cluny, jerusalém celeste encarnada (séculos x-xii) _ história medieval - prof. dr

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24/11/13 Cluny, Jerusalém celeste encarnada (séculos X-XII) | História Medieval - Prof. Dr. Ricardo da Costa www.ricardocosta.com/artigo/cluny-jerusalem-celeste-encarnada-seculos-x-xii 1/15 Selecione o idioma Pow ered by Tradutor Cluny, Jerusalém celeste encarnada (séculos X-XII) Ricardo da COSTA (mailto:[email protected]) In: Revista Mediaevalia. Textos e Estudos 21 (2002), p. 115-137 (ISSN 0872-0991). Publicação do Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Trabalho apresentado no V Encontro Internacional de Estudos Medievais, evento organizado pela ABREM e ocorrido na Universidade Federal da Bahia (UFBA) nos dias 2 a 4 de julho de 2003. Imagem 1 Cluny III (1088-1130). Reconstituição computadorizada. I. O tempo de guerreiros e camponeses Imagine um mundo com poucos homens. Pouquíssimos. E pobres. Paupérrimos. Vazios imensos entre um povoado e outro. Florestas, pântanos e brejos ainda entre um campo cultivado e outro. Nesse espaço ocidental europeu de cidades esvaziadas e penetradas pelo verde - sinal de abandono e recuo - há mil anos atrás a natureza ainda resistia: os homens mal dominavam a terra. Muitos trabalhavam o solo com suas próprias mãos. As ferramentas eram poucas, a maioria de madeira ainda. As famílias, a maioria de camponeses - mas também de escravos - viviam em choças. Trabalhavam unidas e a duras penas para retirar sua subsistência. De cada grão colhiam dois, no máximo três (DUBY, 1979: 13). Mesmo assim, parte da colheita ia para seu protetor, seu senhor, seu amo, aquele que os protegia dos ataques, da violência, da guerra. Ele deveria conservar a paz. No entanto, ele mesmo era o senhor da guerra. Paradoxo, não? Pois tinha um cavalo, uma espada, sabia matar. Sua família tinha uma história que remontava a algum rei ancestral e viril. Era uma linhagem. Ele morava em uma fortificação, uma fortaleza de madeira - já existiam alguns castelos de pedra, mas eram raros. Assim, cada vez mais, a partir do século XI, os camponeses viviam ao redor dessa paliçada, residência simples e sem requinte, prontos para entrar nela caso houvesse alguma agressão. Essa fortificação era um pólo de atração, como as guarnições romanas dos séculos III-IV. Cada vez mais os pobres buscavam essa proteção: o habitat concentrou-se. Esse processo foi denominado deencelulamento pelos historiadores (DUBY, 1992: 60).

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24/11/13 Cluny, Jerusalém celeste encarnada (séculos X-XII) | História Medieval - Prof. Dr. Ricardo da Costa

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Selecione o idioma Pow ered by Tradutor

Cluny, Jerusalém celeste encarnada (séculos X-XII)Ricardo da COSTA (mailto:[email protected])

In: Revista Mediaevalia. Textos e Estudos 21 (2002), p. 115-137(ISSN 0872-0991).

Publicação do Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Portoe da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

Trabalho apresentado no V Encontro Internacional de Estudos Medievais,evento organizado pela ABREM

e ocorrido na Universidade Federal da Bahia (UFBA)nos dias 2 a 4 de julho de 2003.

Imagem 1

Cluny III (1088-1130). Reconstituição computadorizada.

I. O tempo de guerreiros e camponeses

Imagine um mundo com poucos homens. Pouquíssimos. E pobres. Paupérrimos. Vazios imensosentre um povoado e outro. Florestas, pântanos e brejos ainda entre um campo cultivado e outro.Nesse espaço ocidental europeu de cidades esvaziadas e penetradas pelo verde - sinal de abandono erecuo - há mil anos atrás a natureza ainda resistia: os homens mal dominavam a terra. Muitostrabalhavam o solo com suas próprias mãos. As ferramentas eram poucas, a maioria de madeira ainda.As famílias, a maioria de camponeses - mas também de escravos - viviam em choças. Trabalhavamunidas e a duras penas para retirar sua subsistência. De cada grão colhiam dois, no máximo três(DUBY, 1979: 13).

Mesmo assim, parte da colheita ia para seu protetor, seu senhor, seu amo, aquele que os protegia dosataques, da violência, da guerra. Ele deveria conservar a paz. No entanto, ele mesmo era o senhor daguerra. Paradoxo, não? Pois tinha um cavalo, uma espada, sabia matar. Sua família tinha uma históriaque remontava a algum rei ancestral e viril. Era uma linhagem. Ele morava em uma fortificação, umafortaleza de madeira - já existiam alguns castelos de pedra, mas eram raros.

Assim, cada vez mais, a partir do século XI, os camponeses viviam ao redor dessa paliçada, residênciasimples e sem requinte, prontos para entrar nela caso houvesse alguma agressão. Essa fortificação eraum pólo de atração, como as guarnições romanas dos séculos III-IV. Cada vez mais os pobres buscavamessa proteção: o habitat concentrou-se. Esse processo foi denominado deencelulamento peloshistoriadores (DUBY, 1992: 60).

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O senhor tinha o direito de julgar. Vigiar e punir. Mas não sabia trabalhar os campos: dependia,portanto, daqueles miseráveis sujos que viviam em suas terras. Suas? Sim e não. A terra abundava, oshomens não. Havia então uma relação de dependência: buscando uma palavra para definir essa teiasocial, os historiadores chamaram esse entrelaçamento nas relações entre os homensdereciprocidade. Os rurais estavam ali há muito tempo: foram fixados na terra desde o século IV,quando ainda existia o Império Romano do Ocidente. Assim, não podiam ser expulsos. A terra entãoera compartilhada.

Mas não pense que o senhor quisesse expulsá-los. Pelo contrário, dependia deles para sobreviver.Afinal, como saber os ciclos da natureza, os momentos de plantio e colheita, as formas de limpeza epreparo da terra? Sem eles, certamente o senhor da guerra morreria de fome. Nesse ambiente hostil,os próprios trabalhadores rurais consideravam os impostos entregues como um presente.Umaoferenda, um reconhecimento quase espontâneo dos protegidos. Compensava a segurança que osenhor oferecia (DUBY, 1999: 116). Dar e receber. Oferecer e retribuir. Em tempos de penúria, osenhor abria seus celeiros, alimentava-os. Sinal de confiança. E necessidade.

