado pela vontadede provocar dor. Viriato, pertodemais dos dois, teve velocidadesuficiente para se interpor eatacar o meio-irmão. Este largoua presa e, com facilidade,desembaraçou-se do adversário,enchendo-o de chutes.

Quando Viriato pareceuperder a consciência, estendidono chão, Galaor se afastou,agarrando novamente Carolpelos cabelos para saírem doapartamento.

– Levai os prisioneiros – dissea seus subordinados.

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O Fradinho escondeu osorriso e correu para o escravoantes que o tirassem de lá. Forao único a compreender amanobra. Os olhos semiabertosde Viriato o esperavam.

– Liberta-nos – ele pediu,num sussurro, ao lhe entregarsorrateiramente o barrete quepegara do cinturão de Galaor.

CAROL MAL CONTROLAVA O

CHORO. Foi deixada no interiorde um carro negro, enquanto opai e o tio eram colocados emoutro, logo atrás. Logo jogaram

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Viriato à sua esquerda. Um doshomens se sentou à direita e umtomou a direção. Outros doisassumiram o controle dosegundo veículo. Galaor e maistrês homens permaneceram noprédio. Estariam à espera deOriana quando ela regressasse aoesconderijo.

Quando os dois carros járodavam há mais de cincominutos, Carol criou coragemde fazer uma pergunta aomotorista.

– Para onde vamos? – disse,procurando controlar o medo.

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Foi Viriato quem acabourespondendo, pois os capangas,com seus ternos mafiosos epostura agressiva, não semanifestaram.

– Pegaremos um avião para oRio.

– E o que tem lá?– A Citânia de Brácara.– A cit-o-quê?– A fortaleza dos brácaros.– E quem são esses brácaros?

Por que estão fazendo isso coma gente?

– Precisam de vós para atrairGael caso Oriana volte ao

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apartamento sem ele.– Oriana foi buscá-lo? –

desesperou-se a jovem.– Foi. E cairá numa armadilha.A jovem cruzou os braços,

aflita. Viriato falara com elanuma voz fraca, como seestivesse muito ferido. Estranhoporque, apesar da surra aplicadapor Galaor, ele exibia umaaparência ótima. A camisacontinuava limpa, o sobretudosequer tinha uma gota desangue. Algo estava muito,muito errado. E se…

E se eles não fossem o que

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-S

aparentavam?Carol estreitou os olhos para o

rapaz, procurando enxergar oque não enxergava. Ele retribuiuo olhar, um tanto confuso. Vero que não era permitido…Talvez ela só precisasse prestarmais atenção para vislumbrar oinvisível…

***

Rio de Janeiro, doze anos antes

E A MAGIA ESTÁ EM TODA

PARTE. por que os

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humanos não a enxergam?Kían voltou os olhos para mim.Eu estava ajoelhado diante dele,o torso nu, olhando fixamentepara uma poça de água no chãoencharcado pela chuva.

– Tu sabes a resposta desdeque nasceste, Viriato. Cansastede percorrer suas cidades deconcreto. Eles perderam aconexão quando abandonaramos deuses e a ligação com a MãeTerra. Depois, o orgulho oscegou.

– Mas é possível a umhumano retomar a conexão

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com a magia, não é?– Em teoria, sim. Na prática,

eles estão por demais ocupadoscom os bens materiais parabuscar o invisível… Agora,concentra-te e volta aoexercício. O espelho de águaestá diante de ti, e ainda nãoconsegues enxergar além destetempo e deste espaço.Pronuncia as palavras-de-ver eusa a magia que te cerca. Seconseguires, desta vez, receberásmenos castigos à noite…

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O***

Santo André, nos dias de hoje

S SENTIDOS

TREINADOS deViriato perceberam o

momento em que a vontade deCarolina rompeu a barreira e seconectou ao mundo que atéentão lhe fora invisível.

Num estalo, a garotavislumbrou a aparência real dorapaz ao seu lado. O rostobonito estava irreconhecível porinchaços, cortes e hematomas.

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Havia sangue nos fios castanhosda barba e dos cabeloscompridos, presos numa trança.Um corte fundo em seu ombrosangrara bastante, sujando omanto e as roupas de guerreirocelta, como as que ela vira emlivros de história.

Os olhos arregalados de Carolgiraram para o motorista edepois para o capanga à suadireita. Eles também pareciampersonagens de filmes épicos,usando elmos, espadas eescudos. Tinham um cálicetatuado na parte esquerda da

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testa.Quando o olhar da jovem

retornou para o rapaz que viviaem seus sonhos, a cabeça ficouatolada em uma única pergunta.Quem era aquela gente esquisita?

– Também somos humanos –cochichou Viriato, para que osoutros não o escutassem. Elepercebera sua indagação muda.– Mas humanos conectados àmagia. E por isso não nosconsideramos mais humanos,entendes?

Com dificuldade, Carolconseguiu piscar. Um toque do

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P

rapaz, que segurou sua mão emsolidariedade, ajudou a acalmá-la.

– Nada de cochichos aí atrás!– brigou o motorista.

Faltava pouco para deixarem acidade.

***

São Paulo, Aeroporto de Congonhas

ERGUNTEI-ME POR QUE

Galaor se dava o trabalhode nos despachar de avião

para o Rio. Talvez achasse

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complicado planejar umaviagem rodoviária com quatroprisioneiros. Ou, o que era maisóbvio, temesse algum tipo deinterceptação por parte dos al-gharbios. A Via Dutra poderia setornar um bom local para umaemboscada, caso Tariq resolvesseapoiar a causa de Oriana.

Chegamos ao Aeroporto deCongonhas mais depressa doque eu esperava. Atordoadopela dor, tive dificuldade parasair do carro e me manter empé. Foi Carol quem meofereceu apoio, ajudando-me a

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andar. Tão amedrontadosquanto ela, João e Tiago nãoousaram nenhuma fuga.

– Se alguém tentar algumacoisa, a garota é a primeira amorrer – ameaçou Hélio, oguerreiro que conduzira oprimeiro carro. Sem que oshumanos percebessem, usoumagia para que ninguém fossecapaz de enxergar o verdadeiroestado em que se encontravam:vestidos com roupas de dormir,descalços e ostentando rostosassustados.

Eu, com certeza, não tinha

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condições de tentar mais nada.Resistia ao máximo para nãoceder à fraqueza e à vontade desimplesmente apagar. No balcãode uma companhia aérea, Héliofoi arrumar as passagens. Apóspagar o valor total em dinheiro,pegou-as sem dedicar nenhumsegundo para conferi-las.

– Já vamos embarcar – eleavisou aos companheiros.

Apressaram-nos até a área docheck-in, onde um funcionárioda companhia aérea, que pareciahipnotizado, conferiudocumentos inexistentes e,

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sorrindo, entregou a cada um denós um cartão de embarque.

Olhei para as mesinhas ecadeiras junto ao café na área deespera, imaginando se poderiadescansar um pouco, mas osguerreiros tinham pressa. Fomosempurrados pelo saguão até aescada rolante que dava nas salasde embarque, e que tinha logo àfrente o detector de metais. Fuipara uma das filas, com Carol, opai e o tio, e nem osfuncionários nem o aparelhodetectaram nada de estranho.

Eu acabava de ver que

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embarcaríamos pelo portãonove, e ia me dirigindo para láquando Carolina me apertou obraço e me fez olhar para trás.

Na vez de Hélio passar pelodetector, uma campainhadisparara. Imediatamente, ofuncionário o impediu de ir emfrente. Surpreso, o brácarosequer teve tempo de perguntaro motivo. Junto com os trêsguerreiros que vinham atrás, elefoi cercado por policiais.

Puxei a garota e os outros doispara longe dali, enquanto oesbirro de Galaor lançou-me

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um olhar de ódio ao seralgemado: responsabilizava-mepor aquilo, e eu sequer sabia oque estava acontecendo! Atéque descobri o responsável apoucos passos de ondeestávamos. O Fradinho da mãofurada, que se esborrachava detanto rir, acenou para mim antesde desaparecer no ar.

– Para o avião, rápido… –pedi aos humanos. Não preciseirepetir.

Eu gostava dos elementais eaté dos pequenos demônios.Guerreiros como meu meio-

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irmão os desprezavam, usavam-nos como escravos, mas eu, quepartilhava tal status, admirava-os.

Percebemos que o voo já forachamado, pois as pessoasestavam embarcando no portãonove; entregamos os cartões,atravessamos a ponte deembarque, e estávamos nosinstalando nos assentosreservados quando ouvi umacomissária de bordoconversando com outra sobre osperigosos membros de umafacção criminosa que, graças auma denúncia anônima, estavam

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sendo presos naquele momento.– Imagina se aqueles bandidos

conseguem entrar no nossoavião… – completou ela,aliviada.

Sorri. De acordo com asnormas do clã, os guerreiroseram proibidos de se expor oulutar em público contraautoridades humanas. Restava-lhes não oferecer resistência eesperar que nosso advogado oslivrasse da falsa acusação.

– Precisamos avisar a Oriana –murmurei para Carol antes delhe passar o número do celular

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de minha irmã. O meu aparelhofora confiscado por Galaor.

A poltrona do avião nunca mepareceu tão confortável.Entreguei-me a ela e àsonolência que exigia de mimalgum tempo sem esforço físico.Carol se sentou à minha direita,e o restante da família dela naspoltronas da frente. Os lugaresdos quatro brutamontes brácarosficaram vazios.

– O que houve com aquelescaras? – Tiago me intimou. –Eles fazem mesmo parte de umafacção criminosa?

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– Que tal explicar pra gentetudo o que está acontecendo,hein, malandro? – contribuiuJoão.

Nem que eu quisesse poderiaresponder. Tentei falar um“depois eu explico”, mas a frasesaiu enrolada demais. Estavaprestes a travar no sono nomomento em que a voz docomandante se fez ouvir nosalto-falantes, dando as boas-vindas aos passageirosembarcados no trecho de SãoPaulo a Salvador.

Ouvi a voz estupefata de

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Tiago murmurar “Salvador?!”.Não me dei o trabalho de

conferir o cartão de embarque.Nós estávamos num voo para aBahia e pronto.

– Mas a gente não ia pro Rio?– perguntou-me Carol.

Sorri, enquanto meu corpoexausto resvalava para o sono. OFradinho podia ser umexcelente hacker quando cismavade bagunçar os computadoreshumanos. E, pelo que euacabava de descobrir, eramelhor ainda na hora deinventar denúncias anônimas.

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V***

IRIATO PARECIA

AGORA fraco demaispara se manter

acordado. Celular… sim, Carolprecisava com urgência de umcelular! Um sorriso simpático eligeiramente sedutor foifundamental para conseguir queum rapaz na fileira do lado lheemprestasse o aparelho, sob oolhar severo da comissária debordo.

– Aparelhos celulares devem

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ser desligados a partir de agora –lembrou ela.

– Só um minutinho! –justificou a jovem.

Com pressa, Carol teclou osnúmeros de Oriana. João eTiago ainda não entendiam oque estava em jogo. Elasinalizou para que os doisimpacientes esperassem umpouco mais por explicações. Aligação caiu na caixa postal.

– Não volte para oapartamento! – disse para agravação. – Galaor montou umaarmadilha para você. E nós

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quatro estamos fugindo para aBahia!

Santo André

ORIANA NÃO IDENTIFICOU onúmero da chamada. Estavaprestes a ouvir a mensagemquando sua refém resolveu darmais trabalho. Mesmo com ador alucinante que lhe perfuravao peito, Anuk começou a sedebater feito doida. O celularescapou das mãos da brácaraantes de mergulhar numa poçad’água junto ao meio-fio, diante

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da porta aberta de seu carro.– Droga! – resmungou ela.Um tapa bem dado no rosto

da garota foi a solução paradeixá-la mais cooperativa.Como ocorrera na rodoviária,Gael veio com tudo paraconfrontar a mãe.

– Para de machucar a Anuk!– Se ela me obedecer, posso

pensar no assunto – disseOriana, entre dentes.

Com raiva, empurrou aadolescente para o banco de trásdo carro. O garoto a seguiu, acara amarrada. Nem de longe

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aquele era o encontro perfeitoentre mãe e filho, doisdesconhecidos que, a princípio,deveriam ter tudo para seentender bem.

O mau humor de Orianaficou ainda pior quando ela seabaixou para resgatar o celularda poça d’água. Não o achouem lugar nenhum. O aparelhoacabara caindo dentro de umbueiro destampado.

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A

CAPÍTULO 9

Ratoeira

PESAR DE TREMER DE

FRIO E DOR, Anukbancava a durona. O

rosto carregado de ódio visavasomente Oriana, que estava aovolante. O carro deixou

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rapidamente as imediações darodoviária e embalouvelocidade. Gael se encolheu,apoiando parte das costas contraa porta. As roupas molhadasaumentavam bastante a sensaçãode frio. Oriana, pelo espelhoretrovisor, parecia vigiar todosos seus movimentos.

– Temos que ajudar o Viriato– reforçou o garoto.

– A prioridade agora é tecolocar em segurança – disse amãe.

– Mas o Viriato…– Ele não é importante.

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– Não é importante?! Cara, elesalvou minha vida e…

– Se tu o conhecesses bem,não discordarias de mim.

Gael respirou fundo,preparando o melhor de suaargumentação.

– Olha, Oriana, sei que eletentou me matar, mas é seuirmão e…

– Viriato é alguém desprezível– cortou ela, para encerrar oassunto. – Merece toda apunição que vier a receber.

– Mesmo a morte?– Morrer é pouco para um

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covarde como ele.Sentindo-se sufocar pelo

próprio senso de justiça, Gaelnão conseguiu dizer mais nada.Na sua cabeça, ainda tinhadificuldade para entender comoum tio paternal que cuidaradele, defendendo-o contraGalaor, e o carrasco-covarde-desprezível, que tentara matá-loainda bebê, podiam ser a mesmapessoa.

Ainda sob a mira de Oriana, ogaroto virou o rosto para ajanela do carro. Viriato não iamorrer por sua culpa. Jurou a si

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mesmo que faria de tudo parasalvá-lo.

ORIANA, ENFIM, ESTACIONOU

O CARRO. Do outro lado darua havia um prédio antigo, detrês andares, com a fachadaprotegida por um alto e pesadoportão de ferro.

Ela foi a primeira a sair,abrindo a seguir a porta de tráspara arrancar Anuk do carro.Gael, cabisbaixo, apenasacompanhou as duas.

Certo, ele reencontraria suafamília, o que era incrível,

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mas… É, havia um “mas”. Ascoisas não estavam funcionandocomo deveriam.

Após atravessarem o portão, ostrês entraram no prédio. Umlance de escadas à esquerda osdeixou no primeiro andar. Oapartamento que Oriana usavacomo esconderijo ficava nosegundo.

Uma lâmpada detectou apresença dos três e se acendeuautomaticamente, fornecendoum mínimo de luminosidade. Oadolescente se apoiou nocorrimão do segundo lance de

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escada e subiu os primeirosdegraus. Apesar da penumbra,seus olhos perceberam marcasno corrimão.

– Tem uma mancha desangue aqui… – alertou, comum calafrio.

Duvidando dele, Oriana seaproximou para investigar oassunto. Vários trechos docorrimão traziam marcas feitaspor dedos ensanguentados. Umadelas lembrava toscamente odesenho do cálice usado comotatuagem pelos guerreirosbrácaros.

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– É um recado para nós! –deduziu Gael, mirando o topoda escada e imaginando o pior.– Galaor esteve aqui… E Viriatomarcou o corrimão pra avisar agente.

– Galaor ainda está aqui –corrigiu Anuk.

– É uma armadilha! – disseOriana, instintivamente pegandoo antebraço do filho para levá-lo degraus abaixo.

– Mas… e a minha família? –tentou Gael.

Galaor surgiu no primeiropiso para bloquear a fuga,

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espada em punho e muitavontade de ver sangueescorrendo pela escada.

– Os humanos agora são meus– sorriu.

A arma rasgou o caminho atéo único alvo: a aberração.

NO MESMO SEGUNDO em que aluz automática do primeiroandar se apagou, a espada bateucontra o revestimento de umdos degraus, arrancando lascas.Gael a evitara a tempo,empurrando a mãe para o lado.Ouviu-se som de passos vindo

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do segundo pavimento,provando que Galaor não agiasozinho. Estavam cercados.

A lâmina continuou à procurado alvo. Mais um movimento, epassou zunindo pelo pescoço dogaroto, que perdeu o equilíbrioao cair sobre os degraus. Orianaergueu a espada de Anuk,tentando bloquear o terceirogolpe desferido pelo irmão, sóque jamais seria uma guerreira.Com facilidade, Galaor jogou aarma que o bloqueara contra aporta de um dos apartamentos evoltou-se novamente para seu

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alvo preferido. Este fez as unhassaltarem como garras e sepreparou para enfrentá-lo.

ANUK BEM QUE QUIS AJUDAR,

mas o broche a impedia de usarmagia. Os dois guerreiros atrásdela a ultrapassaram, descendoos degraus que os separavam deGael. Ele não podia enfrentarsozinho três brácarosextremamente ágeis no manejoda espada.

No mesmo instante em que aluz voltou a se acender, Oriana,desesperada, agarrou a garota e

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colocou-a à sua frente, umaadaga apontada para a gargantadela.

– Irei matá-la se machucaresmeu filho! – ameaçou, cortandouma lasca de pele para fazê-lasangrar. – Estás me ouvindo,Galaor?

Não estava blefando. Para osclãs, a morte seria sempre umrecurso a se considerar. Mesmoconhecendo a resposta dopadrasto, Anuk desejou quefosse outra.

– Ninguém sentirá falta dessacoisa ruim – respondeu Galaor,

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sequer dispensando um olharpara a irmã e a enteada. – E amãe dela ainda vai te agradecer!

Anuk sentiu uma pontada noestômago e esta não vinha denenhum golpe. Era uma dorconhecida, que experimentavadesde que se entendia porgente. Dor de rejeição, tristeza,revolta. A adolescente reprimiucom firmeza as lágrimas e usou avelha máscara do ódio para lidarcom a vida. Gael era o únicoque olhava para ela. Orianaainda apontava a adaga contraseu pescoço, bufando de raiva.

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Foi quando a luz se apagou pelasegunda vez, deixando oambiente novamente às escuras.

NENHUM HUMANO PARECIA

DESCONFIAR da emboscada noprimeiro pavimento do prédio.Não ouviam nada, nãosuspeitavam de nada. Eramfelizes sem saber.

Gael não se guiou apenas pelosom das lâminas que se moviampara atacá-lo. Sempre enxergaramelhor no escuro que os outros.Podia ver os três vultos quearmavam o ataque, enxergava

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seus menores movimentos…Como um gato, não se deixariaapanhar tão facilmente. Nolugar de se defender, preferiufugir. E não iria pelo caminhomais óbvio, aquele que o levariaaté a rua.

Com agilidade felina, Gaelescapou da espada de Galaor,esquivou-se da lâmina dosegundo guerreiro e pulou porcima da cabeça do terceiro semse esquecer de apoiar as garrasnas costas dele para ganhar maisimpulso e velocidade. Quandoo coitado gritou de dor, o

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adolescente já estava na escada,retraindo as unhas para tirarAnuk do poder de Oriana elevá-la para cima.

– Anda logo, Oriana! –bradou ele, retrocedendo parapuxar a mãe pelo pulso. Esta,ainda atordoada ao ver suaagilidade, demorava para reagir.– Anda!!!

Isso custou a Gael segundospreciosos. Galaor vinha comoum alucinado em seu encalço,atropelando os outros guerreirospara chegar antes aos fugitivos.

Passaram pelo segundo andar

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ainda imerso na escuridão. Alâmpada daquele trecho só seacendeu com a presença deGalaor e dos dois guerreiros,logo atrás deles. Por culpa dobroche, Anuk não conseguia sertão rápida quanto antes, apesarde seu esforço para acompanharo garoto. Com firmeza, ele aprendia pela cintura, ajudando-aa correr. Também continuavapuxando Oriana, lerda demaispara seu gosto.

Ainda em vantagem, eleschegaram ao terceiro andar e, aseguir, tomaram um último

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lance de escada até oapartamento do zelador. Naparede oposta havia um alçapãoque fechava uma saída para otelhado, como Gael imaginava.Automaticamente, a luz daquelepavimento se acendeu.

– És um burro mesmo! –criticou Anuk, enquanto eleabria o alçapão. – Se tivessesfugido para a rua, já estarias…

– Silêncio! – exigiu Oriana,impedindo-os de sair. Compressa, ela cobriu o filho e agarota com o corpo, abraçando-os o mais apertado que podia

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enquanto os empurrava contra aparede mais próxima.

Gael prendeu a respiração aoperceber que Galaor e osguerreiros os alcançavam.

Estranhamente, ninguém osviu. O irmão de Oriana foi oprimeiro a passar pelo alçapão,seguido pelos subordinados.Gael, ainda espremido contraAnuk, não ousava respirar. Aliás,não conseguia nem pensar. Paraele, o minuto interminável traziao toque do rosto de Anukcontra o dele, o sinuoso corpofeminino colado ao seu, a

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presença intensa que embotavatoda e qualquer manifestação desua racionalidade…

Uma eficaz sacudidela deOriana o despejou do mundodos desejos ao mesmo tempoem que o separou daadolescente. Fazendo sinal paraque os dois não abrissem a boca,ela não se opôs a que Gael asliderasse pelos andares inferioresdo prédio. Ele era muito maisveloz. A fuga até o térreo foiainda mais ligeira que a subidaaté o último piso, com direito auma única parada para Oriana

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recuperar a espada de sua refém.No portão do prédio, outra

surpresa desagradável estava àespera: um quarto e ferozguerreiro brácaro.

GALAOR, QUE JÁ TIVERA

TEMPO de descobrir que foraenganado, furiosamenteretomava o caminho de volta aotérreo. Apenas alguns segundosos separavam. Oriana, então,ignorou qualquer prudência emais uma vez se conectou àmagia. Não a comum, aquela aque todos os clãs tinham acesso,

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e sim a mais poderosa e,portanto, proibida.

No mesmo instante, o portãose deslocou do lugar,projetando-se sobre o guerreiropara derrubá-lo. Ele se estateloucontra a calçada, as grades deferro por cima, batendo acabeça no meio-fio antes dedesmaiar. Gael deixou escaparum “caramba!” impressionado eAnuk fixou nela os olhos derapina.

– Ai, não, ele cortou ospneus… – lamentou Oriana aoavistar seu carro estacionado do

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outro lado da rua.– A gente continua correndo!

– decidiu Gael, puxando-a parasaltar sobre o portão caído e oguerreiro debaixo dele. Anukveio junto, enlaçada pelogaroto. Galaor apareceu naporta do prédio com os outrosdois guerreiros.

Era ingenuidade acreditar queconseguiriam fugir a pé. Semalternativa, Oriana estacou opasso, obrigando-os a parar, e sevirou para o irmão cada vezmais próximo. Esticou o braçolivre para a frente, buscando

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toda a conexão possível…– Não permitas que ela faça

isso! – avisou Anuk, alarmada,para Gael.

Oriana só sentiu um baquesobre o braço, a perdamomentânea de equilíbrio e acerteza de que o próprio filho aacertara. Ele também a prendeupela cintura e começou a correr,arrastando as duas mulheres comdificuldade.

OS BRAÇOS DE GAEL

estouravam de dor, exaustos porusar uma força que não tinham.

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As pernas perdiam velocidadegraças aos dois pesos extras. Osouvidos captaram uma únicapalavra de Oriana:

– Nevoeiro… – chamou ela,baixinho.

Do nada, a rua foi tomada poruma neblina intensa, capaz deesconder a presença dospróprios imóveis. Galaor e osguerreiros saíram do campo devisão. Eles também nãoenxergavam nada. Teriam de seorientar por sons e odores.

Sem saber para onde ir, Gaelparou de correr. À sua direita,

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Oriana tremia, como semorresse de frio. Ele a abraçou,o que pareceu acalmá-la. À suaesquerda, Anuk assumiu aliderança da fuga. O nevoeironão a impediu de escolher umadireção e continuaresgueirando-se silenciosamente;Gael e Oriana a seguiram.

Alguns minutos depois,encontraram uma vanestacionada na rua paralela. Amagia liberou o acesso ao seuinterior. Oriana assumiu ovolante logo depois que osadolescentes entraram e se

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sentaram no banco da frente.Mais um toque de magia e o

motor da van deu partida sem oauxílio da chave.

– Vá embora, nevoeiro –dispensou a mãe de Gael.

Instantaneamente, o nevoeirose desfez, revelando que a ruanão estava tão deserta quantoimaginavam.

Ao descobri-los, Galaorcorreu para alcançá-los. Estavasozinho, pois os guerreiros sehaviam separado para procuraros fugitivos.

Oriana, porém, não tocou o

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volante. A tremedeira retornou,só que desta vez em forma deconvulsão. Assustado, o filho asegurou pelos ombros, tentandoevitar que ela se machucassebatendo contra o carro. O tioassassino estava a menos de dezmetros.

– Faz alguma coisa! – berrouAnuk, quase estourando ostímpanos do garoto.

E ele fez. Usou as costas nummalabarismo nada sutil parasegurar a mãe e, com as mãos eos pés livres, esticou-se paraassumir o carro. Enlouquecido

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como de hábito, Galaorarremessou a espada como se elafosse uma lança. No mesmosegundo, a van saiu velozmenteem marcha a ré, com o impactoda lâmina quebrando o vidrofrontal antes de se fincar noestofamento do banco dianteiro,entre os dois adolescentes.

Galaor ficou para trás. Ouseria para a frente? Ainda de ré eem alta velocidade, o veículoquase se chocou contra umposte, subiu parcialmente numacalçada, destruiu o canteiro deuma praça e continuou

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rumando para lugar nenhum.– Sabes dirigir? – questionou

Anuk, mal disfarçando o medo.– Só sei fazer isso – admitiu o

garoto, em pânico, procurandose orientar pelo espelhoretrovisor. – Vi num filme…

– Sai de cima de mim! –mandou a voz de Oriana,debatendo-se para afastá-lo.

Rápida, ela reassumiu odomínio do carro, reduziu avelocidade antes de frear e,então, levou-o totalmente sobcontrole para uma avenida.Gael, enfim, permitiu-se uma

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pausa. O coração batiadesordenado, o suor escorriapelo corpo e o encharcava.Anuk não parecia melhor. Oesforço para se movimentar como broche opressor lhe exigiramuito. Estava exausta, pálida evulnerável. O temperamentoagressivo, no entanto, seguiaimperturbável.

– És um completoincompetente – provocou-o. –Improvisas muito mal, sabias?

Gael não lhe deu atenção.Ainda estava preocupado com amãe.

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– O que foi, Oriana?– Ainda perguntas? –

devolveu ela, num tom rude. –Nunca, mas nunca mais meataques daquela maneira!

– E o que você ia faze…?– Preferiste dar ouvidos àquela

ali – e indicou Anuk – do queconfiar em tua mãe! Nunca maisme impeças de fazer seja lá oque for, ouviste?

– Você está gritando. Não temcomo não ouvir.

– Já para o banco de trás! – rugiua mulher. – Os dois!!!

Sem alternativa, os

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adolescentes contornaram aespada de Galaor, ainda presa noestofamento, e pularam para obanco traseiro, cada um seacomodando numa ponta.Ficaram em silêncio durantealgum tempo até que Anukresolveu falar.

– Ela usou magia proibidaquando nos tornou invisíveispara Galaor e os outros. Etambém quando fez o portãotombar.

Oriana não se deu o trabalhode brigar com a garota. Apenaspisou fundo no acelerador,

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descontando o mau humor navan roubada.

– Por que essa magia éproibida? – quis saber Gael.

– Porque só pode ser usadapor seres mais avançados quenós.

– Tipo… os aliens?– As fadas, por exemplo.– Ah, tá. Fadas…Anuk esticou as pernas sobre o

banco, como se comentasse algotrivial.

– Nosso corpo não temestrutura para suportar a magiaproibida. E seu uso, ou abuso

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contínuo, pode levar à morte.– Por isso você me pediu para

impedi-la?– Não pedi. Eu mandei. E não

mandei você impedir sua docemãezinha porque estavapreocupada com ela –continuou Anuk. – Aconteceque ela ia matar Galaor.

Gael estremeceu, mas evitouolhar para Oriana. Comoocorrera antes, ela o vigiava peloespelho retrovisor.

– Não é que eu goste do meuquerido padrasto. Por mim,tanto faz ele morrer ou não.

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– Então por que vocêprotegeu ele?

– Uma coisa é sermosfugitivos. Outra bem diferente ésermos assassinos em fuga, aindamais por matarmos o filho maisvelho de Eurico.

Entediada, Anuk tirou dobolso da calça comprida umabarra de cereal. A embalagem,que protegera o alimento contraa água, foi rompida sem pressa.

– Me dá um pedaço – disseGael.

– Não.– Só um pedaço, vai!

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– Tu que procures tua própriarefeição! Esta aqui é minha.

A fome e o frio que voltava asentir contribuíam para que oadolescente desistisse de manterum mínimo de bom humor.Como Oriana, ele tambémexibiu sua pior carranca para seproteger contra o futuro que oamedrontava.

***

Rio de Janeiro, doze anos antes

S UM TOLO, VIRIATO! – rugiu

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Kían, avançando em minhadireção.

A dor do bofetão doeria nomeu rosto pelo resto da vida.

Era diferente de muitos outrosque recebera, e mais dolorosaque a maioria das surras queamargara, pois eu sabia quedaquela vez era totalmentemerecida. O velho instrutor nãoteria piedade. Obrigou-me a meajoelhar nas pedras frias doporão da fortaleza.

– Se Eurico souber quetentaste acessar magia proibida,mandará degolar-te. Já te ensinei

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tudo o que ele permitiu que umescravo aprendesse. Queresmais? Darás esse desgosto a teupai, que foi tão generosocontigo?

Eu nada disse, pensandoamargamente que não fora porgenerosidade que Eurico mepermitira ser aprendiz de Kían.

– Vais jurar por Cal-leach quenunca mais tentarás invocarmagia proibida. E agora, despe-te.

Fiz o juramento pela deusa,enquanto removia as roupas eesperava o castigo. Não gemi

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T

nenhuma vez, consciente deque merecia a surra, e talvezmais. Só esperava que a fúria deKían o impedisse de ler emminha mente que aquela nãoera a primeira vez que tentavaacessar tal forma de magia…

***

Santo André, nos dias de hoje

OTALMENTEDOMINADO PELA IRA,

Galaor recusava-se aaceitar a fuga da aberração.

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Colocaria novamente oFradinho atrás deles e… Seusdedos não encontraram obarrete da criaturinha preso aoseu cinturão. Ao mesmo tempo,seu celular tocou, aumentandoainda mais a pilha de revezes.Era Hélio, avisando que ele emais dois companheiros estavamretidos na Polícia Federal emCongonhas.

– E Viriato e os humanos? –cobrou Galaor.

A resposta de Hélio condenouo celular à extinção, esmagadocontra o primeiro muro do

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caminho.– Tenho uma proposta para ti

– disse uma voz atrás de Galaor.Ele se virou, ainda

espumando. Fora seguido.Ergueu as mãos enormes,

desejando aniquilar ahumanidade inteira. Foidesarmado pela própriaambição.

– Só terás vantagens senegociares comigo –acrescentou Tariq, com osorriso cínico que só uma dasfilhas, Anuk, herdara.

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A

CAPÍTULO 10

Poção

***

Finisterra, quinze anos antes

PORTA DE MADEIRA

MACIÇA, desgastadapela ação do tempo,

abria e fechava sem pausas, sobo poder do vento cortante. Era

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fevereiro e fazia muito frio. Forada taberna, além das ruasestreitas e suas casas antigas, ohorizonte cor de chumbotocava o mar acinzentado.Finisterra. Fim de mundo. Ouinfinito.

– Nem sempre a poção agecomo desejamos – resmungou abruja.

Ela falava na língua galega eseus olhos intrigantes estudavammeu espírito. Senti medo dela,mas muito mais medo de suaspalavras. A paixão, porém,voltou a me cegar. E a promessa

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era tudo o que valia a pena.

Salvador, nos dias de hoje

– DARÁ CERTO… – murmurei.– O que vai dar certo, Viriato?

– perguntou a voz de Carol.Estava no avião… O castigo e

a visita à bruja, na Galiza,integravam o passado. Comesforço, ergui as pálpebras paraenfrentar o presente. A dorprovocada pelo corte no ombroera a pior entre meusferimentos.

– Irei levar-vos a um lugar

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seguro – prometi, a cabeçaretomando o raciocínio comlentidão. Eu sangrara demais, daía extrema fraqueza.

Salvador, Bahia… Seria asegunda vez que eu visitavaaquela cidade. Na época, eu malcompletara dezessete anos e játinha destruído as vidas deOriana e de Tariq.

– Que lugar seguro é esse? –perguntou Tiago, desconfiado.

– Por quanto tempo vamoscontinuar fugindo? – intimouJoão.

A verdade é que eu destruíra

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muito mais que duas vidas. Pelomenos três delas estavam ali,escutando comigo o pilotoanunciar a aterrissagem.

– Um lugar seguro – repeti,procurando me manter alerta.

A vontade de me entregaroutra vez ao sono – ou àinconsciência, já não sabia mais– era opressiva. Difícil pensar,difícil fazer escolhas. Senti muitofrio, como se a ventania galegatambém soprasse no interior doavião, torturando-me com meuspróprios erros.

– E Gael? – questionaram os

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dois humanos, quase ao mesmotempo.

– Ligaste para Oriana? –perguntei a Carol.

– Deixei recado.Acho que perdi a noção de

tempo mais uma vez.No passado, a porta de

madeira continuava a se chocarcontra o batente, abrindo efechando. Monotonia edesespero.

Abri de novo os olhos.Precisava segurar minha menteno presente. A voz tranquila deCarol me avisou que

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precisávamos desembarcar. Elame livrou do cinto de segurançae me ajudou a ficar de pé.Agarrei um dos encostos dapoltrona, sentindo que o chãodesaparecia.

– Você consegue andar? –preocupou-se a jovem.

– Tens mesmo certeza de quedesejas a poção? – questionara abruja, em galego.

– Não posso mudar o passado– respondi, no mesmo idioma.

Mas aquela não tinha sidominha resposta há catorze anos.E agora eu falava com três

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humanos que me fitavam sementender nada.

– Temos de pegar um táxi –acrescentei, em português.

Não lembro como cheguei aotáxi, numa das saídas doAeroporto InternacionalDeputado Luís EduardoMagalhães. Sei que o motoristaficou me encarando, assimcomo a família adotiva de Gael,à espera de que eu revelasse odestino da viagem.

– Largo do Pelourinho.Era início de madrugada na

Salvador do sincretismo

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religioso e da exuberância decores, paladares e sorrisos. Umacapital que também sofria porseu passado de escravidão.Talvez por isso eu gostasse de lá.A cidade parecia mecompreender.

– Fechai a porta de madeira,por favor – pedi, em galego, aoshumanos.

O som do motor do carro eraabafado pelo baque rude damadeira contra a madeira, portacontra batente, ambosmanipulados pelo vento queforçava sua entrada na taberna

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sem que a bruja se importasse. Ofrio era mais um tormento. Eele antecedia a morte.

– Perderás teu espírito – elaprevira.

– Mas ganharei o que maisdesejo! – eu argumentara, com asimplicidade da adolescência.

Minha adolescência ficara paratrás havia muito tempo. Pisquei,tentando me localizar. O táxipassava por casarões dos séculosXVII e XVIII, no antigo bairroconsiderado PatrimônioMundial da Humanidade. Jáestávamos no Pelourinho.

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– O dinheiro do taxista… –lembrei, tirando do bolso dacalça algumas notas, queentreguei a Carol.

– Não quero teu dinheiro –recusara a bruja.

– E como posso te pagar? – euperguntara, confuso.

– Esquece a poção.Mas não esqueci. E não pude

pagar a bruja.Carol pagou o taxista quando

paramos no largo. Saímos docarro e pisamos as pedrasirregulares do chão. Haviaalguns bares abertos, pessoas

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circulando e grupos queviravam a noite cantando edançando axé. Saímos do carroe fomos para um trecho maisdeserto. Olhei para a Igreja deNossa Senhora dos Rosários dosPretos e sua fachada de torrescom terminações em bulbo.Não conseguia recordar ondeera…

Uma negociação de paz comos iorubás. Isto levara Eurico apassar pelo Pelourinho, hácatorze anos. E ele fizeraquestão de me levar, pelaprimeira vez me tratando com

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atenção.– Provaste tua lealdade,

Viriato, ao nos livrar davergonhosa cria de Oriana.Escravos não se tornamguerreiros, mas tu serás umaexceção. Quando voltarmos,Kían irá treinar-te.

A alegria de me sentir umfilho de verdade, misturada àcovardia e ao remorso. Mais dore frio.

A porta da taberna da brujafechou-se pela última vez.Restou somente a escuridão. Eum escravo que, abandonado

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pelo vendaval, perdia seuespírito.

Não, minha cabeça precisavaficar no presente. Corri os olhospelos casarões coloniais ao redor,cada um de uma cor diferente.Onde era, mesmo?

Sem que eu esperasse, aproximidade da morte medesconectou da magia. Custei aperceber que os humanos agorapodiam enxergar minhapresença trôpega, os ferimentose as roupas de guerreiroensanguentadas. Logo eucomeçaria a chamar a atenção

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de outras pessoas no local.– Como e-ele…? – balbuciou

Tiago, impressionado.João apenas me olhava,

boquiaberto.– Ele esconde o que é através

da magia – explicou Carol.– E o que ele é?– Brácaro, ora!– Bra-quem?A jovem ainda me amparava.

Ela prendeu meu queixo entreseus dedos e me impediu defugir novamente da realidade.

– Para onde agora, Viriato?– O quilombo…

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– Existem quilombos emSalvador?!

– Temos de achar os iorubás.Próximo à igreja. Mais uma

fachada colorida. Precisei deCarol para me locomover até lá.Não bati à porta. Fomosrecebidos por um imensoguerreiro, que nos observava deseu posto de vigilância desde anossa chegada.

– O que quer, brácaro? –rosnou ele.

– Abrigo para estesafrodescendentes.

– Mas eles não dominam a

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magia. Não podemos recebê-los.

– Se tua gente não oferecerproteção, eles serão mortos pormeu clã.

Brácaros perseguindohumanos era uma novidade. Euma novidade inimaginável paraquem não conhecesse a situaçãopor inteiro.

Inseguro, o iorubá acaboucedendo. E isso implicava liberaraos humanos a visão de tudo oque era oculto magicamente:sua tradicional vestimentaafricana – uma túnica bordada à

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mão, com cores alegres paravalorizar a pele negra – e,principalmente, o portal deacesso ao gigantesco quilomboiorubá, oculto atrás da simplesfachada colonial.

João e Tiago engasgaramdiante do que lhes pareciaimpossível existir numa área tãopequena, espremida entre outrasduas construções.

Carol foi a única a entender oque aquela decisão me custava.

– Você não vem com a gente,Viriato?

Libertei-me vagarosamente de

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seus braços. Pensei na previsãoda bruja, na paixão que meempurrara ao abismo, nas vidasarrasadas por meu egoísmo.Passado e presente semisturavam de novo.

– Não se brinca com magiaproibida – lembrara-me a bruja.

– Eu sei.– Por que insistes tanto para

que eu te dê a poção?A escuridão não era mais

completa. Meus olhos em buscade claridade encontraram umajanela de vidro nos fundos databerna, mas distante o suficiente

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V

para nos manter sob as sombras.Talvez houvesse esperança. Eum futuro. Não conseguiesconder a verdade.

– Porque só com a poçãoposso descobrir como é ser feliz.

***

IRIATO SE AFASTOU

CAMBALEANTE para omeio da rua. Falava

sozinho, delirando, numa línguaenrolada que lembrava oportuguês.

– Brácaros não entram no

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nosso quilombo sem teremnegociado a entrada antes, comAkinlana – justificou o iorubá.

– Mas ele vai morrer! –defendeu Carol. – Precisa deajuda!

Tiago espiou a filha. Não viumais sua menininha; viu umamulher apaixonada, queenfrentaria o mundo para salvaro amado. Temendo perdê-lapara sempre, ele começou aadmitir a muitíssimo remotapossibilidade de ter um genrobrácaro por perto.

– Olha, iorubá, você ainda

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não entendeu – disse. – Elesalvou nossas vidas e aindatrouxe a gente até aqui em vezde ir procurar um pronto-socorro. Além disso…

Carol gritou, desesperada, evoou até Viriato, que acabara detombar no chão. João foi atrás e,após uma rápida verificação,transmitiu o informe, aliviado:

– Ele ainda está vivo!– Como eu estava dizendo…

– prosseguiu Tiago, impondosutilmente ao iorubá suainquestionável autoridade depai. – O brácaro ali é da família.

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E não é você que vai separaruma família, não é mesmo?

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A

CAPÍTULO 11

Vale do RioCubatão

Cubatão

VAN DESCEU UM

TRECHO da RodoviaAnchieta, em direção à

Baixada Santista. Em algumtrecho que Gael não soubeprecisar, tomou um caminho de

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terra. Após um bom temposeguindo por um trajetosacolejante, Oriana parou oveículo e mandou osadolescentes descerem. Iamembrenhar-se pela espessavegetação da Mata Atlântica,opressiva graças à névoa intensada madrugada.

– Aonde vamos agora? –preocupou-se o garoto.

– Procurar teu pai – foi aresposta de Oriana.

Gael, surpreso e tambémangustiado, voltou-se paraAnuk. Tinha certeza de que a

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mãe não lhe daria maisnenhuma explicação.

A garota acabava de tirar o parde botas e o jogava dentro davan.

– Melhor ficar descalça –comentou ela, distraída. –Impossível andar aqui de saltofino sem usar magia.

– Você sabe quem é omeu…?

Não conseguiu pronunciar apalavra. Sempre evitara pensarna existência de um pai e deuma mãe, no que costumava seruma boa estratégia para lidar

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com a rejeição.– Teu pai é um índio.Índio?! Ah, só podia ser

brincadeira!– Mas eu não tenho nada de

índio!Um sorrisinho zombeteiro

acompanhou o olhar da garota,dirigido para as mãos cobertaspelas luvas.

– Isso é o que pensas,aberração.

Oriana, que prestava atençãona conversa, deu outra ordem,acelerando os dois molengaspara acompanhá-la por uma

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trilha apertada entre a vegetação.– Onde estamos? – perguntou

Gael para Anuk.– Parque Estadual da Serra do

Mar.– Vale do Rio Cubatão –

especificou Oriana.Quando Gael estava na quinta

série, a escola trouxera sua turmapara fazer uma trilha ecológicano Núcleo Itutinga-Pilões, emCubatão. Um passeio quelembrava ter sido muitodivertido, à beira do Rio Pilões.Vira de perto alguns tucanos,um gambá que assustara as

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meninas da classe e uma porçãode bromélias, orquídeas epalmitos-juçara. Um monitorexplicara que aquela região denascentes garantia oabastecimento de água paramilhões de habitantes nascidades próximas. Tambémpertencia a uma das florestastropicais mais ameaçadas domundo, com parte de sua florae fauna na lista das espécies emextinção.

De qualquer forma, alembrança agradável do passeionão serviu para dourar as

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dificuldades da nova visitaàquele trecho da Serra do Mar.O terreno era acidentado,inclinando-se para baixoconforme aumentavam seusdesafios. A neblina gelada, alémdas raízes e dos galhos baixos dasárvores, impedia o garoto de selocomover direito. A cadapunhado de passos, ou eletrombava em algum tronco ouganhava arranhões pelo corpoou evitava cair de nariz na terra.Ou tudo ao mesmo tempo. Emais um pouco.

Anuk, atrás dele, não se saía

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melhor. Dependente da magiapara resolver as questões do diaa dia, mostrava-se urbana demaispara alguém que seautointitulava guerreira. Volta emeia apoiava-se em Gael paranão perder o equilíbrio. Oriana,à frente, interrompia a descidavárias vezes, tentando orientar-se.

A luminosidade crescente donovo dia aos poucos dissipou anévoa, permitindo uma visãogeral do vale. Acima de suascabeças, existia um horizonteserrano, com imponentes blocos

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de rocha cobertos porvegetação. Escarpas quecontemplavam do alto a estreitae extensa planície formada peloRio Cubatão e seus afluentes.

Mais para a esquerda dessecorredor ecológico, Gaeldivisou, impressionado, acivilização que convivia com anatureza selvagem, ocupando asilhas de São Vicente e de SantoAmaro, e também algumas áreasdo continente, tendo comofundo a imensidão azul doOceano Atlântico. Havia aindao movimentado Porto de

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Santos, o poderoso poloindustrial de Cubatão, ohistórico Caminho do Mar e,rumo ao planalto, as pilastras daRodovia dos Imigrantes quesubiam, majestosas, espetadas nosrochedos enquanto suportavamo tráfego de veículos que dividiacom a Rodovia Anchieta. Juntoàs duas estradas, os chamadosbairros-cota avançavam dia apósdia sobre a mata nativa nasencostas da Serra do Mar,espalhando degradaçãoambiental apenas porque suapopulação pobre não

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encontrava outra alternativa desobrevivência.

Foi por volta de meio-dia queos três fugitivos alcançaram amargem do Rio Cubatão.Mataram a sede e, após umrápido descanso, prosseguirampara oeste, na direção da áreacontinental de São Vicente. Aimpressão assustadora deixadapela neblina já não dizia muito,pelo menos para Gael. Apesardo cansaço e da fome,começava a gostar cada vez maisdos sons dos pássaros e do solque aquecia o ambiente úmido

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da mata. Ao passar sob umaárvore, olhou para cima e, feliz,encontrou um sonolento bicho-preguiça agarrado em um dostroncos. Quase uma horadepois, avistou um tamanduáque, curioso, analisava apresença humana em seuterritório. Perto do rio,apanhando sol sobre as pedras,havia alguns lagartos.

– Deve ter cobra também –pensou em voz alta.

Anuk girou para ele o rostoapreensivo, mas continuoumantendo a fachada de guerreira

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cheia de coragem, acostumada atodo tipo de situação perigosa.

– Basta tomares cuidado ondepisas – disse Oriana. – Cobrasnão fazem nada desde que nãose sintam ameaçadas.

– Li que acharam aqui umapedra com gravuras rupestres –disse o garoto, percebendo tardedemais que puxava conversacom uma mãe com a qual nãogostava de falar.

Já arrependido, mordeu oslábios e se voltou para Anuk,como se conversasse com ela.Oriana, porém, segurou a

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caminhada e fez sinal para quese dessem uma folga. Claro queos adolescentes desabaram nochão. A adulta se sentou diantedo filho.

– Há alguns sambaquis emCubatão – disse. – Sabes o queé?

– São montes de conchas,esqueletos, restos de comida eoutras coisas deixadas pelohomem pré-histórico.

– Gostas de arqueologia?– É que tive que fazer um

trabalho sobre isso pra escola.– E tiras notas boas?

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– Ficam sempre na média –ele respondeu, dando deombros.

– E já ficaste de recuperação?– Em Matemática, algumas

vezes.– Deves ter herdado isso de

mim. Sou péssima emMatemática.

Pela primeira vez, os doistrocaram um sorriso.

– Sabias que sou esteticista?Trabalho em um salão de belezaem Curitiba. Faço depilação,massagem facial e corporal… Etambém sou manicure.

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Anuk bocejou de modoescandaloso, mostrando oquanto o diálogo a entediava.

– Trabalho no bar dos meustios – contou Gael.

– E o que fazes lá?– Lavo a louça, atendo

clientes. E preparo ochurrasquinho do final do dia.

Soava estranho relembrarsituações que pareciam tãodistantes no meio de um lugartão selvagem. Com amargura, ogaroto soube que nada maisseria como antes.

– Oriana, meu pai é mesmo

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um índio?A mãe também sabia que nada

mais seria como antes.– Não um índio comum e

sim um índio ligado à magia –confirmou ela.

– Tipo um pajé?– Erraste feio! – riu Anuk. – E

então? Esse papinho ridículo vaiprosseguir até que horas?

– Por quê? – irritou-seOriana. – Tens algumcompromisso?

– Que tal estarmos àsdezenove horas de volta àcivilização?

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– Pois tu podes ir sem mim!A adulta se levantou, o que

indicava o fim do descanso.– Temos de chegar às ruínas

antes que anoiteça – explicou.– É onde vamos encontrar

meu pai? – arriscou Gael.– É ele que nos encontra.– Como assim?– Ela quer dizer que não sabe

onde encontrá-lo – provocouAnuk. – E que, se ele não quisernos encontrar, azar o nosso!

– Ele vai nos encontrar –reforçou Oriana.

Para o filho, não pareceu que

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ela tivesse muita certeza do queafirmava. Ele não se moveu,indeciso entre segui-la ou tomaro caminho de volta, o que aadolescente o incentivava aescolher. Ela também não saírado lugar.

Não precisava muito paradespertar o temperamentoodioso de Oriana. De modobrucutu, ela prendeu Anukpelos cabelos na altura da nuca ea obrigou a se erguer.

– Andando, já! – ordenou,zangada.

A garota endireitou os

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ombros, empinando o queixoantes de obedecer. Gael acabousem escolha.

– Você não é diferente deGalaor – disse para a mãe, comdesprezo, tomando a dianteirade um caminho quedesconhecia.

ANOITECIA MAIS CEDO NO

INVERNO, o que trouxe onevoeiro antes do que Orianaprevia. Foi sorte encontraremlogo as ruínas, em um pontoacima da planície. Pertenciam aum engenho de cana-de-açúcar

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que funcionara nos séculosXVII e XVIII, um claroexemplo do fracasso em seocupar, no passado, aquelecorredor ecológico. Até osjesuítas, antes de serem expulsosdo Brasil Colônia, tinhampossuído glebas na área, com oobjetivo de cobrar pedágiosobre pessoas, mercadorias eembarcações que utilizassem osrios que a atravessavam. Existirainclusive uma vila, Itutinga, quesumira do mapa ao perderimportância para outra maispróspera e mais bem-localizada:

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Cubatão. Hoje, o vale,espremido cada vez mais pelascidades ao seu redor, dava sinaisde sucumbir sob o avançopredatório da civilização.

Exausta, suja e bastanteirritada, Oriana mandou que osadolescentes achassem algumcanto para dormir. Tinham sealimentado de algumas bananas,o que tapeara a fome. As ruínas,deterioradas pela ação dotempo, não apresentavamqualquer conforto, ainda maissob a chuva fininha eininterrupta que começara uma

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hora antes.Oriana esqueceu a prudência e

utilizou magia para acender umapequena fogueira que osaquecesse. O medo materno erade que Gael adoecesse. O filhojá pegara muita friagem navéspera, com as roupasmolhadas que tinham secado emseu corpo.

Tremendo de frio, ele sesentou defronte à fogueira ecolado a Anuk, com as costascontra uma pedra. E ainda aabraçou para ajudá-la a lidarcom a baixa temperatura da

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noite. Oriana detestava aquelacumplicidade entre eles. Semmencionar a péssima influênciade uma garota com fama deperversa, egoísta e traiçoeira.

Sentou-se perto dos dois, aospés da fogueira, vigilante aossons que vinham da mata. Nãopretendia dormir.

GAEL OLHOU DE ESGUELHA

para a mãe, que resolvera seacomodar perto demais para seugosto. Com carinho, continuouprotegendo Anuk em seusbraços. Ela tremia mais que ele.

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O broche maquiavélico em seupeito a fazia sangrar novamente,uma prova de que a garotatentara se conectar à magia parase fortalecer. Seu aspecto davapena: imunda, cheia dearranhões e hematomas. Ogaroto duvidava de que ela játivesse passado por qualquerexperiência parecida. Ele, apesarde tudo, gostava cada vez maisde estar ali, em contato com anatureza. “Talvez eu sejamesmo filho de índio”, sorriu.

– Por que sorriste? – quissaber Anuk.

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– Só bobeira.A garota se aconchegou ainda

mais. Carente, frágil, cansada,enfim, nada que quisesse admitirpara si mesma.

– O nome do teu pai é Rudá– contou.

Gael abriu outro sorriso.– Estavas pensando nele –

disse a garota.– Nem!– Não mintas!– Tá, pensei nele.– Tariq ia casar com Oriana –

começou Anuk após molhar oslábios ressecados com a língua. –

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Estavam prometidos um aooutro desde crianças, desde quea última briga entre brácaros eal-gharbios terminou com umacordo político.

Um olhar dissimulado deGael, bastante discreto,confirmou que a mãe não semovia, fitando as chamas tímidasda fogueira. O jeito eraincentivar Anuk a falar.

– O que aconteceu?– No jantar de casamento,

Galaor, como sempre, quis seexibir, trazendo como presenteum índio que caçara lá no

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Amazonas.– Rudá…– O próprio.– E aí?– Oriana fugiu com o índio e

Tariq passou a noite de núpciascom Shantel, a prima de Oriana.

Desta vez, o adolescenteencarou a mãe. Ela permaneciaimóvel, sem reação.

– O casamento foi anulado, enós nascemos nove meses depois– continuou Anuk. – Tu comofilho de Oriana e Rudá. EMirele e eu geradas por Shantel.

– Eu não sabia que você e sua

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irmã eram gêmeas.– Infelizmente, somos –

resmungou ela, com uma careta.– Quando nascemos, fomosseparadas. Eu, como a maisvelha, fiquei com meu pai, eMirele continuou com minhamãe. Quanto a ti…

– Me jogaram na frente dometrô.

– E terias morrido se Viriatonão fosse tão incompetente.

Imensamente triste, Gaelapoiou uma das bochechascontra a testa de Anuk. A únicacoisa que desejava era ter de

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volta a ignorância sobre suasorigens.

– Curioso… – comentou aadolescente.

– Hum?– Nós três.– Você, eu e a Mirele?– Somos três partes separadas

do que deveria ser uma únicacriança.

– O filho de Oriana e Tariq.– Sim.– E qual parte você é?– A pior de todas, com

certeza! – sorriu ela, divertida.– A gêmea má?

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– Ainda duvidas?– Não mesmo! – ele também

sorriu.– Mirele é a boazinha, aquela

que todos amam e de quemsentem orgulho.

– E eu?Anuk ergueu para ele o olhar

escuro que sabia muito bem sercruel e arrogante.

– És meu prisioneiro,esqueceste?

– Não sou prisioneiro deninguém.

– Fui eu quem caçouprimeiro a aberração!

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– É só o que eu sou, não é?– Por quê? Achas que podes

ser mais alguma coisa?Os braços masculinos

perderam a vontade de abraçá-lae se afastaram.

Para escapar de Oriana, quevoltara a vigiá-lo, e da expressãovitoriosa de Anuk e seu prazerdoentio em magoar as pessoas,ele cerrou as pálpebras.

– Óbvio que a terceira parte éa aberração – disse aadolescente, repetindo o que iana mente do garoto. – Ah, não!Vais mesmo chorar por causa

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disso?A pergunta veio em tom de

zombaria. Uma lágrima escorriapela face de Gael.

– Choras como uma menina!– menosprezou ela.

– Chega! – sibilou Oriana.– Que moral tens para me

proibir de alguma coisa?– Não te darei satisfação sobre

meus atos. Agora cala-te ou tearranco a língua!

Gael abriu os olhos, secou alágrima com a manga do blusãoe decidiu sentar-se perto deoutra pedra, afastado das duas

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mulheres. Furiosa por serabandonada, Anuk só parou deprovocá-lo quando Orianaergueu a mão e lhe deu um tapano rosto. Desta vez, o garotonão defendeu nem culpouninguém. Abraçou os joelhoscom força e procurou dormir.O dia seguinte seria tãocansativo quanto o que passara.

DIZEM QUE A ÚLTIMA HORA

que antecede o nascer do sol é amais escura. E também a maissinistra. Gael acordousobressaltado. Havia uma quarta

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presença entre as ruínas doengenho.

– Não olhes para ela! –implorou Oriana.

Mas o garoto olhou. Viu amãe e a adolescente, as duas queamava e também odiava, dejoelhos e com os olhosfechados, encolhidas uma contraa outra. Viu o que parecia serum cervo imenso, orgulhoso esobrenatural, de pelos brancostranslúcidos e olhos de fogo,que vagava ao redor, analisando-as.

– Por favor, acredites… –

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disse Oriana para a criatura. –Viemos em paz.

O argumento não surtiuefeito. A criatura indicou afogueira e suas chamas que aindaardiam, apesar da chuva fina.

– Perós mágicos são os piores– disse ela com uma vozestranha, como assobiosensurdecedores, em palavras quenão pertenciam a nenhumidioma, mas que podiam sercompreendidas por qualquerum. – Dominaram nossas praias,expulsaram nossa magia para ointerior…

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Perós… Não era assim que osíndios chamavam os portuguesesna época da colonização?

Um golpe invisível atingiuprimeiro Oriana. Outro foidestinado a Anuk. As duasgemeram baixinho antes que asurra implacável começasse deverdade. Gael correu para afogueira, de onde tirou algunsgravetos em chamas. Nadaameaçador, na verdade, mas eraa única arma ao seu alcance.

– Larga elas! – disse, lutandopara não ser contaminado pelohorror profun Na un &un&et eueuaue &

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O

CAPÍTULO 1

Passado

Rio de Janeiro, quinze anos antes

RIANA NÃO SABIA

qual vestido escolher.Tentou um azul, que

combinava com a cor de seusolhos, mas desistiu ao ver que odecote revelava as marcas roxasem seu pescoço, resultado dasurra aplicada pelo pai na

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antevéspera. Havia hematomaspor todo o corpo.

Belmira, a escrava que cuidavadela desde a morte da mãe,suspirou ruidosamente. Era só oque se podia fazer diante dabrutalidade de Eurico. Oriana,porém, mostrava-se conformadacom aquela rotina. Já estava com14 anos e nunca adulto alguminterferira para defendê-la oupara impedir que Galaortambém apanhasse sempre queo pai deles estava de mauhumor – o que ocorria comfrequência.

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– Vou colocar o vestidopérola – escolheu.

O modelo, de gola alta emangas compridas, seriaperfeito, apesar da manhãabafada. Era 21 de março e, ànoite, Oriana finalmente secasaria com Tariq. Nada poderiaestragar sua alegria.

O excesso de empolgação malpermitiu que Belmira a ajudassea vestir-se. A adolescenteescapuliu do pente de ouro, quepoderia dar um jeito em seuscabelos longos e rebeldes, e saiudo quarto já respirando

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liberdade. Parou numa dasjanelas do corredor paracontemplar o mundo lá fora: avisão da Baía de Guanabara,ampliada por um céu muitoclaro e pelo mar que ondulavaem tons variados de azul everde, revelava-se ainda maisimpressionante. De um miranteda Citânia de Brácara se podiaavistar até o Corcovado e oParque Nacional da Tijuca. Semdúvida, uma das vantagensdaquela fortaleza, construídaestrategicamente no Rio deJaneiro pelos primeiros brácaros

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a chegarem ao Brasil, no séculoXVII. E, como todos os lugaresprotegidos pela magia, a Citâniaera invisível aos olhos humanos.Oriana sorriu. Não era estranhoviver em uma fortaleza quereproduzia ao máximo as antigasconstruções celtas do norte dePortugal, mas com direito àeletricidade, água encanada, atelefones e TVs?

– Outra vez descabelada? –brincou Viriato, indo ao seuencontro. Prático como sempre,reuniu os fios rebeldes da meia-irmã para ajeitá-los numa trança

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improvisada.Feliz em revê-lo, Oriana se

pendurou em seu pescoço paralhe dar um beijo estalado nabochecha. Ele era alto para seusquase dezesseis anos, apesar deser bem mais baixo que oimenso Galaor, que completariavinte na semana seguinte.

– Quando retornaste daGaliza?

– Cheguei há pouco, senhora.E te trouxe um presente.

Do bolso da calça, oadolescente tirou algumaspedrinhas que depositou nas

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mãos ansiosas da garota.Boquiaberta, ela mal acreditouque agora teria suas própriaspedras adivinhatórias. Para umaaprendiz de magia, aquele era omelhor dos presentes.

– Aposto como trouxesteoutras iguais para Shantel –provocou Oriana.

Como previa, Viriato coroude vergonha. Todo mundosabia que o escravo eraapaixonado pela sobrinha órfãde Eurico, uma adolescentelinda, simpática, extrovertida eautoconfiante, nada parecida

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com a prima que construírauma muralha em torno de simesma para se manter sã diantede um mundo ao qual não seadaptava.

– Sim, eu trouxe, mas foitolice – confessou Viriato, semgraça. – Ela não precisa dessascoisas.

Altamente intuitiva, Shanteldemonstrara logo cedo seutalento para magia. Apesar de tera mesma idade da prima, erauma aluna avançada e nãodemoraria a se tornar umadruidesa. Um orgulho para

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Eurico, que lhe dedicava amorpaternal e fazia todas as suasvontades, como permitir queViriato viajasse sozinho até aGaliza para lhe comprar objetosritualísticos. Ele jamais batera nasobrinha, como fazia com osfilhos… Oriana procurou nãopensar no quanto a invejava. E,para piorar, o único irmão quegostava dela tinha de seapaixonar justo pela garotaperfeita!

Viriato uniu as sobrancelhas depreocupação, indicando a golaalta do vestido inadequado para

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o dia quente.– Senhora, devias esconder-te

quando Eurico está de mauhumor – recomendou.

Era o que colocava em práticapara evitar que a irmã apanhassedo pai: ocultava-a atrás detapeçarias e em tocas secretasque ele mesmo esburacava nasparedes mais distantes da casaimensa. Sempre fizera isso,desde que ela se entendia porgente. Já Galaor nunca aceitarasua ajuda. Considerava covardiafugir daquela forma.

– Viriato…

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– Que é?– Tu te lembras da minha

mãe?A pergunta o fez morder os

lábios, pensativo. Lucíliamorrera quando Oriana tinhaapenas um ano. Ninguém sabiaexatamente de quê.

– És parecida com ela, senhora– garantiu ele, com um sorriso.– E sei que ela se sentiria muitofeliz com teu casamento.

Não ficava bem uma senhorade alta linhagem como Orianaabraçar um escravo bastardo einsignificante, mas a garota

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preferiu quebrar as regras.Compreensivo, Viriato retribuiuo carinho, beijando-lhe a testa.Ele sempre fora a única pessoaque a entendia de verdade.Bom, agora havia tambémTariq, um noivo que elarecebera ao nascer e que, contratoda expectativa, ganhara seucoração quando os dois haviamse conhecido alguns meses atrás,durante uma visita ao clã al-gharbio. O adolescente, apenasum ano mais velho, também seapaixonara. Desde então, os doistrocavam cartas e telefonemas,

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encurtando a distância entre Rioe São Paulo.

– Promete-me que tudo darácerto hoje à noite – pediu ela,com um mau pressentimento.

Viriato não fez nenhumapromessa. Apenas continuou aabraçá-la, como se a protegessede perigos invisíveis. Foi quandoum terceiro abraço os rodeou.

Era Shantel.

***

ECUEI, ESTABANADO, ao sentir otoque da garota que adorava em

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Rsilêncio. Tropecei nospés, acabei por perder oequilíbrio e quase caí

para trás. Shantel riu,estendendo a mão para meajudar. Oriana, no entanto, foimais rápida e endireitou-me aome puxar pela túnica.

– Perdoai-me por vos assustar– disse Shantel. – É que eutambém queria participar destemomento especial.

– Pois era um momentoparticular! – retrucou Oriana,com seus modos grosseiros.

Amuada, a prima se afastou,

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deixando-nos a sós. Minhameia-irmã merecia a fama dedesajustada. Seu comportamentoantissocial era notório.

– E tu, cachorrinho? –cobrou, espumando, no tompossessivo que utilizava quandoo assunto dizia respeito a mimou a Tariq. – Não irás atrás delaabanando o rabo?

Fiz uma reverência e meretirei, apressado, antes queOriana começasse a me ofenderde verdade. Não pretendiaencontrar Shantel e simacompanhar os preparativos para

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o banquete de casamento, logoà noite. A adolescente, porém,estava à minha espera na portada cozinha. Procurei disfarçar,sem sucesso, a deliciosaperturbação que ela provocavaem mim. Uma sensação queganhou mais e mais intensidadequando ela me puxou pela mão,levou-me até um aposentovazio, sem que ninguém nosvisse, e trancou a porta para nosdar privacidade.

– Como foi na Galiza? –perguntou, cravando-me osolhos. – Falaste com a bruja?

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TARIQ E SUA

COMITIVA chegarampontualmente para a cerimôniaque seria realizada no salãoprincipal, o aposento maisimportante da casa de um lídercomo Eurico. Todos os brácarosjá ocupavam seus assentos namesa estreita que circundava aestrutura do cômodo. Eurico selevantou de seu trono, a cadeiramais alta e mais bem-localizada,para receber os recém-chegados.Os al-gharbios ocumprimentaram com

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reverências educadas, mas quenão lhes roubavam a posturaorgulhosa. A presença dojovem, que assumira a liderançade seu clã após a morte do pai,fez algumas jovens suspirarem.Era um tipo elegante, bonito,atraente. Eu admirava Tariq porsua sagacidade, o raciocínio ágile a visão de futuro queprometiam mudanças benéficaspara ambos os clãs. O casamentonão significava apenas umaaliança política. Era sinônimo detempos de paz.

Oriana entrou no salão

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naquele instante, recebendoaplausos entusiasmados. Estavabelíssima em um vestido rosa,com os cabelos presos no alto dacabeça e um colar de rubis quelhe escondia as marcas roxas aoredor do pescoço. Orgulhei-mede minha irmã caçula. Ela nãoera mais uma criancinha.

Eurico a recebeu com umsorriso satisfeito. Uniu as mãosdos noivos para oficializar aunião. Tariq só enxergavaOriana. E ela estava radiante.

Senti o olhar de Shantel, dooutro lado do salão.

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Automaticamente, desliguei-meda cerimônia. Minha mãodireita, em meu bolso, apertoucom ansiedade o vidrinho dapoção que recebera da bruja.

Ela esperava que eu fizesse oque pedira – ou ordenara.Contudo, eu estava decidido anão cumprir minha parte dotrato. Se tudo desse certo,finalmente conheceria afelicidade que meu coraçãotanto cobiçava.

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A

CAPÍTULO 2

Citânia de Brácara

Rio de Janeiro, nos dias de hoje

PRIMEIRA VELA ACESA.

Respeito.Mais uma vela.

Desejo.Mais uma chama. Sangue.A druidesa se deitou de bruços

diante do enorme pilar degranito, coberto com placas de

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ouro e prata. Ao seu redor,doze pilares menores. Meniressubmissos ao venerado. Como asubmissão da mulher que oadorava.

Ela soube antes, como sempresabia. O êxito de Galaorsignificaria sua derrocada. Mas,ainda que os planos dele fossemfrustrados, ela também poderiaperecer. Vitória ou fracasso,ambos os desfechos tinham opotencial de arruinar sua vida.Ou não…

Tudo, no fundo, dependiaapenas dela.

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V

E a virada a ser tecida lhe trariamuito mais que poder.

***

OLTAR AO RIO COMO

PRISIONEIRO me fez vera cidade maravilhosa

com olhos de despedida.Chegamos ao Galeão no inícioda madrugada. Uma demora naliberação da pista e da ponte dedesembarque, porém, atrasounossa saída do aeroporto.Clareava quando, finalmente,nos instalamos nos carros que

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nos levariam para casa… A casaonde nascera mas que não mepertencia, na qual eu semprefora menos que um animaldoméstico. Aonde ia agora paramorrer.

A escuridão se entregava à luze revivia a magia do nascer dosol. Admirei pela última vez oclima cativante do Morro SantaTeresa, o bairro queatravessávamos. Os casarõesantigos de inspiração francesa, osbondes, as ruas e as ladeirastortuosas, com seusparalelepípedos, a vegetação que

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proporcionava sombra para umrepouso do sol escaldante.Carol, malgrado seu, apreciavacom olhos ávidos a paisagemcarioca, que somente conheciapela televisão.

Num largo que parecia nãoter mudado desde a vinda de D.João ao Brasil, os carros quelevavam a mim e aos humanosavançaram pela garagem abertade uma das casas, a fachada queocultava um portalostensivamente vigiado.Segundos depois, atravessamos aprimeira das três muralhas ao

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redor da Citânia de Brácara.Estávamos agora em territóriooculto pela magia.

Quando, enfim, alcançamos asruas de terra da fortaleza e oscarros frearam, Galaor nosobrigou a um desfilehumilhante até a casa de Eurico,a maior e mais importante entreas habitações de planta circular,todas construídas em pedra.

Entre meu povo, fui tratadocomo um verme. A rua estavaapinhada de gente, todos cientesde que meu querido meio-irmão voltava vitorioso da

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caçada a um traidor do clã.Recebi cusparadas no rosto,insultos e olhares de desprezo.Em relação aos humanos,liberados para enxergarem amagia, havia somentedesconfiança pela presença emum local onde jamais deveriampisar. Arrastado na frente docortejo, eu evitava fitar qualquerum dos dois.

Assim que entramos na casa deEurico, Shantel surgiu paraconversar com o marido.Avaliou, espantada, minhaaparência, antes de me dedicar

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um sentimento de piedade queeu não merecia. O ciúme deGalaor, naturalmente, dava-lhevontade de surrá-la. Mas oguerreiro a temia demais paraousar machucá-la.

– O que farás com oshumanos? – perguntou ela,analisando Carol e Tiago.

– São meus prisioneiros –ruminou Galaor.

– Caçar humanos abre umaperspectiva que tu, como futurolíder, não deves permitir.Quero-os para mim.

Shantel estava certa. Os riscos

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de caçadas como aquelaacabariam expondo demais osgrupos que sobreviviam namagia, seguros enquanto oshumanos não descobrissem suaexistência. E Galaor sabia disso.

– Que fiquem contigo, então!– cedeu ele, rancoroso.

Descontou sua frustração emmim, arrastando-me comviolência pelo corredor. Nofundo da construção, umaescada nos levaria às celas, nosubsolo.

Virei a cabeça para trás emtempo de assistir à cena que era

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obrigado a abandonar. Shantel,com ares de anfitriã, sorria paraCarol e falava com Tiago.

– Acompanhai-me – disse. –É melhor que descanseis agora.

– O que vai acontecer comele? E conosco? – Tiagoinquiriu, tímido.

Um guerreiro estava prontopara golpear o humano por ter-se dirigido à senhora, mas elalançou-lhe um olhar que oimpediu de agir. Calma, dirigiu-se aos dois.

– Será julgado por traição.Quanto a vós, sois meus

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C

hóspedes e nada deveis temer.Lembrai-vos apenas de nãodirigir a palavra aos senhoresbrácaros sem permissão…Apenas para evitar as reações daguarda – e, aos guerreiros queolhavam abismados aquelapermissão sem precedentes,ordenou: – Levai-os aosaposentos de hóspedes.

***ADA HUMANO, comoconvidado de Shantel,recebeu um quarto

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para descansar. No de Carol, eladescobriu alguns vestidos velhosem um baú, junto ao leito.Estavam limpos e cheiravam alavanda. Poderia tomar umbanho e…

– Oh, senhora, não! – disseBelmira, uma escrava idosa emanca, que abria as janelas paraarejar o aposento. – Esses traposnão te cairão bem!

Sem que a humana pudesseimpedi-la, saiu para voltar algunsminutos depois, trazendo umbelíssimo vestido na cor pérola,com gola alta e mangas

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compridas.– Depois que a senhora

Oriana partiu, guardei todos osseus vestidos – explicouBelmira, com uma ponta detristeza. – Tenho certeza de queela não se importaria de teemprestar um deles.

– Melhor não, obrigada –agradeceu Carol, polidamente,imaginando a carranca da outrase a visse usando suas roupas.

– Tua pele é tão negra emaravilhosa… O tom clarodeste vestido te fará ainda maisbela! – Belmira assegurou,

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impressionada com a primeiraafrodescendente que conheciaem sua longa existência comoescrava. Mas via que a outrahesitava. – Tens receio deaborrecer Oriana, é isso?

– Bom, eu…– Então é verdade o que

cochicham por aí – disseBelmira, emocionada e muitofeliz. – A senhora está parachegar!

Carol apenas confirmou comum movimento de cabeça. SeGael prometera vir ao encontrode Galaor, era certo que Oriana

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o acompanharia.– Não te enganes com seu

gênio difícil – continuou aescrava. – Oriana é uma criançaque sofreu muito.

– Ela não gosta de mim.– Ela te disse isso?– Não. É que…– Fizeste algo contra ela?– Claro que não!– És inimiga dela?– De jeito nenhum!– Oriana tem preocupações

muito mais importantes que umvestido. Usa-o, senhora. Eleparece que foi feito para ti.

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Carol tentou recusar agentileza, mas a idosa foiinflexível em sua missão deagradá-la. Também não ajudoumuito a tentação de setransformar em uma princesa…Enfim, a vaidade venceu. Ajovem tomou um banhodemorado, envolveu-se numperfume delicioso, vestiu o trajetirado dos contos de fadas e,para finalizar, sentou-se em umbanco diante do espelho, paraque Belmira enfeitasse comflores minúsculas as váriastrancinhas que tinham sido feitas

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pela cabeleireira do quilombo.– Muitos guerreiros olharão

para ti hoje – disse ela, comuma piscadela.

A jovem forçou um sorrisogentil. Sua angústia a impedia dese sentir realmente bem. Gaelestava a caminho da Citânia,provavelmente para serexecutado; era óbvio queViriato seria condenado à morte;ela e o pai eram prisioneiros dosbrácaros…

– Estás preocupada comViriato – arriscou Belmira.

E, sem esperar a confirmação,

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desandou a falar:– Ele é um bom menino.

Quando algum escravoprecisava de ajuda, era a ele queprocurávamos. Estava numaposição melhor que a nossa, poistambém é guerreiro. Pôdeestudar, sair da Citânia, usa atecnologia moderna que malsabemos como funciona. Edigo-te uma coisa, senhora. ÉViriato quem administra tudoaqui. Quando se ausenta, comoaconteceu nas últimas semanas,esta casa vira um caos.

Um parecer positivo sobre

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alguém tão misterioso deixouCarol menos tensa, o queincentivou a outra mulher aprosseguir.

– Podes imaginar nossoespanto quando soubemos queele não tinha executado aaberração e, pior, protegia acriatura do clã! Nosso tranquiloe quieto Viriato, cometendotraição? Foi uma facada nascostas de todos, escravos ehomens livres.

A última informação fez Carolse empertigar.

– Essa “criatura” de que a

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senhora fala é um garoto muitoespecial – defendeu. – Eu ocriei como se fosse meu filho.

– Um garoto?! – repetiuBelmira, incrédula.

– E, pelo que Viriato me disse,é com o avô que Gael se parecefisicamente.

– Não é possível! – disse aescrava, chocada. – Eu viquando aquilo nasceu. Um…um monstrinho peludo,horroroso…

– Havia uma criança debaixodaquele pelo todo e vocês nemperceberam.

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Belmira balançou a cabeça,pesarosa.

– Então, essa… esse garoto é oúnico neto de Eurico. Queironia…

– Galaor não tem filhos?– Nenhum. E olha que

sempre aparece uma mulherdiferente em seu leito.

