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COLEÇÃO PRAZERES POÉTICOS Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

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Page 1: COLEÇÃO PRAZERES POÉTICOSUm livro vai para além de um objecto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado

COLEÇÃO

P R A Z E R E S P O É T I C O S

Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

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© 2017, Tiago Moita e Chiado EditoraE-mail: [email protected]

Título: MetanoiaEditor: Rita Costa

Composição gráfica: Vera Sousa Capa: Vasco Lopes

Revisão: Tiago MoitaImpressão e acabamento:

ChiadoP r i n t

1.ª edição: Março, 2017ISBN: 978-989-774-261-3

Depósito Legal n.º 419926/17

Um livro vai para além de um objecto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedi-cação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

www.chiadoeditora.com

Portugal | Brasil | Angola | Cabo VerdeAvenida da Liberdade, N.º 166, 1.º Andar1250-166 Lisboa, PortugalConjunto Nacional, cj. 205 e 206, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil

Espanha | América LatinaPaseo de la Castellana, 95, planta 15º28046 MadridPasseig de Gràcia, 12, 1.ª planta08007 Barcelona

U.K | U.S.A | Irlanda180 Piccadilly, London W1J 9HF

França | Bélgica | Luxemburgo34 Avenue des Champs Elysées

75008 Paris

Alemanha Kurfürstendamm 21

10719 Berlin

ItáliaVia Sistina 121

00187 Roma

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Tiago MoiTa

MeTanoia

Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

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“A Poesia é a fundação do ser pela palavra”

Martin Heidegger (1889-1976)

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“A desconcertante contradição para a maneira vulgar de pensar vem do facto de termos de usar a

linguagem para comunicar o nosso sentir íntimo, que na sua verdadeira natureza transcende a linguística.”

D. T. Suzuki(1870-1966)

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À minha família e a Herberto Helder (1930-2015)

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ÍNDICE

I. CRONOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13

Arte poética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15Eclipse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17Lobos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19A voz do verbo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21A febre dos cegos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23O eterno eremita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25Ode ao silêncio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27Poiesis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29Depuração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33Viagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .35Leituras cruzadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37

II. KAIROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39

Epifania boreal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41O primeiro poema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43Ágape . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .45Evidência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47Holograma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .49Despedida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51Insónia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53Carta de um amigo ausente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .55Marca d’água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57

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Egocídio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59O fado dos fantasmas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .61

III. AEON . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63

Hesychia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65Sofema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .67Visão oblíqua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69Ahimsa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71Ovo cósmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73Merkaba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .75Engrama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77O teatro das esferas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .79Enteléquia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .81Kenosis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83Big bang . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .85

GLOSSÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .87

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I.

CRONOS

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Metanoia

ARTE POÉTICA

O poema não nascedo murmúrio da cinzaou da cópula do fogobrota da lava do verboque corre nas veias das palavras

O poema não cresce do êxtase dos quatro elementosou do incêndio das feridastransforma-se em Cosmoscom o silêncio dos búzios

O poema não perguntanem respondeà sublimação dos espelhose às epifanias dos númerosreage contra a inércia do mundoe a apatia das sombras

É sal, espinho, espelho, flor,carne, sémen, bolor, seivaantes da menstruação do verboque pariu Deus

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Tiago MoiTa

O poema é poemaantes da invenção das línguase da tradução dos ventosMetanoia universaldo Tudo o Que ÉFoi e Virá a Ser

O poema existeo poema morrepara voltar a ser poema o poema transfigura-seo poema é tudoo poema sabeo poema é.

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Metanoia

ECLIPSE

No intervalo de uma epopeiahabita um mistério ludrosona fenda narrativa da Criaçãosilhueta disformede uma epifania sem rosto

Vive da sede branca dos olhosdos cegos e dos loucos da Terranavega apático pelo subtilmutismo das palavras primitivas

Por onde passa destapa Ísisdo véu púrpura dos enigmasocultos do umbigo do sole da gravidez da luadesperta medos absortosdas máscaras e das orgias metafísicasentoadas pela memória dos homens ávidosde Poesia e sentido.