II. O tempo dos clérigos

Nessa sociedade analfabeta destacavam-se os religiosos. Especialmente os monges. Como no séculoVIII, os valores espirituais encontravam-se nos mosteiros, não nas catedrais, não nos bispos (DUBY,1999: 128). Estes eram mundanos, também eram cavaleiros, participavam das guerras, estavammesclados no mundo secular, profano. Tinham as mãos sujas. Pois o mundo religioso tambémenfrentava uma grave decadência, especialmente após a dissolução do Império Carolíngio e os ataquesvikings no final do século IX. Abadias foram destruídas, comunidades dispersadas, a Regra de SãoBento esquecida. Ermentário, um monge de Saint-Philibert de Noirmoutier, escreveu em meados doséculo IX:

O número de navios aumenta; a multidão inumerável de normandos não pára de crescer; detodos os lados cristãos são vítimas de massacres, pilhagens, devastações, incêndios (...) tomamtodas as cidades que atravessam (...) muitas cinzas de santos são roubadas (...) quase não hálocalidade, nenhum mosteiro que seja respeitado, e raros são aqueles que ousam dizer:fiquem, fiquem, resistam... (citado em D'HAENENS, 1997: 89)

Marc Bloch chegou a afirmar que a desordem resultante das tormentas vikings e magiares do séculoIX deixou o corpo social do ocidente medieval “coberto de feridas”; a vida intelectual sofreu muitocom isso, pois o monaquismo decaiu profundamente (BLOCH, 1987: 57). O papado também sofreu: noinício do século XI, estava dominado pela nobreza germânica, que elegia e depunha papas a seu bel-prazer. Por sua vez, corruptos e devassos, os papas distinguiram-se por suas orgias e subornos.Simonia e nepotismo, desejo de possuir coisas impuras: cupiditas (DUBY, 1992: 51). Pecado capital.Escândalo. João XII (955-964), por exemplo, foi acusado por seus cardeais de subornar bispos, cometeradultério com a concubina de seu pai e incesto com sua mãe; Benedito IX (1032-1044), igualmentedevasso, vendeu o cargo a Gregório VI (1045-1046) por moedas de ouro, sendo deposto por isso(DUFFY, 1998: 87).

Senhores feudais também indicavam abades para os mosteiros, apropriando-se de suas rendas. Pareciaque o mundo espiritual estava irrevogavelmente destruído. Fim dos tempos, apocalipse. São Eudes deCluny (†942) disse

...alguns clérigos desconsideram tanto o Filho da Virgem que praticam a fornicação em suaspróprias dependências, até mesmo nas casas construídas pela devoção dos fiéis a fim de que acastidade possa ser conservada dentro de seus recintos cercados; inundam-nas com tantaluxúria que Maria não tem lugar para deixar o Filho Jesus (citado em DURAND, s/d: 475-476)Obs: Freqüentemente Eudes é mencionado como Odon).

III. Os mosteiros na Idade Média

E foi justamente da abadia de Cluny que um grande movimento de reforma teve início. Muitosreligiosos desejavam o retorno à “idade de ouro dos apóstolos”. Os monges foram mais uma vez osresponsáveis pelo reerguimento intelectual da Europa medieval. Eles tentavam se aproximar do além,recusando o século, rompendo com o mundo, aquele mundo cheio de vícios (o tema dos sete pecadoscapitais - e as virtudes - é recorrente na literatura medieval. Verdadeiro sistema regulador da vidamoral, o estudo das virtudes e vícios era considerado necessário até para a ciência da memória[mnemotécnica]: LE GOFF, 1994: 453). Ao ser perguntado sobre o porquê de fundar mosteiros, Oto,

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bispo de Bamberg (1062-1139) disse

...todo este mundo é um local de exílio; e, enquanto vivermos nesta vida, somos peregrinos doSenhor. Assim sendo, necessitamos de estábulos e estalagens espirituais e locais de repousocomo os monastérios podem dar-se ao luxo de acolher peregrinos. Além disso, o fim de todas ascoisas está próximo e o mundo inteiro assenta-se sobre depravação; por conseguinte, é bommultiplicar os monastérios por amor daqueles que desejam fugir ao mundo e salvar suas almas(citado em JOHNSON, 2001: 212)

Os monges trabalhavam na terra, rezavam e estudavam, ocupavam o tempo em prol de Deus: ora etlabora. Opus Dei. Devemos agradecer a eles: graças a esses monges sabemos algo desse tempo. Elesescreveram, escreveram e copiaram. Preservaram. Reinventaram a escrita, a caligrafia minúscula,inventaram a leitura em silêncio, a reflexão (PARKES, 1998: 103-122). Essa foi uma grande revoluçãosilenciosa e duradoura, embora imperceptível para mentes obtusas acostumadas com a excitação dahistória dos acontecimentos políticos. Um alerta já antigo, historiador: há cinqüenta anos FernandBraudel nos ensinou que as imensas e lentíssimas vagas das marés profundas dos oceanos, osmovimentos quase imóveis dos processos históricos, são mais importantes para a nossa análise do queas enganadoras e apaixonantes espumas das ondas dos fatos, da política, do dia-a-dia (BRAUDEL,1995: 25).

Por outro lado, tenho que adverti-lo, caro leitor: não se iluda. Boa parte desse quadro geral dasociedade da Europa do ocidente medieval do início do século XI que descrevi nas primeiras linhasdesse texto pertence à imaginação dos historiadores, à minha própria imaginação. O maior dospesquisadores de Cluny, Georges Duby, nos disse que é inútil interrogar os documentos da época, poisseus redatores não estavam nem um pouco preocupados com as condições da vida material (DUBY,1986: 29). Pelo contrário, os escritores de então olhavam para o além, para o céu e para o inferno.Conversavam com os mortos, tinham sonhos, viam anjos e demônios. Como disse, eram todosreligiosos, educados em mosteiros. Muitos sequer saíram deles (DUBY, 1986: 26). Mas não se espante:imaginar é um exercício maravilhoso, a principal tarefa mental do historiador (DUBY, 1988: 01). Pelomenos do que se preza.

Bem, os mosteiros proliferavam desde a época merovíngia (DUBY, 1992: 23). Eram organizados,tinham disciplina; prosperavam. Outro paradoxo: apesar de voltados para o outro mundo, o daeternidade, os monges levavam uma vida bastante prática: cultivavam suas terras com seuscamponeses, ajudavam-nos a dominar a natureza, a abrir matagais, a drenar pântanos, a construirmoinhos (numa verdadeira política de mecanização do trabalho [GIMPEL, 1977: 15]); produziamvinhos (JOHNSON, 1999: 141) - necessários à liturgia, à prevenção sanitária e à higiene alimentar(MONTANARI, 1998: 287).

As abadias também eram centros de povoamento - vilas foram fundadas (JOHNSON, 2001: 180) -, deprodução e comércio - mercados foram desenvolvidos para o excedente de sua produção. No entanto,esse comércio monástico não estava voltado para ganhar, mas para o consumo próprio (DUBY, 1990:87). Mais: para dar (FOURQUIN, 1986: 21). Hospitalitas. Receber, alojar e alimentar o viajante, operegrino, o que batia à porta solicitando pernoite, mas também os doentes, os errantes, as crianças,os pobres (DUBY, 1990: 87). Função do bom cristão, do civilizado.