Carol pensou que tal ironiadevia ser castigo para uma gentetão arrogante. Belmira ajeitou denovo o cabelo da jovem,disfarçando a ansiedade. Pareciaplanejar uma travessura.

– É costume que todo

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prisioneiro, antes de morrer,receba a visita de uma mulher –contou, com ar cúmplice. –Não gostarias de falar comViriato?

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A

CAPÍTULO 3

Encontros

Salvador

O ACORDAR, Joãosentia dores por todo ocorpo. Uma enfermeira

o fizera, mais cedo, beber umchá preparado com ervasrecomendadas pelos mãos-de-ofá. Tivera muita sorte. Osferimentos não eram graves.

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O que o deixava angustiadoeram as preocupações. Ondeestariam Carolina e Tiago? Antesde ele praticamente desmaiarapós o primeiro atendimento,Nan havia dito que os brácarosos tinham levado, junto comViriato. Mas para onde? Comque propósito? E também seagoniava a respeito de Gael. Oque lhe teria acontecido, e aOriana?

Olhando ao redor do quartosimples, que há bem poucotempo abrigara Viriato, ele viuNan junto à janela. A iorubá

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percebeu que acordara.– Como se sente? –

perguntou, solícita.– Como se tivesse sido atacado

por um porco selvagem – sorriuele.

– Não se aflija por Tiago eCarol – disse ela, vendo ainquietação em seus olhos. –Ainda não tive notícias, mas ocoração me diz que estão asalvo.

João a viu apertar uma pedrabrilhante que trazia penduradaao pescoço, entre os várioscolares. Ia perguntar o que era

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aquilo quando a porta se abriu eum iorubá entrou.

– Akinlana está aqui.Nan fez um aceno afirmativo

e, com uma breve reverência,saiu do quarto. O rei adentrou ocômodo e foi falar com João.

Este se sentiu tímido pelaprimeira vez na vida. Talvez seutemperamento extrovertidoestivesse inibido pela medicação.Ou talvez ele simplesmente nãoestivesse acostumado a receber avisita de reis cuja vida tinhaacabado de salvar.

– Os médicos me dizem que

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logo você receberá alta – disseAkinlana, solene. – Enquantoisso, tem alguma coisa que eupossa fazer? Sou seu devedor,João.

Um sorriso triste pairou noslábios do irmão de Tiago. Sealgo parecido tivesse acontecidohá alguns meses, ele se apressariaa tirar vantagem da situação.Sempre soubera se aproveitardos fatos para obter dinheiro,crédito, contatos. Naquelemomento, porém, só lheimportava a família. O irmão, asobrinha e o sobrinho adotivo…

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até Viriato. Nan achava queestavam bem, mas como elapoderia saber?

Fitou o chefe dos iorubás semsaber exatamente o que dizer.

– Eu sempre… eu nunca… –começou, e logo engasgou.

– Sei que gostaria que euimpedisse seu irmão e suasobrinha de irem – o chefe doquilombo o perscrutou com orosto sério. – Eu também nãogosto da ideia de estarem com ofilho de Eurico. Ele planejamatar o meio-irmão, e suafamília vai sofrer com isso.

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Uma sensação de impotênciaatingiu João. ConsideravaViriato um grande safado, mas –talvez por isso mesmo – haviaaprendido a gostar dele.

– Infelizmente, os clãs quevivem na magia dependem dapaz que o chefe brácaronegociou. É uma paz precária,porém necessária. Se fôssemoscontra Galaor agora, seria umadeclaração de guerra… E umaguerra envolvendo povosmágicos afetaria a nós e aoshumanos de uma forma terrível.Não posso atacar os brácaros

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para salvar sua família, nemmesmo para salvar gente daminha raça.

A decepção do outro o fezsorrir de leve.

– Não desanime. Não vouficar parado enquanto aquelesarrogantes atacam genteinocente. Já mandei mensagens avários clãs. Se houver umaforma de resolver este impasseem paz, vou tentar.

O tio de Carol, desarmadodiante do olhar penetrante deAkinlana, custou a falar.

– Passei minha vida dando

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jeitinhos – murmurou. – Nuncafui de trabalhar ou encarar asencrencas de frente. Sempreprocurei o caminho fácil praresolver as coisas… mas aqui…Estou preso neste lugar, e praviver aqui eu vou ter de mudar,não vou?

– Preso, não. Assim que sarar,tem liberdade de ir para ondequiser – o rei disse, um tantosurpreso. – Quanto a mudar,acho que começou bem. Sejogar na frente de um bichoselvagem para salvar a vida deum chefe de clã foi um começo

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muito bom… Um verdadeirobatismo de sangue.

O iorubá saiu, deixando ohumano com muito em quepensar. Especialmente naquelaexpressão. Batismo de sangue.

HAVIA NO CENTRO DO

MOCAMBO um poço de pedra,remanescente dos tempos idos.Na maioria das casas havia águaencanada, porém o poço erareverenciado por ter sidoconstruído pelos antigos, e aindafornecia água límpida e fresca.

Nan andou até ele, querendo

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experimentar algo. Ouvira certasfrases nos delírios de Viriato,quando ele ainda estava febrilno hospital, que lhe tinhamdado algumas ideias. Queriasaber notícias de Tiago, e suaintuição lhe dizia para tentaraquilo.

Puxou a caçamba que subiucom água do poço, e derramouum pouco numa espécie de piade pedra esculpida que havia emsuas bordas. A água se aquietouno recipiente rústico e refletiu obrilho do sol poente daquelefinal de tarde.

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Instintivamente, soube o quefazer. Com a mão esquerda,tomou a pedra de Oiá e aapertou. Sentiu o calor do otá,que começou a brilhar entreseus dedos. Então, a mulher seinclinou sobre o espelho d’águaque se formara e percorreusobre ele, de leve, os dedos damão direita.

A água tremelicou e assumiu acor vermelha da pedra de Iansã.Ou era apenas a cor do pôr dosol que se refletia ali? Nan tinhadúvidas, mas não deixou queelas se intrometessem. Fitou o

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espelho d’água com fé no orixáde quem esperava proteção.

“Mostre-me Tiago”, pediu.“Mostre-me Carol. Mostre-meViriato.”

O orixá, ou sabe-se lá queforça mágica se manifestavanaquele momento, lhe mostrouo que pedira em ordem inversa.

Viu o rosto de Viriato, triste eainda sujo da lama contra a qualas botas do meio-irmão ohaviam prensado. Estavaconfinado numa cela. ViuCarolina quase a reluzir, numvestido de princesa e com uma

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mulher branca a lhe entrelaçarpequenas flores nos cabelos.Sentiu a força de Oiá a cercá-la,protetora, o que sossegou seucoração. Por fim, viu Tiago. Eleestava confinado também, masnão na cela escura como a quecercava o rapaz brácaro.Encontrava-se num aposentogrande, num banheiromoderno, parecia ter acabadode fazer a barba. E olhava para aágua que enchia a pia diantedele… olhava, abismado… poispodia vê-la tão bem quanto elao via!

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Rio de Janeiro

TIAGO NÃO ACREDITAVA EM

SEUS OLHOS. Desde que ohaviam trancado no quarto,tinha tomado banho e feito abarba, apesar do medo.Imaginara que deveria estarapresentável quando encontrassea gente que mandava naquela talcitânia. Mas não tirara a pedravermelha do corpo; e, derepente, quando ela pendeusobre a pia cheia de água e atocou, ele quase teve um troço –pois acabara de ver o rosto de

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Nan a fitá-lo!Não se afastou. Pegou o otá

com a mão esquerda e securvou para ver melhor. Nãopodia duvidar do reflexo emmovimento na água dentro dapia…

– É você, Nan? É vocêmesmo?

A voz dela veio de longe,falando dentro de sua cabeça.

– Sim, sou eu. Tentei encontrar vocêcom um espelho de água e deu certo!Acho que podemos nos falar desse jeito,enquanto tivermos a pedra de Oiá…

– Como está o João?

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– Está ótimo. Preocupado com vocês.– Estamos bem, nada

aconteceu por enquanto. Só nãovejo nenhuma forma deescaparmos daqui. É umafortaleza com três muralhas,cheia de guardas armados. Estãodizendo que vão condenar oViriato à morte. Até agora, nemsinal do Gael.

O rosto dela estava sumindo,como se fosse feito de tintanegra a se diluir n’água.

– Coragem, Tiago. Akinlana vainos ajudar. E meu coração está juntodo seu.

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Ele quis responder, retribuir,mas a voz lhe sumiu nagarganta. O rosto deladesaparecera, e ele nãoconseguia imaginar o que fizerapara merecer uma mulherdaquelas.

Enxugou as lágrimas quebrotaram e deixou a água escoarpelo ralo da pia. Olhando-se noespelho do banheiro, tratou deassumir um ar mais confiante.

“Carol precisa de mim. Gaelprecisa de mim. Tá, sou só umdono de bar, e passei a maiorparte da vida servindo estranhos

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no balcão. Mas esse povomexeu com os meus filhos, e sequiserem machucar qualquerum dos dois, vão ter de passarpor cima do meu cadáver!”

Infelizmente, ele sabia que nãopoderia fazer nada por Viriato.Tudo indicava que o homemque sua filha amava não iriasobreviver àquela encrenca.

***

CELA NÃO ERA DESCONFORTÁVEL

como eu esperava. Uma únicajanela com grades até permitia

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Aque o sol diminuísse aumidade e o cheiro demofo. Havia uma cama

de pedra, onde me sentei. Nagrossa porta de madeira, haviauma pequena abertura na partesuperior, para os olhos doscarcereiros. Durante um bomtempo, contudo, ninguém meobservou. Apenas no final datarde percebi que me vigiavam,provavelmente avaliando ahostilidade que eu poderiaoferecer. Minha inércia apenascomprovou que a visita não lhescausaria problemas.

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Ela entrou no local,deslumbrante como sempre,projetando a fascinação que meconsumia desde a adolescência.Ou talvez até antes, não melembro. Sempre sonhara comela, desejara seu toque, seuperfume, seu coração.

Shantel desfiou com os dedosuma mecha de seus cabelosloiros e compridos. Eucostumava amar aquele gestocorriqueiro, tão tolo e sensual.Os passos suaves vieram atémim, movimentando o corpoperfeito, delineado pelo vestido

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justo até os quadris. Umaabertura sutil na saia longapermitia vislumbrar as pernasmagníficas. O sorriso de Shantelcriava covinhas em sua facerosada. Os olhos navegavamentre o azul-claro e o escuro.

Não permiti que me beijasse.Evitei seu toque, seu perfume,seu coração.

– O que há contigo? –estranhou ela.

– Senhora, eu gostaria de ficarsozinho – pedi.

Talvez um dia, se eusobrevivesse às próximas horas…

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Talvez eu pudesse enumerartodos os motivos para rompercom Shantel. Mas, agora, sóconseguia sentir a culpa pelapaixão doentia que custara umpreço alto demais.

Shantel acomodou-se em meucolo, obrigando-me a apoiar ascostas contra a parede. Suasmãos deslizaram por meu rosto,pescoço, ombros, tórax…

– Ainda não me recuperei dasurra – eu disse, para justificar aindiferença. – Meus ferimentosdoem.

– Eles parecem cicatrizados

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para mim.– Perdoa-me, não tenho

condições físicas de atender aoteu desejo.

A mentira não foiconvincente. Dedos ávidostocaram meu abdômen, masnão puderam descer além dele.Eu segurei seu pulso comfirmeza.

– É a humana, não é? – disseela, entre dentes.

– Que humana?– Não te faças de tolo!Ultrajada, Shantel se afastou de

mim. Sua respiração vibrava de

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ódio.– Cortaste os cabelos para

agradá-la… – acusou. – Foi porela também que resolveste trairteu clã e proteger a aberração?

Temi por Carol. Seria ela apagar por minha consciência.

– Estás enganada. Eu tepertenço por inteiro e a maisninguém. É que vou morrer,senhora. A proximidade damorte me dá o que pensar.

Não a convenci. Shantel foiaté a porta, mas, ao espiar pelovão, desistiu de sair. Umsorrisinho perverso brincava em

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A

seus lábios.

***

S CONSTRUÇÕES

CIRCULARES da Citâniapossuíam paredes de

pedra bruta e eram compostasde três pavimentos, incluindo osubsolo. A eletricidadealimentava as luminárias emformato de archotes. Naresidência de Eurico, tapeçarias emóveis antigos e pesados, demadeira maciça, se espalhavampelos aposentos e corredores. O

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cobre, o ouro e a prata estavampresentes nos objetos dedecoração, espelhos,candelabros, cálices e pratos. Oambiente emanava luxo erequinte, além de muita rigidez.

Ao descer com Belmira aescadaria para o subsolo, Caroldescobriu o quanto opavimento destoava da áreanobre da casa. Era imundo,irrespirável e mal-iluminado.

Foi o carcereiro que impediuo avanço das mulheres.

– Nossa hóspede veio falarcom Viriato – disse a escrava.

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– Ele já tem companhia –retrucou o carcereiro. – E tusabes quem.

“Shantel”, deduziu Carol,magoada. Como pudera ser tãoingênua a ponto de acreditarque o rapaz estaria sozinho,sofrendo, abandonado numacela escura?

Sem motivo para continuarnaquele lugar, a humana deumeia-volta e, com passosligeiros, retornou ao pisosuperior.

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S***

HANTEL NÃO INSISTIU

MAIS. Após algum tempo,abriu a porta da cela e foi

embora, deixando-me aindamais inquieto. O que elaacabava de aprontar?

Deitei-me na cama de pedra,fixando a atenção no céu quelogo ia escurecer. Pedidesesperadamente à deusa-mãeque protegesse Carol. Aperigosa inveja de Shantel jamaispermitiria que outra mulherrecebesse mais atenção que ela.

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C***

OMO SE PEDIA UMA

AUDIÊNCIA com otodo-poderoso Eurico?

Oriana explicou que outrosgrupos mágicos enviavamemissários para apresentar asolicitação com dias deantecedência, um tempo queGael obviamente não tinha.

O carro que a mãe alugara emPraia Grande parou noestacionamento de umshopping, já na cidade do Rio

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de Janeiro, antes de seguir para aCitânia. Em poucas horas, oprazo concedido por Galaor iaexpirar.

– É óbvio que tua presença éaguardada – disse Oriana,conferindo se havia algumamensagem no novo aparelho decelular. Ela finalmente ouviratodos os inúmeros recados deCarol, agora inúteis. – Vamoscomer alguma coisa.

– Eu preciso de um banho ede roupas novas! – reivindicouAnuk. – Não posso aparecer nafrente do clã inteiro com esta

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aparência de quem andouperdida na selva!

Oriana assentiu.– Devemos mostrar poder

diante daquela gente –acrescentou.

As duas estavam de acordo emalguma coisa?! Gael olhou parauma e depois para outra. Elassaíram do carro, tomando adireção da passagem que aslevaria para as lojas. Gael ficouum pouco para trás, semvontade nenhuma de fazercompras. Preferia que aaudiência ocorresse naquele

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instante, que tudo fosseresolvido de uma vez. A esperafazia seu estômago doer. Sentiafome, mas não tinha vontade decomer. Queria ter dormidodurante a viagem, mas, apesardo sono e do cansaço, nãoconseguira. Nunca pensaraantes, para valer, na morte. Eagora ela não saía de sua cabeça.

Tinha apenas algumas horas devida.

Uma agonia intensa o fezparar, ainda entre os carros doestacionamento. Jamais sepreocupara com o futuro, e

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talvez devesse ter sepreocupado, feito planos,investido em sonhos. Nemmesmo respondera à perguntade sempre: “o que você vai serquando crescer?”. Sempretocara sua existência de modotranquilo, vivenciando um diade cada vez. Nunca encarara,para valer, o fato de que erauma aberração. Agora, nemaberração era mais. Deviaenfrentar o fato de ser ummestiço de brácaro e índio,alguém que não devia ternascido, pelo menos com Rudá

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como pai.– O que eu sou? – disse,

sacudindo a cabeça, sem terninguém para escutá-lo. Asmulheres estavam a metros dedistância e decidiam as lojas aserem visitadas.

Com raiva de si mesmo,concluiu que aquela não erahora para crises existenciais.

– Tu só podes ser o Gael –disse a voz de Anuk.

O adolescente se voltou para aesquerda, de onde viera a voz.Viu uma Anuk com expressãorisonha e olhos sem mágoa do

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mundo, usando um vestidocurto de alcinhas, amarelo-claroe com detalhes em renda, e umpar de sandálias de tiras. Atrásdela, dois guerreiros carregavamsacolas de lojas de grife. Doisdos capangas de Galaor.

Confuso, Gael olhou para aAnuk que conhecia, logoadiante, parando com Orianajunto à passagem ao perceberque ele não as acompanhava. Orosto dela ganhou fúria aoavistar a sósia. Ou melhor, airmã gêmea.

– Você é a Mirele… – disse o

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garoto, recuando ao se lembrardo perigo que os guerreirosrepresentavam.

– Sou sim! Ah, e não precisastemer minha escolta. Hélio eTarcísio recebem ordens deGalaor, e ele te deu uma trégua,não foi?

Os dois adultos, nadainteressados em persegui-lo,assistiam à conversa seminterferir, segurandoplacidamente as compras deMirele. Oriana refez o caminhode volta a passos acelerados. JáAnuk continuava no mesmo

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lugar, sombria.– Eu ia embora, mas posso

tomar um lanche contigo –convidou-se a gêmea boazinha.– Falam tanto de ti que…perdoa-me a curiosidade…queria muito te conhecer!

A mãe os alcançava naquelesegundo. Avaliou a segurançado filho, exibiu a carranca desempre ao receber um sorrisofranco de Mirele e, mesmodesconfiada, acabou aceitando anova companhia.

Tarcísio pegou todas as sacolase foi até o carro para guardá-las.

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Hélio, a postos, acompanhou-osaté a passagem, rumo às lojas.Anuk sumira.

GAEL ERA UM AMOR. Tinhauma conversa inteligente e sabiaser ele mesmo, o que Mireleconsiderava algo raro. Bonito namedida certa, não se escondia natimidez e tampouco sedesvalorizava por ser diferente.Ele escolheu roupas empromoção – uma camisetafolgada e jeans –, evitando que amãe gastasse uma fortuna. Agarota só não gostou muito

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quando o adolescente pediu suaopinião sobre o que comprarpara Anuk.

– Somos gêmeas, só quenunca fomos unidas – justificouMirele. – Nem imagino do queela possa gostar!

Estavam numa loja de roupasfemininas, esperando queOriana, no provador, vestisse aspeças que adquirira. Oguerreiro, no corredor,observava as pessoas quecirculavam pelo shoppingnaquele final de tarde.

– É, a Anuk me contou que

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vocês duas cresceram separadas– disse Gael. – Você com suamãe e ela com o pai.

– Ela te falou isso?– E não foi?– Mais ou menos – corrigiu a

garota. – Na verdade deveria tersido assim, mas acabamos as duasficando mais com nosso pai,porque Shantel nunca tinhatempo para crianças. Claro quetodos os anos tínhamos de passaruns meses na Citânia. Oproblema é que, como Anuk secomporta feito uma selvagem,ninguém suporta viver com ela

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por muito tempo… Então,neste último ano, nossa mãe quisse livrar do incômodo, então adespachou para Tariq emperíodo integral e exigiu que eleme enviasse para cá.

Mirele percebeu que Gaeldemonstrava tristeza ao ouviraquilo, uma reação que ela nãoentendia. Como alguém podiagostar de Anuk? Mirele morriade medo da irmã, sempre erainsultada nas ocasiões em que seencontravam. E concordavacom a opinião unânime entrebrácaros e al-gharbios: a gêmea

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má era uma praga que jamaisdeveria ter nascido.

– Acho que ela vai gostardessas roupas – apostou Gael,tirando de uma arara umaminissaia preta e uma blusa cinzacom estampa de caveirinhas. –Só fica faltando a bota de saltofino.

COM TANTO SHOPPING NO

RIO, aquela insossa da Mireletinha de aparecer justo naquele?De longe, Anuk acompanhou asessão de compras, o jeitoatencioso demais com que a

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irmã tratava Gael, o sorrisosimpático que ele lhe dedicava,o lanche rápido na área dealimentação… Controlando-seao máximo para ser educada,Anuk passou por Hélio, paradoem pé junto a uma doceria, edirigiu-se para a mesa que airmã, a aberração e a mãe deleocupavam. Tanto Gael quantoOriana já usavam suas roupas ecalçados novos, o que lhes davauma aparência limpa ecivilizada. Só Anuk aindaparecia um bicho do mato.

– Comprastes alguma coisa

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para mim? – intimou.– Taí – disse Gael, indicando

com o queixo duas sacolas sobreuma das cadeiras.

E não disse mais nada, nãosorriu para ela, não se importou.Tudo porque ela era a gêmeaerrada.

– Preciso ir ao toalete – disseMirele, levantando-se da mesa.

– Ótimo, vamos juntas! –aproveitou Anuk, pegando assacolas.

A irmã quis desistir, mas aoutra a impediu, puxando-apelo braço. Amedrontada,

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Mirele se deixou levar até obanheiro feminino, ao final docorredor.

– Não vou arrancar teu fígado– garantiu Anuk, após entraremno local sempre movimentado.– Não agora. Aqui hátestemunhas demais.

Mirele se encolheu contra apia mais próxima. A irmã, então,reparou no reflexo das duas noamplo espelho que ia de umaponta a outra da parede. Eramexatamente iguais! Apenas ojeito de ser de cada umamostrava suas individualidades.

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– É muito fácil ser quem tu és– murmurou Anuk, ressentida.– Todos te adoram!

– Estás enganada.– Não me digas! Qual parte é

a mais difícil? Ter o amorincondicional de Tariq ousuportar as bajulações de todosos súditos da Citânia?

A gêmea boazinha endireitouos ombros antes de fitar a outraatravés do espelho.

– A parte mais difícil é vivernaquele lugar horrível –confessou. – Tu deverias serfeliz morando com nosso pai,

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mas nem valorizas isso.As duas permaneceram um

minuto em silêncio, utilizandoseus reflexos para um confrontoque, estranhamente, perdeu aintensidade. Ambas tinhamlágrimas nas faces.

– Vamos trocar de lugar? –propôs Mirele.

Anuk quis rir. Shantel jamaisconcordaria em destrocar asfilhas.

– Não queres saber como éser eu por um dia? – insistiu airmã.

– Passar-me por ti?!

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– E eu por ti.– Não dará certo – desprezou

Anuk. – Nunca conseguirás sercomo eu!

– Ah é? Pois eu duvido queconsigas ser como eu!

– Isso é fácil. Qualquer umpode imitar essa tua cara depaisagem!

– Não desejas mesmo sabercomo é… hum… como dissestemesmo? Ter o amorincondicional de nosso pai?

A irmã hesitou. A propostanão era tão desagradável…Imitar o jeito de se comportar

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de Mirele, a postura, a forma deconversar. Seria, no mínimo,divertido.

– Posso ser uma Mirelemelhor que tu mesma –esnobou Anuk. A outra gêmeafranziu o nariz, em dúvida. –Como ficamos? Temos ou nãoum trato?

GAEL NOTOU QUE ANUK

parecia outra ao retornar dobanheiro. As roupas que eleescolhera combinavam com ela.A maquiagem valorizava osolhos escuros, contornados pelo

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lápis preto, e os lábios no tomvermelho vivo. Simplesmenteperfeita!

Já Mirele, com seu visual deboa menina, trazia um quê dediferente. Mostrava-se maisdesafiadora, mais enigmática…Gael repreendeu a súbita atraçãoque o fazia querer olhar apenaspara ela. Não era certo para comAnuk.

– Devemos ir agora – disseOriana, deixando a mesa.

O guerreiro se aproximoupara acompanhá-los. Gael selevantou e pegou Anuk pela

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mão, entrelaçando seus dedoscom carinho nos dela. Elaretribuiu o toque, ansiosa. Areação de Mirele foi de ódiocontido, o que deixou o garotosurpreso. Não imaginava que elase comportasse como a irmã…

EM SEU DESAFIADOR PAPEL DE

MIRELE, Anuk manteveheroicamente a fachada degêmea boazinha. Ajeitou as alçasdo vestido e conferiu no reflexode uma vitrine os cabelos presospor um arco branco, o batomrosa que mal aparecia e os olhos

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ao natural, sem sequer umpouco de lápis para lhes marcaro contorno… Ai, que coisa semtempero!

No estacionamento, seguiu,comportada, para o carro dosguerreiros, separando-se de Gaele da vontade de trucidar a irmãque agora o acompanhava,agarrada nele! Junto comOriana, eles foram para o outroveículo. O trajeto, no entanto,seria o mesmo, para um mesmodestino: a Citânia de Brácara.

Anuk se acomodou no bancode trás do carro negro. Pelo

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vidro, acompanhou com tristezaa partida de Gael. Queria estarao lado dele quando a audiênciacomeçasse.

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A

CAPÍTULO 4

Banquete

***

Rio de Janeiro, quinze anos antes

REFEIÇÃO ERA FARTA, adistribuição do vinhoidem. Eurico queria do

bom e do melhor para ocasamento da filha. Shantel me

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lançou um novo olhar,cobrando-me com urgência oque deveria ser feito. Tariq eOriana, completamente felizes,riam e conversavam como senão houvesse mais ninguém nosalão lotado. A animaçãomantinha o ambiente leve.Bardos tocavam seus alaúdes,amigos e inimigosconfraternizavam. Nada separecia com a realidade comque eu sempre convivera.

Num dos corredores entre acozinha e o salão de jantar, novaivém de escravos conduzindo

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bandejas, interrompi Belmira,que levava canecas de vinho, eme ofereci para servi-las.Agradecida, ela voltou àcozinha. Escolhi rapidamenteuma caneca e derramei nela oconteúdo do vidro com apoção.

Quando retornei ao salão,caminhando até os noivos, vi orosto de Shantel, iluminado pelaansiedade. Ela acreditava que euvertera a poção na taça destinadaa Tariq. A ser oferecida nomomento certo…

Esbocei um sorriso discreto,

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garantindo que cumpria minhaparte. Contornei a imensacadeira que Eurico ocupava eme aproximei dos noivos, à suadireita. Shantel, ao lado deTariq, tocou meu braço.

Aquele era o momento certo.Ela atraiu a atenção dele eentabulou conversa,assegurando-se de que ele nãotirasse os olhos dela, enquantoOriana respondia às perguntasde um convidado próximo.

Fui servindo quem estava namesa até que a bandeja ficassevazia. Coloquei-me atrás do

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grupo para observar se meuplano funcionaria. Shantel nãopercebera que eu dera a ela ovinho com a poção. Bastava-mechamá-la de repente, ela fitariameus olhos… E a magiaaconteceria.

A prima de Oriana suspendeusua taça para um novo brindeaos noivos, um dentre os váriosque alegravam a noite. Tariqainda a fitava. As pessoaspróximas reagiramautomaticamente ao convite.Canecas erguidas, o movimentode levá-las à boca…

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Do nada, um tumulto naporta do salão alterou asequência dos acontecimentos.

Um rugido feroz ecoou comotrovão, apavorando mulheres,crianças e, secretamente, osbravos guerreiros ali reunidos.Triunfante, o jovem Galaorentrou no local à frente de umacarroça, puxada por quatroescravos. Sobre ela, uma jaulaaprisionava uma enorme onçanegra. O animal rugiu mais umavez. Acuado, agressivo e feridonuma das patas.

Oriana gritou de medo. Tariq

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largou sua bebida para abraçá-la.E o vinho de sua canecatombou, espalhando-se sobre amesa e provocando resmungosde quem era atingido pelolíquido vermelho. Transtornada,Shantel se voltou para mim.Para ela, a poção se perdera…

Procurei me mostrar arrasadocom o fracasso de seu plano. Nofundo, agradeci à deusa peloimprevisto. Agora era só esperarque Shantel bebesse seu vinho egarantir que eu fosse o primeirohomem para quem ela olharia…

– Este é um legítimo jaguara!

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– exibiu-se Galaor, parando nafrente do pai. Na jaula, a onça sejogava contra as grades. – Meupresente para os noivos!

Um índio-onça? Aquela tribolendária existia de verdade? Ofeito de bravura, naturalmente,conquistou vários admiradores.Galaor, envaidecido, enumeroutodos os riscos de uma caçadacomo aquela, em plena florestaamazônica. Ao final de seudiscurso, foi aclamado como omelhor dentre os guerreirosbrácaros, um posto em que abajulação já o colocara havia

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tempos.– Esta onça não é tão perigosa

assim – desdenhou Eurico,quando a ovação diminuiu e seufilho mais velho ainda recolhiaos elogios. – Enfrentei animaismuito mais perigosos quantotinha metade da tua idade.

Estremeci. Shantel olhava,intrigada, para a caneca que eulhe servira. Eu imaginara que,em meio a toda aquelacomoção, sua intuição depraticante de magia nãofuncionasse. Mas a jovemacabava de descobrir que eu

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desviara para ela a poção quedeveria servir a Tariq. Olhou-me com raiva, o que me deucerteza de que me arrependeriapela ousadia de interferir emseus planos.

Enquanto isso, o confrontoentre pai e filho continuava.

– Até onde sei, jamais caçasteum jaguara – disse Galaor,revoltado.

– Porque não caço gatinhos –retrucou Eurico, fazendo umsinal para que os escravosretirassem a jaula do meio dosalão.

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Tariq acompanhava a cenasem dizer nada. Sua mão livreprocurou algo para beber,encontrando a caneca queShantel, solícita, lhe entregou,enquanto chamava a atençãodele com um sussurro.

– Não… – murmurei,correndo para impedi-lo.

Acabei trombando emBelmira, que trazia uma travessaenorme. A bandeja foi ao chão,a escrava também, escorregueina comida e bati violentamentecom o queixo no piso de pedra.Alguns riram, outros nos

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ajudaram a ficar em pé. Galaor eEurico sequer deram atenção aoincidente, mais entretidos emmedir forças.

Quando olhei novamente paraa mesa, Tariq já tinha bebidoum gole do vinho enfeitiçado.Um sorriso em seus lábiosdenunciava a cobiça porShantel, a primeira mulher quevira à sua frente.

– Viriato, estás sangrando –Belmira me alertou, assustada.

Toquei o maxilar inferior,sentindo uma dor absurda. Osangue sujou meus dedos.

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– Não é nada – tentei dizer,mas as palavras não saíram. Otombo me afetara a articulação,talvez eu tivesse trincado amandíbula, algo assim.

Uma onda de espanto efascinação tomou conta daplateia que continuava aacompanhar o diálogo entreEurico e o filho mais velho. Najaula, a onça parara de lutarcontra as grades para iniciar umametamorfose surpreendente. Ocorpo felino perdeu os pelos,dando ao aspecto animalcaracterísticas cada vez mais

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humanas. Quando o processo secompletou, havia ali dentro umíndio jovem e viril, desafiandocorajosamente a plateia com asgarras que brotavam de suasmãos felinas. Ninguém ousavafalar. Mesmo para um povoacostumado com a magia,aquela transformação eraextraordinária.

Na mesa, os assentos de Tariqe Shantel estavam vazios. Meucoração parou quando vi que aprima, antes de sumir com onoivo, tivera o cuidado deentregar sua própria taça à

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noiva. Cambaleei até Oriana,com Belmira tentando medeter, alegando que eu precisavade cuidados urgentes. Tenteifalar, mas minha mandíbula nãome obedecia. Caí de novo,tonto pela dor. Não conseguiavisar minha meia-irmã sobre operigo, evitar que destruísse suavida…

Oriana não reparou em mimou nas pessoas que me acudirame me arrastaram dali parareceber socorro. Nem se deraconta de que o noivo sumira.

Ela apenas segurava a caneca

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de Shantel, agora vazia, com asduas mãos, os cotovelos sobre amesa. Uma expressão absortaignorava tudo e todos paracentralizar no índio-onça aluxúria despertada pela poçãodo amor.

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A

CAPÍTULO 5

Hora da verdade

Rio de Janeiro, nos dias de hoje

CITÂNIA DE BRÁCARA

era exatamente o queGael esperava

encontrar: uma vila celta, tiradade algum momento daAntiguidade para se esconder nomundo atual, sem, no entanto,evitar a contaminação da

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modernidade. Em seu trajeto apé até a casa de Eurico, apósdeixarem o carro num terrenopróximo à terceira muralha, oadolescente avistou guerreiros,vestidos a caráter, falando aocelular. E reparou nos archotesalimentados pela energia elétricapara que ninguém ficasse noescuro naquela noite semestrelas, lua ou qualquer soprode esperança.

Oriana caminhava ao lado dofilho, que continuava de mãosdadas com aquela que acreditavaser Anuk. A suposta Mirele e os

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dois guerreiros os seguiam. Aopararem às portas do grandesalão de Eurico, Gael estacou. Omedo, enfim, tivera sucesso emimobilizar suas pernas.Curiosamente, Anuk não oxingou ou agrediu paraincentivá-lo a prosseguir. Sorriu,tentando tranquilizá-lo. Atrásdeles, Mirele se remexia, comose lutasse consigo mesma paranão interferir.

– Droga… – murmurou ogaroto, sem nada melhor paradizer.

O toque dos dedos frios de

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Oriana em seu braço foi umatentativa de lhe passar segurança.Mas a mãe tremia, nervosademais para se controlar. Gaelapertou com carinho a mão delacontra a sua.

Enfrentariam juntos ospróprios medos.

– Vem – disse o garoto, comum sorriso. – Está na hora dagente entrar.

***ADEADO POR DOIS GUERREIROS,

atravessei o corredor das celasaté os primeiros degraus da

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Lescadaria para o pisosuperior. Enfim, eu forachamado para a audiência

com Eurico.Para meu espanto, Shantel

surgiu neste momento e,apressada, desceu os degrauspara vencer rapidamente adistância que nos separava. Elame abraçou pela cintura, e seuniu a mim com uma paixãoque não disfarçou diante dosguardas.

– Tu me pertences! –sussurrou, seus lábios tocando osmeus para um beijo que não

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permiti nascer.Naquela hora havia nela uma

falta de controle sobre si mesma,o que desesperava aquelamulher nascida para manipularmentes e corações, para servenerada e temida. Não reagi,simplesmente porque não sabiacomo. Seria possível que elasentisse amor real por mim? Ouestava tão acostumada a mepossuir que não queria abrirmão do escravo?

– Não quero que morras.Shantel tocou meu rosto com

suavidade e depois se afastou

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para erguer minha mãoesquerda até a altura de seucoração. Tirou de dentro docorpete do vestido uma adaga,que usou para fazer um corteem meu pulso e, a seguir, emseu pulso direito.Imediatamente, o sangue jorroude nossas veias, misturando-secomo se fluíssem de um únicoser vivo.

Os dois guerreiros,amedrontados, recuaram. E seumedo se transformou em pavorquando a mais poderosa dasdruidesas evocou um feitiço.

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Suas palavras soaram como umamistura do gaélico irlandês como idioma celta-ibérico,enquanto ela prendia nossospulsos com um lenço brancoque logo se encharcou desangue.

Senti-me zonzo, fraco… Oexcesso de sangue saturou olenço, pingando sobre osdegraus para formar uma poçaque deslizaria até meus pés.

As palavras da druidesagiravam à nossa volta, isolando-nos dos guerreiros, do corredor,das celas, da escadaria, do piso

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superior, do salão onde Euricome condenaria à morte…

Ela tentava me salvar?“Não”, resisti, fechando meus

olhos. A imagem de Gaelnasceu embaçada em minhamente. Tornou-se mais fortequando o amor me trouxe osorriso de Carol… Pensei emOriana, a irmã que eu não podiaabandonar novamente. Penseiem Tariq e nos dois humanos,Tiago e João. Pensei em mimmesmo, no quanto eu mudaranas últimas semanas.

O sangue que me abandonava

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não era apenas meu, era deCarol. Eu recebera umatransfusão que me devolvia ahumanidade.

– Não! – afirmei comconvicção, erguendo aspálpebras para fitar Shantel.

No mesmo instante, aspalavras mágicas cessaram e osangue interrompeu seu fluxo.Puxei o braço preso no lenço,libertando-o sem qualquerdificuldade. O corte no pulsodesaparecera.

Eu não disse mais nada.Apenas contornei Shantel para

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subir o restante dos degraus,quebrando o círculo invisívelque nos protegia. Os doisguerreiros, espiando avermelhidão sinistra quemarcava a escadaria, não semexiam. Eu teria de ir sozinhoaté a audiência. Até minhaexecução.

– Estás enganado – ainda ouviShantel, que segurava a adaga eo lenço ensanguentados. – Nema morte pode nos separar.

***

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AS CONVERSAS DIMINUÍRAMBRUSCAMENTE

quando Gael entrou nosalão lotado. Oriana se

empertigou, fazendo de contaque não havia ninguém nolocal. Já o garoto observoutodos os rostos que oencaravam, mais curiosos queagressivos. Os brácaros estavamem pé, formando grupinhosaqui e ali, e foram abrindopassagem para os recém-chegados até que estes pararamdiante de uma enorme cadeira,muito antiga, disposta sobre

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uma plataforma. O trono que opoderoso Eurico assumiria, tãologo aparecesse no salão.

Após o silêncio opressivo,vieram os cochichos da plateiainteressada em fazer comentáriossobre a famosa aberração queagora podiam espiar ao vivo eem cores. Cochichos queaumentaram de intensidadequando a outra celebridade domomento entrou no salão,vindo de uma porta lateral, e sepôs ao lado da plataforma.

Viriato estava muito abatido.A camiseta e a bermuda folgadas

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evidenciavam que emagrecerabastante. Na verdade,destacavam o que, para osbrácaros, era inadmissível: ummembro de seu povo dispensarao visual de guerreiro para seapresentar como alguémcomum, um humano. Para ele,os olhares foram de indignação.

Gael sorriu para o tio, mas estesequer o olhou. Manteve acabeça baixa, consciente dareação coletiva de repulsa quesua presença causava.

Novo silêncio, desta vezsolene, anunciou a entrada de

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Galaor e do pai. Este vinhanuma cadeira de rodas,conduzida por uma jovemescrava. Oriana se comoveu aorever naquela situação umhomenzarrão que já fora o maisforte de todos os guerreiros.Eurico era pele e ossos,aparentava bem mais que suaidade real, consumido por umadoença que o fazia minguardolorosamente. Encurvado, acabeça pendendo para aesquerda, ele sumia dentro desuas roupas de guerreiro. Umatímida penugem rodeava de

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modo espaçado sua nuca,ocupando o lugar do que antesfora uma vasta cabeleira.

Quando a cadeira de rodaspassou por Gael, ele notoumarcas pontilhadas queformavam um círculoimperfeito no alto do crânio dolíder brácaro. Este sofrerarecentemente alguma cirurgiano lado direito do cérebro, oque parecia explicar aimobilidade da parte esquerdade seu corpo. Imaginou sealgum tumor fora extraído.

Com dificuldade, a jovem

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escrava transferiu Eurico para otrono. Apesar de estar magro,ele era alto, possuía ossospesados, e a imobilidade parciallhe conferia mais peso. Galaor,que usava roupas de gala e umapesada capa negra, presa por umbroche de ouro, posicionou-se àdireita do pai, dirigindo a Gaeluma expressão feroz.

Mas o adolescente estavaansioso demais para se importarcom a ameaça. Aquela era aprimeira vez que fazia contatovisual com o avô que mandaraexecutá-lo, um momento que o

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V

emocionava e também odeixava imensamente triste.

Surpreso, não enxergou vidaalém dos olhos claros de Eurico.Ali só existiam ódio e amargura.

***

I O ROSTO ENDURECIDO

DE MEU PAI. A presençado único neto, aquele

que seria seu herdeiro natural,não lhe evocava qualquersentimento. Com as costas damão, enxuguei as lágrimas quedeslizavam até meus lábios,

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xingando a mim mesmo pordemonstrar meus sentimentos.

Os dois humanos foramtrazidos naquele instante aosalão, o que desviou porcompleto a mente de Gael. Elelargou as mãos de Oriana e dagêmea para correr até a famíliaadotiva, uma felicidade imensaque não pôde conter. Carol oabraçou primeiro, recebendo oabraço de Tiago sobre eles.

Sorri. Era como observar umconjunto pulsante, com seuslaços de amor, solidariedade,ternura. E coragem. Formavam

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um elo que Eurico nãoconseguira formar com ospróprios filhos.

Olhei novamente para meupai. Ele jamais entenderia deverdade o que unia seu neto eos humanos.

– Aberração! – intimou ele,com sua voz enfraquecida.

Precisou repetir o chamadoalgumas vezes até que Gael,fungando, retornasse para pertoda plataforma. Mas não semantes perguntar pelo tio, quesoube pelo pai adotivo terficado no quilombo. Os

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humanos acompanharam ogaroto, endossando o apoio quea mãe, Anuk e até Mirele já lhetransmitiam. Carol, agora quasea meu lado, preferiu me ignorar.Estava belíssima em um vestidoque pertencera a Oriana.

– Onde está Shantel? –cobrou Eurico.

Galaor fez uma careta ao notara ausência da esposa. Depois,mandou Anuk ir procurar amãe. A adolescente, apesar davontade de permanecer pertode Gael, acabou obedecendo,numa docilidade que me

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surpreendeu. Um segundo maistarde e Mirele já ocupava a vagadeixada pela irmã.

– Não pretendo ficaresperando pela druidesa – disseEurico, bastante contrariado.Seu olhar avaliava Gaelfriamente.

Dei um passo à frente,tentando atrair sua atenção.Consegui.

– Senhor, peço tua permissãopara contar tudo o querealmente aconteceu – pedi,sem que minha voz vacilasse.Ao menos diante da morte eu

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demonstraria que ainda era umbrácaro, que a coragem de nossaraça também existia dentro demim.

Estava pronto para revelar averdade a todos.

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C

CAPÍTULO 6

Ritual

OMPORTAR-SE COMO

ANUK era muito maisdifícil do que Mirele

podia imaginar. Bem que elatentou ser desobediente edisparar contra Galaor alguma

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tirada sarcástica, mas acaboudando de ombros e seguindo aordem para ir atrás de Shantel.Passou pelos guardas numa dasportas do salão e saiu para ocorredor. Com exceção da mãe,todo mundo parecia estar naaudiência de Eurico. A garotanão viu absolutamente ninguémpelo caminho, o que lheprovocou um calafrio.

Shantel não estava emnenhum de seus aposentosparticulares. A próxima paradaera o templo, um lugar quedava em Mirele ainda mais

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calafrios.Trêmula, ela parou diante da

enorme porta dupla, trabalhadacom espirais em relevo sobre amadeira. Era difícil engolir omedo de entrar…

– Anuk teria coragem! –lembrou, acionando a maçanetanum impulso.

As dobradiças rangeram, umsom que ecoou de modosinistro. Mesmo tremendo, aadolescente se forçou a dar umpasso de cada vez. O ambienteera amplo, envolto naescuridão… Mas ela percebeu

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que o templo fora modificado.Três velas ardiam sobre umagrande mesa de pedra. Nocentro do recinto, haviapequenos menires circundandooutro, maior, coberto de ouro eprata. Shantel, em pé diante damesa, virou-se para a filha.

O que Anuk diria nummomento como aquele? Seriagrosseira, certo?

– Tu vais ou não praaudiência? – atacou, imitando apostura arrogante da irmã. Ah,sim, faltava uma dose de ironia.– Galaor está ansioso por tua

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companhia.Shantel fechou as

sobrancelhas. “Fiz igual aAnuk”, comemorou umpensamento de Mirele. “Equem disse que eu não iaconseguir, hein, hein?”

Foi apenas quando estavapróxima demais para escaparque a garota viu o sangue nasmãos da adulta e em parte deseu vestido. Uma adaga e umlenço, também ensanguentados,estavam dispostos comooferendas junto ao menirprincipal.

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– Vieste na hora certa, Anuk –disse a mãe, prendendo-afirmemente pelo braço. – Euestava mesmo pensando em ti.

COMPORTAR-SE COMO

MIRELE era muito mais difícildo que Anuk podia imaginar.Bem que ela tentou exibir umrostinho angelical para Eurico eGalaor, mas acabou centrandoneles um olhar furioso,incompatível com a personagemmelosa que deveria interpretar.

Por sorte, nenhum dos doisreparou em sua péssima atuação

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como a gêmea boazinha. Ofoco de interesse geral estava emViriato, o escravo que Anukodiava. Não que ele tivesse feitoqualquer coisa para atingi-la.Pelo contrário, sempre a trataracom respeito. Ajudava-a a fugirà vigilância da mãe para treinaresgrima com o mestre-de-armas.E se mantinha por perto paraevitar que Galaor ficasse a sóscom qualquer uma das gêmeas,quando elas entraram napuberdade. Ainda a ensinara aapontar a lâmina afiada daespada para a garganta do

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padrasto quando este seaproximava demais…

O ódio contra Viriato tinhaoutro motivo. O escravo era oúnico ser vivo a quem Shanteldedicava algum tipo de amor,algo que nem mesmo as filhaspuderam obter. Isso machucavaAnuk. E lhe dava razão parahumilhá-lo sempre que podia.

Estranhamente, no momentoem que deveria estar feliz porvê-lo em desgraça, Anuk sóconseguia pensar no quanto elecuidara dela, protegendo-a nãoapenas da cobiça de Galaor, mas

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também da truculência deEurico e, claro, do ostensivodesprezo materno. TalvezShantel o amasse porque pareciaser o único, entre eles, a tercoração.

Viriato pigarreoudiscretamente, procurandoclarear a voz que nasceuinaudível. Ia começar seudepoimento quando um novoespectador surgiu no salão.

O CORAÇÃO DE ORIANA

DISPAROU. Tariq deixou paratrás os dois guerreiros al-

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gharbios que o acompanhavame venceu rapidamente adistância até a plataforma,saudou Eurico com umareverência orgulhosa e seposicionou ao lado da ex-noiva.

– O que fazes aqui, Tariq? –irritou-se o líder brácaro. – Nãofoste convidado para estaaudiência.

A idade adulta amadurecera oencanto do adolescente queOriana conhecera havia tantotempo. Tariq estava ainda maisbonito do que se lembrava, maisseguro de si, mais tudo que ela

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admirava.– Desejo apenas confirmar

minha teoria – respondeu ele,enigmático, evitando alardearque sempre estava muito bem-informado sobre tudo que sepassava na Citânia.

– Que teoria? – disse Galaor.– De que certa viagem à

Galiza está relacionada com anoite do meu fracassadocasamento.

Viriato perdeu a pouca corque restava em sua face.Retrocedeu um passo, quaseperdendo a coragem que o

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guiara até ali. A meia-irmãtrincou os dentes para nãoxingá-lo de covarde. Se elevoltasse atrás e não admitissediante de todos aquilo que lheconfessara quando a procuraraem Curitiba…

– Creio, Eurico, que teubastardo pode nos contarmelhor esta história – disseTariq, mordaz. – Não é mesmo,Viriato?

***

ÃO, EU NÃO IA DESISTIR. Mais uma

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Nvez pigarreei,procurando ganhartempo para resgatar

minha coragem. Todos meolhavam, e apenas uma pessoame dava força para prosseguir:Gael. Era o único que acreditavaque eu podia ser inocente.

Mas eu não era.Comecei falando da viagem à

Galiza, quando procurei a brujaquerendo a poção do amor, queusaria para seduzir Shantel.

– Magia proibida… –murmurou Eurico. – Comoousaste trazer uma poção dessas para

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minha casa?Omiti a culpa de Shantel.

Disse apenas que a taça que eudestinara a ela acabou semquerer nas mãos dos noivos.

Também não contei que, logoapós se saber grávida, Shantelme fez seu amante, exigindo emtroca o silêncio sobre a poção,algo que o meu próprio medode ser punido já haviaprovocado. A mulher que euadorava marcou sua posse sobremim, ao ceder de boa vontadeo prazer que eu tentara obteratravés da magia…

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E me tornou duplamenteescravo.

Oriana respirou fundo. Suareputação de jovem honradaseria enfim restituída. Algunsbrácaros já começavam aenxergá-la com outros olhos.

– Tive medo de sercastigado… – prossegui. – Edeixei que a vida de Orianafosse aniquilada. Vi seudesespero e não fizabsolutamente nada. Nãoimpedi que o amor entre Tariqe ela fosse soterrado pela traiçãomútua.

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O casamento fora anulado ummês após Oriana libertar Rudá efugir com ele, o tempo quedurara o efeito da poção quetambém tinha unido Tariq eShantel. Os guerreiros somentehaviam encontrado minha irmãtempos depois, vivendoescondida entre os humanos, e alevado contra a vontade para aCitânia. Ela ostentava umagravidez tão avançada quanto ada prima.

Sua desgraça, ironicamente,aumentara ainda mais ainfluência de Shantel sobre

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Eurico. A sobrinha preferida,mais amada do que a filha, deraà luz rodeada por parteiras emédicos, enquanto Oriana tiverasua criança nos aposentos dosescravos, assistida apenas porBelmira.

Por ordem de Eurico, minhairmã sequer pudera ver o filho.E, por sugestão de Shantel, eleme fora entregue, dias após seunascimento, para ser executadoo mais longe possível da Citânia,para que a vergonha de Orianafosse ocultada.

– Ninguém pode lutar contra

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o poder da poção do amor –disse Galaor, pela primeira vez,em muitos anos, demonstrandocompaixão pela irmã. – Ela foiuma vítima. Quanto a ti… – avontade de me trucidar setornou mais que evidente – …tu és um… Ah, não existempalavras para definir o atorepugnante que…

Concordei. Eu não merecianem uma gota de misericórdia.

– Dizes, então, que Shantel eeu bebemos por acidente oconteúdo da taça – retomouTariq, desconfiado.

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– Ela não iria contigo para oleito se não fosse pela poção –menti, repetindo a mentira quetambém contara a Oriana.

No final das contas, eu sempreprotegeria Shantel.

Após o nascimento dascrianças, ela consolidara suaposição como druidesa, tornara-se conselheira de Eurico eforçara o tio a propor ocasamento dela com seuherdeiro. Galaor obedecera,apesar de saber bem que ela nãolhe seria fiel.

Com amargura, me dei conta

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de que eu jamais provara afelicidade.

– Não há mais nada quequeiras confessar? – instigouTariq.

Claro que havia. Tudo aquilome torturava, mas a pior dasculpas estava no ato quepraticara por ordem de meu pai.Deusa, o que eu fizera?

Arremessara uma criança àmorte.

E vagara protegido em meupróprio universo, sem sentir,sem pensar, sem lembrar. Agora,porém, sentia-me sufocar com o

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choro que brotava por dentro.Lágrimas não vertidas que semisturavam ao sangue de Carolem minhas veias…

– A criança sobreviveu àexecução, mas eu não contei aninguém. Menti para o clã,deixei que Oriana pensasse queo filho estava morto. O senhorEurico me tornou guerreiroporque achou que… Eleconfiou em mim, acreditou nasminhas mentiras. E eu recebibenefícios que nenhum escravojamais conseguira antes.

Ajoelhei-me diante de meu

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pai. Não me importava emmorrer ali: eu morrera muitoantes.

– Traí tua confiança, senhor…– disse, submisso à vontade deEurico. – E estou pronto parareceber minha execução. Sópeço que poupes a vida deGael. Ele nunca foi umaaberração. Tem a coragem deum brácaro… Tem o teu sangue!

Eurico sequer pestanejou.Não mudaria a sentença que

dera há catorze anos.– Mereço a pior das mortes,

senhor – insisti. – Mas o

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menino… Ele não tem culpa deter nascido, de ser uma dasconsequências dos meus erros. Éinocente!

– Já falaste demais! – rosnouGalaor, avançando em minhadireção.

Com um murro em minhascostas, ele me dobrou sobre opiso, obrigando-me a deitar acabeça sobre a plataforma.

– E então, pai? – cobrou, apósretirar a espada da bainha. – Jáposso degolar este imprestável?

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E***

Salvador

RA NOITE FECHADA

quando os visitantescomeçaram a chegar ao

quilombo. Os primeiros forammembros de outros clãsafricanos, mas logo uma enormedelegação de índios avançavapelo mocambo principal. Pelosadornos, via-se que pertenciama diversas etnias.

Akinlana sorriu e foi abraçar ochefe indígena que comandava

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todos os grupos, um kamayuráalto e moreno, de cabelosnegros muito longos.

– Bem-vindo, Iwati, velhoamigo. Chegaram antes do queeu imaginava.

– Deixamos o Xingu faz setedias. Quando teu mensageironos alcançou, estávamos acaminho. Os pajés nos avisaramque devíamos nos preparar paraa guerra.

O rei iorubá o levou para suacasa, enquanto os guerreiros aseu serviço ajudavam os demaisrecém-chegados a se instalar.

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– Ainda não estamos em pé deguerra. Eu quero justamenteevitar um confronto com osbrácaros, se for possível. O quemais seus pajés disseram?

– Viram em sonhos o pedidode ajuda de nosso irmão Rudá,dos jaguara. Ele pôs em alertatodas as tribos escondidas namagia. Acha que os perós vãomatar seu filho.

Aquilo fez Akinlana pensar.Conhecia Rudá, um guerreiroque deixara a tribo dos homens-onça na Amazônia para viver nosudeste, com os tupinambás,

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pois tomara como amante a filhado líder brácaro. Uma desonrapara índios que continuavam aalimentar séculos de temor eressentimento em relação aocolonizador português.

Akinlana deixou Iwati aoscuidados dos familiares e foireceber outro clã que chegava.Surpreso, viu entrar no recintouma delegação de al-gharbios.Estranhou, porém, não ver olíder entre eles. Um homemque não conhecia veioencontrá-lo e fez umareverência.

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– Saudações, líder iorubá. SouHanef, e vim ao seu encontropor ordem do chefe de nossoclã. Tariq teve de ir à Citânia deBrácara. A situação lá seagravou, e ele me pediu queexplicasse aos clãs o que estáacontecendo.

O rei assentiu. Explicaçõesseriam bem-vindas.

Lembrou ainda que a situaçãoafetava os humanos queabrigara, e mandou um parenteir buscar João. “É bom ter aquialguém que represente os povosque vivem fora da magia”,

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refletiu.Quando todos os líderes já

estavam sentados em círculo nosalão da casa, tendo comido ebebido, Nan apareceu,amparando João. Ele parecia umpouco melhor.

Akinlana ia iniciar a reunião.Ergueu a mão direita, pedindosilêncio, porém os doisguerreiros de guarda na portalhe fizeram sinal de queesperasse. Ele aguardou,enquanto os iorubásintroduziam na casa mais duaspessoas. Os desconhecidos

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curvaram-se, cumprimentandotodos os presentes. Usavamlongas capas verdes, comcapuzes que lhes ocultavam osrostos.

Um frêmito percorreu aassembléia, e todos os líderesretribuíram a saudação. O reinotou que apenas os al-gharbiosnão pareciam surpresos diantedos dois. Ele mesmo sabia quemera aquela gente, mas jamaisesperara vê-los ali.

Rio de Janeiro

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UM AR GÉLIDO SE IMISCUÍA naatmosfera do templo.

Uma tremenda dor nasceu nosdedinhos dos pés de Mirele epercorreu todo o seu corpo, atéa nuca. A gêmea boazinhatentou gritar, dizer à mãe quenão era Anuk, mas algo invisívela sufocava, como se arrancassesuas entranhas pela garganta.

Shantel a deitara junto daadaga e do lenço cheios desangue, recitando sem parar umaladainha ininteligível em línguaantiga.

Estava pronta para iniciar a

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etapa seguinte de um ritual querecebia mais uma oferenda.

– EI, ESPERA AÍ! – interferiuGael, num salto, colocando-sena frente de Galaor. – O carafalou a verdade e a punição deleé a mesma que se não tivessefalado?

Galaor não fez nada além derosnar baixinho. Estavaimpedido de tomar qualqueratitude que não fosse expressapor Eurico.

– Olha, tudo bem se vocêsnão gostam de mim –

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continuou o garoto. – Mas senão fosse pelo erro do Viriato,eu não teria nascido. E nem aAnuk e a Mirele!

O avô não movia nenhummúsculo da face, nada alterava acarranca de ódio inigualável.Gael se voltou para Oriana.Pálida, ela alternava o olharentre a espada nas mãos doirmão e o filho imprudente quepoderia ser atingido pelomesmo golpe que mataria o tio.

– Mãe, diz pra eles… Vocêestá arrependida de me tercomo filho?

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Apesar do visível temor pelasegurança do garoto, ela sorriupara apoiá-lo.

– O passado… é o passado –ela respondeu. – Tenho orgulhode ser mãe de Gael.

– E você, Tariq? Você mesmodisse que ama suas filhas. Elasnão foram o lado bom de todaessa confusão que meu tioarrumou?

– Amo Anuk e Mirele maisque tudo na vida – dissecalmamente o líder al-gharbio,reservando para a gêmea umolhar paternal. Sem saber como

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lidar com aquilo, a garotabaixou a cabeça. Pareciaconfusa. E emocionada.

– Viu só, Eurico? O Viriatoerrou, mas, caramba! Por quevocê não manda ele fazer algumtrabalho comunitário e pronto?É óbvio pra todo mundo queele está sofrendo com a própriaculpa. Uma coisa que perdãonenhum pode aliviar… Paraque castigar o coitado aindamais?

– Dizes tolices, aberração –resmungou Eurico.

O rumo da conversa o

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entediava. A cabeça de Gael,sem dúvida alguma, integrariasua próxima ordem para degola.O garoto suspirou, sem maisnenhum argumento inspiradopara apresentar. Se nada surtiaefeito, a solução era se anteciparao inevitável.

Com toda a calma possível,Gael puxou o antebraço deGalaor e encostou a lâmina daespada em seu próprio pescoço.Morrer no lugar de quem,indiretamente, lhe dera vida,soava como um ato justo nomeio de tanta intolerância.

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– Querem me matar? – disse,encarando o outro tio bem nosolhos. – Não tem problema,desde que vocês poupem a vidado Viriato.

– NÃO! – GRITOU ORIANA,

desesperada.Tariq a segurou antes que

também se pusesse no caminhoda espada. Tiago precisou serdetido pelos guerreiros maispróximos ao trono para não sejogar sobre Galaor. Carolsoluçou. Viriato tentou fazer-seouvir, implorando pela vida do

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sobrinho.Sua voz foi abafada pelo

burburinho que percorreu osalão, para cessar no segundo emque Galaor, pela primeira vez navida, hesitou em matar alguém.Aturdido, o herdeiro se voltoupara o pai. A expressão no rostode Eurico continuavaimperturbável.

Anuk se esqueceu de fingirque era Mirele, queprovavelmente se debulharia emchoro, e ficou firme, admirandoainda mais o garoto mestiço. Aúnica forma de conquistar o

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respeito do clã era agirexatamente como ele estavaagindo. Provando que tambémera brácaro. E dos mais nobres.Nenhum guerreiro ali presenteteria a audácia de confrontarGalaor e, de quebra, oferecer opróprio pescoço para salvaroutro.

– Executa logo essa aberração– ordenou Eurico, indiferente.– Ela fala demais.

FALTAVA POUCO… O feitiçodominava por completo adruidesa, como deveria ser.

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Palavras disparavam conexões,fermentavam o desconhecido.Produziam o efeito quecobiçava. Linhas esverdeadas demagia começavam a circular noambiente.

O sopro de vida iria alimentá-lo. Sopro arrancado dasentranhas da filha que uma mãesacrificava. Para Shantel, Anukjamais faria falta.

Havia sangue, havia vida…Faltava apenas a carne.

Uma última oferenda para queele ressurgisse.

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SEM PODER EVITAR, Galaorsentiu-se dividido entre aadmiração e a honra por abateralguém tão corajoso. Ele matariaum jovem guerreiro, não umanimalzinho acuado, escondidoatrás da saia da mãe.

Solene, jogou para trás a capanegra e ergueu o braço com aespada para cumprir a ordem dopai.

Guardas afastaram as pessoaspróximas. A falsa Mirele,Oriana, Tariq, Tiago e Carolforam arrastados para longe.Num semicírculo, diante do

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líder brácaro havia agora apenasseus dois filhos e o neto.

Viriato, ainda prostrado nochão, mal parecia respirar.

E Gael permanecia à espera damorte, sem desviar os olhos deseu carrasco. Este imprimiu maisforça ao punho da arma. Oolhar do garoto parecia camuflarum espírito superior… “Ele nãotem medo”, gritava o raciocíniode Galaor.

Como não tivera medo aoconfrontá-lo por telefone, de vira uma audiência mesmosabendo que sua vida estava em

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perigo. Galaor não lidava comum monstrinho a ser eliminadopor uma questão de honra.

Aquela criança era o filho deOriana… Tinha seu sangue!

Um menino que nãodesperdiçara anos e mais anostentando conquistar o amor dopai simplesmente porque afamília adotiva o amava deverdade. Que crescera distantede surras covardes, dehumilhações diante do clã, decobranças absurdas para seralguém que jamais poderia ser.

Gael tivera a sorte de crescer

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longe de Eurico.Num gesto cansado, Galaor

devolveu a espada à bainha. E,apesar da estupefação geral,inclusive da própria vítima,afastou-se da plataforma para sairdo salão. O povo abriu espaçopara deixá-lo passar.

– Galaor!!! – gritou o pai,possesso.

Ainda na metade do caminho,o guerreiro interrompeu o passoe se voltou para quem ochamava. O esforço em elevar avoz provocava em Eurico umacesso de tosse.

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– Estás morrendo, pai – disseGalaor. – E mesmo assim queresmatar teu único neto?

– Eu… eu te dei umaordem… – murmurou o outro,com dificuldade.

– Não tens mais poder sobremim. Cansei de fazer tudo parate agradar! Tornei-me igual a tipara que tivesses orgulho demim, mas de nada adiantou.Pois olha bem para teu neto: é oúnico que terás. Devias terorgulho por ser avô de alguémtão nobre.

– Cala-te!

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– Se não, o que farás?Pretendes me moer de pancadascomo fazias quando Oriana e euéramos crianças? Sabes, lembro-me bem de uma surra emespecial…

Nem mesmo a presença desua gente no local o intimidariaa revelar a mágoa sem qualquerreserva. A irmã o fitava demodo compreensivo, ecompreensão era algo que oguerreiro não recebia há tempodemais. O meio-irmão, já empé, olhava-o com respeito.

– Eu tinha oito anos e estava

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com caxumba – disse ele,apontando o dedo indicadorpara o pai, que finalmenteparava de tossir. – Mas isto nãote impediu de usar o cinturãoem mim. E eu piorei, pioreimuito. Foi graças àquela doençamaldita que me tornei estéril…Nunca pude te dar um neto,gerar meu próprio herdeiro. Portua culpa!

Eurico recuperara a faceodiosa para lidar com a rebeldiado filho.

– Eu te dei uma ordem –repetiu, secamente.

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Um líder brácaro jamaispoderia ser questionado oudesobedecido. Galaor, porém,não via mais sentido em manteruma relação paternal que só odestruía por dentro. Preferiudesacatar abertamente aautoridade que não respeitavamais, retomando a caminhadaem direção à porta principal.

– Ei! – chamou alguém,correndo atrás dele. Era Gael.

O outro parou apenas nocorredor exterior, que estavadeserto.

– Só queria dizer que… –

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prosseguiu o sobrinho, quandoo alcançou. Não sabia como seexpressar. – Obrigado. Se vocêquiser ser meu tio, da minhaparte tudo bem.

O guerreiro franziu a testa.– Já sou teu tio – resmungou.– É.Nenhum dos dois tinha ideia

do que dizer naquele momento.– Ele ainda está decidido a te

matar – Galaor murmurou,afinal. – E tem dezenas deguerreiros para cumprir a ordemque eu recusei.

– Eu sei… – foi a resposta do

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garoto. – Mas preciso voltar pralá.

– Sim.– Então… ahn… tchau!O guerreiro olhou, mais

admirado ainda, o filho deOriana andar resolutamente devolta ao salão, onde o esperavama execração pública e a morte.Imaginou se ele mesmo teriaessa coragem, no lugar doadolescente.

Quando Gael ia atravessar asenormes portas de madeira,porém, elas se fecharamsozinhas, com estrondo. Uma

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A

força invisível o empurrou demodo violento para o corredor.

No mesmo minuto, todas asluzes existentes na Citânia deBrácara se apagaram.

Aquilo cheirava a magiaproibida.

“Shantel!”, deduziu Galaor,furioso.

***

S PORTAS DO SALÃO

foram trancadasmagicamente,

prendendo todos os presentes

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no local. A escuridão nos isolouainda mais do restante domundo. E, pelo menos paramim, trouxe uma sensaçãoangustiante que me cobriucomo uma mortalha gelada.Senti as correntes de magiacirculando. Algo muito forte,que jamais sentira! Ergui ocorpo, lutando para melibertar…

Quando dei por mim, nãoestava mais na audiência. Omesmo feitiço poderoso quefechara o salão acabava de mearrastar para outro lugar.

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À minha frente, a superfícieem ouro e prata do menirprincipal refletia a luminosidadedas três únicas velas do ambientecercado pelas trevas. Brilhosmais fracos, linhas tênues demagia esverdeada, tocavam comveneração os doze pilaresmenores ao nosso redor,movendo-se ao sabor daschamas. Reconheci o templo,apesar de tudo ali estar diferente.

Anuk, caída no chão a meuspés, parecia em estadovegetativo. Um tom brancodominava sua pele, conferindo-

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lhe o aspecto do mármore. Elavivia, mas não vivia.

Vi marcas de sangue sobre opiso… Meu sangue.

– Estava esperando por ti,Viriato – disse Shantel. – Ésminha última oferenda.

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A

CAPÍTULO 7

O novo líder

O PERCEBER que caíade costas, Gael usou oscotovelos para não

bater a cabeça no chão. Tudo

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ficara escuro de repente.– Também tem apagão aqui, é?– reclamou, achando que algumbrácaro grosseiro lhe fechara aporta no nariz.

– Uma magia poderosatrancou a todos no salão – disseGalaor.

– Sério?– Estamos sob ataque.Gael se voltou para o corredor

que levava ao interior do casarãoe da fortaleza e fitou as grandesjanelas que lá havia; mas nãovinha nenhum ruído doexterior. Um ataque? E agora o

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tio, no escuro, apalpava asportas, como se… o ataqueviesse lá de dentro?!

– Não é um ataque normal,garoto. Enfrentar guerreirosarmados é uma coisa, lutarcontra forças invisíveis é outra.Esta entrada foi selada pormagia.

Ainda no chão, o filho deOriana tocou também o imensobatente de madeira. Umasensibilidade que ele não sabiapossuir o fez perceber o uso deum encantamento. Estreitou osolhos e sua visão se ampliou.

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Não sabia disso, mas suas pupilasaumentaram de tamanho,ocupando toda a íris. Naescuridão que tomava ocorredor, seus olhos de onçaviram os vestígios de energiamágica circulando em torno dasportas.

Viram também Galaor bufarde raiva.

– Grave assim, é?– Muito. E parece que

nenhuma outra magia funciona.– Mas que covarde idiota faria

uma coisa des…?– Minha adorável esposa.

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– A sua…? Hum, tá.Sentindo-se todo dolorido, o

adolescente se levantou. Mal seequilibrou sobre as duas pernase o novo tio o segurou peloombro para arrastá-lo pelocorredor.

– Como filhote de índio-onça, enxergas melhor do queeu nessa escuridão – justificouele. – Serás meu guia. Temos deencontrar passagens que nãoestejam seladas pela magia…Pelo menos até chegarmos aotemplo. Shantel só pode estar lá.

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O SALÃO RECUPEROUPARCIALMENTE AS LUZES,

aliviando um pouco o medodos brácaros. O restante daCitânia, no entanto, permaneciasem qualquer iluminação. Anukfoi a primeira a perceber quemlutava contra a magia que osaprisionava: Oriana. Ela pareciaem transe, as mãos abertas e osdedos esticados ao máximo, osbraços caídos ao lado do corpo.Usava magia proibida para lidarcom magia proibida. Umatentativa frágil, na prática, poisacendera apenas três archotes de

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um total de dez. Não estavadando certo.

Anuk achou melhor nãoxingá-la de incompetente.Estragaria seu papel de gêmeaboazinha.

– O Viriato sumiu! –constatou Carol, assustada.

Tiago examinava o pontoonde o brácaro estivera.

– Mas como ele pôde…?– A magia o tirou daqui –

explicou Tariq –, e contra avontade dele.

Apreensivo, ele se aproximarade Oriana, preparado para

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ampará-la se fosse necessário.“Ela ficou feia e velha, e eleainda a ama?”, pensou Anuk.Num estalo, lembrou-se de queMirele não amarraria a cara etampouco sentiria ciúme dapaixonite do pai. Era melhordesviar sua atenção para assuntosmais imediatos.

– Quem achas que estáfazendo isso conosco, senhor? –perguntou ao avô, imitando avozinha melosa da irmã. Claroque sabia quem estava por trásdaquele ataque, mas não custavanada testar os conhecimentos da

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liderança do clã.O velho, porém, não se

dignou a responder. A carrancapiorara no último minuto.

– Deve ser a druidesa Shantel– arriscou um dos doisguerreiros que haviam entradopouco depois de Viriato.

– Explica-te! – rugiu o velho.O homem narrou, em

detalhes, o incidente naescadaria do calabouço, e comoo escravo repudiara o feitiçoevocado pela druidesa.

Tariq fechou as sobrancelhas;não esperava por aquilo. Os

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presentes, naturalmente, ficaramcom mais medo ao ouvir ahistória. Muitos tentavam abriras portas ou as janelas, mas suastentativas eram inúteis. Já Anukquase assobiou, impressionada.Viriato enfrentando Shantel?Que novidade!

E havia uma últimadescoberta. A adolescente viuCarol sorrir, satisfeita. E ela sósorriria se… “Ah, quer dizerque minha mãe levou umpontapé?”, deduziu a garota,divertida. Viriato estava sesaindo melhor do que

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imaginava!Bom, se houvesse mais alguma

novidade, a gêmea má nãopretendia ficar para descobrir,ainda mais sabendo que Gaelestava lá fora e tendo comocompanhia um novo tio nadaconfiável. “Ingênuo do jeitoque ele é, deve estar acreditandoque aquela praga do Galaorvirou agora o melhor amigo domocinho da história!”

Faltava apenas umaoportunidade para escapulir. Porsorte, não demorou para Orianase sentir fraca e quase desfalecer

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nos braços de quem? Tariq,lógico! Com a ajuda de Tiago,ele a amparou; os dois a levarampara se sentar na plataforma dopai.

Carol também foi acudi-la. E,com a atenção centralizada nanova queridinha do clã, surgiu achance de Anuk se esconderatrás das tapeçarias, ao fundo dosalão.

Desde criança ela conhecia osburacos que Viriato escavara nasparedes da casa, anos antes, paraesconder Oriana da fúriapaterna. Em geral, eram bons

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esconderijos, cobertos compedras soltas. Algunsfuncionavam como saída deemergência para outro aposento.A adolescente lembrava-se deter descoberto um daqueles aliperto…

Salvador

QUANDO OS DOIS

DESCONHECIDOS de capa verdese assentaram no círculo,Akinlana afinal ergueu o braço.Os murmúrios que a presençados recém-chegados haviadisparado cessaram. E o rei

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iorubá levantou-se para falar.– Todos são bem-vindos ao

quilombo. Sei que há temposnão reunimos tantos chefes declã… talvez desde que meu paiparticipou das negociações depaz, há trinta anos. Mas temosagora uma situação perigosa,que pode levar à guerra.

Narrou a chegada do filhobastardo de Eurico, trazendohumanos ameaçados pelosbrácaros. Então deu a palavra aJoão, que se levantou comdificuldade, precisando do apoiode Nan; com a voz trêmula, o

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tio de Gael contou sobre osalvamento do garoto e suacriação por eles, o ataque e suafuga até ali.

Nessa altura, Iwati, do clãkamayurá, narrou as recentesnotícias de que o filho de Rudáe Oriana, o jovem quedescobriam ter sobrevivido àexecução e que fora criadopelos humanos, teria ido para aCitânia.

Foi o que bastou para queHanef, o capitão al-gharbio,pedisse a palavra.

– Nosso líder, Tariq,

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confirmaria o que foi dito.Neste momento ele está nafortaleza brácara: foi avisado deque Eurico receberia emaudiência aquele que chamamaberração, e iria condenarViriato à morte por ter falhadoem executar o filho de Oriana.

Egeu, o chefe do clã helen,ergueu-se. De ascendênciagrega, ele parecia saído de umtemplo olímpico. Comentou:

– Eurico tem direito deexecutar seu bastardo, emboranão o neto, pois ele é meiojaguara. Mas nenhum clã

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mágico jamais agrediuhumanos… Tal ação dosbrácaros abre um precedenteperigoso. Como vamos lidarcom isso?

A discussão se generalizou,com todos os líderes dandopalpites. Nan observava emsilêncio, seus olhos semprevoltando às figuras embuçadasem verde. Algo naquelas pessoasa atraía. Talvez por isso tenhasido a primeira a notar…

Um trovão distante soou, enaquele mesmo segundo umdos desconhecidos pareceu

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desfalecer, com um gemidosúbito. O outro acudiu ocompanheiro, e todos os olhosse voltaram para eles quando ocapuz do primeiro caiu paratrás.

Surpresos, viram que era umamulher, de idade indefinida,com cabelos ruivos e feiçõesperfeitas, bela a ponto de causarespanto. Como muitos alipresentes, possuía uma tatuagemnum dos lados da testa. A dela,porém, reluzia… era a figura deum triskle, o símbolo formadopor três espirais entrelaçadas.

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Aquele era o símbolo do clãdos érin.

A REAÇÃO FOI UNÂNIME.

Apenas João, que não sabia nadasobre aquilo, permaneceusentado. Os demais selevantaram em sinal de respeito.Os al-gharbios se curvaramnuma reverência profunda.

Os érin constituíam o clã maisantigo e poderoso a se recolherà magia. Os clãs de origemeuropeia lhes rendiam umaespécie de vassalagem, emboraos érin nunca se imiscuíssem nos

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negócios alheios, permanecendoisolados em sua cidadela naIrlanda – ficava próxima a umlocal que os humanosconheciam como Colinas deTara.

Akinlana rodeou o círculo e seaproximou da mulher pálida eofegante. Os clãs afros eindígenas não eram seus vassalos,porém tinham grande apreçopor aquele povo.

– Saudações, senhora Cáitlin.Está se sentindo mal? Precisa dealgo?

Ela se recuperou um pouco e

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levantou-se, com a ajuda dooutro érin.

– Agradeço-te, Akinlana.Estou bem. Viemos aqui apenascomo observadores, por isso nãotínhamos nos revelado. Mas ascoisas mudaram.

O companheiro que aamparava disse:

– A Senhora está conectada àmagia de todos os clãs. Hásemanas, três de nós viemos paraestas terras, com ordens decolher informações sobreinterferências nas camadas demagia. Mas agora algo maior

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que o uso de magia proibidaaconteceu. E afetou minhasenhora, uma druidesa de altaestirpe.

Hanef inclinou-se diante damulher érin.

– Eles estiveram por umtempo entre nós. Um dosobservadores acompanhouTariq à Citânia. Talvez vósconsigais comunicar-vos comeles…

Cáitlin levou a mão ao triskletatuado em seu rosto.