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Metanoia

LOBOS

Habitam nas entrelinhas dos mitose vagueiam sob o signo da luapelas florestas telúricas das linguagens proibidasdo mundo

Nenhuma presença ou episódioé estrangeiro ao seu farolicantropia enciclopédica da noitetestemunha oculardos seus segredos e predicados

Decifram o medo dos vivoscomo quem lavra o silêncio gravede um anátemae preservam o mistério das almasda avarícia do tempo

Lobos: prova dos nove das línguasarquétipos de albas que brotamdo coração dos verbos.

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Metanoia

A VOZ DO VERBO

Mergulho no branco silêncio desta página vagabundadeixo-me afogar na incerteza do verbo que exploro no fundo do mar

Desci três degraus até à sala de espelhosdesfolhando sombras oblíquas cinzas de passados ignotosna frígida leveza de cada passo

Desabrochei o Terceiro Olhoda minha fronte carnefiz da escuridão um mosaicode purgatórios holográficos

Libertei-me do casulo alquímico que teci com sarcasmos e eufemismosbati asas num coração de quartzotraduzindo o silêncio de toda estametamorfose

Ao sétimo dia fiz-me carne de um poema.

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Metanoia

A FEBRE DOS CEGOS

Tudo começa com uma epifaniatestada num tubo de ensaio por um alquimista sem medalhasdurante a embriaguez do sono

O sangue ferve nos olhosdos eunucos de bata brancacom os louros de quem não temedesafiar as leis dos homens e traduzir o sentido dos ventosem nome do Universo

Invocam génios seculares feitos santos no altar da Ciênciapara semear incêndios canónicos no tribunal da praça públicaridicularizando verdades virgenscom sarcasmos de parábolas

Derrete-se o gesso das máscaras durante a febre dos cegosa loucura despe-se do mundo que ignorou os seus urrose fez do esquecimentoo preço a pagarpela sua miopia.

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Metanoia

O ETERNO EREMITA

Ninguém entende o enigmados teus silêncios avulsosguardados a sete chavesno rés-do-chão do Universoque criaste à margem dos incêndios do mundo

Ninguém compreende o mistérioda tua sede lídimafome pretérita, mais que perfeita,de um desejo lânguidodesperto durante o orgasmo dos eclipses

Perguntas familiares rasgam a peleda solidão que escolheste amardurante o teu exílio íntimo dúvidas sobre a tua condição de asceta da palavraameaçam a tua mente líquidade tanto existir

Raros, os que te procurampara receber húmus das tuas palavrastirando esses, ninguém te entende

Só a Poesia.

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ODE AO SILÊNCIO

Navegas errante nos intervalos dos ecosque mastigam a carne dos ossos etéreosdos léxicose sorvem a água e o sal dos poemasque brotam das legendas das lágrimas

Serpenteias lascivo nos desertos como quem busca uma bocapara matar a fome e a sedea uma palavra

Bruxuleias obsceno pelos labirintos dos significantes e dos significadosnarrados pela metafísica das gramáticasa tua voz é a egrégoraque dá vida ao teu corpo

Ausência que grita da bruma de um búzio almiscaradocomo um incêndio sem nomeque chama por mimsussurro de pedra, vento ignotoverbo que devolveuo fogo dos deuses ao Homem.

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Metanoia

POIESIS

Perguntei a uma página exanguedo lume de um êxtase de mantrase desejos por arder do limbo dos diasa origem da Poesiaenquanto desflorava o silêncioda sua carne

Debrucei-me nessa angústia filosóficacomo quem mergulha num desertopara decifrar uma sede incógnitae bruxuleante de tanto sofrere perguntei aos meus amigos, sem didascálias,como quem mendiga um sonho:“De onde veio a Poesia?”

Nenhuma resposta…

Depois virei-me para os poetas de hoje,jovens turcos feitos dentes-de-leão,cheios de silogismos enciclopédicose metáforas na ponta da língua,e fiz a mesma pergunta:“De onde veio a Poesia?”

Nenhuma resposta também…

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Tiago MoiTa

De seguida, virei-me para os poetas de outrora,bibliotecas canónicas vivasalquimistas ascetas da pureza, exilados da morfina da realidadee fiz a mesma perguntamas, desta vez, a resposta foi diferente:

“Leia os Clássicos!”

