concurso publico especfico e diferenciado para escolas indigenas
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Concurso Público Específico e Diferenciado para o Provimento dos Cargos de Carreira do Magistério nas
Escolas Indígenas.
Rosane Freire Lacerda ( [email protected] )
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Concurso Público Específico e Diferenciado para o Provimento dos
Cargos de Carreira do Magistério nas Escolas Indígenas.
Rosane Freire Lacerda*
Sumário
Introdução. 1 – Regimes Jurídicos dos Servidores Públicos. 2 – Imperatividade do Concurso Público para o acesso a Cargos e Empregos na Administração Pública; 2.1. Aspectos gerais; 2.2. O magistério e o concurso público de provas e títulos. 3 – Princípios da isonomia e razoabilidade na acessibilidade aos cargos e empregos na administração pública. 4 – Acesso específico de professores indígenas ao magistério público – as “Escolas Indígenas”; 4.1. Bases constitucionais do relacionamento Estado Brasileiro/Povos Indígenas; 4.1.1. A marca histórica do Etnocentrismo; 4.1.2. A Constituição Federal de 1988 e a diversidade étnico-cultural indígena; 4.2. O lugar da Educação Escolar na relação Estado/Povos Indígenas; 4.2.1. De uma educação para a integração a uma educação para o respeito à diversidade; 4.2.1.1. Transformações no significado e alcance da Educação Escolar Indígena; 4.2.1.2. Transformações nos espaços administrativos; 4.2.2. A construção das categorias “Escola Indígena” e “Magistério Indígena”; 4.2.2.1.“Escola Indígena”; 4.2.2.2. “Magistério Indígena”; 4.2.2.3. Algumas notícias sobre a atual implementação pelos Estados. 5 – O concurso público específico para os cargos no “Magistério Indígena” – sua relação com o princípio da isonomia; 5.1. Experiências atuais: avanços, críticas e desafios; 6 – Conclusão; Referências.
Introdução.
Muitas foram as transformações sofridas nos últimos anos pelo ordenamento jurídico
no que diz respeito à Administração Pública. Contudo, os princípios constitucionais da
acessibilidade e da isonomia continuam sendo os seus principais balizadores na tarefa de
preenchimento de quadros de pessoal via concurso público.
Ao longo dos anos, porém, a Administração tem feito uso – em alguns de tais
concursos – , de certas restrições aparentemente violadoras do princípio isonômico, o que
passou a suscitar questionamentos junto ao Supremo Tribunal Federal. Tais discussões giram
em torno da compatibilidade entre o descrímen, motivado por situações específicas, e a
aplicação do princípio da igualdade de todos perante a lei.
Na última década também foi sendo formulada e desenvolvida no seio da
Administração Pública Federal, a idéia de restrições no âmbito do concurso público para o
preenchimento dos cargos de professor nas escolas indígenas. A idéia foi contemplada no
início de 2001 no Plano Nacional de Educação, como orientação a ser implementada pelas
administrações estaduais, colocadas como responsáveis pela oferta da educação escolar à
* Rosane Lacerda é Professora Assistente de Direito Público na Universidade Federal de Goiás (Campus Jataí) e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
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clientela indígena. Contudo, desde então têm havido dúvidas e questionamentos de governos
estaduais e administrações municipais quanto à constitucionalidade de tais concursos.
O presente texto trata exatamente da questão do concurso específico e diferenciado
para o provimento do cargo de professor indígena, sob a ótica de sua compatibilidade com os
princípios da isonomia e da razoabilidade.
Analisa-se inicialmente as regras postas no âmbito do ordenamento constitucional
quanto à questão do concurso público para a investidura em cargos e empregos na
Administração Pública, dando especial relevo à questão dos princípios norteadores da
matéria. Em seguida, procura-se situar as motivações da Administração para o caráter
restritivo de tais concursos em relação às escolas indígenas, enfocando os avanços
normativos e conceituais no campo da educação escolar indígena, como reflexo de uma nova
perspectiva de relacionamento entre estado brasileiro e povos indígenas, inaugurado com a
Constituição Federal de 1988.
Espera-se que este trabalho possa servir de subsídio para os setores da Administração
Pública que lidam diretamente com o tema, assim como também para a comunidade
acadêmica de modo geral, as entidades indigenistas atuantes no país e o próprio movimento
indígena, aguardando-se de todos suas críticas e sugestões.
1 – Regimes Jurídicos dos Servidores Públicos.
Em sua redação original, dispunha a Constituição Federal de 1988 (CF/88) quanto à
exigência de um regime jurídico único para os servidores da administração pública direta,
das autarquias e das fundações públicas, a ser instituído pela União, pelos Estados, pelo
Distrito Federal e pelos Municípios, no âmbito das respectivas competências (art.39, caput).
Para Di Pietro (1990, p.430), essa opção do constituinte originário pelo regime
jurídico único refletiu basicamente a sua preocupação com o princípio isonômico proferido
no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais (“art. 5.º Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza...” ), e expressamente referido em diversas situações
previstas pelo texto constitucional. De tal sorte que para assegurar a aplicação do princípio
no âmbito das relações entre a Administração e seus servidores, determinou o seu
nivelamento mediante aquela unicidade.
Importava tal exigência constitucional em que cada ente público (União, Estados,
Municípios e Distrito Federal) optasse por um único regime jurídico para os servidores de
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suas administrações, e não dois ou três, como se permitia até a Emenda Constitucional (EC)
n.º 01, de 1969.
O Advento da EC n.º 19 de 4 de junho de 1998 1 (art.39, caput) veio no entanto a
extinguir a obrigatoriedade do regime jurídico único para os servidores da Administração
Pública junto a cada esfera de governo, que fica, conforme Di Pietro (1990, p.430), verbis,
... com a liberdade para adotar regimes jurídicos diversificados, seja o estatutário, seja o contratual, ressalvadas aquelas carreiras institucionalizadas em que a própria Constituição impõe, implicitamente, o regime estatutário, uma vez que exige que seus integrantes ocupem cargos organizados em carreira (Magistratura, Ministério Público, Tribunal de Contas, Advocacia Pública, Defensoria Pública e Polícia), além de outros cargos efetivos, cujos ocupantes exerçam atribuições que o legislador venha a definir como ‘atividades exclusivas de Estado’, conforme previsto no artigo 247 da Constituição, acrescido pelo artigo 32 da Emenda Constitucional n.º 19/98. (Grifos no original.)
Assim sendo a opção de cada esfera de governo pode se dar por uma ou
simultaneamente pelas três modalidades de regime jurídico de servidores públicos existentes
no ordenamento jurídico brasileiro: a estatutária, a trabalhista e a administrativa especial.
A modalidade estatutária de regime jurídico é aquela definida, estatuída,
unilateralmente pela Administração Pública através de lei. Como observa Di Pietro (1990,
p.424), os servidores submetidos a este regime, uma vez nomeados,
... ingressam numa situação jurídica previamente definida, à qual se submetem com o ato da posse; não há possibilidade de qualquer modificação das normas vigentes por meio de contrato, ainda que com a concordância da Administração e do servidor, porque se trata de normas de ordem pública, cogentes, não derrogáveis pelas partes.
Diferentemente ocorre no caso da modalidade trabalhista de regime jurídico. Tal
regime é consubstanciado por uma relação de emprego, de natureza híbrida, regendo-se
tanto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), quanto pelos princípios gerais da
Administração Pública, relacionados no art. 37 da Constituição Federal (legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).
Conforme esclarece Sérgio Torres Teixeira (1998, p.327), o que se observa no
regime de emprego público é que, verbis,
A natureza contratual-empregatícia do vínculo junta-se com o cunho publicista da Administração, numa fusão da qual nasce uma relação sui
1 EC n.º 19/1998 “Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências.”
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generis, de caráter essencialmente privado (e, portanto, regido pelas normas aplicáveis às relações empregatícias comuns à esfera empresarial privada), mas com resquícios de publicismo (e, naturalmente, submetido à obediência obrigatória dos princípios norteadores da atuação do administrador público).
O servidor sob este regime está submetido, como diz Di Pietro (1990, p. 424),
... a todas as normas constitucionais referentes a requisitos para a investidura, acumulação de cargos, vencimentos, entre outras previstas no Capítulo VII, do Título III, da Constituição.
A terceira modalidade de regime jurídico é aquela de natureza contratual, de âmbito
civil e administrativo, voltada para atender necessidade temporária de excepcional interesse
público (CF/88, art. 37, IX). Tem-se aí uma contratação temporária, não se estabelecendo
uma relação de emprego. A Constituição Federal atribui à lei ordinária os casos em que pode
ser estabelecida. No plano federal, encontra-se regida pela Lei n.º 8.745, de 9 de dezembro
de 1993, que foi alterada pela Lei n.º 9.849, de 26 de outubro de 1999.
A questão do regime jurídico dos servidores públicos envolve uma série de aspectos
legais, como bem resume Hely Lopes Meirelles (1975,p.377), verbis:
O regime jurídico dos servidores civis consubstancia preceitos legais sobre a acessibilidade aos cargos públicos, a investidura em cargo efetivo (por concurso público) e em comissão, as nomeações para funções de confiança; os deveres e direitos dos servidores; a promoção e respectivos critérios; o sistema remuneratório (subsídios ou remuneração, envolvendo os vencimentos, com as especificações das vantagens de ordem pecuniária, os salários e as reposições pecuniárias); as penalidades e sua aplicação, o processo administrativo; e a aposentadoria.
Veremos aqui especificamente o tocante à questão da investidura por concurso
público, a partir da aplicação do princípio constitucional da isonomia.
2 – Imperatividade do Concurso Público para o acesso a cargos e
empregos na Administração Pública.
2. 1. Aspectos gerais.
Originada no latim concursus, de concurrere (SILVA, 1963, p.194), a expressão
“concurso”, no âmbito do Direito Administrativo, é utilizada para designar o meio pelo qual
a Administração Pública leva a efeito a seleção de candidatos que pretendem atuar no
serviço público como empregados ou ocupantes de cargos.
Nas palavras de Hely Lopes Meirelles (1975, p.396), verbis,
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O concurso é o meio técnico posto à disposição da Administração pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF.
Barbosa Rigolin, ao analisar as principais diferenças entre o texto constitucional de
1988 e o anterior no tocante à situação dos Servidores Públicos, observa que nenhuma
mudança houve em termos do concurso em si mesmo, ou seja, permanece, como antes, a ser
aplicado através da análise unicamente de provas, ou através de provas e títulos.
Especificamente em relação aos títulos, informa o autor que a própria CF/88 já fixa
como tal o tempo de serviço dos servidores que se estabilizaram por força do art. 19, § 1.º
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT (RIGOLIN, 1989, p. 131). No
mais, os títulos serão, verbis:
... quaisquer entre os admitidos no edital que só aceitará aqueles que concorram para demonstrar a qualificação do concursando conforme o posto a que concorra, desprezando os impertinentes ou não-correlatos. (RIGOLIN, 1989, p. 132)
No que tange às provas, comenta Rigolin (1989, p.132) que, verbis:
podem ser de todas as naturezas possíveis, desde que compatíveis com as dos postos colocados em certame, e assim hábeis a aferir a capacidade específica de cada candidato. Serão as provas, então, teóricas (escritas, subjetivas ou objetivas, sobre a matéria específica ou sobre conhecimento geral pertinente , ou orais), físicas, psicotécnicas, de suficiência mecânica ou de manuseio de equipamento determinado, ou de qualquer outra ordem, se respeitante às funções a preencher, devendo, todas, estar previstas no edital”. (Grifos nossos.)
Na história das Constituições Brasileiras, a exigência de concurso público surge com
a Carta de 16 de julho de 1934. Daí em diante passou a constar em todos os textos
constitucionais que se sucederam.
Na Constituição Federal de 1988, a exigência encontra-se prevista no art. 37, inc. II
(com a redação dada pela EC n.º 19/98), verbis:
art. 37. (...) II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. (Grifos nossos.)
Um primeiro aspecto a considerar relaciona-se com a questão de a quem se dirige
esta obrigatoriedade.
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Nos termos da Constituição de 1988 (art. 37, II) o concurso público destina-se a
possibilitar a investidura em cargo ou emprego público, modalidades sobre as quais vale
destacar brevemente alguns elementos.