– Conseguiríamos, se a quebranão fosse tão severa. Só o que

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consigo perceber é que alguémpôs em ação um encantamentosúbito e rompeu as barreirasinvisíveis que separam os váriosmundos. Isso causa perturbaçãoem todas as correntes mágicas.

O rei iorubá fechou osobrecenho, zangado.

– E anula todos os tratadosque existem entre os clãs. É umadeclaração de guerra! Precisamossaber mais. Vou convocar osbabalaôs, e peço também aajuda dos pajés e xamãs queacompanharam as delegações.Devemos descobrir o que

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acontece na Citânia erestabelecer as correntes demagia rompidas.

Nan se sentou de novo juntoa João. Enquanto os praticantesde magia de todos os clãstentavam se organizar no salão,ela sentia, intrigada, o otá brilharem seu peito.

Estremeceu ao ouvir novotrovão soando ao longe. Ascorrentes mágicas podiam estarrompidas, mas a força de Oiáparecia intacta.

Rio de Janeiro

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GAEL NÃO ESTAVA GOSTANDO

nem um pouco de sua novafunção de cão-guia. Mesmoassim, concordou em orientar otio, evitando que tomassemcorredores bloqueados ou queencontrassem becos sem saídano labirinto que era o trajeto atéo templo. Não foi fácil escaparàs barreiras de energias semi-invisíveis que circulavam portoda a fortaleza. Mas finalmentesaíram em uma passagemsecundária e foram parar noandar em que uma longa sériede aposentos precedia o local de

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adoração daquela casa.– Não importa o que vejas –

cochichou Galaor quandochegaram a uma porta dupla,que estava entreaberta. – Nãoquero que saias do meu lado,compreendido?

– Tá.Entraram no templo, tomando

o máximo cuidado para nãoprovocar nenhum ruído, e seesconderam atrás de uma daspilastras. A escuridão no localera menos profunda. E Gael aviu, caída no chão.

– Anuk…

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Desesperado, o adolescenteignorou as instruções do tio enão se importou com mais nada.Correu até uma mesa de pedra,mal-iluminada por três velas.Abaixou-se para verificar se elarespirava… Não estava morta. Oque a deixara tão branca eparalisada, igual a uma estátua demármore? Só podia ser algumfeitiço macabro.

– Você acha que a Shantelfaria isso com a própria filha? –perguntou ao sentir que alguémse aproximava por trás. Só podiaser Galaor.

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Mas não era.

AINDA ATRÁS DA PILASTRA,

Galaor não ousou interferir.Apesar de ser o melhor dosguerreiros, não podia fazer nadacontra a mais poderosa dasmagias.

GAEL GIROU A CABEÇA,

achando que falava com o tio.Então engasgou.

– Viriato?!Mal o reconheceu. Ele voltara

a vestir trajes de guerreiro, oque acentuava certa arrogânciaque nunca tivera. O abatimento

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dos últimos dias dera lugar auma aparência forte e saudável.Mas a grande diferença estavaem seus olhos, totalmentevermelhos.

Como sangue.– Estás falando com o

venerado Crom Cruach –explicou Shantel, saindo daobscuridade para se unir a ele.

Só pelo nome, não devia sercoisa boa. Gael levantou-se paraencará-los.

– O que você fez com meutio? Por que ele está desse jeitoesquisito?

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Shantel chegou mais perto dogaroto. Ele a vira apenas delonge, nos jardins do Museu doIpiranga, e somente agorapercebia que era uma mulherfascinante, dona de uma belezatão extraordinária que lhepermitia o luxo de usar ummínimo de maquiagem. A pelemacia e perfumada denunciavaque se lavara e trocara de rouparecentemente. E o que dizer,então, do corpo? Sedução puraem um sofisticado vestidonegro. As gêmeas haviamherdado algo de sua beleza, mas

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nem mesmo Anuk em seu piormomento ostentava aquelafrieza. O olhar de Shantel eragelado.

– A aberração deve morrer,meu senhor – aconselhou ela,suavemente, mascarando avontade de dar uma ordemdireta ao tal venerado. – E devemorrer agora.

ORIANA ABRIU OS OLHOS,

descobrindo o colo em queapoiava a cabeça. Um tremordelicioso percorreu-lhe o corpoe seu coração bateu mais rápido.

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– Como te sentes? –perguntou Tariq. Ele ocupavatodo o seu campo de visão. Outalvez ela só conseguisseenxergar a ele, e a mais ninguémno salão.

A mãe de Gael não conseguiuresponder. Pela primeira vez,em muitos anos, pôde dar-se oluxo de ser frágil, de pedirajuda. Ela apenas se aninhoucontra o peito masculino,desejando que Tariq jamais aabandonasse.

– Desculpa estragar o clima aíde vocês, mas… – disse Tiago,

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após cutucar o ombro do líderal-gharbio – … acho que a suaoutra filha também sumiu.

VIRIATO, OU MELHOR, CromCruach, estendeu o braço àfrente, apontando-o para Gael.O que iria fazer? Transformá-loem fumaça ou algo assim?

Pelo ar de crueldade dacriatura, seria algo muito pior.Os olhos vermelhos vibraram deêxtase, revelando um inesgotávelprazer no derramamento desangue, quando as narinas dogaroto começaram a sangrar,

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depois seus ouvidos… Uma dornasceu em seu coração paradominá-lo de modo lento ebrutal.

Gael não podia fugir. Caiu dejoelhos.

AINDA EM SEU ESCONDERIJO,

Galaor engoliu em seco. Shantelevocara, para ocupar o corpo deViriato, ninguém menos que otemido deus celta CromCruach, reverenciado, naAntiguidade, como o patronodos cultos sangrentos.

Uma reputação que provava

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merecer naquele exatomomento.

“ELE ESTÁ ME IMPLODINDO…”,disse o raciocínio de Gael, queainda resistia bravamente àdevastação interna.

– Deixa-o em paz! – brigouMirele, ao entrar correndo notemplo, espada em posição deataque.

“ATACAR AGORA É SUICÍDIO”,pensou Galaor, lamentandoantecipadamente a morte dagêmea. “A menina vai

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morrer…”

SHANTEL SE VOLTOU PARA

MIRELE. Desde quando ela sabiamanejar uma arma?

A fúria de Crom abandonou aaberração para se concentrar narecém-chegada que o ameaçava.

– Não a mates, eu peço –implorou a mãe.

Anuk podia ser descartável –uma inimiga a menos comquem lidar –, mas a outra filhaera fácil de manipular, aindatinha utilidade; planejava paraela algum casamento que lhe

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desse vantagens políticas.A divindade considerou a

solicitação de sua druidesa.Dirigiu somente um golpeinvisível contra a falsa Mirele,jogando-a contra a parede maispróxima.

Já Gael acabara de tombarsobre o piso.

– Onde estão meus súditos? –disse Crom, numa voz quesomava as vozes de todas asvítimas que subjugara atravésdos tempos.

Era a primeira vez que sedirigia à mulher que o trouxera

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de volta ao plano físico.Emocionada, Shantel se curvouem reverência. Esperara anospor aquilo.

– Aguardam-te no grandesalão, meu senhor.

Salvador

A MADRUGADA SE

APROXIMAVA, mas nenhumdeles deixara a casa do chefeiorubá.

Por mais que tentassem, ospraticantes de magia dos clãs nãoconseguiam penetrarmentalmente a barreira tecida

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em torno da fortaleza carioca.Oloú, parecendo esgotado,

curvou-se diante de seu rei.– A cidadela dos brácaros está

fechada. Usaram magia antiga,poderosa.

Um a um, os babalaôs, magos,pajés ou sacerdotes confirmaramsua impotência em obter algo.Até que o chefe kamayurá Iwativeio falar com Akinlana.

– Nosso pajé sonhou, e nosonho conseguiu ver algumacoisa.

Um índio extremamenteidoso se aproximou e revelou:

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– Tudo foi fechado, como setivesse um véu cobrindo. Sóenxerguei um altar com dozepostes em volta, e um maior nomeio. Perto desse tinha umafaca, um pano manchado desangue e um corpo caído demulher… de moça. Vi sangue,muito sangue.

Cáitlin, que parecia ter-serecuperado da fraqueza, franziua testa.

– Doze pilares menores? E ummaior no meio?

O índio assentiu. O outroemissário dos érin trocou com

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ela um olhar alarmado, mas secalou. Akinlana percebeu e aabordou.

– A senhora é autoridade emmagia celta. Não há nada quepossamos fazer?

Ela suspirou, depois de pensarum pouco.

– Tudo indica que usaram afórmula ancestral de invocar umdeus para tomar um novocorpo. O sangue e os dozepilares que ele viu sugerem umafigura muito antiga e perigosa…Precisamos realmente de maisinformações. Só que nem

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mesmo os érin podem penetraresse tipo de barreira.

– O pajé de Iwati chegou omais perto possível – disse Oloú,desanimando a todos. – Estamoslidando com deuses…Nenhuma criatura com sanguemágico tem poder paraconfrontá-los.

Foi então que Nan ousouinterromper a conversa doschefes e xamãs.

– Desculpem, eu não entendomuito dessas coisas – disse,humilde –, mas… se o povo dosclãs não pode fazer nada, quem

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sabe alguém com sanguehumano possa?

Todos olharam para ela eviram, em seu peito, o brilhointenso da metade da pedravermelha de Oiá.

Como a reforçar as palavras deNan, trovões soaram lá fora ereverberaram na grande sala.Nem todos compreenderam oque aquilo significava, mas Oloúsorriu.

Iansã iria ajudar.

Rio de Janeiro

O TRIUNFO SONHADO POR

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SHANTEL finalmente estava aoseu alcance.

Senhora plena de todos ospoderes, ela entrou no salão,acompanhando a mais cruel dasdivindades celtas. Ninguémpoderia impedi-la de ter o quedesejasse. E o que mais desejavaera submissão absoluta eadoração eterna.

Crom e a druidesa avançaramaté o trono de Eurico semencontrar qualquer resistência.O velho ergueu o queixo,tolamente acreditando que aindapossuía alguma autoridade para

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detê-los.– Sai do meu lugar – ordenou

o deus.Não esperou que o líder

brácaro o obedecesse. Com umgesto, fez com que fossearremessado para longe dotrono. A jovem escrava quecuidava dele gritou, fugindopara se esconder entre o povo.E Eurico permaneceu jogadonum canto como um objetosem utilidade, gemendo de dore humilhação, até que Oriana eTariq fossem ampará-lo.Apavorada, Carol não conseguia

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entender o que acontecera aViriato.

Os brácaros mais velhosperceberam estar na presença deum deus ancestral e se curvaramdiante do peso da tradição. Osjovens se agitaram,inconformados. Os guerreiroshesitavam, procurando seuscapitães. Deveriam atacarShantel, a druidesa maispoderosa da cidadela? Quantoaos dois al-gharbios queacompanhavam Tariq, só semanifestariam se ele ordenasse.Procuraram aproximar-se do

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local em que ele e Orianatentavam devolver o pai dela àcadeira de rodas.

Sem pressa, Crom subiu naplataforma e se acomodou notrono. Shantel ergueu a voz e,solene, apresentou-o ao clã.

– Este é nosso novo e amadosenhor – disse, com o olharbrilhante admirando a divindadeque jamais se contentaria emchefiar um único e insignificanteclã. – O venerado deus CromCruach é o futuro líder detodos os povos mágicos queiremos subjugar.

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A

CAPÍTULO 8

Nova ordem

AÇÃO SEGUINTE DE

CROM foi garantir aobediência dos novos

súditos. Shantel chamou algunsdos capitães, cuja dedicaçãoassegurara fazia algum tempo.

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Eles logo se apresentaram eforam confirmados comocomandantes dos várioscontingentes que cuidavam dasegurança da Citânia. Hélio eTarcísio estavam entre osprimeiros que se ajoelharamdiante da druidesa; não pareciamnem um pouco perturbados portrocar, de um minuto paraoutro, a lealdade a Galaor pelasubmissão à esposa dele. Ela seapressou a dar-lhes ordensespecíficas, de que nem mesmoCrom desconfiava. A primeiradelas foi de que recolhessem

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todos os celulares,computadores ou qualqueroutro item tecnológico quepermitisse a comunicação com omundo exterior. Somentepessoal de confiança teriaautorização para utilizá-los.

Naturalmente, havia norecinto muitos guerreiros quenão se conformavam com aqueda de Eurico; esses teriam serebelado, se pudessem. Bastou,porém, uma curta demonstraçãode poder para que pensassemduas vezes antes de desafiar onovo líder.

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Bem na hora em que Carol eTiago, apavorados, se dirigiampara junto da cadeira de rodasem que Oriana conseguirarecolocar o pai desfalecido,quase foram atropelados por umhomem muito velho, queatravessava o salão em fúria.

O sujeito parou diante dotrono e desembainhou a espada,brandindo-a. Hélio deteve alâmina dele com a sua; numinstante, o velho foi desarmadoe cercado. Crom, que falavacom Shantel sobre a disposiçãodos guerreiros nas três muralhas

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da cidadela, não se perturboucom a cena e fitou o atacante delado, como se fita um verme.

– Ousas ameaçar-me? –trovejou.

– Nenhum brácaro te aceitarácomo líder, Cenncroithi! – rugiuo homem, usando o antigonome celta. – Volta para oinferno de onde vieste!

Crom riu, parecendo divertir-se muito.

Oriana dirigiu-se para o meiodo salão, pronta a defender oguerreiro idoso. Tariq estavafalando com os dois al-gharbios

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e não teve como impedi-la. MasCarol a deteve:

– O que você acha que podefazer?

Percebendo que a humanaestava certa, Oriana estacou.Sabia do que aquele deus eracapaz, e doía-lhe não poderdefender alguém que era aprópria alma da Citânia.

– Aquele homem é Kían –revelou. – O mais antigo denossos mestres-de-armas. Elefoi… – sentiu as lágrimasbrotarem –… instrutor deGalaor, Viriato e muitos outros

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guerreiros.O velho mestre não se

importou por estar desarmado;fitava o rosto de seu ex-discípulo, agora tomado peloolhar vermelho do deus. Pareciaapostar que ainda havia, ali,algum traço do bastardo deEurico.

Crom, entretanto, sequerhesitou. A um gesto seu, asnarinas de Kían começaram asangrar e a dor insuportável oatingiu por inteiro. Mais sanguebrotou de seus olhos, ouvidos eporos, matando-o lentamente

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diante de todos os guerreirosque ensinara. E sem queninguém, a não ser a mãe deGael, fizesse um gesto parasalvá-lo.

Shantel assistia à execução,impassível, enquanto sua primachorava e Carol continuava adetê-la. Tiago segurava, a muitocusto, a vontade de vomitardiante de tanto sangue e Tariqvoltava com pressa para juntodeles.

Quando o al-gharbio de novoabraçou Oriana, o corpo semvida do velho mestre-de-armas

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jazia próximo à plataforma.Sufocando o choro, Carol foiobrigada a aceitar que aquelacriatura abominável destruíraViriato. Este jamais permitiriaque torturassem sua gente comoCrom acabara de fazer.

– Tirai isso daqui – ordenou odeus, erguendo os olhos rubrosdo cadáver e vistoriando amultidão. – Se mais alguémdeseja desafiar-me, estouesperando!

Apenas o silêncio respondeu,logo rompido pelos passos daspessoas que começaram a sair

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para obedecer aos comandosrecém-recebidos. Uma novaordem entrara em ação. E todosagora sabiam muito bem qualseria o destino de quem adesafiasse.

Ao ver o salão esvaziar-se, adruidesa sorriu. Havia escolhidobem a quem invocar. Emsegundos, o deus exterminaraqualquer resquício de livre-arbítrio ostensivo ou de rebeldiado clã. Pelo terror, subjugaratodos no salão. Ou quase todos.

Shantel deteve os olhos nogrupo mais próximo. Eurico

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mal respirava na cadeira derodas, Oriana era amparada porTariq, que tinha dois de seusguardas ao lado; o humanoconsolava a filha.

– E quanto a eles, meusenhor? – cobrou. – Não irásmatá-los?

A cruel divindade voltou aatenção para o grupo.

– Quero que Eurico apodreçanuma cela. Que viva para vercomo farei desta fortaleza umapotência. Os al-gharbios lhefarão companhia. A mulhertambém. Mais tarde resolverei

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qual destino lhes darei.– Mas Oriana é uma ameaça!

– insistiu Shantel, ofegante emsua frustração. – Devemosacabar com ela já!

– Não há qualquer magiabrácara que possa me atingir, tute asseguraste disso com o ritual– respondeu ele, sinalizando aalguns guerreiros para quedesarmassem e levassem osprisioneiros. – Quanto aoshumanos…

– Se me permitires, meusenhor, eu cuido da humana –ofereceu a druidesa, buscando

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uma adaga no corpete dovestido. Fez menção de avançarsobre Carol.

– Não – ordenou Crom.– Eu te peço apenas isso,

senhor, que…– Quero-a como minha

escrava pessoal.Crom não admitiria recusas às

suas vontades. Engolindo ar,Shantel abaixou a cabeça,submissa. Conformou-se,pensando que teria tempo paraacabar com a moça depois.Enquanto isso, ela sentiria ogosto da escravidão.

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– Mas tua lealdade deve serrecompensada. – O deus a fitou,magnânimo. – Concedo-te umdos outros prisioneiros. Escolhequem desejares para te servir.

Oriana, já sendo conduzidapor dois guerreiros, viu comagonia o sorriso gelado daprima, que fixava a cobiça emTariq. A um sinal dela, o líderal-gharbio foi empurrado porTarcísio para fora do salão, poruma porta secundária que levavaao segundo andar, onde ficavamos aposentos dos senhores daCitânia. Ele não resistiu; apenas

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trocou um olhar significativocom seus dois acompanhantes.

Tiago ainda tentou proteger afilha, mas um dos guardas aobrigou a postar-se diante dodeus. O pai foi levado juntocom os outros para os fundosdo salão. De lá, desceriam àscelas no subsolo.

– Agora que temos a cidadelasob controle, druidesa,providencia a mobilização doexército. Desejo ampliar meusdomínios – ordenou Crom,levantando-se do trono.

Depois, dirigiu o rosto

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impassível e seus assustadoresolhos vermelhos para Carol, quese encolhia, amedrontada.

– Tu vens comigo, humana.

QUANDO TIAGO FOI

ARRASTADO PARA AS CELAS, jáfazia algum tempo que sentia apedra vermelha brilhar em seupeito. Mas somente pôde tê-lanas mãos depois que ocarcereiro aferrolhou a porta dacela escura e malcheirosa.Haviam-no trancafiado juntocom Eurico, Oriana e os doishomens de Tariq.

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Teve de fazer muito esforçopara não desabar, apavorado aoimaginar sua filha nas mãosdaquela coisa. Oriana tentava,com ajuda dos outrosprisioneiros, acomodar o pai,que parecia em choque, numleito de pedra. A única luzvinha de uma janela gradeadano alto; não havia lua, mas umbrilho baço das nuvens no céuprojetava alguma claridade nolocal.

Tiago procurou um canto dacela escura, voltou-se para aparede e segurou o otá.

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Imediatamente sentiu umgrande alívio, como se recebesseo toque das mãos de Nan emseu rosto. Podia perceber a vozdela, em algum ponto de suacabeça, tentando dizer-lhe algo.Mas não conseguia sesintonizar… Faltava algumacoisa.

Um dos guardas al-gharbiosveio até ele e tocou seu ombro.

– Posso ajudar-te – disse ohomem, prestativo.

Ele abaixara o capuz de seulongo manto, e o pai de Carolviu que era muito diferente dos

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outros dois. Tanto o queabraçara Oriana, e fora levado,como o que o acompanhara àcela eram morenos e tinhamolhos negros. Já aquele sujeitopossuía cabelos de um tomruivo aloirado, e olhos clarosque reluziam como safiras.

Deveria confiar nele? Relutou,ocultando a pedra.

– Como te chamas?– Tiago.– Chamo-me Finnath. Não

sou al-gharbio, embora estejavestido como um e tenha vindocom Tariq e Kassib – o outro

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homem acenou com a cabeça. –Sou érin.

Oriana ouvira a explicação.Deixando Eurico com oguerreiro moreno, aproximou-se.

Ao trocar um olhar com oérin, curvou-se, respeitosa.Tiago não estava entendendomais nada. Já fora estranho ver aorgulhosa mãe de Gael perder asforças e buscar o apoio de Tariqno salão. Agora se inclinavadiante daquele sujeito?

– Será melhor para todos seminha identidade continuar

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oculta – pediu ele, voltando acolocar o capuz. – Precisamosunir nossas forças para sair destasituação.

– Sim, senhor – disse Oriana,ainda de cabeça baixa. – É difícilacreditar que alguém de seu clãnão possa desfazer a magiaproibida que Shantel invocou.

Finnath sorriu para ela, queenrubesceu até as orelhas.

– E tu entendes um pouco demagia proibida, não é? – depoisde uma pausa, ele continuou. –Tranquiliza-te, filha, não foipara punir tuas…

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transgressões… que o líder demeu clã nos enviou para estelado do mundo. Eu e Cáitlinviemos apenas para observar.

Ao ouvir mais aquele nome, amãe de Gael perdeu o rubor ese fez pálida.

– A… a senhora Cáitlintambém veio?

– Sim. Ela e mais um dosnossos foram com umadelegação de Tariq à reuniãodos clãs na Bahia. Infelizmente,com o que aconteceu aqui, nãoposso me comunicar com ela.Tua prima deve ter planejado

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muito bem esse ritual, para terfechado a Citânia dessa forma,trazido Crom Cruach a esteplano, e ainda enfraquecidonossa magia.

– Tu me viste tentar combatê-la… e falhar – a brácarasuspirou. – Mas os érin são o clãmais poderoso de todos! Se nãopodem vencer Shantel,ninguém poderá.

Finnath voltou a colocar amão no ombro de Tiago, queainda mantinha a pedrabrilhante oculta nas mãos.

– Talvez. Porém temos uma

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ajuda inesperada, aqui. Se opovo dos clãs não pode fazernada, quem sabe alguém comsangue humano consiga?

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G

CAPÍTULO 9

Fuga

ALAOR SÓ OUSOU

largar seu esconderijoatrás da pilastra quando

teve certeza de que Shantel eCrom não voltariam tão cedoao templo. Primeiro, foi até a

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garota que julgava ser Mirele.Um pouco tonta, ela se sentavasobre o piso, massageando ascostas doloridas.

– Ficaste maluca? – disparou oguerreiro. – Desde quando seenfrenta Crom Cruach comuma espada que tu nem sabescomo usar?

– Era o deus sanguinário? –duvidou ela. – Aquilo tomou ocorpo do Viriato?

Galaor nem teve tempo deresponder. Ao avistar Gael caídopróximo à outra irmã, aadolescente se erguera numa

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rapidez impressionante para voaraté ele.

O guerreiro pensou que erauma pena o garoto ter morrido.Justamente agora que eleresolvera se comportar comoum bom tio e…

Para sua surpresa, Mirele oestava ajudando a sentar-se. E,exceto pelo sangue que o sujavae um cansaço óbvio, ele pareciaótimo. O guerreiro ergueu umasobrancelha e se aproximou dosadolescentes.

– O que fizeste para impedi-lo? – perguntava a menina, sem

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entender como ele sobrevivera.– O cara simplesmente parou

de me atacar no último minuto– disse ele, fazendo uma caretaao tocar a boca e reparar quesuas gengivas também tinhamsangrado.

– Foi porque eu apareci nahora.

– Não. Acho que ele podemuito bem atacar dois aomesmo tempo.

– Crom Cruach sendopiedoso? Pelo que sei das lendassobre ele, é impossível!

– Não foi ele que desistiu de

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me exterminar, Mirele.– Como assim? – perguntou

Galaor.– Foi o Viriato que o impediu

de me matar.

– GAEL, SINTO MUITO por tedizer isso… – começou Anuk,escolhendo palavras que Mireleusaria –… mas Viriato não existemais. Se ainda restou algumacoisa dele naquele corpo, estásob o domínio total de Crom.

Ele não procurou argumentospara defender seu ponto devista. Preferiu apenas continuar

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mantendo a esperança de que otio ainda pudesse ser salvo.

– E ela, como fica? – disse,referindo-se à gêmea queacreditava ser Anuk. Pesaroso,ele acariciou o rosto feminino,demonstrando extremo carinho.

A Anuk verdadeira precisoumorder os lábios para nãorevelar sua identidade. Ele tinhade fazer aquilo justo agora,ainda mais com a garota errada?

– Só se pode usar magiaproibida contra magia proibida– disse Galaor, que andava deum lado para outro do templo,

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agoniado. – Não há ninguémque possa lutar contra um deus.É o fim do clã brácaro.

– Pior. Será o fim para todosque vivem na magia – previu agarota.

O adulto estreitou os olhosantes de entender o óbvio.Crom não era do tipo que selimitaria a dominar apenas umclã.

– Oh, deusa… – murmurouele, arrasado.

– É isso! – disse Gael,subitamente inspirado.

– Isso o quê?

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– Quando você falou que“ninguém” pode lutar contra oCrom, se referiu a um druidaou um pajé ou uma bruxa oualguém assim, certo?

– Sim, mas…– O único que pode

combater um deus é outro deus.– E onde achas que

encontraremos outro deus celta?– retrucou Anuk, quaseescapando à personagem Mirele.– Tens, por acaso, algumcatálogo do disque-deuses?

O adolescente não prestouatenção à pergunta. Tinha um

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plano. E se despedia da gêmeaenfeitiçada com um beijo noslábios. Não poderia carregá-lana fuga que planejava.

– Me perdoa por te deixaraqui – disse, num sussurro.Lágrimas nublavam sua visão. –Prometo que volto para tesalvar.

DOÍA MUITO PARA GAEL

abandonar sua família naquelasituação. Mas, se ficasse, nãoteria como enfrentar Crom. Asolução era buscar ajuda fora dasmuralhas da Citânia.

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Acompanhado por Galaor eaquela que acreditava ser Mirele,o garoto escapou para o exteriorda casa de Eurico. A eletricidadevoltava aos poucos a iluminar avila, o que os obrigou a andarpelas sombras. Grupos deguerreiros saíam da audiência, eseus capitães iam a toda pressadar notícias da nova ordem aosque estavam de guarda.Contudo, o avançado da hora eo tamanho da fortaleza fariamcom que o contingentedemorasse um pouco até estarinteiramente sob o comando de

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Crom Cruach.Na terceira muralha, Galaor

encontrou entre os vigias algunsem quem sabia que poderiaconfiar. Enquanto falava comeles, a suposta Mirele, prática,arrastou Gael para uma casapróxima, direto para umatorneira no meio do jardim. Eleprecisava lavar o rosto sujo desangue para não chamar aatenção onde quer que fosse. Aágua veio com fartura e oajudou a retirar o sangue dorosto, das orelhas, das mãos e dopescoço. As manchas só não

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saíam da camiseta. Teria detrocá-la.

Logo o guerreiro os chamava.Acobertados pelos vigias,atravessaram a muralha interna eseguiram para as outras duas.Quando, afinal, transpuseram aúltima, o filho de Eurico envioupara algum lugar meia dúzia dehomens que concordaram, semgrande hesitação, em desafiar anova liderança. A notícia daqueda de Eurico e da execuçãode Kían já chegara a eles…

Afinal, estavam fora dosdomínios brácaros; mas sabiam

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muito bem que sua fuga seriadescoberta em pouco tempo.Tinham de ir para algum lugarseguro.

– Se conseguiste manteraqueles vigias do nosso lado –disse a garota, irritada com oque vira, confrontando opadrasto –, por que eles não nosacompanham? Em vez deficarem para nos guardar, tu osmandaste para longe!

– Mandei-os para avisar sobreo que aconteceu aos outros clãs.Especialmente os al-gharbios,eles precisam saber que Tariq foi

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feito prisioneiro. E não hásentido em proteger a Citâniacontra algum ataque se o piorinimigo já está lá dentro.

– E por que mandar os carasse você pode avisar pelo celular?– perguntou Gael.

Galaor inspirou muito ar. Nãotinha paciência para ensinar osprocedimentos diplomáticosusuais. Além disso, estava maispreocupado em percorrerrapidamente as ruazinhas domundo dos humanos.

– Demonstro respeito econfiança quando envio meus

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mensageiros – resumiu ele. –Agora, boca fechada! E tratai deacelerar vosso passo lerdo.

CAROL ATRAVESSA OS

CORREDORES da casa deEurico com a sensação de quecaminhava para a morte. Nãoousava desobedecer a Crom,embora estivessem quasesozinhos após deixarem o salão:apenas um guarda indicava ocaminho.

Seguiram por várioscorredores até chegarem a umaposento luxuoso no segundo

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andar, que devia pertencer aGalaor. Uma ordem adespachou para o leito de peles,onde ela se sentou, apertando oscotovelos para não mostrar oquanto tremia.

O próprio reflexo em umgrande espelho preso à parede,próximo à cama, atraiu adivindade. Crom Cruach fitousua imagem, analisando oquanto o agradava edesagradava. Não parecia muitosatisfeito com o corpo deViriato.

– Ele não é alto – disse, com

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sua voz de muitas vozes. Oescravo não tinha mais que ummetro e setenta de altura. –Deveria possuir mais músculos.E apresenta uma beleza comumdemais. Mas o corpo é jovem,ágil e flexível, responde deimediato ao que desejo nestemomento. E este corpo deseja ati, escrava.

Carol procurou alguma coisaque pudesse usar para sedefender. Havia apenasalmofadas e travesseiros ao seualcance.

Crom se aproximou para

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sentar-se ao lado dela. Os olhosvermelhos e aterrorizantestransbordavam volúpia.

– Pareces deliciosa – disse,deslizando dois dedos pelo rostofeminino. – É por isso que elete adora tanto?

– Ele?– O dono anterior deste

corpo que ocupo. Ele lutadesesperadamente para que eunão te machuque.

Viriato ainda vivia, aprisionadoem algum lugar dentro daquelecorpo? Carol escondeu avontade de pular de alegria,

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apesar de as mãos do sujeitoagora percorrerem seu corpo.

– E… o senhor vai… memachucar?

– Também não desejas estecorpo? Não anseias pelo que elepode te dar?

– O senhor não é o Viriato.– Mas tu serás minha.– Não quero nada com o

senhor!– Então terei de te machucar

– disse ele, apertando os braçosda jovem. – Isso seráinteressante. Tua dor fará comque ele se fortaleça para me

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combater.Carol sentiu esperança. Havia

uma chance de derrotar aquelemonstro! E se sua dor desseforças ao homem que amava, elaa suportaria sem se queixar.

– Não te animes, escrava. Acada minuto ele morre umpouco dentro de mim. Suamorte acontecerá mais rápidodo que imaginas.

Não se dependesse de Carol.E ela lutaria até o fim.

– Eu amo você, Viriato –disse, encontrando coragem deenfrentar os olhos vermelhos.

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A reação de Crom foi defúria. Ele a esbofeteou, jogando-a ao chão. Depois puxou a golae as mangas do vestido,rasgando-as e revelando mais docorpo de Carol. Sorriu comcrueldade e desejo. Farejou oaroma da humana nos retalhosde cetim que arrancara e jogou-os longe, pronto para atacá-la.E, bem naquela hora, algo oimpediu.

Com um rugido, segurou atesta com as pontas dos dedos,como se sentisse uma dor decabeça infernal. Mesmo assim,

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reagiu e voltou ao ataque.Agarrou a moça pelas trancinhase puxou o rosto dela para juntodo seu, tentando dominá-la.

– Eu amo… Viriato… –gemeu ela, em agonia.

Uma segunda bofetada aarremessou para longe. O deussoltou um novo rugido, destavez apertando a cabeça comtoda a força. Ela viu sangue emuma de suas narinas.

– Some daqui! – gritou.Carol não esperou uma

segunda ordem para escaparcorrendo do quarto.

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VÁRIOS ASSUNTOS ocupavam amente de Shantel. Hélio eTarcísio a tinham informadoque Galaor sumira depois quedeixara o salão recusando-se acumprir as ordens do pai. Aomenos a aberração tivera o fimmerecido.

Já a garota que pensava serMirele poderia estar ferida, apósser arremessada contra a paredepor Crom. Não que lhe restassequalquer preocupação maternal:apenas a queria incólume, poistinha mais planos para pôr em

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prática, e eles incluíam a filha.Outra coisa que a preocupava

era saber dos prisioneiros. Tariqfora levado aos aposentos dadruidesa e estava confinado soba vigilância de Tarcísio, porémela não tivera tempo de conferirse Oriana e os outros haviamsido devidamente trancafiados.Lamentava que Crom deixasse aprima viver: ela sempre poderiatentar algum truque.

Contudo, Shantel sabia quecumprir as ordens de CromCruach tinha precedência sobrequalquer de suas inquietações.

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Ele não teria escrúpulos emlivrar-se dela com a mesmafacilidade com que se livrara domestre-de-armas que ousaradesafiá-lo.

A druidesa foi diretamentepara o alojamento principal dosguerreiros. A caminho,despachou emissários paraverificar aqueles assuntos. Oprincipal agora era se assegurarde que todos os guerreirosbrácaros fossem colocados sob ocomando direto do novo líder.

Madrugada ou não, a notíciada instauração da nova ordem,

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bem como a da morte de Kían,espalhara-se pela Citânia feitofogo devorando mato seco. Aoentrar no alojamento, Shantelesperava contar com a lealdadedos capitães que já cooptara ecom a disciplina militar dosguerreiros brácaros, acostumadosa obedecer.

O que ela não esperava eraencontrar registros de tamanhocontingente, nem um arsenaltão equipado. A despeito dosúltimos trinta anos de paz,Eurico, o Pacificador, pareciaestar se preparando secretamente

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para a guerra.O instinto da druidesa captou,

de imediato, quais comandantesnão estavam satisfeitos em ter deobedecer às ordens de um deusquase esquecido. A maioria,entretanto, havia juradofidelidade a Crom e manteria adisciplina do exército.

“É inevitável que apareçamdissidentes”, ela pensou, cínica,ao examinar os números e adisposição das tropas deguerreiros que lhe eramapresentados. Era óbvio queCrom logo exigiria prisioneiros

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para os sacrifícios que apreciavae, assim que a prima e os outrosfossem executados, precisariamobter mais vítimas. Que melhorlugar para obtê-las do que entreos inconformados e os rebeldes?

Em uma hora, iria amanhecer.Ao deixar o alojamento dosguerreiros, certa de que seusenhor ficaria satisfeito, ela foialcançada pelo primeiro dosemissários que enviara.

– Senhora – disse ele –, osprisioneiros estão seguros nascelas. Os dois al-gharbios e ohumano fazem companhia a

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Eurico e Oriana.– Excelente. Mesmo assim,

manda reforçar a guarda. Minhaprima é cheia de ideias. Nãoquero que fuja.

Outro brácaro se aproximava,apressado. Ela o interpelou.

– E então? Encontraste meuquerido esposo?

– Ninguém sabe notícias deGalaor, senhora – informou oguarda. – Parece ter evaporado.Assim como alguns vigias daterceira muralha.

A druidesa franziu assobrancelhas. Então ele escapara

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e levara alguns homens consigo.Também já devia saber sobreCrom, apesar de ter saído dosalão antes de ela fazer a entradatriunfal. Era de se esperar. Mas aadorada esposa tinha meios deencontrá-lo…

– Vais fazer o seguinte –ordenou ela. – Segue até a salade oferendas do templo, antesda nave. Na prateleira do fundoda sala, encontrarás uma caixapequena, de madeira negraentalhada; leva-a a Hélio. Elesaberá o que fazer.

Tendo cuidado disso, Shantel

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adentrou a casa que fora de seutio, e que agora era sua; foiconferir o antigo quarto deGalaor, no momento ocupadopor Crom.

Deu com o poderoso deusprofundamente adormecidosobre a cama de peles; haviadescoberto a reserva dedestilados de seu marido eesvaziara várias garrafas. Haviacascos vazios por toda parte, eela encontrou ainda, no chão,pedaços do vestido que ahumana usara. Imaginou que eletivesse se divertido com a garota

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até se cansar…Então o terceiro emissário veio

encontrá-la quando saiu para ocorredor.

– Minha filha está bem? –perguntou-lhe.

– Druidesa, no recinto dotemplo só vimos a senhoraAnuk, profundamenteadormecida. Não há sinal de suaoutra filha… nem da aberração.

– Como? – ela gritou. – Eu viCrom atacar a criatura. Elasangrou até a morte!

O brácaro se afastou, nãodesejando pagar pela má notícia.

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– Pode ter sangrado, senhora,o sangue ainda está lá. Mas ocorpo, não.

Seria possível que aquelemonstrinho tivesse sobrevivido?Ou teriam tirado o cadáver dolocal? Era de se esperar queAnuk se aliasse ao filho deOriana para desafiá-la. MasMirele?… Shantel amaldiçoou ocoração mole da filha mais nova.Ela convivera por tempo demaiscom Tariq.

Ao pensar no al-gharbio, suafronte se desanuviou. Estavaansiosa para confrontá-lo.

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– Convoca trinta guerreiros –ordenou ao guarda – e manda-os vasculhar a Citânia inteira, sefor preciso. Quero saber seMirele removeu o corpo daaberração ou se a criaturasobreviveu. Espero notíciasassim que a manhã romper.

O homem curvou-se e saiu.Ela seguiu o corredor por algunsmetros e logo viu Tarcísio apostos, junto de mais doisguerreiros.

– E meu novo escravo? –perguntou aos guardas.

– O prisioneiro não nos

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ofereceu resistência, senhora –respondeu Tarcísio.

– Muito bem. Podeis ir-vos.E enquanto os guerreiros se

afastavam, Shantel, com umsorriso deliciado, entrou em seuaposento.

APÓS SAIR DO QUARTO DE

CROM, Carol não sabia paraonde ir. Aquela casa era umverdadeiro labirinto, e elaprecisava urgentemente de umlugar para se esconder. Acabouencontrando um nicho nocorredor, que ficava meio

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oculto atrás de uma coluna.Encolheu-se lá, tentando

fazer-se mais apresentável. Aparte de cima do vestido cor depérola estava arruinada, e umadas mangas fora arrancada.Apesar do pavor que aindasentia, que fazia suas mãostremerem, a jovem rasgou amanga restante e a amarrousobre o corpete rompido,improvisando uma coberturapara seus seios expostos.

Estava lá, sem coragem de semover, quando ouviu passos, epercebeu a cruel prima de

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Oriana passando; ela seguiu atéo final do corredor e parou apósa primeira curva. Com medoaté de respirar, Carol ouviu odiálogo que se seguiu.

– E meu novo escravo?– O prisioneiro não nos

ofereceu resistência, senhora.– Muito bem. Podeis ir-vos.A filha de Tiago se manteve

imóvel enquanto os brácarosdeixavam a porta que estiveramguardando e percorriam ocorredor na direção oposta àque a druidesa tomara. Esperoumais alguns minutos e, quando

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tudo parecia silencioso, deixouo esconderijo.

Durante algum tempo, nãoencontrou ninguém. Entrou porum corredor secundário,iluminado por uma janelinhaalta, que denunciava a claridadedo amanhecer. Seu coraçãoquase parou quando, no fundodesse corredor, uma porta seabriu, entrou uma forte luz, eum vulto enorme emergiu!

Carol estacou e não conseguiuimpedir-se de soltar um gemidode susto. Mas quando olhoumelhor, acostumando-se com a

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luz que vinha da porta aberta,viu que o vulto não passava deuma mulher carregando umimenso cesto de roupas.

– Por Cal-leach, filha, quesusto me deste! O que fazesaqui?…

Era Belmira, a escrava que avestira antes da audiência. Caroltentou responder, mas nãoconseguiu. Seu coração aindabatia alucinado, e não sabia seconseguiria explicar o queocorrera no quarto.

A velha mulher pousou ocesto e conferiu o hematoma no

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rosto da moça, as trancinhasdesalinhadas, o vestido rasgado.Pegou uma manta entre asroupas que carregava, com aqual envolveu a cabeça e osombros da humana.

– Vem comigo – disse,bondosa. – Precisas de um chábem forte.

E a levou através da porta, quedava num pátio já iluminadopelo sol nascente. Carol, quetinha agora só os olhosdescobertos, seguiu-adocilmente, passando por entreescravos que iniciavam o

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trabalho do dia.Atravessaram aposentos de

pedra cheios de cestos devíveres, tinas de água quentefumegante, barris de vinho, euma cozinha imensa em que ofogo ardia em vários fornos. Ocheiro bom de pão sendo assadoinvadiu suas narinas e a fezchorar, lembrando-se do pãoquentinho que costumavacomer todas as manhãs antesque o pai abrisse o bar.

“Como foi…?”, ela pensou,entre lágrimas, enquanto seguiaBelmira pelos subterrâneos do

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casarão de Eurico. “Como foique a minha vida de repentedeixou de existir? Como foi queuma técnica em enfermagemque morava perto da estaçãoTietê veio parar numa espéciede feudo medieval cheio deguerreiros e quase foi atacadapor um deus antigo?”

Afinal, a escrava parou numcorredor sem saída. Puxoualgumas vassouras encostadas naparede. Surgiu diante delas umaportinha de madeira gasta, comum metro de altura. A porta foiempurrada e revelou uma

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escadaria; ambas se inclinarampara passar pela abertura e, apósdescerem os degraus, foramparar num largo salão de pedra,iluminado por archotes deverdade, não as imitaçõeselétricas que Carol vira antes.

Havia pessoas no local:algumas deitadas em camasimprovisadas nos cantos, outrasjunto a uma lareira acesa nocanto mais distante do salão; via-se um caldeirão no fogo e, emlajes achatadas junto às brasas,também se assava pão.

Mas o que chamou a atenção

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da jovem foi uma grande mesade pedra, no lado mais escurodo salão, coberta por um tecidofino e bordado. Percebeu algosob o tecido… Recuou,quando se deu conta do que eraaquilo.

Era um cadáver. Diante damesa, três guerreiros, ajoelhados,tendo à sua frente as espadas,prestavam algum tipo dehomenagem. Belmiragentilmente levou a moça paralonge dali e a fez sentar-sepróximo à lareira.

– Aquele… aquele é…

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– É Kían, o mestre-de-armas.Conseguimos trazer o corpopara cá esta madrugada. Serávelado e terá um funeraldecente nas catacumbas. Osbrácaros que vês não aceitam anova ordem na Citânia.

Carol olhou em volta denovo, desta vezcompreendendo.

– Este lugar… é um refúgio.Uma espécie de resistênciacontra Shantel e Crom.

Belmira sorriu com os poucosdentes que lhe restavam.

– E nem a druidesa nem os

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capitães da guarda têm a menorideia de que ele existe. Estarássegura aqui, filha.

O BAIRRO DE SANTA TERESA

estava quase deserto àquela horada madrugada. Galaor seresignara a fugir a pé atéencontrar aberta uma locadorade veículos. Não podia utilizaros carros da família, que seriamfacilmente identificados numaperseguição.

Dissera aos dois adolescentesque ia conseguir aliados.

– E os aliados vão nos ajudar a

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derrotar o tal Crom? – quissaber Gael.

– Ainda não entendeste,aberração, que absolutamentenada pode enfrentar um deus? –disse o guerreiro.

Anuk quis xingar o padrastopor ainda chamar Gael deaberração. Duas coisas a fizeramcalar-se, porém: o fato de queMirele jamais xingava alguém ea lembrança de que ela ochamara assim, como forma dehumilhá-lo, durante um bomtempo.

O garoto não parecia se

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importar nem um pouco comaquilo. Estava pensando.

– Ahn… Aqui no Rio temuma floresta, não é?

– Floresta? Tem o ParqueNacional da Tijuca, onde fica oCorcovado. É pra lá que queresir? – disse Anuk, empurrando-osem muita sutileza. Galaor járetomara a caminhada e seguia àfrente deles. – O parque éenorme, mas não é um lugarassim tão seguro para…

Ela parou de andar, finalmenteentendendo o que ele quiseradizer quando ainda estavam na

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cidadela. O único que pode combaterum deus é outro deus.

– É isso, não é, seu maluco?Queres entrar numa floresta parapedir ajuda a Anhangá!

– Foi a primeira divindadeque conheci – justificou Gael,dando de ombros. – Acho quepode nos ajudar e…

– Loucura! Aquela criaturaquase nos… quase vos matou! AAnuk me contou tudo o queocorreu no Vale do RioQuilombo – justificou ela,rapidamente.

– Acho que Anhangá não vai

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gostar dessa história do Cromquerer dominar o mundo. Seela não me matou daquela vez,não vai me matar agora. Vamospara a Tijuca.

– Mas é perigoso! – elagemeu. – Eu… A Anuk porpouco não conseguiu te salvar!

Gael fitou-a, estranhando aexplosão. Quanto mais tempopassava com a garota, mais tinhacerteza de que seutemperamento era similar ao deAnuk, o que o confundia. Ele iafazer alguma pergunta quando otio, que ouvira parte da

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conversa, os interrompeu.– Na próxima esquina tem

uma locadora que funcionavinte e quatro horas. Ficai aquienquanto alugo um carro parasairmos da cidade. O melhor éevitar os aeroportos do Rio. Seformos pela rodovia até CaboFrio, no aeroporto de láembarcaremos em algumaconexão para Salvador. E quehistória é essa de se enfiarem namata? Ireis comigo para oQuilombo dos Iorubás.Akinlana é um aliado poderoso.

– Mas ele não é um deus –

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disse Gael. – Prefiro o meuplano. Como sou mestiço,transito no mundo indígena…Tenho de tentar.

Anuk ficou pensativa. Empoucas semanas aquele garotosem qualquer treinamento haviasobrevivido a ameaças insólitas:um tio violento, guarda-costasal-gharbios, guerreiros brácaros,a incompetência de Orianacomo mãe, uma vingativa deusaindígena, uma onça negra, umasentença de morte e um deuscelta sedento por sangue.

Tinha sobrevivido até a ela

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própria…– É, pode dar certo – admitiu,

com um sorriso enigmático.– Os dois ficaram doidos? –

berrou Galaor. – Vamos paraSalvador!

– Sem chance – declarouAnuk. – Tu vais conversar como tal Akinlana… e Gael e euvamos para a floresta, procuraroutros aliados.

O guerreiro bufou, tendoplena consciência de que nãopossuía qualquer autoridadesobre os adolescentes. Pisandoduro, entrou na tal locadora.

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Em pouco tempo saiu de lácom um veículo inesperado, umsedã branco discreto, que malacomodava sua figura gigantesca.Era provavelmente o carro quemenos combinava com umguerreiro brácaro. Mas Anuknão fez nenhuma observaçãosarcástica.

– Se você for mesmo proquilombo – Gael lembrou,antes que se separassem –, dizpro meu tio que eu estou bem.

Vendo que Galaor ia protestarsobre não ser nenhum meninode recados, a garota o

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interrompeu, estendendo a mão:– Ah, tens algum dinheiro

para nos dar? Minha bolsa ficouem casa.

Com mais um bufo, ele tiroudo bolso algumas notas eescolheu um dos cartões decrédito para lhe entregar.

– E nada de comprinhas noshopping! – resmungou.

A garota engoliu uma respostamalcriada antes de revelar umsorriso adorável.

– Já fiz compras hoje –respondeu, na costumeiravozinha irritante de Mirele. –

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Quero dizer, ontem… Já vaiamanhecer.

De fato, o céu ameaçavaclarear; Galaor ia tentar de novoconvencê-los a irem com ele,quando os três ouviram pneuscantar e o ronco de motorespotentes a pouca distância. Oirmão de Oriana abriu a porta eordenou, com urgência na voze os sentidos em alerta máximo.

– Entrai, depressa! Shanteldescobriu nossa pista e mandouguerreiros atrás de nós.

Anuk saltou para o banco detrás e Gael mal teve tempo de

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afivelar o cinto de segurança noda frente; o tio pisou noacelerador e o carro disparoupelas ruas.

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-O

CAPÍTULO 10

Perseguição

QUE TENS DE FAZER –explicou Finnath – é deixartudo o que perturba tua mentesuperficial e buscar a consciênciaprofunda. O objeto da deusa

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iorubá terá mais força.Tiago, acabrunhado, suspirou

para o érin.– Quando eu estava no

quarto, funcionou – disse. –Olhei a pia cheia de água e vi orosto de Nan. Ela falou comigo,disse que podíamos noscomunicar desse jeito. Masnaquela hora eu não sabia queminha menina iria parar nasmãos daquele…

Oriana se aproximou. Traziaum jarro desembeiçado decerâmica enegrecida, queencontrara jogado na cela. Havia

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um pouco de água dentro dele.– Tua filha não é mais criança

– disse. – É uma mulher, e tempersonalidade forte. Confia nela,Carol vai ficar bem.

Finnath tomou o jarro ederramou um pouco da águasobre uma das pedras no chãoirregular. Formou-se uma poçana concavidade. Escassa luzvinha da janela gradeada, masera suficiente para fazer asuperfície do líquido brilhar.

– Agora, Tiago – continuou oérin –, tenta contatar os iorubás.

O pai de Carol ajoelhou-se e

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fixou o olhar no espelho deágua. Viu o próprio rosto,agoniado. Com a mão esquerdaapertou o otá, que continuavareluzindo em vermelho. Epassou os dedos da mão direitade leve sobre a poça…

A imagem que se formoudesta vez era bem mais clara. Eleimaginou se isso aconteciaporque Oriana e Finnath, gentede magia, tinham colocado asmãos em seus ombros paraampliar a conexão. De qualquerforma, ali estava Nan. A seulado havia duas pessoas: o

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babalaô Oloú e uma mulherruiva. Mais gente de magia.

– Nan, diga se está me vendoe ouvindo – Tiago pediu.

– Claramente – respondeu aiorubá. – Vejo que você encontrou osenhor érin.

– Sim, estou preso numa celacom ele, Oriana e o pai dela.Tem também um outroguerreiro, que é… hum…

– Al-gharbio – a mãe de Gaelcompletou.

– Isso! E o chefe deles, oTariq, está preso em outrolugar. Tem muita coisa esquisita

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acontecendo.– Conte o que viu, Tiago. Akinlana

reuniu os chefes de clãs aqui, e eles vãotentar ajudar. Mas precisam de maisinformações.

– Certo. Então… vamos lá.E ele narrou todos os sinistros

acontecimentos daquela noite.Do outro lado da conexão, Nantransmitia a história, palavra porpalavra, aos representantes dosclãs.

TARIQ NÃO SE VOLTOU aoouvir o ruído da porta. Estavaem pé diante da janela, na saleta

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que antecedia o quarto dadruidesa. Olhava serenamentepara o céu que clareava.

Shantel o observou por algunssegundos. A atração que sentiapor Tariq sempre estiveramisturada ao ódio que nutriapor Oriana. Quando, há quinzeanos, manipulara Viriato paralhe trazer a poção da bruja, odesejo de possuir o al-gharbiona verdade não se devia aqualquer tipo de afeição, mas àsimples vontade de impedir quea prima o tivesse.

Haviam passado um mês

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juntos, enquanto a poção fizeraefeito. Após aquele período, elea deixara sem recriminações,mas também sem carinho.Durante a gravidez e a primeirainfância das gêmeas, tratara-abem e se assegurara de que ela eas meninas tivessem de tudo.Nos últimos anos, porém,passara a encará-la com frieza.Agora ela o faria pagar por isso.Pela segunda vez, conseguiraarrancá-lo dos braços deOriana…

Desprendeu o manto queusava, deixando-o cair ao chão,

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e chutou para longe os sapatos.Guardou a adaga num cofreeletrônico na parede.

Andou pelo cômodo, fazendoo sarcasmo tingir suas palavras.

– És meu escravo agora, Tariq.Deves recepcionar tua senhora.

Ele não se voltou para olhá-la.Continuava a fitar a janela.Calmo, respondeu:

– Sou líder de um clã. Possoser prisioneiro de guerra, jamaisteu escravo.

Ela se sentou em umapoltrona confortável, bem àfrente dele. Sorriu, ao fitar os

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braços fortes, o rosto másculo,os longos cabelos negros. Seriatão divertido quebrar-lhe oorgulho, vê-lo a seus pés, acabarcom aquele ar de superioridade.

– Tu te acostumarás. Possomandar açoitar-te, expor ogrande líder dos al-gharbios nopelourinho da Citânia para quetodos os brácaros vejam.

Ele permaneceu impassível.– Isso não me tornaria teu

servo, apenas tua vítima.– Posso usar magia para te

obrigar a me obedecer, jogar-seaos meus pés, dar-me todo o

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prazer que eu desejar. Tenhopoder para isso, Tariq. Nãoduvides.

– Isso não me faria amar-te,druidesa.

– Achas que quero teu amor?– ela gargalhou. – Nestemomento possuo teu corpo,não preciso de teu espírito.

Ainda a resistência orgulhosanos olhos do pai das gêmeas.

– Não penses que acreditei emtudo que Viriato confessou –disse ele. – A poção da bruja foitua ideia, não foi? Ele apenas teserviu de instrumento. Mas eu

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não te servirei!Shantel começou a abrir o

corpete do vestido. Oestoicismo dele só a fazia desejá-lo mais. Jogou a carta que sabiaser invencível.

– Ah, sim, tu me servirás, epor tua própria vontade.Sabes… Mandei trancafiarOriana numa cela dossubterrâneos. Caso não desçasdesse teu pedestal de orgulho,vou ordenar que a tragam. Elate substituirá no pelourinho. Oque achas disso?

O al-gharbio empalideceu.

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Shantel podia ver a luta sendotravada dentro dele. Comoguerreiro, ele suportariaqualquer tortura e nãocapitularia diante de ameaças.Mas ela sabia que Tariq aindaamava sua prima, vira issoclaramente quando entrara nosalão de Eurico. Esse era seuponto fraco. Líder ou não, elefaria qualquer coisa para salvarOriana.

Lentamente, ele a fitou. Sabiaque a druidesa não fazia ameaçasvãs.

– O que queres de mim? –

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murmurou, vencido, baixando acabeça numa reverência.

Ela terminou de abrir ocorpete.

– És meu escravo agora –repetiu. – Deves recepcionar tuasenhora.

O CARRINHO BRANCO queGalaor alugara disparou por ruassecundárias; ele evitava entrarem avenidas, sabendo que osdois enormes SUVs negros quevislumbrava pelo espelhoretrovisor não estavam parabrincadeiras.

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A única esperança de escaparaos potentes veículos erajustamente entrar por ruelasadequadas à passagem de umcarro menor, mas queapresentariam dificuldades aosmaiores. Além do mais, osperseguidores esperariam que osfugitivos buscassem o acesso aosaeroportos, e Galaor não ia emdireção ao Santos Dumont, nemao Galeão. Já que os teimososadolescentes queriam se enfiarna floresta da Tijuca, faria suavontade e os levaria para lá…

– Não dá para sacolejar

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menos, não? – choramingouAnuk, balançando-se no bancode trás, imitando um tom queMirele usaria.

– Cala a boca e faze algo deútil – respondeu o padrasto,mal-humorado e atento àperseguição. – Se sabes usar amagia, podes ajudar a disfarçar aaparência desta porcaria decarro… Mesmo tão cedo háhumanos nas ruas. Sechamarmos a atenção da políciadeles, as coisas podem secomplicar mais ainda.

Criar ilusões era magia

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complexa, porém a garota selembrava de certas palavras queouvira a mãe pronunciar. E sabiaque o pai de Gael era um índiotransmorfo: talvez o filho tivesseherdado alguma energia detransformação que ela pudessecatalisar.

Não seria um encantamentosimples como a telecinésia. Atéo momento em que Shanteltrancara a magia na Citânia,qualquer brácaro era capaz demover certa quantidade dematéria com a mente, e todosusavam esse poder para coisas

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prosaicas – acender fogo, abrir efechar portas com um estalo dededos. Agora, dentro dafortaleza brácara, até isso seriaimpossível… Mas eles já estavambem longe de lá.

Apreciando o desafio, elaestendeu a mão ao filho deOriana, que se mantinha numsilêncio fatigado desde quehaviam entrado no carro. Eletomou a mão na sua com umaindagação nos olhos.

– Estás vendo essavermelhidão na tua roupa? – elaexplicou, tocando as manchas

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de sangue na camiseta dele. –Concentra-te nisso.

– No sangue? – Gael entendiacada vez menos.

– Não, tolo – ela teve de seesforçar para usar umxingamento mais ameno do quecostumava usar. – No vermelho.Pensa em vermelho.

Cansado demais para discutir,ele fez o que ela pedia. Nomesmo instante, percebeu que agarota estava concentrandoondas de magia ao redor deambos. Fechou os olhos edeixou a mente flutuar naquela

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ideia. Uma cor…Ouviu-a pronunciar palavras

em uma língua estranha – e, dealguma forma, sabia o que elaestava dizendo! Estavaordenando algo à matéria que oscercava. Exigindo que o que erabranco se tornasse vermelho…

Galaor quase pisou no freioquando se deu conta do queestava acontecendo. Assim quedeixaram o túnel Rebouças, alataria do carro mudara de cor!E aquela ilusão não enganariaapenas os olhos humanos. Atéele estava vendo a

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transformação!A garota soltou a mão de

Gael, que parecia prestes adesmaiar.

– O que é que tu tens?– Nada… estou bem… –

balbuciou ele.O tio deu uma olhada de lado

para o garoto.– Está esgotado – concluiu. –

Perdeu muito sangue notemplo, e não está acostumado ausar magia. O que tu fizeste foibem complicado… Estouimpressionado, Mirele. Esperariaum feitiço desse nível de Anuk,

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nunca de ti.– Posso fazer qualquer coisa

que minha irmã faz –resmungou ela, amuada, commedo de que Gael tivessepensado naquilo também.

Porém ele fechara os olhos,parecendo exausto demais paranotar a observação do tio, que aessa altura fazia o sedã vermelhoenveredar pela rua do JardimBotânico.

Anuk já podia divisar o Morroda Tijuca à sua esquerda.

DEPOIS QUE O CARRO DOS

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FUGITIVOS, sob a vigilânciaatenta de Hélio, atravessara oCatete e Laranjeiras, o primeirodos SUVs entrou atrás dele pelotúnel Rebouças.

Só que, quando osperseguidores deixaram o túnel,não viram mais a presa.

O motorista brácaro fitou arua à frente sem saber para ondeseguir. Olhou para Hélio, que omandou estacionar no primeirolocal viável. Nenhum sedãbranco deixara o túnel! Agoranão era possível saber se Galaoria para a Zona Sul, pretendia

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contornar a lagoa Rodrigo deFreitas, seguiria para Copacabanaou retornaria ao Centro.

– Devem ter usado magia –resmungou um dos guerreirosno banco traseiro. – O quefarás? Vais avisar à druidesa queos perdemos?

– Nada disso – disse Hélio. –Ela nos esfolaria vivos… Nãovos preocupeis, eu sei comoencontrar a pista de novo.

E pegou, ao lado do banco docarro, uma maleta. De dentrodela, tirou uma pequena caixade madeira negra entalhada.

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Abriu-a, com um sorriso. Emminutos, saberia exatamentepara onde ir.

NAQUELA MANHÃ, oscomandantes que ainda nãohaviam recebido ordens donovo líder da Citânia estavam àespera no ex-gabinete deEurico. Shantel mandou oguerreiro que lhe trouxera esseaviso dizer-lhes que esperassem:iria buscar Crom Cruach.

A druidesa dormira pouco,mas se sentia exultante. Tudocontinuava às mil maravilhas. Ao

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deixar o toalete, desta vezvestida mais sobriamente – comroupas de couro trazendo asinsígnias dos brácaros, inclusive ataça estilizada –, viu Tariq denovo em pé diante da grandejanela. Congratulou-se consigomesma: o orgulhoso al-gharbioperdia sua pose de líder. Elahavia mandado sumirem comsuas roupas, e agora ele eraobrigado a usar as vestes simplesdos escravos da Citânia.

– Tomarei a primeira refeiçãocom o venerado Crom – disse aele, casualmente. – Tu podes ir

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às cozinhas ou aos alojamentosdos escravos, se tiveres fome.

Ele lhe respondeu com certaironia.

– Não vais confinar-me nestesaposentos?

– Não será necessário –retrucou ela, olhando-se numespelho da parede e ajeitando oscabelos. – Meus guardas tevigiarão, por isso tens liberdadede circular, desde que não saiasda casa nem entres nas salasparticulares de Eurico.Entendeste?

– Sim – respondeu ele, entre

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os dentes.Shantel riu. Como a atitude

de obediência lhe era custosa!– Podes fazer melhor que isso,

Tariq – insistiu, cruel.Ele precisou de muita força de

vontade para inclinar-serespeitosamente.

– Sim, minha senhora.A druidesa saiu ainda rindo e

bateu a porta atrás de si. Estavaadorando aquilo.

ENCONTROU CROM AINDA

ADORMECIDO. Preparou-lheum banho, separou roupas de

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gala que tinham sido do maridoe mandou um escravo retirar asgarrafas vazias. Logo dois servostraziam um farto café da manhã.Ele acordou com os ruídos, osolhos vermelhos reluzindosinistramente.

– Hoje é um bom dia paraguerrear – disse. Levantou-se efoi conferir a paisagem pelajanela.

Daquele quarto via-se o pátioprincipal da Citânia, com amovimentação normal do povo,dos escravos e dos guerreiros. Océu estava azul e o sol brilhava,

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embora um vento frio soprasse euma névoa cobrisse o horizontealém da fortaleza.

– Teus comandantesaguardam no gabinete, meusenhor – informou ela,servindo-lhe café numa enormexícara. – Tens fome? Assim quete alimentares, podes banhar-tee vestir roupas dignas de teupoder. A guerra que desejas estáprestes a começar…

Crom desprezou o café eatacou as carnes e os pães.Shantel comeu algumas frutas eesperou que ele terminasse.

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Duas escravas já estavam a postospara banhá-lo, tremendo depavor. O que a fez lembrar-sede algo.

– A humana… O que fizestecom ela, meu senhor? Mandastealguém vigiá-la?

Crom franziu as sobrancelhase respondeu, sem deixar demastigar.

– Mandei-a embora. Sequiseres, podes sacrificá-la, elanão me agrada mais.

Foi a vez de a druidesa franzira testa. Sabia perfeitamente quenão lhe cabia questionar um

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deus, mas aquilo erapreocupante. Se elesimplesmente mandara a jovemsair, ela poderia estar emqualquer lugar! Deixando Cromaos cuidados das servas,convocou dois guerreiros nocorredor e mandou irem embusca de Carol. Seria um prazerexecutá-la… assim que aencontrasse.

Depois, acompanhou CromCruach no encontro com oscomandantes, ainda imaginandoonde estaria a humana. Mas nãoestava realmente preocupada.

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Ninguém escapava das trêsmuralhas da Citânia.

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F

CAPÍTULO 11

Amanhecer

OI UMA NOITE

TERRÍVEL para osprisioneiros. Eurico estava

semiconsciente, não parecendoter noção de nada. Oriana nãoconseguiu dormir e Tiago teve

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um sono agitado, deitado nochão de pedra suavizado apenaspor um pouco de palha.Desejara sonhar com Nan,porém a pedra de Oiá nãoparecia ter o poder de lheproporcionar bons sonhos; apóscomunicar-se com o quilomboe ouvir a promessa de queAkinlana tomaria providênciasjunto aos clãs, ele vira a pedraperder o brilho.

Os guerreiros, tanto o érinquanto Kassib, o al-gharbio,velaram até o amanhecer,imperturbáveis. E foram eles

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que recepcionaram a escravaque veio lhes trazer alimentosquando o sol já se mostrava pelovão da janelinha gradeada.

Oriana levantou-se, ajeitandoas roupas amarfanhadas etentando recuperar um poucoda dignidade perdida. Ser jogadanuma cela na própria casa de seupai era algo que não esperava terde suportar. Quando viu arecém-chegada, então, suaresolução de manter-se fortequase desmontou. Reconheceua escrava que a criara.

Belmira deixou no chão a

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cesta que trouxera, com pães,frutas e um jarro de água. Sentiuo coração apertado ao ver a queestado estava reduzida suasenhora. Mas sabia que nãopodia dar-se a qualquer efusão;os vigias espiavam pela aberturada porta.

Tiago se levantou e foi pegaruma fruta, enquanto os doisoutros continuavam imóveis,enrolados em seus mantoscinzentos. A velha escravaajudou Oriana a levantar o paipara tentar fazê-lo tomar umpouco de água. Conversaram

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em voz baixa.– Minha senhora, estou tão

feliz em ver-te de novo… –começou a mulher.

– Eu também estaria feliz emte ver, minha boa Belmira, senão estivesse nesta situaçãohumilhante – foi a respostaamarga da mãe de Gael.

– Não te preocupes tanto,senhora. Tua prima podemanipular os guerreiros, masnão manda nas consciências.Muitos brácaros são fiéis aosenhor Eurico. A resistência estásendo organizada.

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O ex-líder pareceu entender oque ela dissera; entreabriu osolhos e tomou um pouco daágua que lhe ofereciam. Depoisvoltou a deitar-se, de novoalheio ao exterior.

– Que Cal-leach nos ajude –murmurou Oriana, maisanimada. – Tu sabes dizer o quefoi feito de Tariq e da jovemhumana, Carol?

– Sim, senhora. A humanaescapou de Crom e está emsegurança, escondida nossubterrâneos. Já Tariq foi feitoservo pessoal da senhora Shantel.

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Acabo de vê-lo na cozinhatomando uma refeição juntocom outros escravos. Pelo queme disseram, ele pode circularpela casa, mas não pode sair.Todas as saídas estão fortementevigiadas.

Kassib ouviu aquilo e rosnoude raiva. Oriana deixou escaparuma lágrima por Tariq. Umorgulhoso chefe de clã, sujeito àescravidão! Pelo menos a irmãde criação de Gael estava asalvo. Agradecendo à deusa,ajeitou o pai na cama de pedra;sua fronte estava quente, febril.

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Precisava fazer alguma coisa porEurico, precisava falar comTariq, mas como sair dali? Comexceção da magia do amuletode Tiago, nenhumencantamento conhecidofuncionava; e a pedra vermelhanão os ajudaria a escapar da cela.Que feitiço a prima fizera,exatamente? Se pudesse dar umaespiada no templo…

Antes de se afastar, Belmira lheentregou um manto fino, quetrouxera escondido.

– Creio que posso dar umjeito de saíres daqui por uma

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hora, ao menos, senhora – disse.– Só não tenho tempo deexplicar tudo agora. Terás deconfiar em mim.

A mãe de Gael tomou suasmãos calejadas com carinho. Iadizer algo, mas…

– Vais ficar a manhã toda aí? –reclamou um dos vigias, abrindoa porta.

– Já estou saindo! – respondeua mulher, ríspida, deixando acela. – Pensas que eu gosto deme enfiar neste buracofedorento? Cumpro ordens,assim como tu. E, para piorar, o

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velho está doente. É melhormandares pedir permissão àdruidesa para que eu tragaremédios, senão vai acabarmorrendo. Que eu saiba, elaquer os prisioneiros vivos!

O brácaro resmungou umpouco até decidir-se. Afinal, umdos guardas foi enviado aoencontro de Shantel com orecado. Mesmo caído emdesgraça, Eurico fora líder daCitânia por décadas. Ninguémali ia querer se responsabilizarpor sua morte em cativeiro.

Oriana ouviu os ferrolhos da

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grossa porta cerrarem-se;envolveu-se no manto e foiconfabular com os homens.Queria contar a Tiago queCarol estava salva. E haviaadivinhado qual o plano deBelmira.

GALAOR PAROU por merossegundos numa rua próxima àentrada do Jardim Botânico.Dali, planejava retornar aoCentro e à Avenida Brasil, parapegar o acesso à ponte Rio-Niterói. Anuk saltou para forado carro e puxou Gael, que

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bocejava.– Tu sabes o número do meu

celular, Mirele – disse opadrasto. – Cuida-te…

E arrancou pela avenida, semum segundo olhar aos doisjovens. Conhecia bem demais ospoderes de Shantel para duvidarde que logo teria de novo osSUVs da Citânia em seuencalço.

ANUK FEZ UMA CARETA eatravessou a rua, entrando poruma viela ao lado. Gael aseguiu, cismado. Pensara que

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iriam direto para o parque.– Aonde você vai, Mirele? A

gente não ia…– Sim, vamos entrar no

jardim. Só que já é de manhã,tem gente nas ruas, e tu tens detrocar essa camiseta suja desangue. Além disso, precisamosde comida e água. E de umcelular… A anta do Galaor sabemuito bem que eu saí sembolsa.

Andaram um pouco até queela viu duas pessoas abrindo asportas de ferro de uma modestaloja de roupas. Ali ela não

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conseguiria um celular, mas teriade servir, mesmo porque era oúnico estabelecimento abertopor perto, com exceção de umboteco na esquina. Tinha namão o cartão de Galaor e odinheiro que ele lhe dera.

– Espera aqui.Desenvolta, entrou no bar e

voltou em dez minutos, comuma sacola que entregou a Gael.Ele imediatamente pescou umpacote de bolachas, abriu-o ecomeçou a comer.

– Você não quer? – ofereceu.– Mais tarde. Agora preciso

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comprar umas roupas. Vê se nãosomes!

Gael não tinha intenção desumir. Encostou-se numaparede e detonou metade dopacote de biscoitos enquanto asuposta Mirele ia até a tal loja.Na sacola havia ainda sanduíchesembrulhados, garrafinhas deágua, barras de proteína, maisbiscoitos e chocolates. Sentiu-setentado a comer os chocolates,mas achou melhor esperar pelagarota.

Ela retornou com outra sacola.Quando o alcançou, deu-lhe

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uma camiseta branca. O garotosentiu alívio ao se livrar daoutra. A calça jeans e as luvasque usava haviam recebidoalguns respingos de sangue; mas,como eram escuras, não apareciatanto. Enquanto ele trocava decamisa, ela vestiu uma blusa demoletom bege sobre o vestidode alcinhas e os braços gelados.O sol nascera; contudo, a manhãcontinuava fria.

Anuk comprara também umpar de tênis, meias, maiscamisetas e uma calça demoletom da mesma cor. Além

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de uma mochila de lona, naqual enfiaram todas as compras,inclusive a comida. Ele colocoua mochila nas costas.

– Não vai vestir a calça e ostênis?

– Depois – foi a resposta mal-humorada da gêmea. – Quandonão tiver ninguém olhando. Sótinha roupa vagabunda naqueladroga de loja. E não há nenhumlugar aberto que vendacelulares. Vamos ter de ficar semisso, por enquanto.

Saiu, andando de volta àavenida. Gael foi atrás dela,

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pensando que teria adorado terum celular com máquinafotográfica. Seria a primeira vezque visitaria o Jardim Botânico.

O local estava fechado: a placadizia que o horário defuncionamento era das 8 às 17horas. E, pelos cálculos de Gael,deviam ser pouco mais de setehoras. Aquilo, porém, não iriabarrar a garota. Ela estalou osdedos e o portão de ferro seabriu o suficiente para deixá-lospassar. Os funcionários que osviram não pareceram seimportar.

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– E agora? – perguntou ele,parado na avenida ladeada pelasimensas palmeiras imperiais, queiam dar numa fonte. Aquilo eraa coisa mais linda que já vira:podia imaginar Dom Pedro II ea imperatriz Teresa Cristinaandando por ali… “Acho que aspalmeiras eram mais baixinhasno tempo deles”, pensou, comum sorriso.

– Tu querias ir para o Parqueda Tijuca, não querias? – Anukapontou para a esquerda. – Elefica bem atrás do JardimBotânico. O mais fácil é irmos

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por aqui; no fim desta avenidatem um lago e, mais para cima,um museu. Depois do museu épraticamente mata. Lá para trástem algumas ruas e favelas, masninguém vai prestar atenção nagente.

Ela já tomara o caminho quedava no lago. Gael olhavaavidamente os detalhes dojardim. Era lindo e cheio deesculturas, construções dotempo do Império, árvorescentenárias. De certo ponto eleviu, lá no alto, o CristoRedentor. Parecia bem

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pequeno…O lago que a gêmea citara

estava cheio de vitórias-régias;quanto ao museu, que sechamava Casa dos Pilões,possuía típica arquiteturacolonial. Ele teve saudades deseu caderno de relatórios docolégio. Sua professora deHistória ia delirar se descrevesseo que estava vendo… Bem, naverdade ela suspeitaria de queele usava drogas se contasse quehavia fugido de uma fortalezacelta-ibérica onde as pessoasviviam como num feudo da

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Idade Média. Exceto peloscelulares e pela energia elétrica.Ah, sim, e pela magia…

Deram a volta no museu eentraram por uma trilha que iana direção desejada, o Morro daTijuca. Anuk olhou de esguelhao filho de Oriana; ele pareciaum turista feliz numa excursão.E ela não aguentava mais fazer-se de gêmea boazinha. Quandovisse Mirele de novo, iria socá-la. Fora dela a ideia ridícula detrocarem de lugar, não fora?Xingou a irmã estúpida e aaberração imbecil que a

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convencera a se enfiar de novono meio do mato. Entãolembrou-se da última vez quevira a irmã – semimorta notemplo. Estremeceu, pensandoque a mãe usara a energia vitalde Mirele para trazer Crom àvida porque pensara tratar-sedela, Anuk. Se as gêmeas nãotivessem trocado as roupas, seriaela a jazer entre a vida e a mortena Citânia…

Já a recordação do beijo queGael dera na irmã fez seuhumor piorar ainda mais.

“E aqui estamos nós de novo

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num passeio ecológicoinsuportável”, pensou, indecisaentre xingar a sandália de tirasque não protegia seus dedinhoscontra a terra ou o sol que nãoesquentava de jeito nenhum.

– Acho que podemosdescansar um pouco – disseGael, sentando-se junto a umaárvore. – E você devia trocar deroupa de uma vez.

Afinal, estavam no inverno. Osol sumira e nuvens cinzentasagora cobriam boa parte do azuldo céu. A manhã chegara aofim.

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Ela resmungou. Não estavanem um pouco ansiosa paracolocar aquelas roupashorrorosas, e até ali não haviamencontrado um local abrigadoque servisse como provador.

– Aquela árvore vai servir –disse, mexendo na mochila.Pegou uma camiseta, omoletom, as meias e os tênis. –Tu vais olhar para outro lado,ouviste? Se eu perceber queestás espiando, esgano-te!

Gael sorriu.– Tem hora que você parece a

Anuk falando.

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Ela mordeu os lábios. Semprese esquecia da intragáveldocilidade da irmã.

– Vais olhar para lá ou não? –retrucou, chorosa. – Por favor,Gael…

Ainda sentado, ele obedeceu.Voltou-se para o lado oposto, ea garota tratou de ir para trás datal árvore. Tirou o agasalho e ovestido, enfiando as roupasbaratas o mais depressa quepôde. Voltou para junto deleainda sem amarrar os cordõesdos tênis.

Gael voltou-se e conferiu o

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resultado: enfiada num conjuntode moletom esportivo de corbege, a adolescente parecia umgaroto pronto a treinar futebolou vôlei.

Ela se sentou ao seu lado.Sentia um vazio no estômago.Sem uma palavra, tomou amochila que ele descera dascostas e encontrou ossanduíches. Pegou um e deuuma mordida. Gael não esperouconvite e se serviu de umtambém.