Por fim, os monges foram desbravadores das florestas. Civilizaram. Outra revolução silenciosa,pertinaz, agrícola, levada a cabo por esses homens de negro (os historiadores, mais uma vez eles,deram a esse lento movimento de conquista da natureza realizado principalmente pelos mosteiros onome de arroteamento) (BONNASSIE, 1985: 33-36, que, no entanto, não diz uma palavra sobre aparticipação dos mosteiros no processo de arroteamento! Por que? Ver, para confronto, FOURQUIN,1986: 34).

Assim, embora também tocados pela degradação espiritual dos séculos IX-X, os mosteiros, devido àsua organização, foram os primeiros a se recuperar. Esse movimento regular de ressurgimento eretorno às origens mostra a força histórica das grandes religiões chamadas “do Livro”. Explica suapermanência na História.

IV. Cluny e a doação de Guilherme, duque da Aquitânia

O mais importante centro dessa reforma monástica foi Cluny. Raul Glaber (†1044), o melhorhistoriador do ano mil, também ele cluniacense, nos conta que a abadia de Cluny era um asilo desabedoria, pois fez renascer a Regra de São Bento - embora com uma ênfase diferente, como veremosmais adiante. A raça cluniacense tornou-se, segundo suas palavras, “um exército do Senhor que seespalhou rapidamente numa grande parte da terra” (citado em DUBY, 1986: 188).

Um modelo de perfeição, um modo de vida totalmente harmonizado com os desígnios do Criador,

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Cluny foi um dos maiores projetos monásticos de todos os tempos. Desde sua fundação em 932, aabadia não parou de crescer. Doado em 910 (ou 909) por Guilherme, mais tarde chamado de oPiedoso, duque da Aquitânia e conde de Mâcon, o domínio (villa) encontrava-se ao sul da Borgonha,no Saône e Loire, próximo do Ródano (MARTÍNEZ, 1997: 192). Havia uma capela no local (chamadade Cluny A) - as escavações arqueológicas dataram-na entre os séculos VI e VIII (IOGNA-PRAT, 1998:107). Chegaram seis monges, liderados por Bernon (910-924), abade de Baume e Gigny, que se propôsconstruir um pequeno santuário (chamado pelos especialistas de Cluny I), com 35 metros decomprimento (HEITZ, s/d: 132).

Em seu testamento, o duque Guilherme diz:

Para aqueles que consideram as coisas com bom senso é evidente que a Divina Providênciaaconselha os ricos a utilizar devidamente os bens que possuem de maneira transitória, sedesejam recompensa eterna (...) Por esta razão , eu, Guilherme, pela Graça de Deus conde eduque, tendo ponderado estas coisas e desejando, enquanto é tempo, tomar medidas para aminha salvação, achei justo e mesmo necessário dispor, para proveito da minha alma, dealgumas das possessões temporais que me foram concedidas (...)

Portanto, a todos aqueles que vivem na unidade da fé e que imploram a misericórdia de Cristo,a todos os que lhes sucederem e viverem até à consumação dos séculos, faço saber que poramor de Deus e do nosso Salvador Jesus Cristo, dou e entrego aos santos apóstolos Pedro ePaulo a vila de Cluny, que fica sobre o rio chamado Grosne, com as suas terras e reservasenhorial, a capela dedicada em honra de Santa Maria Mãe de Deus e de São Pedro Príncipedos Apóstolos, com todas as coisas que pertencem a essa vila: capelas, servos dos dois sexos,vinhas, campos, prados, florestas, águas e cursos de água, moinhos, colheitas e rendas, terraslavradas e por lavrar, sem restrições (...)

Dou com a condição de que seja construído em Cluny um mosteiro regular, em honra dosSantos Apóstolos Pedro e Paulo; que aí formem uma congregação de monges vivendo sob aregra de São Bento; que a possuam para sempre, detenham e governem, de tal maneira queeste venerável domicílio esteja incessantemente cheio de votos e preces; que todos procuremnela, com o vivo desejo e um fervor íntimo, a doçura da comunicação com o Céu e que aspreces e súplicas sejam sem cessar daí dirigidas para Deus, tanto por mim como por aquelaspessoas acima lembradas (...)

Foi de nosso agrado registar neste testamento que de este dia em diante os monges unidos nacongregação de Cluny fiquem por completo libertos do nosso poder, do dos nossos parentes eda jurisdição da real grandeza, e nunca se submetam ao jugo de qualquer poder terreno, nemao de nenhum príncipe secular, conde ou bispo, nem ao do pontífice da sé Romana, masapenas a Deus... (citado em ESPINOSA, 1981: 284-285)

Sem rodeios ou interpretações dúbias, aqui estão as palavras de um medieval. Um testamento, pornatureza, expressa o desejo mais íntimo de alguém, sua vontade mais recôndita, ainda mais se forredigido em vida do doador, como foi o caso. Temente a Deus e preocupado com a salvação de suaalma, pois acredita que recebeu dos céus como graça a nobreza de sua posição social, Guilherme dáum pouco do que tem. Reparte. Deve ser generoso: não reter nada nas mãos é o ideal cavaleiresco queaos poucos se difunde por entre a nobreza: largueza é o termo que define esse gesto. Os cavaleirosdeveriam ser largos, generosos.

Mas o que quero ressaltar aqui são duas de suas condições - sua dádiva tem preço, pois ele parececonhecer a degradação humana: os monges que ali vivessem deveriam se comprometer acumprirestritamente as normas beneditinas e eleger livremente seu abade. Assim, ninguém poderiainterferir na vida da comunidade e, o que acho mais importante, neste testamento, Guilherme dá otom da crença da época: Cluny, ou melhor, o mosteiro que eles deveriam construir em Cluny, seria umportal de comunicação com o céu! Um elo de ligação cheio de doçura. Cluny seria a Jerusalém celesteencarnada, o paraíso novamente concretizado. Como um ponto de luz na escuridão, um foco debondade em meio à turbulência do século, as preces e súplicas dos monges seriam a causa de suareunião. É por esse motivo que o duque os liberta das indesejáveis intromissões de nobres e bispos: osmonges deveriam ser livres para melhor obrar junto a Deus! Eram intermediários, intercessores entre“a ordem imutável do universo celeste e a perturbação, a miséria e o medo deste mundo” (DUBY,1988: 03).

Guilherme confiou essa missão a Bernon por sua fama: o abade era conhecido por ter restaurado adisciplina monástica em vários mosteiros (PACAUT, 1996: 393-394). Essa iniciativa estava bem deacordo com a época. Relação dialética: os seculares, os mais corrompidos, se interessavam pelarenovação; os clérigos, igualmente corrompidos, aceitaram renovar. Um movimento social que partiudas consciências, uma mutação das consciências baseada na crença em um além, em uma salvação. De

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todas as partes do corpo social brotou um desejo de mudança. Próximo da morte, o homem medievaltentava se redimir de sua vida pecaminosa.

