clinica atuacao com criancas e adolescentes
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLNICA
Renata Marmelsztejn
PSICOTERAPIA PARA CRIANAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS:
CONSTRUINDO UMA FORMA DE ATUAO
So Paulo
2006
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLNICA
Renata Marmelsztejn
PSICOTERAPIA PARA CRIANAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS:
CONSTRUINDO UMA FORMA DE ATUAO
So Paulo
2006
Dissertao apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,
como exigncia parcial para obteno do ttulo de
Mestre em Psicologia Clnica, sob orientao da
Prof. Dra. Rosane Mantilla de Souza.
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BANCA EXAMINADORA:
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Ao meu filho Ariel,
que me ensina,
sem saber que sabe,
a beleza da transformao humana...
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a Rosane Mantilla de Souza, pela orientao cuidadosa e
competente, respeitando sempre o meu momento, ritmo e estilo prprios.
A Isabel Kahn Marin e Elizabeth Becker, pelas contribuies valiosas
oferecidas no exame de qualificao.
s psicoterapeutas que participaram deste estudo, pelo carinho e
disponibilidade com que acolheram meu convite e compartilharam suas
experincias.
s crianas e aos adolescentes atendidos pelo Projeto Semear, pela coragem
de embarcar nessa jornada, confiando, mais uma vez, na possibilidade de
relaes mais saudveis.
Aos terapeutas e supervisores do Projeto Semear, por terem contribudo, cada
um com sua marca, para a construo desse caminho. A algumas pessoas em
especial, com quem compartilhei mais de perto os sabores e os dissabores de
todo o processo: Lola, Cac, Lurdinha, Marcia, Bel, Renate, Mnica.
Ao Instituto Fazendo Histria, pela pacincia e compreenso relativas a meu
afastamento temporrio.
Aos meus pais, pelo privilgio de t-los como minha base segura. Ontem, hoje,sempre...
Ao Ricardo, meu companheiro de vida, por testemunhar com amor meus
tropeos e conquistas. Sua pacincia e apoio foram fundamentais.
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SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................... 10
I. CUIDADOS COM A CRIANA E O ADOLESCENTE......................................
1.1 A construo dos vnculos afetivos na infncia..........................................
1.2 Desenvolvimento de uma personalidade segura........................................
1.3 Prticas educativas e estilos parentais......................................................
1.4 Psicoterapia e cuidados..............................................................................
II. CRIANAS E ADOLESCENTES EM SITUAES DE VIOLNCIA...............
2.1 Definio de maus-tratos........................................................................
2.2 Tipos de maus-tratos e sua ocorrncia no Brasil.......................................
2.3 Fatores de vulnerabilidade aos maus-tratos...............................................
2.4 Conseqncias dos maus-tratos para o desenvolvimento da criana e do
adolescente............................................................................................
III. CRIANAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS .............................................
3.1 O abrigo......................................................................................................
3.2 Mapeamento dos abrigos da cidade de So Paulo....................................
3.3 Perfil dos abrigados....................................................................................
3.4 Abrigo e separao: uma marca dolorosa..................................................
3.5 Crianas e adolescentes abrigados e o Projeto Semear............................
3.6 Psicoterapia com crianas e adolescentes abrigados................................
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IV. O PROBLEMA DE PESQUISA........................................................................
V. MTODO...........................................................................................................
5.1 Participantes...............................................................................................
5.2 Procedimento.............................................................................................
5.3 Anlise dos resultados...............................................................................
5.4 Cuidados ticos..........................................................................................
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VI. ANLISE DOS RESULTADOS........................................................................
6.1 Os clientes em seus contextos de desenvolvimento..................................
6.2 Desafios dos atendimentos psicoteraputicos com crianas e
adolescentes abrigados..............................................................................
6.3 Suporte terico-tcnico...............................................................................
6.4 Impacto dos atendimentos realizados........................................................
6.5 Diretrizes para a psicoterapia com crianas e adolescentes abrigados.....
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CONSIDERAES FINAIS...................................................................................
REFERNCIAS.....................................................................................................
ANEXO..................................................................................................................
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RESUMO
O objetivo desse estudo foi compreender os desafios enfrentados pelo
psicoterapeuta no atendimento psicolgico de crianas e adolescentes
institucionalizados.
Os participantes foram oito psicoterapeutas, que atenderam mais de um
cliente, durante o perodo mnimo de um ano. Tratou-se de um estudo
descritivo qualitativo, por meio de entrevistas individuais, no qual se pesquisou
a construo de significados pelos sujeitos.
Os resultados revelaram um terapeuta que acredita ter algo a contribuir,
implicado em projetos sociais e com interesse genuno pela populao
atendida. Como caractersticas pessoais destacaram-se: tolerncia,
persistncia, estabilidade, disponibilidade, flexibilidade e criatividade. Esses
profissionais viram-se inseridos numa rede, na qual o abrigo ocupa lugar
central. Evidenciou-se a importncia de ter conhecimentos sobre o contexto e a
vivncia de crianas abrigadas, abarcando temas como: violncia, abandono,
luto, funcionamento das instituies, legislao. O abrigo foi percebido como
tendo papel de suma importncia na vida desses jovens, podendo ser um
espao de acolhimento e pertinncia ou constituir-se em mais um perpetuador
da violncia e do abandono.
Os principais desafios enfrentados pelos terapeutas foram: identificar as
demandas dos clientes; construir vnculo com os jovens; integrar as diferentes
realidades do terapeuta e do cliente; lidar com os prprios sentimentos
despertados pelos atendimentos; construir uma relao de parceria com a
instituio; compreender o lugar do terapeuta e as funes da psicoterapia para
jovens abrigados.Conclui-se que a psicoterapia para crianas e adolescentes
institucionalizados uma interveno possvel de ser utilizada, como meio de
elaborao da vivncia de violncia e rompimento de vnculos afetivos
importantes. A partir dos desafios e das solues encontradas, apontaram-se
algumas diretrizes para seleo e treinamento de profissionais, a fim de
contribuir para a construo de atendimentos cada vez mais efetivos para
crianas e adolescentes abrigados.
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ABSTRACT
This study is about some challenges psychotherapists have to face when
attending institutionalized children and adolescents. It is a qualitative analysis of
interviews with eight psychotherapists that attended more then one client for a
period of at least one year.
The meanings brought by those subjects made possible to precise some
common characteristics: they were all strongly committed to social projects and
intended to make personal contributions and they also presented tolerance,persistence, stability, availability, flexibility and creativity.
One important challenge was how to deal with the sociometric network
surrounding those clients like the shelters conflicts and their dysfunctional family
of origin. Issues like violence, abandonment, lost of related ones, the complexity
of the legislation related to institutions were discussed. One paradox was that
the shelter could represent a safe-continent place, or again perpetrate violence
and abandonment.
The psychotherapist had to deal with a pool of different questions like: to
identify the demands of the clients, to construct bonds with the young, to
integrate the different realities of the client and the therapist, to deal with their
own feelings during the treatment, to construct a partnership relation with the
institution and finally to understand the function of psychotherapy with sheltered
clients.
The author concludes that psychotherapy in those conditions could be
actually a helpful way to elaborate the experience of violence and
abandonment. She also pointed out some important directions for the selection
and training of professionals in this area.
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INTRODUO
O interesse por essa pesquisa surgiu de meu trabalho, durante um
perodo de nove anos, como co-fundadora e coordenadora do Projeto Semear.
Abordar esse tema implica, portanto, refletir sobre a minha trajetria de vida
profissional e pessoal.
Era outubro de 1994. Estava formada h menos de um ano, havia
montado o primeiro consultrio e comeava a trilhar meu caminho profissional.
Caminhando entre paixes e incertezas de uma jovem psicloga clnica, fui
convidada a participar da montagem de um projeto de atendimento
psicoteraputico a crianas e adolescentes abrigados em instituies: o Projeto
Semear.
A proposta veio ao encontro de minhas buscas: pretendia seguir uma
carreira clnica e, ao mesmo tempo, tinha grande interesse em realizar algum
trabalho de cunho social. Entretanto, nunca havia sonhado com atuar em
abrigos. interessante rever hoje como fui lanada, meio por acaso, nessemundo, que me era completamente desconhecido.
Iniciamos o trabalho a partir da demanda de profissionais dessas
instituies que observaram a necessidade de atendimento clnico para muitos
dos adolescentes abrigados. No entanto, era muito grande a dificuldade de
encontrar um atendimento adequado gratuito e, ao mesmo tempo, contnuo e
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sem rupturas, j que falhas nessas dimenses eram a principal marca na vida
desses jovens.
Em um primeiro momento, dedicamo-nos definio da forma de
funcionamento do Projeto Semear e procura de converter em ao os
objetivos almejados. Em pouco tempo, essa estrutura estava traada: trabalhar
com terapeutas recm-formados, que receberiam superviso semanal de
profissionais experientes na rea clnica, selecionados pelo Projeto Semear.
Todos seriam voluntrios.