Após detonar o sanduíche etomar água, ela se sentiu menos

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irritada. Olhou ao redor, nadúvida se ainda estariam noterreno do Jardim Botânico ouse já haviam penetrado a área daFloresta da Tijuca. Não estavacerta de que o plano delefuncionaria e ainda sentia a dordas chicotadas que tomara da taldeusa indígena…

– Como se faz pra atrair umdeus da floresta? – indagou ele,após um gole de água.

– Da outra vez a Oriana atraiuAnhangá sem querer, usandomagia para acender umafogueira – lembrou a garota.

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– A Anuk te contou issotambém?

– Foi.A pergunta de Gael não

parecia conter qualquer pontade desconfiança.

– Posso acender uma fogueirada mesma forma, se quiseres –ofereceu ela, sentindo-se maissegura. – Combustão é magiasimples.

– Legal!O garoto se afastou para juntar

alguns gravetos, que amontooua seus pés.

– Manda ver! – incentivou.

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– Mas não sei se já entramosna floresta. Podemos ainda estarem terreno urbano. Deusesindígenas não aparecem emterreno urbano.

– Bom, a gente tem quetentar, não tem? Se Anhangánão aparecer, entramos mais nomato e tentamos de novo.

Um estalar de dedos depois eos gravetos ardiamplacidamente, oferecendo umpouco de calor para combater ofrio. Gael voltou a se sentar eAnuk se aconchegou a ele. Nãodemorou a encontrar os lábios

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que a esperavam…Como ele beijava bem! Anuk

começava a se viciar na sensaçãomaravilhosa de se sentiramada… “Ei, espera aí!”,alertou-a um pensamento. “Elepensa que está beijando aMirele! Quer dizer… estátraindo a Anuk! Me traindo!”

De modo abrupto, ela sedesligou dos lábios masculinos eo empurrou.

– Estás traindo a Anuk! –repetiu em voz alta.

– Estou mesmo?Anuk prendeu a respiração.

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Será que ele descobrira que…?– Desculpa, Mirele. É que

vocês duas são tão parecidas queeu… só me confundi.

Gael abraçou os própriosjoelhos e ficou olhando para aschamas da fogueira. Anukvoltou a sentir frio, apesar deagora estar agasalhada.

– Como podes amar aquelagrossa da Anuk? – perguntou,com raiva de si mesma. Estragaraum beijo delicioso porque ele atraía… beijando-a!

O garoto voltou a encará-la.O brilho das chamas destacava o

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dourado-escuro de seus olhos.– Eu a amo e a odeio. E por

odiá-la é que eu a amo mais.– Você seria mais feliz com

alguém como a… como eu.Os lábios gostosos se

aproximaram de novo. Anuk,ansiosa, colocou sua boca amilímetros do futuro beijo.

– Você é linda, cheia dequalidades… – sussurrou Gael.

– Sou?– É.Ela chegou mais perto.– Mas não é a Anuk. Me

desculpa, tá?

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E o adolescente girou o rostonovamente na direção dafogueira.

A garota quase explodiu detanta indignação. Ele adispensava!

Não. Na verdade, dispensavaMirele. Mas isto não a impediade se sentir rejeitada!

– Tem alguém seaproximando – avisou Gael,largando os joelhos para selevantar. – E acho que não éAnhangá.

A garota se ergueu. Tambémsentia uma presença próxima. À

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sua frente, ao redor da fogueira,a mata estava sendo tomada poruma espécie de neblina baixa. Eela vivera tempo suficiente noRio de Janeiro para saber queaquele tipo de neblina nãosurgiria quase no nível do mar.Aquilo não era normal. Eramagia.

Olhou para Gael. O garotopuxara os cabelos atrás dasorelhas felinas para ouvirmelhor. Seus dedos sob as luvasestavam esticados, prontos adistender as garras. E as pupilas,em seus olhos, cresceram como

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as pupilas de um gato. Umgrande gato…

Foi então que Gael rosnou eAnuk se sentiu desfalecer.

Ainda não eram oito horas damanhã, mas a escuridão desceusobre eles.

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S

CAPÍTULO 12

Em pé de guerra

HANTEL OBSERVAVA

CROM LIDAR com oscomandantes da

guarnição. Falavam a linguagemuniversal da guerra. Apesar deser recém-chegado ao Brasil, o

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deus celta conhecia os ancestraisdos clãs mágicos que viviam porperto. E aquele era seuelemento: matar, comandar.Debruçado sobre vários mapas,ele detalhava ofensivas.

A druidesa acabara de serabordada por um dos guardasdas celas, que a avisara de queEurico piorara. Mais uma vez,ela teve de colocar os desígniosde Crom à frente dos seus:desejava a morte do tio, porémseu senhor pretendia que elevivesse. Ordenou ao homemque mandasse escravos

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entendidos em medicamentospara tratar do velho. Além disso,cuidar do pai manteria Orianaocupada, não lhe dando tempode pensar em fugas.

Deu uma olhada no mapasobre a mesa. Ele apontavaalgumas das fortificações ocultasespalhadas pelo territóriobrasileiro. As maiores eram a dosbrácaros no Rio, dos al-gharbiosem São Paulo e dos iorubás naBahia. Mas havia clãs menores,como os helens, isolados emVila Velha, no Espírito Santo; osindígenas, liderados pelos

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kamayurás no Xingu e osjaguaras no Amazonas; e nãopodiam desprezar os shintos, deorigem oriental, instalados noVale do Paraíba, a meiocaminho entre Rio e São Paulo.Apesar de reduzidos emnúmero, estes eram temidos pelaperícia que seus samuraisdemonstravam na luta.

– Para atacar os clãs – disse umdos comandantes a Crom –,teremos de levar em conta oselementais. Eles podem se aliar aalgum clã e interferir. Éolos,sílfides e dríades são

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tradicionalmente amigos doshelens, e os igpupiaras apoiamos indígenas.

– Se forem como os faerie daIrlanda, sua magia é básica e sãofáceis de escravizar – comentouo deus. – Há rituais para lidarcom eles. Enquanto isso,preparai um destacamento parair a São Paulo. Tomaremos afortaleza dos al-gharbiosprimeiro…

Nessa altura, um novoemissário veio à procura deShantel. A druidesa o viucurvar-se com o rosto pálido.

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Sinal de más notícias.– Senhora, procuramos há

horas, mas ninguém encontrouo menor sinal da moça humana.Não pode ter deixado a Citânia,porque após a fuga de Galaorcolocamos vigias de confiançanas três muralhas. Também nãolocalizamos a senhora Mirele.Tentaríamos uma busca mágica,mas acontece que, desde ontem,nossa magia…

– Não funciona dentro dasmuralhas, eu sei – ela mordeu olábio inferior, furiosa por suaprópria estratégia voltar-se

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contra ela. Através dos pilares,concentrara todas as forçasmágicas em Crom, e agoranenhum dos encantamentosbásicos era possível. – Continuaiprocurando, vasculhai osalojamentos dos escravos. Nãoadmitirei falhas!

A palidez do brácaroaumentou ao ouvir as últimaspalavras da druidesa. Não queriapensar nas implicações de falhardiante da nova ordem quecomandava o clã.

Salvador

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JOÃO NÃO AGUENTOU MAIS

ficar no hospital do quilombo.Naquela manhã mesmo voltoupara a casa de Nan. Estavapraticamente curado, graças aosmédicos e, claro, à magia dosmãos-de-ofá. Esperava queAkinlana fosse vê-lo aindanaquele dia, mas na hora doalmoço Nan informou que o reiiorubá havia saído em viagemlogo cedo.

– Pra onde ele foi? – indagouJoão, perplexo. – Até estamadrugada estava reunido comtodos aqueles chefes.

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– Foi convocar guerreirospelos mocambos – ela explicou.– Depois do que o Tiagocontou, os clãs se decidiram pelaguerra. Vão se unir paracombater os brácaros.

– Todos mesmo? Os africanos,os índios, todos?

– A decisão foi de todomundo. E aceita pelos érin. Asenhora Cáitlin mandou oguerreiro que estava com ela devolta pra Irlanda. Até o clã celtamais antigo vai se envolver. Efaz séculos que eles não seenvolvem com nada fora da ilha

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deles…O humano ficou um tempo

em silêncio, ruminando ainformação. O coração seapertava quando pensava queTiago, Carol e Gael estavam naterra dos tais brácaros. O queseria deles, presos no meio deuma guerra daquelas?!

Ele tomou uma colherada dasopa que Nan acabara de lheservir. Era suculenta e o faziasentir-se melhor. Quandoterminou, estava com a mentebem menos confusa. Levantou-se, animado.

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– Bom, tenho muito quefazer. Quero que você me levepra falar com os comandantesdos guerreiros de Akinlana. Seeles vão sair para a guerra, euvou junto. E tenho poucotempo pra me preparar. Quantoantes começar, melhor!

Rio de Janeiro

ERA HORA DO ALMOÇO, masninguém entregou comida aosprisioneiros, além da queBelmira trouxera pela manhã.Kassib dividiu igualmente o que

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restava entre eles, separandomais frutas para Eurico e Oriana.O ex-chefe brácaro, porém, malingeriu o que a filha lhe deu; eela estava tão preocupada com oestado do pai que quase não sealimentou. Sua mente fervilhavade pensamentos desencontrados.

Tiago veio tirá-la da cama depedra e instou para que comessealgo.

– Você não vai ajudar seu paise ficar doente também – disse-lhe. – Tem que se manter forte.Pense no Gael: ele deve estarpreocupado com a gente, e

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procurando ajuda. Quandosairmos daqui, não vamosquerer decepcionar nosso filho,não é?

Ela sorriu ao pensar noadolescente. O pouco tempoque passara com ele a fizeraamá-lo profundamente, nãoapenas por ser filho dela e deRudá, mas principalmente pelocaráter que demonstrara. Apesardo medo do que poderia lheacontecer, ela nunca sentiratanto orgulho na vida quanto aovê-lo oferecer o própriopescoço para salvar Viriato. O

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tio que o jogara para a morte…Com um suspiro, pegou a frutaque o humano lhe oferecia.

– Não imaginas como isso édifícil para mim. Passei décadasodiando Eurico, e agora ele estáaqui, doente, dependendo dosmeus cuidados… É umasensação estranha. Eu o odeiopor tudo que ele fez, por termandado matar Gael. Mas aindaé meu pai.

Estavam nessa conversaquando ouviram os ferrolhos daporta. Viram Belmira entrar,trazendo uma cesta e enrolada

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numa manta esfarrapada.– Trouxe os remédios do

velho – resmungou ela,enquanto o guarda segurava aporta. – Mas não vou medemorar! Vê se apareces logoquando eu chamar. Este lugarvai feder mais ainda quando euaplicar os unguentos!

O brácaro resmungou devolta, e Oriana notou que destavez ele não ficou vigiando pelaabertura gradeada na porta. Oérin, respondendo a um gestoseu, foi colocar-se diante daabertura. E Belmira, sem perder

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tempo, desvencilhou-se domanto. Trazia um vestido igualao seu para Oriana.

– Aqui está, senhora. E só terásde mancar como eu. Tambémajuda se resmungares o tempotodo, eles estão acostumados àsminhas reclamações…

Em poucos minutos a velhaescrava estava sentada na camade Eurico, envolta no mantofino que trouxera horas antespara Oriana, enquanto esta,curvada, vestida como ela eenrolada nos farrapos, ia bater naporta. Belmira exclamou:

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– Abre logo, que estou compressa! O infeliz inchou e aindavou ter de preparar um chá deervas contra inchaço, era só oque me faltava…

Um guarda espiou pelaabertura e logo a porta se abria.Oriana saiu mancando, semparar de resmungar, imitando avoz da escrava.

– Daqui a uma hora eu voltocom o chá. Não se tem mesmosossego nesta casa, além de todoo trabalho na cozinha aindatenho de preparar chás para osdoentes…

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Os guerreiros aferrolharam aporta de novo e a deixarampassar. Oriana manteve o andarclaudicante e os resmungos atéterminar de subir as escadariasde pedra que iam dar no pátio.Ali, parou e encostou-se naparede, o coração disparado.Havia conseguido! Mas tinhaapenas uma hora de liberdade.O que faria primeiro?

Seu coração a levaria para osaposentos de Shantel, ondepoderia encontrar Tariq. Sabia,porém, que lá haveria guardas;além disso, o mais urgente era

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investigar que tipo deencantamento a prima puseraem ação. O melhor local era otemplo.

Sem deixar de mancar, esempre se lembrando deresmungar como Belmira, elaenveredou pelos corredores queserviam aos escravos. Conhecia-os bem, desde os tempos emque Viriato a escondia das surrasdo pai. Havia um quarto noprimeiro andar…

Em minutos chegaria aotemplo pela entrada dos fundos.

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EM QUALQUER CORREDOR oupátio que percorresse, Tariq viaguardas a serviço da druidesa.Não apenas eles o mantinhamvigiado e dentro do perímetroda casa, mas pareciam tambémter sido instruídos a humilhá-losempre que possível.

Quando se dirigia às salas quecostumavam ser usadas porEurico, planejando tentar ouviro que Crom tramava com oscomandantes brácaros, ouviuum guarda bradar:

– Aonde vais, escravo?– Vou encontrar Shantel –

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respondeu, fitando o homemnos olhos.

A bofetada que tomou opegou de surpresa. Arremessadocontra a parede às suas costas, eleia revidar, porém sentiu a espadado guerreiro em seu pescoço.

– Não te dirijas à senhoradruidesa como tua igual! Edeves respeito à guarda daCitânia, escravo. Eu pergunteiaonde vais!

O al-gharbio tratou de engolira revolta. Se queria viver paraescapar dali, tinha de seconformar à situação. Agir

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como um servo. Baixou o olhar.– Vou ao encontro de minha

senhora.O outro afastou a espada.

Sorriu com escárnio.– A senhora não quer ser

incomodada. E não tenspermissão de entrar nesta parteda casa.

Mantendo a cabeça baixa, elelembrou ter ouvido um grupode guerreiros, na cozinha,queixando-se das ordens paraprocurar por Mirele e Gael.Aparentemente, os dois haviamescapado… Precisava saber se

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isso era verdade.– Queria ao menos ver minhas

filhas. Podes dizer-me ondeestão elas?

O guerreiro devolveu a espadaà bainha.

– Não sei da senhora Mirele,mas a senhora Anuk está notemplo. Poderás vê-la. E, quemsabe, rezar por teu povo… nãovai sobrar muito dele, depoisque o nobre Crom Cruachpassar por São Paulo!

Tariq voltou pelo corredor,após forçar-se a fazer novacurvatura ao guerreiro. O

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esforço que aquilo lhe custavaera tremendo. Enquantoprocurava um caminho, depreferência sem trombar commais guardas, pensava quesempre tratara os próprios servoscom frieza e severidade. Nuncalhe ocorrera que um diatambém teria de sersubserviente. Sorriu de leve;tinha de admitir que, talvez,merecesse ser humilhado…Jurou que, se voltasse à sua casa,a situação mudaria. Muito.

Seu clã, porém, não mereciaqualquer tipo de humilhação.

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Tinha de achar uma forma deescapar e ir defendê-lo. Se aomenos não tivesse enviado seusegundo em comando, Hanef,para o quilombo com a senhoraérin… Deixara a fortaleza semuma liderança forte. Mas comopoderia ter imaginado que asituação tomaria tal rumo? Erapreciso mandar uma mensagemaos iorubás. Akinlana semobilizaria contra os brácaros.

Afinal, depois de perambularum pouco, ele encontrou orumo para a entrada principaldo templo, uma porta dupla

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trabalhada com espirais emrelevo sobre a madeira.

Maricá

NITERÓI FORA ULTRAPASSADA

com rapidez pelo carrovermelho, que após deixar alonga ponte voltara a ter corbranca. Pensando que a magiade Mirele até que durarabastante, Galaor acelerou omáximo que o carrinho lhepermitia e seguiu a toda pressaaté atingir o acesso à rodovia RJ106. Somente então relaxou ediminuiu a velocidade.

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Em poucas horas estaria noaeroporto de Cabo Frio. Aí seriaquestão de devolver o carro àfilial da locadora e comprar umapassagem para a Bahia.

Assim que entrou nomunicípio de Maricá, ele sesentiu seguro o bastante paraparar em um posto de beira deestrada. Ia abastecer e tomar umlanche.

Foi quando saiu da lanchoneteque ele se deu conta do erroque cometera. Os dois SUVsnegros estavam parados bematrás do sedã branco, e seus

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ocupantes – sete guerreiros sobo comando de Hélio – oesperavam em um semicírculo,as espadas desembainhadas e asvestes brácaras ocultas dos olhoshumanos.

O filho de Eurico avaliou asituação, à procura dealternativas. Acabou concluindoque seria inútil resistir. A magiaque poderia usar para confundiros perseguidores seria facilmentecontrabalançada por oitoguerreiros. Além disso, Hélionão era muito fiel à políticaantiarmas da Citânia, que

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permitia apenas lanças, espadas eencantamentos: seu ex-homemde confiança tinha uma pistola 9mm apontada diretamente parasua cabeça.

“Vamos com calma”, disse a simesmo, enquanto sorriadesafiadoramente para o outro ecruzava os braços, aparentandouma serenidade que não sentia.

– Então é assim? – disse,tranquilo. – Tu serves fielmenteà família líder do clã pordécadas, e basta um usurpadorbarato aparecer para virares acasaca?

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A um sinal de Hélio, doisguerreiros se aproximaram dele,tiraram-lhe a espada da bainha epuxaram suas mãos para trás.Um terceiro trouxe uma cordapara amarrá-las.

– Crom Cruach não é umusurpador barato. É um deus –retrucou Hélio. – Econtinuamos servindo à tuafamília, Galaor. Só que agora é adruidesa que está no comando.

– Entendo – o outro fremiade ódio, enquanto os homens oempurravam para oestacionamento. – E tu usaste a

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magia de minha querida esposapara me encontrar.

Foi jogado no banco de trásde um dos carros e ladeado pordois brutamontes. Hélio entrouno banco da frente. O motoristadeu a partida e ele riu alto.

– Quem precisa de magiaquando temos a tecnologia? Adruidesa não quis gastar energiamágica contigo. Só precisamosdisto aqui…

O guerreiro abriu uma caixade madeira entalhada que pegouao lado do banco. Galaor viu,surpreso, um aparelhinho com

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GPS embutido. Eles o tinhamseguido com aquilo? Para isso,teriam de ter colocado nelealgum tipo de localizador! E nãotinham tido tempo de plantarnenhum dispositivo nele, desdeque fugira da Citânia… Outinham?

Hélio riu mais ainda ao verseu antigo chefe vasculhandocom o olhar as próprias roupas.Os olhos de ambos seencontraram no broche de ouroque prendia a capa negra.

– Bingo! – exclamou oguerreiro, enquanto os outros

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riam às gargalhadas.Galaor afundou no banco do

carro, sombrio.Aquele broche fora um

presente de Shantel em seuúltimo aniversário…

Rio de Janeiro

NO ALTAR DO TEMPLO haviaum enorme pilar de granito,coberto com placas de ouro eprata. Ao seu redor, doze pilaresmenores. Tariq conheciasuficientemente as tradições parasaber que aquilo reproduzia o

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templo de Crom Cruach. Povosantigos haviam sacrificadocrianças a ele, em locaissemelhantes.

Diante do altar estava a garotasemimorta. Ele correu para ela,ao mesmo tempo em que, deuma porta nos fundos, entravauma mulher com vestes deescrava.

Ele não lhe deu atenção.Ninguém podia censurá-lo porestar ali…

E então percebeu que amulher se aproximava mais doque deveria.

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Voltou-se e viu que a recém-chegada não era escrava coisanenhuma.

Teve de se conter para nãoabraçar Oriana.

– Como estás? – perguntouela, parecendo também conter-se a custo.

– Bem, por ora. E tu?Disseram-me que estavas presanuma cela.

– E estou – sorriu ela,corajosamente. – Tenho menosde uma hora para voltar lá. Maspreciso entender o queaconteceu aqui…

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Ela se inclinou sobre a garotaadormecida. Tariq ajoelhou-sejunto à filha.

Oriana examinava os detalhesdo recinto: o sangue quemanchava o chão, o altar, osmenires. A prima devia terplanejado tudo aquilo emdetalhes, para obter tal resultado.

– Shantel sacrificou seusangue, a carne de Viriato e avida da própria filha para trazerCrom a este plano. PobreAnuk… não merecia isto.

Enxugando discretamenteuma lágrima, Tariq ergueu-se.

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– Esta não é Anuk – revelouele. – É Mirele. ReconheciAnuk vestida como Mirele assimque pus os olhos nela, dentrodo salão.

Oriana conferiu os braços dagarota. Realmente, se fosseAnuk, ela deveria ter ainda napele algumas das marcas que elamesma mantinha, deixadas pelasurra que ambas haviamrecebido de Anhangá.

– E por que as duas trocariamde lugar? – indagou, perplexa.

– Possivelmente para testar teufilho – supôs ele, com um meio

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sorriso.Ela recordou a atração que

testemunhara entre Gael eAnuk, e os ciúmes que estademonstrara quando tinhamencontrado Mirele no shopping.

– Onde estará a outra gêmea?E meu filho?

– Fugiram – suspirou ele.Contou-lhe a conversa dosguerreiros que entreouvira.

– Então ele conseguiu escaparda Citânia… com Anuk. E,possivelmente, Galaor. Que adeusa os ajude a chegar a umaliado. Por felicidade, os iorubás

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foram informados.Tariq relaxou ao ouvi-la

contar sobre Tiago e a pedraque possibilitara a comunicaçãocom Akinlana.

– Hanef deve estar na Bahiacom a senhora Cáitlin. Isso metranquiliza. Ele avisará meu clãdo perigo que os brácaros agorarepresentam. Será que… Háalgo que possas fazer paralibertar Mirele deste feitiço?

– É magia num nível muitoavançado – lamentou Oriana.

Tariq segurou as mãos damulher que amava mais que

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nunca.– Mas podes tentar descobrir

como desfazê-la, não? – pediu.– Não sou tão boa quanto…– Shantel? Duvido disso.

Apenas paraste de estudar e elanão.

– Não é tão simples. Eu…– Faz isso por nossos filhos.

Por mim!Ela assentiu, apesar de

insegura. Se vasculhasse amemória, poderia recordaralguma alternativa. Ao menosagora entendia como as coisastinham se passado e por que

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nenhum encantamentofuncionava: ao ceder a forçavital de sua filha para que o deustomasse o corpo de Viriato, adruidesa abrira um vórticeenergético que fizera toda amagia disponível convergir paraCrom. Cada um daqueles dozemenires sugava energia mágicade uma região da Citânia econduzia essa força ao pilarcentral.

– Aquele pilar – explicou ela– está ligado a Crom Cruach.Conduz toda a força mágica aodeus, e é por isso que nenhuma

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outra magia funcionará noperímetro das três muralhas,enquanto ele estiver neste plano.

– E se derrubarmos o menir?Todos os doze? – Tariq sugeriu.

– Muito perigoso. A energialiberada poderia explodir com aCitânia inteira. Não… precisopensar mais… Deve haver umcontrafeitiço.

Cansado de conter-se, ele aabraçou. Mas ela não permitiuque a beijasse. Afastou-se,fazendo o que talvez fosse omaior esforço que já fizera navida.

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– Tenho de voltar à cela edestrocar com Belmira. Talvezpossamos nos ver aqui, de novo.Deves estar sofrendo horroresnas mãos de minha prima. Sehouvesse outra forma…

– Neste momento, não temosalternativa – murmurou ele. –Vai, Oriana. E… Aconteça oque acontecer, precisas saberque és a única mulher que ameina vida.

Ela não respondeu. Ajeitou amanta velha e saiu pela portanos fundos do templo. Quantoa Tariq, voltou a ajoelhar-se

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diante do corpo da filha. Nuncafora muito ligado aos deuses,mas agora pedia fervorosamenteà deusa Cal-leach que protegessesuas meninas.

A DOR ESTAVA SE TORNANDO

mais forte do que Anuk podiasuportar.

Abriu os olhos e percebeuGael a seu lado, dizendo algumacoisa… Algo que seus ouvidoscustavam a registrar. Estavamtomados pela neblina e por umzumbido insistente.

– Fala comigo… – pedia ele.

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– O que tá acontecendo?A garota finalmente o

entendeu. Viu-o em pé diantede si. Estava ajoelhada, os braçospara trás como se estivessemamarrados – mas não estavam.Pelo menos não por cordas. Elatentou se mexer e a dor voltou.Era melhor ficar quietinha.

– Gael… paralisada… magia.O filho de Oriana se ajoelhou

diante dela e a abraçou. O calorde seu corpo a fazia sentir-semelhor, porém não neutralizavao encantamento que aparalisava.

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– A gente ainda está no JardimBotânico, só que viemos pararnum outro lugar – explicou ele,enquanto a mantinha entre seusbraços. – É uma clareirapequena, no alto de umaelevação em forma de círculo.Sei que não estamos longe,porque acima da neblina aindaposso ver o alto daquelaspalmeiras imensas. Quem fezisso, você sabe?

Anuk olhou ao redor,tentando inutilmente vencer otorpor. Gael estava certo:tinham sido removidos do

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ponto em que haviamdescansado. O morrinhocircular a lembrava de algumacoisa… uma história que ouvira,certa vez… o que era, mesmo?

E, se alguém os estavaaprisionando ali, por que aparalisara, deixando o garotolivre? Não fazia sentido. A nãoser… a não ser que…

A ideia era assustadora, maspodia explicar tudo. Se o quepensava acontecera, elaprovavelmente não sairia daliviva. Mas ele precisava irembora. Alcançar o terreno da

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floresta, onde eles não teriampoder. Respirou fundo ebalbuciou:

– Tens… de fugir. Corre…pra floresta… procura… índios.

Ele a abraçou com mais força.– De jeito nenhum! Não vou

deixar você.No instante seguinte, os

medos de Anuk sematerializaram. E tomaram aforma de um sersemitransparente, que apareceuplantado no centro da clareira.Seus olhos reluziam em branco,fixados nos dois jovens; seu

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rosto mudava conforme sopravaa brisa, aparecendo edesaparecendo entre a neblina.

Era tarde demais para Gaelescapar. Os dois estavamirremediavelmente à mercêdaquelas criaturas.

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A

CAPÍTULO 1

Faerie

Salvador

ATMOSFERA NO

QUILOMBO mudaracompletamente: nem

festas, nem cantorias, nemcaçadas. Todos se preparavampara a guerra.

Iwati foi o primeiro a partir,com seus guerreiros. Depois

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Cáitlin acompanhou Egeu àsterras do Espírito Santo, parareunir o exército helen. Todosdeveriam encontrar-se numlocal estratégico no estado doRio, ao qual Akinlana chamavaAgulha da Magia.

Hanef viajou às pressas paraSão Paulo, após saber doaprisionamento de Tariq e dasinquietantes intenções de Crom,de invadir a terra dos al-gharbios. Com o chefe do clãfora de ação, recairia sobre ele aresponsabilidade de organizar adefesa da cidadela.

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Quanto ao rei dos iorubás,partiria somente com a comitivafinal, que Nan tambémintegraria.

João teria pouco tempo paratreinar. Um dos comandantes oincluíra no destacamento decem lanceiros iorubás queseguiriam na retaguarda,armados de lanças curtas;serviriam especificamente comoapoio aos duzentos guerreirosmais experientes da vanguarda,portadores de espadas. Haveriaoutros lanceiros, para apoio nosflancos do ataque, mas o dele

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seria um dos mais próximos dalinha de frente. Isso, fora outroscontingentes que ainda viriam…

Como Nan lhe explicou, eleteria de aprender os rudimentosda luta, do uso da lança, doescudo. O treinamento seriaintenso.

– O mais importante é seguiras ordens e agir sempre com ogrupo – disse Nan. – Nenhumguerreiro vence sozinho; a forçados quilombolas sempre estevena união.

João absorveu o conselho,dizendo a si mesmo que aquilo

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seria necessário para salvarTiago, Carol e Gael. Para suasurpresa, não sentiu medo.

“Serei um guerreiro”, pensoude repente, com um orgulhoque nunca sentira, enquanto osol ganhava força para um beloinício de tarde em Salvador.

Rio de Janeiro

VOLTAR À CELA e destrocar delugar com Belmira foitremendamente difícil paraOriana. A caminho, ela sentiaímpetos de fugir correndo,

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buscar um esconderijo, escalar asmuralhas da Citânia para ver-selonge dali. Mas, se o instinto aaconselhava a escapar, osentimento do dever lhe diziaque não podia; tinha desubmeter-se à terrível provaçãoque era ser prisioneira deShantel. Se Tariq se resignava aser escravizado por sua prima,ela não podia decepcioná-lo.Ademais, precisava estudar oencantamento que prendiaMirele.

Voltou à prisão resmungandocomo se fosse a velha serva, e os

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guardas nada perceberam.Belmira trocou de manto comela outra vez e deixou ocubículo, assegurando quevoltaria assim que possível,embora isso pudesse demorar.Da última vez que encontraraShantel, vira desconfiança nosolhos da druidesa…

Na cela, Oriana escondeu ovestido da escrava, que colocarapor cima de suas roupas, e foiconferir o estado de Eurico.Finnath estava junto dele.

– Teu pai não está bem –confidenciou o érin. – A febre

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cedeu, mas ele continua alheio,confuso. Precisa de um médicoou curandeiro; seu mal deve tersido agravado pela magia.

– Achas que um atendimentomágico poderia curá-lo? – Elaestava angustiada ao perceberque, em apenas uma hora, o paiparecia ter definhado bastante.

O érin olhou-a comhonestidade no semblante.

– Tu não és criança, Oriana,podes encarar os fatos. Euricoestá morrendo. Nada mudaráisso. Mas um atendimentoimediato adiaria o inevitável.

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Ela fitou o pai adormecido,obstinada. Lutaria para adiar oinevitável.

– E lá fora, descobriste algoque nos possa ser útil? –perguntou o outro.

ANUK APROVEITOU que estavana pele de Mirele para gemer;como ela mesma, jamais sepermitiria demonstrar fraqueza.E a dor da paralisia eratremenda! Mais vultoscomeçavam a surgir na clareira,translúcidos e de olhosbrilhantes; seriam belos se não

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fossem tão assustadores. Quandoo primeiro vulto, já mais sólido,se aproximou, Gael soltou agarota e se pôs diante dela, ematitude de proteção. Tinhaconsciência, contudo, de quenão possuía qualquer vantagemsobre aquelas criaturas. Elasexalavam magia.

O primeiro ser que surgiraveio serenamente até eles. Nãoera possível discernir se erahomem ou mulher, jovem ouvelho.

– Afasta-te, filhote de jaguara– ordenou-lhe. – Nada temos

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contra ti.– Não – Gael declarou,

fechando a cara.Três outros reuniram-se ao

primeiro, todos indefiníveis,belos, calmos.

– És livre para fazer o quequiseres – disse um deles –, masa brácara nos pertence.

– O que vocês querem comela?

Um terceiro ser pousou a mãoalguns centímetros acima dacabeça de Anuk, como quecaptando seus pensamentos. Eladesistira de fingir a docilidade de

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Mirele, fazia de tudo para sesoltar das invisíveis amarras, semsucesso. Os liames mágicos eraminquebráveis: quanto mais forçafazia, mais dor causava a simesma. Então o quarto vultofalou.

– Há séculos os brácarosescravizam a nós e aos nossosirmãos. Absorvem nossa magia,tratam-nos como inferiores, piorainda do que tratam os animais.Esta aqui, mesmo, sempre seorgulhou de aprisionar váriosfilhos dos elementos.

– Vocês são elementais – o

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filho de Oriana apertou osolhos. – Seres da natureza.

A resposta veio do que seaproximara primeiro, que traziaum ar de autoridade.

– Somos Faerie, filho dejaguara. E agora que já nosconheces e sabes de nossosmotivos, vai-te daqui. Alémdaquelas árvores termina oparque e começa a floresta. Lá éo domínio de povos nativos,teus parentes.

Anuk cansou de resistir. Nãotinha poder contra um grupotão numeroso do povo das

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fadas. E mais deles estavamchegando. Baixou a cabeça emurmurou fracamente:

– Eles têm razão. Vai embora,Gael… Isto não te diz respeito.

Suas palavras, obviamente,apenas serviram para atiçar aresolução dele.

– Não vou a lugar nenhum.– Tu é que sabes – retrucou o

segundo dos elementais.Sem entender como, Gael

sentiu que o afastavam dagarota. Foi parar no meio devárias criaturas que agoraformavam um círculo em torno

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do morrinho. Do povo que seautodenominava Faerie, apenas olíder e os outros trêspermaneceram no centro.

Anuk recordou que, quandocriança, Belmira contava a ela ea Mirele histórias sobre o povodas fadas. A tradição dizia que sereuniam em locais circulares,elevações, anéis de fadas ecírculos de cogumelos,delimitando clareiras ondeapenas elementais tinham poder.

Suas recordações foraminterrompidas pela voz do líder,que dava uma ordem.

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– Levanta-te, brácara.Ela sentiu as pernas livres,

ergueu o corpo e se pôs de péno centro do círculo. Sabia quenão podia resistir-lhes, porém oolhar orgulhoso não deixou seurosto.

– Vede! – exclamou o ser quesondara a mente da garota. –Temos uma aberração entre nós.Ela não é apenas brácara! Notaia cor de seus cabelos e olhos.

Risos irromperam no círculo.Havia quase uma centena decriaturas ali, agora.

– Uma mestiça?!

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– Isso não se vê todo dia!– A Rainha gostará de saber

disso. Explica-te, aberração! –exigiu o líder.

Gael esperava vê-la irromperem insultos, mas ela disse apenas:

– Minha mãe é brácara, meupai é al-gharbio.

Os al-gharbios não eram tãociosos em capturar elementaisquanto os brácaros. Se elaesperava, porém, receberclemência por isso, frustrou-se.Soaram mais risadas.

– Mostrai o que faz essaaberração ser o que é! – gritou

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alguém no círculo.A terceira criatura arrancou o

agasalho, depois a camiseta deAnuk.

– Reparai nos tons de suapele! É um pouco mais claraque a dos al-gharbios, nãomostra as tatuagens que elescostumam ter nas espáduas ouna fronte.

– E os brácaros sempre seorgulharam de não permitirmiscigenação! – comentou aquarta criatura, que pareciadivertir-se muito.

– O que mais ela oculta de

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nós? – outro elemental berrou.– Tira tudo, aberração!Gael não suportava mais ver a

vergonha nos olhos dela.Quando o líder tocou as últimasroupas dela, o filho de Orianasentiu um novo tipo de forçabrotar dentro de si, e rompeu amagia que o afastara. Não iapermitir que fizessem aquilo!

Saltou para dentro do círculoe se colocou na frente da garota.

– Deixem ela em paz! –ordenou, seus olhos faiscandonuma cor alaranjada.

Duas enormes criaturas

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destacaram-se do círculo e seaproximaram, mas o líder fezcom que se afastassem, numgesto. Dirigiu-se a Gael quasecom bondade.

– Eu sei quem tu és – disse. –Tens tantos motivos quanto nóspara odiá-los. Teu pai foi caçadopelos brácaros como um animal,e tentam matar-te desde quenasceste. Eles não têmescrúpulos em usar a escravidãoe a violência contra os maisfracos. Sabes disso.

– Sim – admitiu ele. – Ela atépode merecer ser punida. Só

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que não é justo vocês fazeremisso aqui, agora. Ela é umacriança, não aprendeu aenxergar os elementais comoseus iguais. Mas pode aprender.

O líder do povo das fadassorriu. Os outros, porém,olhavam os dois adolescentescom ar feroz. Gael pensou queeles não tinham nada das fadasdas histórias, os seres benévolosdos contos que Carol lera paraele. Não pareciam capazes decompaixão.

– O que dizes faz sentido,jaguara – o garoto notou que

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ele já não o tratava como umfilhote. – Mesmo assim, o povodas fadas tem domínio sobre osparques, e tem leis rígidas. Umadelas diz que nossos inimigosdevem ser capturados e punidos.

– Se não cumprirmos a lei, aRainha nos pedirá contas! –gemeu a segunda criatura.

Anuk continuava olhandopara o chão. O coração de Gaelse apertou dolorosamente…Então recordou outra históriaque Carol lera para ele, hámuito tempo.

– Certo – afirmou. – Sua lei

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deve ser respeitada, vocês têm odireito de punir quem escravizaseu povo. Mas peço pralibertarem a garota. Eu recebereio castigo no lugar dela.

Um murmúrio percorreu ocírculo das fadas. Anuk ergueuos olhos, alarmada. Gael eramesmo filho de Oriana:completamente maluco! Quisprotestar, porém oencantamento que lhe tolhia ocorpo agora também lheestrangulava a garganta. A voznão saiu.

– Por que atenderíamos ao teu

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pedido? Ela é a brácara, ela devesofrer.

Gael percebeu que haviahesitação na voz dele.

– Não necessariamente. Vocêssão Faerie. Seu nome e suacultura vêm de tradições celtas.Li histórias ligadas a essatradição, contos de cavalaria.Neles, se uma donzela é acusadade alguma coisa, um campeãopode se apresentar e lutar porela. Sofrer por ela.

O líder cruzou os braços,zangado. Os outros se afastaram,alargando o círculo.

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– Tais histórias nãorepresentam nossa cultura.Foram misturadas com narrativasromanas, bretãs, normandas,cristãs.

– Mas a tradição existe, não é?E se existe, é um precedente. Euposso ser o campeão da brácarae receber o castigo dela. Quediferença vai fazer pra vocês?

Várias das criaturasprotestaram, e uma delasrespondeu, desanimada:

– Teremos de consultar nossaRainha.

O líder olhou Gael nos olhos

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de onça, que faiscaram emcastanho-dourado.

– Tens certeza de que queresfazer isso?

Gael olhou de lado e viulágrimas escorrerem pela face dagarota.

– Sim – disse, simplesmente.– Vamos levá-lo – foi a

decisão do outro.E, diante dos olhos da filha de

Shantel, todo aquele povo sedesvaneceu no ar. Ela sentiu amagia libertando-a. Ao mesmotempo, a terra do chão moveu-se como um redemoinho em

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torno de Gael, que mal tevetempo de esboçar um olhar deespanto e gritar:

– Foge!No segundo seguinte o chão

cedeu e ele foi, literalmente,tragado pela terra. Anuk soltouum grito rouco e se jogou nolocal onde ele estivera. Sóencontrou terra solta e seca.

Não havia o menor sinal dele,nem do povo das fadas.Desesperada, sozinha, cobriu orosto com as mãos e choroucomo não chorava desde queera criança.

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A ENTRADA DE GALAOR NA

CITÂNIA, arrastado por Hélio eseus comandados, foi aexperiência mais humilhante davida do filho mais velho deEurico. Eles o fizeram caminharpor ruas apinhadas de brácaros,como o próprio Galaor fizera aViriato, de mãos amarradas eainda puxado por um cabrestono pescoço, como um animal.

O ódio brilhava nos olhos doorgulhoso guerreiro. Tentounão ouvir os risos e insultos quepipocavam a seu redor,

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concentrando-se em imaginarcomo vingar-se.

Ao adentrar o casarão,contudo, o ódio deu lugar auma profunda desesperança. ACitânia mudara, naqueles dias.Os soldados pareciam atentos,num estado de alerta bem maisefetivo do que haviam estadoquando ele ou o pai oscomandavam. Havia uma auraestranha no ar… Medo, talvez.Recordou o que ouvira sobre amorte de Kían. Aquilocertamente tivera o efeitodesejado: instilar pavor e

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obediência em cada um dosbrácaros.

Foi levado ao grande salão,onde Crom Cruach recebia oscapitães das guarnições. Mesmoem meio à excitação pelo estadode guerra e à atividade dehomens que entravam e saíam,com mapas, relatórios e armassendo apresentados e discutidos,a atmosfera era de respeito.Nem uma palavra perdida, nemum ato desaproveitado. Aoouvir conversas sobre um ataqueaos al-gharbios, Galaor tevepena do povo de Tariq. O

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palacete-fortaleza encravado nocentro de São Paulo não teria amenor chance de resistir àquelaorganização.

Hélio o manteve no fundo dosalão, à espera de ordens deCrom. Afinal, depois de horas,os olhos vermelhos do deuspousaram sobre o prisioneiro.Não parecia haver mais nada deViriato no corpo ocupado pelosanguinário guerreiro celta. Eraoutra postura, outra expressão.Seria a posse completa?

Galaor foi arrastado para afrente. Diante da plataforma,

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obrigaram-no a ajoelhar-se.Estava decidido a arrostarquaisquer zombarias; ali,contudo, não soaram nemrisadas nem insultos. Ao menosos comandantes brácarosmantiveram respeitoso silênciodiante dos dois homenspoderosos ali postados: ovencedor e o vencido.

– Levai-o para a senhora, notemplo – ordenou a voztonitruante do novo senhor daCitânia.

Desta vez o irmão de Oriananão seguiu passivamente.

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Tentou de todas as formaslibertar-se dos esbirros de Hélio,enquanto atravessavam oscorredores do casarão. Sódeixou de se rebelar quando ofecharam dentro de uma jaula,no templo.

Furioso, Galaor agarrou asbarras de ferro para sacudi-las.Ironicamente, era a mesma jaulaem que ele prendera o índio-onça Rudá, seu presente decasamento para a irmã, quinzeanos antes.

– Ora, ora, ora. Se não é omeu adorado esposo…

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Shantel o fitava do lado defora, com um sorriso sarcástico.

O marido não pôde deixar denotar que ela estava mais belaque nunca.

NO DIA SEGUINTE, osquilombolas partiram em levas.De carro, trem, ônibus, avião, apé, grupos organizados seguiamrumo ao sul. Assim como eles,indígenas em todo o Brasilviajaram de suas reservas emdireção ao Rio de Janeiro. Oshelens provavelmente foram osprimeiros a chegar à Agulha, no

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norte do estado. De lá, poucashoras os separavam do local emque a fortaleza dos brácaros semantinha trancada à magia pormeio de magia.

Nan viajou com o restritogrupo de Akinlana. João partiracom seu contingente. Antes desair, ela tentara contatar Tiagoatravés da água. Fora inútil: pormais que tocasse a pedra de Oiáe se concentrasse, a conexão nãose completava…

Em viagem, sempre quedescobria um local queacumulava água, fosse uma poça

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no chão, uma pia, um copo,seus olhos buscavam a imagemdo homem a quem decidiraamar. Foram tentativasinfrutíferas, embora a cadaquilômetro as metades da pedravermelha estivessem maispróximas.

“Pode ser que o trancamentoda magia na Citânia tenhaaumentado e interfira com oespelho”, conjecturava, embusca de uma explicação,evitando pensar que Tiagopoderia ter perdido o amuleto,estar ferido ou morto. “Ou que

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meu coração inquieto nãoconsiga acionar o poder.”

Contudo, a pedra de Iansãpermanecia brilhante, o que lhedizia que ele estava vivo.

Enquanto Nan se agitava entrea esperança e a inquietação, maise mais destacamentos de povosmágicos – suas armas e intençõesocultas aos olhos mortais –aproximavam-se do Rio deJaneiro.

ANOITECIA QUANDO GAEL

REAPARECEU, após sumir pordois dias.

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Anuk não fugira. Teimosa,havia recolocado as roupas,arrumado a mochila e esperava,encolhida num canto do morrodas fadas. A fome e a ansiedadea tinham feito devorar quasetoda a comida que comprara.Havia uma luz difusa que elanão sabia de onde vinha, se docéu ou da terra, quiçá da magia;iluminava o lado do JardimBotânico em que as árvoresmarcavam a fronteira com aFloresta da Tijuca. Abraçava aspernas, os olhos vermelhos dechoro piscando de cansaço e

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sono, quando o gemido soou.Levantou-se no mesmo

instante e o viu, deitado nocentro da elevação.

– Gael! – exclamou, correndopara ele.

O garoto sentou-se na terraúmida, esfregando os olhos.Estava totalmente nu.

– Onde… nós estamos?– No mesmo lugar. O que

aconteceu? O que te fizeram?Ele se encolheu, percebendo a

própria nudez. Suas roupasestavam jogadas a poucadistância. Anuk as recolheu e

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entregou-lhe, evitando olhar seucorpo. Mas não por pudor:tinha medo de achar ferimentos.Afinal, enquanto ele vestia ascalças, resmungou:

– Diz! O que te fizeram?Açoitaram-te? Conta, Gael!

Ele sacudiu a cabeça, confuso.– Não consigo lembrar! Eu

estava aqui… de repente nãoestava mais.

– Isso aconteceu anteontem!– Tudo isso? Nossa, só lembro

que fui arrastado… ouvi risadasaltas… e uma sensação de dor,muito forte. Mas não me

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lembro de mais nada até ouvirvocê chamar meu nome.

Antes que ele vestisse acamiseta, Anuk reuniu corageme olhou-lhe as costas,procurando por marcas. Nadaencontrou em seu corpo,embora fosse perceptível que apele estava sensível. Os nós nascostas pareciam intactos, mãos eorelhas felinas continuavamcomo sempre haviam sido.Evitou tocá-lo; a simplesproximidade dela o fazia retrair-se.

– Sentes dor?

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– Dói tudo, Mirele. As costas.A bun… ahn… E aqui, nopescoço, está queimando.

Ela tentou não imaginá-losendo surrado pelas fadas oucalcular a quantidade de magianecessária para apagar-lhe alembrança da mente. Afastou-lhe os cabelos, que estavamsoltos e desalinhados. Havia algona pele, à direita de sua nuca.

– Parece uma tatuagem –constatou, alarmada.

Ele levou a mão ao local egemeu. Doía muito.

No ano anterior ele havia

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pensado em fazer umatatuagem; desistira ao ver osrostos de Carol e Tiago quandomencionara o assunto. Agora,sem desejar, fora tatuado…

– O que é? – indagou,ansioso.

– Um traço horizontalondulado, como o desenho deuma onda – ela respondeu. –Melhor ficares atento. Tatuagensmágicas podem mudar de formacom o tempo. E têm efeitos…bizarros.

– Tipo o quê? – ele seinquietou, enquanto calçava os

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tênis.Anuk desconversou. Tentou

fazer “cara de Mirele”.– Não sei, mas vais descobrir.

Agora é melhor sumirmos, antesque eles voltem.

Gael olhou ao redor. Colocoua mochila nas costas. Sentiu ador retornar.

– Bem, voltamos ao planooriginal. Para a Floresta daTijuca, procurar Anhangá.

A resposta da garota saiu quaseininteligível.

– Claro, estupidez porestupidez, que diferença vai

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fazer?E foi andando na frente, a

passos rápidos. Ele sorriu de levee contou até três.

Quando chegou ao três, elaparou. Pensou um pouco. Falousem se voltar.

– Gael… obrigada – elaimitava o tom meloso deMirele.

“De nada”, ele pensou. Masnada disse. Andou até passaradiante dela e entrou pela trilhaque se enxergava na claridadedifusa.

Anuk o seguiu, sem disfarçar o

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mau humor. Tinha certeza deque ele só havia se oferecidopara ser castigado no lugar delapor acreditar que se tratava dagêmea boazinha.

“Ele não faria isso por mim…por Anuk”, concluiu, comvontade de chorar de novo.

Reprimiu a vontade chutandoos pedaços de galhos queenchiam o chão. Ao se afastaremdo terreno, a escuridão crescia:ele, contudo, encontrava ocaminho sem dificuldades, comos olhos de onça que brilhavamcada vez mais.

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A CRIATURA OLHOU, com umsorriso enigmático, para ossúditos ajoelhados diante de si.Não precisou dizer nada. Seuspensamentos ecoaram nasmentes dos servidores.

“Eles já partiram?”A resposta veio da mesma

forma.“Sim, minha Rainha.

Entraram na mata.”“E os zanganitos?”“Acompanham-nos a

distância.”“Bom. Manter-me-eis

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informada.”Ela fechou os olhos cor de

violeta, agitando os longoscabelos da mesma cor. Com amão direita, tocou uma levemarca em seu pescoço, perto danuca. E disse, em voz alta.

– Tu voltarás. Serás chamado,e obedecerás. Logo.

Depois reabriu os olhos,levantou-se e foi passear entre asaleias floridas, seus pés clarosquase sem tocar o chão.

ANUK ESTACOU DE SÚBITO.

Tivera a sensação de ouvir uma

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voz, mas não conseguiraidentificar as palavras. Gaelparara de andar no mesmomomento. Apertou os olhos.

– Tu ouviste? – perguntou,apertando a cabeça com asmãos.

– Ouvi – respondeu ele,sombrio. – Uma voz demulher, autoritária. Já a ouviantes…

– A Rainha das Fadas –concordou ela, preocupada. –O que te disse?

– Que eu serei chamado edeverei voltar. Acho que… o

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castigo ainda não acabou.Anuk instintivamente chegou

mais perto dele. Mas Gaelapenas apressou o passo eretomou a caminhada pela trilhaescura.

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M

CAPÍTULO 2

Resistência

Rio de Janeiro

AIS UMA VEZ aluminosidade de umnovo dia invadiu de

mansinho a cela dos prisioneiros,apesar das nuvens escuras quenasciam no horizonte. Nãodemoraria a chover.

Exausta, Oriana enlaçou os

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dedos para fazê-los estalar.Passara outra noite em claro, ospensamentos buscando, sempausas, qualquer detalhe que aajudasse com o contrafeitiço. Oérin Finnath prometera ajudá-la,mas nem mesmo ele, com todoo conhecimento dos antigos,tivera alguma ideia.

Oriana fitou o rostoadormecido do pai. Por ora, osremédios o mantinham vivo,apesar de sua piora ser gradativa.

– Funcionou! – disse Kassib, oal-gharbio, que observavaTiago, no canto da cela. –

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Vinde ver.O pai de Carol passara

praticamente os últimos três diasdiante da poça de água naconcavidade do chão, tentandovoltar a contatar Nan através dapedra de Oiá.

Agora, afinal, a conexãoparecia estar se mantendo.Finnath e Oriana voltaram a pôras mãos sobre os ombros deTiago, fortalecendo a magia, eviram a imagem do rosto deNan aparecer mais nítida noespelho de águas.

– Nan, que bom ver você! –

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murmurou ele. – Pensei que aconexão não voltaria.

A voz dela soou distante, masclara.

– Tenho tentado há algum tempo esó agora consegui… Estou emmovimento, isso pode ter atrapalhado.Faço parte da comitiva de Akinlana.Estamos a caminho da Agulha daMagia, no Rio, mas o rei para muitasvezes no caminho para reunir maisguerreiros. Os outros clãs já devemestar no ponto de encontro.

– Que clãs?– Os índios e os helens. Com os

afros, temos um exército enorme. Os

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al-gharbios partiram para defender suaterra. Vamos demorar um pouco paraalcançar a Citânia de Brácara, mas nofinal vamos sitiar a cidadela e vamosvencer! Tenha confiança, Tiago.

– Deus te ouça, Nan.– E que Iansã nos proteja.O sorriso dela foi sumindo e,

por mais que ele seconcentrasse, não conseguiuevitar o rompimento da ligaçãomágica. Levantou-se econsultou Oriana com o olhar.

– Nan tem razão – declarouela, tentando soar confiante. –Não devemos perder a

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esperança. E agora temos umatarefa difícil a realizar.

Kassib concordou com acabeça.

– A escrava que esteve aquidisse que há uma resistência.Precisamos avisá-los de que osoutros clãs vão atacar a Citânia.

– Belmira disse que podedemorar a voltar às celas, porcausa da desconfiança deShantel. Se ela retornar, bastacontar-lhe; mas, se não,precisamos mandar umamensagem.

Finnath pegou o cesto em que

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vinham os alimentos para osprisioneiros.

– Podes mandar um bilheteoculto aqui, entre as tramas.Mais cedo ou mais tarde oguarda vai trocar os cestos. Nacozinha, tua amiga encontrará oque mandarmos.

Tiago olhou ao redor, cético.– E lápis? E papel? Não temos

material de escrita.O érin e Oriana se

entreolharam. Enquanto elerasgava uma tira de tecido dabarra de sua túnica, ela se sentouno chão e cravou as unhas

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longas da mão direita no pulsoesquerdo. Esperou um poucode sangue escorrer e tocou oferimento com o dedoindicador.

Assim que Finnath estendeu àsua frente o retângulo de tecido,começou a escrever nele com aunha, umedecendo-a com osangue. O al-gharbio postou-sena frente deles, impedindo avisão da janelinha da porta, casoalgum guarda espiasse.

Tiago pensou que se enganara,ao julgá-la fria, quando ela osescondera em Santo André.

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Aquela mulher faria o que fossepreciso para salvar as pessoas queamava.

SE ANTES FORA DIFÍCIL paraAnuk continuar a fingir a boaíndole de Mirele, agora isso setornava francamente impossível.Estava cansada, dolorida, irritada,com fome, e o sentimento deculpa era insuportável. Nãoestava acostumada com talsensação. Saber que Gaelprovavelmente fora surrado oucoisa pior para defendê-la, alémde ter sido marcado a fogo pela

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tatuagem mágica, era algo quesó piorava seu humor.

Haviam caminhado por horasna Floresta da Tijuca, parandoapenas para um breve descansodurante a noite. Malamanhecera e o ventoprenunciava chuva; mas Gaelparecia saber exatamente paraonde ir, como se algum instintodesconhecido o impelisse. Agarota viu, com certa apreensão,que ainda havia o brilhoalaranjado nos olhos dele. Seriaaquele um efeito permanente?

Tomaram várias trilhas

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ascendentes e, em certa clareira,ele parou, diante de uma árvoreenorme cujas raízes se elevavam,formando uma espécie depequena caverna. No chão,folhas secas forneciamconvidativo leito. Ele entrouprimeiro e tirou as teias dearanha.

– Vem, está confortável aqui.A gente vai ficar protegido, sechover.

Anuk hesitou, mas um trovãoa fez decidir-se. Entrou noespaço sob as raízes, sentou-sejunto dele, e imediatamente

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sentiu seus braços quentes aenvolvê-la. O calor que ainvadiu derreteu sua irritação.Ao ser abraçada, teveconsciência de uma felicidadeinédita… Então a chuvacomeçou a cair, e ela não sefurtou quando os lábios dele aprocuraram.

Permaneceram unidos mesmoapós o longo beijo terminar. Oaguaceiro engrossava lá fora,como se a chuva fosse umabarreira a separá-los do resto domundo. Ali não haviasociedades, brácara, humana ou

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das fadas. Não importava se ele abeijava como Mirele ou comoAnuk. A única coisa importanteera estarem sozinhos nouniverso…

Ela não soube dizer quemadormeceu primeiro, masambos mergulharam em umsono abençoado, sem sonhos esem inquietação.

Anuk acordou com frio: Gaeltambém acordara e mexia namochila. Estava claro na floresta,a chuva passara. Devia ser quasemeio-dia.

– Acabo de achar um último

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sanduíche lá no fundo – disseele. – Tá meio amassado, masvai servir pra gente não morrerde fome.

Comeram em silêncio.Quando acabaram com asúltimas migalhas e com o querestava de água mineral nagarrafa, a garota tomou umadecisão. Insegura, olhou-o.

– Gael… Tem uma coisa queeu quero te dizer.

Ele a fitou com o ar um tantodivertido. Sem entender omotivo daquilo, a garotacontinuou:

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– É que… eu não sou aMirele. Sou Anuk. Nóstrocamos as roupas lá noshopping.

Ele abriu um sorriso. E elafranziu as sobrancelhas,compreendendo.

– Tu… todo esse tempo… tusabias!

A irritação voltou com tudo,o mau gênio ressurgiu e ela nemesperou que o rapazrespondesse. Começou a enchê-lo de tapas.

– Eu te odeio, aberração!Cretino! Imbecil! Filho de…

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A raiva era tanta que ela nemreparou que ele não se defendia.Fechara os olhos e suportava ostabefes. Enfim, Anuk parou deagredi-lo, rangendo os dentes.

– Quando… como… – nemconseguia falar direito, de tantaindignação.

– Eu percebi logo quedeixamos a Citânia. Você atéque é boa atriz, mas o papel degêmea boazinha não é nadafácil!

A garota fechou os punhos,decidindo qual parte do corpodele socar primeiro.

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– Vocês devem ter tido lá suasrazões pra trocar de lugar –prosseguiu ele. – Resolvi esperarpra ver no que ia dar. Sabia quevocê não ia aguentar, que iaacabar contando!

A expressão de ódio da filhade Shantel era algo tãotragicômico, que foi impossívela ele não rir. Mais furiosa ainda,Anuk voltou a atacar; e destavez Gael aparou os golpes antesque os socos o atingissem. Comuma força desnecessária,prendeu seus pulsos e fitou-acom os olhos faiscantes; depois

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aproximou de novo o rosto dodela.

O beijo começou feroz,selvagem, apaixonado;terminou, porém, com Anukaninhada nos braços dele echorando desesperadamente.

Gael a deixou desabafar. Sabiaque ela estava segurando aemoção desde que a fugacomeçara, quando haviamescapado do templo onde Cromquase o matara. Depois, houveraa correria com Galaor pelo Riode Janeiro, a captura pelas fadas,que a tinham humilhado tão

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cruelmente; e havia ainda aculpa que ela devia sentir porele ter sido castigado para salvá-la, nos domínios da Rainhadaquele povo.

O desabafo lhe fez bem. LogoAnuk se soltou dos braços dele,fungando.

– Tá melhor? – perguntouele, baixinho.

Ela enxugou os olhos com amanga do agasalho. Não sabia oque dizer.

– Então acho bom a gente irembora – propôs ele. – A chuvaparou, e ainda temos de tentar

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chamar a atenção dos deuses, oude sei lá quem que podeaparecer aq…

Não conseguiu terminar afrase.

A luz que entrava pela bocado espaço sob as raízes sumirasubitamente, dando lugar àsombra. Ambos olharam parafora e deram com duas lançasafiadas apontadas para seusrespectivos pescoços.

Índios. Pelo menos uns dezdeles, em pé, armados de lanças,olhavam o casal de adolescentesencolhido na pequena caverna.

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SHANTEL ANDAVA ATAREFADA

no templo. Tinha as mangasarregaçadas e trabalhava em algono meio dos doze menires.Após colocar a adaga nocinturão e limpar as mãos natoalha que uma serva lheofereceu, parou diante da jaulade Galaor, que era vigiada dia enoite por um punhado desoldados. Crom ainda nãodecidira como e quando matá-lo, mas a adorada esposa, semdúvida, tinha ótimas sugestõespara fazer ao venerado deus.

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Sorridente, ela arregaçou maisainda as mangas e foi lidar comuma espécie de braseiro quetinha sido colocado no centrodo salão, próximo ao alto pilarcentral. Remexeu algunscarvões ali dentro, depois pôs-sea organizar quatro frascos decristal ornamentados em tornodele. Recitava algum tipo deencantamento enquantotrabalhava.

Galaor piscou. O que Shantelestava aprontando?…

Preparando algum tipo demagia proibida, certamente.

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Demorou mais de uma horapara Crom Cruach aparecer. Eleolhou rapidamente o prisioneiroe foi falar com Shantel.

– Conseguiste tudo de queprecisas?

– Sim, meu senhor. Assim queentrar a lua minguante, faremoso ritual.

– Quando será isso?– Amanhã, ao pôr do sol. E

quanto a ele? – indicou omarido. – Podemos aproveitarpara sacrificá-lo. Seu sangue tefornecerá ainda mais poder…

Galaor rugiu de ódio.

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– Seria um desperdício matá-lo – foi o comentário de Crom.

– Ele é perigoso, meu senhor.Há brácaros na Citânia queainda lhe são leais, tenhocerteza. Sua morte daria umbom exemplo a todos eesmagaria a resistência.

O prisioneiro sorriu para ela,irônico.

– Ansiosa para ficar viúva,minha querida?

A druidesa fez um gesto a umdos guardas que vigiavam ajaula, que se aproximou edesferiu um bofetão em Galaor,

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fazendo-o cair.Crom soltou uma gargalhada

que ecoou por todo o templo.– Senhor, permite que ele seja

sacrificado amanhã – Shantel sedirigiu a ele, numa curvaturarespeitosa. – Enquanto estivervivo, pode ameaçar-nos…

– Não.– Desejas que seja levado às

celas? – ela perguntou,ocultando seu desagrado.

– Desejo que fique aquimesmo.

Por que deixar um prisioneirotão perigoso quanto Galaor

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preso como uma fera notemplo? Como ocorrera trêsdias antes, quando mandarainstalar a jaula e trancar nela oprisioneiro, Crom não lhe deuqualquer explicação. Apenas saiudo local, acompanhado por seusguardas.

Com um novo suspiro,Shantel voltou a arrumar osfrascos de cristal ao redor dobraseiro.

GAEL FOI O PRIMEIRO a deixaro esconderijo. Eram mesmoindígenas, mas bem diferentes

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dos que eles já tinham visto,como Rudá ou Juci. Seuscolares e pintura ritualassemelhavam-se aos defotografias do Xingu que ogaroto vira, mas usavam calçasjeans e tênis. Essa não era,contudo, a coisa estranha sobreaqueles homens. Tinhamapliques de madeira nas orelhasou nos lábios, como enormesbrincos.

– Botoques… – murmurou.– O que disseste? – perguntou

Anuk, intrigada, saindo doesconderijo logo atrás dele. Não

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estava com medo: aqueles eramapenas homens, não pertenciamao povo das fadas.

– Essas coisas nas orelhas deles.Um professor falou que eramusados pelos índios… hum, qualera mesmo a tribo?

Um dos imensos guerreirosaproximou-se dos adolescentes efalou, hostil:

– Aymorés. Botocudos. Aindachamam a gente assim. Tantofaz. Aqui é território nosso. Enão gostamos de invasores. Debrácaros.

Anuk enfrentou o olhar duro

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do índio. Gael se postou diantedela. De novo.

– Sou filho de jaguara. Tenhosangue índio também! E vimpedir ajuda. Nós…

Um empurrão do líderindígena quase o derrubou nochão. Anuk gritou e, atocontínuo, três lanças tocaramseu pescoço. A garota estacou.Gael murmurou:

– Escutem, não somosinvasores, só queremos…

Mais três lanças no pescoçodele transmitiram o recado deforma inequívoca. Ele se calou

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também. Aparentemente, nãoligavam a mínima para o fato deele ser meio jaguara.

A um sinal do chefe, um dosíndios fez com que se sentassemno chão, perto do local em quehaviam se refugiado antes.Outro, que usava adereçosdiferentes, tomou uma lançacurta e se pôs a murmurarenquanto riscava um círculo naterra, em volta deles e da árvore.

Gael cochichou com Anuk,que resmungava xingamentos.

– O que ele tá fazendo?– Traçando um círculo

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mágico. Nem tenta sair daqui…– Por causa de uns riscos no

chão?!– Já te disse. É um círculo

mágico, sair dele pode matar agente. E me impede de usarencantamentos… Esses sujeitosdevem ser de outra triboescondida na magia.

Após fecharem o círculo, osindígenas se afastaram. O líderos levou para algum lugar aliperto, onde começaram aconversar numa línguadesconhecida. Apenas doisguerreiros ficaram de guarda, as

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lanças apontadas para osprisioneiros.

As horas foram passando,arrastadas, e os índioscontinuaram a discutir naquelalíngua estranha. Mas o quepreocupava Anuk era a atitudede Gael. Desde que o círculomágico fora traçado, ele estavase tornando inquieto, e o brilhoalaranjado em seus olhos pareciaaumentar. A garota respiroufundo antes de prestar atenção àconversa dos tais aymorés.

– Nheengatu…– Quem? – perguntou ele.

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– Eles falam um dialetoesquisito, mas no meio dá praperceber algumas palavras emNheengatu, a língua geral dosíndios. Um vocabulário que ospadres jesuítas organizaram, combase no tupi-guarani, e queacabou virando uma línguafalada pela maioria dos povosindígenas na época dacolonização.

Impressionado, o adolescentesorriu.

– Ah, nem vem! – resmungouela, mal-humorada. Era só o quefaltava: Gael considerá-la uma

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aluna tão estudiosa quantoMirele. – Tento esquecer tudoque aprendi no colégio daCitânia. Já quando morei commeu pai em São Paulo, tivepreceptores, estudava em casa.Mas sempre dava um jeito deescapar das aulas chatas para irtreinar escondido…

Anuk parou de falar, vendoque o garoto não parecia maisouvi-la. Sua inquietaçãocrescera; ele se levantara e agoraandava pelo círculo feito umafera enjaulada. Afinal, cansou deapenas andar e provocou um

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dos dois guardas, o mais alto eforte.

– Vocês precisam soltar agente! Minha família foi presapelos brácaros, e temos debuscar ajuda pra soltá-los.Agora!

O enorme guerreiro seaproximou, zangado.

– Ninguém sai daqui.Os olhos de Gael brilharam

tanto que Anuk teve aimpressão de ver o brilho cor delaranja reluzir na pele bronzeadado aymoré. O líder, que estavamais distante, voltou a se

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aproximar. E o filho de Orianadesandou a falar de novo.

– Estão com medo deapanhar? Eu posso enfrentarqualquer um. Ele, por exemplo!

Apontara para o quase gigante.Os botocudos riram. Anuk ofitou com os olhos arregalados.Ele estava se comportandocomo ela mesma faria:provocando para extravasar aprópria agressividade.

– Duvidam? Olhem, podemosfazer um trato. Eu luto com ograndão aí. Se eu vencer, vocêsdeixam a gente ir embora.

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O chefe fez uma caretasarcástica.

– E se perder, filhote? Se vocêfor morto, o que é que nósganhamos?

Com um sorriso inocente,Gael apontou para Anuk, quecontinuava encolhida no chãodiante da grande árvore.

– Se eu morrer vocês ficamcom a minha mulher.

Aquilo já estava indo longedemais! A gêmea ficou em péna hora e avançou para ele emfúria.

– Ficaste maluco de vez, Gael?

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De onde tiraste a ideia de quepodes vencer esse mastodonte?!E desde quando eu sou tua? Eué que já te capturei, lembras?Além disso…

Teve de parar de falar, outravez. Não só ele não lhe estavaprestando a mínima atenção,como o líder dos aymorés tinhafeito um sinal ao que traçara ocírculo, e o sujeito estava agoraocupado em dizer palavrasestranhas e passar a mão sobre aterra, apagando os traços de umaseção da barreira mágica. Elestinham aceitado o desafio!

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O garoto passou pela aberturae foi se postar no meio daclareira, em atitude de luta. Maisque depressa, o pajé retraçou oarco que apagara; quando Anukse aproximou, sentiu a força damagia impedindo que escapasse.Teve de recuar para o centro docírculo, vendo os indígenas seajeitarem em torno do espaçolivre, prontos para apreciar oespetáculo.

O índio gigante se pôs diantede Gael e os dois ficarammedindo-se com os olhos,circulando lentamente, à espera

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de que o líder dissesse algo.Anuk gemeu. O imbecil do

filho de Oriana ia mesmoenfrentar aquele botocudomonumental numa luta que sópodia terminar em desgraça…

CAROL PASSARA OS ÚLTIMOS

DIAS cuidando de váriascrianças, que os pais haviamlevado para ocultar nossubterrâneos – com medo dascerimônias de sacrifício infantispelas quais Crom Cruach erafamoso. Estava na hora dereuni-las para contar histórias,

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como ela se acostumara a fazer.Tinha descoberto que os contosde fadas eram excelente remédiopara o medo. O dospequenos… e o dela.

Naqueles dias, muitos brácarostinham aparecido por lá, paraunir-se à resistência. Apesar deaparentemente todos estarem àsordens do deus celta, na maioriados casos a lealdade era apenasde fachada. As famíliastradicionais da Citânia aceitavamo domínio de Crom e asupremacia de Shantel, porémbuscavam alternativas para

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manter a fidelidade a Eurico.Aliar-se secretamente àresistência era a única alternativadisponível no momento. Issoanimava Carol, embora elacontinuasse apreensiva com aprisão de Tiago e Oriana, e semesquecer o sumiço de Gael.

Antes mesmo que a jovemcomeçasse a chamar as crianças,Belmira irrompeu no salão,agitada.

– Vem comigo – chamou-a. –Precisamos conversar.

– Você viu meu pai de novo?Ele está bem?

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– Não, mas fui às cozinhas eencontrei um bilhete de Orianano cesto em que os alimentossão levados para eles. Estão bem,apesar de o senhor Eurico estarpiorando… E parece que teupai continua dando um jeito dese comunicar com a moça doquilombo.

– Nan – murmurou a jovem.– Sim. Por ela, ficaram

sabendo que os clãs mágicos seuniram e declararam guerra àCitânia, comandados pelo reiiorubá.

– Meu Deus…

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– Temos de avisar a resistênciapara que pensem em estratégias.Esse ataque pode ser aoportunidade de nos livrarmosdo usurpador.

Ela parecia animada. Para afilha de Tiago, porém, a ideiaera assustadora. Imaginar osoutros clãs atacando e osexércitos se enfrentando, com opai ainda lá prisioneiro… e nãotinha notícias de João. Teria otio ficado no quilombo ou viriacom os iorubás? Não podiatambém deixar de pensar emViriato. Era dele o corpo que o

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deus celta ocupava… e se omatassem?

Enquanto a velha escrava saía aespalhar a notícia, a jovem tevede fazer muita força para não sedesesperar. Não seria fácil evitarsucumbir diante daquelareviravolta.

Reuniu, a seguir, as crianças etentou lembrar uma históriapara acalmá-las.

Apesar disso, a palavra“guerra” pairava em sua mente,carregando o tremendo peso dadesesperança.

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ANUK JÁ TINHA VISTO GAEL

LUTAR. Porém, desta vez, aoenfrentar o aymoré gigantesco,ele se mostrava tão confiante eágil que Anuk mal reconheceuo garoto que capturara comfacilidade havia dois meses.

Ele sorria ao esquivar-se dosgolpes do indígena, saltava deum lado para outro cominacreditável elasticidade. Osolhos continuavam faiscando eela viu suas unhas saltarem,revelando as garras afiadas.Mesmo assim, estava morta demedo por ele, embora nunca

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admitisse isso em voz alta. Ooponente também sorria erenovava os golpes, incansável.Apesar das esquivas, vários deseus socos atingiam oadolescente, enquanto nenhumadas tentativas de Gael de baternele o haviam sequer arranhado.

Depois de meia hora, Anukpercebeu que seu companheirocomeçava a fraquejar. Talvezfosse culpa daquela espécie demutação pela qual ele andavapassando; ela conhecia magia osuficiente para imaginar que anova força e a agilidade que ele

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demonstrava cobrariam algumpreço, e poderia bem ser emvitalidade.

Qualquer que fosse aexplicação, ela o viu titubear derepente. O botocudo eraexperiente: aproveitou osegundo de hesitação de Gael eo golpeou no peito com os doispunhos fechados, num ataqueindefensável.

Sem conseguir respirar direito,o filho de Oriana caiu de costasno chão. Mais que depressa, oíndio pôs um pé em cada umde seus pulsos e segurou-lhe o

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pescoço com a mão esquerda.Na direita, surgindo de algumlugar, brilhou uma faca fina ecurta.

Anuk gritou, apavorada, presadentro da barreira mágica.

O guerreiro olhou para seulíder, como a pedir permissãopara acabar com a vida dovencido. A resposta foi rápida.Um gesto do chefe deteve afaca do outro no ar.

– Foi uma boa luta, para umfilhote. Antes de terminar comele, vamos ver se vai tremer demedo e pedir misericórdia…

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Todos os olhos convergirampara o garoto caído. O brilhoalaranjado sumira dos olhosdele, mas o orgulho, não. Gael,mesmo respirando comdificuldade, sorriu.

– Não vou pedir misericórdia.Faça o que tem de fazer.

E encarou o oponente, imóvele sereno, aguardando o golpefinal.

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S

CAPÍTULO 3

Sentença

HANTEL ESPEROU que ossoldados acomodassem nocanto mais escuro do

templo, logo atrás da jaula deGalaor, as gaiolas cobertas com

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mantos que mandara vir dosubsolo. Quando elesterminaram, a druidesa foichecar os últimos preparativosjunto aos pilares. Foi nesseinstante que Crom retornou,usando uma longa capavermelha e uma espadaornamental que pertencera aEurico cingida ao cinto; ambosrealçavam seu aspecto guerreiro.

– Deves vir comigo –ordenou a Shantel. – Vou passarem revista o exército que vaipartir e quero que coloques umfeitiço de proteção sobre eles.

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Ela estranhou o pedido.– Senhor – murmurou, de

forma que apenas ele ouvisse –,bem sabes que o encantamentoque fiz, para trazer-te, trancoutoda a magia na Citânia. Nãoposso praticar encantamentoslonge dos doze pilares.

– Mas farás o ritual amanhã –contestou ele.

– Sim, aqui no templo, emtorno do pilar principal, eusando mais da força vital deminha filha. Lá fora, nada vaifuncionar!

O deus franziu as

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sobrancelhas.– Não importa, dirás algumas

palavras e isso levantará o moraldos homens. Eles vencerão dequalquer forma, são muito maisnumerosos que o inimigo.Vamos.

– E quanto a ele? – Elaindicou Galaor, sombrio,sentado num canto da jaula.

– Deixa-o aí. Mais tarde querofalar com a fera, a sós – notandoo ar de surpresa da mulher aoouvir isso, tornou a fechar osobrolho. – Irás questionarminhas ordens, druidesa?

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A resposta dela foi umaprofunda reverência antes deacompanhá-lo para fora dotemplo.

“Então nem tudo corre comominha querida esposa deseja”,pensou Galaor. “Ela criou ummonstro e terá de lidar comele… Talvez isso me seja útil”.

Naquele momento, porém,não havia nada que o filho deEurico pudesse fazer. A jaula erareforçada, ele bem o sabia, e ossoldados fora dela eram muitos.Com um bufo, passou a analisaro canto mais escuro do templo,

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procurando descobrir o que osmantos escondiam nas gaiolas.

ANUK TEVE A SENSAÇÃO deque o tempo parava,congelando a lâmina na mão doaymoré, pronto a cravá-la nopeito de Gael ou a cortar seupescoço. O tempo, contudo,não havia parado; o sujeitorealmente estacara, e emexpectativa, fitava seu chefe.Que estava ocupado trocandoolhares furibundos com umnovo grupo de indígenas quechegara à clareira de súbito e

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interrompera a diversão.Diante dos recém-chegados,

em atitude de comando, estavaRudá.

A garota brácara respirou eouviu o eco da respiraçãoaliviada do filho de Oriana.

Frases em nheengatu soaram, aprincípio em tom civilizado,depois denotando umadiscussão. Apesar disso, o índiogigantesco demorou para afastara faca e soltar os pulsos de Gael,em resposta a um gesto nervosode seu líder.

O filho olhou esperançoso

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para o pai, que o ignorousolenemente, continuando adiscussão com o outro.Desapontado, levantou-se quaseao mesmo tempo em que Anuksentia a barreira mágicadesaparecer.

Ela se lançou sobre o garoto,abraçou-o e sentiu seu coração abater vertiginosamente. Por maisque demonstrasse destemordiante da morte, ela sabia queGael tinha medo.