V. A expansão cluniacense

Até 926 Bernon aclimatou os irmãos no espaço, na pequena capela existente. Preparou-os para suamissão. Edificou a primeira igreja (Cluny I). Não se sabe nada nem da capela (Cluny A) nem da igreja(IOGNA-PRAT, 1998: 107).

Nesse mesmo ano de 926 Bernon legou Cluny a seu discípulo Eudes (927-942), já citado. Durante seuabaciado, Cluny recebeu um importante privilégio: o papa João XI (931-936) outorgou-lhe em 931 umdireito de reforma: a partir de então, qualquer mosteiro que solicitasse ao abade cluniacense umareforma monástica seria incorporado à casa mãe. O mesmo se daria com qualquer monge quedesejasse ser acolhido (IOGNA-PRAT, 1998: 101). Este fato possibilitou a Cluny criar uma rede demosteiros, um corpo monástico, um exército, como disse Raul Glaber, a ecclesia cluniacensis.

Eudes anda contribuiu de forma decisiva para a formação da espiritualidade cluniacense. Seguindo omodelo apostólico, Eudes traçou um paralelo da vida monástica com o mundo angélico: os mongesdeveriam ascender sete etapas sucessivas em busca da felicidade angélica para alcançar o Cristo. Emsua obra Occupatio, ele afirma que a Páscoa era celebrada todos os dias pelos cluniacenses em umaigreja que era a “Jerusalém descida dos Céus” (HEITZ, s/d: 132).

Aymard (942-954), Mayeul (954-994) e Odilon (994-1049) prosseguiram o trabalho dos doisprimeiros abades com tal afinco que, já no final do século X, Cluny agrupava uma vasta congregaçãode abadias pelo território francês (PACAUT, 1996: 394). Um ponto importante: com essa expansão, oscluniacenses tornam-se senhores, como castelões e eclesiásticos, pois se apropriaram das antigasprerrogativas do poder real ausente, especialmente a justiça (IOGNA-PRAT, 1998: 102). Naturalmenteisso aconteceu por outras vias, pois a defesa de sua liberdade, isto é, de sua emancipação frente aospoderes instituídos, deu-se através de armas espirituais, especialmente sua participação nosmovimentos da Paz de Deus e Trégua de Deus (COSTA, 2001(http://www.ricardocosta.com/pub/cavaperf.htm) ) e, um pouco depois, na divulgação da PrimeiraCruzada para reconquistar Jerusalém.

Os monges vinham de todas as partes. Em pouco tempo o número se multiplicou: dos seis do tempode Bernon (910) para 132 no tempo de Mayeul (948). Era necessário ampliar a igreja. Cluny II foiconstruída nos anos 955-991, seguindo os moldes da planta do convento de Saint-Gall. Tinha 63metros de comprimento. Consagrada em 981, a partir de 986 temos notícia do primeiro tribunalprovado, um claro indício da feudalização dos poderes (DUBY, 1990: 143-179). Os monges tornavam-sesenhores.

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Saint-Gall

VI. A alimentação em Cluny e o enriquecimento da região. Cluny III

E senhores com fausto. A batina dos monges, tecida de boa lã, era renovada todos os anos; os tecidoseram comprados de fora, pois a criação de carneiro era pouco desenvolvida na senhoria cluniacense(DUBY, 1990: 110). Um luxo para a época. Graças ao monge Ulrico de Zell, secretário de São Hugo(1049-1109), abade, sabemos um pouco mais da vida no mosteiro. Ele redigiu por volta de 1080 as TrèsAnciennes Coutumes, descrevendo sua vida cotidiana, sua vida material. Dados preciosos.

Nesse tempo já viviam cerca de 300 monges em Cluny - chegariam a 450 no tempo de Pedro,o Venerável (1122-1155). Uma grande expansão. Proibida a carne de quadrúpedes - exceto para os fracose doentes - a dieta dos monges era rica e variada. Os cluniacenses foram favorecidos pelamultiplicação de trabalhadores nas zonas rurais e a abundância de matérias orgânicas nos séculosXII-XIII: os rendimentos da terra melhoravam, passando de dois para um do período carolíngio aquatro para um em Cluny (RIERA-MELIS, 1998: 390).

Segundo Ulrico, de primeiro de outubro até a Quaresma - dias curtos e frios, a comunidade se reuniano refeitório apenas uma vez por dia nas jornadas de trabalho e duas nos dias de festa. A dieta era aseguinte:

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1) Almoço (na sexta hora, por volta do meio-dia): dois pratos quentes (sopa de legumes eguisado de legumes). Como sobremesa, frutas e legumes;

2) Às terças, quintas, sábados e domingos: o “geral” (quatro ovos, uma ração de queijo cru oucozido) e

3) Aos domingos e quintas: peixe (quando obtido a preço razoável nas feiras locais)

Todos esses pratos eram acompanhados de pão branco e uma taça grande de vinho. Isso no inverno.No verão (da Páscoa a setembro) eles tinham duas refeições diárias, uma ao meio-dia outranasvésperas - as horas eram divididas de acordo com as horas das orações: matinas (meia-noite), laudes (três da manhã), primas (primeiras horas do dia, ao nascer do Sol, cerca de seis damanhã),vésperas (seis da tarde) e completas (na hora de dormir) (TUCHMANN, 1990: 56)

O jantar das vésperas era frugal: restos de pão, de vinho e frutas da refeição. No fim do dia os mongespoderiam ainda tomar um cálice de vinho antes de se recolherem (RIERA-MELIS, 1998: 398-399).

Além disso, a abadia sustentava uma considerável multidão. Os novos recursos que entravam naeconomia cluniacense - oriundos dos dízimos das abadias satélites, doações inglesas (especialmenteHenrique I [1100-1135], que ajuda a construir Cluny III [IOGNA-PRAT, 1998: 103]) e das mil peças deouro anuais doadas pelos castelhanos (DUBY, 1990: 113) - enriqueceram-na. A abadia virou um imensocanteiro de obras. Cluny III foi construída para tornar-se uma “pequena Roma” (IOGNA-PRAT, 1998:114).

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Cluny III (1088-1130). Reconstituição computadorizada.