Confuso com aquela respostadesbravei as profundezas dos livrose comecei a esgravatar a essênciade todas as artesdevorando lirismos em chamas,acalantos sem berço, acrósticosanónimos, elegias sem lápide,epigramas sem epitáfio, odesagridoces a homens, feitos deusespela palavra dos poetas,madrigais alcoviteiros, haikus e tankascheios de epifanias, sonetos imperiaise quando saltei a grande muralha do ritmo…

…encontrei uma rosaplantada num chão de mármore polarde um templo feito de quartzocoberto de espinhos mudosao meu desassossego

Caminhei descalço para a colhermastigando o prazer e a dordaquela fome esfíngica, ansiosa por se extinguir no primeiro contactocom a sua pele

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Metanoia

A rosa bebeu as minhas lágrimase incandesceu com o sorriso que rasgueino meu rosto exsudado a resposta à minha perguntanão estava no momento em que a conhecinem no instante em que a afaguei

Encontrei-a no intervalo.

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Metanoia

DEPURAÇÃO

Sentado num rio de murmúrios e sombras observo o bailado geométrico do lápis

Mergulho na espuma da tardeno sono etéreo da noitee procuro absorver o Todona clarividente contingência das metáforas canónicas do olvido

Depurei o sangue e o sal dos olhos num salto quânticomergulhei num oceanode palavras primitivasregressando à epiderme do mundoonde o poema é uma viageme a vida repousa.

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Metanoia

VIAGEM

A paisagem devora-me os olhos tatuando no versofiligranas multicores sons que naufragam no clorode uma viagem ao coração de uma Babel de adjectivos e clichês

O ambiente é um universo vivomicrocosmos de onomatopeias, parábolas e eufemismosatirados ao limbo do efémeroonde o silêncio é um estranho sem causa nem destino por cumprir

E no intervalo de um compassode signos e substantivosregistei o sorriso de uma saudadea miragem de um beijo pretéritoe a lágrima de um abraço perdidonum mosaico de memórias solaresque remembrei numa viagemao coração do húmusque fez de mimpoema.

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Metanoia

LEITURAS CRUZADAS

Viajei até à porta do paraísomastigando uma saudadeque encontrei presa entre dois versos

Deixei o coração em piloto automático e o cérebro em Alfarebuscando palavras consumidasno crepúsculo do tempo

Troquei as teias anelares do meu túmulo de vidropor uma Babilónia de granitoatirando pela janela memórias feridaspelo sal das línguas

Caminhei sobre os séculos de uma cidade em chamasabsorvendo didascálicas de murmúriosperdidas nos sulcos das palavras e nas pedras da calçada

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Tiago MoiTa

E numa roda de línguas de fogoentreguei-me aos braços da Dialécticaa Poesia piscou-me o olho duas vezese sublinhou a vermelho o versoonde decifrei o seu sorriso

Respondi ao seu apelo num encolher de ombrosoferecendo-lhe um desejo salgado que trazia escondidono céu da boca

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II.

KAIROS

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Metanoia

EPIFANIA BOREAL

Mergulhei num sono de pratapara encontrar uma epifaniado nascimento de Vénusna noite dos teus olhos

Naveguei num mantra tibetanoaté à raiz de um fogo líquidooculto na epiderme dos sonhostatuados no êxtase deste verso

Escalei montanhas de dúvidaspara escutar o eco do salque brotou quarto minguanteno lugar do teu sorriso

Procurei-te numa palavrae só no teu coração descobri

Que tudo o que é beloé um reflexo da rosa que somosque tudo o que sonhoé o fruto proibido do que pensamose tudo o que sinto aqui e agoraresume-se na memória de uma estrelaque transcende todas as palavras que esculpi deste silêncio.

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Metanoia

O PRIMEIRO POEMA

O primeiro poema que li de tinão tinha palavras nem espaçosapenas silêncios oblíquosem margens feridaspelo branco gritoda água

O primeiro poema que li de tinão tinha cor nem cheironem fogo nas sílabasapenas sal e sangueno lugar das lágrimas

O primeiro poema que li de tinão tinha braços nem pernasnem mãos nem dedosapenas fios de teiae uma bússola ao peito

O primeiro poema que li de tinão tinha ponteiros nem estradasapenas mapas-múndi de labirintos e legendas

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Tiago MoiTa

Tinha apenas sol e lua num rostoesperanto num sorrisoe asas abertas nos olhos

Tinha feridas essenciaisna ponta dos dedose corações sem relógiosna palma das mãos

Tinha universos inexpugnáveise lanternas acesas em florestas virgens

Tinha tudo num meio de nadasvazio e absoluto no ventre de uma chama

Não era simples nem abstractoera claro como o gritode uma lágrima

Silhueta de uma almacanto de pássaro engaiolado

Era sentidoera corpoera um nomeeras tu.