Não houve tempo de dizeremnada um ao outro. No instanteseguinte, Rudá se afastara do

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líder dos botocudos e veio atéeles, com o aspecto de profundairritação.

– Pai… – o garoto começou.– Fiquem quietos e

obedeçam! – vociferou ojaguara, fuzilando-os com oolhar alaranjado.

Gael e Anuk encolheram-se; opajé dos botocudos lhes indicoua árvore onde os haviamencontrado. Recuaram evoltaram a abrigar-se sob asprotetoras raízes.

Entreolharam-se, perplexos,enquanto Rudá e o líder dos

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aquele clã. Eles seriam sitiados,invadidos e conquistadosimpiedosamente.

Em resposta a um sinal de seusenhor, imponente ao lado dela,na escadaria da porta principalda casa de Eurico, a druidesa viuos guerreiros que lotavam a ruaajoelharem-se de uma só vez.Um pouco para trás, Tariqobservava também, ladeadopelos guardas a quem elaordenara que o trouxessem.Estava pálido e, embora tentassenão demonstrar, sofria. Sabiaperfeitamente que não havia

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guerreiros suficientes em seupalacete para defendê-lodaquele exército. Do outro ladode Crom, Tarcísio, vestido paraa guerra, observava o pai dasgêmeas, enquanto pensava queescravizaria as belas mulheres al-gharbias com o maior gosto.

Crom olhou para Shantel. Estalevantou o braço segurando umpunhal, o mesmo que usara parasangrar Viriato. O sol, quase a sepôr, brilhou em vermelho nalâmina manchada de sangue. Eela disse, numa voz que foiouvida até na terceira muralha:

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– Pelo sangue que manchaesta adaga e pela soberania deCrom Cruach sobre a Citâniade Brácara, eu invoco a força deMorríghan sobre este exército.Que ela envie nuvenstempestuosas e névoa, poderosaschuvas de fogo, e um jato desangue derramado do ar sobre ascabeças dos guerreiros inimigos!

O silêncio que se fez quando adruidesa se calou foi cortadoapenas pelo soprar do vento.Conseguira impressionar ossoldados. Embora soubessem dotrancamento da magia, ninguém

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duvidava da força daquelaspalavras para levá-los à vitória.

Crom saboreou um pouco osilêncio dos guerreiros, depoisvoltou-se para Tarcísio, quedeveria liderar o ataque, e disseapenas:

– Vai. Sabes o que fazerquando a cidadela for tomada.Espero contatos teus e doscapitães pelos aparelhinhosfalantes.

O ex-braço direito de Galaorassentiu com a cabeça, indicou ocelular e desceu as escadas. Sobsuas ordens, os demais

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comandantes foram retirando oscontingentes.

Era o início da guerra pelodomínio dos povos mágicos.

E atingiria São Paulo emprimeiro lugar.

OS GUARDAS EMPURRARAM

TARIQ de volta aos aposentosde Shantel; vendo-se sozinhacom Crom, ela o interpelou.

– Ouso pedir-te que permitasque eu sacrifique Oriana. Elanão tem utilidade para nós, viva.Mas um sacrifício de sanguepoderá dar-te mais forças.

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O deus pensou por algunsinstantes.

– Este corpo está mesmoenfraquecido. E eu preciso sairda Citânia. Quando meusguerreiros tomarem a cidadelados al-gharbios, estabelecerãouma ligação com os dozepilares, e precisarei ir até lá.

– Para poderes sair doperímetro das três muralhas,terias de obter mais forçamágica. E disso o sangue deminha prima dispõe…

Ele assentiu com um sorrisocruel.

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– Que seja, então. Prepara osacrifício. Qual será a época maispropícia?

Shantel fez uma reverência emagradecimento. Finalmentepoderia matar Oriana!

– Amanhã faremos o ritual dalua minguante – respondeu. – Eem sete dias, entra a lua negra…o dia ideal para fazer corrersangue.

– Até lá, meu exército terávencido os al-gharbios. Tensminha permissão, druidesa.

E entrou no casarão, seguidopelos guarda-costas.

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Shantel ergueu a cabeça,sorrindo, os olhos brilhantes deprazer. Teria sete dias paraplanejar a morte da prima. Malpodia esperar para contar aTariq e ver a expressão no rostodele quando soubesse que suaqueridinha fora sentenciada àmorte.

ASSIM QUE O SOM dos passosdos guerreiros deixando oprimeiro círculo da Citâniasumiu de seus ouvidos, Cromdispensou a guarda e se dirigiuao templo.

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Encontrou Galaor na jaula,encolhido, cabisbaixo. Umanimal ferido.

“E muito poderoso”, analisou.Fez um gesto para que todos

os soldados se afastassem eaproximou-se.

O prisioneiro ergueu o olhar esustentou o do deus, arrogante.Nem mesmo naquela situaçãohumilhante rebaixar-se-ia aadmitir a superioridade dooutro.

– O que queres? – enfrentou,analisando os olhosavermelhados e o ar de

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confiança suprema quemodificava as feições de Viriato.

– Observo meu novo escravo.É isso que serás, a partir deagora.

Galaor procurou, no fundodos olhos vermelhos, por algumlampejo da alma do meio-irmão. Estaria morto ou, comoacreditava Gael, teria aindaconsciência do que lheacontecia?

Crom adivinhou a motivaçãono olhar do outro.

– Se achas que podes obteralguma reação do dono deste

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corpo, desiste. Ele não conseguenem mover um músculo… Eeu vi as lembranças dele. Passastea vida a maltratá-lo; de ti, ele sórecebeu desprezo, apesar deserem filhos do mesmo pai.

Sem dignar-se a responder, obrácaro voltou a refugiar-se nofundo da jaula.

– Mandarei que te tragamalgum alimento – disse Crom; e,ao ver a surpresa no rosto deGalaor, sorriu largamente. –Tenho planos para ti, filho deEurico.

Sem revelar mais nada, foi

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embora. Os guardas voltaram acercar a gaiola, as armas a postos.Quanto ao prisioneiro, rilhou osdentes em frustração eimpotência, imaginando quenovas humilhações o usurpadorestaria planejando.

Não tinha a menor ideia deque o que o esperava era bempior do que qualquer coisa quepudesse imaginar.

ANOITECERA, E A LUA

ESPALHAVA sua luz prateadapela Floresta da Tijuca. Nãohavia mais nuvens no céu; na

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caverna formada pelas raízes daárvore, Gael e Anuk comiamfrutas que os aymorés lheshaviam levado. Bananas, ameixasamarelas e laranjas, que ambosdescascaram com os dentes.

A comprida conversa dosíndios continuara, até que olíder dos botocudos mandouum de seus comandados trazercomida – algum tipo de peixeem postas. Os aymorés, Rudá eseus acompanhantesacocoraram-se num canto epartilharam a comida.

Anuk deu uma cotovelada em

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Gael.– Tu entendeste alguma coisa

do que eles falaram?O garoto deu de ombros.– Ouvi a palavra “citânia”, e

consegui entender algunsnomes: Eurico e Akinlana.

A menina brácara suspirou,impaciente. Desejava não tertrocado de lugar com Mirele.Talvez fosse preferível estar emcoma no templo a estar ali,aturando aberrações, fadas eíndios. Gael percebeu seuspensamentos como se ela ostivesse expressado; ia fazer

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algum comentário irônico,quando um som estranhochamou sua atenção.

– O que é aquilo? –perguntou, baixinho, apontandopara alguns arbustos que eramvisíveis dali. Parecia haver algoesvoaçando sobre eles. Insetos,talvez.

Anuk apertou os olhos,alarmada, e nada disse.

– São passarinhos? Borboletas?Mosquitos?

– São zanganitos, aberração.Pequenos elementais.Trabalham para as fadas.

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Ela fingiu não notar que ogaroto estremecia ao ouvir falarem fadas.

– Espiões da rainha? – elepropôs.

– Talvez. Mas são poucointeligentes. Tive vários quandoera criança.

Ele arregalou os olhos.– Quer dizer… que você

escravizava essas criaturinhas?– Para que mais eles iriam

servir?Gael suspirou.– Você não aprendeu nada

depois do que aconteceu lá no

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Jardim Botânico?– Aprendi que brácaros não

devem entrar sozinhos edesarmados em terras de Faerie!Aquelas fadas idiotas nunca maisme pegam noutra.

– O que eu quis dizer é queaquilo tudo só aconteceuporque você tem essa mania deachar normal a escravidão! Nãome conformo por vocês teremescravos, sejam pessoas, sejamseres mágicos. É imoral. Éabsurdo. É…

– Somos povos guerreiros,sempre tivemos escravos, e

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mantemos nossa vida como era,desde que os primeiros povosbrácaros se esconderam namagia. É a nossa cultura! Euacho algumas coisas da tuacultura totalmente imbecis. Masnão saio por aí criticando!

– Tudo bem, da próxima vezque as fadas te pegarem, deixoque você mesma seja castigada!– retrucou ele, contagiado pelaraiva da garota.

– Não pedi pra te meteres aser o herói salvador de donzelas!Eu era perfeitamente capaz deaguentar qualquer coisa que as

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fadas me fizessem!– Ah, claro que era. Estava se

desmanchando em lágrimas, lá,paralisada no meio dos sujeitostransparentes!

– Olha aqui, aberração, se tunão calares essa tua boca, eu…

Uma sombra surgiu na bocada pequena caverna. Os doisadolescentes olharam para fora eviram apenas Rudá em pédiante do oco. Usava calçasjeans também, e carregava umembornal de fibra trançada atiracolo sobre a camiseta simples,branca.

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– Podem sair – disse ele, comsuavidade.

Saíram, ressabiados. Mas ojaguara agora sorria para ambos.

– Tudo bem. Eles já foram.Agora somos só nós.

– Pra… pra onde eles foram?– indagou Anuk, nervosa,olhando ao redor.

Observou os arbustos: nemsinal dos índios – ou doselementais voadores.

– Norte. Meus amigostupinambás foram junto. Vãofalar com os chefes dosbotocudos, aymorés, krenaks.

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Tem muita gente escondida namagia, numa aldeia entreEspírito Santo e Minas Gerais.Se os chefes aceitarem, podemajudar. Na guerra.

Anuk estremeceu.O pai de Gael não disse mais

nada e foi andando, sem esperarpor eles. Gael mal teve tempode apanhar a mochila, que osbotocudos haviam deixado numcanto, e ir atrás dele.

Tinha muitas perguntas afazer. O que Rudá estavafazendo no Rio de Janeiro?Como os encontrara no meio

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daquele matagal? Para ondeestavam indo agora?

Porém teria de esperar paraconseguir suas respostas. O paitinha o passo ligeiro e leve deum jaguar, e ele custou a pegaro ritmo da caminhada. Olhoude lado para Anuk, achandoque a garota iria resmungar pelonovo passeio ecológico sob a luz dalua. Mas desta vez ela seguiucalada, com o ar preocupado euma indagação muda na fronte.

Guerra?!

UMA ESCRAVA ABRIU AS

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CORTINAS e Shantel acordou.Moveu-se na cama, feliz. Tudoia bem. Naquela tarde, ao pôrdo sol, ela realizaria mais umritual de poder. Sempredetestara os elementais, e agorateria a oportunidade de absorversua magia! Algo que semprealmejara.

Sentou-se na cama; duasescravas entraram, esperandosuas ordens. Porém a druidesanão desejava que elas a servissemnaquela manhã.

– Por onde anda Tariq? –perguntou.

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– No aposento dos servos,senhora – respondeu uma delas.

– Manda que ele me sirva aprimeira refeição. Agora.

– Sim, senhora.Levantou-se e foi conferir o

aspecto do dia, pela grandejanela.

A manhã prometia serensolarada, apesar do frio dejulho. Sentou-se junto à mesaem que costumava tomar odesjejum, enquanto uma servaescovava seus cabelos. Nãodemorou até Tariq entrar,carregando a bandeja com os

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alimentos matinais.Não era a primeira vez que o

obrigava a servir-lhe refeições.Ele era o melhor escravo que játivera… Calado, obediente,atento. O fato de ser um doshomens mais atraentes queconhecia também nãoatrapalhava. Shantel apertou oslábios, notando o quanto aescravidão lhe caía bem: a túnicados servos realçava seu portemásculo. Esperou que lheadoçasse o café e passasse amanteiga no pão, como elaapreciava. Enquanto ele lhe

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servia suco e bolos, provocou-o:– Diz o que estás pensando,

Tariq.– Não vais gostar de ouvir.– Ainda não aprendeste como

deves tratar-me, escravo?– Não vais gostar de ouvir,

senhora – emendou ele, a cabeçabaixa.

– Provavelmente não. Diz,mesmo assim. O que se passapor tua cabeça?

– Que é difícil acreditar queusaste nossa filha para tuasmagias sórdidas. Enquanto estásaqui, saboreando tuas traições

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junto com o café, uma dasmeninas que geramos jaz comomorta no templo, sua força vitalsugada por aquele…

– Quanta compaixão poraquela atrevida da Anuk! – ela ointerrompeu. – Tu mesmo nãosabias o que fazer com ela,quando a levavas para tua casa.Nossa filha rebelde tem sido umincômodo, tanto para mimcomo para ti. Eu sempre soubeque ela traria problemas.

Ele sorriu, irônico.– Ah, sim, a profecia da

parteira. Ouvi contar a história

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muitas vezes… os servos arepetiam, sempre que Anukaprontava alguma. O que foimesmo que a mulherprofetizou? A primeira criança anascer de teu ventre se voltará contra ti.Foi por isso que sacrificaste tuaprópria filha, Shantel? Para tirá-la do caminho antes que ovaticínio se cumprisse? Nuncapensei que fosses tola a ponto deacreditar em tais bobagens.

Um tapa no rosto o fez calar-se, e um guarda veio docômodo vizinho, o chicote namão. Mas a druidesa apenas

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sorriu, desistindo de bater-lhede novo.

– Começo a acreditar quegostas de ser açoitado, Tariq.Serve-me mais café.

Ele tomou o bule e serviu olíquido fumegante, o rostoimpassível agora vermelho.

– Voltando ao assunto – elaprosseguiu –, Anuk está viva. Eenquanto estiver sob umencantamento, não atrapalharámeus planos. Já Mirele é bemmais fácil de controlar. Fugiucom a aberração, mas logo seráencontrada; Galaor revelará para

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onde a levou.Não demorou a passar para o

assunto seguinte. Ah, comoesperara por aquele momento…

– Sabes que ordens recebiontem? De preparar a execuçãode minha querida prima.

Tariq recuou, horrorizado.– É isso mesmo, Crom

Cruach sentenciou Oriana àmorte. Ela será executada emuma semana, na lua negra, emum belo ritual de sangue.

O líder dos al-gharbios perdeutoda a impassibilidade.

– Tu disseste… que se eu te

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servisse… ela não sofreria!Já escolhendo um vestido,

ladeada pela escrava, ela sacudiuos cabelos.

– Não posso fazer nadaquanto às decisões de meusenhor. Obedeço ordens.

Furioso, Tariq empurrou amesa. A bandeja e toda a louçado café caíram ao chão dotoucador. Ele avançou para ela,que apenas levantou umasobrancelha.

– Vais limpar tudo isso, bemsabes, antes de receberes ocastigo pela insolência.

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– Não. Não te servirei mais,Shantel. Acabou!

O guarda esperava apenas aordem da senhora para derrubá-lo. Mas ela continuou a mexernos vestidos, imperturbável.

– Ora, meu querido, como ésingênuo. Achas que tensescolha? – E, passando os dedossuavemente pelo rosto dele,declarou, a voz fria, gelada,impessoal: – Ela tem sete dias devida. Pode passá-los na cela,cuidando de Eurico, ou podepassá-los exposta no pelourinhoda praça. Tu sabes como nossos

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algozes apreciam ter alguémpara torturar…

Tariq se calou, enojado. Nãopodia conceber tanta crueldadeconcentrada em uma só pessoa.Ficou imóvel enquanto ela iacom a serva para outro cômodo,banhar-se e vestir-se. Antes desair, porém, a druidesa aindaordenou ao guarda:

– Faze com que ele limpe asujeira. Depois, podes puni-lo.Não podemos permitirindisciplina entre os escravos,não é mesmo?

E, enquanto seu banho era

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preparado, ainda se demorouescolhendo as joias que usarianaquele dia. Naquele belo eensolarado dia, em que, aoanoitecer, a lua começaria aminguar.

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O

CAPÍTULO 4

Minguante

Itaguaí

SOL JÁ ESTAVA ALTO

quando Rudápermitiu que

parassem para comer algumacoisa. Anuk xingava tudo etodos, baixinho. Quanto a Gael,seu aspecto era péssimo; nãobastasse o castigo das fadas e a

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luta com o botocudo, acaminhada rija o esgotara.

A garota brácara estavaconfusa. O índio seguia sinaisincompreensíveis que alguémdeixara nas árvores; fizera-ostomar trilhas estranhas, onde elasentira algum tipo de magia emação. Nenhuma vez viram sinalde gente; apenas pássaros einsetos pareciam habitar aquelescaminhos. Afinal, deram numadepressão do terreno oculta porárvores.

Rudá tocou um tronco emque havia outro daqueles sinais e

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parou.– Agora podemos descansar.

Meu amigo vai chegar logo.Querem comida?

Anuk despencou no chão.Gael respirou fundo e se apoiouno tronco da árvore.

– Foi seu amigo que deixouessas marcas que você seguiu? –perguntou ao pai, que havia seacocorado no chão e estavatirando um volume doembornal.

– Foi. Uirê. Tomem, Juci quefez. É bom, dura muitos dias…

Estendeu para cada um deles

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um embrulho de folha debananeira, amarrada com umacordinha de fibra vegetal. Anuktorceu o nariz, resmungandoalgo sobre “comida de índio”,mas Gael abriu o seu depressa ese deliciou com o conteúdo. Erauma posta de peixe moqueado,envolvido em farinha demandioca preparada como umafarofa grossa. O sabor eradelicioso, e nem mesmo aorgulhosa filha de Shantel pôdereclamar.

– Que lugar é este, pai? Pelotanto que andamos durante a

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noite, devemos estar longe doParque Nacional da Tijuca, masnão vi nenhum sinal decidade… É como se a gentetivesse saído do tempo e doespaço.

Rudá, que havia terminadoseu peixe, tomou um gole deágua de um cantil que tambémtirou do embornal. Sorriu,demonstrando o prazer quesentia por ser chamado daquelaforma, e num tom tão natural.Pai.

– Pegamos um atalho que sóUirê e os amigos dele

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conhecem. Tem magia nessecaminho, sim. Mas isto ainda é oestado do Rio de Janeiro. Aquiperto fica Itaguaí.

A garota engasgou com oalimento ao ouvir aquilo.

– Tu queres dizer queandamos tudo isso em umanoite?! Impossível.

O jaguara ignorou aobservação e fincou os olhos norapaz.

– Pergunta o que querperguntar, filho.

Animado, ele disparou.– Como foi que você achou a

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gente? Ninguém sabia onde nósestávamos, só o Galaor, mas elefoi pra Bahia… e para ondevamos agora? Ah, tambémquero saber que história é essade guerra. Além disso, porque…

Rudá fez um gesto pedindocalma.

– Uma coisa de cada vez.Ergueu o rosto, como se

farejasse o ar, e contou:– Depois que vocês foram

embora da Serra do Mar, fiqueiagoniado. Juci disse que eudevia ir, pra ter certeza de que

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os brácaros não iam matar você.Então pedi ajuda dostupinambás de lá. Pegamos umônibus e fomos pro Rio deJaneiro. Eu sabia o caminho.

– Não foste para a Citânia! –exclamou a garota, aindacomendo o peixe.

– Fui, só que antes de chegarem Santa Teresa, segui pra beirado mar. No lugar chamadoFlamengo. Era de noite e ali eusabia como encontrar osigpupiaras.

Anuk engasgou de novo. Gaelteve de bater nas costas da

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garota para desengasgá-la.– O que é um igpupiara? –

quis saber, cansado de tantacoisa que ignorava.

– Elementais – esclareceu ela,sombria. – Da água. Ligados aosíndios…

– São amigos – disse Rudá. –Eles andam por tudo que é lago,rio, mar… Sempre dão notíciasdo que acontece. E esse sabiamuita coisa. Contou que aCitânia foi trancada com magia.Que o filho de Eurico fugiu dafortaleza porque um deus domal veio pra Terra…

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Um grunhido demonstrou oque Anuk pensava de CromCruach.

– Mas ninguém sabia quetínhamos ido pra Tijuca! –estranhou Gael.

– Não – Rudá admitiu. –Acontece que um dostupinambás que veio comigo épajé e me ajudou a encontrar atrilha. Magia jaguara é diferentedas outras, a gente percebe orastro dela no ar, na água. Vocêusou magia no jardim e na mata.Fomos atrás do rastro.

– Sério que eu usei magia?

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Mas como fiz isso se nempercebi?

Rudá olhou para o filho,aparentemente mudando deassunto.

– Por que você provocou oaymoré para a luta? –perguntou.

– Eu só… Fui ficando cheiode estar preso naquele círculoe… Olha, pai, não sei o que medeu naquela hora.

– Nenhuma fera gosta de serprisioneira.

O que o pai queria dizercom…? Gael engoliu a própria

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pergunta, morrendo de medoda resposta. Era melhor nãopensar na possibilidade de…

– E por que o tal elementaldeixou esses sinais pra vocêseguir? – disse Anuk, indicandoa marca na árvore com o dedo.– Não era mais fácil ele mesmoaparecer para nos guiar?

O pai de Gael levantou-se.Começou a ajeitar o embornal.

– Uirê é o chefe dosigpupiaras. Mandou um aviso deque ia deixar um caminho paraeu achar o lugar onde vinha meencontrar. Também mandou

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notícias de Iwati.A garota franziu as

sobrancelhas. Já tinha ouvidoaquele nome… mas onde?

– Iwati comanda os clãsindígenas – explicou Rudá. –Meu velho amigo. Ele pediupros elementais espalharem anotícia: o rei iorubá juntou amaioria dos clãs, vão atacar osbrácaros. Ele e Iwati estãojuntando os exércitos e indo praAgulha da Magia…

– Espera, espera, espera aí! –Anuk se pôs em pé com umsalto, nervosa. – Então, essa

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história de guerra é verdade? Osclãs mágicos vão atacar aCitânia?

O índio não respondeu.Parecia estar ouvindo algo quesó ele percebia. Não se passounem um minuto quandoapareceu um homem vindo domeio do mato.

Bem, na verdade ele não erahumano. Usava roupas comunse alguns adereços de índio, masde alguma forma podia-se notarque era… diferente.

Os dois trocaram um abraço.Ignoraram os adolescentes e

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começaram a conversar, porémnão em português ounheengatu. Anuk e Gael nãoentenderam uma única palavrada conversa que se seguiu.

São Paulo

DESDE QUE HANEF voltara àcidadela al-gharbia, a tensão e omedo aumentavam. Muitasfamílias viviam no local, haviaum bom número de guarda-costas e guerreiros, mas todossabiam que, no caso de umainvasão brácara, estariam em

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desvantagem numérica.Mesmo assim, o capitão de

confiança de Tariq designaratodos os homens hábeis para asegurança. Providenciara armas,capacetes e escudos, e seassegurara de que os maistreinados se colocassem naprimeira linha de defesa.Ninguém tinha certeza, porém,de que os brácaros seguiriam atradição dos clãs e usariamapenas armas brancas. Faziatempo que não havia guerrasentre os povos mágicos; aproibição do uso de armas de

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fogo e da simples pólvora forarespeitada em conflitosocorridos nos séculos XVIII eXIX. Quem poderia garantirque isso aconteceria agora? Aincerteza minava o ânimo dosguerreiros.

E, a cada dia, notíciasdesalentadoras chegavam.Primeiro foi um enviado deGalaor, um dos vigias que elecooptara a seu serviço ao escaparda Citânia. O homem narrou oque acontecera com a ascensãode Crom Cruach ao poder,falou sobre o ritual de Shantel, a

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morte de Kían. E deixou Hanefmais preocupado ainda, pois,segundo aquele homem, Galaorseguira ao encontro deAkinlana. Hanef sabia, contudo,que ele não chegara aoquilombo. O que teriaacontecido ao filho mais velhode Eurico?

Depois, chegaram indígenas.Tariq mantinha relações cordiaiscom líderes de povos mágicosnativos espalhados pelo estado;dois deles enviaram mensageirosfalando sobre a inquietação dastribos. Iwati espalhara a notícia

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de que os clãs haviam declaradoguerra aos brácaros, e nem todosos líderes concordavam comisso, preferindo manter aneutralidade.

Por fim, havia os elementais.Os al-gharbios não tinham maiso costume de escravizá-los, e naregião metropolitana de SãoPaulo eles não eram muitonumerosos; porém havia fadas,ninfas e mouras encantadas nosparques, e igpupiaras que aindatransitavam nos rios canalizados.Vários deles procuraram refúgiona cidadela, inquietos com a

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perturbação que a travessia deum deus ancestral ao mundofísico trouxera às correntes demagia…

Com tudo isso, a única coisaque o capitão podia fazer, alémde colocar os guerreiros emprontidão e reforçar aintegridade das muralhas, eramanter o moral dos al-gharbioselevado. Tarefa difícil, agora quetodos sabiam que seu líder foracapturado e poderia a qualquermomento ser morto pelosinimigos. Hanef não acreditavaque Shantel chegaria a tanto;

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tinha, contudo, certeza absolutade que ela o torturaria. E essacerteza apertava seu coração,enquanto o guerreiro percorriaa cidadela oculta e tentavaanimar seu povo.

Itaguaí

RUDÁ NÃO PERDEU TEMPO.

Nem Gael nem Anuk sabiam oque o igpupiara lhe havia dito,apenas imaginaram que deviamser más notícias, pelo arpreocupado de ambos. Ojaguara pediu que recolhessemacampamento. Ainda tinham

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muito que andar, mesmoatravessando trilhas mágicas, queencurtavam distâncias.

Uirê seguiu na frente, abrindoo caminho. Gael foi atrás dele,tentando emparelhar o passocom as grandes pernas doelemental. Anuk o seguiu eRudá se deixou ficar naretaguarda. Levava uma faca àmão e olhava desconfiado paratodo lado.

O igpupiara andava e, às vezes,fitava o filho de Rudá comcuriosidade.

– Faz muito tempo que você

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conhece o meu pai? – Gaelpuxou conversa.

O outro sorriu. Tinha dentesafiados, mas sua aparência ferozera suavizada por um arbondoso nos olhos cor de águade rio.

– Ah, faz. Conheci o pai delee o pai do pai dele. Os índios-onça sempre foram nossosaliados. Quando os brácaroscaçaram Rudá, quase entramosem guerra contra eles.

– Quase? – Gael imaginavaquão assustador seria um grupode seres como Uirê.

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– Antes que a gente resolvesse,Oriana libertou seu pai.Ajudamos os dois a fugir. Ecomo os jaguara não quiseramque ele voltasse pro norte, ficoucom os tupinambá.

– Então todos os elementaisodeiam mesmo os brácaros…

– Muitos odeiam. Eu tambémnão gostava nada deles, atéconhecer sua mãe. Mas antesdisso eu já pensava diferente,por causa de outro da sua raça.Ele me salvou.

– Sério? Quem?– Não sei o nome dele.

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Aconteceu faz mais de dez anos,pela contagem de tempo doshumanos. Eu andava pelo Rio,na região da Baixada, e caí numaarmadilha.

– Que tipo de armadilha? –Gael notou que Anuk ouviraparte da conversa e seaproximara, tão curiosa quantoele.

– Dos brácaros. Eles sempreusaram arapucas pra pegar fadasou povo dos rios, como eu.Antes de os caçadoresaparecerem, um rapaz brácaroveio. Disse palavras que abriram

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o encantamento da armadilha efalou para eu fugir, antes que osoutros viessem.

Surpreendente. A filha deShantel não se conteve.

– Por que ele fez isso? Se fossedescoberto, seria castigado…

– Eu sei – completou Uirê. –Ele me contou que era escravoe que não suportava a ideia deseu povo escravizar os filhos doselementos. Aí usou magia pra seesconder e sumiu. Eu fugi.Depois disso, comecei a pensarmelhor dos brácaros. De algunsdeles.

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Ele se calou e apressou o passoapós as confidências. E o mesmopensamento ocorreu a Gael eAnuk. Escravos brácaros nãotinham o domínio deencantamentos complexos. Sóhavia uma pessoa, que ambosconheciam, que os dominava eque seria capaz de desobedecerordens para salvar criaturasmágicas.

Viriato.

Rio de Janeiro

FINNATH CONVERSAVA COM

ORIANA, em um canto da cela,

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sobre as formas possíveis dedesfazer o feitiço queaprisionava Mirele, quandoBelmira apareceu. Entregou aTiago um cesto de alimentos e,ao reparar em Eurico, nãoescondeu uma expressãoalarmada.

– Ele piorou – disse Oriana.– O usurpador precisa saber

disso – comentou a escrava. –Ordenou que vosso pai fossemantido vivo. Posso tentar fazerum recado chegar a ele, mas sóamanhã. Tem alguma coisaacontecendo hoje. Proibiram

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todo mundo de entrar notemplo.

Finnath a fitou, preocupado.O al-gharbio, que estiveraquieto até então, indagou:

– Tem visto o senhor Tariq?Belmira mordeu o lábio

inferior, hesitando emresponder. Afinal, revelou:

– Tariq foi açoitado hojecedo. Ela não perde nenhumaoportunidade de humilhar teusenhor… e Crom enviou umexército para atacar tua cidade.Tarcísio os comanda.

Com um olhar sombrio,

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Kassib voltou para o cantoescuro da cela, enquanto Orianase agoniava por Tariq, e Tiagose adiantava:

– E minha filha? Ela está bem?– Os guerreiros a procuram

por toda a parte, mas não vãoencontrar. Carol está seguracomigo, não te preocupes comela.

Algo em sua voz alarmouOriana. Havia mais. O que avelha serva estava ocultando?

– Se tens mais alguma coisa adizer, diz logo, Belmira.

Com os olhos baixos, a

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mulher enfim revelou o que asescravas de Shantel haviam lhecontado. Ao ouvir sobre aexecução, Tiago perguntou:

– E não tem nada que a gentepossa fazer? Eles não podemsimplesmente condenar umapessoa à morte! Isso é assassinato.

– Fica calmo – foi a respostade Oriana. – A justiça dosbrácaros funciona assim. Não tepreocupes tanto. Em umasemana muita coisa podeacontecer…

O pai de Carol resmungou,mas acabou se calando. E a

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escrava foi para a porta.– Preciso ir. Hoje só consegui

vir aqui aproveitando a distraçãoda senhora.

Antes que ela saísse, Orianarecordou, num sussurro:

– Na parede ao fundo dotemplo, atrás das cortinas, háuma porta que dá para umquarto vazio. A entrada dessequarto é no corredor doprimeiro andar, de onde saiaquela passagem para os andaresinferiores. Era usada para osservos levarem ervas da despensapara os cerimoniais… Costuma

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ficar trancada, mas Viriatosempre dava um jeito dedestrancá-la. Quem sabeconsigas usar essa passagem paraespionar!

– Boa lembrança – murmuroua velha escrava. – Vou procurara porta.

Quando a mulher saiu, Tiagodistribuiu os alimentos. Eurico jánão aceitava nada, mas Orianatinha de se fortalecer, e ele a fezcomer alguma coisa. Passandopara Finnath um cântaro comágua, pensou em usar um poucopara tentar contatar Nan.

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Porém, algo lhe dizia quenaquela noite não obteria aconexão. Havia realmente forçasmágicas estranhas percorrendo aCitânia, e até ele, que nãopassava de um humano, podiasentir isso.

EM POUCO TEMPO, a luaminguante surgiria no céu.Apesar de toda a magia naCitânia estar concentrada nospilares do templo, Shantel sentiuum frêmito passar por seucorpo, ao sair do banho epreparar-se para vestir a túnica

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ritual que usaria naquela noite.Magia. Pura, poderosa.A druidesa dispensara as

escravas; estava sozinha. Tariqpermanecia no quartinho úmidoque reservara para ele, vigiadopelos guardas pessoais dasobrinha de Eurico. O al-gharbio, sombrio, digeria a surrae a condenação de Oriana àmorte. Shantel sorriu, aolembrar como aquilo o atingira.Talvez agora ele entendesse quelhe pertencia, por completo.

Ela fechou os olhos e deixouque as energias a permeassem.

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Sentiu as pontas de seus dedosestremecerem, até que as forçasmágicas buscaram o chão,sugadas pelo pilar central dotemplo, como todo o poderque circulava na fortaleza.

Shantel cobriu a nudez apenascom a túnica negra. O ritualdaquela noite prenunciava o dasemana seguinte, em quepoderia sacrificar Oriana.Tradicionalmente, na lua nova,não se praticavamencantamentos. As históriasantigas diziam que era a épocade descanso das feiticeiras… ela,

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porém, sabia mais. Lera nasentrelinhas de todos os tratadosde magia e de todos osalfarrábios medievais queencontrara; percebera que,talvez justamente devido à pausaa que os outros praticantes seforçavam, havia energias desobra no mundo, nessa época.Obscurecidas pelo esconder daface da lua, mas, não obstante,poderosas. E não tinha o menorescrúpulo em usá-las parapráticas proibidas.

Olhou-se no grande espelhodo quarto.

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Estava bela na túnica negra,sem qualquer adereço, os pésdescalços e os cabelos soltos.Seus olhos faiscaram e seuslábios esboçaram um riso cruel.Crom ficaria satisfeito.

Buscou sobre o toucador aadaga, que ainda mostrava asmarcas do sangue de Viriato, efoi para o templo.

Resende

A PIOR ETAPA DA VIAGEM, paraGael, foi a subida.

Após passarem pela região de

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Itaguaí e alcançarem umagrande represa, que lhe disseramchamar-se Ribeiro das Lajes,Uirê guiara o grupo pelaentrada de uma caverna – oacesso ficava escondido pormagia, naturalmente – e láderam com um rio subterrâneoem que outros igpupiaras osaguardavam, com canoasrústicas, muito estreitas eescavadas em troncos demadeira leve.

Anuk não queria embarcar.Mas era isso ou ficar ali, e elanão se animou a permanecer

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entre os elementais, que aexaminavam com sorrisos emque os dentes afiados ficavam àmostra.

As canoas deslizaramvertiginosamente pela correntede água submersa; horas depois,saíram a céu aberto, e o grupoviu à frente uma serra alta eimpressionante.

Rudá sorriu e apontou parapicos quase totalmente ocultospelas nuvens.

– Lá. Agulha da Magia.Tinham saído da caverna em

algum ponto do rio Paraíba do

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Sul. Dali, do municípiofluminense de Resende,começavam as estradas para oParque Nacional de Itatiaia,onde se localizava o Pico dasAgulhas Negras. Quandodesembarcaram, Gael perguntouao pai se iriam escalar o pico, eele negou.

– A Agulha da Magia não ficatão no alto – explicou. – É maisperto, bem no encontro dasTrês Terras. Uirê conhece atrilha.

– Encontro das Três Terras? –resfolegou Anuk, enquanto

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ambos se esfalfavam atrás doigpupiara, de novo, agora numatrilha ascendente. – Onde é isso?

– Neste maciço tem umponto da fronteira que, para osperós, divide três estados, SãoPaulo, Minas Gerais e Rio deJaneiro – disse Rudá. – É lá.

Quando haviam subidobastante, e o ar se tornaragelado, perceberam cercas demagia isolando o terreno.Andarilhos e alpinistas nãoveriam nada e seriamcompelidos a voltar para as áreas“humanas” do parque.

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A garota se calou.Preocupava-a lembrar queparques eram domínio do povodas fadas; no entanto, fosse pelapresença do igpupiara ou doíndio-onça, nenhum outroelemental apareceu em seucaminho. E eles chegaram emsegurança ao acampamento.

Havia muita gente acampadapor ali; em tendas, em cavernasnaturais dos morros, vários ao arlivre. A garota reconheceuindígenas, afros, helens, atéalguns al-gharbios.

Todos pareciam comandados

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pelas pessoas instaladas numatenda verde, armada junto aomaior penhasco. Foi para estelocal que Rudá e Uirê seencaminharam, depois de ojaguara pedir aos adolescentesque se mantivessem quietos erespeitosos. Anuk torceu o narize Gael assentiu, aindarecuperando o fôlego após asubida. Acompanharam o índio-onça, enquanto ele conversavacom quem quer que estivesseno comando.

Um deles era outro indígena,que o garoto concluiu ser o tal

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Iwati. Outro era um senhor decabelos brancos e ar bondoso.Por fim, uma mulher de mechasvermelhas, bela e que irradiavapoder. Assim que pôs os olhosnela, não conseguiu mais tirá-los… E mal notou que a gêmeaprendia a respiração.

– Uma lady érin… –murmurou ela, assombrada.

E não respondeu quando elequis saber quem era a talmulher. A única coisa em queAnuk conseguia pensar era que,se os érin estavam envolvidos,realmente haveria guerra.

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Rio de Janeiro

SEGUINDO ORDENS EXPRESSAS

DE SHANTEL , nenhuma luzelétrica foi acesa no templo apóso escurecer. Apenas doisarchotes à entrada e velas pelorecinto. Centenas de velas.

Os doze pilares circundantespareciam mover-se com obruxuleio das inúmeras chamas.E, no canto em que haviagaiolas, a iluminação era maisforte. Apenas a jaula de Galaorpermanecia na penumbra, masagora que os mantos tinham

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sido retirados ele podia ver oque as gaiolas continham.

Faerie. Fadas, zanganitos,alguns gnomos e até duassalamandras estavam confinadosem prisões que se adequavam aseus tamanhos e poderes. Eleimaginava por que razão taisseres estariam aprisionadosquando Crom e Shantelentraram.

Vinham acompanhados pormeia dúzia de seguranças eoutros tantos escravos.Contando os guerreiros que jáfaziam a guarda lá dentro, não

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chegavam a vinte pessoas nogrande salão do templo.

Crom ficou para trás,enquanto a druidesa se acercavado pilar central.

Os elementais se agitaram nasgaiolas. Seus protestos foramabafados pelo som que se ouviuassim que Shantel ateou fogo aobraseiro. O que quer quehouvesse ali dentro ardeurapidamente, crepitando emlabaredas amarelas que seelevaram alguns metros numacoluna incandescente.

O filho de Eurico sentiu que

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as chamas tinham dificuldadeem se alimentar de magia. Nasemiescuridão dos cantos dotemplo enxergou linhascirculando, que formavam umdesenho encantado, mostrando,a quem conseguisse enxergar,como os doze meniresabsorviam as forças mágicas detoda a Citânia e as canalizavampara o pilar maior.

Deste, difusa luminosidadepartia e envolvia o corpo dagarota que ele julgava ser Anuk,e o de Viriato, hospedeiro dodeus celta. Durante o dia, ou

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quando as luzes elétricasbrilhavam, aquilo não eravisível. Agora, contudo, a teiade magia tecida por sua esposase revelava. O prisioneiro seajeitou melhor na jaula paraassistir.

A uma ordem muda deShantel, quatro escravastomaram os frascos que tinhamsido dispostos em torno dobraseiro. Um outro servo, bemjovem, se acercou da druidesaenquanto o último escravo,quase um menino, ia até o leitoem que jazia a filha de Tariq.

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Shantel começou a entoaruma canção mágica. Galaorconhecia as palavras antigas osuficiente para saber que setratava de um Canto de Poder.O objetivo parecia ser atrairenergias mágicas de fontesdistantes e reuni-las no templo.Magia proibida, claro.

A canção hipnótica acalmouos seres aprisionados. Assim queseus zumbidos cessaram, cadauma das escravas ergueu o frascoque levava e derramou algumasgotas de líquido sobre obraseiro, fazendo as labaredas

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crescerem a cada vez.Tornaram-se alaranjadas, depoisvermelhas, em seguida roxas epor fim azuladas.

Um brilho azul idênticosurgiu ao redor do corpo dagarota adormecida. O servo,que esperava por aquilo, ergueua mão, segurando um punhal: aadaga ritual de Shantel.

A lâmina perfurou um dosbraços da gêmea. Não foi umgolpe muito profundo, porém;assim que o sangue cobriu oaço, o rapazinho voltou parajunto da druidesa.

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Shantel ajoelhou-se diante dobraseiro e estendeu o própriobraço.

Nem se abalou quando oservo fez ali uma incisão,permitindo que seu sangue semisturasse ao da filha. Aindaajoelhada, ela estendeu a outramão e pegou o punhal;erguendo-o, esperou que olíquido vital de ambas pingassesobre as chamas…

Foram quatro gotas apenas, eo fogo se tornou verde. Acoluna incandescente baixou eas labaredas formaram mais fios

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de energia sutil, que envolveramo grande pilar e de lá partirampara os seres aprisionados. Deles,gemidos ecoaram, energia fluiude volta ao menir e seus corposdespencaram sobre o fundo dasgaiolas.

Uma sensação estranha passoupor todos os que seencontravam dentro das trêsmuralhas da Citânia. E Galaornão teve dúvidas de que aquilose espalharia lá fora também.

O feitiço fora muitopoderoso. Toda a magia dosseres elementais, em um amplo

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raio, a partir da capital do Riode Janeiro, fora neutralizada.

ORIANA VIU FINNATH

CAMBALEAR, de repente, nacela escura.

– O que tens? – perguntou,alarmada.

– Não sentiste? – murmurouele, com dificuldade. –Aconteceu alguma coisa.

Ela realmente havia sentidouma fraqueza incomum, nominuto anterior. Mas era umaprisioneira condenada à morte,mal alimentada e assistindo ao

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pai morrer lentamente, portantojulgara que a sensação fazia parteda provação.

– Não – ele negou, quandoela explicou o que sentira. – Émais que isso. Alguém mexeucom forças elementais.

– Mais magia proibida… –sussurrou a mãe de Gael,lembrando o que Belmiradissera sobre a atividade notemplo.

Provavelmente novasexperiências macabras de suaquerida prima.

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OS OLHOS COR DE VIOLETA

dispararam um brilho intenso e,de súbito, se apagaram. O povoao seu redor pareceu diminuir,como se seus corpos setornassem transparentes,mirrados. Um grito de fúriapartiu dos lábios da Rainha. Elasabia o que estava ocorrendo.

O FRADINHO IA ATRAVESSAR

UMA PAREDE, quando sentiu adureza dos tijolos no rosto.Tateou o obstáculo à frentecom as mãos furadas. Não podiapassar. Procurou um esconderijo

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entre os arbustos do jardim maispróximo, estava com medo ecompletamente vulnerável aosolhares humanos.

OS IGPUPIARAS SE

ENTREOLHARAM. Tocaram-se.Tentaram conectar-se à magia,inutilmente. Precisavamcomunicar-se com Uirê, mascomo? Seu poder telepático sefora.

NAN CONVERSAVA COM

OLOÚ, no momento em que aonda antimagia atingiu acomitiva de Akinlana. Estavam a

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meio caminho do ponto deencontro. O babalaô levou amão ao peito, como se sentissedor.

– Alguma coisa foi feita…uma coisa terrível – disse ele.

Ela tocou a pedra de Iansã nopeito: estava fria, morta, comouma pedra comum.

Pela primeira vez, sentiuprofunda desesperança. O queestava acontecendo?

Itatiaia

UIRÊ INTERROMPEU A

CONFERÊNCIA entre os líderes.

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Rudá se espantou com oaspecto do velho amigo. De umminuto para outro, ele pareciater envelhecido.

– O que houve? – perguntouo homem de cabelos brancosque Gael já sabia chamar-seEgeu.

– Toda a minha magiadesapareceu – revelou oigpupiara.

Cáitlin levantou-se. Estavapálida.

– Não foi apenas a tua –revelou, a voz fraca, como seestivesse ferida. – Os povos

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elementais foram atingidos porum encantamento poderoso.Não sei qual o alcance dofeitiço, parece imenso. Possoouvir o eco de seus gritos, sentirseu desespero. São muitos…

Iwati saiu da tenda no mesmominuto.

– Vou reunir os pajés. Temosde entender que nova ameaça éessa.

Anuk, porém, não precisavade feiticeiro algum paraadivinhar a fonte do problema.Olhou para Gael, assobrancelhas franzidas.

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– Foi ela, não foi? –perguntou ele.

– Minha mãe.

OS XAMÃS IDENTIFICARAM aorigem do encantamento. Riode Janeiro, Santa Teresa, aCitânia de Brácara. Nadapodiam fazer: toda a magiaelemental fora neutralizada. Osseres do ar, da terra, da água edo fogo não mais poderiamrender qualquer ajuda aos clãs.

Gael e Anuk discutiam oassunto numa tenda pequenaque lhes tinham cedido junto ao

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acampamento dos guerreiroshelens, quando viram Cáitlinentrar. Para surpresa do garoto,sua companheira levantou-se efez uma curvatura para ela. Airreverente filha de Tariqdemonstrando respeito aalguém? Aquilo era inédito.

– Filhos, vamos conversar – amulher começou. – Rudáexplicou tudo que vos ocorreu,mas pediria que descrevêsseisdetalhes do que vistes notemplo da casa de Eurico.

Os dois adolescentes serevezaram para narrar a

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sequência dos fatos e descrições.A érin cravou os olhos emAnuk, quando ela falou sobre airmã.

– E acreditas que tua mãe nãopercebeu a troca das filhas?

– Tenho certeza de que nãonotou. Ela detestaria fazer aquilocom Mirele. Já comigo… –sorriu com melancolia. – Temuma profecia, tu sabes…

Gael arregalou os olhos.Profecia? Sua vida estava cadavez mais parecida a uma saga defantasia. Feitiços, execuções,profecias… Só faltava

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aparecerem elfos e anões.– Eu sei – disse Cáitlin. – A

primeira criança a nascer de teu ventrese voltará contra ti. Ouvimos contarsobre isso. E tu és a gêmeaalguns minutos mais velha.

Os três ficaram em silênciopor um minuto. Então a érinpareceu tomar uma decisão.

– Precisamos de maisinformações. Em vista do queme contastes, acho que há algoque podemos fazer. Masprecisarás ter coragem, filha.Estás disposta a ajudar?

– Sim, senhora – Anuk fez

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outra reverência.– Vem comigo, então.As duas deixaram a tenda.

Gael foi atrás.– Quero ajudar também.– Não há nada que um

jaguara possa fazer no momento– declarou a mulher. –Usaremos magia antiga,complexa.

– Não tem nada a ver commagia – disse ele. – Eu sóquero… dar uma força praAnuk.

Tomou a mão da garota,sentindo o tremor que ela

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tentava esconder.Cáitlin sorriu. Ah, a

juventude!– Está certo. Afinal, não existe

conexão mágica mais forte queo amor.

E fez sinal aos dois para que aseguissem.

Eles obedeceram, sem nadadizer, seus rostos vermelhos devergonha.

PASSAVA DE MEIA-NOITE. Amaioria dos guerreirosacampados na Agulha da Magiadormia; apenas vigias rodeavam

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o local, levando tochas acesasque o vento gelado faziatremeluzir. Sob a tenda verde,porém, várias pessoaspermaneciam em vigília. Algunsxamãs, pajés e até pitonisashelens haviam sido orientadospela senhora érin e rodeavamum leito improvisado em queAnuk estava deitada.

A garota, que tentava nãoparecer assustada, tinha Gaelsentado a seu lado, segurando-lhe as mãos. Iwati, Rudá, Egeue outros líderes observavam.

Cáitlin se aproximou trazendo

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um recipiente de ferro escurocom altos-relevos de desenhosceltas entrelaçados. Dentro dele,carvões incandescentesqueimavam.

– Vou forçar uma ligação coma Citânia – explicou. – Apesarde estar trancada à magia, háuma porta aberta para nós, daqual Shantel não desconfia. Ocorpo de Mirele está sob oencantamento realizado e suaforça vital mantém as energiasde Crom Cruach no físico dohospedeiro. Mas sua mente deveestar ativa, e é a ela que vamos

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acessar. Através da única menteno mundo que pode partilharseus pensamentos: a de sua irmãgêmea.

Ela jogou sobre as brasasalgumas folhas trituradas quetirou de um saquinho preso àcintura; um perfume suave eagradável se espalhou peloambiente.

Anuk fechou os olhos e, desúbito, uma imensa força apuxou para o alto, para longe.Sentia que estava voando,atravessando nuvens cinzentas eameaçadoras.

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No meio das nuvens, viu orosto da irmã à sua frente,confuso, marcado por lágrimas.Tentou estender a mão para ela,mas ao tocar a nuvem sentiuuma dor intensa. Recuou, e ador passou. Ouviu, então, a vozda senhora érin, muito distante.

– Tem coragem, filha. Podesatravessar a barreira. Tua mentesempre esteve ligada à dela, enão existe magia, proibida ounão, que consiga separá-las.

Pela primeira vez na vida, agarota sentia pena da irmã,vontade de evitar o sofrimento

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que era evidente em seus olhos.Queria salvá-la. Protegê-la.Estendeu a mão e sentiu denovo a dor atacá-la, como seuma língua de fogo queimasseseu braço, seu rosto.

– Mirele! – chamou, a vozrouca, tentando manter-sefirme. – Sou eu. Fala comigo!

O rosto da irmã gêmea setornou mais nítido no meio danuvem.

– Ajuda-me! – soou aresposta, também parecendosufocada pela dor.

Anuk fez mais um esforço e

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sentiu o fogo invisível tomarconta de todo o seu corpo.Lágrimas escorreram-lhe pelorosto. Ela cerrou os dentes e deuum passo à frente.

– Segura a minha mão –pediu, entre soluços.

Mirele recuou, como sealguém a puxasse para trás. Aoutra gêmea insistiu.

– Não deves ter medo! Vou teajudar. Agora, segura a minhamão!

No instante seguinte, elashaviam entrelaçado os dedos,apertaram as mãos, e a dor

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sumiu instantaneamente quandoconseguiram abraçar-se. Ambaschoravam.

– Eu tive medo… muitomedo… – soluçou Mirele. –Onde tu estás?

– Perto – respondeu Anuk,tentando impedir que todas aspalavras presas na mente da irmãa afogassem. De uma vez sópodia ouvir vários diálogos,enxergar dezenas de imagens,sentir todas as sensações quehaviam atingido a gêmea desdeque a magia de Shantel aaprisionara. A mais recente era

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uma dor lancinante num dosbraços.

– Fica calma – disse, baixinho,procurando absorver tantasrevelações. – Preciso entenderexatamente o que te aconteceu.Estou com amigos, de váriosclãs. Eles vão chegar à Citâniapra salvar você e os outros, maspara isso tens de me darinformações.

Mirele pareceu ter entendidoa situação. Nos últimos dias,sentira-se boiando num limbo,imóvel, pairando entre aconsciência e a inconsciência,

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vendo tudo o que acontecia notemplo e, ao mesmo tempo,imaginando se aquilo era sonhoou realidade…

Respirou fundo e abraçou-secom mais força à irmã.Vagarosamente, tudo o quehavia em sua mente setransmitiu à mente da gêmea.

Durante pouco mais de umahora, ambas foram quase umaúnica pessoa.

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N

CAPÍTULO 5

Sangue

Rio de Janeiro

A MANHÃ SEGUINTE,

quando a porta dacela se abriu e Crom

Cruach entrou, apenas Eurico,inconsciente, não sentiu a auramaligna que emanava do corpoque pertencera a Viriato. Osolhos vermelhos pousaram nos

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prisioneiros, um a um, e sedetiveram em Oriana.

Shantel, que entrara atrás dele,ladeada por dois guerreiros,olhou para a prima.

– Tinhas razão, druidesa –disse o deus, com um sorrisocruel. – Ela está impregnada depoder. Não pode usar essamagia na Citânia, graças a ti, maseu poderei.

Oriana continuou em silêncio,sem perturbar-se. Sabia por queeles estavam ali, mas não podiademonstrar, com medo de quedescobrissem que Belmira

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andava lhe trazendoinformações. O novo senhorvoltou os olhos para os dois quejulgava serem al-gharbios.

– Quanto a vós – disse –, logotereis companhia. Meusguerreiros partiram para SãoPaulo, conquistarão a cidadelade vosso povo. Os súditos quenão se submeterem serãotrazidos para cá e sacrificados. Oque me lembra…

Tornou a fitar Oriana.– Decidi condenar-te à morte,

brácara. Morrerás em seis dias.Ela continuou impassível. Mas

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Tiago reagiu, pondo-se em pé.– E o senhor Eurico?

Também o condenaram àmorte? Ele não vai durar nemum dia!

Crom franziu as sobrancelhaspara Shantel.

– Tu disseste que ele estavabem. Não desejo que morraantes de me ver vitorioso!

Shantel resmungou e foiconferir o estado do tio. Aquilonão estava em seus planos.

– Temo que o humano tenharazão, meu senhor. Ele não vaisobreviver muito tempo.

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– Pois trata de cuidar dele! – eapontou o dedo enluvado paraOriana. – Ela morrerá na luanegra. Mas o pai deve viver maistempo. Entendeste?

Shantel curvou-se. Asubmissão a Crom fazia parte deseu papel.

– Mandarei removê-lo ao seuantigo quarto e chamarei maisescravos curandeiros paraatendê-lo. Isso o satisfará, meusenhor?

– Desde que Eurico viva, sim.Quanto a ti – puxou Oriana,analisando-a como se avaliasse

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um animal –, é pena desperdiçartua beleza orgulhosa, maspreciso de sangue; e quantomais magia tiverem minhasvítimas, melhor. Prepara-te paramorrer. Dizem que os brácarosenfrentam a morte comcoragem, veremos como umamulher se comportará.

Um sorriso irônico veio aoslábios da mãe de Gael.

– Não desejo a morte, masnão a temo. Acho que não tedecepcionarás, Crom.

– Deverias ter mais respeitodiante de teu senhor! –

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exclamou Shantel.Aproximou-se da prima e

bateu-lhe com tanta força queOriana, enfraquecida pelos diasde prisão, chocou-se contra aparede. O deus celta apenassorriu.

– Vamos embora – e,dirigindo-se aos guardas,ordenou: – Vós levareis Euricopara seus aposentos.

Nem esperou para ver suasordens serem cumpridas. Saiu dacela enquanto mais guerreirosentravam e se preparavam paratransportar o pai de Oriana. Esta

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permaneceu no canto em quefora jogada, olhando para ovelho brácaro, até que foiretirado de lá. Tiago e os outrosdois ficaram em silênciotambém; só então Shanteldeixou a masmorra, dizendo:

– Obedece a Crom Cruach,prima, e prepara-te. Podes estarcerta de que Tariq assistirá aoritual. Faço questão de que elete veja morrer, sangrando,vagarosamente…

O som da porta da cela sendofechada com violência ecooupor muito tempo nos ouvidos

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de Oriana e dos outros, e adesesperança os envolveu.

Seis dias, apenas.

Itatiaia

FOI SOMENTE NA MANHÃ

SEGUINTE que Akinlana chegouà Agulha da Magia. Sua chegadanão passou despercebida peloshumanos em visita ao ParqueNacional de Itatiaia. Mesmoacobertados pela magia, foiimpossível ocultar a enormequantidade de gente que subiaas variadas trilhas da montanha.Eles, porém, eram apenas parte

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do exército que o rei reunira; oscontingentes mais numerosos jáhaviam partido para o Rio.

Gael, em meio a um sonoperturbado por pesadelosconfusos, acordou com obarulho. Viu, espantado, aquelemundo de gente cercando aAgulha da Magia. Fez mençãode entrar na tenda verde, porémdois enormes iorubás oimpediram de passar; paciente,ele se acocorou ali perto eesperou que Rudá ou outroconhecido o visse e o deixasseentrar.

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Lá dentro, Akinlana recebia osrelatórios de Iwati e Egeu,acompanhado por Rudá e porCáitlin. Já sabia sobre o ataqueaos elementais, mas tinham sidoas revelações da érin, obtidascom a ligação entre Anuk eMirele, que mais chamaram suaatenção.

– Então – disse ele, ao final doúltimo relato –, não teremosmesmo o apoio de Tariq eGalaor. Esse usurpador é astuto,tirando do tabuleiro duas peçasimportantes na guerra. Temosnotícias da cidadela dos al-

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gharbios?Egeu se adiantou.– Veio conosco um vigia

enviado por Galaor aos helens.Ele fala por celular com outrobrácaro, em São Paulo. Diz queHanef organiza a defesa, à esperade um ataque.

O rei iorubá franziu a testa.Sabia que, se os al-gharbioscaíssem sob o domínio deCrom, a situação se agravariabastante. O líder do clã helensugeriu:

– Posso levar umdestacamento para lá e ajudar na

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defesa do povo de Tariq. Tureuniste tantos guerreiros afrosque não faremos falta.

– Parece-me uma boa ideia –concordou Cáitlin. – Pelo quesei sobre o exército brácaro,temos aqui seu número emdobro, entre povos quilombolase indígenas.

– É verdade – assentiu Rudá–, mas teremos de lidar com amagia trancada na Citânia, alémdas três muralhas… e nãocontaremos mais com o apoiodos elementais.

Durante um bom tempo

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ainda eles discutiram a situação.E Gael permaneceu no mesmolugar, ansioso para saber o queestaria sendo decidido na tenda.

Rio de Janeiro

O SOL DA TARDE entrava pelasjanelas dos aposentos de Shantelviradas para oeste, quandoCrom – mais mal-humoradoque de costume – entrou e viusua druidesa almoçando, comTariq e duas escravas a servi-la.

– Desejas partilhar minharefeição, senhor? – perguntou

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ela, levantando-se.– Não tenho disposição para

refeições! – esbravejou ele,jogando-se sobre um divã. –Tens de fazer alguma coisa! Ador de cabeça se tornouinsuportável.

Shantel foi até ele, afagou suatesta e massageou sua nuca coma mão esquerda.

– Há pensamentos conflitantesem tua mente. O que houve?Pensei que estarias postandoguerreiros nas muralhas.

– E estava. A dor me atingiude repente, como golpes de

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adaga. É ele. Sempre ele!Levantando-se, foi se postar

diante do grande espelho naparede. O rosto de Viriato ofitou, estranhamente irônico,como se do lado de lá do vidropolido houvesse outra pessoa.

– Deves ter alguma poção ouencantamento para calar a vozdesse intruso! – concluiu ele,afastando-se do espelho.

Tariq, que ouvira tudo,pensou que Crom é que era ointruso naquele corpo. Pelo quevia, o irmão bastardo de Oriananão fora tão neutralizado quanto

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todos haviam pensado.– Ele deve ter se agitado com

o anúncio da condenação deminha prima – concluiu adruidesa. – Infelizmente,nenhum remédio que euprepare pode atingi-lo sem fazermal a ti também. Mas empoucos dias, quando Orianamorrer, ele morrerá um poucocom a irmã… – ela olhou delado para Tariq, que nãodemonstrou emoção alguma. –O sangue dela te dará forças,meu senhor e deus. Nadapoderá atingir-te depois da lua

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nova!Crom, porém, livrou-se dela

com um safanão.– Não posso esperar tanto

tempo, a dor é profunda e afetaminhas decisões. Não importa,eu sei o que fazer. Vem, trazteus objetos rituais. Vamos aotemplo!

A um sinal de Shantel, asescravas foram em busca devários apetrechos; ela foi aocofre e retirou a adaga ritual.Crom saiu e a druidesa o seguiu,com as servas e o al-gharbio.

Adentrando as portas do

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templo, deram com um bomnúmero de escravos, à luz dasvelas, limpando o local. Belmiraos comandava. Os elementaisestavam quietos em suas gaiolas,apenas seus olhosacompanhavam o movimento.Galaor ergueu-se na jaula, assimque eles entraram.

Mirele, que ainda pensavamser Anuk, continuavasemimorta, deitada na grandemesa. Foi até ela que Cromcaminhou, enquanto Shantelordenava aos servos que seafastassem. Ele espalmou a mão

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esquerda sobre a cabeça dagarota e estendeu a direita para adruidesa. Tariq prendeu arespiração; ela, relutante,entregou-lhe a adaga.

Itatiaia

GAEL AINDA ESPERAVA

NOTÍCIAS do lado de fora datenda verde, quando Anukapareceu à sua procura. Se eletivera pesadelos, a garota maldormia desde que mesclara seuspensamentos aos da irmã gêmea.Aquilo fora perturbador. E asinformações conseguidas tinham

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sido demais para ela: Tariqtransformado em escravo! Elasabia que sempre existiraantagonismo entre os pais, masnunca imaginara que o ódio damãe fosse tão intenso a ponto deela querer humilhá-lo dessaforma.

Estranhou ver Gael acocorado,mas não disse nada. Apenas sesentou ao seu lado.

– Não conseguiste mais falarcom teu pai? – perguntou.

– Não, ele está lá desde a horado café, e os guardas não medeixam entrar. Traçando

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estratégias de guerra, acho. Evocê? Parece que não descansounada.

– Como posso descansarsabendo que minha irmãcontinua paralisada na Citânia eque meu pai agora não passa deum escravo?! Preciso fazeralguma coisa, Gael. Nãoaguento mais ficar aqui paradaenquanto eles sofrem nas mãosde minha mãe!

O garoto não soube o quedizer. E bem naquela hora umavoz conhecida o pegou desurpresa.

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– Então você está mesmoaqui! Não tinha acreditado,quando me disseram.

Não fosse a voz familiar e osorriso de sempre, Gael nãoreconheceria o tio. João usavavestes guerreiras, tinha umescudo às costas… e aquilo emsua mão era uma lança!

O estranhamento durouapenas alguns segundos, e oadolescente se lançou nos braçosdo irmão de Tiago, que oapertou com toda a força. Gaelfechou os olhos e não pôdeimpedir que lágrimas corressem

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por sua face. Teve a estranhasensação de que, ao abrir osolhos, estaria ainda na cozinhado bar do pai adotivo,esperando Carol preparar oalmoço e com o tio contandoalguma piada.

A realidade, contudo, eraoutra: eles haviam se envolvidonuma guerra entre povosmágicos. Tiago e Carol estavamà mercê dos brácaros. E elemesmo, Gael, descobrira umaherança indígena que, mesmosem desejar, aos poucos omodificava…

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Sentiu Anuk chegar perto delee colocar a mão em seu ombro.Então abriu os olhos e fitouJoão em silêncio. Este, bem-humorado como sempre, foiperguntando:

– Ela virou sua namorada, é?Bem que o Tiago disse quevocês tinham fugido da Citâniacom o tal do Galaor.

Vermelho de vergonha, elecustou a perceber a informaçãoimplícita na pergunta. Anuk,porém, captou a noção deimediato. E não deixou de soltara costumeira patada.

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– Namorada, não! Somosprimos em algum grau; a mãedele é prima da minha. E quehistória é essa de que falaste como pai adotivo do Gael? Ele nãoestá preso na Citânia?

João transferiu o olhar de umpara outro. Podia perceber aligação entre os doisadolescentes, mas viu que seriamelhor não perseguir o assunto.

– Está, mas apesar dissoconseguimos um contato…Temos muito a conversar. Etem uma pessoa que vocêprecisa conhecer, Gael. Venham

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comigo.Atravessaram juntos os

acampamentos iorubás, até queJoão viu Nan ajudando aorganizar o material deprimeiros socorros que serialevado à frente de batalha. Ogaroto fitou o tio com o arinterrogativo.

– Aquela – esclareceu João – éNan. E é bom você ir seacostumando com a moça,porque se a gente escapar vivodessa encrenca toda, acho queela vai ser sua madrasta!

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Rio de Janeiro

GALAOR PRENDEU A

RESPIRAÇÃO quando a adagade Shantel passou às mãos deCrom. Viu-o ferir a carne daadolescente e depois dar umtalho no próprio braçoesquerdo. Enquanto olhava osangue de Viriato e da garota semisturarem na lâmina, a umaceno do celta, dois guardasabriram a porta metálica quemantinha Galaor prisioneiro e oarrastaram para fora da jaula,para junto da mesa de pedra que

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servia de leito à gêmea.O filho de Eurico tentou

manter a serenidade. O queaquele louco faria com ele? Iriasacrificá-lo, provavelmente. Seele e Oriana morressem, Shantelseria a herdeira legítima daCitânia. Nem mesmo os érinpoderiam contestar seu direito!

Mas Crom não mirou o peitoou o pescoço do orgulhosobrácaro; feriu-o no mesmoponto em que se cortara, poucoacima do cotovelo esquerdo.Enorme quantidade de sanguecorreu e, com o punhal

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pingando sobre o corpo da filhade Shantel, o deus ordenou:

– Diz as palavras rituais,druidesa. Agora!

Ela se mostrava tão surpresaquanto os outros. Por ummomento pareceu que iacontestá-lo, porém acatou o queele desejava. Envolveu-se nomanto ritual que uma escravatrouxera e pronunciou afórmula. Uma ladainhaininteligível em língua antiga.

Belmira, encolhida com váriosservos num trecho do templo,tapou a boca com as mãos para

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não soltar uma exclamação deterror. Viu as palavras sematerializando no feitiço, comoentidades a pairar no ar, ascorrentes de magia circulando,mais uma vez alimentadas pelosangue deles e pela vida dagarota.

Viu uma luz assustadoracomeçar a cercar a carne deGalaor…

O corpo de Viriato, queCrom ocupava, desabou nochão com um estremecimento equedou-se, imóvel. A adaga quesegurava escorregou-lhe da mão

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e foi parar sob a mesa de pedra.Ao mesmo tempo, Galaorempinou o peito orgulhoso.

Afastou os dois guardas que oprendiam. Um sorriso arrogantelhe subiu aos lábios e seus olhosse avermelharam, como seinsuflados por uma luz mágicainterior.

– Muito melhor – disse a vozde muitas vozes, que não maispertencia ao filho mais velho deEurico. – Muito melhormesmo!

Itatiaia

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GAEL TINHA DEIXADO ANUK

conversando com Nan e João.A garota e a possível novanamorada de seu pai nãoparavam de falar sobre aestranha forma de magia quepossibilitava o contato com aCitânia, e a comparavam com aconexão obtida pela senhoraérin entre as duas gêmeas.

O adolescente queria falarcom Rudá e estava decidido aencontrá-lo, nem que tivesse deinvadir a tenda verde. Porém,isso não foi necessário: avistou opai a certa distância, numa

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conversa com Uirê. Pareciamestar se despedindo.

Quando chegou perto, oigpupiara já tinha sumido natrilha da montanha maispróxima.

– Ele foi embora? –perguntou ao pai.

– Foi ver seu povo. Uirê temesperança de que os igpupiarasque estavam debaixo da águaainda tenham poder. Mas eunão sei, não. Foi uma magiamuito forte.

Gael se acocorou ali perto.Rudá, surpreso ao ver como os

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modos antigos de seu povoestavam se refletindo no filho,fez o mesmo.

– O que foi que Akinlanadecidiu, pai?

– O mesmo que todo mundojá sabia. Vamos para a Citânia.

– Quando?– Logo. Mas não sei detalhes.

Quem planeja a guerra são osiorubá e os érin. A gente sósegue adiante. E luta.

Gael ficou alguns minutos emsilêncio. Nervoso, cutucava anuca. A tatuagem feita pelopovo das fadas queimava. Rudá

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fechou as sobrancelhas aoperceber o desenho.

– Desde quando você tem essatatuagem, filho?

Meio sem jeito, o adolescentelhe contou o episódio todo. Aexpressão de Rudá ficou mais emais preocupada. Ele lembrouAnuk dizendo que tatuagensmágicas podem ter efeitosinesperados… O ocorrido nosdomínios de Faerie devia sermais perigoso do que imaginara.

***

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ARio de Janeiro

BRI MEUS OLHOS COM

DIFICULDADE. Doíam,embora apenas a luz de

muitas velas brilhasse noambiente. Senti o chão duro sobmeu corpo. Respirei maisfundo: respirar também doía.Tentei me mexer. E então foiminha cabeça que sofreu compontadas profundas.

Vi pés à minha volta. Dequem seriam? Onde eu estaria?

Uma risada abafada chegou ameus ouvidos agora sensíveis.

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Criei coragem e ergui os olhospara o guerreiro que rira. Aslembranças voltaram de umavez só.

“Galaor?”, pensei, incrédulo.Ao lado dele, Shantel.

O templo. Estava no templo.Num esforço incrível, tentei

erguer meu corpo. A pontadanas têmporas foi insuportável.

Não, aquele não era Galaor.Não mais. Infelizmente, euconhecia bem demais aquelesolhos brilhantes e vermelhos.

– Como pude ficar por tantotempo nesse corpo? – Crom

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zombava de mim.A voz da druidesa soou baixa,

como um sopro. Ela evitavameu olhar.

– Senhor, o que faremos comele?

Por um minuto, Crompareceu refletir. Sondava amente de seu novo hospedeiro.

– Matá-lo, é claro. Queutilidade pode ter agora? Tusabes, este que me serve agoranão gosta dele. Quis matá-lomuitas vezes e não pôde. Voucumprir seu desejo.

Deixei-me cair de novo. Não

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tinha forças para enfrentarninguém, muito menos umdeus sanguinário como aquele.Ansioso, Crom estendeu obraço em minha direção.

Com o pensamento naspessoas que amava, implorei àdeusa que elas estivessem emsegurança.

Então, como o escravo que eusempre seria, aguardei a morte.

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O

CAPÍTULO 6

Ataque

São Paulo

CENTRO DA CIDADE

era um espetáculo decores, luzes e cheiros,

com a trilha sonora do trânsito,das vozes e das músicas de todogênero que escapavam pelasportas de aço das lojas.Envolvidos por tal cacofonia,

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Tarcísio e dois de seus guarda-costas passavam entre amultidão, que lotava a região daRua Vinte e Cinco de Março.Ninguém via seu verdadeiroaspecto, com as roupas e armasocultas pela magia. Os maissensíveis, contudo, sentiriam suaexcitação guerreira, aantecipação pela luta, pelosangue.

Algumas ruas adiante, amovimentação diminuía;alguma coisa fazia as pessoasevitarem tomar o mesmocaminho que eles. O brácaro

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não sabia ao certo se aquilo eraresultado da magia de seu povoou se era coisa dos al-gharbios;mas tinha certeza de que, assimque desse a ordem de iniciar oataque, os habitantes de SãoPaulo não veriam nada de mais;poderiam achar que o ruído dacidade aumentara ou que a terraestremecia por culpa de obrasde construção civil oubritadeiras quebrando as calçadaspara reparos da prefeitura.Jamais, porém, imaginariam queuma guerra se travava em seupróprio meio.

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Tarcísio parou numa esquina eobservou o portão de ferro.Divisava o jardim e as ruelasagora desertas da cidadela. Aofundo, as torres do palacetemourisco. Seus olhos treinadospercebiam o brilho de lanças eespadas nos vãos.

Sorriu. Não esperava serrecebido sem lutas. Mas, peloscálculos que fizera, tinha pelomenos cinco vezes maisguerreiros que os al-gharbios. Elá dentro haveria aindamulheres, crianças e velhos.Sitiados, ilhados, à sua mercê.

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Seus homens se haviampostado em grupos, à espera dosinal que ele, Tarcísio, daria –assim que a construção estivessecercada. O reconhecimentomostrara que o palacete era umafortaleza, que o inimigo osesperava armado, e que,portanto, invadi-lo não seriafácil. Mas não era esse tipo dedesafio que ele e Hélio semprehaviam amado?

Pensar em Hélio o lembroude que devia se comunicar coma Citânia e dar contas a Cromde que tudo corria bem nas

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terras paulistanas. O deus daria aordem de ataque, pensando queestava no controle. Tolo! Ele eShantel imaginavam quecomandariam quem quisessem,com suas magias proibidas.Tarcísio desembainhou a espadae olhou a lâmina, que refletiuseu sorriso orgulhoso. Depoistocou um bolso da túnica,oculto sob a cota de malha.

– Esta é a única magia de queeu preciso – resmungou entreos dentes.

E, ainda com a armadesembainhada, foi ordenar que

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S

um de seus comandados usasse ocelular para a comunicação como Rio de Janeiro.

***

Rio de Janeiro

ENTI O SANGUE

ESCORRENDO comolágrimas de meus olhos.

O nariz também sangrava, osouvidos… A dor ganhoudimensões que eu nunca julgueiexistirem. Era alucinante,devoradora. E me destruía de

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dentro para fora.– Meu senhor, não há motivo

para matá-lo… – ouvi Shanteldizer. – É apenas um escravoque…

– Que é teu amante? – sorriuCrom. – Sim, cara druidesa.Meu atual hospedeiro não seimporta em compartilharcomigo o motivo de seu ódiopor este escravo. Aliás, ele aodeia mais ainda.

Vi Shantel empalidecer. Vi opânico dos elementais em suasgaiolas, a piedade de Tariq pormim. Mais adiante, atrás dos

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B

guardas, Belmira se destacavaentre os escravos que tinhamparado a faxina no templo paraassistir à execução. Ela seguravapelo braço alguém que searriscava muito em estar ali,mesmo coberta por um mantoimenso e usando luvas rústicasque escondiam seu tom de pele.

***

ELMIRA TEVE MUITO

TRABALHO para segurarCarol, que por pouco

não revelou seu disfarce: ao ver

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que Crom deixara o corpo deViriato, seu primeiro impulsofora correr até ele. A velhaescrava, porém, a prendera comforça e a forçara a ficar decabeça baixa, atrás dos outros. SeShantel sequer farejasse apresença da jovem, não hesitariaem tirar sua vida, que, para ela,não valia nada.

Mas a druidesa nem parecialembrar que havia escravos norecinto. Não tirava os olhos deCrom e usava todo o seuautocontrole para não denunciaro quanto temia pela vida de

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Viriato… Sua voz soou firmequando falou, afinal.

– Não achas que alguém tãodesprezível merece mais queuma morte tão rápida?

O deus a olhou, curioso, masnão deixou de causar ostenebrosos espasmos de dor emsua nova vítima.

– O que sugeres? Que sejatorturado antes? – retrucou,irritado.

Ela forçou um sorriso cruel.– Excelente ideia, meu senhor

e deus! Antes, porém, podemosusar as habilidades que o escravo

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possui. Apesar de ser um vermedesprezível, ele aprendeu muitacoisa com Kían sobre artes decura. Pode ajudar a manterEurico vivo…

Crom relaxou um pouco aemissão de energias malignas,pensando no assunto. Shantelaproveitou a hesitação. Lançouum olhar preocupado para asroupas sujas de sangue que odeus, no corpo do novohospedeiro, agora tambémusava.

Extremamente vaidoso, Cromnão precisou de outro incentivo

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para interromper a execução.Olhou para o próprio corpo e,com uma careta de nojo,arrancou a túnica, jogando-a aochão antes de inspecionar oshematomas e cortes no tronco enos braços.

– Este corpo fede. Preciso deum banho e roupas decentes –disse.

– Mandarei providenciarimediatamente, meu senhor.

Viriato continuava imóvel nochão, os olhos semicerrados.Alguns tremores o sacudiam,expulsando as energias que

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haviam permitido a possessão deque fora vítima. Foi com osouvidos zumbindo que escutoua voz da druidesa, esbanjandodisplicência:

– Ahn, o que decides quantoao escravo, senhor?

Tariq percebeu o fingimentona voz dela com certa surpresa.Por que ela tentava salvar o filhobastardo de Eurico? No fundodo templo, Belmira segurouCarol com mais força. Nãoacreditava que o usurpadordeixasse Viriato viver e sabiaque, se sua morte fosse

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decretada naquela hora, nadaimpediria a humana de correraté ele.