A partir do contato com os terapeutas e os clientes, fomos colhendo
informaes, trocando experincias, aprendendo sobre a especificidade da
tarefa a que nos propnhamos e construindo uma forma de trabalhar. Nessa
poca, tambm nos demos conta da carncia de projetos que oferecessem
psicoterapia a essa populao e da falta de bibliografia sobre o tema.
A experincia direta como psicoterapeuta desses jovens, despertou em
mim interesse na reflexo sobre as especificidades da clnica voltada a
crianas e adolescentes abrigados e no desenvolvimento de um conhecimento
sistemtico sobre esse assunto, tema desta dissertao.
Optamos por no nos restringir a uma abordagem terica nica que
norteasse os atendimentos oferecidos. Organizamos, isso sim, grupos de
superviso em diferentes linhas tericas: psicanlise, psicodrama, psicologia
analtica, psicologia existencial e sistmica. Entendemos que uma psicoterapia
eficiente para crianas e adolescentes abrigados no seria garantida pela
escolha da abordagem terica, mas por um conhecimento da populao
atendida e pela disponibilidade do acolhimento, com abstinncia dejulgamentos.
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A populao atendida era formada por crianas e adolescentes
abrigados em instituies, ou com histrico de abrigamento. Esse foi um
importante diferencial do Projeto Semear: embora sempre fizssemos um
contrato e um vnculo com o abrigo, nosso contrato primordial era com a
criana ou o adolescente, que poderia continuar a psicoterapia, ainda que
mudasse de abrigo, fugisse, fosse adotada ou retornasse famlia de origem.
Esses momentos so cruciais na vida de jovens marcados por intensas e
recorrentes rupturas, e fundamental que, nessa incerteza, possam contar
com o apoio da psicoterapia.
Iniciamos o trabalho com dois grupos de superviso, um com
abordagem psicodramtica (do qual eu fazia parte, como psicoterapeuta) e
outro com abordagem psicanaltica. Cada grupo era formado por quatro ou
cinco psicoterapeutas que recebiam, em mdia, dois clientes em seus
consultrios. Inicialmente oferecemos atendimento a dois abrigos, um decrianas e outro de adolescentes.
Fomos assim entrando em contato com as histrias dessas crianas e
adolescentes. Cada cliente encaminhado ao Projeto Semear me surpreendia:
de um lado eram jovens abandonados desde muito pequenos, provenientes de
famlias disfuncionais, com histrias de violncia de toda ordem. De outro,
carregavam uma imensa fora dentro de si e enfrentavam a vida com muita
coragem. Via neles um preparo difcil de definir e explicar. Aos poucos, fui me
apaixonando pelo trabalho com essas crianas e me dando conta da
dificuldade e da magnitude da tarefa, que s vezes chegou a me parecer
invivel.
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As supervises eram ricas, com grande troca de experincias. Mas,
como psicoterapeuta (e tambm como coordenadora), percebia uma grande
indefinio a respeito do nosso trabalho. Os terapeutas estavam disponveis,
as supervises eram feitas, mas, a despeito de a demanda por atendimentos
ser enorme nos abrigos, os clientes custavam a chegar. Logo comeamos a
receber telefonemas de terapeutas que esperavam, em vo, atender jovens,
todos encaminhados com urgncia: os clientes no compareciam ou vinham
em dias e horrios errados. Ou, ainda, muitos chegavam contrariados e no
voltavam. Acontecia tambm de clientes de um terapeuta serem levados, pelos
responsveis do abrigo, para o consultrio de outro terapeuta. Tentava-se
entrar em contato com os responsveis pelas crianas nas instituies, o que
se constitua numa tarefa quase impossvel: cada semana um educador
diferente trazia a criana ao consultrio, os tcnicos mudavam de casa a todo
instante, eram demitidos, rodiziados. As informaes se perdiam dentro dos
abrigos, e ns assistamos perplexos a esse movimento, sem saber o que
fazer.
Parecia-nos totalmente paradoxal! De um lado, uma lista de espera com
60 clientes e constantes telefonemas insistindo para que fossem atendidos com
urgncia. De outro, terapeutas disponveis, com supervises semanais, sem
clientes para atender.
Houve um momento em que me questionei se o trabalho que
propnhamos realizar realmente viria ao encontro de uma demanda e se seria
vivel. Mas alguns casos seguiram em frente, entre eles o de uma cliente
minha, que vinha toda semana e parecia muito se beneficiar da psicoterapia.
Esses acertos nos estimularam a continuar, a aprender com as dificuldades e a
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construir, pouco a pouco, uma forma efetiva de atendimento para essas
crianas.
Em termos da organizao do Projeto Semear, elaboramos fichas de
instituio, supervisor, psicoterapeuta, cliente. Construmos um banco de
dados, imprescindvel para reunir as informaes vindas de todos os lados.
Definimos alguns critrios objetivos para obter uma seleo mais apurada dos
profissionais que trabalhariam conosco, a fim de se constituir um grupo cada
vez mais harmnico e coeso.
Passamos a ter encontros semestrais com todo o grupo de
psicoterapeutas e supervisores, a proporcionar palestras sobre temas
pertinentes aos abrigos, a propor grupos de formao para os educadores das
instituies, em suma, a ampliar o objeto de trabalho para alm de um
atendimento clnico embora esse tenha sido sempre o foco principal.
Aprendemos a nos aproximar das instituies, aliando-nos a elas,
pensando junto, o que favoreceu um enriquecimento recproco, a partir de
experincias to diversas e to semelhantes! Compreendemos que a vida
desses jovens no abrigo instvel e que, portanto, era parte de nosso trabalho
conseguir conviver com a instabilidade e adaptar nossa proposta a essa
realidade. Colocando-nos a favor da mar, as ondas pareciam menos violentas
e ameaadoras.
O Projeto Semear funcionou nesses moldes at novembro de 2003,
quando me afastei da sua coordenao e do Projeto como um todo 1. Naquele
momento sua estrutura contava com 108 psicoterapeutas, 34 supervisores, 10
1 Em razo do meu afastamento, no tenho acesso estrutura de funcionamento atual doProjeto Semear.
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psicopedagogos, 2 psiquiatras e j havia atendido mais de 200 jovens
provenientes de 41 instituies.
Ao longo desses nove anos de intenso trabalho, as dificuldades
enfrentadas suscitaram questionamentos sobre a prtica de atendimento
psicoteraputico destinada a crianas e adolescentes institucionalizados,
centro de interesse dessa dissertao.
A colocao da criana ou do adolescente em abrigo uma medida de
proteo, disposta no artigo 98 do Estatuto da Criana e do Adolescente
(ECA), que deve ser aplicada quando os direitos estabelecidos pela lei forem
ameaados ou violados. O abrigo um servio que oferece acolhimento
provisrio, em moradia coletiva, a crianas e adolescentes que no podem
contar com familiares capazes de responsabilizar-se por elas.
A chegada dos jovens aos abrigos pode se dar de diferentes maneiras:
alguns so retirados das famlias de origem, a partir de denncias de maus-
tratos; outros so entregues pela prpria famlia, que alega no ter condies
de cuidar dos filhos. Aps o acolhimento, o abrigo torna-se responsvel pela
ateno psicossocial, educativa e jurdica da criana e de sua famlia.
importante ressaltar que o abrigamento estabelece uma situao na
qual a criana sai de um contexto de negligncia para entrar em outro que
tambm pode ser qualificado como fruto da negligncia, no caso, social. Esses
jovens e suas famlias, em geral, esto submetidos a condies de total misria
e excluso social. Segundo documento elaborado pela Secretaria Municipal da
Assistncia Social, em agosto de 2004, na cidade de So Paulo (SAS, 2004),
26% das crianas abrigadas tm as dificuldades econmicas dos seusfamiliares como o principal motivo para sua institucionalizao. Esses jovens
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abandonados so, muitas vezes, fruto de famlias abandonadas, que vem na
institucionalizao o nico recurso possvel para dar uma condio de
sobrevivncia aos filhos.
O mesmo documento (SAS, 2004) menciona que, na maioria dos casos
de famlias disfuncionais, construdas sobre padres de violncia, estamos
diante de pais que foram submetidos violncia na prpria infncia e que
tendem a repetir esse modelo de relacionamento com os filhos. So pais que
tambm no tiveram seus direitos atendidos e no conseguem encontrar um
lugar na sociedade.
O ECA (1990/2004) prev a necessidade dessas instituies de
acolhimento, mas estabelece o seu carter provisrio: o abrigamento deve se
dar at que a famlia tenha condies de reassumir seus filhos, no devendo
nunca ser utilizado como uma soluo definitiva para a problemtica em
questo. O carter de provisoriedade dos abrigos deve ser destacado, pois
pretende evitar que os mesmos sejam adotados como estratgia de excluso
desses jovens de sua realidade. Ao contrrio, o abrigo pretende ser um servio
de reintegrao da criana na famlia e na sociedade.