Por “cargo público” compreende-se, segundo Meirelles (1975, p.380), verbis,
... o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei.
Zanella Di Pietro (1990, p.427) demonstra o cargo público como uma unidade de
atribuições na qual o vínculo que liga o servidor ao Estado é de natureza estatutária, ou seja,
regida por Estatuto próprio dos Servidores Públicos 2.
É de se observar, como faz Rigolin (1989, pp.96-97), que a lei criadora de cargo
público necessita especificar certos aspectos tais como, se o cargo é de provimento efetivo
ou em comissão, se é isolado ou de carreira (classes, estágios, fases, níveis ou diferenciações
hierárquicas, “dispostos em seqüência de caráter evolutivo e ascencional”) .
A modalidade “emprego público”, por sua vez, refere-se, como também diz Barbosa
Rigolin (1989, p.98), ao
... vínculo profissional estabelecido entre o cidadão e a Administração pública por contrato de trabalho, regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
Traçando um paralelo com a modalidade anterior, Di Pietro (1990, p.427) faz
referência ao emprego público também como uma unidade de atribuições, mas na qual o
vínculo entre servidor e Estado é um vínculo de natureza contratual, regida pela CLT, e não
de natureza estatutária.
No plano federal, o regime de emprego público é disciplinado pela Lei n.º 9.962, de
22 de fevereiro de 2000, relativamente ao pessoal da Administração federal direta,
autárquica e fundacional. Tirando palavras do texto constitucional, a lei dispõe que:
art. 2.ºA contratação de pessoal para emprego público deverá ser precedida de concurso público de provas ou de provas e títulos, conforme a natureza e a complexidade do emprego.
2 No âmbito federal, a Lei n.º 8.112, de 11.12.1990, dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
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Dispõe também, a Lei n.º 9.962/00 que a relação de trabalho, no emprego público,
rege-se pela CLT e pela legislação trabalhista correlata, naquilo que a lei não dispuser em
contrário (art. 1.º, caput).
Como antes mencionado, a Constituição Federal põe sob dependência da aprovação
em concurso público de provas ou de provas e títulos, a investidura em ambas as
modalidades – cargo público ou emprego público. Ao mesmo tempo, prevê excetuar-se da
exigência do concurso público o caso das nomeações para cargo em comissão declarado em
lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, II).
Tal significa então que os cargos comissionados sobre os quais a lei ordinária faculte
ao administrador público a sua nomeação e exoneração, ficam, por disposição constitucional,
livres da necessidade de aprovação em concurso público para o seu provimento.
Importante ainda observar que o art. 37, inc. II do texto constitucional, ao tratar da
exigência do concurso público para o preenchimento de cargos e empregos e dispor quanto
às ressalvas à regra posta, foi silente em relação às funções públicas, antes referidas no inc. I
do mesmo dispositivo (cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros...).
Para Di Pietro (1990, p.432) a omissão se explica em razão de que o termo função
pública, segundo o seu entendimento, refere-se aos contratos por tempo determinado para
atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (CF, art. 37, IX), bem
como para as funções de confiança, de livre provimento e exoneração. Daí, no entendimento
da autora, as funções públicas estarem ausentes da exigência de concurso público feita
relativamente aos cargos e empregos públicos.
José Afonso da Silva (1976, p.659), pelo contrário, avalia este fato como uma grave
omissão do texto constitucional. Diz o autor :
Deixa a Constituição, porém, uma grave lacuna nessa matéria, ao não exigir nenhuma forma de seleção para a admissão às funções (autônomas) referidas no art. 37, I, ao lado dos cargos e empregos. Admissões a funções autônomas sempre foram fonte de apadrinhamentos, de abusos e de injustiças aos concursados.
Para Barbosa Rigolin (1989, p.101), as “funções públicas” tomadas no seu sentido
constitucional, tal qual se infere no art. 37, inc. I, como não sendo nem cargo público nem
emprego público, consistiriam nas contratações por tempo determinado para atender a
necessidade temporária de excepcional interesse público (CF/88, art. 37, IX), bem como em
cargos permanentes remanescentes de ordenamentos constitucionais anteriores, “e que, por
qualquer razão, permaneceram até hoje”, a exemplo dos extra-numerários e os interinos.
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O autor converge, então, para a posição de Di Pietro, anteriormente citada, no sentido
de explicar o não lugar das funções no dispositivo constitucional que prevê a investidura por
meio de aprovação em concurso público. Vale dizer, a inexigibilidade de concurso para as
contratações por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional
interesse público, e aquelas situações antigas, não mais abertas a ingresso.
Um segundo aspecto diz respeito à questão do acesso do servidor a cargo de natureza
diversa daquele já ocupado.
A Carta de 1934 previa a aprovação em concurso como condição, mas de forma
limitada, para a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas
(art. 170, 2.º). Ou seja, seria possível, no caso de servidor efetivo que desejasse acesso a
cargo de outra natureza, o chamado provimento derivado, sem necessidade de que viesse a
se submeter a novo concurso.
Esta previsão foi seguida pela Constituição de 10 de novembro de 1937 que, ao
determinar ao Legislativo a elaboração do Estatuto dos Funcionários Públicos, fez constar
desde logo o concurso de provas e títulos como condição para a primeira investidura nos
cargos de carreira (art. 156, b).
Mais tarde, também a Constituição de 18 de setembro de 1946 manteve o
entendimento anterior, ao determinar que a primeira investidura em cargo de carreira e em
outros que a lei determinasse, deveria se efetuar mediante concurso (art. 186).
Esta limitação do concurso público à primeira investidura foi também adotada pela
Constituição Federal de 1967 (art. 95, § 1.º), e pela Emenda Constitucional n.º 01, de
1969 (art. 97, § 1.º).
Tal situação só veio a se modificar com o advento da Constituição Federal de 6 de
outubro de 1988. Em sua redação original, dispunha a CF/88 que, verbis,
art. 37. (...)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Ou seja, o novo texto constitucional passou a exigir a sujeição ao concurso público
de modo genérico, impedindo a possibilidade de o provimento ser feito de forma derivada no
caso de servidor já efetivado em relação a cargo de natureza diversa. Como observa Celso A.
Bandeira de Mello (1986, p. 429), a Constituição Federal de 1988 veio no sentido de, verbis:
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... obstar a que o servidor habilitado por concurso para cargo ou emprego de determinada natureza viesse depois a ser agraciado com cargo ou emprego permanente de outra natureza, pois esta seria uma forma de fraudar a razão de ser do concurso público.
O Supremo Tribunal Federal (STF) ao tratar do tema tem firmado o entendimento de
que a partir da redação da CF/88, a imprescindibilidade da aprovação em concurso público
opera de modo genérico, afetando não só a primeira investidura como o preceituado nas
Cartas Políticas anteriores, mas também as investiduras posteriores, em cargos de natureza
diversa daquela na qual o servidor encontra-se efetivado. No MS 23670/DF (DJ 08.02.02;
p.261) seguindo voto do Ministro Maurício Corrêa, tal posição foi explícita, anunciando-se
que o provimento derivado “está banido do ordenamento jurídico”. Também no julgamento
da ADI 248/RJ (DJ 08.04.94 p.7222) entendeu a Corte Suprema, seguindo o voto do
Ministro Celso de Mello, que, verbis,
A partir da Constituição de 1988, a imprescindibilidade do certame público não mais se limita a hipótese singular da primeira investidura em cargos, funções ou empregos públicos, impondo-se as pessoas estatais como regra
geral de observância compulsória. 3
A respeito da extensão do concurso público para as demais investiduras, Hely Lopes
Meirelles (1975, p.396) observa, contudo, que:
O art. 37, II, da CF, ao abolir a expressão ‘primeira’, constante da Constituição anterior, tornou obrigatório o concurso para o ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor ingressou por concurso. Dentro da carreira, o acesso a seus vários degraus se faz por critérios internos de seleção, constantes do Estatuto. (Grifos nossos.)
Tal é o que se encontra, aliás, na decisão do STF anteriormente citada, no MS 23670
– DF que teve como Relator o Ministro Maurício Corrêa:
(...)
2. A investidura de servidor efetivo em outro cargo depende de concurso público (CF, artigo 37, II) ressalvadas as hipóteses de promoção na mesma carreira e de cargos em comissão.
No bojo da reforma administrativa, a EC - 19/98 manteve a exigência genérica do
concurso público para todas as investiduras em carreiras diversas.
3 A título de exemplo veja-se também a mesma posição na ADI 656/RS (Relator Min. Carlos Velloso – DJ 31.10.2002), no AI 195022 AgR-AgR/DF (Relator Min. Néri da Silveira – DJ 22.03.02; p.41), na ADI 1251 MC/MG (Relator Min. Celso de Mello – DJ 22.09.1995; p.30590), na ADI 1072 MC/RJ (Relator Min. Sydney Sanches – DJ 04.11.1994; p.29828) e na ADI 637 MC/MA (Relator Min. Celso de Mello – DJ 08.04.1994; p.7240)
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Promoveu, no entanto, a alteração do art. 37, inciso II do texto Constitucional
vigente, para determinar que a aplicabilidade do concurso público considere a natureza e a
complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei:
art. 37. ...
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Observa Moraes (1999, p.45) que essa redação dada pela EC - 19/98,
...não exclui a imperatividade do concurso público, mas tão-somente permitirá ao legislador ordinário, dentro do critério de razoabilidade, fazer a opção pelo concurso de provas ou de provas e títulos.
Aliás, o STF já se manifestou, no julgamento da ADI 1854/PI (Relator Ministro
Sepúlveda Pertence – DJ 04.05.2001; p.2), no sentido de que por esta alteração promovida
pela EC-19/98,
... o que ficou explicitamente submetido à ‘natureza e a complexidade do cargo ou emprego’ não foi a exigência do concurso público mas a disciplina do mesmo concurso.
2.2. O magistério público e o concurso público de provas e títulos.
Especificamente no tocante ao magistério público houve uma preocupação, do
Constituinte de 1934, em expressar a exigência do concurso público de provas e títulos
como algo indispensável para o provimento de seus cargos:
Art. 158. É vedada a dispensa do concurso de títulos e provas no provimento dos cargos do magistério oficial, bem como, em qualquer curso, a de provas escolares de habilitação, determinadas em lei ou regulamento. (Grifos nossos.)
Ou seja, a realização do concurso público de provas e títulos era prevista como
obrigatória, mas unicamente para o provimento dos cargos magistério oficial ou público, não
estendendo o texto constitucional tal obrigatoriedade aos cargos do magistério oferecidos
por instituições particulares.
Mais tarde a Constituição Federal de 1946 relacionou entre os princípios a serem
adotados pela legislação relativa ao ensino, o concurso de provas e títulos para o provimento
das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficial ou livre (CF/46, art. 168,
VI). Em outras palavras, no caso do ensino secundário restringia-se a obrigatoriedade do
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concurso ao ensino público, enquanto que no caso do ensino superior esta obrigatoriedade
abrangia tanto o ensino público quanto o oferecido por instituições particulares.
A Constituição de 1967, por sua vez, deu como imprescindível o concurso público
para o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras de grau médio e superior, mas
apenas no âmbito do ensino oficial, ou público. Para o ensino particular o provimento se
faria mediante simples prova de habilitação. Outra determinação do texto constitucional de
67 foi no sentido de que em ambas as situações o concurso ou a habilitação fossem
destinados ao provimento não só dos cargos iniciais da carreira do magistério, mas também
dos cargos finais da carreira (CF/67, art. 168, § 3.º, V).
A mesma determinação, inclusive com redação semelhante, foi dada posteriormente
pela EC – 01/69, em seu art. 176, § 3.º, inc. VI.
Atualmente a Constituição Federal de 1988 dispõe (com redação dada pela EC -
19/98) entre os princípios a serem seguidos no plano educacional:
art. 206. (...).
V – valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos. (Grifos nossos.)
Assim, o texto constitucional atual determina, para o provimento dos cargos do
magistério público, a realização de concurso de provas e títulos.
No plano infra-constitucional, a questão é tratada pela Lei n.º 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, ou “Lei
Darcy Ribeiro”), que dispõe, verbis:
art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:
I - ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; (Grifos nossos.)
Ou seja, a LDB reporta-se ao princípio constitucional do ingresso na carreira do
magistério público exclusivamente por concurso público de provas e títulos, determinando
seja observado pelos diversos sistemas de ensino (da União, dos Estados e dos Municípios).