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Metanoia

ÁGAPE

Desliga-te de tudomenos deste instanteabdica-te dessa bruma ácidaque consome o que valese regressa ao princípio do Nada numa respiração prânicaaté ao centro de ti

Concentra-te…

Observa-me até não observares mais nadaneste horto de urzesque não seja o lusco-fusco desse fumo invisível e amendoadoque brotou das reticênciasde cada um de nós

Relaxa…

Deixa-te invadir pela solidão avulsadeste abraço sinestésico que devolvemos ao coração do verboque dividiu a nossa unidade com uma maçã

Desperta…

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Tiago MoiTa

Voa sem asas até ao princípio do Todoe beija o átomo primordial antes de sucumbir ao êxtase da lava

condensa a eternidade num segundoe a sublimação do fogo menstruado de um desejo serpentárionum orgasmo de uma estrelapara que, depois de renderes a guardaaos teus sentidos,descubras que a tua metade maioré o reflexo de um céu que já existedentro de ti.

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Metanoia

EVIDÊNCIA

Esquecer-te foi a suprema loucuraque apaguei da enciclopédia das raízese dos silêncios que cinzelei no dia em que, juntos, coagulamosa voragem do tempo em nós

Fingir o que nos aconteceufoi um sarcasmo esdrúxulode uma ferida absorta

Apartámos o néctar do vinagre numa profana comédiade diálogos surdose memórias sanguíneas do que fomos

Mergulhámos na espuma das ostraspara esculpir um incêndio rutiladopelo feitiço das almas mudasque lançámos para o sonho das horasde tudo o que seremos aqui e agora.

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Metanoia

HOLOGRAMA

Conheci-te num poema sem palavrassilhueta singela de sereia virgemexpressão adolescente de um gritonum coágulo de memóriaferida imberbe sem tempo.

Persegui os teus passos nas nuvens de coração surdo e olhos vendadosarrastando mosaicos e feridas e um desejo umbilical pelo lumede um fósforo virgemem cada um dos teus olhos

Deixei-me levar por sorrisos e não por sinaisdeixei-me levar por máscarase não por gestosmendigo cego de bússola ao peitosedento por uma lágrima tuaà chuva

Hoje atirei o teu nome ao marcom todos os sinónimos e adjectivosque tatuei na pele de cada letranunca foste um poema sem palavrasfoste apenas palavrasnunca um poema.

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Metanoia

DESPEDIDA

Evaporei-me escusas de me procurarpassei de sinónimo logradoa miragem de fumono plexo solar da minha paciência

Transmiti-te um pedidosem código nem morsecom mais de seis anose aguardei uma resposta tuaenquanto alumbrava-menum livro de Clarisse

Não ouviste? Alumbrei-me em Clarisseespelhei-me em Água Vivaabsorvi-me no instantede um sonho de vidronão em ti

Tenho relógios mais pacientesque o teu temposou capaz de explorar todos os mistérios de universos paralelos à minha existênciaenquanto tu não voltas

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Tiago MoiTa

escutando apenas a voz oblíquaque nunca me abandona

Todos trocam saudadessemeiam lágrimas nos copose nos cigarros que não fumoignorando a solidão muda das vozes que não escutam

Existem tantos espelhos vivos conversando sem máscaraspoderia tentar misturar-me com elespensar como eles, ser um delesmas o silêncio daquela grutaé uma nuvem negrapara os meus chakras

O meu erro foi a tua promessaarquivada na usurada tua sombra acesa

Por isso, evaporei-me evaporei-me de ti.

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Metanoia

INSÓNIA

A hora grita por um versoantes da ebulição do sonoenquanto a bruma não se evaporacom a amnésia dos quartos

É madrugada no meu relógio mandingado pelo bailado das cinzaso silêncio despe as máscarasdas sombras exiladaspela embriaguez do tédio

O tempo é uma miragemescondida numa metáfora

Procurei orgasmos de quimerasnum copo de cerveja vaziosaboreei a espuma dos calendáriosno abraço de um amigo

O pensamento pede boleia à loucurafrente à esquina do desassossegoo desejo cruza-se comigoem direcção a lado nenhum

Nada a fazer…

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Tiago MoiTa

Tudo o que pensei resume-se nisto:

A chama trina que me consomesuspira pela minha impotência a noite em breve deixará de ser viúvaa seiva que me alimenta é um retrato sem legendasnuma floresta de estátuase a hora continua a gritar por um versosem se aperceber do lutopelo fim da virgindade desta página.