Existem vrias possibilidades de a criana ser desabrigada: o retorno
famlia de origem, a guarda (colocao em famlia substituta) ou a adoo (no
caso de crianas em abandono ou cujas famlias foram destitudas do ptrio
poder).
Embora o objetivo do abrigo seja, em ltima instncia, promover o
desabrigamento, a prtica nos mostra que, na maioria dos casos, existem
poucas alternativas viveis. Apenas 11% dos abrigados tm situao legal que
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permita sua adoo e, entre esses, 84% esto na faixa etria de 8 a 19 anos,
ou seja, tm poucas chances efetivas de ser adotados (SAS, 2004).
Busca-se, na maior parte dos casos, a reinsero na famlia de origem.
Entretanto essa soluo muitas vezes tambm no vivel, principalmente a
curto prazo, uma vez que os motivos que geraram o abrigamento so
geralmente de difcil resoluo. Poucas estratgias de reorganizao das
famlias so realizadas. Espera-se assim uma reintegrao quase que
mgica, como se os problemas existentes pudessem ser resolvidos apenas
pela ao do tempo.
Para que o abrigo mantenha seu carter de provisoriedade, o trabalho
com as crianas precisaria caminhar em paralelo com uma estrutura de
atendimento complexo (social, econmico e psicolgico) destinado s famlias.
S assim as crianas poderiam ser, de fato, reinseridas na prpria famlia, sem
se repetir o habitual ciclo de abrigamento-desabrigamento-abrigamento.
Em vista de todo esse contexto social, o abrigo torna-se muitas vezes o
local onde as crianas crescem e passam boa parte de suas vidas. Assim, o
princpio de provisoriedade da medida abrigo proposto pelo ECA, ainda
irrealizvel no quadro de pobreza e da insuficincia de programas sociais que
atendam as necessidades bsicas de famlias e crianas (SAS, 2004, p. 139).
Isso nos coloca diante de uma questo paradoxal, que est no cerne da
proposta de abrigamento: ele deve ser provisrio, mas, ao mesmo tempo, dar
conta de atender s necessidades da criana pelo perodo em que ela l se
encontrar. E dar conta dessas necessidades vai muito alm de cuidados
bsicos com alimentao, higiene, educao e sade. Essas crianas tm asmesmas necessidades que quaisquer outras crianas, provenientes dos mais
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variados meios socioculturais. Precisam se desenvolver como seres humanos,
seres de direito, com seus sonhos, sua individualidade, sua subjetividade,
necessitam ter vnculos afetivos importantes, poder contar com uma insero
social no futuro.
fato que a criana institucionalizada passou por vivncias de violncia
e/ou abandono antes de chegar ao abrigo. Some-se a isso o fato de, aps ser
acolhida, muitas vezes defrontar-se com o olhar institucional e social que a
qualifica por aquilo que ela no tem: uma criana semfamlia, semlar, sem
possibilidades, sem passado (uma vez que deve esquec-lo por ser
demasiadamente sofrido) e semfuturo.
E s vezes tambm at sem um presente, j que o abrigo em geral no
se v como uma boa alternativa para a criana crescer e se desenvolver. O
tratamento l dispensado costuma ser massificado, sem a possibilidade de
acolher o que h de mais singular e prprio da criana.
No abrigo das instituies, as crianas se tornaminstitucionalizadas. Isto quer dizer algo muito definido: l ascrianas so ditas sem famlia, rfs, ou abandonadas e esperada nica sorte grande: serem adotadas O que a consideradoimportante dizer de cada criana sempre o mesmo de todos. Ascrianas so cuidadas, em geral, do mesmo jeito. A histria decada uma aquela supostamente j conhecida: abandono. Osprocessos vividos j esto definidos: jurdicos. O nico futuro
constantemente aguardado, como j disse: adoo. O passado demarcado e institudo numa histria indesejvel, destituda defamlia. As experincias presentes so constantementedesconsideradas. (CYTRYNOWICZ, 2001, p.118)
O abrigo pode ser considerado, nessa perspectiva, um no-lugar, um
hiato entre uma histria preexistente, da qual no se quer lembrar, e um futuro
incerto, marcado pela desesperana relativa a no se poder ter um lugar no
mundo.
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VICENTE (1999) ressalta que condies de vida adversas podem levar
as pessoas a uma atitude existencial provisria, a um modo de ocupar-se
apenas com o presente, adotando uma atitude fatalista de que no tem jeito.
importante construir um sentido para o vivido, pois s assim possvel
acreditar na construo de um futuro. Elaborar o passado uma das maneiras
de livrar-se da mera repetio (VICENTE, 1994, p.73).
Foi a partir dessa perspectiva que se inseriu, no Projeto Semear, a
proposta de psicoterapia para crianas e adolescentes abrigados. Entendamos
ser fundamental que um outro olhar fosse dirigido a essas crianas: elas
precisam ter garantido o direito de ser algum, de ter um passado, uma
histria, para, a partir dela, poderem construir um projeto de vida e um futuro.
Precisam sair desse no-lugar e habitar suas prprias vidas, acolhendo as
dores vividas e recuperando a perspectiva de serem autoras de sua prpria
histria e no marionetes de um sistema em tantos ngulos perverso.
Vrias so as possveis definies de psicoterapia, quase todas
marcadas pelas particularidades de uma teoria de personalidade que as
sustenta. Adotando uma definio ampla, podemos conceitu-la como um
processo de comunicao entre um psicoterapeuta e um cliente, realizado por
meio de um conjunto de tcnicas, destinadas a melhorar a qualidade de vida do
cliente, a partir de mudanas de conduta, atitudes, pensamentos e afetos
(WIKIPEDIA, 2005).
Dentro da grande diversidade de correntes e enfoques aplicados no
campo psicoteraputico, algumas caractersticas esto presentes em todas as
formas de psicoterapia:
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- o contato direto e pessoal entre o psicoterapeuta e o cliente,
principalmente pelo dilogo, que visa a discutir os problemas
apresentados, num esforo de compreend-los e buscar uma forma de
solucion-los;
- a qualidade da relao teraputica estabelecida no contexto
psicoteraputico, isto , uma relao que visa a contribuir para a
gerao de transformaes no cliente.
Em razo de a psicoterapia abordar tpicos delicados, exige-se dos
psicoterapeutas uma postura tica, de respeito privacidade do cliente e
resguardo da confidencialidade das informaes fornecidas. Alm disso, a
habilitao de quem pode exercer a psicoterapia requer um processo de
treinamento, dirigido por terapeutas que contam com maior tempo de
experincia, e/ou estudos dentro do respectivo assunto (WIKIPEDIA, 2005).
Neste trabalho adotamos essa definio de psicoterapia, por apresentar
o que h de comum entre as vrias abordagens tericas utilizadas nos
atendimentos realizados pelo Projeto Semear.
At o presente momento, falamos sobre a importncia de realizar um
trabalho psicoteraputico com crianas e adolescentes institucionalizados. A
questo que se coloca, a partir da, sobre como faz-lo.
A partir dessa questo, duas vertentes de pesquisa poderiam se abrir. A
primeira delas seria colocar o foco nas crianas e nos adolescentes atendidos,
investigando a efetividade da psicoterapia para eles. A segunda vertente seria
focar os psicoterapeutas, pesquisando os desafios enfrentados por eles ao
longo dos atendimentos dessa populao especfica.
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Escolhi a segunda alternativa por consider-la mais enriquecedora, no
sentido de poder reverter-se em aes prticas, comprometidas com a
realidade de crianas e adolescentes abrigados. Entendo que, caso possamos
compreender as dificuldades vividas e as solues encontradas pela
perspectiva dos terapeutas, teremos condies de, no futuro, contribuir para a
construo e o treinamento de um psicoterapeuta mais eficiente no
atendimento de crianas e adolescentes abrigados.
Um ponto que sempre nos chamou a ateno no Projeto Semear foi a
enorme lista de desistncias de clientes, em todas as faixas etrias. Esses
clientes comeavam a ser atendidos e interrompiam o tratamento pelas mais
variadas questes, entre as quais destacam-se a falta de vontade de fazer
psicoterapia e as dificuldades da instituio em manter o atendimento, em
razo de desorganizao, falta de transporte, iseno de comprometimento.
Observamos, por outro lado, a dificuldade de muitos terapeutas, de
todas as abordagens tericas, de suportar o trabalho com essa populao:
muitos no conseguiam realizar um processo contnuo, com comeo, meio e
fim. Atendimentos de curta durao (de apenas uma sesso a trs ou quatro
meses) eram constantes e recorrentes, culminando em interrupes abruptas,
sem um encerramento, o que criava, portanto, mais uma ruptura na vida
desses jovens. Observamos, alm disso, que muitos psicoterapeutas se
desligavam constantemente do Projeto Semear, o que nos levou a pensar se o
tipo de suporte dado a eles era adequado e se o conhecimento prvio que
tinham dessa populao era suficiente para justificar sua insero neste
projeto.