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3 – os princípios da isonomia e razoabilidade na acessibilidade aos cargos e
empregos na administração pública.
O ordenamento constitucional ao determinar que a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos
(CF/88, art. 37, II), teve por finalidade garantir a todos os interessados, indistintamente, a
possibilidade de acesso a tais cargos e empregos, a partir de concorrência a ser realizada e
aferida com critérios objetivos e técnicos.
Esta opção da Constituição Federal pelo concurso público como critério para o
preenchimento dos cargos e empregos na Administração tem por escopo, como observa
Celso A. Bandeira de Mello (1986, p.249), conferir a todos iguais oportunidades de disputa.
Eis porque traz à tona, primeiramente, um dos princípios fundamentais no âmbito
constitucional: o princípio da igualdade ou da isonomia, expresso de várias formas no texto
constitucional, mas, sobretudo em seu art. 5.º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza...”
Carlos Ari Sundfeld (1992, pp.153 e 171) vê na igualdade dos particulares perante o
Estado um dos princípios gerais do Direito Público no Brasil. Seria encontrado “na base de
inúmeros institutos e regras de direito público”, inclusive na “obrigatoriedade do concurso
público para admissão dos servidores”. E não poderia ser diferente num Estado democrático
de direito.
A Constituição Federal de 1988, no caput do art. 37, que trata das disposições
gerais relativas à Administração Pública, relaciona como um de seus princípios, o da
“impessoalidade”, que para B. de Mello (1986, p.96) seria o próprio princípio da igualdade.
O princípio da impessoalidade, nas palavras do autor,
... traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa ...
Então, perfeitamente identificado com o princípio da impessoalidade, o princípio da
isonomia, ainda conforme B. de Mello (1986,p.57),
... consagra, no art. 37, incisos I e II, a igualdade de todos em face do preenchimento de cargos na Administração. Esta não pode distribuí-los entre apaniguados ou protegidos, pois tem que preenchê-los mediante concurso público.
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Posta a importância, para o concurso público, do princípio constitucional da
isonomia, há que se questionar em que este consiste exatamente, qual o seu significado,
quais os seus limites, até onde vai o seu alcance.
A necessidade de tal questionamento se faz dada a complexa realidade social,
econômica, educacional e cultural, entre outras, existente. Quem seriam, exatamente, os
denominados “iguais perante a lei” no que tange à acessibilidade aos cargos e empregos
públicos ? Estariam as desigualdades sendo rejeitadas em nome de uma igualdade fictícia ?
Afonso da Silva (1976, p.215) esclarece que o princípio da igualdade, verbis,
... não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os ‘iguais’ podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. Este julga , assim, como ‘essenciais’ ou ‘relevantes’, certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência, as pessoas que apresentam os aspectos ‘essenciais’ previstos por essas normas são consideradas encontrar-se nas ‘situações idênticas’, (...); vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos. (Grifos nossos.)
Ou seja, ao aplicar o princípio da isonomia deve a Administração Pública considerar
não uma igualdade absoluta, mas uma igualdade relativa a aspectos considerados como
essenciais pela norma jurídica.
Neste sentido a Constituição Federal determina que:
art. 37. (...) I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (parte final conforme a EC n.º 19/98) (Grifos nossos.)
Vê-se assim que o dispositivo constitucional garante a acessibilidade de todos os
brasileiros aos cargos, empregos e funções públicas, mas não a todos os brasileiros de uma
forma absoluta, como fossem iguais no sentido material. O que o dispositivo garante é a
acessibilidade a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, ou
seja, aqueles “aspectos essenciais” legalmente previstos, e anteriormente mencionados.
José Afonso da Silva (1976, p.569), a respeito desta lei à qual a CF/88 incumbe de
estabelecer os requisitos de acessibilidade aos brasileiros quanto aos cargos, empregos e
funções públicas, observa estar, verbis,
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... limitada pela própria regra constitucional, de sorte que os requisitos nela fixados não poderão importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa. (Grifos nossos.)
No mesmo sentido, Lopes Meirelles (1975, p.395) afirma que, verbis,
... os requisitos a que se refere o texto constitucional (art. 37) hão de ser apenas os que, objetivamente considerados, se mostrem necessários e razoáveis ao cabal desempenho da função pública. (Grifos nossos.)
Portanto, mesmo os requisitos fixados em lei ordinária deverão ter como norte os
princípios da isonomia e da impessoalidade. Devem ser requisitos objetivos, e não
subjetivos, não podendo implicar em tratamento discriminatório em favor ou em desfavor de
quem quer que seja.
Uma outra questão observada por Meirelles refere-se à relação entre os requisitos
postos por uma lei ordinária de caráter local, e aqueles postos pela lei de alcance nacional.
Conforme o autor (MEIRELLES, 1975, pp.394-395), os requisitos apontados pela lei de
caráter nacional devem ser observados pela norma local, não tendo esta competência para
declarar inexigíveis os requisitos previstos na norma mais abrangente:
... à lei específica, de caráter local, é vedado dispensar condições estabelecidas em lei nacional para a investidura em cargos públicos, como, p. ex., as exigidas pelas leis eleitoral e do serviço militar, ou para o exercício de determinadas profissões (CF, art. 22, XVI). E tanto uma quanto outra deverão respeitar as garantias asseguradas no art. 5.º da CF, que veda distinções baseadas em sexo, idade, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. (Grifos nossos.)
Essa exigência de cumprimento do preceituado no art. 5.º do texto constitucional,
consubstanciado no elenco dos direitos e deveres individuais e coletivos, deve ser vista,
contudo, de modo relativo em relação ao desenvolvimento de certas atividades. Como
observa Di Pietro (1990, p.434),
... para determinados tipos de cargo, seria inconcebível a inexistência de uma limitação, quer em relação a sexo, quer em relação a idade. Não se poderia conceber que, para o cargo de guarda de presídio masculino, fossem admitidas candidatas do sexo feminino, ou que para certos cargos policiais fossem aceitas pessoas de idade mais avançada. (Grifos nossos.)
Em outras palavras, mesmo considerando-se o princípio da isonomia, a própria
natureza do cargo pode levar à necessidade de um tratamento diferenciado.
Esta distinção de tratamento, exatamente por se efetuar em razão da natureza do
cargo, tem sua fundamentação no próprio interesse público, na busca pelo melhor
desempenho ou pelo desempenho mais adequado das atividades requeridas.
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Como se trata de uma discrição do administrador público, há que se ter em conta,
para a sua legitimidade, os limites da razoabilidade, os quais, conforme B. de Mello (1986,
p.91) envolvem, verbis,
... critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida.
O princípio da razoabilidade – previsto no art. 2.º, caput, da Lei n.º 9.784, de 29 de
janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública
Federal – é, conforme Di Pietro (1990, p.80), verbis,
... mais uma das tentativas de impor-se limitações à discricionariedade administrativa, ampliando-se o âmbito de apreciação do ato administrativo pelo Poder Judiciário.
Isso quer dizer que se a distinção no acesso aos cargos e empregos públicos fundar-se
em critérios fora dos limites do razoável, o ato pode ser submetido à apreciação do
Judiciário, e invalidado.
Se, no entanto, as restrições impostas estiverem em consonância com o princípio da
razoabilidade, deverão ser consideradas como necessárias ao interesse público, em
atendimento à exigência do próprio cargo, e não como uma quebra do princípio da isonomia.
Assim, como informa Hely Lopes Meirelles (1975, p.395), verbis,
... a jurisprudência tem admitido como válidas, com base no princípio da razoabilidade, exigências que, à primeira vista, pareceriam atentatórias ao princípio da isonomia, tais como as que limitam a acessibilidade a certos cargos em razão da idade, sexo, categoria profissional, condições mínimas de capacidade física e mental e outros requisitos de adequação ao cargo.
Neste sentido, vale transcrever o voto do Ministro Celso de Mello no RMS 21.045-1
DF (DJ de 30.09.1994; p.26169):
... o Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento do RMS 21.046-RJ, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, firmou entendimento no sentido de que a norma constitucional que proíbe a diferença de critério de admissão ao serviço público, por motivo de idade (CF, art. 7.º, XXX, c/c art. 39, § 2.º), não se reveste de caráter absoluto, sendo legítima, em conseqüência, a estipulação de exigência de ordem etária quando esta decorrer da natureza e do conteúdo ocupacional do cargo público a ser provido (RTJ 135/528).
O tema concernente à fixação legal do limite de idade para efeito de inscrição em concurso público e de preenchimento de cargos públicos tem sido analisado pela jurisprudência desta Corte em função e na perspectiva do critério da razoabilidade, em ordem a identificar, como pressuposto de legitimação de possíveis tratamentos normativos diferenciados, a existência, no ato legislativo, de um vínculo de ‘correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida’ (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ‘O conteúdo jurídico do princípio da igualdade’, p. 47, 2.ª ed., 1984, RT).
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Esse eminente publicista, ao analisar o conteúdo do postulado constitucional da isonomia, acentua que se tem por vulnerada a cláusula de igualdade quando o fator diferencial indicado pela norma legislativa não mantém qualquer nexo de pertinência lógico-racional com a exclusão de benefício. E observa (op. Cit., p. 49), verbis:
‘ Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles, todavia, necessita inarredavelmente guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia.’ Bem por isso, e na linha desse entendimento doutrinário, o Supremo
Tribunal Federal, ao apreciar a validade jurídico-constitucional da estipulação de limite máximo de idade para ingresso na carreira de Advogado de Ofício da Justiça Militar, uma vez mais considerou destituído de razoabilidade o critério adotado pelo legislador (...)”(Grifos no original)
O voto, seguido à unanimidade, ensejou Ementa onde consta que
a norma constitucional que proíbe tratamento normativo discriminatório, em razão da idade, para efeito de ingresso no serviço público (CF, art. 39, par. 2.º, c/c art. 7.º, XXX), não se reveste de caráter absoluto, sendo legítima, em conseqüência, a estipulação de exigência de ordem etária quando esta decorrer da natureza e do conteúdo ocupacional do cargo público a ser provido.
Outro voto do Ministro Marco Aurélio Mello no RE 148095/MS (DJ 03.04.1998
p.14) nos dá outro exemplo do entendimento da Corte quanto à possibilidade de restrições
em razão da natureza da função pretendida:
... na hipótese dos autos, o descrímen mostra-se próprio à função a ser exercida. Na carreira policial, exsurge com peculiaridades próprias à função de agente de polícia. Enquanto, por exemplo, o cargo de escrivão não exige, em si, estampa que se mostre até mesmo intimidadora, no caso de agente tem-se justamente o contrário, em face de uma atuação que pressupõe, à primeira visão, respeito aos cidadãos em geral. Assim, não há como considerar discrepante da ordem jurídica em vigor, legislação que imponha aos candidatos ao cargo altura mínima de 1,60 m. Pouco importa que, na espécie, tenha-se o envolvimento de candidata do sexo feminino. A altura mínima exigida mostra-se média, em relação aos padrões brasileiros. Daí a inviabilidade de vislumbrar-se inconstitucionalidade na Lei Complementar n.º 38/89 do Estado de Mato Grosso do Sul. (Grifos nossos.)
Também seguido à unanimidade, o voto veio a corresponder a Ementa na qual se
admite que “em se tratando de concurso público para agente de polícia, mostra-se razoável a
exigência de que o candidato tenha altura mínima de 1,60m.”
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A título de exemplo, vale também destacar as seguintes Ementas de decisões do STF
a respeito da matéria: No RMS 21046/RJ (Relator Ministro Sepúlveda Pertence – DJ
14.11.1991; p.16356) o STF considerou ser “ponderável (...) a ressalva das hipóteses em
que a limitação de idade se possa legitimar como imposição da natureza e das atribuições
do cargo a preencher”. No RE 194952/MS (Relatora Ministra Ellen Gracie – DJ
11.10.2001, p.18), com base em precedente (RE 150.455, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ
07.05.1999), entendeu que “tratando-se de concurso para o cargo de escrivão de polícia,
mostra-se desarrazoada a exigência de altura mínima, dadas as atribuições do cargo, para
as quais o fator altura é irrelevante”. No RE 184635/MT (Relator Min. Carlos Velloso – DJ
04.05.2001; p.35) entendeu que “pode a lei, desde que o faça de modo razoável, estabelecer
limites mínimo e máximo de idade para ingresso em funções, emprego e cargos públicos”.