CAROL NÃO OUSAVA PISCAR.

Lágrimas escorriam por seurosto sob o manto, que deixavaapenas seus olhos visíveis.Arriscava muito ao abandonar asegurança dos subterrâneos.Tudo porque, naquele dia, ainquietação a sufocara demais,como um pressentimento ruim,fazendo-a insistir com Belmirapara que a levasse para asuperfície. Agora entendia o

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porquê.Desafiante, a jovem ergueu o

queixo. Estava decidida a fazerqualquer loucura para ajudarViriato.

Crom, no entanto, estava maisinteressado em valorizar suanova e poderosa aparência doque em castigar o ex-hospedeiro.

– Que o escravo cuide, então,do velho Eurico – definiu. –Depois decidirei seu futuro.

APENAS TARIQ RECONHECEU

o sinal de alívio na cruel

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druidesa. Assim que Crom saiu,Shantel chamou duas servas eordenou que corressem aosaposentos do deus para lhepreparar o banho e separarvestes limpas.

Passou o olhar ao redor,finalmente notando os escravosno canto, munidos de vassouras,baldes e outros apetrechos.Franziu as sobrancelhas.

– Retirai-vos! E levai toda essatralha. A limpeza do templopode ficar para amanhã. E tu –voltou-se para Tariq – esperapor mim em meu quarto.

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Obedece!O al-gharbio tomou o rumo

das portas entalhadas. Algunsescravos se curvaram, tratandode sair dali bem depressa.Belmira empurrou Carol paraque fosse com eles, e começou arecolher o material que haviamdeixado. Sempre de cabeçabaixa, pegou alguns panos queestavam mais próximos do leitoonde jazia a gêmea e foijogando num balde. Aproveitouenquanto Shantel observavaViriato caído para, comcuidado, recolher sob a mesa de

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pedra a adaga que caíra da mãodele, no momento que oespírito de Crom se retirara.

A velha serva abraçou-se aobalde e voltou-se depressa para aporta.

Shantel não notou seumovimento. Naquelemomento, acabava de dispensara guarda que vigiara Galaor.

Antes que seguisse para ascozinhas, porém, Belmira sentiualguém tocar em seu braço evoltou-se, apavorada. Alguém avira pegar a adaga?…

Mas era apenas Tariq.

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– Tu podes me dar notícias deOriana? – pediu ele.

Ela custou um pouco aacalmar a respiraçãosobressaltada. Olhou-o compena.

– A senhora continua numacela. Apenas o senhor Eurico foilevado para cima.

– Achas que a resistênciaconseguiria salvá-la?… Impedirque seja… que seja…

A boa mulher suspirou. Eratriste ver um poderoso líder declã naquela situação.

– Sinto muito, não vejo como

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poderíamos salvar Oriana. Hámuitos guerreiros vigiando ascelas, apenas homens deconfiança da druidesa…

– Então – murmurou ele,amargo. – Ela vai morrer.

Belmira gostaria de confortaro pai das gêmeas, mas naquelemomento precisava sair dalidepressa, antes que a druidesadesse pela falta da adaga. Deixouo al-gharbio sozinho com seudesespero e sumiu por umapassagem que descia aossubterrâneos.

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S***

HANTEL FOI A ÚNICA apermanecer no templo.Ela se aproximou,

parando diante de mim comuma expressão dura quedistorcia a beleza de seu rosto.Apesar de muito enfraquecido,consegui me sentar. Mantive-mesubmisso, sem olhar diretamentepara ela.

– Por que, Viriato? Dize! –sibilou ela, enfurecida. – Porque desperdiçaste o poder que

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te dei?Não respondi.Com um suspiro cansado, ela

resolveu se inclinar para mim.Segurou meu rosto entre asmãos, sem se importar com osangue que me sujava,obrigando-me a fitá-la.

– Por que desperdiçaste achance que te dei de governarao meu lado? – murmurou. Araiva dera lugar à mágoa. – Nãome amas?

Mas eu a amara por tempodemais. Shantel vislumbrou emmeu espírito as marcas daquela

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paixão que vinha desde meusonze anos, quando conhecera amenina de nove que vieramorar com o tio. Ela sorriu.

– Tu sempre me protegerás,Viriato.

Seus lábios tocaram os meuscom desejo. Retribuí,abandonado pela força devontade para fazer o que eracerto.

Segura de seu poder sobremim, a druidesa se afastou parachamar um guarda no corredor.Eu seria escoltado até o quartode Eurico.

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A***

São Paulo

VOZ DE HÉLIO soouperemptória no celular.

– Crom ordena oataque à meia-noite.

Tarcísio desligou o aparelho ese afastou da cidadela. Nohorário combinado, viu o céuenevoado de São Paulo,escondendo as estrelas e a luaque minguava. Olhou para aesquerda e para a direita,

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divisando, nas esquinas, seuscapitães. A um sinal seu, ambosassentiram e partiram paramultiplicar a ordem queesperavam. Num instante osguerreiros da vanguardacomeçaram a tentar escalar osmuros ao redor da cidadela,enquanto uma equipe forçava ogrande portão de ferro.

Mais um sinal dele fez comque um grupo de homens,postado nas esquinas ao redordo palacete, iniciasse algum tipode ritual. Um canto monótonose espalhou feito um zumbido

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desagradável entre os atacantes.Em grande inferioridade

numérica, seria impossível aosal-gharbios repelir o cerco.

Com um grito de guerra,Tarcísio, cercado por cerradaguarda, irrompeu com tudo naentrada do reduto inimigo.Tinha certeza de que a vitórialhe sorriria antes do amanhecer.

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A

CAPÍTULO 7

O peso da culpa

Itatiaia

NUK ABRIU OS OLHOS.

Estava deitada na tendaverde, e via a seu redor

os rostos ansiosos de Gael eRudá. Cáitlin e Akinlanapermaneciam serenos. O dia jáia alto.

– Fala comigo, Anuk – pediu

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Gael, tomando suas mãos frias.Ela respirou fundo, tentando

recuperar o fôlego paraassegurar-lhe que estava bem. Aconexão fora mais fácil destavez; era como se o contatomental com Mirele se tivessetransformado, de uma trilhainóspita, em um caminhoaplainado. Mas as notícias que agêmea lhe dera eram pioresainda que as anteriores…

– Deixa-a descansar, filho –pediu Cáitlin. – Logo estarárecuperada.

O pai de Gael e o líder iorubá

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começaram a conversar numcanto, e a senhora érin reuniu-sea eles. O rapaz ficou apertandoas mãos de Anuk nas suas.

– Egeu não devia ir para SãoPaulo – sugeriu Rudá. – Com odeus celta agora no corpo deGalaor, os brácaros ficam maisperigosos. Vamos precisar doshelens.

– Mesmo sem eles, temos maisguerreiros – discordouAkinlana. – E os al-gharbiosprecisam de ajuda. Meuinformante disse, ao celular, queo ataque começou de

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madrugada.– De qualquer forma, a

maioria dos guerreiros já partiu– acrescentou Cáitlin. – Só ogrupo do senhor Egeu aindaestá levantando acampamento.Devemos levantar o nossotambém, Akinlana. Precisamosatacar a Citânia antes que a luatermine de minguar.

– Vamos falar com Iwati –decidiu o iorubá.

Os três deixaram a tenda.Anuk, já mais fortalecida,sentou-se no leito improvisadoem que fora colocada pela érin

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para a nova comunicação com airmã.

– Vai devagar – pediu Gael,vendo que ela ignorava atontura, levantando-se.

– Não há tempo paradescansos – retrucou. – Tuouviste as notícias da Mirele! Otal de Crom agora estáocupando o corpo do Galaor…Além disso, os brácaros atacarama fortaleza do meu pai. Eutenho de fazer alguma coisa!

A garota deixou a tenda e elefoi atrás.

– Não tem nada que você

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possa fazer. Akinlana vai ordenaro cerco à Citânia, vamos entrarem guerra, só temos de terpaciência e esperar…

Ela interrompeu o passo e ofitou.

– O quanto tu me conheces,Gael? De onde tiraste a noçãode que eu sou paciente?! Nãovou ficar parada esperandoninguém decidir nada. Vou agir.

– Mas estamos com meu pai,sob as ordens dos iorubá, eeles…

– Eu não estou sob as ordensde ninguém!

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Sem hesitar, Anuk foi aoencontro dos líderes, queconversavam diante da tenda deIwati. Egeu estava no local,pronto para partir, portando umescudo antigo com desenho emalto-relevo que, no centro,ostentava uma cabeça degórgona rodeada de cobras.

“A Medusa”, Gael lembrou-sevagamente de um livro deHistória do colégio.

A garota brácara já se postaradiante de Akinlana.

– Eu vou junto com os helenspra São Paulo – declarou ela. –

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É a minha casa que eles estãoatacando e, na falta do meu pai,alguém da família tem de ajudarna defesa.

Para surpresa de Gael,nenhum dos líderes a contestou.

– Tens esse direito – disse asenhora Cáilin. – És filha dochefe do clã.

Egeu assentiu com a cabeça.– Vem comigo, mandarei que

sejas armada.– Mas isso é loucura! –

esganiçou o filho de Oriana. –Ela… ela… ela…

Foi Rudá quem o afastou,

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enquanto a garota ia reunir-seaos guerreiros helens.

– Deixa, filho. Ela tem odireito de defender a casa dopai.

Ele se sentiu furioso.Impotente. Anuk era mesmouma cabeça-dura! Depois detudo que tinham passado juntos,ia deixá-lo assim, sem mais nemmenos, para enfrentar a mortecerta num ataque daqueles?!Seus olhos brilharam emamarelo-ouro e as garras seprojetaram nas mãos, refletindosua fúria.

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Voltou-se para ir atrás dagarota, escapando do pai, masdeu com a érin barrando-lhe ocaminho. Ela tocou suas orelhassob os cabelos e lhe sorriu.

– Há em ti mais do que osolhos veem – disse ela, suave. –Vamos conversar. Desejoentender melhor o processopelo qual estás passando.

– Que processo?Gael bem que tentou

esquivar-se da mulher. Ela, noentanto, se sentou ali mesmo,no chão, e ordenou-lhe quedescrevesse as mudanças físicas

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que lhe ocorriam desde quedescobrira ser filho de Rudá.Sem vontade nenhuma de tocarem um assunto que preferiaignorar, ele guardou as garras e selimitou a falar delas, que erammuito afiadas, e também daagilidade que não imaginava tere dos olhos que enxergavam noescuro.

– Foi só o que herdei do meupai, senhora – encerrou,torcendo para que a mulher nãolhe fizesse nenhuma pergunta.

Cáitlin lhe reservou um sorrisobondoso, decidindo fazer de

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conta que acreditava nele. Assimque viu Anuk, o adolescentepediu licença e aproveitou paraescapar. A garota prendera oscabelos, tinha uma espada curtanuma bainha à cintura e umcorpete justo de cota de malhaque lhe dava um aspectoselvagem, guerreiro.

– Vim me despedir – disse ela.– O senhor Egeu está compressa, disse que vamos esperarmais guerreiros perto daRodovia Fernão Dias, e que sódepois vamos para São Paulo.

– Anuk… por favor… não

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vai.– Não posso ficar aqui, Gael.

E depois, não sentirás muito aminha falta, com aquela érin tepaparicando o tempo todo.

– Então é isso? – zangou-seele. – Ciúmes? Ela tem idadepra ser sua avó, Anuk.

– Ela tem idade para ser bisavódo Matusalém – retrucou agarota, azeda. – Tu vais entrarem batalha junto com o teu pai,deves isso a ele. E eu devo aomeu pai ir em defesa da nossaterra. É guerra, Gael. Não temcomo não nos arriscarmos

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agora…Ele a abraçou, sentindo o frio

da cota de malha em seu corpo.Amava aquela menina mal-humorada, impulsiva, turrona.Sabia que era amado, emboradesconfiasse de que ela jamais oconfessaria. Tomou sua mão e afez tocar a tatuagem das fadasem seu pescoço.

Ela fechou os olhos,reprimindo as lágrimas e a culpaque não queria admitir.

– Toma cuidado – foi só oque a gêmea disse.

– Você também – sussurrou

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ele.E ficou olhando-a partir

montanha abaixo, junto com oshelens.

A seu redor, os índios e osafros começavam a recolheracampamento.

São Paulo

ERA MEIO-DIA em São Paulo, eos sons da batalha misturavam-sea todos os outros sons da capitalpaulista.

Hanef olhou, pela janela damais alta torre do palacete, os

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muros que aos poucoscomeçavam a ceder, escaladospelos inimigos. Por mais queseus arqueiros os alvejassem,apareciam mais e mais brácaros,ignorando os feridos e tentandoatingir o jardim que circundavaa cidadela. O portão de ferroainda não fora derrubado, masera uma questão de tempo, poisera alvo de golpes incessantes.Os encantamentos que seu clãtecera em torno dele iamexaurir-se logo… Já era ummilagre terem aguentado tantotempo.

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Irritado, Hanef jogou o celularsobre a mesa. Não funcionava.Um de seus comandados,experimentado em artesmágicas, o avisara de que algumtipo de encantamento inibia osaparelhos eletrônicos. Todacomunicação teria de ser feita daforma antiga, assim como a lutaque se processava como nostempos medievais. Ferro contraferro, aço contra aço, flechascontra escudos. Sem explosivosou armas de fogo e, mesmoassim, tremendamente mortal.

Um capitão entrou esbaforido

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na salinha do alto da torre.– Entrou um grupo pelo

muro oeste. Não conseguimossegurá-los, são muitos.

Hanef assentiu. Já esperava poraquilo.

– Há trinta guerreirosdescansados de prontidão nosalão de armas. Leva-os parareforçar a ala oeste.

O homem saiu correndo e ocomandante chamou umajudante de ordens.

– Corre e avisa aodestacamento na entrada dosjardins para aguardar na sala das

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armas. Eles serão os próximos aentrar em ação.

Uma mulher de meia-idadesubiu a escadaria e irrompeu nasalinha.

– Hanef, onde está teu primo,o médico? Precisamos de maisgente na enfermaria. Nãoestamos dando conta dosferidos…

– Ele foi ajudar a tratar deferimentos no portão da frente.Vou mandar alguém pararendê-lo, volta a teu posto.

Um alarido o fez correr àjanela e observar o muro a

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oeste; os guerreiros que enviararechaçavam os invasores àespada. Eram os melhoresespadachins do clã; ele osreservara para repelir osprimeiros atacantes queentrassem. Os brácaros quehaviam chegado ao jardimcaíam sob seus golpes ourecuavam. De duas torresmenores do palacete, voltadaspara aqueles lados, arqueiros al-gharbios também ajudavam arepeli-los.

As pancadas que soavamintermitentemente no portão da

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entrada cessaram. O ferroprotetor estava todo amassado,mas a entrada ainda resistia.Quem quer que fosse ocomandante do ataque, devia terordenado uma pausa.

Com um suspiro, Haneflimpou o suor da testa. Umapequena vitória, apenas. Maspoderia dar-lhes um momentopara respirar. Chamou outroajudante de ordens e pediu:

– Corre até a entrada dopalacete e chama Yussef, meusegundo em comando. Diz a eleque venha me render aqui.

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Preciso ver os feridos.O rapaz desembestou escadas

abaixo enquanto Hanef pegava,outra vez, o celular paraverificar se a pausa no ataqueincluiria uma pausa na magiaque atrapalhava os aparelhos.

Nada. Sem serviço, sem sinalde linha, e um zumbidoestranho que parecia ecoar umacanção ritual atingiu seusouvidos. Magia brácara.

O al-gharbio rosnou e voltouà janela. Esperava que a magiafosse suficiente para ocultar dosolhos dos paulistanos a batalha

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F

entre os clãs.

***

Rio de Janeiro

OI MUITO DIFÍCIL ver meupai naquele estado desaúde. Os últimos

acontecimentos tinham roubadosua vontade de lutar contraaquela doença devastadora. Otumor surgira em seu cérebromenos de um ano antes, o queo obrigara a uma operação deemergência. Depois, além das

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sequelas, houvera as exaustivassessões de radio e quimioterapia.Nem mesmo procedimentosmágicos o impediram deminguar de forma tão rápida echocante.

Sentado à esquerda do leito,acompanhei sua dificuldade emrespirar. Sufocaria se nãorecebesse a medicação correta,antes mesmo que o câncer omatasse. Toquei sua testa fria,desejando que ele me ouvisse.

– Perdoa-me, senhor –murmurei –, por não ser o filhoque esperavas que eu fosse.

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Minhas lágrimas vieram numturbilhão. Faltava-me coragempara impedir que Shantel outravez me subjugasse, para eucontinuar fazendo o que deveriaser feito.

Tolamente, tentei secar aslágrimas com as costas das mãos.Na verdade, tudo era muitopior: eu não pudera impedirque Crom matasse Kían eordenasse o ataque à cidadela al-gharbia. E centenas morreriamgraças ao meu fracasso.

Mal pude controlar odesespero no instante em que

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Belmira e Carol entraram,seguidas pelos guardas que mevigiavam do lado de fora doquarto. Não me era permitidodeixar o local e tampoucoconversar com os escravos queviessem trazer a medicação deEurico.

Ainda sentindo o gosto doslábios de Shantel,automaticamente abaixei acabeça. Jamais poderia enfrentaro olhar de Carol.

***

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NA ATMOSFERA QUENTE E

VICIADA do quartode Eurico, Carolmisturou uma poção

como Belmira instruíra,observando Viriato pela estreitafresta do manto em seu rosto.Magro, abatido, as mãostrêmulas manipulando o soroque a velha serva trouxera paramedicar Eurico naquela tarde, orapaz mantinha o olhar baixopara evitar a jovem.

Aquele escravo amedrontadopela presença dos vigias nãoparecia mais o brácaro que

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cuidara de Gael e depois levara afamília de Carol à Bahia,tentando protegê-los. Muitomenos o guerreiro orgulhosoque aguardara de olhos abertos amorte pela espada de Galaor,diante da condenação do pai.Ser dominado por Cromconseguira, enfim, destruir suacoragem?

Carol se negou a acreditarnaquela possibilidade. Graças àinterferência de Viriato, o deusnão a atacara. E o rapazcontinuara a infernizá-lo a talponto que o fizera trocar de

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hospedeiro…“Ele já foi derrotado antes”,

pensou Carol, intrigada. “Foisurrado, insultado e humilhado.Mas nunca o vi tão inseguro.”

Quando Belmira a chamou,levou a poção que misturara e aajudou a derramar, aos poucos,gotas do medicamento sobreum braseiro que fora aceso a umcanto do quarto. Um vaporesbranquiçado subiu e intensoperfume de ervas invadiu oambiente. A escrava enrolou opróprio manto sobre o rosto efez sinais aos guardas que os

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vigiavam.– Cobri o nariz ou saí de uma

vez. Estas ervas são fortes demaispara quem não está acostumado.É uma inalação para abrir osbrônquios e ajudar o senhorEurico a respirar.

Os brácaros leais a Shantelsaíram depressa, fechando aporta atrás de si. Belmiraempurrou a garota para juntodo doente – e do enfermeiro.

– Assim é melhor. Eu cuidoda poção e do braseiro; tu vaisfalar com ele.

Carol aproximou-se, pronta a

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pressioná-lo. Havia coisas demaisem jogo para que ele se deixasseapenas ficar ali remoendo suasculpas.

Culpa! Talvez fosse isso acorroê-lo por dentro. Se fosse…poderia atingi-lo:

– Você precisa fazer algumacoisa, Viriato – sussurrou. –Meu pai está preso nasmasmorras, e Oriana vai morrerem poucos dias!

Ele continuou dosando o soroque Eurico recebia, e sacudiu acabeça em desânimo.

– Não há nada que eu possa

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fazer.– Claro que há! – retrucou,

irritada. – Temos umaresistência, você sabe. EAkinlana vai atacar a Citâniacom os iorubás.

– A resistência nada podecontra o exército de Crom.Nem Akinlana, com a magiatrancada dentro das trêsmuralhas. Eu sei! Vi osguerreiros armados para batalha.Vi os planos que ele traçou,depois de garantir a lealdade detodos pelo terror. É inútilenfrentá-lo.

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A filha de Tiago levou a mãoao rosto dele, tocou seu queixoe o fez fitá-la. Ele não resistiu,mas, de novo, não aguentouolhá-la de frente; baixou osolhos, acabrunhado.

– Que seja – afirmou ela. –Tudo pode ser inútil, mas eu,pelo menos, não vou morrerescondida num canto. Vou lutaraté o fim. E tenho uma propostapra você.

Era visível que ele ficarainteressado, malgrado seu.Poderia a curiosidade sobrepujaro sentimento de culpa? Talvez.

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– Você sabe que não éculpado pelo que o Crom fezquando ocupou seu corpo…Mas sei que carrega o peso detudo o que fez antes. Aquelahistória da poção da bruxa, damagia proibida, ter traído aOriana e jogado o Gael nostrilhos do metrô. Por tudo issovocê acha que merece o piordos castigos. Não é?

Ele se encolheu ainda mais,detestando ser assim analisado,especialmente por Carol.

– Na verdade, eu tambémacho – continuou a moça, sem

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esperar resposta. – Todo mundotem de pagar pelo que faz. Masantes de se deixar soterrar pelosentimento de culpa, vocêdeveria usar todas as forças queainda tem pra salvar sua irmã eseu clã. Você é esperto, Viriato.Sua esperteza pode fazerdiferença nesta guerra.

Ela o viu tremer à palavra“guerra”, mas não se deixouenternecer.

– Minha proposta é esta: deixeo castigo pra depois, guarde aculpa pra mais tarde. Agora,você precisa se concentrar em

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ajudar a resistência. Vamostentar salvar Oriana e dar apoioaos iorubás quando atacarem aCitânia. Vamos lutar paraderrotar esse Crom e devolver oinfeliz pra sei lá de onde foi queele veio. Então, se a gentevencer…

– … o que é quaseimpossível… – murmurou ele.

– … e se tudo voltar aonormal…

– … se é que se pode chamarde normal o mundo dos clãsmágicos…

Ironia era um bom sinal. Ela

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quase sorriu.– Então, você virá me

encontrar. E eu mesma voufazer você pagar pelos seuserros.

Desta vez, ele ergueu o rosto ea fitou com enorme surpresa.

Ela sustentou seu olhar,colocando na expressão toda adeterminação que sentia.

Ele moveu a cabeça emassentimento.

– É uma boa proposta.– Você aceita? – Ela apertou

os olhos, na brecha entre asdobras do manto.

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– Sim.Belmira viu a mudança que se

operou nele, depois do diálogosussurrado. Viu o rapaz brácaropassar os olhos espertos peloquarto do pai. Viu seus ombrosse erguerem, como se um pesotivesse sido removido de cimadeles. Ele pareceu se lembrar dealguma coisa, afastou-se do leitode Eurico e, sem perder de vistaa porta fechada, foi mexer numaescrivaninha próxima à janela.

– Por quanto tempo vósficareis aqui? – perguntou.

– Só até o soro acabar –

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murmurou Belmira. – Osguardas voltarão assim quebaixar o vapor das ervas. Seficarmos mais tempo, irãocontar para ela.

Ele relanceou o olhar para osoro: já estava no final. Tinhapouco tempo, mas seriasuficiente. De uma gaveta, tirouum celular e um notebook como respectivo carregador.

– Talvez precise carregar abateria – disse, estendendo onotebook para Carol. – Estámuito tempo sem uso.

Como Belmira arregalasse os

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olhos, impressionada porencontrar aqueles equipamentostão modernos escondidos noquarto de Eurico, Viriatoexplicou:

– Ele não queria que ninguémsoubesse que eu o ensinava alidar com as novas tecnologias –e, sem evitar a voz emocionada,acrescentou: – Era um segredonosso.

Quando os guardasretornaram ao quarto, viramapenas o escravo retirando abolsa de soro e ajeitando ocurativo do cateter no braço do

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pai. Belmira e a escrava que aajudava saíram, a velhamancando e a moça carregandoum cesto cheio de ervas efrascos.

– A senhora Shantel mandouinformarmos como o velho está– disse um deles.

– A febre cedeu e elecomeçou a respirar melhor –respondeu a serva.

O homem trancou a portadepois que as mulheres foramembora. E o filho bastardo doex-senhor da Citânia foi sentar-se num canto, em atitude tão

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acabrunhada quanto antes. Osguardas, porém, não viram queseus olhos agora brilhavam.Nem que suas mãos digitavamalgo, rapidamente, no tecladodo celular…

Quando retornaram aoaposento subterrâneo e Carolpôde tirar o sufocante mantoque a escondia quase porinteiro, Belmira pescou onotebook no cesto.

– O que disseste a ele, filha?Viriato ganhou vida nova,recuperou a vontade de lutar!

A filha de Tiago sorriu com

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certa amargura.– Incrível, não é? Ele não se

deixou mover pelo amor àfamília, pelo clã, nem mesmopor mim. Mas toquei no seusentimento de culpa e tudomudou. Ele espera que eu ofaça pagar por seus crimes,Belmira. Dá pra acreditar numacoisa dessas?

– Ele é homem, minha filha.A cabeça dos homens está cheiadessas noções estúpidas dehonra, nobreza e principalmentede culpa. Coisa dos machos…

E foi para a cozinha conferir a

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preparação do almoço,deixando Carol pensativa.

Itatiaia

O ÚLTIMO CONTIGENTE quedeixou a Agulha da Magia foi ode Akinlana. O de João partiraprimeiro, e os índios, inclusiveRudá e Gael, foram logodepois. Nan, que deviaacompanhar o séquito do rei,ajudava Oloú a levar os poucospertences que trouxera. Nacorreria da partida, mal tinhaconseguido falar com ele ou

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com os outros babalaôs.Enquanto desciam a montanha

sob a proteção da noite, ela ointerpelou:

– Sei que vocês têm contatadoos orixás para pedir orientação.E sei que Iansã nos protege…Mas será que a força deles ébastante para nos fazer vencer asbatalhas, Oloú?

O babalaô olhou para oamuleto de Oiá que ela trazia aopeito.

– Pode ser que sim. Pode serque não. A única certeza que eutenho é de que a situação vai

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piorar, Nan. Muitos vão morrer.A gente deve estar preparadopara o pior.

Ela engoliu em seco. Nãocontatava Tiago desde que oselementais tinham perdido aforça. Devia haver umaconexão. Talvez os orixás sevalessem da força mágicaelemental para influir no mundofísico.

– E tem mais uma coisa –acrescentou o babalaô. – O sítiopode ser longo. Quandoestivermos lá, tente ficar sempreao lado do menino, o filho dos

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três mundos. Ele vai precisar doseu apoio, porque é ele quemmais vai perder com essa guerra.

Apressando o passo, e semdizer mais nada, Oloú afastou-sede Nan. Bem que ela quisalcançá-lo e pedir mais detalhesdo que ele vira… Não tevecoragem. Sabia que, se soubessemais sobre o que estava por vir,não teria ânimo para prosseguir.

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O

CAPÍTULO 8

Sitiados

São Paulo

AMANHECER DOSEGUNDO DIA DE

SÍTIO encontrou acidadela al-gharbia num silêncionervoso. Hanef e Yussef haviamse revezado no comando dadefesa durante o dia anterior, eestavam exaustos. O desânimo

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era contagiante entre os capitãese os guerreiros.

Tinham descoberto que eraTarcísio, outrora um doshomens de confiança de Galaor,quem comandava os atacantes;ele trouxera muito mais brácarosdo que se podia imaginar aprincípio. Sua estratégia, até omomento, tinha se mostradoeficaz. Atacavam, saltando osmuros, até forçar a defesa aexpor-se no primeiro pátio;então, recuavam. E a aparenteretirada era seguida por umataque ainda mais forte, com o

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dobro de homens.Na noite anterior haviam,

afinal, derrubado a magia quesegurava o portão frontal eirrompido no jardim dianteiroda cidadela. Com a forteofensiva na entrada, os al-gharbios tinham sido impotentespara segurar guerreiros queinvadiam as ruelas e saltavam osmuros a leste e a oeste dopalacete, onde idosos, mulherese crianças estavam escondidos.Havia muitos mortos e algunsdos feridos se encontravam sobguarda do inimigo.

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Hanef ordenara o recuo dosguerreiros sobreviventes paradentro do palacete. Ainda haviaproteção mágica nas grossasparedes, portas e janelas, mas erabem mais fraca, com aquelaimensidão de brácarosacampados no jardim. Durante amadrugada, eles haviamsimplesmente permanecido ali:vigilantes, porém inativos.Sabiam que agora tinham avantagem.

Yussef estendeu uma canecafumegante de café para seucomandante.

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– É melhor beberes tudo.Vamos precisar de forças hoje.

Hanef engoliu com prazer abebida e se sentiu um poucomelhor. Mas a visão que tinhadas janelas da torre principal eradesalentadora.

– Posso ver Tarcísio perto doportão da frente. Ele olha paracá às vezes… Sabe que o vemos.Sabe que não temos comoresistir por muito mais tempo.

O outro cerrou assobrancelhas.

– Se ele pensa que uma guerrapsicológica vai nos derrotar, que

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desista. Ainda temos três gruposarmados no pátio interno. Earqueiros postados em todas asjanelas das torres. Todos são leaisa Tariq. Lutarão até o últimohomem.

– Sei disso – veio a respostado outro, com um suspiro. –Mas ele já descobriu que nossaforça está justamente nosarqueiros. Embora derrubemosboa parte da vanguarda de umataque, seus escudos repelemmetade de nossas flechas e elesatravessam. Precisaríamos terlanceiros para ajudar a barrar a

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ofensiva… e melhoresespadachins.

Era verdade. Toda vez que osbrácaros os engajavam emcombate e os al-gharbios tinhamde defender-se à espada, ficavamem desvantagem: os atacanteseram superiores.

Um movimento lá forachamou a atenção de ambos.Viram espadas brilharem eescudos se erguerem. O ataqueia recomeçar. Hanef pousou acaneca de café, já vazia.

– Vai – disse a Yussef.Seu segundo em comando

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desembainhou a espada e desceuas escadarias, pronto para lutaraté o fim.

ANUK ANDAVA COMO NUM

SONHO, percorrendo as ruasque conhecia tão bem. Quandoela e o grupo de Egeu seaproximaram do centro de SãoPaulo, era quase meio-dia e amaioria dos contingentes helensjá ocupava o bairro que abrigavaa cidadela. Via gente ferida emorta por toda parte. Ouvia orumor de espadas, o bater deescudos e os gritos dos

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combatentes. Nada, entretanto,visível aos humanos.

Egeu chegou à rua da cidadelae um capitão veio dar contas dasituação.

– Os brácaros invadiram ojardim que circunda a cidadela,e agora tentam entrar nopalacete. Aprisionamos osgrupos que ficaram naretaguarda, sem chamar aatenção dos que estão lá dentro.Mas a batalha vai mal para os al-gharbios…

Podiam ver dali que, emboraas portas do palacete não

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tivessem cedido, váriosguerreiros haviam conseguidoquebrar janelas e tentavaminvadir. Os sitiados se defendiamcom fúria; mesmo assim, a torreprincipal era alvo de um grupoque a escalava. Anuk julgouidentificar Hanef, o homem deconfiança de seu pai, em umadas janelas da elevação, comarqueiros a seu lado, quedisparavam contra os invasores.

– Por mais brácaros que elesderrubem, sempre tem mais emais subindo – gemeu,agoniada; sabia que, se aquela

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torre fosse tomada, tudo estariaperdido.

O líder do clã helen ordenoua uma centena de homens queficassem a postos para atacar oportão principal. Pretendiadistrair os atacantes e impedir osucesso da ofensiva.

HANEF DISTINGUIU, deimediato, um som diferente.Sabia que seu segundo emcomando enfrentava os brácarosdiante da porta fronteira dopalacete, mas o que ouvia nãoera o som das espadas brácaras e

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al-gharbias.Os arqueiros que disparavam

sobre os invasores a escalar atorre baixaram os arcos.

– Chegaram reforços, senhor!Com as sobrancelhas negras

franzidas, Hanef correu a espiar.Um grupo de guerreiros com

túnicas brancas e espadas curtaslançava-se pelo portão da frente;vários saltavam os muros dacidadela. Atacavam os brácaroscom fúria. E eram espadachinsde qualidade…

“Egeu”, pensou. “Só pode tersido enviado por Akinlana”.

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Com um suspiro de alívio,mandou os arqueiros de volta àsjanelas.

– Eles são helens, nossosaliados. Agora sim, poderemosresistir! – voltou-se para um dosajudantes-de-ordens. – Corre,diz a Yussef para recuar e avisa-o que recebemos ajuda. Osarqueiros darão cobertura.

A BATALHA RECRUDESCEU.

Anuk se sentia agoniada;apertava a espada na mão,ansiosa para utilizá-la. Sabia queos homens do clã de seu pai

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eram espadachins menos hábeisque os brácaros. Ela, porém,conhecia os dois estilos de luta.Aprendera a manejar a espadaainda criança, e tivera avantagem de tomar algumasaulas com o próprio Kían, omestre-de-armas. EmboraShantel a repreendesse,desejando que fosse tão submissaquanto Mirele, a garota escapavaaos castigos da mãe para treinar;Viriato a ajudara algumas vezes.

Egeu percebia sua agonia, masnão deixou que ela entrasse embatalha.

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– Terás a oportunidade delutar, não te preocupes – disse-lhe. – Agora preciso de teusconhecimentos do palacete.Descreve-me a arquitetura, emdetalhes.

Anuk pediu papel e lápis ecomeçou, rapidamente, adesenhar a planta da cidadelaonde morara por tanto tempo.O helen não pareceu muitoanimado com o resultado.

– Tinha esperanças deconseguir entrar por trás e pegaros brácaros de surpresa. Maspelo teu desenho, as áreas mais

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fáceis de invadir são os flancos, ejá há inimigos por lá, postados aleste e a oeste. O que existe nosfundos, além dos limites dacidadela?

– Prédios comerciais dehumanos – indicou a garota. –Se bem que… é claro! Comofui me esquecer disso?!

Ela riu alto, e recolocou aespada na bainha.

– Tem um jeito de entrar nopalacete pelos fundos. Eu eMirele descobrimos quandoéramos pequenas, mas acho queninguém mais sabe disso, só

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meu pai…Os guardas pessoais do chefe

do clã a ouviram com atenção.– Temos de ser discretos,

vamos passar no meio doshumanos. Mas pode ser feito!Eu vou na frente com o senhorEgeu e uns sessenta guerreirospodem vir atrás aos poucos, emduplas. E seria bom atacarmospelos lados também, para distrairos brácaros.

Egeu levou a sério o conselhoda garota. Mostrou o desenho adois de seus capitães.

– Ficareis no comando

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enquanto eu vou com a filha deTariq. Quero cem guerreirosatacando pelos flancos, a leste ea oeste. Como vai a ofensiva noportão da frente?

– Eles foram apanhados desurpresa – respondeu o mesmocapitão que os informara nachegada. – Engajamos o grupoprincipal em batalha, isso atrasoua tomada da torre e deu umafolga para o contingente quedefendia a casa.

– Ótimo. Vou reunir oshomens, Anuk, e te encontroem meia hora na esquina.

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Ela aproveitou os instantes queele lhe deu para observar acidadela. O helen tinha razão: osque tentavam escalar a torrecomeçavam a recuar. O ataquelhes daria algum tempo…

Ajeitou a pesada cota de malhae conferiu o gume da espadacurta. Estava morta de medo,mas não podia demonstrar.

O destino do clã dependiadela, e não se permitiria falhar.

Rio de Janeiro

A CHEGADA DE QUATROGUERREIROS ARMADOS

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surpreendeu os prisioneiros.Tiago, que mais uma vez tentaracontatar Nan no espelho deágua, levantou-se de um salto.O al-gharbio e o érin voltaramo olhar para os recém-chegados,e Oriana – deitada no catredeixado vago por Eurico –sequer se dignou a olhá-los.

– Temos ordens de levar asenh… a prisioneira – disse umdeles.

Era Nuno, um antigo capitãode Eurico. Oriana viu que eletentava não fitá-la. Como ele,muitos brácaros obedeciam à

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nova ordem, apesar de sofreremintimamente.

– Para onde vão levá-la? –perguntou Tiago, belicoso. –Ainda não está na hora de…

Hesitou. Um guarda fezmenção de bater no humano,mas a mãe de Gael se levantara edeteve seu braço. Sorriu, calma.

– Não há necessidade deviolência. Irei convosco –declarou. E, para os outros três,disse apenas: – Ficarei bem, nãovos preocupeis.

Enquanto Nuno amarrava asmãos dela às costas, ela ainda

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teve tempo de murmurar paraele, de modo que os outros nãoouvissem:

– Sei que não te agradaobedecer ao usurpador. Não teculpo, capitão. Lembra-te:sempre há alternativas. Emborate pareça não haver escolha, ficasabendo que há, sim.

O homem pareceuperturbado. Em seguida, tomouuma mordaça e a passou pelaboca da prisioneira, impedindo-a de falar. Ela não resistiu e oseguiu calmamente.

Desanimado, Tiago ficou

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olhando a porta fechar-se atrásdo último guerreiro.

Para onde estariam levandoOriana?

SHANTEL AGUARDAVA, emoutro andar, ladeada por Hélio.Viu os guardas trazerem suaprima como ordenara, com osbraços atados e uma mordaça.Apesar de todas as precauçõesque tomara trancando a magia,temia que ela usasse algumtruque. E acreditava que fazê-ladesfilar pelos corredoresamarrada e amordaçada ajudaria

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a abater seu orgulho,intimidando os que aindafossem leais aos antigos senhores.

Oriana entrou no aposento eolhou ao redor. Era uma cela,mas ficava um andar acima daoutra; embora fosse pequena,tinha um colchão que parecialimpo a um canto. Viu umamesa e uma cadeira de madeirarústica presas à parede e umbanheiro contíguo, com umsanitário e uma banheira delouça pesada. Uma lâmpadaelétrica embutida no tetoiluminava o ambiente, porém

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não havia janela. O interruptorficava do lado de fora.

Os guerreiros a deixaram nomeio do quarto. A druidesa fezum sinal a Hélio, que osdispensou, fechando a portagradeada. Depois foi soltar aprisioneira e tirar-lhe a mordaça.

– Não vais agradecer-me pelosnovos aposentos, prima? Mandeiaté trazer-te uma refeição – adruidesa indicou um prato e umcopo descartáveis sobre a mesa.

O odor do alimentodespertou o apetite de Oriana,que nada comera naquele dia,

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mas ela se conteve.– Obrigada – disse, impassível.– Podes comer, não está

envenenado. Meu senhor Cromdeseja que fiques mais forte nosdias que te restam. Afinal, ele vaiabsorver tuas energias…

A filha de Eurico resolveucontinuar obedecendo. Bemalimentada, seria mais fácilraciocinar e desenvolver o planoque estivera discutindo comFinnath na cela. Sentou-se nobanco, pegou um talher plásticojunto ao prato e começou acomer. Infelizmente, a fome era

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tanta que ela quase devorou arefeição, disparando asgargalhadas da druidesa.

– Vede como ela come, semmodos à mesa! Como mudaste,prima. Ainda bem que Euriconão está aqui para ver-te. Elesempre admirou teu portealtivo, tuas boas maneiras. Masmeu querido tio não precisapreocupar-se. Vais morrer emtrês dias, e teu pai pouco temposobreviverá a ti. Com Galaorfora de ação, serei a únicaherdeira legítima do clã.

A mãe de Gael tomou um

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gole do suco e disse, semprecalma:

– Não estás contando tuasfilhas, Shantel.

Os olhos da druidesabrilharam de raiva.

– Neutralizei Anuk. E Mireleé dócil, sempre faz o que eudesejo. Não terei problemascom as gêmeas… nem com opai delas. Acho que ele está atéapreciando a escravidão. É umamante excelente, e todas asvezes que mandei açoitá-loaguentou calado, bem estoico –ela saboreava a crueldade das

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palavras, procurando outras paraespicaçar ainda mais a outra. –Com o tempo, vou quebrarcada molécula de orgulho queainda tiver… E ele não iráapenas assistir à tua morte,prima. Vai ajudar a sacrificar-te,sabias?

Oriana forçou-se a engolir arevolta junto com outro gole dosuco, e não foi fácil impedir asmãos de tremerem. Hélio estavabem atrás da druidesa e os doisseguranças tinham-se postadojunto à porta. Se atacasse aprima, até poderia dominar

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Hélio, mas seria difícil livrar-sedos outros dois. Ainda tinha obroche antimagia no fundo deum bolso da calça; levava-oconsigo desde que Gael o tirarade Anuk. Ansiava por usar oque era sua única arma, apesarde não ter certeza de que elefuncionaria em Shantel, com osencantamentos trancados.

“Não”, refletiu. “Devo usá-loquando sua força fraquejar… outalvez no centro dos dozepilares. Aquele lugar concentratodas as energias. Sim, lá aantimagia deve funcionar.”

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Vendo que a prisioneiraterminara a refeição, a druidesafez um gesto a Hélio, querecolheu os descartáveis. Osguardas abriram a porta para elee sua senhora.

– Mandarei trazerem águaquente para que te banhes. Teufedor é ofensivo, prima… e ficasossegada, terás alimentação fartanos dias que te restam.

– Espera – pediu Oriana,hesitante. – O que fizeste commeu pai?

– Nada. – A outra deu deombros. – Crom o quer vivo,

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por enquanto, então mandeialguns escravos cuidarem dele.Estão tentando fazê-lo respirarmelhor, recebe água e alimentospor soro. Mas o máximo queconseguem é mantê-lo estável…E não me culpes por isso, eleestá morrendo de velhice e dedoença.

Shantel saiu, acompanhada porHélio. Lá fora, ordenou aosguardas que permanecessemvigilantes:

– Nenhum escravo entra aqui,entendeis?

– Sim, senhora – disse o

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capitão, subserviente.Depois disso, a filha de Eurico

ouviu apenas os passos dadruidesa e de seu subordinadoafastando-se pelo corredor.Então o silêncio tomou conta dacela.

Três dias apenas…

À TARDINHA, no salão deEurico, Crom Cruach sentiu amudança. Farejou o ar:detectava inimigos, não muitodistantes. Mas seus sentidosmágicos andavam confusos.

Nem um minuto se passou e

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dois vigias entraram correndo.– Senhor! – disse um deles. –

Trazemos notícias do comandoda terceira muralha.

– Nossos espiões deram comgrupos de guerreiros rodeandoSanta Teresa. Foram vistos emvários lugares, entre o Morro daNova Cintra e os Arcos da Lapa.O grupo maior parece que seinstalou no Parque das Ruínas.

– Os humanos não notaramnada até agora – tornou oprimeiro.

O rosto que fora de Galaorsorriu com satisfação. Afinal, os

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inimigos tinham vindo. Issoqueria dizer guerra, e guerrasignificava derramamento desangue. Excelente.

– Enviai mais espiões lá parafora. Com os tais celulares, paramandar informes de hora emhora. Preciso saber quantos são ea que clã pertencem.

Assim que os vigias saíram, odeus chamou mais comandantes.

– Quero mais quatrocontingentes transferidos para aterceira muralha.

Os homens se entreolharam.– Senhor, isso vai

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desguarnecer o casarão.Estávamos mantendo vigilânciacerrada em todos os pátios, porcausa da resistência. Ainda nãoconseguimos descobrir quantossão os rebeldes nem onde seescondem, e…

– Não tenho medo dessaresistência fútil! Deixai umnúmero mínimo de guardas nocasarão. A prioridade agora édefender as muralhas, emespecial a terceira.

Os comandantes partiram.Crom chamou um ajudante deordens.

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– Tu! Dá-me notícias dacampanha contra os al-gharbios.Vou precisar de mais guerreiros.Assim que a cidadela de Tariqfor tomada, quero-os de voltaaqui.

– Infelizmente, senhor… – ohomem mirou o chão, inseguro– os celulares não conseguemcontatar São Paulo… Depoisque ordenaste o ataque, nossoshomens fizeram umencantamento para evitar que osal-gharbios pedissem ajuda… Oproblema é que…

– Hum – o usurpador

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resmungou. – Se impedimos ossitiados de se comunicar com oexterior, também impedimos osnossos aparelhinhos defuncionar. Isso é estúpido!

Os guerreiros recuaramaguardando a provável explosãode seu perigoso senhor.

– Pois voltemos aos métodosantigos! – exclamou ele,furibundo. – Quero que envieisagora mesmo dois homens a SãoPaulo. Que sigam o maisdepressa possível, e retornemcom notícias! Se eu não receberinformações antes que nasça o

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dia, mandarei sangrar osresponsáveis! Andai, o que estaisesperando?!

Enquanto os homens seagitavam para cumprir as novasordens, Crom sentou-se notrono de Eurico, rosnandocontra a tecnologia moderna,que falhava quando eranecessária.

Pensava que, se fosse aotemplo e se posicionasse nocentro dos doze menires, sentir-se-ia mais forte… Embora, daúltima vez que fora até lá,tivesse notado que as forças

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mágicas concentradas no pilarcentral estavam no limite.

“Não”, decidiu. “Minhadruidesa está certa: eu preciso éde mais sangue, e logo.”

São Paulo

ANUK HAVIA LEVADO EGEU,

com os pares de guerreiroshelens seguindo-os a poucadistância, para umamovimentada rua de comércio.Havia lojas de artigos baratos,pequenos restaurantes, garagenstransformadas em oficinasmecânicas. Entre uma delas e

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um bar estreito, havia umcorredor que levava aos fundos,fechado por uma porta dealumínio.

– Temos de entrar por aqui,sem chamar a atenção – disse elaao homem.

Egeu, que aos olhos humanosparecia um avô bondosopasseando com sua netaadolescente, mexeu no trinco.Estava trancado.

Com um sorrisinho e umgesto, Anuk acionou a magia; otrinco se abriu com um clique.Ele o empurrou, entraram, e a

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porta se fechou atrás deles,porém destrancada.

– Incrível – murmurou agarota, guiando o velho helenpelo corredor descoberto, quedava no depósito de bebidas dalanchonete, e depois margeavauma espécie de cortiço. – Penseique tivessem reformado estepedaço, mas está igualzinho aoque era anos atrás…

– Como conheces este lugar?– perguntou ele, desorientado.O corredor fizera várias curvasaté dar num muro meiodespencado. Era uma espécie de

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quintal coberto por mato e lixo;as casinhas de cortiço haviamficado para trás.

– Faz uns cinco anos, eu eMirele descobrimos umapassagem num porão dopalacete, quando brincávamosde esconder. – Deu um sorrisoamarelo. – Bom, na verdade eume escondia das lições, ela sóme procurava. Demos com umtúnel muito antigo. Vai terraadentro e dá um monte devoltas, até chegar numaescadinha que sai aqui. Usamosa passagem para sair de casa sem

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ninguém descobrir… A saídaera deste lado, eu acho.

Ela movia tijolos e arrancavamato, tentando encontrar olocal exato. Egeu viu os pares deguerreiros chegando e mandouque se encarregassem dadesobstrução.

– Tiveram algum problema? –perguntou.

– Nenhum – respondeu ohomem. – Entramos dois a dois,a intervalos, conforme ocombinado. Os humanos nãoconseguem notar-nos, e logo vaiescurecer.

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Era verdade. A tarde pareciaquerer trazer a noite mais cedo,com o céu cobrindo-se denuvens. Havia um aroma dechuva no ar.

Não demorou até que ossessenta homens se espremessemno quintalzinho, mas a entradado túnel custou a ser liberada.Egeu enxergou o acesso queAnuk descrevera, com umaescadinha de pedra levando aum corredor escuro; ali tambémhavia, contudo, muito entulhoimpedindo a passagem.Levariam horas para atravessar

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poucos metros. E ninguém,nem mesmo Anuk, podiagarantir que a outra ponta dotúnel estivesse desobstruída.

Rio de Janeiro

GAEL SENTIA que deixara aCitânia havia anos… Pensou emViriato. Teria sobrevivido àpossessão? Talvez. Os dias quepassara com o tio lhe haviamdado a certeza de que ele eraum sobrevivente… Voltava damorte, quando tudo pareciaperdido.

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“Assim como eu”, riu,pensando em quantas vezesestivera perto de ser morto.

O acampamento dos índiosera próximo da muralhaexterna. O de Akinlana ficavamais distante, oculto pela magianos fundos de uma favela. E portoda aquela zona do Rio deJaneiro ele vira, no caminhopara lá, iorubás e indígenas apostos, à espera da ordem deataque. Imaginava quantodaquela movimentação seriavista pelos humanos…

Haviam instalado o

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acampamento tarde da noite, eo garoto tinha coisas demais nacabeça para descansar. Naspoucas horas em que dormira,tivera sonhos confusosenvolvendo Tiago, João eCarol. E não conseguia parar depensar em Anuk, que devia estarlutando ao lado dos al-gharbios,e em Oriana, presa atrásdaquelas muralhas, à espera damorte. Tinha de salvá-la, dealguma forma.

Rudá o encontrou zanzandopor uma praça, não muitodistante da muralha, assim que a

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manhã rompeu e o soltimidamente iluminou as nuvensescuras no horizonte. Estavaarmado e não vinha da tendaque dividia com o filho, pois,quando Gael acordara, o pai nãoestava mais lá. Devia ter idoconfabular com os chefes.

– Alguma notícia? Já vamosatacar?

Rudá acocorou-se junto dofilho antes de responder.

– Não. Eles esperam omomento certo. Então, nósesperamos também.

Gael sentou-se no chão,

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impaciente.– Não quero mais esperar, pai.

Quero lutar! Minha mãe está lápresa, condenada à morte, eupreciso fazer alguma coisa.

O índio sorriu para o filhoadolescente.

– A primeira virtude de umguerreiro é a paciência.

“Esse é o problema”, Gaelpensou. “Não sou umguerreiro. Enfrentei os brácaros,os al-gharbios, Anhangá, as fadase os aymorés, tudoinstintivamente. A Anukaprendeu a manejar a espada,

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mas eu não… Não sei nadasobre guerra.”

Recordou aquele dia na casade Tariq, em que Viriatoprometera ensiná-lo a lutar.

– Filho – Rudá tocou seuombro –, quando a ordem deatacar vier, eu vou combatercom os kamayurás sob ocomando de Iwati. Mas vocêprecisa ficar no acampamento.Conversei com o João, seu tiode criação, e ele acha a mesmacoisa.

O garoto levantou-se, airritação ficando forte demais

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para manter-se parado.– Nem pensar! Tudo bem

que eu não aprendi direito a serum guerreiro, mas posso mevirar muito bem numa luta.Você sabe disso. E, pela lei dosclãs, tenho idade pra decidir oque quero fazer! Não deixarama Anuk ir lutar lá em São Paulo?

Rudá não se mexeu. Aindaacocorado, comandou:

– Senta aí.Emburrado, Gael obedeceu.

O índio levou alguns minutospara falar novamente.

– Você é teimoso, igual à sua

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mãe. Eu sei que, se quer lutar,não posso impedir. Mas precisocontar o que vai acontecer seteimar em entrar numa batalha.Não vai ser nada bom, isso eugaranto. Vai ser a dor mais fortee a coisa mais terrível que vocêjá sentiu.

– Olha, pai, eu…Um olhar furioso de Rudá o

interrompeu.– Eu vou falar, e você vai só

escutar. Vai ficar quietinho aí eouvir até o fim.

Quando a longa conversaterminou, Gael já não estava

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mais tão certo de que desejavaentrar naquela guerra.

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E

CAPÍTULO 9

Doze pilares

***

Rio de Janeiro

NVIEI UMA NOVA

MENSAGEM de texto pelocelular. Esperei segundos

até que Carol, pelo notebook,me respondesse. Ela me passou

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as últimas adesões à resistência.Muitos guerreiros importantestinham, enfim, cedido às suasconsciências.

Olhei para meu paiadormecido. Graças àmedicação, ele respirava commenos dificuldade. Eramadrugada e, lá fora, meusvigilantes guardas deviam estarcochilando em pé.

– E Oriana? – digitei.– Continua na cela especial – foi a

resposta. – Não temos como falarcom ela.

Apertei o celular entre meus

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O

dedos.E se…?– Tenho uma ideia – escrevi.E sorri ao enviar a mensagem.

***

São Paulo

ATAQUE DOS HELENSAOS BRÁCAROS

continuou pela noitee durante boa parte da manhã.A princípio, conseguiram detera entrada iminente dos invasoresno palacete, mas Tarcísio havia

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sido hábil ao posicionar seusguerreiros, e conseguira isolar asi e a um grande contingente naentrada e ao redor da torreprincipal.

Os capitães de Egeu tomaramo portão e o pátio da frente; ogrupo que saltou os muros doleste tinha expulsado osatacantes. Mas os que atacaram aoeste não puderam rechaçar osbrácaros, encastelados emgrande número junto a umterraço.

Quando o sol nasceu, oshelens pausaram a investida para

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tratar dos feridos e retirar osmortos. Os dois comandantesnão recebiam notícias de Egeudesde que saíra com a garota, einquietavam-se, aguardando amovimentação dos brácaros paraagir de acordo.

Não tinham, porém, visãoalguma da ala oeste, e nãosabiam que a magia que trancavaas janelas do terraço invadidofora neutralizada. A teia mágicade proteção que havia sidotecida em torno do palaceteesfacelava-se, aos poucos, comouma trama de tricô que se

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desfaz ponto a ponto, laçada alaçada, quando o fio épuxado…

O som de vidro quebradochegou aos ouvidos de Tarcísio,e logo um guerreiro veiocorrendo até ele, instaladodiante da escadaria na porta deentrada.

– Entramos, senhor!Ele sorriu, desembainhando a

espada.– Muito bem. Vou para lá e

levo dez homens comigo. Tuficas aqui na frente e lideras umataque contra os helens que

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tomaram o portão. Querotambém que um grupo retomea escalada das torres. Os al-gharbios ficarão distraídos…Vamos!

Invocando seus deuses, foicom fúria que os brácaros selançaram contra os guerreiros àsua frente. Estavam em menornúmero ali, mas seu intuito eraapenas ganhar tempo. Sem saberdisso, os comandantes helens seprepararam para nova batalha.

Hanef viu a ofensiva emandou os arqueiros de novopostarem-se às janelas das torres

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para impedir os que jogavamcordas e escalavam. Ele mesmotomou um arco e derruboualguns dos que, feito aranhas,tentavam subir à torre principal;sentia que algo estava errado,mas não sabia o quê… Ainformação que tinha era de quea ala leste estava segura, e podiaver helens valentementeenfrentando brácaros no jardimda frente.

Foi somente quando ouviu osgritos dentro do palacete que sedeu conta do que acontecera.Desceu as escadarias gritando

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ordens. Mas, ao vislumbrar osalão de onde se erguia a torre,não encontrou nenhum al-gharbio vivo: encontrouTarcísio e vários guerreiros à suaespera.

Recuou um passo e respiroufundo. Precisava, de algumaforma, impedir que elestomassem a torre. Se o fizessem,tudo estaria perdido.

ENQUANTO CORRIA PELO

TÚNEL ESCURO, iluminadoapenas pelas lanternas dosguerreiros, Anuk havia usado

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todos os palavrões que conheciae inventado mais alguns. Ocaminho, que antes ela e Mirelefaziam em pouco tempo, levaraa noite toda; havia até trechosem que as paredes haviamdespencado. Mesmo assim, Egeudizia que valia a pena perseverar.Ao entrar no palacete sem seremvistos, teriam a vantagem dasurpresa.

Os guerreiros helens foramincansáveis, através damadrugada, retirando o entulhoe abrindo a passagem.

“Quem dera”, pensou a

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garota, a certa altura, “que euestivesse com o Gael numdaqueles passeios ecológicos…Até aguentaria a chata daOriana, se pudesse sair daqui!”

Mas não podia. Era a guia dogrupo e tinha de levá-los pelocaminho certo, evitando ostúneis sem saída. Era a única queconhecia o subterrâneo elembrava exatamente o pontoem que iriam sair num dosporões, junto à adega de seu pai.

Conforme os homensliberavam os trechos, elacombatia o sono e detalhava a

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Egeu em que parte do túnel seencontravam. Somente pelamanhã encontraram um trechomais desimpedido.

Anuk tomou uma daslanternas e iluminou a escadariaque divisou à frente.

– Conseguimos! É aqui –exclamou, rouca pelo pó e tontapela noite sem dormir.

Egeu passou adiante dela ecorreu até os degraus, tentandoabrir a portinhola.

– Trancada por magia, é claro– murmurou. – Posso sentir umencantamento al-gharbio; não

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conseguirei desfazê-lo. Terás deesforçar-te mais um pouco,Anuk.

A garota parou diante daescada, recuperando o fôlego etentando combater a exaustão.Não sabia se conseguiriaconectar-se com a magia, àquelaaltura.

Rio de Janeiro

ORIANA ACORDOU

SOBRESSALTADA. Levantou-se,acreditando que a manhã já iaalta, mas era difícil saber as horasnaquela prisão sem janela e com

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as luzes sempre acesas. Teriapreferido estar ainda na celaúmida, onde ao menos haviauma fresta por onde se via se eradia ou noite e tinha acompanhia de Tiago, Finnath eKassib.

Foi sentar-se no banco. Nanoite anterior, ficara acordadapensando numa fórmula paraquebrar o encantamento queunia a força vital de Mirele aCrom. Concluíra que erapossível; conseguira até reunir aspalavras da língua antiga quedeveriam ser usadas. Sentia,

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porém, que faltava algo,escapava-lhe um doscomponentes da magia. SeFinnath estivesse ali, poderiaajudá-la… Mas não, ela não teriacom quem conversar até omomento de sua execução;Shantel fora hábil em separá-lados outros. Nem com Belmirapodia mais contar, já queescravo nenhum tinha permissãode vê-la.

Ouviu passos. Deviam serguardas trazendo-lhe umarefeição. Sentiu a fomepremente a incomodá-la.

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Porém, mais que o desconfortono estômago, incomodava-a anecessidade de comunicação.

Como passar qualquerinformação à resistência?!

– SÓ ISSO? – berrou Crom, comímpetos de degolar omensageiro que trazia notícias.

– Sinto muito, senhor –murmurou o homem, diante dotrono do salão. – Nossos espiõesestão de guarda lá, mas a magiasó deixa usarem o celularquando saem do bairro.

Shantel tentou acalmar o celta,

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que naquele dia despertarainquieto. Sentia os inimigos aoredor da Citânia e ansiava paraque atacassem; mas nadaacontecera, ainda.

– Não são notícias ruins, meusenhor. Nossos homens estãodentro da cidadela al-gharbia.Os helens podem ter chegadolá, mas sua presença nãoadiantará muita coisa,especialmente quando Tarcísiofizer reféns. Basta termos maisum pouco de paciência, que…

Um bofetão de Crom a fezcalar-se, e ela se segurou à

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grande cadeira para não cair.Os mensageiros, guerreiros e

conselheiros trataram de olharpara os lados, para o chão, paracima, fingindo não ver apoderosa druidesa naquelasituação.

– Não venhas me falar empaciência! – desabafou o deus. –Quero notícias mais precisas!Foste ainda agora para o templo.Conseguiste ao menos teralguma visão?

– No… no centro dos pilares,meu senhor… – titubeou ela. –Consegui acionar um espelho

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de águas… Estava instável, nãofoi uma conexão segura, porcausa do…

– Já sei, o trancamento damagia atrapalha osencantamentos, já me repetisteisso mil vezes. Fala! O que viste?

– Vi pilares sendo erguidos.Doze… Alguns já em pé, outrossendo levantados. Só podem seros novos pilares que tuordenaste que fossem erguidosno palacete al-gharbio.

– Hum – resmungou ele. –Tens certeza de que é em SãoPaulo?

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– Não consegui definir se avisão é presente ou futura, mas éreal, e reconheci o local. Se ospilares ainda não foramerguidos, logo o serão.

Crom levantou-se, maisaplacado.

– Bom. E quanto ao sacrifício?– Tudo está sendo

preparado… Depois de amanhã,nossa força crescerá. Então ficarámais fácil forçar as visões àdistância.

Shantel inclinou-se diante dovenerado. Seu rosto ardia comas marcas dos dedos dele em sua

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pele, mas sabia ocultar a raiva.No fundo daquele corpo,Galaor ainda vivia. O bofetãonão tinha sido aplicado apenaspor Crom…

“Um pouco mais depaciência”, repetiu ela empensamentos, desta vez para simesma. Saberia vingar-se dessa ede outras humilhações, quandoa hora chegasse.

São Paulo

ANUK FOI A PRIMEIRA a saltarpela portinhola do porão,

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esperando encontrar uma salabaixa, fria, escura, cheia de odrese garrafas empoeiradas. Noentanto, saiu num ambientequente e iluminado por váriaslâmpadas frias. Havia gente ali,em todos os espaços possíveis.

Gritinhos de criança areceberam, logo reprimidospelas mulheres. A adolescenteespanou o pó das roupas ereconheceu escravos,trabalhadores e vassalos de seupai.

– É a senhora Anuk! – disseum velho ferreiro.

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– Sim, sou eu, mas é melhorque façais silêncio! – pediu ela,nervosa. – Temos visita!

Egeu saiu pela aberturatambém, seguido por doisguerreiros. Os outrosaguardavam no túnel, pois alinão cabia mais ninguém.

– Ficai quietos, é a filha donosso líder que está aqui! –pediu uma cozinheira, calandoo rumor de todos. – O senhorTariq não deve estar longe, nãoé, senhora?

Anuk detestou desapontar amulher, mas não tinha tempo

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para diplomacia.– Escutai todos, a situação é

complicada. Meu pai éprisioneiro dos brácaros, e este éseu aliado, o senhor Egeu, doclã helen. Ele trouxe guerreirospara nos ajudar, e conseguimosentrar sem sermos vistos, masprecisamos saber qual é asituação lá fora!

– O comandante Hanefmandou os idosos com asmulheres e crianças para osporões, assim que eles atacaram– contou o ferreiro. – E agoraestamos trazendo os feridos

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também, pelas cozinhas, mas sãomuitos… Tem um médicocuidando deles lá na adega.

A garota se dirigiu àcozinheira, e depois ao velho.

– Precisamos de espaço paramais guerreiros entrarem. Tuvais levar as crianças para adespensa. E tu vais avisar aoscapitães de meu pai que estamosaqui e vamos fazer de tudo paraexpulsar os invasores!

Os dois se puseram a caminho,e logo mais e mais helens saíampela abertura, para alegria dos al-gharbios. Em poucos minutos,

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um menino veio falar-lhes.– Senhora, o comandante

Yussef te espera lá, na entradados porões…

Yussef era um dos homens deconfiança de seu pai. Anukpuxou Egeu e mais algunsguerreiros pelo labirinto queeram os porões do palacete,buscando a escadinha que subiapara as cozinhas. No caminhoviu, com o coração apertado,muita gente ferida e corposamontoados, cobertos pormantos. Mortos.

Afinal ela e o chefe helen

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deram com o comandante,apoiado em um rapaz. Vinha aseu encontro coberto de sanguee mal se aguentava em pé.Saudou-a com voz firme:

– És muito bem-vinda,senhora, e nossos aliadostambém!

– Como estão as coisas,Yussef?

– Até ontem estávamos maisconfiantes, mas esta manhã amagia que trancava nossas portase janelas começou a desfazer-se… Os invasores entraram peloterraço da ala oeste e chegaram

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ao pátio interno. Tentei tirá-losde lá e meu grupo foirechaçado.

A garota ia perguntar quevantagem tática os sitiantesteriam no pátio interno, ummero jardim no centro dopalacete. O rapaz que amparavaYussef esclareceu logo:

– Ninguém entendeu porquê: eles começaram a soltartijolos e colunas dos corredores.Levaram para o pátio e estãoerguendo uns pilares lá.

– Precisamos expulsá-los. –Egeu franziu as sobrancelhas

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brancas, alarmado. – Voumandar um mensageiro sair pelotúnel com ordens para meuscapitães, lá fora. Agora quedesimpedimos a passagem, eledeverá chegar logo à rua edisparar uma ofensiva total.

Anuk não disse nada, aexpressão sombria. Pilares…

Reviu o templo da Citânia,com as colunas em torno eMirele semimorta ali no meio.Eles estavam tentando criar umnovo centro de forças mágicaspara Crom!

Espantando o medo, voltou-se

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para Yussef.– E Hanef? Onde está ele?

Vamos combinar algumaestratégia e…

Ela parou de falar quando viua expressão do comandante.

– Na torre principal, senhora.Infelizmente, não podemoschegar a ele. Os brácarosacabam de tomá-la.

TARCÍSIO SORRIU, ergueu aespada e tocou com a ponta dalâmina o pescoço de Hanef. Oal-gharbio fora imobilizado portrês guerreiros, que o obrigaram

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a ajoelhar-se. Ele resistiu, masnada podia fazer. Os arqueirosda torre haviam sido rendidos.

– Tinhas o comando – disse ochefe invasor. – Agora devesordenar que todos se rendam.Nós vencemos, e se pararem delutar, ninguém mais morrerá.

Hanef não respondeu. Ouviaainda a luta lá fora, espadashelens chocando-se com asbrácaras. Eles podiam tertomado a torre, mas isso nãosignificava a derrota final.

A pressão da lâmina sobre seupescoço aumentou. Tarcísio

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estava ficando irritado.– Não sejas estúpido.

Tomamos a maior parte dopalacete, e meus homens já estãoerguendo no pátio um altardedicado ao deus CromCruach. Sabes o que issosignifica?

O outro continuou calado.Seu olhar faiscante sugeria quesim, ele sabia.

– Quando posicionarmos ospilares e um altar, faremos umaconexão mágica com o temploda Citânia. E então toda a magiaque ainda resta protegendo tua

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cidadela vai cair… Mataremoscada homem, mulher ou criançaque resistir se não se renderemlogo!

O vencido não hesitou.Ergueu a cabeça, e a ponta daespada penetrou sua carne.

– Tu és um brácaro traidor eassassino – vociferou. – Todosos al-gharbios preferirão morrera se submeter a ti ou a teu falsodeus! A começar por mim.

O brácaro traidor e assassinoestava saboreando a ideia dedegolar o atrevido, quandoouviu o estrondo. Um de seus

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guerreiros olhava, de bocaaberta, pela janela.

– O que foi que…?– Uma ofensiva dos helens!

Derrubaram o portão e estãoentrando por toda a parte! Nãoimaginava que eram tantos…

Um leve sorriso tocou oslábios de Hanef. Se tivesse demorrer naquela hora, morreriafeliz, diante do desapontamentode Tarcísio.

***

Rio de Janeiro

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DA JANELA DO QUARTO DE MEU PAI,

contemplei a tardegelada que tomava a

cidade. Nuvens escurasprojetavam sombras sobre asondas crispadas do mar. Aumidade cobria os telhados, asruas e os humanos que seabrigavam em casacos, jaquetas emoletons, numa imagem muitodistante do famoso Rioquarenta graus à sombra, comsuas cores exuberantes ebronzeados visíveis em corpostomados pelo calor.

Mas a imagem que realmente

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me impressionava era aquelainvisível aos olhos humanos. Osinimigos de Crom já cercavam aCitânia de Brácara.

Fui surpreendido pela chegadade Shantel. O celular, no bolsoda minha calça, estaria a salvo desua desconfiança.

Fiz uma reverência, que eladispensou ao se aproximar demim e me enlaçar pela cinturaem busca do beijo apaixonadoque não lhe neguei. Havia umhematoma em seu rostoperfeito.

– Crom te machucou,

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senhora?Ela assentiu e se aninhou em

meus braços. Como sempre,usava-me quando precisava docarinho que jamais obteriavoluntariamente de qualqueroutra pessoa, inclusive das filhas.

Afaguei seus cabelos,imaginando se algum diaShantel aprenderia a amar deverdade. Havia um coração emseu peito, claro, mas ele batiasempre à espera da satisfação deseus próprios desejos. Egoísta aoextremo, cruel por prazer.

– Promete que jamais voltarás

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O

a me trair – exigiu ela.Não fugi de seus olhos

faiscantes.– Tens minha palavra,

senhora.

***

São Paulo

ATAQUE-SURPRESA

no interior dopalacete deu

resultado. Sob o comando deEgeu, uma dezena de soldadosderrotou facilmente os brácaros

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que vigiavam o salão na base datorre. A escadaria estava livre, eeles podiam ouvir a loucura dabatalha no exterior daconstrução…

Egeu embainhou a espada sujade sangue e chamou Anuk, queestivera apenas observando aluta, até ali.

– Leva estes homens sob teucomando para a torre. Voumandar mais guerreiros para oterraço da ala oeste, quero evitarque entrem reforços brácaros.Enquanto isso, levarei um grupoao pátio interno. Temos de

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acabar com essa história dospilares.

Anuk obedeceuinstintivamente e, a um gestoseu, os helens a seguiram escadasacima. Foi apenas quando seencontrava quase diante da salada torre que a garota se deuconta de que estava em batalha,liderando um contingente deguerreiros. Um medo louco semisturou à excitação que ocheiro de sangue já estavadespertando nela – e à ideia deque Shantel teria um ataque se avisse naquele momento…

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“Não tenho tempo pra pensarnisso agora”, resolveu,deixando-se tomar por umaestranha lucidez. “O clã de meupai precisa de mim!”

Após chegar ao último degrau,abriu a porta com um pontapé.Na sala da torre principal viuTarcísio ameaçando Hanef coma espada, enquanto meia dúziade brácaros vigiava algunsarqueiros manietados e doisoutros assistiam à batalha queocorria do lado de fora.

– Larga a espada – comandouela, ameaçando Tarcísio com a

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própria arma.Ele vacilou, estupefato ao vê-

la. Recompôs-se depressa,porém.

– Mirele? Devias ter ficadoquietinha no Rio. Isto aqui nãoé lugar para crianças.

– Isto aqui – sibilou, furiosa – éa minha casa. E tu vais sair dela!Vivo ou morto.

Investiu contra ele usando umgolpe que Tariq lhe haviaensinado, nas primeiras vezes emque lhe dera aulas de esgrima.Sorrindo, o invasor aparou ogolpe e revidou.

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Mas Anuk não treinara apenascom o pai e seus mestres-de-armas. Percebeu que ooponente usava sequênciasbrácaras ao acreditar que elalutaria ao estilo al-gharbio. Foiaparando os golpes dele eatacando da forma como eleesperava.

Um rápido olhar em tornolhe mostrou que Hanefrecuperara sua espada, e que oshelens tinham rendido os vigiase estavam soltando osprisioneiros nos cantos da sala.Ninguém interferiu no combate

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entre o experiente guerreiro e aadolescente, apesar de Hanefobservar de perto, parecendopronto a intervir.

Ela não queria mesmo queninguém interferisse. Estava sedivertindo como nunca na vida,escapando aos golpes doinimigo e fazendo-o cansar-se.Quando viu que ele parara debrincar e aumentara a força e avelocidade com que investia,deu um passo para trás. Comum sorriso cínico que a deixavamuito parecida com Tariq,torceu o punho e fez a espada

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mudar de trajetória. Era umgolpe inesperado, que Kían lheensinara, e tirou sangue dobraço dele.

Reposicionando-se para adefesa, Tarcísio também deu umsalto para trás. Parecia ter vistoum fantasma. E o quedescobrira o fazia hesitar…

– Tu não és Mirele! –exclamou, entre os dentes.

A garota não perdeu oimpulso e atacou com outrogolpe típico dos brácaros.

– Surpresa! – provocou.Aquela informação mudava as

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prioridades do guerreiro. Mirelenunca soubera lutar daquelejeito! Aquela era Anuk, o quesignificava que Shantelenfeitiçara a gêmea errada… Eleprecisava avisá-la, e depressa!Porém a diabinha lutava feitoum guerreiro e, apesar de terolheiras, parecia mais descansadaque ele, exaurido pelo sítio aopalacete.

Mesmo assim, era um bomespadachim, e mais forte queuma adolescente! Tinha quedesarmá-la; se ela morresse noprocesso, não era problema seu.

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A druidesa sempre quiseralivrar-se da filha rebeldemesmo…

Anuk teve de recuar, quandoele investiu pesadamente. Pormais hábil que fosse, não tinha aforça necessária para deter opeso do braço de um adulto.Numa das esquivas, nãoconseguiu dar um girocompleto, e a lâmina deleatingiu seu ombro esquerdo. Elanão se importou com oferimento, mas sentiu a zoeiraque a perda de sangue causava.

Com um grito de triunfo,

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Tarcísio aproveitou o instante ea prensou contra a parede,golpeando-a, com suaempunhadura, na mão quesegurava a espada.

A filha de Tariq sentiu queseus dedos soltavam a arma.Estava perdida. Fitou-o comódio. Ele, por sua vez, olhoupara os al-gharbios e helens aseu redor.

– Ide embora daqui, ou matoa menina! – ameaçou.

Ela teve um segundo parapensar e agiu, enquanto elefalava com os outros. Deu-lhe

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um tremendo chute com o pédireito, acertando-o na virilha.Sentiu-o liberar a pressão eaproveitou para se jogar nochão, rolando para longe.

Então Hanef o enfrentou, deespada em punho.

– Está na hora de retomarmosnossa conversa, brácaro. Eu diziaque és um traidor e umassassino. Agora descubro quenão és capaz nem de lutar comas nossas crianças…

Bem naquele momento,Yussef, Egeu e mais guerreiroshelens surgiram na sala da torre.

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Anuk pensou que Tarcísioaceitaria retomar a luta com ocomandante al-gharbio. Masnão foi o que ele fez: recuoumais e buscou algo num bolso,sob a cota de malha.

– Não tenho tempo para isso– murmurou, sinistro.

E o mundo pareceu parar degirar, quando um disparo soou eHanef caiu, atingido pela balaque saíra da pistola na mão dobrácaro.

ELA NÃO SABERIA DIZER

exatamente o que sentia.

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Primeiro tinha sido excitação,depois raiva, medo, dor e umcheiro de… de quê, mesmo?Sangue. Isso, era sangue. Elaestava sangrando. Ou nãoestava? Não, era Anuk queestava ferida. Anuk, que lutaracontra os homens que tinhaminvadido sua casa e escravizadoseu pai.

Mirele não sabia direito o queestava acontecendo. Sabia apenasque sua mente passara a ficarunida à mente da gêmea, depoisda segunda conexão que forafeita entre ambas. Mas só se dava

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conta disso agora, vendo, atravésdos olhos da outra, o palacetecheio de inimigos. E sabia demais uma coisa: sua irmã estavahorrorizada, cansada, ferida,quase desistindo. Precisava fazeralgo.

“Irmã”, tentou dizer, masconseguiu apenas pensar. “Estoucontigo. Não desiste.”

“Não desiste…”

O DISPARO ECOOU por todo opalacete. Tarcísio fizera o quefora proibido por dezenas detratados, execrado por centenas

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de comandantes e negado pormilhares de guerreiros desdeque os clãs mágicos tinhammigrado para o Novo Mundo.Ele usara a saída fácil e negara ahonra do combate, em quevence o mais hábil, o mais forteou o mais resistente.