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Metanoia

CARTA DE UM AMIGO AUSENTE

Hojeos pássaros não cantamo dia desfaz-se nos meus olhose um fogo consome-meem lume brandocomo este silêncioque acabo de escrever

Para ti,que não me obrigas o dia,o tempo e o abismo.Que não esperas esmolas,horas e lágrimasmas coroas de louros na minha estrada

Para ti,que não me atirascom retratos vaziose sorris dos meus futuros.Que dispensas estrelas,jardins, templos e impériose vives bem com o meu silêncio

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Tiago MoiTa

Escrevo apenas para te dizer…

Que não estou sozinhonem triste nem perdidonem de coração mendigoapenas saudosomas sempre presente como abraço, sorrisovela, poema ou abrigo

Numa palavra:amigo.

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Metanoia

MARCA D’ÁGUA

Esconde-se na candurado seio secreto das folhasaté que a chama grávida de um desejo exíguo exponha a nudez da verdadeque abriga no silêncio

Teu símbolo mancha a sede feridade uma nódoa do marhúmida presença do legado azulde uma memória

Espelho de uma obra matizimpressão digital da chuvario vigilante de um lençol de vidasal de uma lágrima guardiãdas legendas opacasnas entrelinhas do mundo.

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Metanoia

EGOCÍDIO

Teu nome é o gume friodo punhal agudoque ameaça o fio-de-prumodo fogo invisível da terra

Tua língua, o álibi mil e uma desculpas pardasque atiras aos olhos de feldaqueles que rasgam a almacom cacos da vidapara tentar sepultar o abismo que escavaram no corpo

Teu húmus, a apatiaa mudez do mundodesfilando nu pelas ruaso grito dos espelhos descalçospela morte do verbo incandescente que alumiou a Terraa página virgem, ávida do poema

Teu preço, o passo em frenteo último fôlego da chamafaísca do sexto sentido dos cegosque trocaram os olhos por palavras eunucas

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Tiago MoiTa

Teu prémio, a valsa do fumodo ventre de uma vela de vidroa queda de um falso anjono sangue das últimas sílabaso verso interrompidono meio da páginae o salitre do prantodisperso pelos sulcos das mãosque ocultaram o teu naufrágio.

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Metanoia

O FADO DOS FANTASMAS

Diluímo-nos pelos sulcos das legendascomo lágrimas convalescentes do nevoeirode uma viagem sem regressoaté ao âmago de um mar de leite

Para trás, deixámos um lastro de uivos,tatuagens de lágrimas, sementes de vidroe uma fogueira acesa no invernode cada casa

Flutuamos no limbo das sílabascomo cavalos-marinhos de fumoinebriados pelo êxtase de uma pazvirgem aos nossos sentidos

Elevamo-nos no vácuo oco das horaspara um túnel de luz lívidacomo o grito indígena que rasgouo abismo deste silêncio que nos ouve

E no primeiro contactocom a ressonância do húmuscomungámos o pão e o sal com o verboque moldou e deu o fogo ao barrodas vidas que remembrámos.

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III.

AEON

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Metanoia

HESYCHIA

Medes o peso das palavras segundo a palpitação do sonocalculas a distância das sílabascom a respiração dos abismosocultos nas raízes sanguíneasdos espelhos

Semeias koans nas lacunas dos verbosantes da monção das lâmpadas,inseminação cósmica de substantivosmudos à cacofonia das gramáticas

Habitas nos sussurros dos adjectivosonde revelas os enigmas das oraçõestatuadas na epiderme dos sentidos cegos de nada pensar

Descreves a sinfonia do movimento híbridodas linguagensantes da fermentação das frasescom um ruído de fundo tântrico decifrado pelos murmúrios das legendas.

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Metanoia

SOFEMA

No curso do rio da vidanão navegam apenas estrelas buriladas pela lava da brumanem sombras de gritos titubeantesde sonhos ao espelho

Não navegam jangadas de folhasao sabor do canto das correntesnem náufragos de pedra à derivana memória das raízes

Não navegam ramos de albasesculpidos pelo cinzel das horasnem sussurros do éterfervilhando e pulsando pelas veiasda água

Navegam anjos em forma de nuvensepifanias lexicais brotadas da branca mudez desta páginapara uma foz de lágrimas de seixostransformados em poemaspela textura das margens.