No RE 140889/MS (Relator p/ o Acórdão Min. Maurício Corrêa, vencido o Relator Min.
Marco Aurélio – DJ 15.12.2000; p.104), entendeu pela “razoabilidade da exigência de
altura mínima para ingresso na carreira de delegado de polícia, dada a natureza do cargo a
ser exercido”. No RE 212066/RS (Relator Min. Mauricio Corrêa – DJ 12.03.1999; p.18),
entendeu o STF que “fere o princípio constitucional da isonomia a previsão em norma
infraconstitucional de limite máximo de idade para ingresso na carreira do magistério”. Na
ADI 1326/SC (Relator Min. Carlos Velloso – DJ 26.09.1997; p.47475) entendeu que “pode
o legislador, observado o princípio da razoabilidade, estabelecer requisitos para a
investidura em cargo, emprego ou função pública”.
Assim sendo, mesmo sem se perder de vista o princípio basilar da isonomia expresso
no texto constitucional, é perfeitamente possível diante da natureza peculiar ou das
exigências específicas de alguns cargos e empregos a utilização, pela Administração Pública,
de critérios objetivos que importem em certos tipos de restrições na feitura dos concursos
públicos, com o objetivo de se buscar o atendimento às demandas específicas colocadas por
tais cargos e empregos. Importa que tais critérios distintivos estejam dentro dos parâmetros
de razoabilidade, conjugando de um lado a garantia de atenção ao interesse público e, do
outro, a impessoalidade.
4 – Acesso específico e diferenciado de professores indígenas ao magistério
público – as “Escolas Indígenas”.
Situados aspectos gerais quanto ao tratamento legislativo, doutrinário e
jurisprudencial à questão do regime jurídico dos servidores públicos, importância do
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concurso para o provimento de cargos na administração pública e dos princípios
constitucionais da isonomia e razoabilidade, passemos agora à análise específica, sob
diversos ângulos, da questão do acesso dos professores indígenas ao provimento de cargos
no magistério público no âmbito da educação escolar indígena, foco central deste trabalho.
4.1. Bases constitucionais do relacionamento Estado Brasileiro/Povos Indígenas.
Cremos que o ponto de partida para a correta compreensão jurídica quanto ao
provimento dos cargos de magistério nas escolas que atendem às comunidades indígenas,
encontra-se não na análise pura e simples das atuais normas que regem a matéria, mas na
percepção da posição histórica do constitucionalismo brasileiro em relação àquele segmento
específico da população.
4.1.1. A marca histórica do etnocentrismo.
Tu regere imperio populos, romane memento. Hae tibi erunt artes, pacisque
imponerem morem, parcere subjectis et debellare superbos 4
A frase dita pelo poeta Virgílio há cerca de dois mil anos, bem expressa o espírito
com o qual o estado brasileiro, direcionou historicamente as suas relações com os povos
indígenas localizados no País. Tidos como culturalmente inferiores, estariam fadados ao
desaparecimento inexorável ou pela incapacidade de sobrevivência diante das exigências do
mundo "civilizado", ou, em caso de adaptação, pelo próprio processo de perda de suas
características-padrão.
Para considerar apenas o passado mais recente, dos diplomas normativos que tiveram
lugar com o advento da República, vê-se que o eixo norteador do tratamento dispensado pelo
Estado aos povos indígenas foi, marcantemente, o da imposição cultural, profundamente
calcado na herança etnocêntrica colonial. Assim, por exemplo, o Decreto n.º 07, de 20 de
novembro de 1889, ao extinguir as assembléias provinciais criadas pelas leis de 12 de
outubro de 1832 e 12 de agosto de 1834 atribuiu aos governadores, até a definitiva
constituição dos Estados Unidos do Brasil, a responsabilidade de promover, entre outras, a
“catequese e civilização dos indígenas” (art. 2.º, § 12). Advinda a Constituição de 1891,
nenhuma palavra sequer foi mencionada naquela Carta a respeito dos povos indígenas.
O Decreto n.º 1.606, de 29 de dezembro de 1906, ao criar uma secretaria de Estado
com a denominação de Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio,
4 “Lembra-te, ó Romano, de sujeitar os povos a teu império. Cabe-te a missão de impor a paz e os costumes, poupar os vencidos e dobrar os soberbos”.VIRGÍLIO. Eneida. Canto VI, Vers. 851 e 853.
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manteve o mesmo espírito do Decreto 07/1889, incluindo em sua órbita de competências
assuntos relativos à “catequese e civilização dos índios” (art. 2.º, al. b).
No mesmo sentido, o Código Civil de 1916 veio a determinar a sujeição dos
“silvícolas” ao regime tutelar, o qual cessaria à medida que se fossem adaptando à
civilização do país (art. 6.º, parágrafo único).
Essas bases etnocêntricas do tratamento dispensado pelo Estado aos povos indígenas
tiveram assento também no plano constitucional. A Constituição Federal de 1934 incluía,
no âmbito das competências privativas da União, a legislação sobre incorporação dos
“silvícolas” à comunhão nacional (art. 5.º, XIX, m). A mesma previsão foi adotada, com
igual redação, pela Constituição de 1946 (art. 5.º, XV, r), pela Constituição de 1967 (art.
8.º, XVII, o), e pela EC – 01/69 (art. 8.º, XVII, o).
Observe-se também que a perspectiva de incorporação dos povos indígenas à
comunhão nacional adotada pelo ordenamento constitucional encontrava ressonância no
plano internacional, através da Convenção n.º 107 da Organização Internacional do
Trabalho 5 (OIT), de 05 de junho de 1957. Promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 58.824,
de 14 de julho de 1966, a Convenção 107 orientava os governos no sentido de porem em
prática programas coordenados e sistemáticos com vistas à proteção das populações
interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países (art. 2.º).
Desta forma, com base nas disposições constitucionais então vigentes e nos
compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional através da Convenção n.º 107 da
OIT, a legislação indigenista em vigor, consubstanciada na Lei n.º 6.001, de 19 de
dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), dispôs expressamente como objetivo, o de
promover, através de todas as ações indigenistas do Estado brasileiro, a integração dos
índios à comunhão nacional (art. 1°, caput ).
4.1.2. A Constituição Federal de 1988 e a diversidade étnico-cultural indígena.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado muda radicalmente
a sua perspectiva em relação aos povos indígenas, ao declarar, verbis :
art. 231. São reconhecidos aos índios a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
5 Convenção sobre a proteção e integração das populações indígenas e outras populações tribais e semitribais de países independentes, aprovada na 40.ª Seção da OIT, Genebra, 1957.
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Através do dispositivo, o Estado passa a reconhecer a realidade pluriétnica e
multicultural do país, consagrando como princípio constitucional o respeito aos modos de
vida próprios dos povos indígenas, aos seus valores e instituições tradicionais, os quais
devem ficar a salvo de quaisquer interferências de cunho integracionista, que devem ser
substituídas por uma convivência respeitosa entre o Estado e aqueles povos.
Importante ressaltar a reafirmação desta perspectiva com a promulgação pelo
Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, da Convenção no 169 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais 6, após um período de
treze anos de discussão parlamentar. Em seu preâmbulo, a Convenção informa que a sua
elaboração considerou, entre outros motivos, a evolução do direito internacional desde 1957
e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do
mundo, o que tornou aconselhável a adoção de novas normas internacionais nesse assunto, a
fim de se eliminar a orientação para a assimilação, presente nas normas anteriores.
Assim, diferentemente da que lhe antecede, a Convenção 169 reconhece, verbis,
... as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram (Convenção 169 da OIT, preâmbulo). (Grifos nossos.)
Conseqüentemente, orienta os governos a assumir
... a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. (art. 2,1)
Mais recentemente a preocupação com a questão da educação indígena foi incluída
no texto da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas 7.
Tendo como princípio o respeito à livre determinação destes povos frente às matérias que
lhes dizem respeito, a Declaração reconhece em seu Preâmbulo “o direito das famílias e
comunidades indígenas em seguir compartilhando a responsabilidade” pela educação de suas
crianças. Reconhece também que:
Todos os povos indígenas têm o direito em estabelecer e controlar seus sistemas e instituições docentes que compartilham educação em seus próprios idiomas, em consonância com seus métodos culturais de ensino- aprendizagem. (art. 14,1)
A Declaração insta os Estados a adotarem em conjunto com os povos indígenas,
medidas de acesso à “educação em sua própria cultura e no próprio idioma” (art.14, 3 ).
6 Aprovada na 71ª Seção da Conferência Internacional do Trabalho, Genebra, 07.06.1989.
7 Aprovado pela Assembléia Geral da ONU em seu 60.º período de sessões (13.09.2007).
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4.2. O lugar da Educação Escolar na relação Estado / Povos Indígenas.
No processo integracionista que pautou a formação histórica do Pais, a Educação
Escolar imposta aos índios desempenhou um dos papéis mais estratégicos e eficazes. O
rompimento da Constituição Federal de 1988 com a perspectiva de incorporação dos índios à
comunhão nacional e o reconhecimento do universo sócio-cultural destes povos
proporcionou então radicais mudanças na forma, conteúdo, objetivos e possibilidades de
procedimentos do sistema educacional concernente às populações indígenas. A Educação
Escolar prestada aos povos indígenas deixa de ser o lugar da integração e passa a ser o lugar
da valorização e da afirmação das especificidades sócio-culturais indígenas e, a partir daí, do
diálogo intercultural.
Analisamos nos itens a seguir os principais elementos desta transformação histórica
de perspectivas em relação à educação escolar indígena.
4.2.1. De uma educação para a integração a uma educação para o respeito à diversidade.
Durante quase todo o século XX, o tratamento normativo relacionado à questão da
educação indígena teve como finalidade única a promoção da incorporação do indígena à
comunhão nacional. Foi o que se viu, por exemplo, com o Decreto n.º 8.072, de 20 de
junho de 1910. Ao criar o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais, o Decreto determinou fossem estabelecidas, nas áreas indígenas, escolas para o
ensino primário, aulas de música, oficinas, máquinas e utensílios agrícolas, destinados a
beneficiar os produtos das culturas, e campos apropriados à aprendizagem agrícola (art. 15).
O Decreto n.º 736, de 06 de abril de 1936 que aprovava, em caráter provisório, o
regulamento do Serviço de Proteção aos Índios, impunha a adoção de medidas e
ensinamentos que teriam por fim a incorporação dos índios à sociedade brasileira,
economicamente produtivos, independentes e educados para o cumprimento de todos os
deveres cívicos. Neste sentido, deveriam ser implantadas medidas e ensinos de natureza
higiênica; escolas primárias e profissionais; exercícios físicos em geral e especialmente os
militares; educação moral e cívica; ensinos de aplicação agrícola ou pecuária (art. 7.º). O
caráter não específico do processo educacional era tanto que o Decreto permitia que as
escolas e demais estabelecimentos de ensino pudessem ser freqüentados pelas crianças dos
arredores ainda que não fossem indígenas (art. 26, parágrafo único).
Talvez a redação mais esclarecedora do espírito integracionista no âmbito da
educação imposta aos índios tenha sido a do Decreto-Lei n.º 1.736, de 03 de novembro de
1939, que subordinava ao Ministério da Agricultura o Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
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Segundo o Decreto, o problema da proteção aos índios se achava intimamente ligado à
questão de colonização, pois se tratava, do ponto de vista material, verbis,
de orientar e interessar os indígenas no cultivo do solo, para que se tornem úteis ao país e possam colaborar com as populações civilizadas que se dedicam às atividades agrícolas. (Grifos nossos.)
No rastro dessa perspectiva integracionista, a Convenção n.º 107/57 da OIT
orientava aos governos dos países conveniados a adoção de medidas destinadas a garantir, às
populações indígenas, uma educação em todos os níveis em pé de igualdade com o resto da
comunidade nacional (art. 21). Sugeria também fosse essa educação adaptada ao grau de
integração social, econômica ou cultural dessas populações na comunidade nacional (art. 22,
1). Quanto à oferta do ensino primário às crianças indígenas, orientava para que tivesse por
objetivo propiciar conhecimentos gerais e aptidões que as auxiliassem a se integrarem na
comunidade nacional (art. 24).