Os próprios brácaros na sala datorre fitaram seu capitão comhorror. Um helen, ágil,arrebatou-lhe a arma para evitaroutro disparo. E os al-gharbioslibertados, tomados de fúria,ergueram facas e espadas einvestiram contra ele de uma só

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vez.Egeu ajudou Anuk a levantar-

se, verificando-lhe osferimentos: eram fundos, mascicatrizariam. A garota não tiravaos olhos do corpo de Hanefque, de olhos abertos, pareciaainda espantado pela últimacoisa que vira – a arma de fogobanida por todos os clãs.

Foi então que, sem aviso, elasentiu suas forças voltarem. Dealguma forma, percebeu a vozda irmã dentro de si. “Nãodesiste”, Mirele parecia lhedizer.

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– Parai! – ela retomou osangue-frio e se dirigiu aoshomens que estavammassacrando Tarcísio. – Se ele éum assassino, nós não somos!

Os al-gharbios obedeceram nahora. Afastaram-se, as cabeçasbaixas, e ela viu o ex-assecla deGalaor, ou o que restava dele,estraçalhado pelas armas brancas.

Parou diante dos corpos.Passou os olhos pela sala edesandou a dar ordens.

– Essas mortes têm de acabar!– reparou em um arqueiro. –Tu vais reunir mais arqueiros e

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voltar às janelas. Manda verificarse há homens a postos nas outrastorres também. Não podemospermitir que mais brácarosentrem na casa.

O soldado obedeceu, e ela sevoltou para Egeu e depois paraYussef.

– Vamos levar os feridos paraa enfermaria na adega. No salãolá embaixo há uma biblioteca àesquerda. Podes mandar teushomens transportarem osmortos para lá. Quanto a ti,Yussef, deves assumir ocomando: és o próximo na

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hierarquia, pelo que eu melembro.

Os helens começaram atransportar os corpos, e ocapitão al-gharbio seaproximou, dobrando umjoelho diante da garota.

– Não posso tomar ocomando, senhora.

Anuk franziu as sobrancelhas.– Tens de fazer isso! Meu pai

está preso e Hanef está morto.O senhor Egeu poderia liderartodos os guerreiros, mas ele játem os helens para comandar, eos nossos não aceitariam ordens

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de alguém de outro clã.O líder helen acercou-se dela.– O que Yussef quer dizer é

que tu deves assumir a liderançado clã, Anuk. És a filha maisvelha de Tariq. E acabas deprovar teu valor. Todos osguerreiros te seguirão.

A filha de Shantel não soube oque dizer. Teve vontade defugir para seu antigo quarto eesconder-se sob a cama. Desejouestar de volta à Floresta daTijuca, com Gael, ambosabraçados no esconderijo elonge do restante do mundo.

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O mundo, contudo, estavabem ali – com todos seusproblemas e desafios.

Pela janela vinha o som doentrechocar das espadas nopátio. Suspirou, de novo.

Teria de aceitar o comando. Enão podia dar-se o luxo defalhar…

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T

CAPÍTULO 10

Escolhas

Rio de Janeiro

UDO ESTAVA PRONTONO TEMPLO.

Entretanto, por maisque Shantel procurasse eameaçasse seus escravos eguardas, ninguém sabia ondeestava sua adaga ritual. Elalembrava que, da última vez

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que a vira, estava nas mãos deCrom… na passagem do corpode Viriato para o de Galaor.Suspeitava de que o própriodeus a tivesse levado, porém, acada vez que tentava abordá-locom perguntas sobre o assunto– ou qualquer outro –, ele amandava embora.

Crom estava preocupado coma falta de notícias confiáveissobre a batalha em São Paulo;seus espiões só conseguiamtelefonar para a Citânia quandoestavam afastados do palacete deTariq, e as mudanças que

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reportavam sobre o sítio eramconstantes. Ora os helens tinhamo controle, ora os brácaroslevavam vantagem. Para piorar,mais exércitos cercavam aCitânia.

Shantel mandara vasculhar seusaposentos, e nada da adaga.Tentara até usar um feitiço debusca, embora soubesse quequase nada funcionaria fora dotemplo. E, mesmo lá, quandoprocurara forçar outra visão,algo interferira.

Ao se aproximar do corpo dafilha, adormecida sobre a mesa

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de pedra, ela detectou umaenergia estranha emanando dela.Por algum motivo, nãoconseguia descobrir o que era.

Afinal, desanimada, resolveu irao arsenal e buscar um punhalvirgem que servisse àsnecessidades rituais. Com suasaída, a força que vinha dagarota enfeitiçada aumentou, elevou para longe da Citânia ospensamentos e sensações dafilha.

Era o elo mantido entre asduas gêmeas, que se fortalecia acada hora que passava.

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São Paulo

ANUK SENTIU o aumento dasforças que a presença da mentede Mirele lhe comunicava.Xingou-a por estar seimiscuindo em seuspensamentos… Porém tudo oque recebeu da irmã comoresposta foi o eco de um sorriso.

– Fala com eles, filha – elaouviu a voz de Egeu dizer-lhe.

Postavam-se na escadaria datorre, que dava no salão dopalacete. O local estava lotado

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de guerreiros do clã. Muitosestavam feridos, e algunsguardavam com olhos tristes asportas da biblioteca, onde elamandara recolher os mortos navéspera.

Todos, contudo, a olhavamcom dedicação e confiança.

A notícia de seu duelo com ocomandante brácaro chegara atodos os al-gharbios. Yussef eEgeu conseguiram livrar ointerior da casa dos invasores, ereuniram os guerreiros quetinham condições de lutar. Láfora, no pátio tomado pelos

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brácaros, os helens haviamrecuado e os atacantesaguardavam ordens; ninguémsabia de Tarcísio e sua ausênciaos desorganizava. Ainda assim,vários capitães pareciampreparar-se para um ataquemassivo. Anuk recebera essainformação dos arqueirospostados nas torres.

Naquele momento, inflamadapela presença de Mirele juntode si, a garota abafou osresquícios de medo que ainda aassombravam. Tinha de honrar aescolha que fizera.

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– Al-gharbios! – disse, e suavoz ecoou pelo salão. – Comosabeis, Hanef está morto. Obrácaro covarde usou uma armade fogo, desprezou todos ostratados e a tradição dos povosmágicos. Com meu pai e minhairmã presos na Citânia, cabe anós vingá-los.

Um frêmito de raiva passoupor todos os homens e mulherespresentes. Anuk viu os queestavam armados tomarem opunho das espadas. Apertou asua também.

– Temos o apoio dos helens.

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Os brácaros são muitos, mas osdeuses nos protegem. Estamanhã, nós atacamos! E nãorecuaremos até termosexpulsado todos eles de nossacasa!

Um clamor único foi aresposta à conclamação. Yussef edois capitães começaram aseparar os guerreiros em grupos.Egeu, com um sorriso,despediu-se da garota.

– Vou deixar homens aqui,sob seu comando – disse ele. –Preciso voltar pelo túnel. À horacombinada, atacaremos juntos.

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Ela o viu sumir em direção àscozinhas, enquanto trinta helenserguiam as espadas para ela. Amaioria havia testemunhado aluta desesperada que ela travaracom Tarcísio, e não hesitariamem seguir as ordens daadolescente.

Anuk e Mirele soltaram umaprofunda respiração. Iamcombater juntas, agora.

Rio de Janeiro

NA MANHÃ SEGUINTE, amovimentação dos homens

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sugeria que o ataque acontecerialogo, mas Gael, perturbado, nãoprestava atenção em nada. João,que recebera ordens de ir comseu contingente para mais pertoda Citânia, encontrou osobrinho sentado num dosbancos da praça que agoraintegrava o acampamentoindígena.

– Que cara é essa, menino? Aespera está no fim. Aposto queem um dia vamos estar com oTiago, a Carol e a Oriana.Tenha confiança!

– Tá tudo bem, tio –

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respondeu ele, evasivo.– Você tem medo de entrar

em batalha? É isso? Eu tambémtenho, mas veja só a quantidadede guerreiros sob as ordens deAkinlana e Iwati. Vamos vencer!

O jovem olhou para o tiocom ar de quem não acreditavanaquilo.

– Se não é medo, o que é,Gael? Pode falar, sou eu! Vocêsempre me contou tudo.

Mas nada o faria confessar oque sentia. Nem a João, nem aninguém. A conversa que tiveracom Rudá o perturbara mais do

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que teria coragem de dizer.Sabia que o pai dissera averdade… Sentira essa verdadetomar conta de si aos poucos,nas últimas semanas…

Como lidar com aquilo? Nãosabia. Não queria saber. Queriaestar longe dali, em segurança,em seu quarto sobre o bar deTiago, num passado que nuncavoltaria.

João respeitou seu silêncio.Até porque, bem naquela hora,quatro homens se aproximavam.O primeiro era Rudá e, atrásdele, vinha o próprio rei iorubá,

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ladeado por dois guerreiros.Gael levantou-se.

Akinlana sorriu para ele,parecendo enxergar o jaguaraque o adolescente não queriaver dentro de si.

– Tenho notícias, filho deRudá – disse o rei, mostrando-lhe um celular. – Poucos sabem,mas agora temos um informantedentro da Citânia. Ele nospassou os planos de Crom, onúmero de guerreiros earmamentos, suas estratégias deataque e defesa. Tem nosajudado a decidir várias coisas.

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Gael e João franziram ossobrecenhos, ao mesmo tempo.

– Tem certeza de que dá praconfiar em informantes? –questionou o humano.

– Meu tio está certo –acrescentou o garoto. – Osbrácaros não são confiáveis.

– Este é – sorriu Akinlana. – Equer falar contigo…

Surpreso, Gael pegou oaparelho que o rei lhe estendia.Levou-o ao ouvido.

– Alô?…Seu ar apreensivo desapareceu

assim que ouviu a voz de

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Viriato:– Gael? Graças à deusa. Não sabes

que alívio para mim é saber que estásbem…

– É… é você mesmo?Disseram que o Crom deixouseu corpo. Pensei que podia termorrido… Sei lá, pensei tantacoisa…

– Estou vivo. Pelo menos porenquanto.

– Mas o que tá acontecendo?E a minha mãe? E o meu pai? Ea Carol?

– Gael, relaxa. Não posso contartudo agora. Tua mãe e os outros estão

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bem, por ora. Mas temos pouco tempo,e preciso te dizer uma coisa.

– O… o que é?Um silêncio na linha fez o

adolescente se encolher. Setodos estavam bem, o queViriato teria a dizer de tãoimportante?

– Eu preciso – a voz do filhobastardo de Eurico soouinsegura – que tu me perdoes.

– Como é que é? – elearregalou os olhos, sementender de imediato.

– Eu não queria dizer isso portelefone. Preferia que fosse ao vivo,

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mas estamos em guerra… e eu não seio que vai acontecer. Eu preciso muito tepedir perdão.

Muita coisa passou pela cabeçade Gael naquela hora. Ouviu avoz de Oriana na memória.

“Viriato é alguém desprezível.Merece toda a punição que vier areceber. Morrer é pouco para umcovarde como ele.”

Recordou o tio a cuidar deseus ferimentos na casa de Tariq.Seu olhar firme diante deEurico ao confessar que falharaem executar a criança que todoschamavam aberração. Reviu os

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olhos vermelhos de Crom nocorpo usurpado, tentando matá-lo e sendo impedido por seuhospedeiro.

– Olha, Viriato, eu não tenhonada que perdoar – respondeu,os olhos úmidos.

– Tu eras só um bebê, meu própriosobrinho, e eu te joguei nos trilhos dometrô.

O adolescente deu uns passospara o lado, afastando-se deRudá, João e Akinlana.

– Depois disso, você mesalvou. Um monte de vezes. Etambém salvou meu pai, meu

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tio e a Carol. Esquece essahistória, tá? E depois… Sei lá,tem tanta coisa acontecendo…

Algo na voz dele fez Viriatomudar de tom.

– O que foi? O que está realmentete assustando?

– É que eu… Não sei o quefazer.

De alguma forma, Gael sentiua tentativa do interlocutor delhe transmitir carinho econfiança pela linha telefônica.

– Tens sangue brácaro e jaguara,foste criado por humanos. Herdaste omelhor desses três mundos. E eu tenho

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muito orgulho de ti!O garoto abriu um sorriso

emocionado.– Tu saberás o que fazer – disse o

tio antes de se despedir.Gael tremia um pouco, ao

devolver o celular desligadopara o rei iorubá. Mal percebeuquando João lhe disse umsimples “tchau” e Akinlana seretirou.

– Tenho um presente, filho –disse Rudá. – Pega…

O índio lhe estendia doisobjetos, um em cada mão.

Com a mão direita, o garoto

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pegou uma espada curta brácara.Tinha uma taça esculpida naguarda. Com a esquerda,recebeu um pequeno porrete demadeira entalhada.

– Um tacape – murmurou.– Foi do meu pai – contou

Rudá, orgulhoso. – Agora, vemcomigo. Temos pouco tempo.Eu queria que você ficasse aqui,mas Akinlana e Iwati disseramque a escolha é sua, por issotenho que ensinar como usar otacape e fazer a pintura deguerra.

Gael foi seguindo o pai para

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um trecho mais afastado dapraça. Lá, viu dois potes decerâmica cheios de tinta. Ele sesentiu mais apavorado ainda. Iaser pintado ritualmente para aguerra… E só então digeriu oque o pai lhe dissera.

– Por que temos poucotempo? – perguntou.

O jaguara se acocorava juntoaos potes, e respondeu apenas:

– Porque Akinlana já deu aordem. Assim que a noite cair,atacamos.

ORIANA PASSARA A TARDE

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INQUIETA. Não era aproximidade do dia de suaexecução que a incomodava,porém. Ela já fizera as pazescom a ideia de morrer. Não, suainquietação vinha da impotênciaem que se encontrava: tinhaconseguido definir uma formade livrar Mirele doencantamento que a prendia aCrom… e precisava passar ainformação à resistência. Belmirasaberia o que fazer. Como,porém, contatá-la?

Na cela só entravam osguardas de Shantel trazendo

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pratos descartáveis com comida,e nem tinha o recurso que jáusara, de ocultar uma mensagemno cesto de alimentos.

Desconfiava de que iaanoitecer, pois passos seaproximavam. Vinham trazer-lhe o jantar. Percebeu que, alémdos dois guerreiros de costume,mais uma pessoa chegava.

Quando a porta foidestrancada, Shantel entrou.Um guarda carregava a refeiçãonuma bandeja e o outro – elareconheceu Nuno, o capitãoque a amordaçara, quando fora

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transferida de cela – levava umvestido branco nas mãos.

– Ansiosa, prima? – riu-se adruidesa. – Amanhã é o grandedia! Tu vais jantar, agora, edepois serás banhada e vestida.Quero que uses algo especial naspróximas vinte e quatro horas.Vê, nada é bom demais paraalguém da tua linhagem…

Ela passava as mãos pelovestido que o capitão segurava.Era uma veste preciosa,imaculadamente branca,bordada delicadamente nodecote e na barra com fio de

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ouro e pedrarias. Orianaadoraria usar tal vestido, se elenão fosse também servir-lhe demortalha.

Estremeceu, e Shantelapreciou vê-la fraquejar.

– E não penses em usar teustruques, prima. Os guardas têmordens de ficar contigo até anoite. Eles vão banhar-te evestir-te, agora. Até amanhã!

Deixou a cela alegremente,seguida pelo guarda quedepositara o jantar sobre a mesa.Nuno permaneceu diante deOriana, que se encolheu,

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revoltada por mais aquelahumilhação. Homensdesconhecidos iriam despi-la efazer sua toalete?!

O capitão brácaro pôs ovestido sobre o colchão eajoelhou-se diante dela.

– Perdoa-me, senhora. Tinhasrazão. Sempre há uma escolha…e eu fiz a minha.

Ela fitou o homem e o viulevantar-se, afastando-se parajunto da porta. Com um sinal,chamou alguém, um terceiroguarda, que veio pelo outrolado do corredor que Shantel

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tomara. Quando ele entrou nacela e tirou o elmo, Oriana nãoconseguiu falar, incrédula.

Era Viriato.

São Paulo

O SOM DOS PILARES tombandono chão do pátio foi enorme;todos sentiram a cidadelaestremecer com o baque. Anuknunca ouvira um estrondo comtanta alegria.

Anoitecera. Os al-gharbios ehelens haviam mesmo expulsadotodos os invasores do palacete,

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enquanto, lá fora, Egeu e seushomens acabavam de conquistara vitória em um contra-ataquedefinitivo.

Anuk mandara acenderemarchotes no pátio, pois estavamsem energia elétrica. Mas o quelhes faltava em eletricidadesobrava em coragem.

No centro do jardim tinhamcolocado o corpo de Hanef,agora velado por todos. Pelaprimeira vez, a garota teve defalar numa cerimônia fúnebre.

– Hanef deu sua vida por nós,como tantos outros entre nosso

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povo… – declarou a filha deTariq, com uma voz queribombou pelo pátio. – Agora éhora de cuidarmos dos nossosferidos e chorarmos por nossosmortos. Mas também é hora deseguirmos em frente. Nunca,nunca permitiremos que umdeus usurpador e renegadotome nossa terra!

Recebeu o apoioincondicional de todos ospresentes.

Anuk mordeu os lábios,segurando a vontade de chorar.Adoraria que o pai estivesse ali

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-C

para orgulhar-se dela, da mesmaforma que os al-gharbios e atéhelens demonstravam naquelemomento.

A gêmea má conquistara,enfim, o respeito de seu povo.

***

Rio de Janeiro

OMO... COMO TU... ? –balbuciou Oriana sem acreditarem como eu podia estar vivo.Nuno se afastara para vigiar ocorredor e nos dar privacidade.

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– Crom achou melhor pouparminha vida por enquanto –resumi.

Não previa o abraço apertadoque recebi de minha irmã. Elanão agia assim desde que…desde que era adolescente!

Muito sem graça, tentei meafastar. Não era digno dereceber aquela demonstração decarinho.

Oriana, porém, prendeu meusbraços com firmeza.

– Tu voltaste a ser meu irmão– disse, sorrindo.

O perdão inesperado me

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desconcertou ainda mais. Etambém me nublou a visão.Desviei o rosto, tentandoinutilmente esconder aslágrimas.

– Podemos confiar em Nuno– eu disse, procurando firmezana voz. – Dois de seus homensde confiança substituíram osguardas que me vigiam noaposento do senhor Eurico paraque eu pudesse vir falar contigo.

– E como está nosso pai?– Resistindo.Oriana não pediu detalhes.

Sabia tão bem quanto eu que

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ele não viveria mais do que umdia, talvez dois.

– Vieste para nosdespedirmos? – perguntou ela,com tristeza.

– Há esperança, senhora.Então, narrei-lhe sobre o

cerco à Citânia e as informaçõesque passara a Akinlana e a seusaliados. E sobre meu contatodireto com a resistência atravésde Carol. Tranquilizei-a emrelação a Gael. Ele estava emsegurança.

– O rei iorubá fará todo opossível para invadir a Citânia

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antes da meia-noite de amanhã– prossegui. E passei para aquestão mais importante: a únicaforma real de derrotar Crom. –Belmira disse que tentavasencontrar um contrafeitiço.Chegaste a alguma conclusão?

Oriana contou-me como erapossível realizá-lo. Haviadetalhes que Belmira deveriaprovidenciar.

– Precisarás de tempo parafazer o contrafeitiço – observei.

– Com Shantel por perto seráimpossível. A não ser que…

Do bolso da calça, minha irmã

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tirou um broche antimagia.Estremeci ao imaginar o que elame pediria.

– Sabes o que é e como usá-lo?

– Sim, senhora.– Somente alguém em que

Shantel confie muito pode seaproximar o suficiente paracolocar nela este broche.

Oriana deixou que o silênciodominasse a cela. Ainda naporta, Nuno mantinha suavigilância.

– Posso fazer isso, senhora –disse uma voz distante, que

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descobri ser a minha.A dúvida permaneceu no

rosto diante de mim.– Conseguirás realmente ir

contra Shantel, Viriato?Apesar da minha vontade de

reagir, não pude dizer nada.Oriana me entregou o broche.Ao tocá-lo, senti-me esquisito,como se o metal me queimassea pele. Ou minha consciência.

– Irei me lavar – avisou minhairmã ao se dirigir ao banheiro dacela. – Se nossa prima me querbem-arrumada, então terá a maisbem-arrumada entre suas

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À

vítimas.

***

MEIA-NOITE, a lua nãoestava visível no céu. Seestivesse, ver-se-ia

apenas um fio luminoso nocírculo lunar. Em vinte e quatrohoras seria lua nova.

Aquela foi uma noite agitadana cidade do Rio de Janeiro. Oshumanos sentiam algo estranhono ar. E não era a guerra dapolícia contra o tráfico ou osarrastões nas praias.

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No bairro de Santa Teresa,logo que escureceu, o sítio setransformara em ataque.Guerreiros indígenas e afros, devárias procedências, haviaminiciado uma ação orquestradacom precisão, cercando aprimeira muralha na tentativa deinvadir a Citânia.

Em menos de vinte e quatrohoras, Akinlana planejava estardentro do casarão de Eurico.

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O

CAPÍTULO 11

Batalha

Rio de Janeiro

CHEIRO DA MORTE

era embriagante. Doterraço mais alto do

casarão de Eurico, CromCruach ouvia o som das lançasatingindo escudos. Não tinhauma visão clara da primeiramuralha, mas sua intuição o

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mantinha a par de cada ataque erecuada, cada guerreiro caído.

Sentia-se em seu elemento.Amava a guerra, a loucura dabatalha, o transe que tomava oshomens no meio da carnificina.Agora que haviam atacado, aansiedade passara: mal conseguiaesperar para trucidar, elemesmo, o inimigo.

Mas isso podia esperar. Assimque os tolos vissem que amuralha era inexpugnável,recuariam, e então ele lideraria oexército contra os sobreviventes.Não sobraria ninguém para

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contar a história… Ou, talvez,deixasse que algunscomandantes vivessem, paraque, humilhados, cantassem aomundo sua vitória.

Assim que amanheceu e ouviuos relatórios dos capitães, deixouo terraço que servia deobservatório e foi para o arsenal.No caminho, viu Shanteldespachar escravas para otemplo.

– Tens notícias da defesa, meusenhor? – indagou ela,parecendo ansiosa.

– A muralha resistirá, não

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importa quantos soldadosmandem contra ela –respondeu, arreganhando umsorriso.

A druidesa inclinou-se. Nãoparecia convencida dainvencibilidade da Citânia, poisse dizia que os exércitosatacantes eram numerosos, e otrancamento da magia a impediade tecer novas defesas mágicas;mas sabia que, à noite, colocariaem ação mais forças sinistras eque o poder guerreiro de Cromaumentaria muito.

– Estou terminando os

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preparativos do sacrifício, já voumandar levarem a vítima para otemplo. Gostaria de ter maissoldados para reforçar asegurança, meu senhor…

– É estupidez desperdiçarguerreiros para vigiar umpunhado de escravos e umamulher. Tens guardassuficientes! Não me aborreçascom isso. Tenho uma batalha atravar.

E deixou-a. Shantelresmungou algo e seencaminhou para as escadarias.Crom podia dar-se o luxo de

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F

ser arrogante, mas ela nãosossegaria até ver Oriana morta.

***

OI HÉLIO QUE DESTRANCOU

A PORTA do quarto deEurico, naquela manhã.

Pouco antes, haviam trazidoalimentos e uma nova bolsa desoro. Mal tive tempo deesconder o celular debaixo dotravesseiro de Eurico. O ex-capanga de Galaor vinhaacompanhado da jovem escravaque cuidava antes de meu pai.

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– Como vai nosso prisioneiro,escravo? O senhor Crom querinformações.

– Vive – respondi.– Ótimo! Agora, vamos às

ordens da senhora Shantel. Elamandou que te levemos aotemplo, agora. Anda! A senhoranão tolera atrasos…

Era o que eu esperava queacontecesse. A druidesa nãoperderia a chance de me colocarcomo algoz de minha irmã,assim como faria com Tariq.

A jovem assumiu meu postojunto ao leito enquanto segui

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Hélio para fora do quarto. Lá,seis guerreiros nos esperavam.Fomos, então, pelo corredor,para os andares inferiores docasarão.

Confuso, dei-me conta de queaquele não era o caminho dotemplo. Passaríamos antes nacela de Oriana.

Minha irmã teve as mãosatadas por uma corda e foiobrigada a se unir ao grupo.Hélio interrogou um dosguardas.

– Mandei trazerem Tariq aqui.Onde está o guerreiro que foi

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buscá-lo?– Não sei, senhor. Aqui ele

não veio.– Bando de incompetentes –

resmungou ele. – Bem, vóstodos levareis a prisioneira e oescravo ao templo. Vouprocurar aquele al-gharbio.

Ele se afastou e os guerreirosladearam a mim e a minha irmãpara nos conduzir. Foi somentenaquele instante que me lembreido celular sob o travesseiro.Devia tê-lo trazido comigo.

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O***

São Paulo

EFEITO MAIS

NOTÁVEL na cidadelaal-gharbia, quando o

último guerreiro brácaro depôsas armas, vencido, fora que oencantamento impedindo ascomunicações se desfizera.Centenas de alarmes detelefones soaram ao mesmotempo.

Egeu, que tomara a si oencargo de lidar com os

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prisioneiros, ordenara que oscelulares dos brácaros fossemtodos recolhidos e desligados.Patrulhas helens enviadas aosarredores haviam aprisionadotambém dois espiões,provavelmente informantes daCitânia.

Assim que a cidadela foracompletamente retomada e osatacantes, neutralizados, Anukdeixara Yussef no comando dosguerreiros e incumbira omédico, primo de Hanef, deorganizar a lista de mortos efazer uma triagem nos feridos.

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As famílias estavam voltando aseus alojamentos, e a garota seassegurara ainda de que asmulheres encarregadas dacozinha e da despensa tivessemrecursos para ir comprarmedicamentos e provisões.Havia resolvido várias coisas eestava indo para seu antigoquarto, à procura de roupaslimpas; não conseguia se lembrarda última vez em que tomaraum banho quente… então Egeua encontrou.

– Anuk, acabo de falar comAkinlana.

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Algo no olhar dele a alarmou.– E aí?…– Estão em plena batalha.

Atacaram a Citânia ontem ànoite. Por enquanto as coisasvão bem, sem grandes baixas,mas ainda não conseguirampassar pela primeira muralha.

A euforia que a garota andarasentindo nas últimas horas seevaporou totalmente. Podiaimaginar o embate entre asforças iorubás e brácaras. Nãoligava para a mãe ou para asoutras pessoas presas entre doisexércitos loucos por sangue.

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Mas havia Tariq. E Gael…A mente de Mirele, ainda

ligada à dela, reforçou seumedo. A gêmea fechou os olhose ouviu, a distância, o som dabatalha. Bem mais acirrada eampla do que as escaramuças deque participara, na defesa dopalacete do pai.

– Tens de vir para cá – ela ouviuMirele pedir.

– Tenho de ir para lá –murmurou.

O líder do clã helen nãoconcordou.

– Deves ficar em segurança.

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Assim que resolvermos o quefazer com os prisioneiros, deixoalguns helens aqui e vou para oRio com meu contingente. Mastu ficas.

A garota desconversou.– Depois pensamos nisso.

Agora, só o que eu quero é umbanho bem longo. E trocar deroupa. E fazer uma refeiçãodecente.

Entrou em seu quarto e foi aoguarda-roupa escolher o quevestir. Jogou num canto asroupas que usava, sujas de terrae sangue, logo depois de

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escrever um bilhete, que largousobre a cama.

Levou para o banheiro umamuda de roupas, a cota demalha e a bainha com a espada,sem esquecer uma bolsa querecheou de objetos pessoais,algum dinheiro e o cartão decrédito de Galaor. Disparou umsorrisinho maroto, enquantoligava o chuveiro e a águaesquentava.

“Por que os homens gostamtanto de dar ordens?”, refletiu,ao entrar no box. “E por quenão desistem de tentar mandar

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na gente, já que as mulheres nãoobedecem?”

Pouco depois, com roupaslimpas e deixando o chuveiroainda ligado, ela saiu pela janelado banheiro, saltando sobre otelhado da lavanderia. Sabia queninguém estaria naquele lugar.De lá entraria facilmente nacozinha, onde pegaria algumalimento. Depois, iria para adespensa, de onde chegaria aotúnel.

Quase uma hora mais tarde,alguns helens e al-gharbiosbateram à porta de seu quarto

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várias vezes para chamá-la.Ouviram apenas o som da águado chuveiro batendo nasparedes de vidro do boxe.

Rio de Janeiro

TARIQ VIU UM D0S GUARDAS

pessoais de Shantel entrar noaposento dos escravos à suaprocura. Escapulira de lá assimque a vigilância nos corredoresdiminuíra. Esgueirou-se parauma escadaria, sabendo que ohomem o procuraria ali e nosaposentos da druidesa.

Era a primeira oportunidade

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que tinha de afastar-se das áreasque lhe eram permitidas. Ouviraum escravo dizer que o casarãose esvaziara, porque Cromordenara que mais soldadosfossem reforçar as muralhas,assediadas por uma coalizão deexércitos dos clãs inimigos.Estava desesperado por notícias,mas naquele momento suaprioridade era encontrar Oriana.Sabia apenas que ela estava emuma cela; desconhecia o localexato.

No casarão, servos corriam deum lado a outro, falando quem

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fora ferido e quem já morrera.Ao passar diante de janelasabertas, Tariq podia ouvir o somda batalha. Começara na noiteanterior e não cessara durantetoda a madrugada e a manhã.

Na cozinha, muniu-se de umavassoura e uns panos;encaminhou-se para a ala emque sabia existirem celas,mantendo a cabeça baixa. Haviaguardas nos andaressubterrâneos, mas nenhumpousou nele um segundo olhar.

“Essa”, pensou, irônico, “é avantagem de ser um escravo. Os

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homens livres não lhes dãoatenção alguma… Só precisodar sorte e não encontrarnenhum conhecido.”

Por sorte ou não, ninguém odeteve. Deu com quatroguerreiros almoçando numasalinha na ponta do corredor,passou por eles e viu que apenasuma cela era guardada. O vigiaparecia entediado. Parou diantedele, e disse, sem erguer o rosto:

– Mandaram limpar a cela,senhor.

O homem riu dele.– Deixa de ser estúpido.

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Ninguém entra aqui sem ordemda senhora druidesa.

Tariq deu de ombros e ergueuum pouco a voz.

– Por mim, tudo bem. Mas tuvais explicar-te com a senhora,foi ela que deu a ordem.

O homem hesitou por uminstante e olhou pela janelinha ointerior da cela. Foi o quebastou para que Tariq o atacasse.Pressionando seu pescoço contraa porta da cela com o cabo davassoura e cobrindo sua bocacom um pano, impediu quegritasse ou sacasse a espada.

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Quando ele conseguiu soltar-se,o al-gharbio já havia se apossadoda espada e a posicionara contraas costas dele. Imediatamente oguarda parou de resistir.

Os prisioneiros ouviram obarulho. Tiago e Finnath apenasergueram os olhos para a porta,mas Kassib reconhecera a vozdo líder de seu clã.

– Senhor Tariq! – chamou.Correu à janelinha e viu que o

guarda fora neutralizado.– Kassib, que bom ver-te! A

senhora Oriana está aí?– Não – respondeu o homem.

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– Eles a levaram para outroandar há alguns dias.

Desapontado, ele pressionou obrácaro.

– Abre a porta!Foi obedecido. Seu guerreiro

amarrou e amordaçou o vigia,após tirar sua túnica e entregá-laa Tariq. O érin encontrou neleainda uma adaga e a colocou nopróprio cinto. Ao ver Tariqtrocando de roupa, Tiagoretrucou.

– Mais roupas de soldadosviriam a calhar. Disfarçados,poderíamos nos unir à

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resistência. Belmira disse queeles se escondem em passagenssecretas sob as cozinhas.

– É uma boa ideia –concordou Tariq. – Alguémsabe onde está Oriana?

– A essa altura – especulou oérin – já a levaram ao templo.

– Então é para lá que eu vou– o pai das gêmeas decidiu. –Esperai aqui. Eu e meu amigoKassib vamos arrumar maistúnicas e armas…

Mas apenas Tiago ficou nacela. Finnath foi ajudar noataque aos quatro guardas na

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salinha, e logo eles voltavam, jácom as roupas trocadas e maisguerreiros amarrados quedeixaram presos na cela. O líderal-gharbio a trancou antes defalar com Tiago no corredor.

– Agora podemos ir aotemplo. Mas tu e Finnathdevem procurar Eurico. OuviShantel dizer que ele foi levadoao seu antigo quarto, e queViriato estava cuidando dele.Segui por aquele corredor, devedar nos aposentos da família, nosegundo pavimento. Seconseguirdes encontrá-lo, tentai

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levá-lo para Belmira. Ela poderáescondê-los.

E, sem esperar resposta, ele eKassib sumiram além docorredor. O érin seguiu pelocaminho que Tariq indicara.Tiago foi atrás, inseguro naindumentária de guerreiro, quemal lhe escondia a pele negra,apesar do manto. Todavia, seuspassos eram resolutos. Sabia queera com a resistência queencontraria Carol.

O PORTÃO DESABOU COM

ESTRONDO. Uma quantidade

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enorme de guerreiros iorubásentrou pela abertura, caindocomo feras sobre os brácarosque defendiam a muralha. Emoutros pontos, eles aindaconseguiam manter os sitiantesdo lado de fora, mas assim queum dos portões cedeu o ânimodos atacantes se renovou e, empoucos minutos, o terreno seencheu de guerreiros afros eindígenas. A notícia de que oshelens e os al-gharbios haviamderrotado os brácaros em SãoPaulo também infundira ânimoextra em todos.

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O contingente de João foi umdos primeiros a entrar no pátio.Seu grupo dava apoio àvanguarda, e ele afastara brácaroscom o escudo e a lança, abrindocaminho para os espadachins.Quando seu comandantemandou pararem, respirou eolhou ao redor.

O inimigo recuava. Um toquede trompa, que devia ser aordem de retirada, soou poralgum tempo em todo operímetro, e apenas os mortos eferidos permaneceram no local.

Estava tentando não se

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impressionar com o estado docampo de batalha, quando viuAkinlana penetrar o primeirocírculo da Citânia, cercado porseus guardas pessoais, xamãs,algumas mulheres. Cáitlin e Nanestavam entre elas.

– Alguma notícia do nossoamigo? – O líder consultou aiorubá, diante de todos.

Ela fez que não com a cabeça.Não obtinha conexão comTiago há algum tempo. E o reitambém não conseguia falarcom seu informante pelocelular.

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Um comandante indígenaveio encontrá-lo.

– Iwati quer saber se mudoualguma coisa nos planos.

O iorubá farejou o ar.– Não. Atacamos como

combinado. Agora é tomar asegunda muralha…

Ergueu um braço e, a essesinal, uma nova centúria deguerreiros descansados avançou.João aguardou a ordem deataque e, antes que seu grupofosse em frente, mais uma vezna retaguarda, seus olhosencontraram os de Nan, que lhe

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sorriu tocando a pedra de Oiá.Depois ela seguiu a senhora érin,que organizava o cuidado aosferidos.

– Por ali, vamos! – ouviu seucomandante dizer, e obedeceu.

Apesar de apavorado, sabiaque cada passo para dentro daCitânia o levava para mais pertodo irmão e da sobrinha. E haviadecidido que chegaria até eles,vivo.

CROM ANDAVA DE UM LADO

PARA OUTRO no terraço docasarão. Estava furioso. Ainda

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não conseguira notícias do sítioaos al-gharbios. E podia ver daliseus homens recuando para asegunda muralha. Tinha ímpetosde juntar-se a eles e irrompercontra os lacaios do atrevido reiafricano, que pareciam saberexatamente quais os pontos maisvulneráveis da Citânia…

Adoraria fazê-los sangrar, um aum.

Ergueu os olhos para o céu, aespada desembainhada. O sol jábaixava, mas a noite aindatardaria a chegar. Guardou aespada na bainha.

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“Não”, decidiu. “A hora dosacrifício se aproxima. Tereimais forças, então”.

Continuou acompanhando aação, enquanto um clamoranunciava que os atacantestentavam escalar a segundamuralha.

São Paulo

QUANDO EGEU ENCONTROU

O BILHETE que Anuk deixarano quarto, avisando quenomeava Yussef para liderar osal-gharbios até sua volta, agarota já estava no aeroporto.

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Tomara o metrô na estação SãoBento e, descendo na São Judas,pegara um táxi para Congonhas.Sua única parada fora em umcaixa eletrônico, de onde sacaraum empréstimo do cartão decrédito de Galaor. Ele estavasem tempo para checar suascontas mesmo…

Na sala de embarque, Anukesperava impaciente quechamassem seu voo. Comprara apassagem na primeira aeronave apartir naquela tarde pela PonteAérea, e calculava quanto tempolevaria até desembarcar no

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Santos Dumont e tomar um táxipara casa.

“Casa…”, refletiu, com umsorriso triste. Se as sensações queMirele lhe transmitia eram reais,sua casa no Rio se transformaraem praça de guerra, pior aindaque o palacete que deixara emSão Paulo. Mortos, feridos,paredes desabadas e vidasdestruídas.

Jogou-se numa das cadeiras,alucinada. Devia ter-selembrado de comprar umcelular. Enquanto não chegasseao Rio, não teria notícias.

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Da mãe. Do pai. De Gael…Sua única conexão com a

Citânia era mesmo a mente dairmã gêmea.

Enxugou uma lágrima, eestava pensando seriamente emachar um banheiro e trancar-senum reservado para chorar àvontade, quando ouviu a vozmetálica do alto-falante dizer:

– Senhores passageiros da PonteAérea, bem-vindos ao embarque do voocom destino ao Rio de Janeiro,aeroporto Santos Dumont…

Num salto estava de pé,abrindo caminho para o portão

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de embarque. Se dependessedela, e da magia que sentiaformigando sob sua pele, aquelaaeronave faria o voo mais rápidojamais feito entre São Paulo eRio.

Rio de Janeiro

ENTRAR NO QUARTO DE

EURICO foi mais fácil do queeles esperavam. Assim queFinnath ameaçou com a adaga ovigia da porta, o homem abriuos braços e disse, comfranqueza:

– Não é preciso me ameaçar,

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também sou da resistência.E foi abrindo a porta. Mas lá

dentro não encontraram Viriato,apenas uma jovem escrava,sentada ao lado do leito eobservando as gotas de soro apingar lentamente. O érinajoelhou-se junto à cama,colocando sua mão sobre acabeça ao doente.

– Onde está o Viriato? –indagou Tiago à moça.

Mas foi o vigia querespondeu:

– Foi levado para o templo.Vão sacrificar a senhora Oriana

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esta noite, todos sabem.– Vamos levar o coitado pra

baixo? – perguntou o pai deCarol.

– Ele piorou, esta tarde – dissea escrava, tristemente.

– Ela tem razão – concordouFinnath. – Eurico não pode serremovido. É melhor tu iresprocurar por Belmira. Terei deficar aqui… Talvez possa ajudara mantê-lo vivo.

Era verdade que a presençadas energias do érin causava umefeito salutar no velho brácaro.Ele respirou mais fundo,

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entreabriu os olhos e murmuroualgo ininteligível.

– O que ele disse? –perguntou Tiago.

– O mesmo que da últimavez. Galaor… Oriana… Viriato– a escrava respondeu.

– Ele quer ver os filhos. Seeles sobreviverem, precisam vero pai antes que… Vai, Tiago –pediu Finnath. – Vai agora. Etu, vai com ele. Encontrai aresistência.

O irmão de João assentiu e oguarda, que olhava com pena oex-líder de seu clã, suspirou.

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Logo os dois saíam e corriampara o andar de baixo.

Assim que passaram por umadas grandes janelas do casarão,ouviram os gritos.

Alguma coisa estavaacontecendo lá fora…

ERA O CLAMOR dos gritos deguerra dos brácaros: como osarqueiros posicionados namuralha pouco ou nadaatingiam os afros, protegidos porcapacetes e escudos, Cromordenara a um grandecontingente que saltasse sobre os

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homens que tentavam escalar, eeles o faziam com selvageria,atacando com espadas curtas.

A vanguarda de Akinlana tevede recuar, pois os recém-chegados no ataque agiam comosuicidas, sem parecer se importarcom os ferimentos que oslanceiros lhes causavam.

João estava entre os lanceiros.Seu grupo seguia os quetentavam derrubar o portãoprincipal da segunda muralha;enquanto alguns batiam neleusando enormes aríetes, outrosjogavam cordas para o alto dos

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muros, escalando-as com grandeperícia.

Quando os guerreiros saltavamsobre eles, espadachins iorubáscorriam a enfrentá-los emcombate direto, e era aí que oslanceiros intervinham.Impediam que seus guerreirosfossem atacados por mais de umoponente. João já haviaderrotado três, derrubando-oscom a lança e depois atacandoos homens caídos com opunhal. O escudo estava semostrando o melhor amigo quejá tivera; evitava que as espadas

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inimigas o atingissem no rostoou no peito, embora seus braçosjá estivessem cheios de cortes ehematomas.

Os brácaros, porém,continuavam aparecendo semcessar, saltando do alto dosmuros como se fossem gatos. E,entre recuos e avanços, durantemais de uma hora a batalha semostrou desfavorável aosatacantes.

Até que, de repente, umvento diferente soprou. Joãoacabava de esquivar-se de doisguerreiros e ouviu o vozeirão de

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Akinlana dizendo algo que, aprincípio, ele não entendeu.Ergueu o escudo, pois o brácaromais próximo parecia prestes aatacá-lo… mas o homem deumeia-volta e se afastou,correndo feito doido para amuralha.

Ele foi recuperar sua lança,caída ali perto, e somente entãopercebeu o que acontecia:vindos dos dois flancos,guerreiros indígenas atacavamcom tudo.

Iwati rompera a barreira debrácaros de ambos os lados da

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Citânia e vinha dar apoio aosiorubás. Quase em seguida oaríete teve sucesso, e os portõesse entreabriram. João seguiu seucomandante, que os chamavapara dentro, atrás de um novogrupo de vanguarda enviadopor Akinlana. Por isso, não viu abatalha travada não muito longedali.

Mais de cem guerreirosbrácaros surgiram, saltando decerto ponto das muralhas,prontos para combater osindígenas. Os dois grupos selançaram um contra o outro, os

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homens de Iwati portandoespadas curtas e tacapes, e osinimigos com espadas longas.

Na segunda leva de índiosestava Rudá.

Ele parou, pouco atrás dosguerreiros que duelavam, masnão levava espada ou tacape. Emvez disso, estendeu os dedos,que projetaram unhas felinas àfrente.

Voltou para trás os olhosalaranjados e fitou Gael, que oseguia de perto.

– É hora, filho.No instante seguinte, não

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havia mais um homem naqueletrecho.

A onça se projetou sobre osguerreiros brácaros e espalhouum grupo que vinha rechaçar osíndios. Depois pulou à frente,indo na direção dos portõesabertos.

Gael tentou fazer o que o pailhe dissera: não raciocinar.Aspirou o cheiro de suor doshomens, detectou o clamoragudo da batalha e, pelaprimeira vez, sentiu o chamadoda guerra. A dor foi intensa, masele a acolheu com um rosnado

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triunfante.As narinas dilatadas, os dentes

arreganhados, ele desejava estarmais perto da luta. E umasegunda onça saltou sobre oshomens, seguindo a trilha e ocheiro do pai.

Tinha sede, muita sede. Desangue.

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O

CAPÍTULO 12

Reencontros

Rio de Janeiro

UTRA VEZ, não havialuzes elétricas acesasno templo, nem o

braseiro estava aceso. Velasiluminavam os doze pilares, maiso décimo terceiro ao centro,diante do leito de pedra em quejazia Mirele. As gaiolas com os

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elementais neutralizadospermaneciam no escuro.

Pelos portões entreabertostentavam entrar sonsassustadores, além da luz datarde. Era o eco da batalha láfora, o choque das espadas, astrombetas dos comandantes e osgritos dos combatentes. Alidentro, porém, a atmosferapesada abafava os ruídosexteriores. Era como se orecinto estivesse isolado daguerra por uma membranainvisível.

Ao fundo, junto à porta oculta

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pelas cortinas da qual Orianafalara, meia dúzia de escravasaguardava, portando as ervas,roupas e utensílios que adruidesa exigira. Atrás delasestava Carol, sempre com omanto a cobrir-lhe totalmente asfeições. Seus olhos, a única partevisível, brilhavam comapreensão. Viriato lhe mandarauma última mensagemreforçando as instruções que suameia-irmã passara, porém depoissilenciara totalmente. E ela nãosabia o que pensar de seusumiço até o momento em que

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o viu adentrar o templo.Shantel aguardava os

guerreiros que arrastavamOriana. Viriato vinha logo atrásdela. Mais meia dúzia deles osseguia, além de, encerrando acomitiva, vários dos servospessoais da druidesa.

– Ao trabalho, escravo! –ordenou a druidesa a Viriato. –Leva-a ao local do sacrifício.

Submisso, ele obedeceu. Coma mão no ombro de Oriana,conduziu-a ao centro dorecinto. Fez com que seajoelhasse diante do pilar mais

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alto. Sentiu o tremor no corpodela, denunciando um medoque a filha de Eurico tentavaesconder. Mas nada disse, apenaspressionou seu ombro,esperando que ela entendesse amensagem.

“Tem confiança”, ele queriadizer. E ela compreendeu.Relaxou e ergueu o rosto.

Shantel acariciou o punhalque levava à cintura.

“O outro faria efeito maisdepressa”, pensava, contrariada.“Já estava consagrado pelosangue de nós três… mas,

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paciência, este servirá.”Depois posicionou os

guerreiros na porta e nos quatrocantos. Mandou seus servosreunirem-se às escravas paraverificar se haviam levado todosos apetrechos pedidos.Aproveitando a movimentação,Carol esgueirou-se por trás dacortina e saiu pela porta oculta,sumindo nas sombras. Sabia queestavam apenas preparando acerimônia: nada aconteceriaantes que a noite caísse e seiniciasse a fase da lua nova.

Shantel nada percebeu; estava

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interrogando um guarda.– Onde está Tariq? Deveria

ter vindo com os outrosescravos.

– Disseram que o comandanteHélio foi buscá-lo – respondeuo rapaz.

– Ótimo. Vai chamá-lo,quero-o aqui, sem demora –ordenou ela. Com um sorrisode escárnio, acrescentou: – Nãopodemos começar a sangrar avítima sem a ajuda dele.

Não percebeu que, com asaída do guerreiro para cumprirsua ordem, dois homens que

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aguardavam do lado de fora dosportões penetraram no recinto ese postaram atrás dos outrosvigias da porta. Mesmo que onotasse, elmos brácarosocultavam os rostos de Kassib eTariq. Este viu Oriana e Viriatopostados lá no centro. Desejoufazer algo na hora, mas estavaem desvantagem. Era precisoesperar uma oportunidade deagir.

“Paciência”, decidiu.“Esperaremos.”

Durante algum tempo, oúnico som que se ouviu foi o

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dos passos de Shantel na pedrapolida do chão, murmurandoencantamentos diante de cadaum dos doze pilares. O ruído dabatalha, ao longe, tornava-semais abafado pela magia quecrescia aos poucos.

Oriana nem piscava; pareciauma estátua, com a saia bordadado vestido branco espalhada aseu redor. Não tinha certeza deque o plano daria certo.

OS BRÁCAROSRECUAVAM com a chegadade mais indígenas. Embora

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muitos destes tivessem tombado,novos guerreiros entravam naluta: kamayurás, krenaks,tupinambás.

Iwati parou um instante paraverificar a situação na frente debatalha, e foi então que viuRudá. Ele havia retomado aforma humana e carregavaalguém para longe da refrega.

O líder dos clãs indígenaslimpou o suor do rosto eapurou a vista para enxergarmelhor. Não era um serhumano que seu amigocarregava.

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Era o corpo negro de umaonça.

POR TRÁS DA PORTA OCULTA

que dava no templo, numquarto vazio que saía num doscorredores do primeiro andardo casarão, Carol viu Belmiraentrar com um cesto de materialque preparara, no refúgio daresistência. A serva não pareciamuito animada.

– Pelo que Viriato disse,Oriana pediu ervas para ajudar acombater os efeitos das outras.Mas teremos de espalhar um

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pouco em cada pilar. Como estáa situação lá dentro?

– Trouxeram Oriana, e Viriatotambém. Por isso ele nãomandou mais mensagens.Aquela mulher disse que ele eTariq vão ajudar no sacrifício.Ela tem… uma adaga nova.

A velha escrava sorriu e tirou,de dentro das próprias roupas, aoutra, a original.

– A druidesa procurou estapor toda a parte. Para sortenossa, perdeu seu tempovasculhando as coisas dousurpador. Não lhe ocorreu que

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tivéssemos nos apossado dela…– Não entendo que

importância tem isso.– É simples, esta arma contém

traços do sangue da druidesa, deViriato, da menina e de Galaor.A mensagem de Viriato diziaem que Oriana acredita: que aforça do sangue do clã poderáquebrar o laço mágico. Porquefoi essa força que o gerou.

– Tomara que ela esteja certa.E as palavras rituais que eles nospassaram? Eu as decorei, mas…Será que vão funcionar?

Belmira abanou a cabeça, em

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dúvida.– Não sei, filha. Também

decorei o encantamento, e sósaberemos quando tentarmos.Isso, se tivermos a oportunidade.Quantos guardas há no templo?

– Contei uns doze, e outrotanto de escravos. São muitospara enfrentarmos.

– Teremos a ajuda de Viriato.Mas Carol não tinha tanta

certeza. Longe de Shantel, elelhe parecera livre. Mas juntodela… Não acreditava que elefaria algo contra a mulher que omanipulara a vida inteira.

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Belmira pareceu concluir omesmo, pelo olhar que lhelançou. Então, disse:

– Não temos mais com quemcontar. Nossos homens foramsabotar as muralhas, para ajudara entrada dos clãs. Melhor euficar no templo e buscar umabrecha para espalhar as ervas.Tu, volta ao refúgio, é precisocobrir as tatuagens dos nossosguerreiros com tinta vermelha.Foi a forma que achamos paramarcar quem é da resistência.Vai.

E Belmira passou pela porta,

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esperando o momento para sairde trás das cortinas e posicionar-se junto às escravas, no fundodo salão. Não podia ser vista.

Carol desceu as escadarias,sentindo-se dividida. Teriapreferido ficar no templo,porém temia ver o queaconteceria.

Temia especialmente ver oque Viriato faria…

ANUK DORMIRA QUASE UMA

HORA. Ao acordar, viu a baía deGuanabara, pela janela do avião.O sol logo ia se pôr. Segurou a

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respiração enquanto a aeronavefazia a volta e descia, o narizvoltado para o Cristo Redentor.Um passageiro atrás de suapoltrona cantarolou o Samba doavião, de Tom Jobim, emboranão estivessem descendo noGaleão.

Ela soltou a fivela do cinto desegurança, agarrou a bolsa eatravessou o corredor,ignorando os olhares derepreensão dos comissários debordo. Assim que a porta daaeronave foi liberada, saltou notúnel e disparou para o

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desembarque.Apenas uma parte mínima de

seu cérebro processava oslugares conhecidos em quepisava, no aeroporto SantosDumont. Todos os seus sentidosestavam concentrados emMirele, sobre a qual, agora,percebia mãos colocando umvéu negro.

Nunca soube como saiu doaeroporto, entrou num táxi emandou tocar para Santa Teresa.Mas sabia que a irmã se sentiasufocada, e sua angústiacomeçava a invadi-la.

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Começou a xingar a gêmeametodicamente, enquanto otaxista manobrava entre otráfego congestionado do centroda Cidade Maravilhosa.

GAEL ABRIU OS OLHOS COM

RELUTÂNCIA. As pálpebrasdoíam. Uma dor que logoperdeu a importância, pois àprimeira tentativa que fez derespirar fundo, todo o restodoeu.

A cabeça latejava, o peito ardiaà medida que o ar entrava, enão havia um centímetro

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quadrado de pele que nãodemonstrasse hipersensibilidade.

A voz de Rudá se fez ouvirem meio a um zumbido queencobria sua audição. Comesforço, o adolescente fitou opai e leu seus lábios, enquantoos ouvidos não funcionavam.

– Precisa relaxar – dizia ele. –Logo você vai se sentir melhor.

Era verdade. Mais algunsminutos e ele pôde sentar-se.Via e ouvia com clareza, agora.As dores no corpo estavam lá;contudo, podia relevar a maioriadelas. Estava sujo de terra e

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sangue, e suas armas estavam aoseu lado. Percebeu de súbito ofragor da batalha, quecontinuava, não muito distante.

– O que…? – conseguiumurmurar, um rosnado nagarganta. Pigarreou. A vozfalhava.

– Do que você se lembra?Gael franziu as sobrancelhas,

tentando espantar o latejar nastêmporas.

– Lembro de seguir você…de entrar na confusão. E ataqueios brácaros. Não foi?… Mas sãosó sensações. Nem me lembro

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de ter sacado uma arma!A bainha da espada e o tacape

pareciam estar intocados.– Nós nem sempre precisamos

de espada pra lutar. Temosgarras e dentes.

Pareceu que uma espécie dechoque elétrico atingia o garoto.Ele olhou para as mãos,distendeu as unhas felinas. Haviamanchas vermelhas nelas. Efiapos de alguma coisa que eledesconfiou ser carne. De gente.Passou a língua pelos dentes esentiu o gosto de sangue. Seuestômago começou a dar voltas.

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Lembranças esparsasalcançaram sua mente. Rostosapavorados, corpos caídos.

– Quanto… quanto tempo eufiquei…?

– Umas duas horas. É normalficar confuso, filho. Tem jaguaraque esquece tudo que acontecena primeira transformação. Vocêteve sorte. Acho que aquela lutacom o botocudo ajudou apreparar seu corpo. Quase deveter virado onça, daquela vez.

Gael fez força para levantar-se,apesar da dor. Um dosguerreiros de Akinlana vinha

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correndo na direção deles.– Tem mensagem do rei? –

perguntou Rudá.– Meu senhor agradece pelo

que fizeram – disse o homem. –E pede que se juntem a um dosgrupos da vanguarda iorubá.Vamos atacar a terceira muralhaà noite.

– Obedeceremos – o jaguaraprometeu.

Deu ao filho um cantil. Eletomou a água com sofreguidão,espantado diante da própriasede. O enjoo passara. Depoisde saciar-se, fitou o pai.

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– Por que o mensageiro disseque Akinlana agradecia o que agente fez?

– Porque nós dois sozinhosespalhamos mais de sessentaguerreiros.

Um gemido escapou dagarganta rouca do adolescente.Devia ter gritado – miado? –por muito tempo, para terganhado aquela rouquidão.Protestou.

– Eu não me lembro de quasenada! Sei que ataquei, feri sei láquantos homens, e não consigolembrar! Como foi que eu perdi

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os sentidos e acordei aqui?– Você levou uma bordoada

na cabeça – disse o pai.O adolescente levou a mão à

nuca. Encontrou um galodolorido, bem próximo àtatuagem em forma de onda.Seria possível que…? Rudá fezque sim com a cabeça.

– A pancada te fez desmaiar,mas essa coisa aí te protegeu. Eeu te carreguei pra cá antes quete matassem. – Ele tomoualgum fôlego, antes decontinuar. – Por isso expliqueique era perigoso você entrar na

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armados apareceram bem à suafrente.

– Vós! – chamou um deles. –Aonde ides?

O homem da resistência sacoua espada e os enfrentou. Tiagodeu meia-volta e saiu correndo,em busca de um atalho que olevasse para longe da briga. Noentanto, não conhecia o casarãoe foi logo parar num beco semsaída. Com outro brácaro à suafrente.

– Parado! – ordenou ohomem, encostando-lhe umaespada longa no pescoço.

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Ele estacou. Não tinha amenor vontade de ser degolado.

– Tu vens comigo, humano –declarou o guerreiro, agarrando-o pela gola e arrastando-o parauma escadaria que despontavainesperadamente da parte semsaída do beco.

“Bom”, pensou ele, “pelomenos vou sair do labirinto.”

OS GUERREIROS AFROSESTAVAM AGITADOS,

colocando-se em formação, masAnuk não prestava atenção.Desgrudou de Gael somente

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depois de vários minutos.Os dois se fitaram em silêncio.

Ele viu as marcas de batalha, osarranhões, o curativo em seuombro esquerdo, a naturalidadecom que ela agora portava abainha com a espada curta. Elaviu marcas de luta no rosto enos braços dele, sangue nacamiseta rasgada e a diferençaem seu rosto: os olhos e asorelhas felinas pareciam maiores.

Em poucos dias, tudo haviamudado.

Eles não eram mais osadolescentes que tinham se

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beijado no esconderijo daárvore. Ambos tinham encaradoa morte em batalha. Seriapossível voltar ao que eramantes, depois de terem passadopor tudo isso?

Anuk desejou falar sobre oque acontecera no palacete deTariq, mas não conseguiu dizeruma palavra. Gael também quiscontar sobre sua transformação,e não teve coragem.

– Filho – Rudá se interpôsentre eles –, também temos deentrar em formação. A meninapode ficar com os xamãs. Eles

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vão seguir Akinlana logo que agente abrir caminho.

O garoto baixou o olhar e seafastou com o pai. Anuk tinhavontade de protestar, gritar,chorar, mas sabia que nãoadiantaria. Gael era umguerreiro, agora. Tinha de lutar.

“E eu também”, refletiu, comamargura.

Achou que a sugestão doíndio era boa. Reconheceu osxamãs iorubás e Nan, poucoatrás das bandeiras, e foi para lá.Eles entrariam quando operímetro estivesse seguro. E a

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adolescente impulsiva, que trêsdias atrás se recusara a ficar paratrás, decidiu que era melhoresperar. Estava descobrindo queninguém atravessa uma guerrasem mudar profundamente.

CAROL SE INQUIETAVA, com ospensamentos no ambiente dotemplo iluminado por velas.Queria voltar lá, e não ousava.Estivera na última hora pintandoas tatuagens brácaras da taça comtinta vermelha, imaginando se osubterfúgio adiantaria algumacoisa. Ninguém havia

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comunicado aquilo aos atacantese, se eles não soubessem dadiferença, matariam os homensda resistência como matariam osleais a Crom, quandoinvadissem.

Nuno, um dos capitães queconhecia, adentrou a sala comum sorriso.

– Meus homens capturaramalguém que pode te interessar…

E, diante da surpresa dajovem, arrastou Tiago para lá.

– Pai! – gritou ela, saltandopara abraçá-lo e quasederrubando um pote de tinta.

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Ele nem conseguiu falar.Acreditara que o brácaro olevava de volta a uma cela…

O capitão, agora rindo comgosto, mostrou a tatuagempintada de vermelho.

– Esta é a marca da resistência,humano! Aprende com tuafilha, que é uma de nós. Aliás,garota, preciso de uma espadaque corte. Esta aqui não servenem para passar manteiga.

Carol largou o pai, enxugandoos olhos, e foi pegar uma armapara o homem.

– Acabamos de receber

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algumas do ferreiro. Não estoudando conta de armar todos!

O homem pegou a novaespada e sumiu porta afora,satisfeito. Tiago espiava o lugar,conferindo cada detalhe, e nãoacreditava no que via. Sua filhaparecia ter trabalhado numarsenal medieval a vida toda…

Mais alguns homens entrarame ela foi pegar a tinta paramarcar suas tatuagens. Quandoeles saíram, Tiago percebeu queela o olhava com espanto.

– Pai. Isso aí no seu peito…Ele olhou para a pedra de Oiá.

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Estava brilhando, afinal!– Carol, onde posso conseguir

um espelho d’água?Seu pai tentando uma

conexão mágica… Foi a vez deCarol duvidar do que via.

SOAVAM TROVOADAS

DISTANTES. Oloú pousou osolhos vidrados em Nan.

– Tem certeza? – perguntou aiorubá.

– Nunca duvido de uma visãomandada por Iansã, filha. É issomesmo.

Nan fitou Anuk, com quem

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estivera conversando até que osxamãs as convocaram. Diziamque a orixá tinha um recadoque precisava ser passado ao povodentro da muralha.

– Os brácaros… ? –murmurou a garota. – O que épara dizer a eles?

Um trovão, desta vez maispróximo, encheu os ouvidos detodos. Nan estremeceu.

– Oiá está próxima. O que é,Oloú?

– A Senhora do Trovão dizque isso é muito importante.Fala pra eles que só tem uma

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resposta: precisa reunir o que háquinze anos foi separado.

As mulheres olharam para ovelho iorubá e viram seus olhosvoltarem ao normal.

– O que quer dizer isso, meupai? – questionou Nan.

Ele sacudiu a cabeça,indicando que não sabia.

Anuk raciocinavafuriosamente. Fazia quinze anosque Gael e a mãe tinham sidoseparados; seria isso? Ou aquilose referia à separação entreOriana e Tariq? Falou:

– Tudo bem, essa é a resposta,

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precisamos contar para o povodentro da muralha. Mas quepovo? Eurico? Oriana? Viriato?Meu pai?… E se essa é aresposta, qual é a pergunta?!

– Os orixás são como todos osoráculos – suspirou Nan. –Falam por enigmas…

Pensativa, ela fitou o céucheio de estrelas, como seesperasse que novos trovõessoassem. Anuk tomou um sustoe deu um passo para trás.

– Nan, tem mais um enigmaaqui. O que é isso?!

A pedra pendurada no peito

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da iorubá brilhava comintensidade. Ela pareceu aliviadaao ver aquilo… Outro xamã,perto, viu e foi derramandoágua de um cantil numa vasilhade madeira escavada, decoradacom símbolos dos orixás.Entregou a ela.

Anuk espiou por cima de seuombro, enquanto Nan seajoelhava para olhar no espelhode águas, ambas tentandoacalmar as batidas loucas de seuscorações.

TIAGO MIROU OS OLHOS DE

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NAN; eles diziam muito, sempronunciar palavra alguma.Carol teve de cutucar o pai paraque ele finalmente se decidisse afalar. Então ele contou sobre amarca vermelha na taça, quedistinguiria os aliados dos quenão o eram, pedindo que aquelainformação fosse passada aAkinlana.

Nan narrou a visão de Oloú eo recado que a orixá mandara.Tiago não entendeu nada, masrepassou a frase a Carol.Quando se voltou para a vasilhacom água que servira de

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espelho, não viu nada. O rostoda iorubá sumira e a pedra deOiá não brilhava mais.

– Você entendeu que raio derecado é esse, filha?

Carol fez que não. Mas disse:– Belmira vai saber. Tenho de

ir falar com ela, no templo.– Melhor você ficar –

retrucou Tiago. – Tem soldadosdemais pelo casarão. Eu vou.

– Não, pai. Você não vaiachar o caminho. Tenho de ir, ejá. Olha, você pode ajudar coma pintura dos guerreiros quechegarem. Agora que

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mandamos a mensagem praAkinlana, quanto mais gentetiver a marca vermelha, menosperigo nós corremos.

Ela já estava quase na portaquando ele a alcançou.

– Carol… fica com isto.Retirando do peito o cordão

com a pedra de Iansã, Tiago apôs no pescoço da filha.

– Iansã me protegeu até agora.Deve proteger você. Agora, vai.

Comovida, Carol tocou apedra vermelha e saiu correndo.Pretendia subir para a cozinha,tomar a passagem para o

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primeiro andar e buscar oquarto com a entrada oculta queela e Belmira haviam usado.Tinha de chegar ao templo omais depressa possível.

ANKILANA OUVIU COM

ATENÇÃO o que Nan e Anuklhe diziam.

– Bem-pensado – comentou.– E é bom saber que teremosapoio lá dentro.

Em poucos minutos, ainformação se espalhava: quandoentrassem no círculo interior daCitânia, não deviam engajar em

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batalha os brácaros com marcasvermelhas na tatuagem. Esseseram aliados.

O rei olhou para o céu, comum meio sorriso. Como que aresponder ao que ele estavapensando, a trovoada ao longeretornou.

– Não é só Iansã que nosajuda. Muitos deuses estãointerferindo.

Anuk pegou-se invocando aajuda de Cal-leach. Depoisolhou ao redor e viu osguerreiros, tanto afros quantoíndios, curvarem as cabeças em

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sinal de respeito a seusrespectivos deuses. Todos,menos Rudá. O pai de Gaelcontemplava as estrelas e tinhauma expressão estranha nosolhos. Deixou a companhia doslíderes e, apressado, foi emdireção aos contingentes queaguardavam. A garota o ouviumurmurar, ao afastar-se:

– É isso, os deuses… agora eusei o que fazer.

Ela não pôde evitar umarrepio. Não estava gostandonada da expressão do jaguara.

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O

CAPÍTULO 14

A última muralha

REI IORUBÁ ergueu amão direita.Foi o que bastou para

que as hostes avançassem. Nãohouve gritos de guerra. Não

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houve clarins. Não houvealarde, a não ser o tremor que amarcha dos guerreiros imprimiuao chão da Citânia. Como peçasnum tabuleiro, centúriascomeçaram a se movimentar.Os grupos de vanguarda iaminiciar a escalada da muralha,enquanto os que empurravamcarros com aríetes se dirigiampara o portão principal e para osdois secundários.

Cáitlin trocou um olhar comAkinlana e indicou o céu.

Ele sacudiu a cabeça. Sabiaque precisava chegar ao templo

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antes da meia-noite. Mas sabiatambém que numa guerra nadaé previsível. Talvezconseguissem. Talvez não.

De qualquer forma, o últimoataque começara.

ANUK SEGUIU RUDÁ e viu, delonge, ele discutir com Gael.Não sabia o que diziam, masdevia ser algo tremendo, pois ogaroto parecia furioso com opai. Este o ignorou e se afastoupara perto de um muro. Pareciabuscar um pouco de silênciopara se concentrar.

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– O que foi? – perguntou aGael.

A voz do adolescente sooumuito zangada.

– Uma loucura! Lembraquando eu quis ir pra matacontatar Anhangá, pra combatero Crom? Pois meu pai disse queeu estava certo em tentar, masque só tem um deus capaz deenfrentar aquele celtasanguinário. Nhanderuvuçu.

– Nham do quê?!– O grande deus indígena.

Nhanderuvuçu. É muitopoderoso.

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Daquela vez, Anuk estava deacordo. Aquilo era loucura,completa, definitiva.

– Ele acha que os deusesperós, indígenas e afros seuniram pra acabar com ainterferência do Crom nestemundo. E que, só por isso,consegue chamar um deles…

– Vem, vamos falar com teupai. – Ela puxou o garoto parajunto de Rudá.

– Ele vem – disse o índio.– Ficaste louco? – vociferou

Anuk. – Não se invoca um deussem mais nem menos!

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– E não dá tempo agora, pai –acrescentou Gael. – Akinlanacomeçou o ataque. Nossogrupo é o próximo a seguir, ocapitão mandou todo mundoficar a postos.

– Ele vem – repetiu o jaguara.– Como? – ela soltou um riso

nervoso. – Tu não és xamã,pajé, mago. Não fizeste nenhumtipo de ritual! A magia nãofunciona assim. Como vais atrairo tal deus?!

Com toda a simplicidade domundo, o índio respondeu:

– Eu pedi. E ele vem.

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ERAM QUASE ONZE HORAS, eShantel acompanhava Crompelos corredores. Seus guardaspessoais os seguiam; algunspostavam-se em pontosestratégicos, impedindo o acessoao templo. A druidesa nãopermitiria que ninguéminterrompesse seu ritual. Já tinhaperdido tempo demaisprocurando por Tariq, edecidira que matar Oriana tinhaprecedência sobre tudo o mais;mais tarde ela encontraria o al-gharbio e o faria pagar por ter

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fugido.No primeiro andar, Carol foi

surpreendida pela presença dosguerreiros. Não conseguiriachegar ao cômodo que dava naporta oculta sem passar porvários deles. Enrolara-se maisainda no manto que escondiasua pele negra e enfiara-se numquartinho próximo, à espera deque a comitiva passasse e osguardas liberassem o caminho.Todavia, esperou em vão.Mesmo depois que a druidesa eseu deus tomaram o corredorque dava no templo, a guarda

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permanecia onde fora postada.Ela não passaria por ali.

“Pensa, Carolina”, forçou amemória. “Só tem duas entradasnaquele lugar. As portas, poronde Shantel vai entrar, e aporta escondida atrás da cortina.Que dá naquele quarto vazio.Que fica nesse corredor cheiode guardas…”

Então uma ideia lhe ocorreu.O quarto atrás da cortina tinhajanelas que davam para umterraço. Se fosse ao terraço eentrasse por uma delas, não teriade encarar os guardas!

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No fundo do quartinho emque se escondera havia umapequena janela. Correu até lá eabriu-a. Sim, lá estava o terraço.Uma escada subia do pátio parao casarão. Viu vários soldados,mas eles só tinham olhos para aterceira muralha.

“Tenho de tentar”, decidiu.Escancarou a janelinha. Do

lado de fora, sairia num telhadoantes de conseguir descer aopátio. Uma boa volta, masmelhor que enfrentar guerreirosnos corredores.

Apertou a pedra de Oiá que o

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pai lhe dera, pedindo proteçãoaos orixás, e pulou.

FOI DA GRANDE JANELA, nocorredor final para o templo,que eles ouviram os trovões. E oestrondo. Crom rugiu de raiva ecorreu para a janela; Shantelsentiu uma alteração dascorrentes de magia. Eles estavamatacando, mesmo à noite.

– Tu, manda mais trêsdestacamentos aos portões! –ordenou o deus celta a umguarda.

Já ia desembainhando a espada

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para acompanhá-lo, mas adruidesa o segurou.

– Meu senhor, são onze horas.Em quinze minutos entra a luanova, e temos de iniciar o ritualagora se quisermos derramarsangue à meia-noite.

– Estamos sob ataque! –retrucou ele. – Vou liderarmeus guerreiros.

Com suavidade, ela o fezbaixar a espada.

– Deixa que teus capitãessegurem a ofensiva. O sangue dafilha de Eurico te dará muitopoder, e então poderás sair e

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esmagá-los! Mas temos de entrarno templo, agora.

Relutante, Crom Cruachconcordou. Embainhou aespada e entrou atrás de suadruidesa pelas grandes portasentalhadas, ladeadas lá dentropor dois guerreiros.

Nem reparou que, sob oselmos brácaros, ambos eram al-gharbios…

– COMPANHIA, EM FORMA! –chamou um capitão iorubá.

– É o nosso grupo, temos deir, pai! – disse Gael, aflito, a

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Rudá.A seu lado, Anuk viu os

homens marcharem rumo aoportão central, que já devia estarquase cedendo, a julgar pelobarulho que os aríetes faziam aobater nele.

Rudá murmurou algoininteligível em língua indígena.Levantou-se lentamente. E,quando viram seus olhos, osdois adolescentes recuaraminvoluntariamente.

O jaguara parecia mais alto.Atrás de suas íris havia uma luzestranha, que não pertencia a

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este mundo. Não deu atenção aeles, apenas arrancou o tacape dacinta e o manto africano que ocingia, jogando-os no chão.Depois seguiu rapidamente atrásda companhia que avançava.

– Tenho de ir também –sussurrou Gael.

Anuk nada fez para detê-lo,de tão espantada. Aquele nãoera mais Rudá.

Nhanderuvuçu estava entreeles.

***

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OSILÊNCIO ERA TOTAL NO TEMPLO.

Todos estavamconscientes doestrondo que faziam os

aríetes tentando derrubar osportões, do clamor doscombatentes, do som de metalencontrando metal ao redor damuralha. Os guardas apertaramo punho das espadas, a maioriados escravos tremia de medo.

Espiei a entrada do templo.Meus olhos encontraram os deShantel, que avançava ao ladode Galaor, o hospedeiro dodeus.

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Os elementais, nas gaiolas,agitaram-se ao vê-los.

Ela sorriu para mim, com atranquilidade de quem olha paraalgo que lhe pertence. Ao notarBelmira junto aos escravos,chamou-a com um gesto. Tinhainstruções para lhe dar.

Voltei meu olhar para Oriana,imóvel, em seu vestido branco.Ela parecia entorpecida pelalonga imobilidade, de joelhosdiante do décimo terceiro pilar;mal ouvia o som da guerra forado casarão. Não duvidei de quesua mente trabalhava sem cessar,

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O

repetindo as palavras da fórmulaque me ensinara enquanto eu aajudava a se arrumar para oritual. E que eu repassara numamensagem de texto a Carol, quea lera para Belmira.

Um elo.Era o que precisávamos ser

para o plano dar certo.

***

PRIMEIRO PORTÃOA CEDER FOI A

OESTE. Menosguarnecido de homens, logo

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esfacelou-se para dar passagemao destacamento liderado porIwati. De lá, grupos de africanosespecialmente instruídoscorreram rumo ao portãocentral e ao do leste, para ajudara sabotar a defesa e abri-lostambém para os invasores. Oskamayurás e iorubás logoperceberam alguns guerreiroscom a taça pintada emvermelho; estes iam se voltandocontra os companheiros e osdesarmavam, ajudando nainvestida.

Akinlana ainda aguardava para

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entrar pelo portão principal, masa centúria de que faziam parteRudá e Gael foi desviada para olado oeste, sendo o segundogrupo a invadir o pátio daCitânia. Anuk, que desistira deesperar junto com Nan e osxamãs, seguira Gael sem queeste a visse. Desembainhara aespada e se enrolara no mantoque Rudá descartara, para aomenos de longe ostentar a cordos guerreiros afros.

Dois contingentes brácarosvieram enfrentá-los, e o pátiofoi tomado por combates a

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espada, borduna, lanças curtas.Havia poucos homens daresistência, o que a garotanotou. Via a taça tatuada nosguerreiros, mas sem a marcavermelha.

Ela correu na direção docasarão de seu avô. Os brácarosa evitavam, talvez concentrandosua investida em homens maisaltos e, portanto, maisameaçadores. Mas, a certa altura,dois a atacaram de uma vez, eela quase não conseguiudefender-se de seus golpes. Aocontrário do que fizera no

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palacete, passou a usar a espadanas sequências al-gharbias, queseus oponentes não esperavam.Conseguiu ferir um no braço,mas o segundo veio para cimadela com sanha… E foi entãoque tudo pareceu estacar.

Um rosnado inumano soou,bem perto dali. O guerreiro quea ameaçava voltou o olhar paratrás e caiu, ferido na perna pelaespada de Gael. Ela mal tevetempo de registrar que o garotoaparecera a seu lado, pois umaclareira se abrira e, no centrodela, ambos viram Rudá-que-

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não-era-Rudá espalhar umadúzia de guerreiros, usandoapenas as mãos!

Anuk percebeu mais brácarosvindo por trás, espadas empunho, bem na sua direção.Gael rosnou e a empurrou paraa frente.

– Fica longe de mim. Vai procasarão, agora! Vou manter essesaí ocupados.

– Mas Gael, tu…Ele cravou nela olhos de

amarelo-dourado intenso.Alguma coisa ia acontecer…

– Vai!!! – rosnou.

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Ela não ousou desobedecer.Correu em busca da escadariasecundária que dava numterraço do casarão. Conhecia apassagem oculta para o templo.Quase lá, voltou-se…

E viu Gael pular sobre osatacantes. No ar, sua pele setornou pelo, seu corpoaumentou de tamanho, e a onçanegra caiu com as garras eriçadasem cima dos homens.