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Por outro lado, muitos atendimentos caminharam bem, sendo notveis
as mudanas percebidas nos jovens atendidos, que pareciam ter se
beneficiado da psicoterapia, tornando-se mais fortes e capazes de lidar com a
prpria vida.
Entendemos ser fundamental compreender, a partir da prtica realizada
por alguns poucos profissionais do Projeto Semear, quais so as
particularidades de atendimento dessa populao especfica.
Consideramos esse trabalho relevante por ser muito grande o
contingente de crianas e adolescentes abrigados em instituies e pela
existncia de vrios projetos destinados a eles. fundamental que se
compreendam os acertos e erros dos trabalhos oferecidos, para que,
aprimorados, tornem-se cada vez mais efetivos os objetivos a eles propostos.
Optou-se por uma pesquisa focada nos psiclogos tambm por serem o
elo entre criana, abrigo e famlia. Entendemos que o psiclogo pode ser um
importante agente de mudana, tanto na vida da criana, quanto no olhar
institucional dirigido a ela.
Em vista desse complexo de questionamentos, o objetivo do presente
trabalho definiu-se por compreender os desafios enfrentados pelo
psicoterapeuta no atendimento psicolgico de crianas e adolescentes
institucionalizados.
A dissertao divide-se em sete captulos:
No captulo I discute-se a questo dos cuidados, com enfoque nas
necessidades de uma criana para crescer e se desenvolver de forma
saudvel. Primeiramente, abordada a construo dos vnculos afetivos na
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infncia, a partir da teoria do apego, formulada por Bowlby. Num segundo
momento, discutem-se as condies para o desenvolvimento de uma
personalidade segura, a partir do mesmo autor. Num terceiro momento, so
discutidos os estilos parentais e as prticas educativas como facilitadores ou
inibidores para o desenvolvimento emocional da criana. Por fim, discute-se a
psicoterapia como uma forma de cuidado a ser utilizada quando as condies
necessrias para a criana se desenvolver de forma saudvel no esto
garantidas.
O captulo II versa sobre a condio das crianas e dos adolescentes em
situaes de violncia. Relata a definio de maus-tratos de menores,
apresentada pela Organizao Mundial de Sade e adotada nessa pesquisa,
citando os tipos de maus-tratos existentes e sua ocorrncia no Brasil. Em
seguida, apresenta alguns fatores de vulnerabilidade aos maus-tratos infantis
e, por fim, discute as conseqncias da violncia para o desenvolvimento dacriana.
O captulo III trata de crianas e adolescentes abrigados, e descreve o
objetivo, as caractersticas e o funcionamento dos abrigos. Apresenta tambm
uma descrio dos abrigos existentes na cidade de So Paulo, ressaltando as
vrias modalidades de instituies possveis e o perfil das crianas e
adolescentes abrigados. Traz tambm algumas consideraes sobre a vivncia
da separao e do abrigamento, e reflete sobre a possibilidade de o abrigo ser
um local de cuidado para crianas e adolescentes. Por fim, aborda alguns
aspectos da psicoterapia com crianas e adolescentes abrigados.
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O captulo IV fundamenta e define o problema de pesquisa, aborda os
critrios de escolha dos participantes e apresenta a justificativa para a
realizao desse estudo.
O captulo V apresenta o mtodo utilizado, com a descrio dos
participantes, dos procedimentos e da forma como foi feita a anlise dos
resultados.
No captulo VI so discutidos os resultados obtidos por esse estudo.
As consideraes finais trazem algumas concluses, reflexes e
implicaes deste estudo no atendimento de crianas e adolescentes
abrigados.
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CAPTULO I
CUIDADOS COM A CRIANA E O ADOLESCENTE
Cuidado. S.m. 1. Ateno. 2. Precauo, cautela. 3.
Diligncia, desvelo, zelo. 4. Encargo, responsabilidade, conta. 5.
Inquietao de esprito. 6. Pessoa ou coisa que objeto de
desvelos (Ferreira, A. B. de H. Novo Dicionrio da Lngua
Portuguesa, 1986, p. 507).
Para que uma criana possa crescer e se desenvolver integralmente nos
aspectos fsico, emocional, cognitivo e social, precisa receber cuidados que
garantam o atendimento de suas necessidades. Pela definio do dicionrio,
cuidar implica estar atento, ter cautela, zelo, ser responsvel.
importante ressaltar que aquilo que se entende por cuidados reflete
sempre uma escolha ideolgica, isto , prioriza certos valores em detrimento de
outros. O cuidado dispensado a uma criana uma prtica cultural, temporal e
contextualizada dentro de uma perspectiva socioeconmica.
O que se considera fundamental para transformar um recm-nascido
num ser humano pleno, capaz de desenvolver suas potencialidades e construir
um caminho pessoal dotado de sentido, resulta de uma leitura relacional. Essa
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leitura leva em conta: como se constri o sujeito e que tipo de organizao
ambiental necessria para que isso ocorra.
Este captulo vai se estruturar de forma terica, e sero discutidas as
condies mnimas para que uma criana possa crescer e se desenvolver
plenamente, com confiana e progressiva autonomia.
Segundo BOWLBY (1979/1997), a funo do cuidador consiste em,
primeiro, estar disponvel e pronto a atender quando solicitado e, segundo,
intervir insidiosamente quando aquele de quem se cuida parece estar prestes a
se meter em apuros (p.175). Ou seja, cuidar significa responder a
necessidades humanas bsicas, que vo muito alm de questes materiais.
SOUZA (1994) realizou uma pesquisa com homens que
desempenhavam o papel de provedores e, aps o divrcio, passaram a deter a
guarda dos filhos, tornando-se os cuidadores primrios de crianas e
adolescentes. A partir dessa experincia, salientam que cuidar de uma criana
preocupar-se com seu presente e seu futuro, buscando proporcionar-lhe
condies para que enfrente a vida com autonomia e respeito aos outros. Na
prtica, esse cuidado com os filhos engloba vrios tipos de aes:
instrumentais: trocar; alimentar; fazer a higiene; lev-los a atividades;
ensin-los a sair sozinhos e terem cuidado;
sade-educao: levar a pediatra, dentista, psiclogo, etc.; escolher a
escola; incentivar o autocuidado e a responsabilidade;
orientao: supervisionar tarefas escolares; conversar, aconselhar;
estimular o convvio com os outros;
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lazer: brincar; levar a festas; trazer amigos para casa; proporcionar
atividades culturais, frias; estimular diversidade e ao conhecimento do
mundo;
morais: estimular a percepo das conseqncias dos prprios atos;
ensinar a reconhecer os sentimentos dos outros; ensinar a assumir quando
erram e a pedir desculpas; ensin-los a compreender e respeitar as
diferenas; ajud-los a aprender a arcar com as conseqncias das suas
escolhas; estimular busca pela prpria felicidade; ensin-los a buscar o
bem comum;
afetivos: proteger, acolher; estimular a autonomia; ajudar a que no tenham
medo de si, dos outros, da vida; estimular o autoconhecimento; incentiv-los
a tentar fazer as coisas e a aprender a errar, a corrigir... e tentar
novamente; estimular a realizao pessoal; aprender que no se pode
evitar eternamente o sofrimento.
O que se pode depreender que cuidar uma situao complexa,
evolutiva e com implicaes culturais; alm disso, esses cuidados devem visar,
inicialmente, s condies mnimas para a preservao da vida e,
posteriormente, s circunstncias que possibilitem o indivduo de se tornar um
membro pleno de seu grupo social. Nesse sentido, podemos considerar que o
estabelecimento de uma relao estvel entre o cuidador e aquele que
cuidado no apenas a base do desenvolvimento pessoal, mas, tambm, o
alicerce do desenvolvimento da sociedade.
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1.1 A construo dos vnculos afetivos na Infncia
de grande interesse para o presente trabalho o que se entende por
cuidados afetivos e emocionais, e a influncia que tm na formao de uma
personalidade saudvel.
Falar sobre cuidados emocionais percorrer o mundo dos
relacionamentos ntimos que se iniciam, na maior parte das vezes, na relao
entre os pais (num primeiro momento a me) e o beb.
Segundo BRONFENBRENNER (1996), a famlia considerada o
primeiro ambiente do qual a criana participa ativamente. Num primeiro
momento, as interaes so realizadas de forma didica (relao me-beb).
Aos poucos, as relaes se expandem dentro do grupo familiar mais amplo,
formando vrios subsistemas (relaes com o pai, os irmos, os tios, etc.).
Idealmente, o microssistema familiar a maior fonte de proteo, afeto e
apoio para a criana. dentro da famlia que se desenvolvem os sensos de
permanncia (percepo de que os elementos centrais da vida so estveis e
organizados) e de estabilidade (sentimento de segurana de que no haver
rupturas desses relacionamentos) (CECCONELLO, ANTONI e KOLLER, 2003).