Este enquadramento da educação escolar ofertada aos indígenas à perspectiva
integracionista foi, como vimos, recepcionado pela Constituição Federal de 1967 e em
seguida pela EC – 01/69, ambas tendo como preocupação a incorporação do “silvícola” à
comunhão nacional.
Pouco depois, a Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio)
tendo por base o texto constitucional então vigente (EC - 01/69) e a orientação dada pela
OIT, dispôs que a educação ofertada aos indígenas deveria estar orientada para a integração
na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e
valores da sociedade nacional (art. 50 ).
Inexistia, portanto, qualquer valoração da carga sócio-cultural própria das
comunidades indígenas enquanto conteúdo do processo educativo escolar a ser oferecido e
trabalhado pelo sistema de ensino em vigor no país. Este sistema, nos termos da Lei n.º
6.001/73, era estendido à população indígena, apenas com “as necessárias adaptações” (art.
48), que pouco ou nada atendiam às reais e legítimas necessidades das comunidades
indígenas do ponto de vista educacional.
Foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que se estabeleceram as bases
para uma mudança radical de postura do poder público no tocante à questão da Educação
escolar indígena:
art. 210. (...) § 2°. - O ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
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Ou seja, coerente com o princípio emanado do caput do art. 231, o texto
constitucional garantiu não o simples direito à alfabetização bilíngüe, mas o aproveitamento
de todos os elementos culturais de expressão, comunicação, transmissão e análise de
conhecimento. Determinou-se então que o ensino fundamental deveria ser ministrado às
comunidades indígenas de forma a respeitar os seus usos, costumes e tradições, incluindo-se
os seus processos próprios de aprendizagem, e não apenas o uso das línguas maternas.
4.2.1.1. Transformações no significado e alcance da Educação Escolar Indígena
O significado e o alcance no âmbito da Administração Pública, das disposições
constitucionais em relação à questão da Educação escolar indígena começaram a ser
delineadas a partir da Portaria Interministerial n.º 559, de 16 de abril de 1991. Nela, os
Ministros da Justiça e da Educação resolveram, verbis:
art. 1.° Garantir às comunidades indígenas uma educação escolar básica de qualidade, laica e diferenciada, que respeite e fortaleça seus costumes, tradições, línguas, processos próprios de aprendizagem e reconheça suas organizações sociais.
Ou seja, pela primeira vez um diploma normativo dirige o processo educacional
relativo aos povos indígenas, não para a sua integração à sociedade nacional brasileira, mas
para o fortalecimento das especificidades culturais que a distinguem daquela.
Com este redirecionamento nos objetivos da educação escolar voltada para os povos
indígenas, a Portaria explicitou também a necessidade de se redimensionar a capacitação dos
profissionais em educação para o desenvolvimento desta nova tarefa, de atuação junto a
populações étnicas e culturalmente diferenciadas (art. 7.º), prevendo a sua implementação
através de programas permanentes de formação e especialização (art. 7.º, 1.º).
Ao determinar este redimensionamento na formação dos profissionais da área de
educação a fim de serem supridas as demandas específicas de uma atuação respeitosa junto
às comunidades indígenas, a Portaria Interministerial n.º 559/91 considerou tais
profissionais de modo indistinto, ou seja, tanto indígenas quanto não-indígenas. Observou,
contudo, ser “... garantido, preferencialmente, o acesso do professor índio a esses
programas permanentes (art. 7.º, 2.°)”. (Grifei.)
A partir das análises efetuadas nos espaços colegiados criados em torno da
problemática da educação escolar indígena (Comitê Nacional, Núcleos Estaduais, Comissão
Nacional 8), em que se levou em conta o contexto maior da realidade destes povos, foram
8 Vide o item 4.2.1.2.
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elaboradas em 1993, pelo Comitê de Educação Escolar Indígena, as “Diretrizes para a
Política Nacional de Educação Escolar Indígena”, com o intuito de servir de referência
básica aos planos operacionais dos Estados e Municípios. A respeito da escola indígena, diz
o documento que:
... tem como objetivo a conquista da autonomia sócio-econômico-cultural de cada povo, contextualizada na recuperação de sua memória histórica, na reafirmação de sua identidade étnica, no estudo e valorização da própria língua e da própria ciência – sintetizada em seus etno-conhecimentos, bem como no acesso às informações e aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedade majoritária e das demais sociedades, indígenas e não indígenas. A escola indígena tem que ser parte do sistema de educação de cada povo, no qual, ao mesmo tempo em que se assegura e fortalece a tradição e o modo de ser indígena, fornecem-se os elementos para uma relação positiva com outras sociedades, a qual pressupõe por parte das sociedades indígenas o pleno domínio da sua realidade: a compreensão do processo histórico em que estão envolvidas, a percepção crítica dos valores e contravalores da sociedade envolvente, e a prática da autodeterminação 9.
Como decorrência da visão exposta, a educação escolar indígena tem de ser necessariamente específica e diferenciada, intercultural e bilíngüe. (Grifos nossos.)
Três anos depois, a Lei n.º 9.394/96 determinou o desenvolvimento de programas
integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos
povos indígenas (art. 78, caput), situando entre seus objetivos: a recuperação das memórias
históricas, a reafirmação das identidades étnicas, a valorização das línguas e ciências, tudo
relativamente aos índios, suas comunidades e povos (art. 79, I); o fortalecimento das práticas
sócio-culturais e da língua materna de cada comunidade indígena (art. 79, § 2.º, I); o
desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos
culturais correspondentes às respectivas comunidades (art. 79, § 2.º, III).
Dando seqüência à compreensão das escolas indígenas como portadoras de formas e
conteúdos específicos e diferenciados, o MEC lançou em 1998, ao lado dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino fundamental, o Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Definido como uma nova política de
formação de professores das escolas indígenas, o RCNEI refletia aspectos próprios aos
povos indígenas, em atenção às exigências conceituais da Educação Intercultural Bilíngüe.
Importantes contribuições foram dadas ainda pelo Parecer nº 14/99, da Câmara de
Educação Básica (CEB), órgão do Conselho Nacional de Educação (CNE). Ao analisar o
projeto de resolução que fixa Diretrizes Nacionais para o Funcionamento das Escolas
9 Embora hoje presente na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a expressão “autodeterminação” é controversa no país, sendo talvez melhor compreendida sob o sinônimo de “autonomia”.
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Indígenas, o Parecer tratou de questões como a criação das categorias “Escola Indígena” e
“Professor Indígena” (este como carreira específica do magistério), e a flexibilização tanto
do currículo quanto das exigências e das formas de contratação de professores indígenas.
A aprovação do Parecer n.º 14/99 resultou na Resolução CEB n.º 3, de 10 de
novembro de 1999, que fixa as Diretrizes Nacionais para o Funcionamento das Escolas
Indígenas. A Resolução visa estabelecer,
... no âmbito da educação básica, a estrutura e o funcionamento das Escolas Indígenas, reconhecendo-lhes a condição de escolas com normas e ordenamento jurídico próprios, e fixando as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngüe, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica. (art. 1.º.) (Grifos nossos.)
Pouco depois a questão da educação escolar indígena foi tratada também no Plano
Nacional de Educação aprovado pela Lei n.º 10.172, de 09 de janeiro de 2001. O Plano
determinou, entre outras, o prazo de um ano para a criação da categoria “Escola Indígena”, e
a instituição, pelos sistemas estaduais de ensino, da profissionalização e reconhecimento
público do magistério indígena, com a criação da categoria de “Professores Indígenas” como
carreira específica do magistério.
Embora vise ser implementado no prazo de um decênio, o Plano – no que concerne à
“Educação Indígena” (item 9) – deixa a desejar em vários aspectos sobre os quais poderia ter
avançado, especificamente no tocante ao alcance do direito à utilização de processos
próprios de aprendizagem, na perspectiva da autonomia das comunidades indígenas frente ao
Estado Brasileiro 10. Desaponta também em relação às responsabilidades da União e às
garantias de financiamento público para as escolas indígenas.
Há também que mencionar a Resolução n.º 14, de 16 de maio de 2001, do
Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE),
definidor das orientações e diretrizes para assistência financeira suplementar a programas e
projetos educacionais, para o ano de 2001. No que se refere à Educação Escolar Indígena, a
Resolução fundamentou-se nos conceitos e objetivos firmados pela Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, fazendo referências também à escola indígena, no sentido de que esta
deveria “...ser, portanto, específica, diferenciada e bilíngüe, para atender à interculturalidade,
sua característica básica”.
10 A propósito, veja-se, SILVA, Rosa Helena Dias da. “Plano Nacional: um recuo nos direitos dos povos indígenas”. In: Porantim, Brasília: Cimi, jan/fev-2001, p. 5.
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Estas aspirações em matéria de educação escolar indígena foram confirmadas com a
promulgação da Convenção n.º 169 da OIT. Diferentemente do diploma anterior
(Convenção 107), a Convenção 169 reconhece, verbis,
art. 27. 1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais. 2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade da realização desses programas, quando cabível. 3. Ademais, os governos deverão reconhecer o direito desses povos a criar suas próprias instituições e meios de educação, sempre que tais instituições satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser-lhes facilitados recursos apropriados para essa finalidade. (Grifos nossos.)
4.2.1.2. Transformações nos espaços administrativos.
A partir de 1991, com o início da repartição de atribuições sobre a questão indígena
antes centradas na Funai para diversas esferas de governo, mudanças administrativas
começaram a se processar também em relação à educação escolar indígena. Naquele ano o
Decreto 26, de 04 de fevereiro de 1991 transferiu da Fundação Nacional do Índio – Funai,
para o Ministério da Educação – MEC, a coordenação das ações referentes à Educação
indígena em todos os níveis e modalidades de ensino (art. 1.º). Ao mesmo tempo repassou
aos Estados e Municípios a responsabilidade pelo desenvolvimento de tais ações (art. 2.°).
Em seguida a Portaria Interministerial n.º 559/91 inseriu a assistência educacional
aos povos indígenas no âmbito da proposta de um gerenciamento participativo de políticas
públicas, prevendo-se o assento de outros órgãos governamentais bem como de organizações
não-governamentais afetas à questão. Neste sentido a Portaria determinou a criação, no
MEC, de uma Coordenação Nacional de Educação Indígena com a finalidade de coordenar,
acompanhar e avaliar as ações pedagógicas da Educação Indígena no País (art. 4.º). Além
disso, propôs estimular a criação de Núcleos de Educação Escolar Indígena nas Secretarias
Estaduais de Educação. Tais Núcleos – os NEEIs – contariam com a participação de
indígenas e de organizações não-governamentais, e teriam por finalidade apoiar e assessorar
a escolas indígenas (art. 5.º, § único)
No ano seguinte a Portaria n.º 60, de 08 de julho de 1992 da extinta Secretaria
Nacional de Educação Básica (SNEB), instituiu junto ao Departamento de Educação
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Fundamental e Médio, o Comitê de Educação Escolar Indígena objetivando subsidiar as
ações e proporcionar apoio técnico-científico às decisões relativas à adoção de normas e
procedimentos relacionados ao Programa de Educação Escolar Indígena (art. 2.º). Através da
Portaria MEC n.º 490, de 18 de março de 1993 foi designada a composição do Comitê,
com participação de representações indígenas das regiões Centro-Oeste, Norte e Sul.
Com o advento da Lei n.º 9.394/96 (LDB) passaram a ser delineadas com maior
precisão as competências e responsabilidades no tocante às ações referentes à educação
escolar indígena. Segundo dispôs a LDB, à União caberia a tarefa de apoiar técnica e
financeiramente os sistemas de ensino (estaduais e municipais) no provimento da educação
intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e
pesquisa (art. 79, caput). Ou seja, o provimento da educação seria responsabilidade de
Estados e Municípios, ficando a União com o apoio técnico e financeiro. Determinou
também a LDB a participação das comunidades no planejamento dos programas (art. 79, §
1º) e a inclusão destes nos Planos Nacionais de Educação (art. 79, § 2º).
No ano seguinte a Portaria MEC n.º 1.060, de 25 de setembro de 1997 (DOU de
26.09.97, Seção I, p.21518)11 instituiu junto à Secretaria de Educação Fundamental – SEF, o
Comitê de Educação Escolar Indígena com a finalidade de subsidiar as ações referentes à
Educação Escolar Indígena mediante apoio técnico-científico (art. 1.º). Associações de
professores indígenas e entidades públicas e privadas atuantes na questão da educação
escolar indígena passaram, nos termos da portaria, a indicar os nomes a serem considerados
na composição do Comitê (art. 2.º).