CAROL HAVIA ACABADO DE

DESCER do telhadinho e iacorrer para a escada, tentando

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não olhar para a batalhasangrenta que se travava nopátio. Percebeu, então, maisalguém ziquezagueando nadireção do terraço. Parou,surpresa. Era uma das gêmeas!

De repente, a mensagem queNan dera a Tiago, e que Carolia tentar passar a Belmira, fezsentido. Assim que acompreensão atingiu sua mente,olhou, espantada, para a pedrade Iansã em seu peito. Elabrilhava…

“Preciso ir!”, disse a si mesma,tentando não se deixar fascinar

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nem pela pedra, nem pela visãoda batalha. Porém a visão de umvulto, no meio dos guerreiros,não a deixou prosseguir.

Firmou a vista. Não seenganara: era João, seu tio,engajando em combate umbrácaro assustador! Ambosportavam lanças curtas eescudos, e ela não conseguiarespirar, pensando que aqueleera o irmão de seu pai,transformado num herói defilmes de ação… Como eleaprendera a lutar assim, em tãopouco tempo?

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Carol soltou um grito ao verque o oponente o derrubava.Mas, antes que este pudessecravar a lança em João, foiinterrompido. Uma onça negrasaltara diante do homem,arremessando-o para longe comuma única patada.

João não ouviu seu grito, nemficou para agradecer à onça.Levantou-se e foi correndo parao centro do pátio, onde umcapitão iorubá reunia seussoldados.

Mas o animal a viu. E andouem sua direção, vagarosamente.

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Carol, paralisada, apertou oamuleto vermelho e pediuproteção a Iansã. Na mesmahora a onça parou e virou acabeça, como se estivesse curiosaao vê-la. Depois, com ummiado – um miado! – foi paraoutro lado. Em dois saltos,estava de novo no meio dabatalha.

A filha de Tiago quase caiusentada no chão, ali mesmo. Osolhos… os olhos amarelos daonça… Ela conhecia aqueleolhar.

A pedra, ainda apertada em

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sua mão, brilhou de novo. Elarespirou fundo.

“Iansã. Mensagem. Belmira.Tô indo!…”

Deu meia-volta e correu paraa escadaria que dava no terraço.

TARIQ NÃO AGUENTAVA MAIS

ficar imóvel, em seu disfarce deguarda nas portas do templo.Olhou para um dos guerreirosbrácaros, que tinha um relógiono pulso.

Faltavam quinze minutos paraa meia-noite.

De onde estava, via Oriana

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ajoelhada e Shantel junto dela.Belmira tinha sido mandada a

cada um dos pilares, paracolocar carvões acesos quefaziam fumegar ervas mágicas. Adruidesa se postara junto àvítima, e Crom parara váriospassos atrás dela. Quando aescrava voltou para o centro dospilares, pegou, de uma jovemserva, um manto negro; Viriatotomou outro manto igual.Pareciam feitos do mesmotecido com o qual Mirele foracoberta, um tipo de véu.Belmira colocou o manto sobre

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os ombros da druidesa, e ele pôso seu sobre os ombros deCrom. O celta deu um passo àfrente.

Nesse momento, algo mudou.As luzes das velas bruxulearam,como se um sopro invisível asincomodasse. Tariq viuclaramente as linhas luminosasde magia que percorriam o ar,ligando um pilar a outro.Shantel começou a cantarbaixinho, mas ele não distinguiaas palavras. Com um gesto, elachamou Viriato, que seaproximou.

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Obedecendo a uma ordemnão dita, Oriana baixou acabeça. A druidesa desceu aadaga sobre os ombros que ovestido deixava à mostra, e fezuma profunda incisão em cadaum.

Shantel sorria, feliz. Forçasmágicas começaram a circularentre Oriana, Mirele e Crom. Osangue brácaro brotava ecomeçava a realimentar as forçasdo deus usurpador…

Tariq gemeu baixinho, masnão se moveu. Viriato fez umgesto, como quem vai protestar,

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mas o sorriso de Shantel teve oefeito de detê-lo. Ficou aliparado, vendo o sangue dameia-irmã brotar e escorrer emfios longos, manchando o tecidobranco bordado de ouro epedrarias.

O BAIRRO DE SANTA TERESA

experimentou um tremor deterra quando a última muralhafoi vencida e o portão central daCitânia de Brácara caiu. No diaseguinte, geólogos dariamentrevistas tentando explicarcientificamente o que

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acontecera. Sem sucesso.Naquela noite, porém, os

iorubás sabiam que a forçaresponsável fora a dos aríetes,combinada à ação dos homensda resistência, que haviamretirado algumas das trancas queimpediam a abertura, enquantoos guerreiros de Iwati atacavam.Assim que Akinlana entrou naCitânia, os exércitos brácaros seinflamaram na tentativa dedefender o território, masnenhum de seus capitães poderiaimpedir os índios e afros deentrarem.

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O rei iorubá andou a passoslargos pelo pátio no círculointerior, e analisou o casarão deEurico à distância. Voltou-separa um de seus guarda-costas eindagou que horas eram.

– Passam cinco minutos dameia-noite – foi a resposta.

Akinlana franziu assobrancelhas.

Estava atrasado. Nãoconseguiria chegar a tempo deimpedir o tal ritual.

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T

CAPÍTULO 15

Sangue e carne

ARIQ NÃO AGUENTOU

MAIS quando viu obrilho do punhal na

mão erguida de Shantel:avançou correndo para o centrodo templo. Kassib seguiu-o; os

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guardas brácaros pareciamincapazes de impedi-los,hipnotizados pela visão dosangue manchando o vestidobranco.

De súbito, as pesadas portasentalhadas se abriramcompletamente e um homemsingular saltou para dentro.Todos se voltaram para aentrada, e viram um índioenorme, desarmado, mas comos olhos iluminados.

Atrás dele, um bando deguerreiros indígenas entroutambém.

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Shantel deu um pulo,assustada.

– Rudá… – murmurouOriana, após voltar o rosto paratrás. – Tu vieste…

Crom rosnou. O índioavançava diretamente para ele.

Retomando o autodomínio, adruidesa agarrou os cabelos daprima com selvageria e ergueude novo a adaga. Não iapermitir que a interrompessem.

Oriana não lutou. Se morresse,sabia que o jaguara a vingaria.

OS DOIS QUASE GIGANTES se

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olharam por um segundo.Rudá-Nhanderuvuçu apertouos punhos. Galaor-Crom viu osolhos dele brilharem emamarelo, e os seus, vermelhos,faiscaram. Soltou o cinturão quesustentava a bainha da espada.

Enfim, um oponente digno deseu poder.

Rudá avançou contra ele, e osdois se engalfinharam numa lutacorpo a corpo que fez o temploestremecer.

DOIS HOMENS

POSICIONARAM-SE ao lado de

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Shantel, tentando detê-la. Elareconheceu, por trás do elmode um deles, o rosto de Tariq.Sorriu, deliciada.

– Que bom que vieste. Assimpoderás ver tua queridinhamorrer…

Na mesma hora, algum tipode energia mágica escura seacumulou em torno dela,repelindo tanto Tariq quantoKassib. E os guardas brácarospareceram vencer a imobilidade,pois vários se dirigiram para lá,prontos a impedir os al-gharbios.

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E

A druidesa voltou a erguer opunhal sobre o pescoço deOriana.

***

RA AGORA ou nunca.Oriana ia morrer.E eu precisava romper

minha ligação doentia comShantel.

Tirei o broche antimagia domeu bolso e, sem pensar, semsentir qualquer emoção,afundei-o no peito da druidesa.

Ela se curvou, uivando de dor,

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a magia ao seu redorenfraquecendo de súbito. Eu atraía. E aquilo doeu muito maisem mim do que nela…

Rápido, tirei-lhe o punhal dasmãos e, após prendê-la em meusbraços, afastei-a de minha irmã.

– Tu me deste tua palavra,maldito… – gemeu Shantel,tomada pelo ódio.

Ela já devia saber que minhapalavra não tem valor. Quantasvezes eu não deixara de cumpriro que prometera?

Tariq acabava de usar a espadapara cortar a corda que amarrava

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O

os pulsos de Oriana. Depois sevoltou para ajudar Kassib, quelutava sozinho contra umpunhado de guardas. Adiante, osíndios atacavam os demaisbrácaros.

E Crom e Rudá travavamuma luta de titãs.

***

S ESCRAVOS NEM SE

MEXIAM, no fundodo templo. Apenas

Belmira permanecera próxima aOriana e Shantel, aliviada ao ver

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que Viriato reagia, afinal.Um urro soou do outro lado

do recinto.Crom derrubara Rudá e

apertava seu pescoço com asduas mãos.

Lutando contra o medo, avelha mulher correu para a mesade pedra em que Mirele dormiaseu sono enfeitiçado. Arrancoufora o tecido negro que acobria.

– Senhora! Depressa! –chamou.

Os ferimentos nos ombros deOriana sangravam, mas isso não

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parecia afetá-la.– A adaga de Shantel… –

murmurou, ao se aproximar damesa.

– Aqui – respondeu Belmira,tirando a arma das vestes. Oobjeto tinha um brilhoamarelado.

A mãe de Gael tomou a armae manchou-a com o própriosangue. Ergueu-a e viu a lâminabrilhar magicamente, agora numtom alaranjado.

– O sangue do clã se manifesta– disse. – Sangue de Shantel,Viriato, Galaor, Mirele, o meu.

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Tu colocaste as ervas junto aospilares?

– Em cada um deles – assentiua serva –, quando ela memandou levar carvões em brasaspara queimá-las. A essa altura, asnossas vão anular a ação dasdela…

– Então resta dizer oencantamento. Sinto que aindafalta alguma coisa, mas temos detentar.

Foi bem nesse momento quea cortina ao fundo da sala seagitou e um vulto entrou:Carol. A filha de Tiago não

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perdeu tempo. Desembaraçou-se do manto e correu para asduas mulheres junto ao corpoda garota.

– Escutem! – disse, quase semfôlego. – Os orixás mandaramdizer… que só tem umaresposta… precisa reunir o que fazquinze anos foi separado!

Oriana prendeu a respiração.Sim! Era isso. Estava certa aoconcluir que o sangue de todosos descendentes de Eurico deviaunir-se na adaga ritual, paraneutralizar o que a druidesaconseguira. Isso desfaria o elo de

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sangue anterior e devolveria osopro vital de Mirele, cortandoa conexão entre Crom e ocorpo de Galaor.

O que faltava era superar oelemento carne. Unir o que foraseparado há quinze anos. As criançasgeradas pelo sangue e a carne dadruidesa: as gêmeas!

– Precisamos da senhoraAnuk! – gemeu Belmira.

***

INDA PRISIONEIRA EM MEUS

BRAÇOS, Shantel se colou a mim.

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ASeus lábios quasetocaram meus ouvidos.– Achas mesmo que um

simples broche como este… –sussurrou, sedutora – … podedeter uma druidesa poderosacomo eu?

Com uma facilidadesurpreendente, empurrou-mepara trás com um braço,enquanto a mão livre arrancavao broche sem hesitar. Caí decostas, como se um aríete tivesseme atropelado.

– Irás sofrer… – avisou ela.Sua impressionante magia

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C

voltara a envolvê-la.Ao contrário do que eu

esperava, Shantel não dirigiu suafúria para mim.

Ela enxergava apenas Carol.

***

AROL VIU A

APROXIMAÇÃO dadruidesa e recuou.

Tropeçou no corpo de um dosbrácaros que Tariq derrotara,caindo sentada no chão.Arrastou-se para trás, conscientede que precisava afastar aquela

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mulher de Oriana e Belmira,custasse o que custasse.

Viriato se levantou e,ignorando as forças obscuras aoredor de Shantel, tentou detê-lapor trás. O choque mágico querecebeu foi tão forte que oarremessou para longe. Mesmoassim, aquilo ganhou algunsinstantes para Carol, que selevantou e fugiu para trás dasgaiolas dos elementais. Eles seagitaram, manifestando o quantoodiavam a druidesa.

Tariq, que acabara de se livrardos oponentes mais próximos,

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correu para junto da mesa depedra.

– Já tenho o contrafeitiço –Oriana lhe disse, com urgência,mostrando a adaga reluzente –,mas preciso do sangue de Anuk!Sabes onde ela está?

Antes que ele pudesseresponder, mais dois dosguerreiros da druidesaapareceram do nada; um deles opuxou para trás e o outrotentou atingir seu peito com aespada.

Então todos ouviram o gritoque veio do fundo do salão,

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junto às cortinas.– Pai!!!Atônito, o al-gharbio viu

Anuk surgir numa corridalouca, empunhando uma espadacurta e mirando o brácaro que oameaçava. O homem tombou,trespassado pela arma.

O outro atacante, sozinho eapavorado pelo olhar guerreiroda menina, largou a espada, saiucorrendo e sumiu porta afora.Era o último, pois todos osdemais haviam sido mortos ouferidos por Kassib e pelosguerreiros indígenas.

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Rudá conseguira tirar as mãosde Crom de seu pescoço e, porsua vez, tentava estrangulá-loembora o celta ainda tivesse umjoelho sobre seu peito,impedindo-o de se levantar. Ochão sob ambos começava arachar.

Sem ligar para mais nada,Tariq abraçou a filha comonunca fizera na vida. E ela sentiuas lágrimas quentes do paimolhando seu rosto.

SHANTEL TAMBÉM OUVIRA O

GRITO de Anuk. Estacou,

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empalidecendo. Viu-a correrpara Tariq e a verdade a atingiucomo um golpe de espada.Apenas naquele momentocompreendia que sacrificara afilha errada.

Um grito insano saiu dofundo de sua garganta, e asenergias cinzentas a seu redorcomeçaram a se tornar rubras.Pensava na profecia da parteira!Mas, se desejava atacar a filha,não o fez de imediato. PoisViriato retornara após pegar nochão a espada de um dosguerreiros derrubados por

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Tariq. Apontava a arma para ela,impedindo-lhe a passagem.

As forças mágicas no templo,contudo, ainda estavam sob oseu domínio. Fios de magiasaíram do pilar central ealimentavam seu escudo desombras. Antes que Viriatotentasse atingi-la, tentáculoscinzento-avermelhados oenvolveram.

Ele hesitou. Aquelas coisascomeçavam a sugar sua forçavital!

– Ousas atacar-me? – rugiuela, seus próprios olhos

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brilhando em vermelho, comose partilhasse o espírito de CromCruach.

O rapaz despencou sobre osjoelhos. Aquela magia era capazde fazê-lo sangrar, como a docelta. Largou a espada, incapazde reagir. Fechou os olhos.

– Deixa ele em paz, suamegera! – berrou Carol.

Sem saber o que fazer, elacomeçou a abrir as gaiolas doselementais que, mesmo sempoder algum, correram a rodearShantel, guinchando.

A druidesa nem piscou.

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Lidaria com a humana e com ospequenos seres depois.

– Suportei tuas traições portempo demais, escravo. Devesmorrer.

A VOZ DE BELMIRA sesobressaiu aos guinchos que seespalhavam pelo salão.

– Oriana! Tariq! Depressa! –comandou a velha serva.

A mãe de Gael piscou. Tirouos olhos de Viriato e pousou-osem Mirele. A garota não estavaaguentando manter toda aquelamagia em funcionamento. Se

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não a libertassem, morreria…O al-gharbio correu para

junto delas trazendo Anuk, queo seguiu sem saber o que dizer.Não estava acostumada amanifestações de carinhopaterno. Olhou para Oriana eBelmira, meio apalermada.Então pôs a mão na cabeça.

– Mirele… ela está muitofraca… temos de fazer algumacoisa!

– Filha – disse Tariq,baixinho. – Sabemos comoajudar tua irmã, mas precisamosde ti. Tens de confiar em mim.

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– Tudo bem, pai – respondeuela, no mesmo tom de voz.

Sem esperar mais, Orianaergueu a mão da gêmea maisvelha e deu um talho em seubraço. O sangue que saiu semisturou ao dos outrosmembros do clã.

E a adaga ritual brilhou maisainda, desta vez em vermelho.

– COMEÇA A RESITAR A

FÓRMULA – disse Oriana aBelmira. – Vou ajudar meuirmão.

A escrava tomou a adaga de

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suas mãos. Enquanto Tariqtentava estancar o sangue dobraço de Anuk, a filha deEurico foi para junto de Viriato,que sangrava pelos olhos e pelonariz.

Estendeu a mão direita paraShantel, e seu gesto teve opoder de desviar as forçasdeletérias que estavam sendousadas contra Viriato. A druidesapareceu surpresa, mas não seperturbou. Apenas mudou ofoco de seus ataques, dirigindo-os para a prima.

– Quanta estupidez! Tens a

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ilusão de que podes me vencer?E lançou uma carga de magia

sobre a outra. Oriana não podiadesviar-se e recebeu a carga todano peito. Mas algo nela serecusava a ceder. Absorveu oataque, ofegante.

– Não estou sozinha, Shantel.Cal-leach está aqui. Sinto apresença da deusa!

A única resposta foi o escárnioda druidesa. Mais tentáculosmágicos apareceram em voltadela, carregados de energiamaléfica, e ela os foidirecionando, um por um,

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sobre Oriana.Naquele exato momento, o

chão tremeu. Rudá finalmenteconseguira derrubar Crom. Aresposta do celta, porém, foiuma gargalhada tonitruante.

O tremor pareceu acordarViriato, que somente então selibertou das nuvens obscurasque ainda o tomavam. Carolcorreu para ampará-lo. Tariqtambém foi até ele e osoergueu. Belmira, a urgência navoz, continuou a orientá-los:

– Vinde para cá, agora!

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E***

NFRAQUECIDO, PRECISEI DA

AJUDA DE CAROL e Tariqpara me equilibrar. O

sangue em meus olhos meembaralhava a visão. Quandoconsegui me livrar dele com amanga da túnica, senti o pânicose apoderar de mim mais umavez.

Crom voltara a derrubarRudá. E, tirando sua espada dabainha, preparou-se para matá-lo.

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U***

M TROVÃOENSURDECEDOR

soou sobre a Citânia,no exato momento em queCrom cravou a espada nocoração de Rudá.

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A

CAPÍTULO 16

O que foiseparado

S DUAS PRIMASPARECIAM ESTÁTUAS,

paralisadas por forçasmágicas equivalentes.

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Mas Rudá estava morto, eCrom tirava forças da vitória.Erguendo o corpanzil deGalaor, pôs um pé sobre o tóraxdo jaguara vencido e rosnoupara os demais índios, querecuaram para perto da porta.

Aquilo aumentou as energiasde Shantel, afinal prestes adominar Oriana. Luzesesverdeadas fluíram dos dozepilares para o central, de lá paraCrom, e dele para a druidesa.Ele a olhou, orgulhoso pelasupremacia que elademonstrava.

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A mãe de Gael fraquejou,também recuando.

MAIS UMA VEZ, foi Belmiraquem concentrou a atenção dosoutros. Estendeu a adaga ritualpara Viriato, que Carol e Tariqhaviam levado para junto deMirele.

– Temos o sangue e a carne,falta terminar o contrafeitiço –insistiu a escrava.

Viriato firmou o olhar nasgêmeas, compreendendo.Tomou a mão direita de Anuke procurou a de Mirele. Fechou

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as palmas e os dedos de ambas asgarotas em redor do cabo dopunhal, e começou a recitar afórmula que Orianadesenvolvera.

A voz de Belmira se uniu àdele. Carol, que decorara aquilotudo mesmo sem entender alíngua antiga, pôs-se a repetir aspalavras também.

Tariq se afastou da mesaquando a adaga começou areluzir na cor roxa e linhas deencantamento envolveram suasfilhas.

Anuk sentiu a tontura da

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magia circulando pelo corpo dairmã e pelo seu. Mesmo assim,percebeu movimento nas portasdo templo e olhou para lá bemquando ele entrou.

A onça negra atravessoumetade do espaço num salto, eparou diante de Crom. Rugiualto, um lamento de dor, aodescobrir o corpo de Rudá.

– Gael, não! – berrou Anuk,tentando largar a mão da outragêmea.

Não conseguiu, porém; amagia as mantinha presas uma àoutra. O que fora separado há

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quase quinze anos tinha depermanecer unido, agora… E ocanto em língua antiga queViriato e as duas mulheresentoavam crescia, como que sematerializando no ar.

A divindade celta arrancou aespada do peito do jaguara,apontando-a para o recém-chegado.

– Então, vieste, aberração –sibilou ele. – Achei que erastu…

Avançou para a onça, quepulou sobre ele, tentandoabocanhar seu pescoço.

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Rolaram pelo chão. Era visívelque, apesar da agilidade doanimal, o homem-deus era maisforte e mais experiente.

Shantel, ao conferir o queacontecia, desviou por uminstante sua atenção da prima.Esta, quase despencando,aproveitou para se recuperar. Eviu que a outra direcionava asmãos para o grupo cercandoMirele. Ia atingir Viriato einterromper o contrafeitiço.

Reunindo as forças que lherestavam, Oriana rezou à deusae concentrou todas as energias.

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O

Um novo rugido da onçanegra mostrou que Crom aferira em uma pata. O deusafastou-se dela e evitou aretaliação das potentes garrasque tentavam rasgar sua carne.Depois voltou a atacar, feroz,empunhando a espada.

***

PAVOR QUE DOMINAVA

BELMIRA E CAROL

também me atingia.Para piorar, eu temia não serbom o suficiente para completar

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o contrafeitiço, a magia maisdesafiante com que eu tivera delidar em toda a minhaexistência.

Cerrei meus olhos com força,procurando me isolar do queacontecia no templo. E procureia todo custo fortalecer acoragem das duas mulheres aomeu lado.

Nenhum de nós três estavapreparado para suportar portanto tempo a intensidadedaquela magia proibida.

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T***

ARIQ NÃO QUERIATIRAR OS OLHOS DE

ORIANA, mas teve quedesviá-los desta vez, numasensação de dejà vu. O combateentre o deus e o menino-onçaparecia seguir os mesmos passosda luta anterior: Crom subjugarao animal, com um joelho sobreseu corpo, e tentava estrangulá-lo com uma das mãos.

No instante seguinte não haviamais onça nenhuma. ApenasGael, desarmado, caído sob o

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oponente. A espada que fora deEurico brilhou no ar,implacável. Arrancaria a vida doúnico neto do ex-senhor daCitânia.

– Não!!! – o grito de Orianafoi terrível, e ao mesmo tempoimensa quantidade de energiamágica se desprendeu de suasmãos, outra vez atingindoShantel.

A druidesa quis revidar, masaquela onda de magia era fortedemais. Foi empurrada contra aparede e bateu a cabeça. Caiu,desmaiada, enquanto dezenas de

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elementais corriam para ela ecomeçavam a atacá-la commãos, garras, bicos.

Bem nesse instante, Viriato,Belmira e Carol se calaram, ostrês tombando ao chão,esgotados pelo uso da magia.

O encantamento chegara aofim.

Os doze pilares estremeceram,e as forças mágicas que osenvolviam, liberadas, circularamloucamente pelo recinto inteiro,soltando raios verdes nasparedes, chicoteando as vestesdas pessoas. O pilar central se

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reduziu a pó, numa explosãoseca.

A mão de Crom, erguida,hesitou… E largou a espada.

O mundo tremeu quando ocorpo de Galaor caiu,inanimado.

MIRELE RESPIROU FUNDO.

Abriu os olhos. Viu Anuk, aolado, segurando sua mão direita.Sentiu que algo machucava apalma de sua mão e a abriu. Airmã fez o mesmo.

Ambas deixaram cair a adaga,agora completamente negra.

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Olharam-se. E se abraçaram,chorando, sentindo-secompletamente unidas, pelo queparecia ser a primeira vez.

Somente quando se soltaramperceberam a marca que o cabodeixara em suas mãos. Lembravaa tatuagem de uma pequenaserpente, no canto da palma decada uma.

– O USURPADOR SE FOI! –declarou Belmira, ofegante.Tariq a ajudava a se levantar. –A Citânia está livre!

Como que em resposta às suas

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palavras, as portas e janelas dotemplo se abriram e umvendaval entrou. Trovõessoaram lá fora. Carol sentiu ovento envolvê-la e viu a pedrade Oiá brilhar em seu peito.Com dificuldade, conseguiu sesentar. Baixou a cabeça.

– Obrigada, Iansã, senhora dosventos e tempestades –sussurrou.

Então, com um sorriso,dedicou-se a Viriato, fracodemais para se apoiar noscotovelos e se erguer sozinho.

Os elementais ficaram

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alucinados. Sua magia, enfim,fora restaurada. Alguns voavam,outros soltavam fagulhas, evários deles ainda feriam adruidesa.

Tariq foi abraçar as duas filhas,chamou Kassib e o mandouvigiar Shantel, espantando ospequenos seres; então foi acudirOriana, que tremiadescontroladamente. Os cortesque a prima fizera em sua carnehaviam fechado; só restavamduas cicatrizes.

– Respira e acalma-te – disse aela, carinhosamente. – Estás

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sentindo o choque de retornoda onda de magia. Já vai passar.

Ela obedeceu, escondendo orosto no ombro dele.

Anuk ajudou Mirele a selevantar, e em seguida correupara Gael. A irmã, aindainsegura, depois de passar tantotempo deitada, foi atrás dela.

O adolescente se erguera efora até o corpo de Rudá,rodeado pelos índios em sinal derespeito. Viu que as gêmeas seaproximavam, mas evitou-as.Mal sentiu quando um trôpegoViriato, vencendo a exaustão

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com a ajuda de Carol, surgiu aolado. Ela abraçou Gael, tentandoconsolá-lo.

Mas o filho dos três mundos nãoparecia ter lágrimas. Ele afastouos braços da irmã adotiva eapenas ficou parado ali, olhandopara rosto do pai que conheceratão pouco.

CÁITLIN E AKINLANA entraramjuntos no templo. Foramseguidos por Iwati e Egeu, quechegara ao Rio com umacentúria a tempo de participardos últimos combates.

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A agitação do líder iorubácontrastava com a serenidade dasenhora érin. Ela se quedou naentrada, observando eanalisando tudo que aconteceranaquele salão.

Akinlana foi saudar Tariq,cumprimentou Oriana, mandoumais guerreiros para vigiar adesmaiada Shantel e foiencontrar Gael e Viriato.Cumprimentou Carol e depoisajoelhou-se diante de Rudá.

– Que todos os deuses detodos os clãs sejam louvados –disse. – E que teu espírito

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repouse na casa de teusancestrais, amigo…

Somente então Gael rompeuem soluços. Carol, Mirele eAnuk o rodearam e, juntas, olevaram para fora do templo.Belmira foi atrás, resmungandoalgo sobre preparar chás.

Viriato foi conferir o estado deGalaor. Parecia morto, mas eleconseguiu sentir um pulso; omeio-irmão respiravafracamente. Olhou para asenhora érin, que veio ao seuencontro. Ela pôs a mão sobre atesta do filho mais velho de

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Eurico.– Ele ficará bem, com as

correntes de magia restauradas.No mesmo instante, Galaor

abriu os olhos. Ofegou. Omeio-irmão o ajudou a erguer-se.

– Do que te lembras? –perguntou a mulher.

Galaor demorou um poucopara responder.

– De tudo, senhora –respondeu, sombrio.

Um homem que ostentava ataça vermelha no rostoapareceu, correndo. Sem saber a

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quem se dirigir, com tantoschefes de clã no local, escolheuOriana.

– Belmira disse que é para ossenhores esperarem no salão, elavai mandar servir uns chás pararestaurar as forças de todos. Etem um senhor érin… Ele estáesbravejando na ala dos quartos,faz algum tempo, chamandoalguém.

Cáitlin fechou os olhos porum momento, buscando ospensamentos de Finnath.Quando os abriu, fitou Viriato eOriana.

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– Tereis de esperar um poucopara tomar os tais chás. Levaivosso irmão para ver Eurico,agora. Infelizmente, vosso painão verá a manhã nascer.

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C

CAPÍTULO 17

Acerto de contas

AROL TOMOU A

INICIATIVA de salvarGael, já sufocado pelas

demonstrações de apoio dasgêmeas. Levou-o ao encontrode Tiago, no esconderijo da

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resistência. Os três foram juntosprocurar João e não foi difícilencontrá-lo, pelas informaçõesde Akinlana: estava, com outrosguerreiros iorubá, vigiando umgrupo de brácaros num pátiopróximo ao arsenal.

Os quatro se sentaram nummurinho ali mesmo e Gael ficoucalado, abraçado a Carol,ouvindo o pai e o tio contaremum ao outro suas peripécias dasduas últimas semanas.

Tiago estava falando dacoragem de Oriana, na prisão, eparou no meio da frase. O otá,

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que acabara de ser devolvidopor Carol, brilhou em seupeito… E ele viu Nan chegar.

– Vai lá, pai. – A filha oempurrou. – Sua namorada táesperando…

Viram-no andar para ela,receber um abraço apertado ebeijá-la com um carinho que,de repente, não teve maisvergonha de esconder.

– O babalaô tinha razão –murmurou ele, afagando oscabelos crespos da mulher queamava. – A pedra de Oiá nosmanteve unidos, apesar da

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distância.Nan tomou as duas metades e

as apertou na palma da mão.Quando a abriu, havia umaúnica pedra, com dois cordões.As duas metades se haviamreunido.

– E agora? – brincou ela. –Com qual de nós dois ela vaificar?

– Tanto faz – disse ele, sério.– Não pretendo ficar longe devocê nunca mais…

Nan suspirou. Tinha uma vidana Bahia, assim como ele tinhauma em São Paulo. Não sabia

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como ficariam juntos, mas tevecerteza de que dariam um jeito.

– Venha – propôs. – Queroque conheça meu filho.Acredita que ele veio com umdestacamento de guerreiros doquilombo do Vale do Ribeira?Só agora descobri…

Seguiram juntos, depois deacenar aos outros.

João levantou-se do murinho.– Preciso ir ajudar meus

companheiros. Não quero quemeu capitão diga a Akinlanaque fugi dos meus deveres sóporque meu sobrinho é da

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realeza local, neto do chefe doclã!

Ele estava brincando, mas abrincadeira lembrou a Carolque era melhor levar Gael paraver Eurico.

Pelo que Viriato lhe escreverana última mensagem de texto,na véspera, o velho líder estavamorrendo.

O QUARTO CHEIRAVA ÀS

ERVAS que Belmira queimara.Eurico estava consciente; com ascostas e a cabeça apoiadas emvários travesseiros, tinha

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dificuldade para respirar.Finnath e Cáitlin haviam-lheinfundido energias, porém elecontinuava à beira da morte.

Gael entrou no aposento eCarol permaneceu no corredor,onde Akinlana, Tariq, Egeu eIwati aguardavam osacontecimentos. Apenas afamília podia ver o patriarca,além dos érin.

Anuk e Mirele postavam-seaos pés da cama do avô; umagêmea enxugava as lágrimas, aoutra fungava, entediada. Nãogostava do avô em vida, não ia

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começar a gostar agora sóporque ele resolvera morrer.Viriato, por sua vez, refugiara-seno canto escuro em que ficavaquando estivera ali cuidando dopai. Sua expressão era umaincógnita.

Oriana viu o filho chegar e otrouxe para a cabeceira do leito,deixando-o ao lado de Galaor.Era a segunda vez que Gael viao avô. Com certeza, a última.

O velho patriarca não usavamais a roupa de gala ou a capanegra presa com broche deouro. E, em seus olhos claros,

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não se via mais nenhum traçode ódio ou amargura.

Havia apenas lágrimas.– Como ele está? – perguntou

o garoto à mãe.– Fraco. Desde que viemos

tentou falar duas vezes e nãoconseguiu. Quem sabe agora,que chegaste, ele se anime umpouco.

Galaor pôs um braço sobre osombros do sobrinho. Aindausava a túnica de Crom, cheiade sangue seco. Gael se sentiuconstrangido. Vira o tio hápoucas horas, quando seu corpo

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era ocupado pelo deus celta, etinham tentado matar um aooutro. Ia custar para seacostumar com ele de novo…

– Pai – disse Galaor –, teuneto está aqui.

Eurico relanceou o olhar emvolta da cama, abarcando toda afamília. Parou em Gael,parecendo vê-lo pela primeiravez. Até para um moribundo,era impossível não notar comoo adolescente se parecia comele.

O velho absorveu o ar comdificuldade, e finalmente

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conseguiu falar.– Eu sei… de tudo… que

aconteceu – olhou para Finnath.– Ele contou.

Galaor tomou a palavra:– Então sabes que o usurpador

foi expulso com ajuda de nossosaliados. Oriana descobriu comodesfazer a magia de Shantel,Viriato pôs o contrafeitiço emação, com a ajuda de Belmira ede uma humana, e Mirele foisalva. Tua neta, Anuk, liderouos al-gharbios contra osrenegados que invadiram acidadela de Tariq. Teu neto,

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Gael, lutou sob as ordens deAkinlana e enfrentou Crom emluta singular. Vencemos, pai! ACitânia está segura.

O olhar de Eurico se fixou nofilho, depois vagou para Oriana.Tentou erguer a mão para ela,que a tomou entre as suas.

– Teu filho… é um brácaro.Tenho… orgulho dele.Perdoa…

Não conseguiu dizer mais; eela não conseguiu responder,apenas beijou a mão do pai. Opedido de perdão eraimportante, depois de tudo o

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que sofrera, mas a felicidade quesentia naquele momento vinhada declaração de Eurico.

O olhar do velho se detevenas sombras. Ergueu a outramão e apontou para Viriato.

– Filho… vem.O rapaz se aproximou,

inseguro. Curvou-se, comosempre fizera diante do líder doclã.

– Tu – disse o pai – és umhomem… livre. Meu filho.Também… me orgulho.

Viriato respirou fundo, malcontendo a emoção. E pela

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primeira vez ousou chamá-locomo sempre sonhara:

– Obrigado, pai.Eurico fechou os olhos,

exausto. Finnath e Cáitlin seaproximaram.

– Ele está perdendo as últimasenergias – disse a érin. – Émelhor vós sairdes.

Anuk, aliviada, já ia escafader-se, quando o avô falou, pelaúltima vez.

– Esperai… só uma coisa…Galaor.

O filho mais velho também securvou ao moribundo.

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– És o herdeiro da Citânia… –disse, a voz soando mais forte. –Cuida bem… do meu neto.

Então ele afundou nostravesseiros, sem forças. Olhavapara Gael, que mal podia conteras lágrimas. Seu olhar foi seapagando, como se uma chamase extinguisse.

– Saí, agora – murmurouFinnath. – Velaremos até que…Ficaremos aqui.

Oriana abraçou o filho e olevou para fora. As gêmeas játinham sumido no final docorredor, e Galaor saiu

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vagarosamente. Cáitlin o seguiu.Diante dos outros chefes de

clã, ela declarou:– Eurico morrerá ao romper

da aurora. Até este momentoestava consciente, no domíniode suas faculdades. E designouGalaor como seu sucessor nocomando do clã.

Todos assentiram: Tariq,Akinlana, Iwati, Egeu. Elaprosseguiu.

– Finnath e eu levaremos asnotícias de tudo o queaconteceu aos líderes do nossopróprio clã, em Tara.

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Precisaremos de novos tratadosde paz para os povos mágicos,mas suponho que agora isso nãoseja um problema.

Todos olharam para oherdeiro da Citânia de Brácara.Ele inflou o peito.

– Honrarei os desejos de meupai. Teremos paz. E vou dizermais uma coisa: não tenhofilhos, é certo que nunca osterei. Por isso firmarei Gaelcomo meu sucessor.

O garoto, que estava umpouco afastado, ainda abraçado àmãe, estremeceu.

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– O que é que…? – começoua dizer, mas engasgou.

Oriana sorriu e o abraçou commais força.

– Não te preocupes com issoagora. É só uma formalidade…Terás tempo para assimilar oque significa ser o herdeiro deum clã.

Galaor, agora com certo olharde tédio, conferiu o que vestia.

– Irmã, agradeço-te se pudereslevar nossos aliados ao salão.Vou vestir algo mais condizentecom a ocasião e devo encontrar-vos lá.

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Enquanto Oriana conduzia atodos, preocupada com aspróprias roupas – ainda usava ovestido branco manchado desangue –, Cáitlin deteve Galaor.

– Em um ano – disse, paraque apenas ele ouvisse – os érinvoltarão para verificar a situação.A paz precisa ser mantida, e ascorrentes de magia não devemser perturbadas.

– Não te preocupes, senhora –ele retrucou, pondo ênfase naúltima palavra e continuando aseguir pelo corredor. – Cuidareide todos os assuntos pendentes.

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O clã estará em boas mãos,manterá a submissão aos érin.Agora, com tua licença, precisomesmo ir.

– Vai, brácaro – sibilou ela – enão te esqueças de que só tensum clã para liderar porquetiveste o apoio de outros líderes.Não seria… aconselhável…permitir que isso mude.

Quando ele se voltou parafitá-la, não a viu mais.

Cáitlin tinha sumido, porém osibilar de suas palavras aindapairava no ar.

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NO QUARTO, apenas Viriatopermaneceu com Finnath eCáitlin.

Não abandonou o local atéque, ao mesmo tempo em queo sol nascia, o velho líder exaloua última respiração, e os érincobriram seu rosto.

Viriato foi o único quechorou a morte de Eurico.

NINGUÉM DORMIU NAQUELA

MADRUGADA, nem naquelamanhã.

Havia muito que fazer naCitânia; Galaor foi conferir os

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mortos e feridos, conversar comos comandantes, colocar ordemno exército brácaro, recuperar alealdade perdida.

Akinlana e Iwati começaram aevacuar seus guerreiros, quetinham longos caminhos apercorrer. Tariq contatouYussef em São Paulo portelefone, inteirando-se dasituação do clã. Avisou quevoltaria assim que resolvessealgumas pendências.

Enquanto o funeral de Euricoera preparado, Cáitlin e Finnathforam com Viriato ao escritório,

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pretendendo começar a esboçaros novos tratados. Ele era apessoa mais confiável parainformar sobre os documentosdo pai e a situação legal daCitânia.

Algumas coisas pareciamincomodá-lo.

– O que vai ser de Shantel? –perguntou.

– Deve ser julgada peloConselho dos Clãs – foi aresposta da senhora érin. –Sugiro que os representantes sereúnam em dois ou três mesespara o julgamento. Os érin

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mandarão alguém para votar,mas o conselho terá autonomiae sua decisão será final.

– E quanto a…? – Viriatohesitou. – Os érin sabem que…bem, eu pratiquei certos atos,que… não foram exatamente…

– Sabemos perfeitamente dastuas transgressões, e das de tuairmã – respondeu Finnath. –Magia proibida. Sereispenalizados, é claro. Mas háatenuantes no caso e nãonecessitaremos do Conselho. Eue a senhora Cáitlin podemosdecidir sozinhos.

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O brácaro mordeu os lábios.– E… vós já tendes um

veredito?Cáitlin o fitou, séria.– Usar magia proibida é tabu,

Viriato. Assim que partirmos,vossa capacidade de praticarmagia será inibida. Por um ano.Quando voltarmos,reavaliaremos o caso.

Ele se curvou, aliviado.– Sois generosos, senhor e

senhora.– Quando nos é permitido. –

Foi o único comentário da érin.– E agora, vamos aos negócios.

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Temos tratados para redigir.Eles só saíram de lá na hora do

almoço; Belmira mandou servira refeição numa grande sala dejantar que não era usada há anos.

PRESIDINDO O ALMOÇO,

Galaor parecia outro. Aindaestava abatido e os ferimentosnão haviam cicatrizado, comoos da irmã. Mas isso lhe serviamuitíssimo bem, pois os capitãesbrácaros podiam admirá-lo maispela sua coragem. E o novosenhor da Citânia apreciavamuito a admiração alheia.

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Iwati não permanecera. Ele eseus guerreiros tinham sido osprimeiros a deixar o Rio deJaneiro; designara doisrepresentantes indígenas paraassistir ao funeral de Eurico.

Akinlana permaneceria para ofuneral, embora quase todo oseu contingente tivesse viajado,também. Naquele almoço suacomitiva constava apenas dealguns guarda-costas, o babalaôOloú e Nan. Egeu tambémficaria, até que os guerreiros quedeixara em São Paulo viessemreunir-se a ele; somente então

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partiria para as terras do EspíritoSanto.

Quando as gêmeas entraramna sala de jantar, umadesenxabida Anuk foi até ele.

– Então… – começou agarota. – Eu não queria fugirdaquele jeito… mas tu sabes…

O helen a olhou, severo.– Tinhas responsabilidades

para com o clã. E as deixaste delado, por um impulso.

Ela olhou para baixo, paracima, para os lados. Não estavaacostumada a ser repreendida e adeixar barato.

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– Apesar disso… – continuouEgeu –, sei que sem tuapresença o encantamento nãoteria sido desfeito. Então, pareceque foi a vontade dos deusesque viesses. Aliás…

Anuk tratou de arrumarpaciência. O helen estavacomeçando um discurso sobreresponsabilidade e respeito aosdeuses, e ela teria de ouvi-lo atéo fim.

Para seu maior desgosto, viu,do outro lado da sala, queMirele se sentara com Gael eque o agarrava, cochichando.

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Podia jurar que falava mal dela.E estava certa.– Tu sabes – dizia a filha mais

nova de Shantel – que Anukcontinua te chamando de“aberração”? E que, apesar deGalaor ter te declarado herdeiro,ela diz a todo mundo que tuainda és prisioneiro dela?

Ele sorriu de leve.– Não deixa de ter razão. Ela

me capturou, em São Paulo.– Mas isso foi há eras! –

exclamou a garota. – Não tepreocupes, Gael, agora que nósduas vamos morar

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definitivamente com nosso pai,Anuk vai ter de aprender a secomportar. Não haverá maisnossa mãe deixando-a fazer oque queria, nem Viriatoencobrindo suas fugas. Ela vaiter de…

– Vou ter de o quê,irmãzinha? – disse a gêmea mal-humorada, atrás dela. Escaparaao sermão de Egeu.

Mirele sorriu com doçura.– Vais ter de te conformar em

ter aulas de novo, irmã. Ehorários. E disciplina. Aprendera ter boas maneiras como uma

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nobre senhora do clã. Nosso paijá disse que…

– Ah, deusa, dá-me paciência!Cala essa tua boca, Mirele.Nosso pai me prometeu quevou poder treinar esgrima! Asaulas de boas maneiras podemficar todas para ti, já que queresser a tal nobre senhora. Euprefiro ser uma guerreira! Tudeverias tentar, ninguém morrepor aprender a manejar umaespada ou um arco…

– Que os deuses me livrem! –esganiçou a gêmea.

As duas se engalfinharam

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numa discussão tão acaloradaque nem viram que Gael, com adesculpa de servir-se de umsuco, escapulia da sala de jantar.

Tariq se aproximou sutilmentede ambas.

– Discutindo de novo?Mirele ficou vermelha e Anuk

fechou a carranca.– Pai, eu…– Foi ela que…– Esta – interrompeu ele,

sereno – não é mais a vossa casa.Então, espero que voscomporteis como hóspedes.Com educação. Entenderam?

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Ambas resmungaram algumacoisa e Tariq voltou a sentar-sejunto de Oriana.

Somente então elasperceberam que Gael tinhasumido.

– Para onde ele foi? – gemeuMirele.

Anuk tinha certeza de quesabia. Mas nada disse à irmã.Esperou um momento dedistração dela, e de Tariq, paraescapulir também.

ELE ESTAVA EM PÉ diante damancha de sangue que tisnava o

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chão de mármore, agorarachado, no templo.

O recinto fora limpo e exalavaapenas um doce aroma de ervas.O corpo do jaguara fora levadoàs catacumbas e era preparadopara o traslado. Galaor mandararetirar as colunas, as jaulas, amesa de pedra, tudo quelembrasse as práticas rituais daesposa; mas ordenara que amancha de sanguepermanecesse, um tributo aoheroísmo de Rudá.

– Tu sabes – Gael ouviu a vozde Anuk, chegando-se a ele –

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que essa história de tributo aoheroísmo é hipocrisia do Galaor.Ele não liga a mínima para amemória do teu pai.

O adolescente olhou-a esorriu. Como ela sempre sabia oque ele estava pensando?

– Não faz mal. Eu gostei daideia.

– O arrogante, com aquelapose de senhor do clã. Os érinque tratem de ficar de olhonele, eu é que não confionaquele estúpido! Mais dia,menos dia, vai acabar fazendo…

– Anuk – o adolescente pôs a

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mão sobre seus lábios –, deixaquieto.

Meio sem jeito, a garota deude ombros enquanto ele seacocorava no chão frio.

– Você não comentou nadasobre eu ter me transformado.

– Ah… tu és jaguara, nãopodias evitar. E até que ficastebem, virado em onça.

Olhando para as unhas, queagora estavam curtas e limpas,ele continuou.

– Da segunda vez foi maisfácil… Mas não conseguiescapar da vontade de matar.

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Meu pai chamou de “loucurada batalha”. Anuk, eu ataquei ematei tantos homens… Lembrardisso é horrível! Eu querianunca ter virado onça, só queessa é a herança do meu pai.Quando a dor passa, é umasensação incrível! Selvagem,maluca.

Ficaram um tempo emsilêncio, até que ela se sentou nochão e confidenciou:

– Não pensa que essa loucurate pegou porque és um jaguara.Eu entrei em batalha, tu sabes. Esenti o frenesi, a ânsia de lutar.

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Acho que é coisa da guerra…de qualquer guerra. Se nãoficarmos um pouco doidos nomeio de uma batalha, nãosobrevivemos.

– Você deve ter razão –sussurrou ele.

– Claro que tenho. – Elatomou a mão dele e entrelaçouos dedos de ambos. – Sei muitobem o que estás sentindo.Também matei gente. É terrívellembrar, mas lutamos por ummotivo. Para derrotar aquelabesta do Crom. Olha, quandote sentires assim, me conta. Dói,

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mas se dividirmos a dor, ela vaidoer menos. Prometes?

Ele apoiou o rosto no ombrodela. Era resposta suficiente.

Ainda estavam ali, mais tarde,quando Mirele os encontrou.

– Até que enfim achei os dois!Temos de ir. Tariq e Orianaestão chamando. Parece quequerem ter uma conversaconosco.

Anuk fez uma careta.– Ah, não. Só me faltava ter

de ouvir “a conversa”! Hajamelodrama! Os dois vão ficarmortos de vergonha, vão dizer

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que nós, seus queridos filhos,somos muito amados, mas queeles estão apaixonados, e quesempre vão nos amar, blá-blá-blá… Tudo para não sesentirem culpados quandoforem transar!

Gael riu e Mirele arregalou osolhos, horrorizada.

– O quê? – provocou a irmã.– Pais e mães transam, sabia?Fazem sexo. Ou tu achas quenós fomos todos trazidos pelacegonha, nascemos de umrepolho, ou…

– Não precisas ser tão vulgar –

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ralhou a outra.Seguiam pelo corredor do

templo quando uma nuvem dezanganitos apareceu. Um delespairou diante das gêmeas. Nomeio dos zumbidos, os trêsreconheceram palavras.

– Agradecimentos, senhoras. Fomoslibertados e nossa magia voltou, graçasa vós!

– Não tem de quê! –respondeu Mirele, todasorridente. – E dize aos outrosque os brácaros agora vão fazercomo os al-gharbios: nada deescravizar elementais.

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– És idiota por dizer tal coisa– resmungou Anuk, entre osdentes. – Para que mais essespequenos estúpidos vão servir, anão ser…

Um cutucão de Gael a fezcalar-se. Outra espécie deelemental agora pairava diantedele. Essa não zumbia, e suaspalavras ecoaram pelo corredorinteiro.

– Tu trazes a marca das fadasno corpo – disse o ser.

Ele sentiu a tatuagem queimar,e abaixou a cabeça, admitindo.

– É.

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– Trago mensagem da Rainhapara ti. E para tua amiga –olhou de esguelha para Anuk,que lhe franziu o nariz. – Elaavisa que ainda estão sob seupoder. Quando vos convocar,tereis de ir. Sabeis para onde.Adeus…

E, tão depressa quantoaparecera, sumiu. Os zanganitosa seguiram.

Gael tocou a marca nopescoço. E Mirele olhou de umpara outro, curiosa.

– O que a fada quis dizer comisso?

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A

– Não é da tua conta –vociferou a irmã, o mau humorexplodindo pelos olhos. –Agora vamos logo, Oriana eTariq estão esperando!

***

CITÂNIA VOLTAVA AO

NORMAL naquele fimde tarde; o funeral de

Eurico acontecera havia pouco,num mausoléu em um dospátios. Na cozinha, Belmiracoordenava o início dapreparação do jantar. Estalou os

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dedos, num teste. Sorriuquando a magia respondeu e ofogo crepitou numa boca dofogão. Colocou uma chaleirasobre ele.

– Precisas de um chá – disse. –Ficará pronto em algunsminutos.

Eu, que a observava da portada grande cozinha, entrei, asmãos nos bolsos.

– Como é que sempre sabesquando eu estou chegando?

A velha serva apenas sorriu,enquanto pegava duas xícarasnuma prateleira.

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– Vai falar com a menina. Estálá, no esconderijo. Sabes onde é.Terão privacidade.

Não comentei o assunto.Ansiava por estar com Carol,mas temia a conversa que seseguiria. Não adiantava adiar,porém. Em dois dias ela e Tiagopartiriam para São Paulo. Tariqlhes dera as chaves de uma casaque possuía, num bairro central.E iria transferir a escritura para onome de Tiago: umacompensação pela destruição dobar, ordenada por Anuk.

Deixando a cozinha, entrei

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pelo corredor sem saída. Puxei avassoura encostada na parede eabri a portinha gasta.Esgueirando-me por ela, descirapidamente os degraus daescadaria e cheguei ao largosalão de pedra, agora iluminadoapenas por um archote.

Estava vazio, a não ser pelahumana que dobrava uma mudade roupas. Parecia ter acabadode trocar-se; vestia a túnicaiorubá que usara quandochegara ali. Estava linda.Recordei-me do dia em que avira dançar, no quilombo.

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– Boa-tarde – disse-lhe,formal.

Ela não sabia bem o que mefalar. Talvez imaginasse amelhor forma de fazer-mecumprir o que eu lheprometera, no quarto de Eurico.

– Acho que te contaram –comecei, fitando meus pés –que meu pai me libertou. Nãosou mais escravo.

– Sim – murmurou ela, comfrieza.

Procurei me manter firme.– Agora posso decidir meu

destino, ter um futuro. E resolvi

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ir embora da Citânia. Não temnada para mim aqui. Já faleicom Galaor, vou passar aresponsabilidade daadministração para outraspessoas. Assim que isso terminar,vou cuidar da minha vida.

– Bom pra você – foi outrocomentário lacônico de Carol.

Deusa, será que ela não meamava mais? Senti meu coraçãoser espremido pela ansiedade.Precisava arriscar tudo.

Arrisquei.– Eu te amo, Carol.E perdi.

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Ela não demonstrou qualqueremoção. Abaixei a cabeça,gaguejando.

– Quando Crom tentou teatacar… Tu disseste… E lá noquilombo, teu pai falou…

– Viriato, no quilombo eunão sabia de nada dessa históriatoda. Agora eu sei. Conheço otamanho dos teus erros. Hojeestá tudo bem, a megera que tecontrolava está presa, e aquelehomem… deus… terrível se foi.Mas você ainda se senteculpado, não é?

– Gael me perdoou. Oriana

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também.– E a gente venceu, apesar de

você dizer que era impossível…Agora tudo deve voltar aonormal.

Então era isso. Tudo voltariaao normal. Cada um em seumundo, humanos de um lado ebrácaros de outro.

Recuei, com a certeza de queera um tolo. Ia retornar para opiso superior quando ela seaproximou.

– Não está na hora deesquecer o passado? De selibertar dessa culpa toda? De

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que adianta o Gael e a Orianaterem te desculpado, se vocênão desculpa a si mesmo?

Recuei ainda mais. Elasuspirou.

– Então, tá. Você não vai terpaz de espírito enquanto não forcastigado. Pagar pelo que fez. Equer que eu ajude a se livrardessas culpas! – sorriu, irônica. –Belmira tinha razão, vocês,homens, são cheios de noçõesestúpidas de honra.

Como ter honra se nempalavra eu tinha?

– Se é assim – ela ainda falava

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–, vou cumprir o nosso acordo.Eu fiz a proposta. Você aceitou.Vamos acabar logo com isso.

A luz do archote, refletida emCarol, dava-lhe um aspectosobrenatural. Assemelhava-semesmo a um anjo… um anjovingador.

Tremi quando me ajoelheidiante dela.

– Seu castigo será terrível,Viriato. Aliás, não será nada fácil.Pior do que tudo que jáaconteceu a você.

Submisso, apenas esperei.Para minha surpresa, Carol

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acariciou meu rosto.– Seu castigo será me aturar

pelo resto da vida.Fixei meu olhar no seu,

demorando a entender o óbvio.– E pior, Viriato, muito pior.

Você vai ter de ser fiel. Muitofiel mesmo.

Com um sorriso maravilhoso,a garota que acabava de melibertar aproximou seus lábiosdos meus. Ela me amava!

Esta certeza encheu meucoração com a felicidade que eutanto desejava conhecer.

Puxei-a suavemente para mim,

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-O

beijando-a com paixão.Nossos lábios ainda estavam

juntos quando Belmira apareceuna portinha, com um hã-hãindiscreto.

– Se demorardes muito,crianças, vosso chá vai esfriar.

***

QUÊ?! – berrou Galaor.Todos os olhos no grande salãose voltaram para o novo senhorda Citânia, em seu trono. Tariq,ao lado, sorriu com discrição.

– Sugiro que sejas menos…

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ahn, transparente em tuasreações, meu amigo. Umherdeiro pode dar-se o luxo deser, digamos, exuberante. Umchefe de clã não pode.

Os olhos de Galaor seestreitaram e ele forçou um riso,batendo nas costas do outro.Todos os presentes relaxaram.Mas foi com os dentes cerradosque ele falou.

– Estás louco, se fizeresmesmo isso. Libertar todos osteus escravos? Os clãs mágicosmantêm as tradições há séculos.E uma delas é possuir cativos!

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– Eu fui escravo na tua casa.Fui açoitado em teu pelourinho.Senti na pele o que é aescravidão, e minha consciêncianão descansará enquanto houverum único cativo em minhasterras. Tenho esse direito, e oexercerei!

O outro o encarou com raiva.– Sei o que Shantel fez

contigo, mas isso não éjustificativa. Se os al-gharbiosabolirem a escravatura, vão geraruma polêmica de que nãoprecisamos entre os clãs…

Sereno, Tariq retrucou:

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– Os érin não têm escravos.A informação pegou o brácaro

de surpresa. Nunca tinhapensado naquilo. Jamais gostarade saber que seu clã deviavassalagem àquele povo, maseles costumavam ficar para asbandas da Irlanda, e sóapareciam em casos extremos –como o de Crom Cruach. Se oclã mágico mais poderoso nãoescravizava mais as pessoas,então…

– Preciso pensar no assunto –disse, soturno.

O al-gharbio sorriu.

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– Pensa. Eu quis te comunicaressa decisão em primeira mão,antes que soubesses por outrasvias. Afinal, somos aliados. Eseremos parentes. Orianaconsentiu em casar-se comigoassim que minha cidadela forreconstruída e as coisas seacalmarem. Bem… devo ir,Galaor. Parto esta noite comminhas filhas.

– Só mais um assunto – disseGalaor. – Não tratamos dopagamento que me deves.

– Pagamento? O quê…? – elefechou a carranca, quando

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entendeu do que se tratava. –Falas da proposta que fizquando Oriana e Gaelescaparam de ti em SantoAndré?!

– Se não me engano, tuaspalavras foram: “Só terásvantagens se negociarescomigo”. Pediste que eudeixasse Gael viver, e eu não omatei, apesar de Eurico ter dadoordens expressas sobre isso.Agora quero a compensaçãofinanceira que prometeste.

Cruzando os braços, os olhosdo pai das gêmeas faiscaram de

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raiva.– Entendo. É que pensei que

tua iniciativa em poupar a vidade Gael fosse sincera.

– E foi! – protestou o brácaro.– Admirei a coragem domenino e a admiro agora aindamais. Fiz dele meu herdeiro.Mas um acordo é um acordo.Deste tua palavra, não?…

Um meio sorriso foi a respostade Tariq.

– Sim. E sempre cumpro oque prometo. Muito bem,Galaor, receberás a quantia quecombinamos. Depois que eu

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calcular os descontos.– Que descont…?O outro o interrompeu,

pegando um celular no bolso eacessando uma mensagem querecebera de Yussef, em SãoPaulo.

– Tenho alguns dados aqui.Danos às muralhas da cidadela.O portão frontal estraçalhado.Dezenas de vidraças quebradas.Colunas e tijolos arrancados doscorredores. Furos de flechas emtodas as paredes externas. Tusabes, reparos desse porte nãoficam baratos. E há ainda a

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questão do traslado dos corpos:suponho que vais quererenterrar teu grande amigoTarcísio, não vais? Assim que eutiver um cálculo quanto a essasdespesas…

Galaor riu alto, chamando denovo a atenção de todos ospresentes.

– És espirituoso, meu carofuturo cunhado. Entendi orecado… Podemos fazer umnovo acordo, se desejares. Algocomo… Tu não me deves nada.Eu não te devo nada.

A resposta de Tariq dessa vez

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foi um sorriso inteiro. Curvou-se de leve e saiu do salão. Kassib,à espera junto da porta, seguiu-oapós lançar um olhar dedesprezo a Galaor.

Este não teve tempo dedesabafar a frustração. Akinlanaentrou assim que o al-gharbiosaiu, cercado pelos guarda-costas. Vinha despedir-setambém.

Tariq simplesmente saíra, mas,com o rei iorubá, oscumprimentos cerimoniais,parte do protocolo tradicionalentre chefes de clãs, demoraram

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meia hora. Quando finalmenteele ia se retirando, ainda sevoltou para o brácaro, comoquem se lembra de algo.

– Ah, meu aliado, iaesquecendo que te fiz um favor.Meus homens prenderam umdesertor dos exércitos brácaros.Acredito que tentava escapar daCitânia assim que desconfiou deque o usurpador ia cair. É todoteu.

Os iorubás se retiraram, masum último guerreiro negroarrastou para o centro do salãoum homem amarrado, as vestes

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em frangalhos. Depois, saiu.Tiraram-lhe a mordaça. Era

Hélio, o ex-assecla de Galaor eex-homem de confiança deShantel.

– Meu senhor … – balbuciouele, numa reverência exagerada.– Tudo isso é… um engano. Eusempre te fui leal. Vou servir-tecomo sempre fiz… Agora queés o senhor da Citânia e…

A gargalhada do filho maisvelho de Eurico ecoou pelosalão e fora dele.

– Isso é ótimo! – disse ele,quando conseguiu parar de rir.

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– Eu estava mesmo precisandode alguma diversão.

À NOITE, A CITÂNIA DE

BRÁCARA parecia outromundo. Não havia maisexércitos à vista. Escravos-operários consertavam osportões das três muralhas. Ohospital transbordava de feridose as catacumbas estavam lotadasde corpos; apesar disso, o povodo clã não se lamentava pelopreço que tivera de pagar pelapaz. Era um povo sofrido,porém rijo.

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Num dos terraços do casarão,Viriato e Carol olhavam o céu.Ainda era lua nova e as estrelasbrilhavam muito, sem o luarpara ofuscá-las. A jovem olhavao anel de prata trabalhada queViriato lhe dera.

– Quando vou te ver denovo? – indagou ela, tocando oanel.

– Estarei em São Paulo nomês que vem – assegurou ele. –Oriana me pediu que alugasseum apartamento para ela. Voumorar com minha irmã umtempo, até teu pai se acostumar

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de vez com a ideia de me terpor genro.

Carol riu baixinho.– Ele ainda não sabe direito o

que vai fazer da vida. Você achaque vamos mesmo receber oseguro pelo incêndio do bar?

– Sim, liguei para acompanhia de seguros. A magiaé sábia: oculta o que não deveser revelado. Todos os humanosagora creem que tua família nãomorreu no incêndio, houve umgrande engano da imprensa aodivulgar os nomes das vítimas.Teu pai receberá a indenização,

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poderá abrir um novo negócio.– E o Gael volta a estudar no

Marista Arquidiocesano.– Sem dúvida. A diretoria do

colégio acredita que ele perdeuas provas do segundo bimestreporque teve hepatite e custou ase recuperar… Já providenciei oatestado médico.

Ela o encarou, sem saber seficava furiosa ou o beijava.

– Você pensa em tudo, não é?Sei muito bem que estátentando convencer meu pai aabrir um barzinho chique nobairro em que vamos morar,

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tendo você como sócio.O rosto de Viriato era o

protótipo da inocência.– É uma boa oportunidade!

Perto da casa em que vais morarhá várias outras à venda. Um barnaquele local atrairia umaclientela abastada, e…

–… e para arrumar essasociedade com meu pai vocêpretende usar aquele dinheiroque desviou do clã, é claro.

– Eu não disse isso –respondeu ele, sem jeito.

– Seu lado prático assumiu ocontrole. E você já começou a

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administrar a vida de todomundo, tramando o que a gentevai e não vai fazer!

Zangada, ela tentou deixá-losozinho no terraço, mas o rapaza deteve.

– É só o que sei fazer –justificou-se ele.

Carol desistiu de fugir. Sim,Viriato não sabia agir de outrojeito. Atuava nos bastidores,arquitetando planos e ações. Masusava tudo ao seu alcance paraproteger quem amava sem queninguém desconfiasse.

A jovem apertou-o contra si,

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carinhosa e muito consciente deque Viriato sempre teriasegredos a esconder.

TARIQ JÁ HAVIA SE DESPEDIDO

DE ORIANA. Ficariam separadospor um tempo, pois ela teria deir a Curitiba para encerrar suavida por lá, antes de mudar-separa São Paulo.

Um SUV negro, a mando deGalaor, esperava por ele, Kassibe as gêmeas junto aos portões daprimeira muralha: iria levá-losao aeroporto. Mirele sentia-setoda satisfeita, mas Anuk

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reclamava sem parar de que malpudera despedir-se de Gael. Elesó partiria quando o corpo deRudá fosse trasladado.

Porém, antes que saíssem, umgrupo de vigias brácaros correuao seu encontro para abordar oal-gharbio.

– Senhor, perdoa-nos, Galaorpede que espereis um pouco.Temos problemas.

– O que foi, agora? – Tariqfranziu a testa, preocupado.

– Não sabemos comoaconteceu, senhor…

– É a senhora Shantel –

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revelou outro guerreiro. –Apesar de toda a vigilância nacela, ela sumiu. Não está emlugar nenhum da Citânia.

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O

CAPÍTULO 18

Três mundos

***

Vale do Rio Cubatão

RITUAL DE DESPEDIDA DE

RUDÁ aconteceu doisdias mais tarde, numa

clareira do vale em que elevivera os últimos quinze anos de

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sua vida. O corpo foraestendido sobre uma pirafunerária e era rodeado porfamiliares e amigos. O chefetupinambá tomou a palavra paraelogiar a bravura de Rudá e suabondade.

Anuk amparava Gael, quechorava em silêncio. Carol,Oriana, Tiago, Nan e Joãopermaneciam ao seu lado. Juci eas crianças estavam próximas,junto dos representantesenviados pelos povos mágicos.Iwati fora pessoalmente, assimcomo Akinlana, ambos

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acompanhados por alguns deseus guerreiros. Uirê e váriosigpupiaras também participavamda cerimônia preparada pelostupinambás, estes presentes emmassa. Tariq tivera de ficar emSão Paulo, preso às suasresponsabilidades junto ao clã al-gharbio, e Mirele, nem umpouco interessada em seembrenhar no meio do mato,preferira lhe fazer companhia.

Acompanhei a cena adistância. Minha atenção estavaem Gael, o milagre quesobrevivera à morte nos trilhos

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do metrô e a tantos perigosdepois disso. A perda do pai omarcaria para sempre, assimcomo tudo o que aconteceranestes últimos dois meses. Eleaprendera bastante, é verdade –e de modo doloroso, comoocorre em todo processo deamadurecimento –, mas nosensinara muito mais. Bastavaobservar Oriana, a humanidadeque agora existia em cada gestoseu, ou ver como Galaor agiracomo o novo senhor da Citâniade Brácara, reconhecendo osobrinho como seu herdeiro e

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demonstrando uma tolerância àsdiferenças que nunca fizeraparte de sua visão de mundo.Conhecer Gael também afetaraEurico: sem perceber, ele lhedevolvera o coração.

Mas a maior mudançaacontecera com outra pessoa.

Eu, Viriato, o escravo-guerreiro-carrasco e também oadministrador de vidas, comodizia Carol.

Sorri, apesar da tristeza queenvolvia aquele trecho do vale.Gael me dera uma segundachance. Graças a ele, eu ganhara

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o direito de ter uma vida.Ainda havia a ameaça distante

de Shantel, e inimigos que meusobrinho sequer imaginava. Mas,naquele momento doloroso, eramelhor mantê-lo longe dessaspreocupações. Ele precisava,urgentemente, retornar para avida humana em que crescera.Precisava de paz por algumtempo. Como eu.

O chefe tupinambá entregou aGael uma tocha em chamas. Nomesmo instante, um pajécomeçou a recitar palavrasmágicas e melódicas.

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G

Rudá estava partindo.Corajosamente, o garoto

reteve o choro e se aproximouda pira. Quando o fogo tocou ocorpo do pai, ele se afastou.Não derramaria mais nenhumalágrima.

***

São Paulo

AEL NÃO QUERIA

ATRASAR-SE. Nacozinha, engoliu o café

com leite que Oriana lhe

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preparara e depois foi escovar osdentes apressadamente. Aquelasegunda-feira seria seu primeirodia de volta ao colégio, e sabiaque passaria horas na sala dosprofessores anotando tópicos dasmatérias que perdera emarcando provas substitutivas. Acoordenadora prometera queele teria a ajuda de monitores,mas mesmo assim o adolescenteestava ansioso: teria de ralar parapassar de ano.

– Pegou tudo? – perguntouViriato, que se esforçava paraabandonar de vez o “tu” e o

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“vós”. Ele tomava um sucoenquanto examinava a planta dacasa que pretendia comprar paraTiago instalar o barzinho.

Andava meio contrariadoporque Nan estava quaseconvencendo o pai de Carol deque um restaurante típico depratos afro-brasileiros fariamuito mais sucesso. Ela semudara para São Paulo,enquanto João fizera o caminhoinverso: fora viver no quilombo.Enfim encontrara seu lugar nomundo, como guerreiro deAkinlana.

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– Tá tudo aqui – disse ogaroto, indicando a mochila nascostas. – Tô indo, mãe!

Oriana saiu do quarto e foibeijar o filho. Ele a achouelegantíssima. Estava searrumando para uma entrevistade emprego: mandara seucurrículo para uma grandeclínica de estética nos Jardins, efora chamada.

– Uau, o Tariq que se cuide!– exclamou. – Você vai arrumarmeia dúzia de namoradosvestida desse jeito!

– Engraçadinho! – Ela o

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beijou, ajeitou a gola dacamiseta do uniforme, verificouo peso da mochila. – Um bomretorno ao colégio para ti.Qualquer problema, liga.

– Pode deixar. Viriato, a gentese vê hoje à noite no jantar, nãoé? A Carol disse que vai fazeraquela carne assada que vocêadora! Juízo, hein, mãe? Sexta ànoite eu volto.

Fora combinado que elepassaria os fins de semana com amãe, mas, durante a semanaficaria na casa de Tiago, maispróxima ao Arquidiocesano.

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Viriato, porém, sempre aparecialá à noite para lhe ensinaresgrima, como prometera, paranamorar Carol e, claro, manter-se por perto caso surgissealguma emergência mágica,como a visita inesperada dealgum inimigo.

Oriana ficou olhando o filhosair, o ar sonhador. Suspirou.

– Ele não está cada vez maisparecido com Rudá?

Viriato riu.– Quando vira onça é o

retrato escrito daquele jaguara…– E, reparando melhor na irmã,

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acrescentou: – Está mesmomuito bonita, senhora.

Oriana balançou a cabeça.Ainda era difícil para ele tratá-lade modo informal. Velhoshábitos não se mudam tãofacilmente, pensou.

– Vou encontrar Tariq à tarde.Ele sempre me leva para jantarem restaurantes caros, entãoprefiro estar prevenida. E nãoposso mais estalar os dedos efazer os humanos meenxergarem do jeito que euquero, meu caro irmão. Estamosde castigo, esqueceu?

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– Impossível esquecer – disseele, com uma careta. Oriana nãose importava, vivera anos emCuritiba sem usar magia. JáViriato sentia imensa falta daconexão com o mundo mágico.

– Bem, também vou sair –disse ela, indo abraçar o meio-irmão. – Deseja-me sorte!

– A senhora não precisa desorte – foi a resposta carinhosa.

E a mãe de Gael saiu, com umsorriso luminoso, após pegar abolsa no quarto. Realmente,quem precisa de sorte – oumesmo de magia – quando se

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tem um namorado como o líderdo clã al-gharbio?

LUCAS FÊZ UM ESCÂNDALO

quando viu seu grande amigoatravessar os portões do colégio,vindo da estação Santa Cruz dometrô. Disparou dezenas deperguntas sobre o incêndio dobar, sobre a hepatite e o hospitalonde, dizia-se, Gael ficarainternado em isolamento. Ojovem desconversou da maneiraque pôde. A solidariedade dosamigos era agradável, mas nãopodia falar sobre as aventuras

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loucas que vivera.Olhou ao redor, sentado junto

a Lucas num canto do enormepátio interno do Arqui. Voltaraa usar os cabelos longos sobre asorelhas felinas, e Oriana lhe derauma coleção de luvas de couro,em todas as cores, para ocultar asmãos felinas.

Gael adorava poder voltar auma vida normal depois de terestado, tantas vezes, diante damorte. Pensava nisso quando oamigo o cutucou.

– Cara, vou te apresentar duasmeninas que foram transferidas

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pra nossa sala. Começaramsemana passada, e já seenturmaram legal. São gêmeas,imagina só!

Um alarme tocou na cabeçado menino-onça.

Não, não podia ser…– Gael! – ele ouviu o gritinho

meloso de Mirele.– Ah, não… – deixou escapar,

para espanto de Lucas.A gêmea vinha do outro lado

do pátio, correndo em suadireção. Um pouco atrás,caminhava Anuk, fitando a irmãcom ar de reprovação. Gael

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notou que ela usava a camisetade caveirinhas que ele lhecomprara, no shopping, e quesua maquiagem estava maissombria que nunca.

Para seu desespero, alguémchamou Lucas e ele o deixoutotalmente desprotegido, àmercê das gêmeas. Mireleagarrou seu braço e despejoumilhares de novidades.

– … e nosso pai desistiu decontratar mais preceptoreschatos, agora só temos aulascom o chefe de cerimonial doclã, mas é claro que a Anuk

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sempre foge, para ter aquelestreinamentos horrorosos com omestre-de-armas, volta todamachucada, é um horror, daíprecisávamos escolher umcolégio que fosse perto dometrô, e o Viriato disse paranosso pai que conhecia adiretoria deste aqui, ele não foium amor? Nem acredito quevamos estudar na mesma sala,fazer trabalhos em grupo, e mecontaram que tem umasexcursões muito interessantes, aprofessora de História faloumuito sobre a imigração e disse

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que hoje em dia tem mais detrês milhões de brasileiros comascendência árabe, imagina só seela soubesse da existência dos al-gharbios, eu acho que…

Anuk, de novo encastelada emsua persona gótica, apenas rosnou,enquanto a irmã falava semparar. Gael nem a ouvia,planejando como Viriato iriapagar caro por ter sido um amor edado ideias a Tariq…

Quando o sinal de início dasaulas tocou, o adolescenteanalisava seriamente apossibilidade de trancar-se no

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banheiro masculino e fugir docolégio, transformado numaonça negra…

Podia ia ao Rio e se refugiarna Citânia. Ou passar unstempos na mata com Juci e ascrianças. Os mundos brácaro ejaguara agora lhe pareciamtremendamente atraentes, se nohumano ele teria de lidar comAnuk – que ainda acreditavaque ele era sua propriedade – eMirele – que faria tudo paraconvencê-lo de que gostavamais da gêmea boazinha.

Sua vida viraria um inferno

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com as duas na sua cola.

BEM QUE OS SENTIDOS

MÁGICOS do filho de Oriana,agora mais sensíveis, sentiramque havia alguma coisaencantada no ar. Mas,espremido entre a tagarelice deMirele e o mau humor deAnuk, deixou para lá.Resignado, acompanhou asduas. Tentaria livrar-se delas acaminho da sala dos professores.

Assim que os três entraram, noparapeito de uma das janelas doandar superior, o Fradinho

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suspirou. Estava entediado;cansara de ficar passando ocachimbo de uma mão paraoutra, pelos furos no meio daspalmas, e de coçar a cabeça,sentindo falta da carapuça quemais uma vez lhe fora roubada.

“Ah”, pensou. “Mais tarde euvolto. Ela não vai saber que eularguei o posto de vigia porumas horas. Vou para oshopping, lá é bem maisdivertido…”

Sumiu, deixando para trásapenas um leve cheiro deenxofre. E reapareceu em um

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dos lugares de que mais gostava– a praça de alimentação doShopping Santa Cruz, para umde seus passatempos favoritos:derrubar as bandejas cheias decomida e bebida que oshumanos acabavam decomprar…

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Copyright © 2011 by Helena Gomes eRosana Rios

Direitos desta edição reservados àEDITORA ROCCO LTDA.Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar20030-021 – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) [email protected]

Conversão para E-bookFreitas Bastos

CapaLABORATÓRIO SECRETO

IlustraçãoMOISES BRAGA

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃONA FONTE.SINDICATO NACIONAL DOSEDITORES DE LIVROS, RJ.

G614cGomes, Helena, 1966-Conexão magia [recurso eletrônico] /Helena Gomes & Rosana Rios. - Riode Janeiro: Rocco Digital, 2012.recurso digital

Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe DigitalEditionsModo de Acesso: World Wide WebISBN 978-85-8122-020-8 (recursoeletrônico)

1. Literatura infantojuvenil brasileira.2. Livros eletrônicos. I. Rios, Rosana.II. Título.

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12-2045. CDD:028.5 CDU: 087.5

O texto deste livro obedece às normasdo Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa.

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HELENA GOMES é jornalista,escritora e professorauniversitária. É da sua paixãopor cinema, televisão e históriasem quadrinhos que vem ainventividade presente em seusmais de 20 livros já publicados.Pela Rocco Jovens Leitores,lançou os títulos Lobo Alpha,Código Criatura e Assassinato nabiblioteca. Ela nasceu na cidadepaulista de Santos, onde moracom seus dois filhos, suas gatas euma cadelinha.

ROSANA RIOS é paulistana e

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graduada em Arte-Educaçãopela Faculdade de Belas Artes deSão Paulo. Além de ter sidoroteirista de programas infantispara a televisão, já publicou maisde 100 livros infantis e juvenisem seus mais de 20 anos decarreira como escritora. Moracom o marido, os filhos e ocachorro numa casa commilhares de livros.