A igreja tinha mais de 187 metros de comprimento. Naturalmente, esta grandiosa obra arquitetônicapareceu aos contemporâneos a “Jerusalém celeste” (HEITZ, s/d: 134). Tudo em Cluny sugeria o além,as sagradas coisas divinas, os anjos. Os próprios monges eram considerados anjos. Comointermediários perfeitos entre o mundo terrestre e o celeste, a origem da concepção da nova igrejanão poderia deixar de ser um milagre. Hildebert de Lavardin, bispo de Mans e de Tours (1055-1133)descreveu em sua obra La Vîe de l'Abbé Hugues a maravilha: São Pedro apareceu ao monge Gauzonem sonho e ordenou-lhe que procurasse seu abade Hugo e o convencesse a construir Cluny III. Semi-paralítico, Gauzon ouviu do santo que, tomando essa iniciativa junto ao abade, ele seria curado eganharia ainda mais sete anos de vida. No sonho, o monge chegou a ver São Pedro medir ocomprimento e a largura da nova igreja abacial, determinando, calculando, precisando o espaço(HEITZ, s/d: 134).

Presentes na tradição bíblica, pelo menos desde Agostinho os sonhos fazem parte do imagináriomedieval (LE GOFF, 1994: 283-333). Como o século XII é considerada pelos especialistas do mundoonírico a época de reconquista do sonho pela cultura medieval (LE GOFF, 2002: 511-529), o sonho deGauzon com São Pedro ordenando e medindo a abadia monumental legitimou Cluny como centro deperegrinação, de devoção, de luz. Espiritualizou o surto agrícola e comercial da região cujo principal

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responsável foi o mosteiro. Mostra-nos também que o mundo clerical recebeu, a princípio, areformacluniacense de braços abertos. Daí sua rápida expansão.

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Cluny III (1088-1130). Reconstituição computadorizada.

VII. Dos sonhos aos mortos

Eles conquistaram as graças do povo. Um fato crucial para essa devoção popular foi a criação daliturgia dos mortos. Dia dos finados. Assumiam assim as funções eucarísticas. Um “mistériomagnífico” que trouxe grandes benefícios às almas dos fiéis defuntos. Os monges de Cluny eramguerreiros de luz que combatiam as trevas. Ao cantarem ininterruptamente, resgatavam as almaspenadas, os perdidos, os errantes que estavam condenados ao abismo infernal.

Por volta de 1030 Cluny organizou a liturgia da comemoração dos defuntos - a data foi fixada em 02 denovembro. Era sua vocação. Pierre, o Venerável, oitavo abade de Cluny (1122-1156) escreveu umacoletânea de relatos de milagres (De miraculis): visões - celestiais e diabólicas (sim, o diabo tentava aabadia, daí sua santidade) -, sonhos e aparições de mortos. A obra possui dez relatos de aparições demortos. Especialmente através de sonhos: os monges cluniacenses recebiam regularmente a visita demortos em seus sonhos. Anunciações, avisos, premonições. A tradição de Cluny obrigava que ovisitado avisasse à comunidade para que fossem celebradas missas salutares em honra ao mortoonírico visitante (SCHMITT, 1999: 90-97). Assim, além do contato e do auxílio aos mortos, omosteiro, com seu canto e suas missas ininterruptas, libertavam almas perdidas para o demônio. Maisuma vez Raul Glaber nos conta:

Sabe que esse mosteiro não tem outro que se lhe iguale no mundo romano, sobretudo paralibertar as almas que caíram no poder do demônio. Imola-se nesse lugar tão freqüentemente osacrifício vivificante, que quase não passa um dia sem que, por tal mediação, não sejamarrancadas almas ao poder dos malignos demônios. Com efeito, neste mosteiro, nós própriosfomos testemunhas disso, um uso tornado possível pelo grande número dos seus monges,determinava que se celebrasse sem interrupção missas desde a primeira hora do dia até a horado repouso; e punha-se nisso tanta dignidade, tanta piedade, tanta veneração, que seacreditava ver mais anjos do que homens (citado em DUBY, 1986: 217).

Anjos, eles eram anjos de verdade que desceram dos céus para cantarem próximo de nós. Esses mongesde negro, com suas vozes, entoadas em uníssono perfeito, salvariam o mundo da perdição e oshomens estariam livres dos horrores do fim dos tempos. Cluny veio para preparar o mundo para oApocalipse, amenizar o sofrimento dos espíritos inquietos.

VIII. Comida e arte

Quero retornar à questão alimentar e destacar dois pontos, dois temas que se entrecruzam no homemmedieval: música e comida, ou seja, dom, riqueza e caridade. O monetário oriundo das doações que

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afluiu para Cluny foi também direcionado pelo abade para os mais pobres. Como afirmei no iníciodesse texto e volto a insistir, a economia monástica não visava o lucro, estava voltada para acomunidade - num sentido mais amplo, para o corpo cristão.

Reitero: nem o abade, nem os monges, nem seu tempo tinham a mentalidade capitalista. É inútil vê-los com esse olhar moderno. Não era esse o foco. Há de se fazer um esforço de compreensão, énecessário. Historiador, liberte-se de suas amarras materiais, sinta o ambiente e as prioridades deentão. Coloque-se no lugar, pense na Idade Média, não a Idade Média (LIBERA, 1999: 68). Perde-seperspectiva, claro, mas ganha-se compreensão, amplia-se o horizonte do entendimento histórico.

Assim, pelo contrário, cada vez mais ricos, os monges deveriam ter mais tempo para os mortos, para aliturgia, para seu objetivo primeiro: salvar as almas do povo, protegê-las contra os perigos invisíveis -lembre que, para os homens da Idade Média, o mundo invisível era mais importante que o visível.Claro, este perecerá, aquele permanecerá, permanece, é eterno.

Mais ricos, eles deveriam se libertar ainda mais das tarefas domésticas para se dedicar ao Opus Dei, aocanto. E eles cantavam. Cantavam e cantavam, cantavam cada vez mais, “a plenos pulmões”, todosjuntos, em uníssono, seis, oito horas, sete vezes por dia (DUBY, 1979: 80). Seu coro era másculo eviolento, um verdadeiro canto de guerra - uma guerra espiritual e ininterrupta contra as forças domal. Esse canto buscava o sagrado, deveria harmonizar-se com os hinos dos serafins que rodeavamDeus (DUBY, 1988: 26).

Por esse motivo, o trabalho físico dos monges em Cluny passou cada vez mais a ser simbólico (DUBYe ARIÈS, 1990: 58). Além de embelezar o santuário - a casa de Deus deveria ser semelhante à luztransbordante e gloriosa do céu do Senhor - mais livres, os monges poderiam também realizarmelhor outro ideal cluniacense: o da caridade, a caridade beneditina (DUBY, 1990: 113). Ao analisar oorçamento de Cluny no final do século XI, Georges Duby descobriu uma quantidade surpreendente depessoas que estavam ligadas à riqueza alimentícia cluniacense: serviçais (que, além de usufruírem dacaridade, também trabalhavam no mosteiro para sustentar a família), pensionistas pobres, visitantesde passagem, dignatários ricos e peregrinos nobres (e seus cavalos), crianças entregues por sualinhagem (DUBY e ARIÈS, 1990: 63), todos fielmente alimentados como os monges!