Em virtude da Portaria MEC n.º 1.290, de 27 de junho de 2001 (DOU de
29.06.2001, Seção I), este Comitê de Educação Escolar Indígena foi substituído por uma
Comissão Nacional de Professores Indígenas (art. 1.º), também no âmbito da SEF, tendo por
finalidade subsidiar as ações que envolvem a adoção de normas e procedimentos
relacionados à educação escolar indígena, desenvolvidas pelo MEC (art. 2.º).
Mais tarde, através da Portaria MEC n.º 3.282, de 23 de setembro de 2005 (DOU
de 26.09.2005, Seção 2, p.11), a Comissão então formada exclusivamente por professores foi
por sua vez substituída pela “Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena” (CNEEI),
composta por 15 representantes de organizações indígenas e de professores indígenas de
todas as regiões do país, com a finalidade de subsidiar e deliberar sobre as ações que
envolvem a política de educação escolar indígena, desenvolvidas pelo MEC (art. 1.º). A
11 Revogada pela Portaria n.º 1.290, de 27/06/2001.
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CNEEI encontra-se subordinada ao Departamento de Educação para a Diversidade e
Cidadania, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad),
criada pelo Decreto n.º 5.159, de 28 de julho de 2004 como parte da nova estrutura
regimental do MEC.
Importante mencionar ainda que a temática da educação escolar indígena foi incluída
também no âmbito da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de
Educação (CNE) 12, através da presença de conselheiro indígena.
4.2.2. A construção das categorias “Escola Indígena” e “Magistério Indígena”.
O desenvolvimento dessa nova forma de tratamento da educação escolar indígena,
como uma educação específica e diferenciada, intercultural e bilíngüe, acabou trazendo à
tona dois pontos de grande importância para a sua incorporação no âmbito do ordenamento
jurídico nacional afeto ao tema.
O primeiro ponto é o do reconhecimento da Escola Indígena como uma nova
categoria jurídico-administrativa. O segundo é o também reconhecimento da figura
“professor indígena” como um cargo específico, levando à criação de um “Magistério
Indígena” próprio.
4.2.2.1. “Escola indígena”.
Ao longo dos anos, apesar de em vários documentos ser usual a expressão “Escola
Indígena”, o seu significado sempre foi diverso, a depender das concepções e objetivos de
cada um que a tenha utilizado. Mesmo quando do desenvolvimento do tratamento normativo
sobre o tema com base na perspectiva de uma educação específica, diferenciada,
intercultural e bilíngüe, muitas vezes o termo “escola indígena” limitava-se a simbolizar
apenas questões de conteúdo, a exemplo de currículos específicos, calendários próprios,
utilização de métodos tradicionais de transmissão de saber, e utilização das línguas maternas.
É no entanto com o Parecer CEB nº 14/99 que a expressão “Escola Indígena” passa
a ser explicitada, também, como uma categoria específica, que necessita ser criada pelos
sistemas de ensino, com a implicações que isso acarreta no plano jurídico-administrativo.
Assim, diz o Parecer no item 1 (“Criação da Categoria ‘Escola Indígena’ ”):
Para que as escolas indígenas sejam respeitadas de fato e possam oferecer uma educação escolar verdadeiramente específica e intercultural, integradas
12 Instituído pela Lei n.º 9.131, de 25 de novembro de 1995, o Conselho Nacional de Educação (CNE) possui “atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação e do Desporto”, visando “assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional” (art. 7.º).
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ao cotidiano das comunidades indígenas, torna-se necessário a criação da categoria "Escola Indígena" nos sistemas de ensino do país. Através desta categoria, será possível garantir às escolas indígenas autonomia tanto no que se refere ao projeto pedagógico quanto ao uso de recursos financeiros públicos para a manutenção do cotidiano escolar, de forma a garantir a plena participação de cada comunidade indígena nas decisões relativas ao funcionamento da escola.(MEC/CNE–CEB.Parecer 14/99, p.10)
Como conseqüência, a Resolução CEB n.º 3/99 veio a fixar as Diretrizes Nacionais
para o funcionamento das Escolas Indígenas. A Resolução atribuiu aos Estados a
competência para regulamentar administrativamente tais escolas, de modo a serem
integradas no sistema educacional estadual como unidades próprias, autônomas e específicas
(art. 9.º, II, c). Fixou ainda, como competência dos Conselhos Estaduais de Educação, o
estabelecimento de critérios específicos para a criação e regularização das escolas indígenas,
a autorização para o funcionamento das mesmas e o seu reconhecimento (art. 9.º, III, a e b).
Posteriormente o Plano Nacional de Educação aprovado pela Lei n.º 10.172/01, no
item (9) destinado à “Educação Indígena”, estabeleceu como um de seus objetivos e metas:
6. Criar, dentro de um ano, a categoria oficial de ‘escola indígena’ para que a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngüe seja assegurada. (Grifos nossos.)
Este ato de criação da Escola indígena como categoria oficial seria, conforme
entendimento expresso no Parecer CEB-14/99, responsabilidade dos sistemas de educação
dos Estados.
4.2.2.2. “Magistério indígena”.
A preocupação com a necessidade de uma estrutura diferenciada em relação ao
magistério no tocante à educação escolar indígena é apontada pela primeira vez em 1993, no
documento “Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena”,
elaborado pelo Comitê de Educação Escolar Indígena, do MEC. Diz o documento (p. 22):
A especificidade da educação escolar indígena pressupõe, para o quadro de seus professores, uma carreira diferenciada. Isto deve-se aos aspectos determinados pelas questões de interculturalidade, resguardando-se o direito à equidade na remuneração, isto é, isonomia salarial com relação ao quadro geral de professores. (...) A progressão funcional deve ser entendida como conseqüência da produção de conhecimento do professor indígena, devendo-se prever, para isso, Cursos de Formação de Professores para ensino de 1.° e 2.° graus, Curso de Magistério. Esses cursos devem propiciar a consecução de pesquisas sobre questões da cultura e sociedade do professor e servirão de parâmetro para o estabelecimento dos níveis funcionais. (Grifos nossos.)
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Contudo, a primeira vez em que se fala explicitamente na perspectiva de criação de
um “Magistério Indígena” é no Parecer CEB n.º 14/99 (p. 20):
... é preciso instituir e regulamentar nas secretarias estaduais de educação a carreira do magistério indígena, garantindo aos professores índios, além de condições adequadas de trabalho, remuneração compatível com as funções que exercem e formação adequada para o exercício de seu trabalho. Para tanto, é necessário que os sistemas estaduais de ensino instituam e regulamentem a profissionalização e reconhecimento público do magistério indígena, criando a categoria de ‘professor indígena’ como carreira específica do magistério,... (Grifos nossos.)
Observe-se que essa proposta de criação do “Magistério Indígena” encontra-se
diretamente relacionada à constatação de a maioria do professorado atuante nas escolas
situadas nas áreas indígenas ser formada justamente por professores indígenas 13. Este fato,
e as exigências colocadas pela Escola Indígena como veículo de um novo modelo
educacional – que se volta não mais para a integração mas para a especificidade étnica, a
diversidade cultural, a interculturalidade, a utilização das línguas maternas – , acabaram por
colocar a necessidade de um novo perfil para o professor atuante nas escolas indígenas, ou
seja, o de ser, fundamentalmente, um “professor indígena”. Em outras palavras, pelo
Parecer CEB n.º 14/99, estabeleceu-se a exigência de o professor ser indígena, e não
preferencialmente indígena.
Entretanto colocou o Parecer a necessidade de o professor pertencer prioritariamente
– mas não necessariamente – , à mesma identidade étnica da comunidade assistida:
Os profissionais que atuarão nas ‘Escolas Indígenas’ deverão pertencer, prioritariamente, às etnias envolvidas no processo escolar. (MEC/CNE – CEB. Parecer 14/99, pág. 20) (Grifos nossos)
Esta orientação foi adotada pela Resolução CEB n.º 3/99, que fixou as Diretrizes
Nacionais para o funcionamento das Escolas Indígenas :
Art. 8.º A atividade docente na escola indígena será exercida prioritariamente por professores indígenas oriundos da respectiva etnia.
A Resolução também determinou competir aos Estados instituir, regulamentar,
profissionalizar e reconhecer publicamente a categoria magistério indígena (art. 9.º, II, d).
Por fim o Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n.º 10.172/01, colocou
entre seus objetivos e metas no que tange à “Educação Indígena” (Item 9),
13 Diz o Ministério da Educação que “os dados do Censo Escolar INEP/MEC- 2006 apontam a existência de 2.422 escolas funcionando nas terras indígenas atendendo a mais de 174 mil estudantes”, com “aproximadamente 10.200 professores, 90% deles indígenas”. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/secad/index.php?option=content&task=view&id= 37&Itemid=164 > Acesso: 04.01.2008
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15. Instituir e regulamentar, nos sistemas estaduais de ensino, a profissionalização e reconhecimento público do magistério indígena, com a criação da categoria de professores indígenas como carreira específica do magistério, ... (Grifos nossos.)
4.2.2.3. Algumas notícias sobre a atual implementação pelos Estados.
Segundo o Ministério da Educação, existem atualmente 1.113 escolas indígenas
vinculadas diretamente às Secretarias Estaduais de Educação, enquanto que outras 1.286
escolas, “são mantidas por Secretarias de Educação de 179 Municípios” 14. Até o momento o
MEC ainda não disponibilizou dados sistematizados acerca do andamento da
implementação, pelas administrações estaduais e municipais, dos procedimentos relativos à
criação / reconhecimento / regulamentação quer da categoria “Escola Indígena” quer do
“Magistério Indígena”. A Pasta reconhece que apesar do prazo de um ano previsto no Plano
Nacional de Educação (2001), em muitas Unidades da Federação tais categorias não foram
implementadas:
os sistemas de ensino já deveriam estar operando com o reconhecimento dessa nova categoria de escola, (...). Em todo o Brasil, porém, as escolas indígenas apresentam diferentes situações de reconhecimento legal, não havendo números precisos sobre quais são reconhecidas como escolas indígenas.
No entanto, a partir de uma rápida pesquisa na Rede Internet podemos enumerar
algumas iniciativas já adotadas. No Mato Grosso do Sul por exemplo, a criação da
categoria “Escola Indígena” no sistema estadual de ensino foi efetuada mediante o Decreto
Estadual n.º 10.734, de 18 de abril de 2002 15. Em Pernambuco o Decreto n.º 24.628 de 12
de agosto de 2002 determinou que a Escola Indígena deve funcionar com normas e
ordenamento jurídico próprios, observadas as diretrizes curriculares do ensino intercultural
bilíngüe, visando a valorização plena das culturas dos povos indígenas, respeitadas as suas
diversidades étnicas (art. 2.º). No Rio de Janeiro, através da Deliberação CEE n.º 286 de 09
de setembro de 2003, o Estado estabeleceu “no âmbito da Educação Básica, a estrutura e o
funcionamento das Escolas Indígenas, na condição de instituições com ordenamento jurídico
próprio” (art. 1.º), ao mesmo tempo em que reconheceu como “Escola Indígena” o
“Estabelecimento de Ensino, de Educação Básica, localizado em terras indígenas”(art. 2º).
14 Dados que referem-se sobretudo aos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Pará, Paraná, Bahia, Paraíba e Espírito Santo. Disponível em: < http://portal. mec.gov.br/secad/index.php?option=content&task=view&id=37&Itemid=164 > Acesso: 04.01.2008.
15 Anexo da Lei nº 2.791, de 30.12.2003. Plano Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul. DO n.º 6.155, de 31 de dezembro de 2003. Disponível em: < http://aacpda
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No Mato Grosso a Resolução n.º 201/04-CEE/MT de 13 de julho de 2004, ao fixar normas
estaduais para a estrutura, funcionamento e organização das Escolas Indígenas no Sistema
Estadual de Ensino, declarou que a Educação Escolar Indígena constitui-se em “modalidade
de educação regular, com características específicas e diferenciadas e com normas e
ordenamento jurídicos próprios” (art. 1º), competindo ao Estado criar a Categoria “Escola
Indígena”, para a oferta e a execução da Educação Escolar Indígena (art. 2.º) 16. No Amapá
destaca-se a Lei n.º 984, de 19 de abril de 2006 (DOE de 25.04.2006), que cria o cargo de
provimento efetivo de Professor de Ensino Indígena, no quadro de pessoal civil do Estado.