A garantia de permanncia e estabilidade faz a famliafuncionar como um sistema integrado, cujo objetivo principal ode promover o bem-estar de seus membros. (CECCONELLO,ANTONI E KOLLER, 2003, p. 46)
Entretanto, devemos ressaltar que a famlia no a nica referncia
estruturante para uma criana. O modelo familiar um dos muitos sistemas de
cuidado possveis, no garantindo per seque a criana se beneficiar desse
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cuidado e se transformar num indivduo seguro e autnomo. Por outro lado, o
fato de a criana ser criada longe de sua famlia de origem, tambm no
significa, por si s, que haver prejuzos em seu desenvolvimento. Muito mais
importante que qual o sistema de cuidados aplicado a essa criana (famlia
biolgica, famlia substituta, instituio, etc.) comoesse sistema opera para
dar conta dos cuidados necessrios e o quanto ele se mantm estvel ao longo
do tempo.
A permanncia e a estabilidade, pontos destacados na teoria dos
sistemas ecolgicos para o desenvolvimento da personalidade
(BRONFENBRENNER, 1996), vo na mesma direo do conceito de base
segura defendido pelo psiquiatra ingls JOHN BOWLBY.
A partir de diversos estudos que realizou sobre os efeitos da ausncia
materna para crianas, BOWLBY apresenta a teoria do apego, fornecendo uma
compreenso natureza e origem dos vnculos afetivos, aos processos de
construo e rompimento dos mesmos, ressaltando sua importncia para os
seres humanos.
Nesta pesquisa adotaremos os conceitos da teoria do apego, que
valorizam a construo dos vnculos afetivos na infncia e elegem como
fundamentos de uma personalidade saudvel a confiana e a autonomia.
BOWLBY (1979/1997) define teoria do apego como:
... um modo de conceituar a propenso dos sereshumanos a estabelecerem fortes vnculos afetivos com algunsoutros, e de explicar as mltiplas formas de consternaoemocional e perturbao da personalidade, incluindo ansiedade,raiva, depresso e desligamento emocional a que a separao eperda involuntrias do origem(p. 168).
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Vnculo afetivo pode ser entendido como a atrao que um indivduo
sente por outro indivduo (BOWLBY, 1979/1997, p. 96). Quando duas pessoas
esto vinculadas, existe a tendncia de se manterem prximas e se, por
alguma razo, ocorre uma separao, cada uma procurar a outra com o
objetivo de reatar a proximidade.
Essa conduta que visa a diminuir a distncia entre as pessoas
denominada comportamento de apego. Ele dirigido a um indivduo
diferenciado, que objeto de preferncia por ser considerado mais forte ou
mais sbio, j que a funo principal do comportamento de apego fornecer
proteo. Desenvolve-se a partir do nascimento do beb, atinge seu mximo
vigor durante o segundo e o terceiro ano e persiste com menos intensidade ao
longo da vida, sendo parte integrante do equipamento comportamental humano
(BOWLBY, 1973/2004; BOWLBY, 1979/1997).
Geralmente a principal figura de apego de um beb a me ou a
pessoa que exerce a funo de cuidadora. Para que o beb se desenvolva de
forma saudvel, de grande importncia a forma como a me (ou figura
substituta) desempenha seus cuidados, para complementar o comportamento
de apego. A funo daquele que desempenha esses cuidados consiste em,
primeiramente, estar acessvel criana quando por ela solicitado e, ao
mesmo tempo, responder solicitao de forma adequada. Ou seja: a criana
precisa ter garantia de uma base segura, a partir da qual se lance
explorao, sabendo que poder encontrar conforto e proteo nas situaes
em que se sinta ameaada.
O sistema de apego ativado por condies tanto internas quanto
externas. Por exemplo, uma criana, quando sente fome, frio, dor (condies
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internas), ou quando est diante de algum evento assustador, ou percebe-se
longe da figura de apego (condies ambientais), aciona seu comportamento
de apego e passa a procurar pela figura a ele relacionada.
Se, na grande maioria das vezes em que isso ocorrer, a figura de apego
se mostrar acessvel e disponvel, a criana provavelmente construir, com ela,
uma relao de confiana, que estimular seu crescimento e progressiva
autonomia. Mas se, ao contrrio, a criana vir-se continuamente desamparada
por essa figura, pela ausncia fsica ou pela falta de cuidados adequados,
passar a ter sua confiana no mundo e em si prpria abalada.
Isso ocorre porque, a partir das experincias vividas, cada pessoa
constri modelos funcionais do mundo e de si. Um fator central na construo
desses modelos a idia de cada indivduo sobre quem ou quem so suas
figuras de apego, onde podem ser encontradas e como respondem s
solicitaes. O sentimento de confiana de que a(s) figura(s) de apego estaro
disponveis depende da estrutura desses modelos funcionais (BOWLBY,
1973/2004).
Assim, o indivduo vai construindo um modelo de mundo, com figuras de
apego que se mostram acessveis, confiveis, estveis, amveis; ou, ao
contrrio, inacessveis, no confiveis, inconstantes, hostis. Ao mesmo tempo,
vai adquirindo a noo do quanto ele prprio aceitvel (ou no) aos olhos de
sua(s) figura(s) de apego. O modelo operacional do eu envolve conceitos
normalmente conhecidos como a auto-estima e a auto-imagem.
Esses modelos funcionais (da figura de apego e do eu) tendem a
desenvolver-se de forma complementar. Ou seja: uma criana desprezada temtendncia no apenas de se sentir pouco querida pelos pais, como tambm de
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acreditar que essencialmente indigna do amor de todos. Ao contrrio, uma
criana muito amada tende a crescer acreditando que todos a consideraro
digna de afeto. E a partir desses modelos complementares do mundo e de si
prprio que cada um elabora prognsticos para o futuro.
BOWLBY chama a ateno para o papel da experincia real nas
expectativas que cada ser humano constri para si, expectativas essas que
sero parte integrante da personalidade futura:
As variadas expectativas de acessibilidade e receptividade
de figuras de apego que as pessoas desenvolvem nos anos deimaturidade so reflexos toleravelmente precisos dasexperincias que essa pessoa tenha realmente tido. (BOWLBY,1973/2004, p.252)
Os comportamentos de apego evoluem ao longo do ciclo vital. Durante a
infncia, manifestam-se pelo choro, chamamento, tentativas de aproximao e
protestos vigorosos, quando a criana est sozinha ou em companhia de
estranhos. Nos primeiros quatro meses de vida, as respostas diferencialmente
dirigidas so raras e podem ser percebidas apenas atravs de processos de
observao muito sensveis. Entre quatro e seis meses de vida, essas
respostas claramente dirigidas a algum se tornam mais evidentes e
numerosas. Os comportamentos apresentados nesse incio de vida vo se
tornando cada vez mais complexos, e encontram uma condio mais estvel
entre nove e dezoito meses de idade. Nessa fase, o comportamento de apego
j se manifesta, de forma freqente e intensa, em direo figura selecionada.
Ao longo da vida, esse comportamento diminui em freqncia e intensidade,
embora se mantenha tambm na vida adulta e costume ser acionado em
situaes de crise, como em doenas, perdas, situaes eliciadoras de medos(BOWLBY, 1969/2002).
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BOWLBY (1979/1997) faz uma diferenciao entre comportamento de
apego e dependncia, ressaltando algumas caractersticas importantes do
comportamento de apego:
a) especificidade: os comportamentos de apego so dirigidos para uma
ou algumas pessoas especficas, numa posio clara de preferncia;
b) durao: uma ligao persiste por grande parte do ciclo vital,
dificilmente sendo abandonada, embora possa ser atenuada,
modificada, ou suplementada por novas relaes na adolescncia;
c) envolvimento emocional: as emoes mais intensas surgem durante
a formao, a manuteno, o rompimento e a renovao de relaes
de apego;
d) ontogenia: o comportamento de apego em direo a uma figura eleita
desenvolve-se nos primeiros nove meses de vida, geralmente
voltado pessoa que lhe dispensar a maior parte dos cuidados, e
mantm-se ativado at o terceiro ano de vida;
e) aprendizagem: a partir de experincias repetidas com uma pessoa,
ocorre uma discriminao entre o familiar e o estranho,
independentemente das recompensas ou punies experimentadas.
Assim, uma ligao pode desenvolver-se mesmo que ocorram
repetidas punies por parte da figura de apego;
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f) organizao: o comportamento de apego, inicialmente mediado por
respostas bastante simples, vai se tornando complexo, implicando a
mediao por sistemas comportamentais cada vez mais refinados,
que incorporam modelos representacionais do meio ambiente e do
eu;
g) funo biolgica: os comportamentos de apego ocorrem em todo o
ciclo vital exercendo uma funo de sobrevivncia.
A formao dos vnculos afetivos na infncia tem importncia central
para o desenvolvimento da personalidade, constituindo-se nos alicerces dos
pensamentos, das emoes, dos comportamentos e dos valores construdos a
partir das experincias vividas.