Cluny realizava verdadeiras epopéias distributivas: as esmolas. Na Quaresma, por exemplo, pasme,leitor, 16 mil indigentes repartiam 250 porcos salgados preparados pelas duas cozinhas do mosteiro. Oconsumo de pão era igualmente desmedido: 2 mil cargas de asnos, muitas vezes oriundos de longe(DUBY, 1990: 109). Por esse motivo, a economia cluniacense rapidamente entrou em crise - some-se aisso o fato de as cobranças das famílias camponeses instaladas nas terras do mosteiro serem muitosuaves (as corvéias eram insignificantes, lembrem-se do ideal de caridade), existiam muitos alódiosnos arredores (terras camponesas livres de cobranças), e um terço do excedente ainda era destinadoaos hóspedes e às esmolas para os pobres (DUBY, 1990: 110).

Por fim, as necessidades de consumo da abadia (grãos e vinho) estimularam a produção agrícola local.Os camponeses prosperaram, não só vendendo sua produção para os monges mas tambémtrabalhando no canteiro de obras que se tornou a construção daquela imensa igreja abacial (DUBY,1990: 115).

IX. Críticas de São Bernardo: comida e arte (II)

De qualquer modo, a independência, todo esse luxo e opulência e especialmente a velocidade com queCluny passou de uma economia baseada na exploração direta de um vasto domínio (910-1080) parauma economia monetária (1080-1125) (DUBY, 1990: 123) despertou a ira de muitos setoreseclesiásticos. Invejas. Com a morte do abade Hugo de Sémur (1109), a eleição de Pons (que se demitiu)e Hugo II (que governou apenas alguns meses), a ordem entrou em crise. Crise de valores: foi acusadade corrompimento. Luxo, opulência, fausto. Degeneração. Sua expansão e enriquecimento provocaraciúmes. Mas também decadência moral.

As críticas não eram novas. O bispo Adalberon de Laon (†1031) - um dos criadores do ideal das trêsordens - já havia escrito um poema satírico, um panfleto, Graça para o rei Roberto (Carmen adRobertum regem) denunciando Cluny e seu abade, Eudes. O desejo de Adalberon era restabelecer osbispos como conselheiros dos reis, função então usurpada pelos monges, segundo ele, “laicos querecusam o matrimônio”, responsáveis pela perturbação social.

Eudes era o culpado: esse “mestre da ordem belicosa dos monges”, que domina um suntuoso palácio,vive como um nopbre quando deveria viver como um pobre. É um usurpador. Além disso, oscluniacenses militarizaram a oração, como vimos. Adalberon teria mandado um monge a Cluny paraobter informações. Ele regressou maravilhado e convertido à mentalidade cluniacense: “Soucavaleiro, permanecendo monge!” Adalberon ficou perplexo: monges guerreiros? Oraçõesmilitarizadas? Guerra espiritual? Tolice. Trata-se de uma transgressão social (DUBY, 1982: 67-71).

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Chegamos então a São Bernardo (1090-1153), o homem do século XII (SANTOS, 2001). Um dosmaiores pregadores de seu tempo, cisterciense, austero, devotado à união mística com Deus, ao papelascético do trabalho manual, Bernardo redigiu, por volta de 1124, uma apologia (DIAS, 1997: 7-76).Um grande amigo seu, monge cluniacense, Guilherme de Saint Thierry (próximo de Reims),escreveu-lhe uma carta com uma ordem: pôr fim a um escândalo. Os cistercienses estavam caluniandoos cluniacenses (BAC, MCMXCIII: 248). Guilherme então se queixou a Bernardo, que decidiu ceder àsua dor e responder. Logo no início da carta ele faz duas perguntas diretas e incisivas, característicasde seu estilo impetuoso:

Como é que eu poderia ouvir em silêncio a tua queixa acerca de mim, pela qual se diz que nós,os mais miseráveis dos homens, andrajosos e mal vestidos, das cavernas, como diz ele,julgamos o mundo e, o que é mais intolerável ainda, criticamos também a tua gloriosíssimaOrdem e, sem vergonha, atacamos os santos que nela vivem tão louvavelmente e, da sombrada nossa ignobilidade, insultamos esses luminares do mundo?

Por acaso é possível que nós, não lobos vorazes sob pele de ovelhas, mas pulgas mordazes emesmo traças destruidoras, uma vez que não o ousamos fazer às claras, destruamos, àsocultas, a vida dos bons e nem sequer lancemos o clamor da invectiva mas o sussurro dadetração? (I.1 . In: DIAS, 1997: 23)

Como se vê e pode-se imaginar, esse texto fez muito sucesso. Bernardo possui um estilo vigoroso.Logo se faz ouvido. Particularmente esse texto deu-lhe prestígio, tornou-o famoso nos círculoseclesiásticos (SANTOS, 2001: 53).

Bem, após aceitar falar sobre o assunto, Bernardo afirma que jamais discutiu em público contra Cluny.Pelo contrário, sempre foi muito bem recebido como hóspede em mosteiros cluniacenses - chegoumesmo a ser hospitalizado - e pôde perceber que seu modo de vida é santo, honesto, discreto e casto(II.4) (DIAS, 1997: 27-29). Afirma que sempre falou bem dos monges de negro: “Sou Cisterciense,condeno por isso os Cluniacenses? De modo nenhum. Amo-os até, falo deles com elogio, louvo-os.”(IV.7) (DIAS, 1997: 33). Apenas preferiu entrar para a Ordem de Cister por necessitar de um remédiomais forte tanto para sua alma pecadora quanto para seu corpo, antes vendido ao pecado.

Assim, antes de iniciar suas críticas aos costumes corrompidos de Cluny, Bernardo ressalva:

Na realidade, nenhuma ordem aceita algo de desordenado; o que é desordenado não é ordem.Por consequência, não me devem considerar como disputando contra a Ordem mas pelaOrdem, se acaso, repreendo não a Ordem nos homens mas os vícios dos homens (...)