5 – O concurso público específico para os cargos no “magistério indígena” e o
princípio da isonomia.
Em 1993 o documento “Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar
Indígena” já defendia a idéia de um concurso público específico, como condição de
acessibilidade aos quadros de professores nas escolas indígenas. Diz o documento:
O acesso à carreira dar-se-á por concurso público específico, estando habilitado a prestar provas da língua indígena e da língua portuguesa o candidato designado pela comunidade indígena interessada. (Grifos nossos.)
O concurso, entretanto, não seria dirigido necessariamente a professores indígenas,
podendo ser feito por não-indígenas, uma vez que não se propunha, na época, a criação da
categoria “professor indígena”.
Anos mais tarde o Parecer CEB nº 14/99 (p.20), coloca para os sistemas estaduais
de ensino a necessidade de criação da categoria “Professor Indígena”, verbis,
... como carreira específica do magistério, com concurso de provas e títulos adequados às particularidades lingüísticas e culturais das sociedades indígenas, garantindo a esses professores os mesmos direitos atribuídos aos demais do mesmo sistema de ensino, com níveis de remuneração correspondente ao seu nível de qualificação profissional. (Grifos nossos.)
O Parecer orientava inclusive no sentido de as provas virem a ser, verbis,
... elaboradas por especialistas em língua e cultura das respectivas comunidades indígenas, com especialidades que se referem aos parâmetros
ppls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/secoge/govato.nsf/448b683bce4ca84704256c0b00651e9d/889f7ee8c2214cd504256e1200460728?OpenDocument> Acesso: 06.01.2008.
16 No ano de 2002 o Convênio n.º 33/02, firmado entre o Município de Sapezal e a Secretaria de Educação do Estado do Mato Grosso objetivando a “implantação de um Programa de atendimento às Escolas Indígenas através de regime de colaboração”, incluiu entre as obrigações da referida Secretaria, a de “encaminhar processos para instituir e regulamentar a profissionalização e o reconhecimento público do magistério indígena, a ser admitido mediante concurso específico” (Cláusula Segunda, II, a). Disponível em: <http://www. pmsapezal.com.br/leis.asp?arquivo=LEI-00285-2002.TXT> Acesso: 06.01.2008.
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de formação, etnicidade e aspectos sócio-culturais e lingüísticas requeridos para o exercício do magistério indígena. (Grifos nossos.)
Em seguida a Resolução CEB 03/99, fixando as Diretrizes Nacionais para o
funcionamento das Escolas Indígenas, determina que a admissão à carreira do Magistério
Indígena seja feita mediante concurso público específico (art. 9.º, II, d).
Importante observar que ao encampar a idéia da criação do Magistério Indígena, a
Resolução admite que o concurso seja direcionado especificamente para aqueles
profissionais – os professores indígenas, e não ao professorado em geral.
Essa idéia da realização de concurso específico, dirigido ao professorado indígena,
acabou sendo incorporada ao Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n.º
10.172/01. Ao tratar dos objetivos e metas para a Educação Escolar Indígena, o Plano prevê
a realização de concurso de provas e títulos adequados às particularidades lingüísticas e
culturais das “sociedades” indígenas (9.3, parágrafo 15), o que se destina ao provimento dos
quadros de “professor indígena”, categoria que o Plano prevê como carreira específica do
Magistério, a ser criada no âmbito dos sistemas estaduais de ensino.
A esse respeito fazem-se necessárias algumas reflexões no âmbito dos princípios
norteadores da Administração Pública.
Primeiramente, em relação à questão da especificidade do concurso público. Quando
se fala em concurso público específico, adequado a particularidades lingüísticas e culturais
indígenas, fala-se que a forma e conteúdo dos certames deve necessariamente fugir daquilo
sedimentado como usual em relação ao magistério não-indígena. Em outras palavras, que
seja voltado especificamente para as necessidades do novo conceito de “escola indígena”,
arrimado nas disposições constitucionais expressas nos arts. 210, § 2.º (uso das línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem), e 231, caput (proteção e respeito à
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições).
Tem-se então que tais concursos devam ser elaborados de uma forma própria,
específica, diferenciada dos demais concursos para provimento dos cargos da carreira do
magistério comum, não-indígena.
Como esclarece Hely Lopes Meirelles (1975, p.397) acerca da questão da forma dos
concursos, estes, verbis,
... não têm forma ou procedimento estabelecido na Constituição, mas é de toda conveniência que sejam precedidos de uma regulamentação legal ou administrativa, amplamente divulgada, para que os candidatos se inteirem de suas bases e matérias exigidas.
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Ou seja, a Constituição Federal (art. 37, II) exige o concurso público como
condição de acessibilidade aos cargos e empregos na administração pública, mas ao fazê-lo
não prescreve forma determinada pela qual deva ser realizado. Não há, portanto, qualquer
impedimento a que o concurso público para o provimento da carreira de Magistério Indígena
venha a ser realizado segundo molde específico, diferenciado, segundo regramento a cargo
da administração. Esta, ainda segundo Meirelles (1975, pp. 397-398),
... é livre para estabelecer as bases do concurso e os critérios de julgamento, desde que o faça com igualdade para todos os candidatos, tendo, ainda, o poder de, a todo tempo, alterar as condições e requisitos de admissão dos concorrentes, para melhor atendimento do interesse público.
Em segundo lugar, quanto à possibilidade jurídica do direcionamento do concurso a
um universo específico de participantes, definidos em razão de sua origem étnica.
Tratando-se de concurso para provimento do cargo de “professor indígena” como
“carreira específica do Magistério”, obviamente que o público que aí se tem por objeto é
composto, especificamente, por professores indígenas. Ou seja, o concurso é direcionado, é
dirigido, exclusivamente, ao professorado indígena.
Poder-se-ia dizer que tal situação constituiria numa discriminação de origem racial
ou étnica, contra o professorado não-indígena que, historicamente, sempre teve um papel na
oferta do ensino escolar junto às comunidades indígenas, se bem que atualmente minoritário.
Importa saber, aqui, se este direcionamento, esta restrição da acessibilidade a um público
específico importaria ou não na quebra do princípio constitucional da isonomia.
Como se viu anteriormente (item IV), a acessibilidade aos cargos e empregos na
administração pública deve seguir o comando constitucional da igualdade de todos perante a
lei. Cabe à Administração Pública garantir igualdade de oportunidades a todos os que
pretenderem o acesso a tais cargos e empregos.
Contudo, em razão da natureza de determinados cargos e empregos públicos,
restrições podem ser impostas, sem que se implique na quebra do princípio da isonomia.
Tais restrições, segundo tem decidido o STF, devem, no entanto, estar em
conformidade com o princípio da razoabilidade. Neste sentido é que têm sido aceitas
algumas exigências, como por exemplo, a altura mínima para o ingresso na carreira de
delegado de polícia (RE 140889/MS); a graduação em Direito, Administração, Economia ou
Ciências Contábeis, para o provimento dos cargos de Auditor Interno, Escrivão de Exatoria,
Fiscal de Mercadorias em Trânsito, Exator e Fiscal de Tributos Estaduais (ADI 1326/SC),
etc.
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Ocorre que a “Escola Indígena”, concebida conforme parâmetros constitucionais
(reconhecimento e respeito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições,
utilização das línguas maternas e processos próprios de aprendizagem) que apontam para um
ensino específico e diferenciado, intercultural e bilíngüe, coloca para o cargo de professor
exigências de natureza especial, que só podem ser supridas pelo profissional que pertença a
este universo de valores que se pretende trabalhar.
Assim, o fato, por exemplo, de um educador não-indígena ser detentor do
conhecimento ou do domínio de uma língua materna indígena, não o coloca, mesmo assim,
em condições de suprir todo o leque de atribuições postas para o cargo, segundo esta nova
concepção de “Escola Indígena”.
Pois, conforme observa o Parecer n.º 14/99 (p.15), da Câmara de Educação Básica,
do Conselho Nacional de Educação, verbis,
Para que a educação escolar indígena seja realmente específica, diferenciada e adequada às peculiaridades culturais das comunidades indígenas é necessário que os profissionais que atuam nas escolas pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar. É consenso que a clientela educacional indígena é melhor atendida através de professores índios, que deverão ter acesso a cursos de formação inicial e continuada, especialmente planejados para o trato com as pedagogias indígenas. (Grifei.)
Assim sendo, a exigência de o concurso público para a investidura nos cargos da
carreira de magistério nas Escolas Indígenas, ser restrito a indígenas – habilitados,
obviamente –, é uma exigência que decorre da natureza do próprio cargo, das atribuições a
ele inerentes. Por conseguinte, atende ao princípio da razoabilidade, não violando o primado
da isonomia. A propósito, vale mencionar, neste particular, a proposta dos Povos Indígenas
para o novo Estatuto dos Povos Indígenas, entregue em abril de 2001 à Câmara dos
Deputados, como contribuição à discussão em torno da revisão do atual Estatuto do Índio.
Pela proposta, as lideranças indígenas reivindicam a criação de um “Conselho
Nacional de Educação Escolar Indígena”, com a atribuição de definir “critérios de
habilitação e seleção nos concursos públicos para professores indígenas indicados por suas
comunidades” (art. 105, inciso IV).
A discussão acerca da nova Lei Indigenista encontra-se paralisada na Mesa Diretora
da Câmara Federal desde 1994.
5.1. Experiências atuais: avanços, críticas e desafios.
Nos últimos anos tem crescido a idéia da necessidade e do amparo legal ao concurso
público específico e diferenciado para Professores Indígenas. Desde que elaboramos a
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primeira versão, inédita, do presente trabalho (2002), alguns pareceres de instituições
vinculadas à temática específica passaram a ser oferecidos, defendendo a possibilidade da
sua realização. Alguns Estados e Municípios têm, de modo crescente, adotado iniciativas
visando a implantação do certame diferenciado.
No Pará, desde 1999 a Resolução n.° 880 de 16 de dezembro do Conselho Estadual
de Educação, ao fixar normas para a estrutura e funcionamento das “escolas de educação
indígena” junto ao Sistema de Ensino do Estado, já determina que “o acesso, à carreira do
magistério indígena será feito mediante concurso específico” (art. 11, inc.II).
No Rio Grande do Sul, “o concurso público para suprimento do cargo de professor
indígena foi realizado pela Secretaria Estadual de Educação no ano de 2001”, daí resultando
a nomeação dos 20 professores indígenas aprovados (BERGAMASCHI, 2003, p.9).
No Estado do Rio de Janeiro a Deliberação CEE nº 286/2003 já mencionada prevê
também que “o acesso à carreira do magistério indígena será feito mediante concurso
público específico” (art. 31, III).
No Mato Grosso a Resolução n.º 201/04-CEE/MT (13.07.2004), ao fixar normas
estaduais para a estrutura, funcionamento e organização das Escolas Indígenas no Sistema
Estadual de Ensino, dispôs que “o ingresso dos professores indígenas na carreira dar-se-á por
meio de concurso público que contemple obrigatoriamente conhecimentos específicos de
cada povo indígena” (art. 10, § 2.º), sendo atribuição do Estado “promover o concurso
público específico e diferenciado, atendendo aos interesses e às necessidades das
comunidades indígenas” (art. 12, inc. V). Aliás, Em 09 de maio de 2006 o Governo do
Estado lançou o Edital n° 003/2006 – SAD/MT, destinado ao “Concurso Público de Provas
para Provimento do Cargo de Professor da Educação Básica do Estado de Mato Grosso”, na
Modalidade “Educação Escolar Indígena”.
Mais recentemente a imprensa noticiou que em Roraima a Secretaria de Estado de
Gestão Estratégica e Administração lançará um edital de concurso público específico para os
professores indígenas, pois “como eles possuem uma legislação própria, eles vão ter um
edital próprio”. Também no Mato Grosso do Sul, a Prefeitura Municipal de Caarapó, ao
lançar (06.12.2007) o Edital n.º 001/2007 de abertura de concurso público de provas e
títulos, destinado a selecionar candidatos ao provimento de cargos do quadro de pessoal
efetivo da Prefeitura Municipal, estipulou que “os cargos de professores da escola indígena
serão providos prioritariamente por professores indígenas, oriundos da respectiva etnia”, nos
termos do artigo 8.º da Resolução CEB n.º 3 de 10/11/99.