Os vnculos afetivos e os estados subjetivos de forteemoo tendem a ocorrer juntos. Assim, muitas das maisintensas emoes humanas surgem durante a formao,manuteno, rompimento e renovao de vnculos emocionais.Em termos de experincia subjetiva, a formao de um vnculo descrita como apaixonar-se, a manuteno de um vnculo comoamar algum, e a perda de um parceiro como sofrer poralgum. Analogamente, a ameaa de perda gera ansiedade e aperda real causa tristeza; ao passo que ambas as situaespodem despertar raiva. Finalmente a manuteno incontestadade um vnculo experimentada como uma fonte de segurana, e
a renovao de um vnculo como uma fonte de jbilo. (BOWLBY,1979/1997, p. 98)
importante ressaltar que no existe um sistema de cuidados que seja
bom ou mau em si. Lembrando a definio existente no dicionrio (FERREIRA,
1986), cuidar ter ateno, cautela, zelo. encarregar-se, responsabilizar-se.
Seria leviano pensar que h apenas uma forma de responsabilizar-se por algo
ou por algum. So muitas as formas possveis de cuidar de uma criana, e a
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crena de serem boas ou ms para o desenvolvimento da mesma est
fortemente ligada concepo ideolgica que sustenta essas prticas.
Se quisermos formar seres humanos simplesmente adaptados ao
sistema, adotaremos uma forma de educao. Se valorizarmos indivduos
seguros e autnomos, utilizaremos outras prticas educativas.
A teoria do apego por ns adotada prioriza a formao de indivduos
capazes de fazer suas prprias escolhas e de construir sua vida com confiana
e autonomia.
1.2 Desenvolvimento de uma personalidade segura
BOWLBY (1973/2004) faz uma extensa reviso de estudos realizados
por diferentes pesquisadores, com crianas, adolescentes e adultos jovens, no
intuito de verificar quais seriam os alicerces de uma personalidade considerada
saudvel. Destaca, como critrio comum de uma personalidade saudvel, nas
mais variadas pesquisas, uma medida de adaptabilidade, definida como:
capacidade de se adaptar com sucesso e, portanto, sobreviver longamente em todo um amplo espectro de ambientes fsicos e sociais, especialmente
quando a sobrevivncia se transforma em cooperao com os outros (p. 395).
Nesse sentido, adaptabilidade completamente diferente de ajustamento ao
status quo.
Com base nesses estudos, verificou que existem fortes razes para
acreditarmos que a base sobre a qual se constri uma personalidade estvel e
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autoconfiante a certeza de poder contar com a presena e o apoio de figuras
de apego. Considera a necessidade de uma base pessoal segura como uma
caracterstica humana presente em todos os momentos do ciclo de vida,
embora sua necessidade seja mais urgente no perodo da infncia.
tambm e no por acaso durante essa fase que o ser humano vive
o perodo mais suscetvel, no que se refere ao desenvolvimento da confiana
(ou desconfiana).
A confiana na disponibilidade de figuras de apego (ou a
falta de confiana) erige-se lentamente nos anos de imaturidade -lactncia, infncia, adolescncia -, e as expectativasdesenvolvidas nesses anos tendem a permanecer relativamenteinalteradas durante o resto da vida. (BOWLBY, 1973/2004,p.252)
Os primeiros anos de vida de um beb constituem, ainda que disso ele
no tenha conhecimento, um perodo crtico de seu desenvolvimento, no qual
os alicerces de sua personalidade esto sendo assentados.
A principal varivel para o desenvolvimento de uma personalidade
segura relaciona-se ao grau em que os pais da criana lhe fornecem uma base
segura e a estimulam a explorar a partir dessa base. fundamental para a
criana poder contar com figuras de apoio acessveis e disponveis, com
sensibilidade para detectar as suas necessidades e se adaptar intuitivamente aelas (BOWLBY, 1973/2004).
Ressaltamos aqui que, no nosso entendimento, um bom cuidador no
precisa necessariamente ser a me ou o pai da criana. Para crescer e se
desenvolver plenamente, transformando-se num membro da sociedade, a
criana precisa contar com um sistema de cuidados estvel e seguro, capaz de
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suprir suas necessidades, sendo sensvel inclusive ao fato de que ela cresce e,
com isso, suas necessidades se alteram.
BOWLBY (1979/1997) destaca que os seres humanos, principalmente
as crianas, so mais sensveis s atitudes emocionais daqueles que os
cercam do que a qualquer outra coisa. Nesse sentido, so de igual importncia
o que feito e o comoisso feito.
No papel de cuidadores, fundamental que os pais reconheam e
respeitem o desejo e a necessidade que a criana tem de uma base segura e
ajustem seu comportamento a essa necessidade. Isso implica compreender
intuitivamente o comportamento de apego da criana e, ao mesmo tempo,
estar disposto a atend-lo, quando for necessrio. Nesse processo
importante o reconhecimento de que uma das fontes mais comuns de raiva na
criana a frustrao do seu desejo de ser amada e cuidada, o que provocar
manifestaes de ansiedade e medo.
Da mesma forma que os pais (ou cuidadores) precisam respeitar os
desejos de ligao da criana, fundamental que respeitem e estimulem seu
desejo de explorar e ampliar suas relaes com outras crianas e adultos, o
que contribuir para o desenvolvimento de sua autonomia e autoconfiana.
Uma autoconfiana bem alicerada desenvolve-se em paralelo confiana nos
pais, que lhe proporcionam uma base segura a partir da qual poder realizar
suas exploraes (BOWLBY, 1979/1997).
Uma autoconfiana bem fundamentada, podemosconcluir, , geralmente, o produto de um crescimento lento e noreprimido, da infncia at a maturidade, durante o qual, atravsda interao com os outros, incentivadores e confiveis, a pessoa
aprende a combinar a confiana nos outros com a confiana emsi mesma(BOWLBY, 1979/1997, p. 165).
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A essncia de uma base segura a continuidade do apoio oferecido, o
que implica que as relaes entre os indivduos envolvidos persistam, de modo
estvel, durante um longo perodo de tempo. Se a manuteno inalterada
dessas relaes experimentada pela criana como uma fonte de segurana,
a ameaa de sua perda provoca ansiedade e raiva, e a perda real provoca um
turbilho de sentimentos, que se manifestam como um processo de luto. Sobre
esse assunto, falaremos mais detalhadamente no captulo III.
BOWLBY (1979/1997) descreve dois principais conjuntos de influncias
para o bom funcionamento da personalidade. O primeiro refere-se presena
ou ausncia, parcial ou total, de uma figura de apego disponvel como base
segura necessria a cada fase do ciclo vital. A presena entendida aqui como
rpida acessibilidade e disponibilidade, e no, necessariamente, a presena
real e direta. Essas constituem as influncias externas ou ambientais. O
segundo diz respeito capacidade ou incapacidade de o indivduo reconhecerquando algum merece confiana e se mostra disposto a fornecer uma base
segura. E, caso haja esse reconhecimento, qual a possibilidade de colaborar
com essa pessoa, para que se inicie e se mantenha uma relao gratificante
para ambos.Essas so as influncias internas ou organsmicas.
Ao longo da vida, esses dois tipos de influncias coexistem e atuam de
maneira complexa e circular, havendo uma complementao mtua. De um
lado, o tipo de experincia que uma pessoa tem, especialmente nos anos da
infncia, influencia fortemente tanto suas expectativas de, no futuro, encontrar
ou no uma base pessoal segura, quanto sua competncia para iniciar e
manter relaes mutuamente gratificantes. Do outro lado, as prprias
expectativas e o grau de competncia do indivduo influem na determinao
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dos tipos de pessoas com quem se associar e no modo como por elas ser
tratado. Em razo dessas contnuas interaes, o primeiro padro que se
estabelece tende a favorecer a seleo de situaes que o levem a persistir.
por essa razo que o padro das relaes familiares, vivido durante a infncia,
reveste-se de uma importncia to decisiva para o desenvolvimento da
personalidade (BOWLBY, 1979/1997).
BOWLBY (1979/1997) defende que existe uma forte relao causal
entre as experincias de um indivduo com seus pais e sua capacidade para
estabelecer vnculos afetivos na vida adulta. Isso ocorre porque os modelos
representacionais de figuras de apego e do eu, que uma pessoa constri na
infncia e na adolescncia, tendem a se manter de certa forma inalterados
durante toda a vida adulta.
Uma pessoa que nasce e cresce em um lar estvel e afetivo, dentro de
um sistema de cuidados que supre as suas necessidades, aprender que o
mundo dotado de pessoas de quem pode esperar apoio, conforto e proteo
e, mais ainda, saber onde encontr-las. Essa vivncia cria expectativas em
relao ao futuro de que, ao enfrentar dificuldades, existiro sempre pessoas
confiveis e dispostas a ajud-la, j que se v, tambm, como algum
merecedor de carinho e apoio. Essa pessoa olhar para o mundo de forma
confiante, dispondo-se a enfrentar situaes potencialmente alarmantes de
forma efetiva, ou, caso julgue necessrio, saber procurar ajuda.