Se, de fato, a alguns desagradar, eles mesmos mostram que não amam a Ordem, já que nãoquerem condenar a corrupção, isto é, os vícios. A esses respondo com aquele dito de Gregório:“É melhor que apareça o escândalo que se deixe a verdade” (VII.15 ) (DIAS, 1997: 47)

Suas críticas dirigem-se não só a cluniacenses, mas a todos os monges: “Quem é que no princípio,quando começou a Ordem monástica, teria pensado que os monges pudessem chegar a talrelaxamento? Oh! Como estamos longe dos tempos de Antão!” (IX .29) (DIAS, 1997: 51). Seus olhosvêem vaidade e superficialidade disseminadas em todos os mosteiros. Falta de moderação. Riqueza.Luxo. O mundo monástico foi tomado pelo excesso: “...intemperança nas comidas e bebidas, nasvestes e nas roupas de dormir, nos apetrechos de cavalgar e na construção de edifícios.” (VIII.16)(DIAS, 1997: 47). Ao referir-se à alimentação, Bernardo é tão incisivo que seu tom beira a denúncia.Ele quer trazer os monges de volta à razão, aos valores espirituais, à busca da elevação da alma:

O Reino de Deus está dentro de vós, isto é, não na exterioridade do vestir ou dos alimentos docorpo mas nas virtudes do homem interior (VI.12)

(...) De fato, o exercício espiritual é tanto mais frutuoso que o corporal, quanto o espírito ésuperior ao corpo. (VII.13) (DIAS, 1997: 43)

Sobre as refeições e a bebida nos mosteiros cluniacenses, ele aponta:

Trazem-se pratos de comida uns após outros e, em vez dum simples prato de carnes, de que sefaz abstinência, servem-se dois grandes peixes (...) Com tanta arte e cuidado as coisas sãopreparadas pelos cozinheiros que, depois de se ter devorado quatro ou cinco pratos, osprimeiros não impedem os últimos nem a saciedade diminui o apetite (...)

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Se fazem misturas dumas coisas com outras, e, desprezando os sabores naturais que Deus lhesincutiu, provoca-se a gula com sabores adulterados... (IX.20) (DIAS, 1997: 51-53)

Um escândalo! Os cluniacenses adulteram os sabores das coisas. Reviram, transformam a natureza!Repare na escolha minuciosamente proposital das palavras: adultério (sabores adulterados). Pecadomortal. Culinária? Perda de tempo, causa para a gula, outro pecado mortal. Peixes à macheia - sinal degrande riqueza, compras regulares nos mercados locais. E os ovos? Quantos ovos! - vimos atrás queterças, quintas, sábados e domingos os cluniacenses comiam quatro ovos. O frigir dos ovos propicia aBernardo um ritmo, uma cadência pulsante no texto:

Quem seria capaz de dizer de quantos modos (...)

Só os ovos se deitam e batem, com que cuidado se viram, se reviram, mal passados, bempassados, se reduzem e se servem ora cozidos, ora estrelados, ora recheados, ora mexidos, orasós? Para quê tudo isso senão para prevenir o fastio? (IX.20) (DIAS, 1997: 53)

Quem sofre é o pobre estômago do monge, cheio, com grandes arrotos. Mas nem assim o cluniacensepecador e guloso satisfaz sua curiosidade. Repare que um vício leva a outro: movimento circular. Acuriosidade é, para Bernardo, o primeiro grau da soberba, porque “lança os olhos e demais sentidosem direção a coisas que não lhe interessam” (BAC, MCMXCIII: 169). Os olhos deveriam estar voltadospara a terra, para que o néscio se conhecesse. “A terra te dará tua própria imagem, pois eras terra e àterra há de retornar” (BAC, MCMXCIII: 213). Os olhos dos monges são os culpados: o estômago nãotem olhos. Mais um motivo para o texto ser lido como um banquete imaginário, em um andamentorítmico e melódico de grande impacto discursivo:

Enquanto os olhos são seduzidos pelas cores, o paladar pelos sabores, o pobre estômago, quenem conhece as cores nem aprecia os sabores, é obrigado a receber tudo e violentado, ficaainda mais sobrecarregado do que refeito.” (IX.20) (DIAS, 1997: 53)

Apesar de todo esse fastio, Bernardo ainda sabe de terceiros que muitos jovens sãos mentem que estãodoentes para poderem comer carne! Ridículo se for verdadeiro (Ridiculum vero est) Qual o objetivodesses jovens monges? Imagine: aperfeiçoar a boa aparência do corpo. Então ele pergunta: “Quefrouxidão é essa, ó bons soldados?” (IX .22) (DIAS, 1997: 55).

Ele debocha desses soldados de Cristo. São beberrões, inclusive, esses cluniacenses. Três, quatrocálices cheios de vinho em cada refeição. Vinhos aromatizados com mel e misturados com pós decorantes. Suas veias ficam saturadas de álcool, a cabeça palpita. Ao invés de rezarem à noite, muitosdeles dormem. Claro. Bernardo faz um trocadilho: canto/pranto: “Ora, se és obrigado a levantar-tepara as vigílias com a digestão por fazer, não executarás o canto mas antes o pranto” (IX .21) (DIAS,1997: 55).

Como não associar a denúncia de Bernardo das orgias alimentares cluniacenses ao enriquecimentomaterial que tomou conta do ocidente medieval na virada do século XII? Crescimento populacional,desenvolvimento de novas técnicas agrícolas, arroteamentos, conquista do solo (LE GOFF, 1983: 87-92). Expansão. Fim das migrações perturbadoras. A cristandade alargava-se, as cidades eramnovamente palco de transformações sociais. Nascimento da burguesia, novo impulso comercial.

Esse arranque teve início por volta do ano mil. Para as mentes de então, estava associado à buscareligiosa. O próprio Raul Glaber, cluniacense, é sempre bom recordar, fala de uma paz divina após oflagelo da fome, como se Deus renovasse seu pacto com a humanidade. Sinta a fluência literária deum historiador cluniacense:

No ano milésimo depois da Paixão do Senhor, após a dita fome desastrosa, as chuvas dasnuvens acalmaram-se obedecendo à bondade e à misericórdia divina. O céu começou a rir, aclarear e animou-se de ventos favoráveis. Pela sua serenidade e paz, mostrava amagnanimidade do Criador. Toda a superfície da terra cobriu-se de uma amável verdura e deuma abundância de frutos que expulsou completamente a privação (...)

Inúmeros doentes reencontraram a saúde (...)

O entusiasmo era tão ardente que os assistentes elevaram as mãos a Deus exclamando emuníssono: “Paz! Paz!” Viam o sinal do pacto definitivo, da promessa estabelecida entre eles eDeus. (citado em DUBY, 1986: 179-180)

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O ocidente medieval cobriu-se de branco, o branco das igrejas. Construções por toda a parte:

...viu-se em quase toda a terra, mas sobretudo na Itália e na Gália, renovar as basílicas dasigrejas (...) Era como se o próprio mundo tivesse sido sacudido e, despojando-se da suavetustez, se tivesse coberto por toda a parte de um manto branco de igrejas. (citado em DUBY,1986: 192)

Cluny foi reflexo e imagem disso. A arte das catedrais foi também a arte das cidades (DUBY, 1988: 59),o que mostra a pujança dessa arrancada civilizacional.

Mas Bernardo acusa a opulência do mosteiro de Cluny. Os fiéis deveriam retornar a seu momentoprimeiro, à vida pobre, como Cristo, como os Apóstolos. Especialmente os monges, que estavam nadianteira do mundo, próximos do além. A vida apostólica era novamente o modelo a ser seguido. Oséculo XII enriquece materialmente mas entra em crise, crise espiritual, crise religiosa (BOLTON,1986: 19-62).