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Metanoia

VISÃO OBLÍQUA

O homem que sonha ter o sol entre o orvalho do céu da bocae a sabedoria dos sentidosnão persegue tempestades de areia nem semeia sombras no cérebro

O homem que sonha ter a lua entre a primavera do fogoe o outono das lágrimasnão perde tempo com miragensnem se esconde atrás das cinzas de uma elipse

O homem que sonha com a Terraentre o verão dos adjectivose o inverno dos predicadosnão deseja o paraíso numa maçãoferecida pela metade da sua carne

O homem que sonha vive o sonhotecido no silêncio de cada passopersegue-o com o infinito na ponta dos dedosa eternidade nos olhose a perfeição do caminhoque escolheu seguir.

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Metanoia

AHIMSA

Quando o sangue ferve na bruma a ponto de estalar a epidermedos nervos que sustentam o esqueletode uma ferida mudaela renasce…

Quando a sede fel de um archoteressuscitado pela memória cristalde um vento que sempre volta para limpar a poeira dos olhos do Homemela aparece…

Quando a fome vegetal de um cantoquebra o mais fino fio da paciênciade um povo desgastado pela ruínae pela mais ignóbil injustiçaela cresce…

Quando a hora diluir os ponteirosna última gota de suor de uma palavraela penetra nas almas como uma aveà solta num coração marítimoqueda os braços e rende as mãos numa violência mansa e surdaem nome de um presenteébrio de futuro.

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Metanoia

OVO CÓSMICO

Nenhum ponteiro é sagradoao olho lúcido do verboquando a hora faz a curvae abandona o panteão das memóriasde uma idade carcomida pela usura

Eva, mãe cega de todos nósdespida pela fome louca do mundoaponta para o nascimento de um diafeito de amor e ódio, luz e carnenum desejo de lágrimas

Escondida entre as pernas uma criança observa a fúria animal do homem novodesesperado por sair do ovo cósmicoe beijar o céu num suspiro mântrico

O sangue que brotou da fendacoagulou um reflexo no deserto,visão sanguínea de uma rupturae uma nesga de bruma céptica a tudo o que irá escrevernos anais do tempo.

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Metanoia

MERKABA

Os intervalos das sílabas etéreasdonde brota o sal do teu nomeevocam o fogo-fátuo vítreoque bruxuleia titubeantedurante o compasso dos segmentosdos relógios que negam o teu corpo

Procuro-te quando mergulhona rosa carne do Terceiro Olhoe assisto à evaporação das vírgulasque tatuei nas máscaras avataresde quem nunca fui

Encontro-me enquanto observoA valsa matemática dos diamantesdois triângulos fundidos no Devirde uma geometria sagrada de sonsburilados por uma voz sem eco

Por fim…

Transcendo os sintagmas das escadasaté não encontrar mais nenhum murotetraético que separe a carne do sole descubro o centro do Cosmosquando encontro a raiz do poemaapós a erosão dos nomes.

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Metanoia

ENGRAMA

Tudo é visível aos olhos do poetaque mergulha ávido nos sulcosdas palavras primordiais do vaziogerminadas da levedura do brancouniverso akáshico da nudez azulde uma página

Para além da nossa dimensão porosanenhum elemento é estranho a elenos labirintos das miragens herméticasque navegam nos abismos das gavetas oníricas dos hemisférios

E na sublimação astral da escritatatua as metáforas dos retratos,serigrafia etérea de símbolos e sonsesculpidos durante a cópula mudados sentidos

Resultado: uma mandala pictóricahermenêutica transcendental de um ecoextraterrestre aos uivos das pedrasque vivem no ventre dos espelhosda água.

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Metanoia

O TEATRO DAS ESFERAS

O palco é um incêndio por lavrarveste-se de silêncios e memóriasque muitas vezes fingimos esquecernos sulcos etéreos dos corpos

Cada gesto palavra ou expressãoé uma geometria sagrada de sentimentos e sensações lunaresexposta à nudez porosade uma verdade amnésica do mundo

O enredo é uma sincronicidadede teias psicológicas e antagónicascheias de charadas burlescase metáforas coronáriasa escorrer dos poros

Cai o pano da sinfonia celestedo teatro das esferasquando o público entranhao enigma das metamorfosesdas peças que mastigoue regressa ao útero das casascom uma estrela cravada ao peitosedento de tanto viver.