Paradoxalmente, uma pessoa realmente autoconfiante mostra que no
, de forma alguma, to independente quanto os esteretipos culturais a
descrevem. O que define uma pessoa autoconfiante justamente a
capacidade de mudar de papel quando a situao assim o exige. Ou seja, em
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alguns momentos ser a base segura a partir da qual uma outra pessoa poder
agir e, em outros momentos, no hesitar em recorrer a algum que lhe
proporcione essa base, podendo apoiar-se confiantemente nessa pessoa
(BOWLBY, 1973/2004).
Uma pessoa costuma assimilar qualquer novo vnculo afetivo (com
marido, esposa, patro, terapeuta, filhos) a um modelo preexistente, mesmo
que esse modelo se mostre inadequado. E espera ser tratado por essas
pessoas de forma complementar ao seu modelo de eu, independentemente de
provas em contrrio (BOWLBY, 1979/1997).
por esse motivo que o comportamento de uma pessoa, visto num
determinado momento, pode parecer obscuro no apenas para os outros, mas
para ela prpria: a explicao pode ser encontrada no no contexto da situao
atual, mas em experincias vividas em outras fases da vida.
1.3 Prticas educativas e estilos parentais
Considerando que, como j foi dito, a personalidade adulta , em grande
parte, o produto das interaes vividas com certas figuras-chave nos anos da
infncia e da adolescncia, merecem nossa ateno tanto a dinmica dessas
interaes como seus reflexos no desenvolvimento da personalidade.
importante lembrar que diferentes culturas priorizam valores diversos.
Se observarmos a forma como a educao foi sendo pensada e executada ao
longo da histria, perceberemos que as prticas educativas so coerentes
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quilo que se entende por criana, por desenvolvimento, e aos objetivos a que
se quer chegar em cada cultura e em cada perodo histrico.
Esta pesquisa adota claramente uma concepo ideolgica que
pressupe e valoriza um sujeito autnomo, responsvel pela prpria vida.
As autoras CECCONELLO, ANTONI e KOLLER (2003) dedicam-se ao
estudo da interao pais e filhos. Fazem ampla reviso da literatura sobre
estilos parentais presentes no contexto familiar e suas prticas educativas,
como fatores potenciais de proteo ou de risco para o abuso fsico. Utilizam-
se, para tal, da teoria dos sistemas ecolgicos, desenvolvida por
BRONFENBRENNER.
CECCONELLO, ANTONI e KOLLER (2003), citando o autor
BRONFENBRENNER, destacam trs caractersticas fundamentais nas
relaes que se estabelecem dentro da famlia: a reciprocidade, o equilbrio de
poder e o afeto.
A reciprocidade manifesta-se em qualquer relao didica,
especialmente no curso de uma atividade conjunta: o que uma pessoa faz
influencia a outra e vice-versa (BRONFENBRENNER, 1996).
O equilbrio de poder est presente mesmo em processos didicos
recprocos, ou seja, numa relao, um dos participantes pode ser mais influente
do que outro. No caso de uma criana pequena, a participao numa interao
didica oferece a oportunidade de aprender a lidar com relaes de poder. Ao
mesmo tempo, essa aprendizagem contribui para o desenvolvimento cognitivo
e social, pois as relaes de poder esto presentes em variados ambientes
encontrados ao longo da vida. BRONFENBRENNER (1996) acredita que a
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situao tima para a aprendizagem e o desenvolvimento aquela em que o
equilbrio do poder gradualmente se altera em favor da pessoa em
desenvolvimento (p. 47), uma vez que isso promover o desenvolvimento da
autonomia.
A terceira caracterstica apontada nas relaes familiares o afeto.
Quanto a esse aspecto, entende-se que, quanto mais positivas forem as
relaes estabelecidas numa dade, maior ser a probabilidade de que os
processos evolutivos transcorram de forma adaptada (BRONFENBRENNER,
1996).
A partir dessas caractersticas desenvolvem-se diferentes estilos
parentais e prticas educativas decorrentes dos mesmos. Segundo
CECCONELLO, ANTONI E KOLLER (2003), o estilo parental refere-se ao
padro global de caractersticas da interao dos pais com os filhos em
diversas situaes, gerando um clima emocional. As prticas educativas, por
sua vez, dizem respeito s estratgias utilizadas pelos pais para atingir
objetivos especficos em diferentes domnios, sob determinadas circunstncias
e contextos.
Nas relaes entre pais e filhos, existe uma concentrao de poder na
figura dos pais, que podem utiliz-lo, a fim de alterar o comportamento dos
filhos, por meio de duas formas de disciplina diametralmente opostas: a
indutivae a coercitiva.
A disciplina indutiva tem como objetivo uma modificao voluntria no
comportamento da criana, a partir da comunicao direta sobre esse desejo
dos pais, induzindo-a a obedecer-lhes. Como caractersticas dessa forma dedisciplina, so apontados (CECCONELLO, ANTONI E KOLLER, 1996):
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a prtica de explicaes sobre as conseqncias do comportamento,
envolvendo regras, princpios, valores, advertncias morais, apelos
ao orgulho da criana e ao amor que sente pelos pais;
o direcionamento da ateno da criana para as conseqncias que
o seu comportamento pode causar para ela prpria, para as outras
pessoas e para a situao em si;
o uso de castigos s no caso de eles se referirem reparao, no
se fazendo uso de prticas simplesmente punitivas;
o favorecimento da internalizao moral.
A disciplina coercitiva, ao contrrio, utiliza tcnicas que reafirmam o
poder parental, pela aplicao direta da fora e do poder. Como caractersticas
desse tipo de disciplina, CECCONELLO, ANTONI E KOLLER(1996) apontam:
a utilizao de punio fsica, privao de privilgios ou ameaas,compelindo a criana a adequar seu comportamento s reaes dos
pais;
o controle do comportamento baseado em ameaas de punies
externas, o que intensifica a percepo de valores como externos.
A disciplina coercitiva tende a provocar na criana intensas emoes,como medo, hostilidade, ansiedade, interferindo em sua capacidade de ajustar
o comportamento situao. A punio pode aparecer de duas formas: atravs
de coero ou pela ameaa de rompimento de vnculos afetivos.
J vimos, anteriormente, a importncia de a criana poder contar com
relaes estveis e seguras; j foi citado tambm o quanto a falta de
estabilidade nas relaes parentais causadora de insegurana e perda da
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so afetivos e responsivos s suas necessidades, encorajando a
tomada de decises e o desenvolvimento de habilidades e da
autonomia.
Estilo autoritrio: resultante da combinao entre alta exigncia e
baixa responsividade. Pais autoritrios so rgidos, estabelecem
regras estritas, sem a participao da criana. Enfatizam a
obedincia, o respeito autoridade, utilizando-se da punio como
forma de controle do comportamento. No valorizam o dilogo e a
autonomia, sendo pouco responsivos aos questionamentos e s
opinies da criana.
Estilo indulgente: resultante da combinao entre baixo controle e
alta responsividade. Pais indulgentes no estabelecem regras e
limites para a criana, o que no incentiva a responsabilidade e a
maturidade. So tolerantes em demasia, permitindo que a prpria
criana monitore seu comportamento. Mostram-se comunicativos e
afetivos, bastante receptivos criana, com tendncia a satisfazer
qualquer demanda que lhes for apresentada.
Estilo negligente: resultante da combinao entre baixo controle e
baixa responsividade. Pais negligentes so pouco afetivos e pouco
exigentes. Praticamente no se envolvem com a socializao da
criana, nem com o monitoramento de seu comportamento. Mantm
seus filhos distncia, respondendo somente s suas necessidades
bsicas. Freqentemente esto centrados em seus prprios
interesses.
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A partir de uma reviso de vrias pesquisas (Baumrind, 1966; Baumrind,
1991; Lamborn, Mounts, Steinberg e Dornbusch, 1991; Steinberg, Lamborn,
Darling, Mounts e Dornbusch, 1994), CECCONELLO, ANTONI e KOLLER
(2003) destacam a influncia positiva do estilo competente sobre o
desenvolvimento psicolgico de crianas e adolescentes. Submetidas a esse
estilo parental, as crianas tendem a mostrar maior competncia social,
assertividade e comportamento independente. Os adolescentes educados
dessa forma, por sua vez, apresentam melhores nveis de adaptao
psicolgica, competncia social e auto-estima, melhor desempenho acadmico,
maior autoconfiana e menos problemas de comportamento, ansiedade e
depresso.
Se, por outro lado, a relao que se estabelece entre pais e filhos carece
de afeto, reciprocidade e equilbrio de poder, costuma ocorrer prejuzo ao
desenvolvimento da criana, comprometendo futuras relaes que elaestabelecer (BRONFENBRENNER, 1996).
Embora se tenha enfatizado, a partir do estudo de CECCONELLO,
ANTONI E KOLLER (2003), a relao entre pais e filhos, entendemos que os
diferentes estilos de relao entre cuidador e criana, originrios de prticas
educativas diversas, manifestam-se tambm quando o cuidador no tem
relao parental.