Por fim, a arte, a rica arte cluniacense que Bernardo aponta e que faz lembrar-lhe do “antigo rito dosjudeus” (X II.28) (DIAS, 1997: 63). Ela é resultado imediato dessa riqueza que o mundo conhece. Quala causa desse pecado? Para ele, a avareza. Ele critica:

Com os bens dos pobres serve-se aos olhares dos ricos. Os curiosos encontram com quedeleitar-se e os miseráveis não encontram com que sustentar-se (...) Muitas vezes cospe-se nafigura dum anjo, muitas vezes ferem a face dos santos os calcanhares dos transeuntes (...)

Porque decoras o que logo sujas? Porque pintas o que se deve calcar? Que valem aí essasbonitas imagens, onde tão freqüentemente se enchem de pó? Por último, que vale isso para ospobres, para os monges, para a gente espiritual? (XII.28) (DIAS, 1997: 63)

Então chego à passagem mais famosa dessa apologia. Ao acusar a monstruosidade artísticacluniacense, Bernardo nos mostra o quanto o mosteiro era suntuosamente decorado:

De resto, nos claustros, diante dos irmãos a fazer leituras, que faz aquela ridículamonstruosidade, aquela disforme beleza e bela disformidade? Para quê estão lá aquelesimundos macacos? Para quê os leões ferozes? Para quê os centauros monstruosos? Para quê ossemi-homens? Para quê os tigres às manchas? Para quê os soldados a combater? Para quê oscaçadores a tocar trombetas?

Vês uma cabeça com muitos corpos e um corpo com muitas cabeças. Daqui vê-se umquadrúpede com cauda de serpente, dali um peixe com cabeça de quadrúpede. Ali uma bestatem frente de cavalo e de cabra a parte de trás; acolá um animal cornudo tem traseiro decavalo. Tão grande e tão admirável aparece por toda a parte a variedade das formas que maisapetece ler nos mármores que nos códices, gastar todo o dia a admirar estas coisas que ameditar na lei de Deus.

Meu Deus! Se a gente não se envergonha destas frivolidades, porque não tem pejo dasdespesas? (XII.29 ) (DIAS, 1997: 67)

Banalidade da arte, do mal. Os olhos se perdem nas imagens, que passam para o primeiro plano. Otempo está perdido. O mundo cluniacense é um carnaval animalesco, um bestiário que passa em cadaparede, em cada escultura, em cada pintura. Os artistas de Cluny deram asas à imaginação erepresentaram o mundo visível e o invisível para o deleite dos monges: monstros, centauros, sátiros,faunos, dragões, sagitários, macacos (simiae). Até macacos! Na Idade Média, o macaco, o símio,simbolizava os vícios do condenado, a caricatura do homem (CURTIUS, 1996: 655). Como poderiaestar presente na arte de um claustro? Por isso Bernardo os chama de imundos. Essa arte é sensual,um prazer perverso, e por isso não deveria ser chamada de estética (DUBY, 1990: 109). Como verbeleza e sublimação nisso? Onde estão as virtudes morais que deveriam estar associadas às percepçõesestéticas?

A mística bernardina não negava a beleza desses ornamentos. Umberto Eco nos mostrou quejustamente por reconhecer seu atrativo irresistível é que os místicos a combateram. A descrição deBernardo da arte cluniacense é tão real que mostra seu paradoxo: ele via tanta sutileza em coisas quenão queria ver (ECO, 1989: 17).

Talvez eu deva moderar um pouco o julgamento de Umberto Eco. Bernardo apenas aparenta sercontraditório, pois quando conclui sua apologia lamentando não ter conseguido escrever sobre esse

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tema de outra forma que não fosse o escândalo, diz que, ao repreender os irmãos para que se corrijam,não está fazendo detração, mas atração (X II.31) (DIAS, 1997: 71). Mais um jogo de palavras típico desua bela e rica retórica, cheia de hábeis contraposições, bem ao melhor estilo da época (ECO, 1989:20). Bernardo sabe que ao lamentar os vícios ofende os viciosos. Paciência - virtude máxima medieval.

Conclusão

A crítica de São Bernardo à vida cluniacense foi apenas a primeira de uma torrente que se avolumoucom o passar do tempo. À medida que se aproximou de seu fim, a Idade Média tornou-se mais rígida, ocrescimento e a riqueza, distanciaram os extremos sociais. De sua parte, os religiosos buscaramalternativas mais austeras de redenção. A proposta de reforma cluniacense, a transformação da oraçãoem combate religioso, dos monges em guerreiros de luz foi, como já se disse, mais uma etapa desublimação das pulsões agressivas dos cavaleiros medievais, da violência das camadas superioresdaquela população (VAUCHEZ, 1995: 51). Em suma, mais um momento do processo decivilização realizado durante aqueles séculos pelo cristianismo triunfante.

Por outro lado, a Igreja, ou melhor, os bispos, já não precisavam dos monges. Vimos que desdeAdalberon os bispos denunciavam a apropriações que os cluniacenses vinha realizando,especialmente no campo da liturgia. Eram independentes demais, tornaram-se ricos demais. Osmonges deviam ser controlados. A crítica de Bernardo é apenas uma - decerto bastante forte esintomática - mas apenas mais uma de uma avalanche sistemática e regular.

De um lado, essas críticas foram mais um movimento de retorno às origens (à chamada Igrejaprimitiva) típico dos segmentos mais radicais presentes em todas as religiões e sempre dispostos a umeterno retorno; por outro, o mundo havia mudado e o centro da mudança estava nas cidades. A viradadeu-se entre 1120 e 1125: Calisto II (1119-1124), o primeiro papa em cinqüenta anos que não provinha deum mosteiro, abandonou Cluny aos ataques, às críticas do episcopado (DUBY, 1982: 232). A partir daí,a vida cultural, especialmente a intelectual, passou então, e cada vez mais, do mosteiro para acatedral, do campo para a cidade. Mas isso é outra história.

Enfim, Cluny representa o que de mais opulento a Idade Média central, a dos feudais, criou. Foiuma espiritualidade triunfalista, a idéia de cruzada na oração, onde a contemplação da glória e damajestade divinas eram mais destacadas que as noções de pecado e de resgate (VAUCHEZ, 1995: 40).Exprimindo o desejo espiritual de conquistar o mundo, de representar cada vez mais e melhor oesplendor celeste em sua igreja monumental mas sem abandonar a caridade beneditina e o auxílio aosdesamparados, os monges-cavaleiros cluniacenses criaram e materializaram a Jerusalém celeste emterras borgonhesas, seguindo à risca e no limite das possibilidades humanas o pedido sincero edespojado do duque Guilherme: a doçura da comunicação com o céu. Pecaram por serem humanos,talvez demasiadamente humanos.

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Bibliografia

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Palavras-chave: Bernardo de Claraval, Cluny, Monasticismo.