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Metanoia

ENTELÉQUIA

Se detiveres o formigueiroque brota da flor do éter para o molde do teu desejonão a encontras…

Se fugires da Dialéctica de um pensamento do fogoque dá vida ao teu ser não a encontras…

Se negares um grão de mostardadas mãos do verbo dos verbosque fez do teu barro, ser em sinão a encontras…

Se pensares no fim da estrada para lá da lâmina do céue ignoras os gritos das suas chagas

Desiste…

Regressa a ticomeça tudo de novoe detém-te no instanteem que o poema nasceu quando ainda estavasa meio do caminho.

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Metanoia

KENOSIS

De nada servem os adjectivos enquanto ignorarmos o sentido do sémen que verteu do sonho de Deuspara o útero dos índices

Que seria da luz sem a existência da sombra?Miragem geométrica de um fiorasgando um vazio sem nome?

Que seria do enredo sem o princípio e o fim?Ondas oscilantes na imaginaçãohermética dos sons?

Por isso esvazia a taçadetém-te no instante que nasceu do fruto branco desta sede azule morde esse pomo rubro de tanto saberno intervalo que separa o fogo da águaaté perderes o medo dos murosque ergueste sobre ti próprio e descobrires que o fundo da taçaé o reflexo desse Nadaque só deseja ser Tudotal como tu.

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Metanoia

BIG BANG

Transcrevo a voz oblíquadesta matéria negra fluenteonde o tempo é um ponto de interrogação oculto no sarcasmo dos relógiosenquanto escuto o mantra dos astrosnas abóbadas dos multiversossem me desviar da rota marítima do lápis

Burilo as arestas das dúvidase os espaços em branco dos buracos negrosonde escuto o arfar tântrico dos éonesantes de atingirem o primeiro orgasmo

Enquanto me arrasto nessa cópula celestina decifro os koans das marcas d’água e ignoro os conselhos dos astrónomosinebriados pela febre dos cegos

Sem perder o rumo desta tradução com o começo da quinta sinfonia das esferasapós a primeira explosão do húmusatravesso as estrelas e as galáxiaspelas margens dos versosà velocidade de um fio de solcomo quem procura uma palavraperdida no meio das insónias nómadasdos lobos

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Tiago MoiTa

No fim da página onde termina o êxtasede toda esta orgia cósmicaescrevo na ardósia do céuo poema que nasceu a frio do ruído de fundo deste verbofeito de éter e sale silêncio na língua.

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GLOSSÁRIO

ÁGAPE: Palavra grega que exprime o amor puro e incondicional. Afeição. Amor por toda a criação. Amor que transcende a complexidade sexual.

AHMISA: Não-violência, abstenção de não-preju-dicar.

ENGRAMA: Imagem multidimensional arquivada na nossa mente supra-consciente.

ENTELÉQUIA: Estado de perfeição. Estado de Ser em acto plenamente realizado. Perfeição enquanto caminho e não fim.

HESYCHIA: Personificação do silêncio. Silêncio do corpo, mente e espírito. Fase preparatória da Apatheia. Espécie de transe para ouvir o Todo.

KENOSIS: Manifestação do Absoluto no Relativo e na involução cíclica do Ser. Esvaziar-se a si mesmo. Aceitação do Divino de Deus.

MERKABA: Veículo de luz do ser humano, capaz de transformar o espírito em estágios mais avançados até ao corpo físico, para outras dimensões. Ferramenta que auxilia os seres humanos a alcançar o seu pleno

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Tiago MoiTa

potencial. Campo de energia cristalina composto por geometrias sagradas específicas que se estende pelo corpo até uma distância de vinte metros, a uma velocidade próxima da luz.

METANOIA: Transformação de comportamento ou de carácter, mudança de pensar e sentir no caminho da perfeição, conversão interior. Na retórica é um artifício que serve para reforçar uma afirmação, para refazê-la logo de seguida, corrigindo-a, enfatizando-a ou atenuando-a.

POIESIS: Acção ou capacidade de produzir ou fazer alguma coisa, especialmente de forma criativa. Forma de conhecimento de forma lúcida.

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