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Enquanto isso, tramita na Bahia desde 29 de agosto de 2007, Projeto de autoria do
Deputado Estadual Zilton Rocha que altera a Lei n.º 8.261, de 29 de maio de 2002, criando a
“carreira de Professor Indígena e Coordenador Pedagógico Indígena” do Quadro do
Magistério Público do Ensino Fundamental e Médio do Estado da Bahia. Segundo o PL (art.
7.º). Segundo o PL, o ingresso de referidos professores indígenas e coordenadores
pedagógicos “far-se-á via concurso público específico, tendo-se, como condicionante à
inscrição dos candidatos, a apresentação de declaração emitida pela FUNAI, ouvida a
comunidade indígena, assegurando que o candidato pertence à mesma”.
Algumas iniciativas judiciais têm sido também demandadas com o escopo de garantir
que a docência nas escolas indígenas seja provida pela via do concurso público específico e
diferenciado. Tal sucedeu, por exemplo, no Amapá, em 2005. Inconformada com a
realização de concurso não específico para o provimento dos cargos de professor de 1a. a 4a.
séries que trabalhariam em Terras Indígenas 17, a Organização dos Professores Indígenas do
Oiapoque (OPIMO), com apoio da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) – munida da versão inicial do presente trabalho – , impetrou Mandado de Segurança
Coletivo (MS n.º 2005.31.00.001713-7) junto à 2.ª Vara da Justiça Federal do Amapá. Após
a concessão da liminar requerida, tendo o Juiz determinado a convocação e a nomeação
apenas dos candidatos indígenas classificados, relativamente às respectivas localidades de
origem étnica, seguiu-se a realização de um acordo no qual o Governo do Estado
comprometeu-se ao envio de Projeto de Lei regulamentando a categoria “Professor
Indígena” (o que resultou na citada Lei Estadual 984/2006), e à publicação de edital de
realização de concurso público específico e diferenciado para as escolas localizadas nas
terras indígenas mencionadas.
Em outros dois casos a discussão judicial da matéria foi levada a efeito pelo
Ministério Público. No Tocantins, em 2005, representantes dos Ministérios Públicos do
Trabalho, Federal e Estadual ajuizaram Ação Civil Pública na Justiça do Trabalho
objetivando a realização de “concurso público para as funções de Magistério da Educação
Básica Indígena do Estado”. Na Bahia, em 2006, coube ao Ministério Público Federal, em
Ilhéus, provocado pela Comunidade Pataxó de Coroa Vermelha, ajuizar Ação Civil Pública
(ACP 2006.33.10.001249-9) perante a Vara Única da Justiça Federal em Eunápolis, contra o
Município de Santa Cruz de Cabrália e aquele ente federativo. Na Ação o MPF requereu
liminarmente a suspensão do concurso público então em andamento (Edital n.º 01/2006)
17 Terras Indígenas Pedra Branca do Amapari, Oiapoque e Parque Indígena do Tumucumaque / Laranjal do Jari.
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“para os cargos de pedagogo e professor de ensino indígena, por excluir os professores
índios da participação no certame”. Segundo matéria veiculada na mídia eletrônica, a
Procuradora da República encarregada teria observado que a ação “não ignora os princípios
da igualdade e da ampla acessibilidade aos cargos, funções e empregos públicos”, visando,
na verdade, “garantir o cumprimento das normas legais regentes da matéria”.
Tais experiências de demanda judicial se por um lado demonstram as possibilidades
de utilização desta via para a concretização dos avanços dos direitos indígenas em matéria de
educação escolar, por outro trazem à tona as dificuldades de Estados e Municípios na
compreensão do alcance de tais avanços normativos. Assim por exemplo, segundo constatou
a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação (RNDHE) no Seminário “Direito à
Educação Escolar e Políticas Públicas para os Povos Indígenas do Nordeste: o olhar
das Secretarias Estaduais de Educação” – que reuniu (07.10.2005) as SEE’s da Bahia,
Ceará, Paraíba e Pernambuco – , entre os problemas identificados estaria a “dificuldade de
compatibilizar a legislação brasileira com a necessidade de se realizar concurso público e
específico para professores indígenas” (RNDHE, 2005, p.5).
Como também se pode perceber nas experiências mencionadas, tem sido crescente a
movimentação dos povos e organizações indígenas na defesa da realização de concursos
públicos específicos e diferenciados para o provimento dos cargos de professor indígena.
Grande parte das vezes tais mobilizações são iniciadas como reação à adoção de Estados e
Municípios, de certames comuns, que concebem as escolas de terras indígenas como
“escolas rurais”.
Mas para além da simples reação aos fatos concretos e imediatos, tem crescido
também no movimento indígena manifestações formais de apoio à realização dos concursos
públicos específicos e diferenciados, o que pode ser visto em alguns documentos deliberados
em Assembléias ou outros fóruns de discussão.
No Seminário “Avaliação das Políticas Públicas de Educação Escolar Indígena: o
olhar dos povos do Nordeste” (19.07.05), organizado pela mesma Relatoria, a Articulação
dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
(APOINME) e Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco (Copipe), juntamente
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com organizações de apoio18 apontaram a “inexistência de formação e concurso específicos
para professores indígenas” entre os casos de violação do direito humano à educação 19.
Também a 36.ª Assembléia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, realizada na
Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (09.02.2007)20, incluiu em seu “documento final”, como
parte de suas reivindicações ao poder público, a realização de “concursos públicos
específicos e diferenciados para indígenas em suas respectivas áreas” (item 46).
Da mesma forma, também em 2007 o “IV Acampamento Terra Livre” da
mobilização “Abril Indígena”, que reuniu 1.000 lideranças, de 98 povos indígenas de todas
as regiões do país na Esplanada dos Ministérios em Brasília (16 a 19 de abril), incluiu na
pauta de reivindicações a “realização de concurso público específico e diferenciado para
professores indígenas”.
Em que pesem todos estes avanços conceituais, normativos e práticos no campo da
educação escolar indígena – fruto, diga-se de passagem, das lutas do movimento indígena
pela construção de novos direitos e de sua concretização – , muitas são ainda as falhas e
distorções apontadas e desafios a serem enfrentados. Na avaliação das lideranças indígenas
presentes no IV Acampamento Terra Livre,
A implementação da Educação Escolar Indígena Diferenciada nas comunidades até hoje não atendeu as diretrizes e condições estabelecidas pela legislação específica, ficando condicionada à vontade de estados e municípios, que mostram pouco ou nenhum interesse em que esta demanda dos nossos povos seja devidamente atendida.
Ou seja, o reconhecimento meramente formal e a simples realização de um concurso
público dito específico e diferenciado para o provimento de cargos de professor indígena não
garante, por si só, a plena realização dos direitos conquistados nesse campo. Na medida em
que as experiências vão se concretizando, emergem críticas aos modos de sua realização.
As insatisfações podem referir-se, por exemplo, à eventual exigência de habilitação
em nível superior para a inscrição dos candidatos indígenas; à aplicação das provas
unicamente em língua portuguesa – sendo esta a segunda língua para muitos dos candidatos
– e não de modo bilíngüe ou nas línguas maternas destes; à utilização de questões de
18 Associação Nacional Indigensita – Anaí; Campanha Nacional em Defesa da Educação; Conselho Indigenista Missionário – Cimi e Centro de Cultura Luiz Freire – CCLF.
19 Ao final de sua missão, que incluiu uma série de audiências públicas e verificação in loco em diversas aldeias indígenas da região, a Relatoria inseriu em suas recomendações “ao Ministério da Educação, em regime de colaboração com as demais esferas do poder público”, a “definição do quadro institucional necessário à realização do concurso público específico para professores indígenas” (RNDHE, 2005, pp. 11-12).
20 Reunindo 702 lideranças, dos povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang, Wai Wai, Sapará, Yekuana, Yanomami, Xirixiana, Pemón e Patamona.
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múltipla escolha em língua portuguesa, com problemas que fogem à realidade indígena,
deixando as questões ligadas a esta realidade apenas para a parte relativa a “Conteúdos
Específicos”, como algo compartimentado na vida do candidato, pondo em questionamento
o respeito do certame ao princípio da interculturalidade, pelo privilégio aos conhecimentos
da cultura ocidental, não-indígena 21.
Tais críticas levam no final ao indicativo de divergências entre os agentes públicos e
as comunidades indígenas em torno das concepções do modelo de educação intercultural
bilíngüe, diferenciada e de qualidade, e do papel que desempenha o concurso específico
frente ao mesmo.
Vale ressaltar por fim, que diversas dúvidas a respeito das implicações jurídicas e
políticas do acesso dos professores indígenas pela via do concurso público, têm também
acometido várias comunidades indígenas e especialistas em educação escolar indígena. São
questões do tipo: como compatibilizar o princípio da autonomia das comunidades indígenas
com a garantia da estabilidade do professor indígena na condição de servidor público
estadual ou municipal ? Como proceder diante da hipótese de um professor indígena
aprovado em concurso e devidamente empossado e em exercício, vir a adotar
comportamento incompatível com as condutas socialmente aceitas pela comunidade,
perdendo então a sua confiança ? A quem cabe e quais os critérios de avaliação de
desempenho deste servidor ? Como evitar que tais servidores venham a se constituir em
castas no seio das comunidades onde atuam, e que venham a estabelecer com as mesmas
uma relação assimétrica de poder ?
São questões que dizem respeito ao mérito da implantação dos concursos específicos
e diferenciados para o provimento dos cargos de “Professor Indígena”, cujas respostas
dependem, fundamentalmente, do aprofundamento dos debates pelas próprias comunidades
indígenas e suas organizações.
6 – Conclusão.
A realização do concurso público para o provimento de cargos e empregos na
administração pública, pondo em relevo o princípio da isonomia entre os interessados é, sem
dúvida, uma das mais relevantes conquistas históricas obtidas na construção do estado
democrático de direito.
21 Tais críticas provêm de uma das poucas avaliações até o momento feitas e divulgadas, apresentada em julho de 2006 pelo Cimi Regional Mato Grosso, a respeito da experiência de Concurso Específico e Diferenciado
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O tratamento isonômico que deve sempre ser observado nos certames não implica,
contudo, na impossibilidade de certas limitações de acessibilidade, resultantes da natureza
do cargo e dos objetivos da função pública que se pretende exercer. Na esfera do princípio
da razoabilidade – como tem demonstrado a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal
Federal – , é possível haver o descrímen em matéria de realização de concursos públicos,
sem que haja mácula ao princípio isonômico.
È o que ocorre em relação aos concursos públicos para provimento do cargo de
professor nas escolas indígenas.
As transformações ocorridas desde a segunda metade do século XX na perspectiva
política de relacionamento dos estados com os povos indígenas levaram ao rompimento do
ordenamento constitucional brasileiro de 88 e de recentes diplomas internacionais com
históricos objetivos assimilacionistas e etnocêntricos. Isso trouxe profundas modificações
para a Administração Pública no que tange aos objetivos e natureza das funções do
magistério nas escolas indígenas.
O reconhecimento do direito dos povos indígenas a uma educação intercultural,
bilíngüe e diferenciada, e das “Escolas Indígenas” como categorias próprias de ensino
voltadas para o respeito às suas especificidades étnico-culturais e valorização de seus saberes
tradicionais, necessita para a sua concretização, da implementação da categoria “Professor
Indígena”, também reconhecida. E o provimento de tais cargos não pode mais continuar a
ser realizado de modo a permitir o ingresso de profissionais não habilitados para o
atendimento àqueles objetivos.
A realização de concursos públicos específicos e diferenciados para o provimento
dos cargos – nas Escolas Indígenas – , de professor indígena, é medida que necessita ser
compreendida não como uma aberração jurídica – o que efetivamente não é – , mas como
algo que une, em sua realização, os princípios da isonomia e da razoabilidade, na busca de
um salto qualitativo do relacionamento do estado brasileiro com os povos indígenas em
matéria de educação escolar. Um salto histórico no respeito à diversidade.
____________________
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