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1.4 Psicoterapia e cuidados
At o presente momento, verificamos como se processa o
desenvolvimento normal de um indivduo, enfatizando as condies ideais para
que uma criana cresa e se desenvolva, expressando todo o seu potencial em
direo progressiva autonomia e autoconfiana.
Entretanto, na vida prtica, muitas vezes encontramos situaes bem
distantes dessas condies ideais. Vemos inmeras crianas submetidas a
relaes de cuidado ineficientes, que acarretam prejuzos srios para o seu
desenvolvimento e comprometem suas relaes futuras com o mundo e com
os outros.
A psicoterapia, questo central dessa dissertao, pode ser considerada
um sistema de cuidados que traz em si um posicionamento ideolgico. Ela est
inserida num padro cultural e busca capacitar o indivduo a fazer escolhas e a
responsabilizar-se pelo prprio destino.
ACKERMAN (1958/1986) aponta a cura como objetivo amplo da
psicoterapia. Mas o termo cura traz em si mltiplos significados. Segundo
esse autor, cura significa, em primeiro lugar, a remoo teraputica dos
sintomas, entendidos como sinais especficos de funcionamento perturbado
que caracterizam uma doena particular (p. 286). Entretanto, continua
ACKERMAN (1958/1986), muitos psicoterapeutas consideram esse significado
limitante. Um segundo sentido da cura, como efeito do tratamento, o
fortalecimento da personalidade do cliente, de modo que ele no tenha uma
nova recada.
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Uma terceira idia do termo cura envolve a expectativa de que a
personalidade do paciente possa sofrer uma mudana, tornando-se capaz de
perceber e utilizar seu potencial na direo de uma vida mais livre, eficiente e
produtiva, com a satisfao das suas necessidades pessoais. E mais do que
isso: que o indivduo possa tornar-se capaz de amar, compartilhar com os
outros prazer e responsabilidade, contribuir positivamente para o bem-estar da
famlia, dos amigos e da comunidade. A partir dessa definio mais ampla,
pode-se dizer que:
O teste final da cura , naturalmente, o desempenho dopaciente na vida em si, o alvio de seu sofrimento e medo, suaconfiana e coragem para enfrentar a vida, sua capacidade decrescimento, de viver totalmente, de amar e compartilhar com osoutros a grande aventura da nica vida que ele conhece.(ACKERMAN, 1958/1986, p. 289)
Sob essa perspectiva, a psicoterapia est ligada idia da busca de
significado. O significado da vida, segundo ACKERMAN (1958/1986), no deve
ser procurado no indivduo isolado, pois os valores estabelecidos so
derivados das relaes pessoais e sociais que ele estabelece. Esses valores
estruturam a orientao do indivduo para o seu lugar e papel na famlia e na
comunidade mais ampla, constituindo a auto-imagem, a imagem dos outros e a
percepo da realidade social.
A aquisio de uma imagem de eu saudvel envolve umapercepo correta das imagens dos outros e de suasnecessidades, um respeito pela dignidade, integridade e valor dosoutros, uma crescente capacidade de igualdade nas relaeshumanas, se comparada com uma orientao ao poder e srelaes exploratrias entre os seres humanos. (ACKERMAN,1958/1986, p. 291)
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Essa viso mais ampla de psicoterapia vai ao encontro da definio
apresentada anteriormente nesta pesquisa, pois considera como objetivo da
psicoterapia melhorar a qualidade de vida do cliente, a partir de mudanas em
suas atitudes, seus pensamentos, afetos e comportamentos (WIKIPEDIA,
2005).
Pelo fato de esta pesquisa estar focada no atendimento infncia e
adolescncia, consideramos importante destacar algumas questes especficas
relativas ao atendimento dessas faixas etrias.
ACKERMAN (1958/1986) considera que a psicoterapia infantil tem
algumas particularidades. A primeira delas refere-se ao fato de a criana ser
comumente trazida ao psicoterapeuta sem ter muita idia sobre o que pode
significar para ela a ajuda psicolgica. Atribui ao terapeuta infantil trs funes
distintas: a de pai/me auxiliar; a de educador, que promove o crescimento e o
domnio progressivo da nova experincia; a de agente teraputico, que facilita
a expresso, o alvio e o entendimento mais completo do conflito da criana.
No exerccio dessas funes, o psicoterapeuta um parceiro dos pais
da criana, j que oferece cuidados, proteo e afeto para a mesma.
responsabilidade do psicoterapeuta infantil promover o desenvolvimento de
uma relao emocional ntima com a criana, de forma a facilitar a
comunicao e o entendimento. Esse processo leva tempo, pois no se pode
esperar que a criana confie no terapeuta desde o incio. A confiana nessa
relao surge gradualmente, aps uma sucesso de testes realizados pela
criana, com o intuito de verificar as intenes do terapeuta em relao a ela.
Conforme essa relao se desenvolve, a criana sente-se mais segura e
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confiante, permitindo ao terapeuta o acesso, cada vez maior, sua vida
emocional.
Assim, o vnculo construdo entre o psicoterapeuta e a criana fornece a
ela experincias emocionais positivas com um adulto, experincias essas que
talvez tenham sido deficientes na famlia dela (ACKERMAN, 1958/1986).
Isso porque, segundo esse autor, crianas perturbadas so
freqentemente vtimas de privao emocional. Quando isso ocorre, as
crianas tm grande necessidade de amor e, ao mesmo tempo, mostram-se
incapazes de receb-lo, por desconfiarem que a demonstrao de amor de um
adulto pode no ser genuna.
Sobre esse fato, ACKERMAN (1958/1986) chama a ateno para a
atitude do psicoterapeuta, que deve relacionar-se genuinamente com a criana,
expressando seu verdadeiro afeto.
Um terapeuta infantil no pode compensar ou ressarciruma carncia de amor que uma criana possa ter experimentadona infncia. Isto passado e est feito. No pode sermagicamente desfeito. O que o terapeuta pode fazer modificargradualmente as percepes carregadas de ansiedade e asexpectativas emocionais da criana de modo que aqui e agora elapossa aprender a aceitar o amor como amor, tirar proveito dele e,finalmente, retribu-lo. Na psicoterapia, como na vida, umoferecimento de afeto, interesse e calor, deve ser umoferecimento verdadeiro, no uma tcnica manipulativa.(ACKERMAN, 1958/1986, p. 278-9)
O psicoterapeuta de adolescentes tem as mesmas funes do
psicoterapeuta infantil: pai/me auxiliar, educador, agente teraputico.
ACKERMAN (1958/1986) ressalta algumas caractersticas da adolescncia que
dificultam o incio da psicoterapia: a desconfiana, a dificuldade de substituio
de fidelidade com seus iguais, o egocentrismo, a atitude evasiva e a
beligerncia. Entretanto, afirma que, se o terapeuta consegue ultrapassar
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essas dificuldades iniciais, a ligao teraputica tende a tornar-se
intensamente forte e segura. Para tal, fundamental que o adolescente
perceba que o terapeuta est do seu lado e sente sua dor emocional.
A psicoterapia um recurso a ser utilizado quando as condies para
possibilitar o crescimento de um indivduo autnomo e seguro no foram
garantidas.
Apresentamos, no incio deste captulo, as condies necessrias para
que uma criana cresa e se desenvolva integralmente. Se examinarmos o
extremo oposto dessas condies ideais para um desenvolvimento saudvel,
encontraremos crianas que, alm de no contarem com pais acessveis e
responsivos, so submetidas violncia, atravs de maus-tratos fsicos,
emocionais, abuso sexual e/ou negligncia. A violncia cria um contexto em
que grande parte das necessidades de cuidado da criana deixa de ser
atendida. O aprofundamento dessa questo tema do prximo captulo.
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CAPTULO II
CRIANAS E ADOLESCENTES EM SITUAES DE VIOLNCIA
Os maus-tratos de menores so um tema presente na histria da
humanidade, registrado na literatura, na arte e na cincia de vrios perodos
histricos e em diferentes locais do mundo. Os maus-tratos chegam a ser um
grave problema mundial de sade, com contornos diversos, segundo as
prticas culturais, econmicas e sociais vigentes em cada local.
Cada cultura define os prprios princpios norteadores daquilo que
aceito ou refutado nos cuidados infantis. A no aceitao de prticas abusivas
em relao criana unnime, mas a definio do que abuso difere
segundo os padres culturais. H grande diversidade no que se refere ao grau
de tolerncia das manifestaes de violncia contra a criana, de modo que
algumas prticas, consideradas inaceitveis em algumas culturas, so tidas
como inevitveis em outras.
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2.1 Definio de maus-tratos
muito difcil conhecer em profundidade as caractersticas e as
dimenses dos maus-tratos de menores, em razo das diversas definies
jurdicas e culturais para a questo, o que complica, tambm, a organizao e
a avaliao de intervenes. A situao torna-se ainda mais complexa pelo fato
de grande parte dos casos de maus-tratos no ser informada s autoridades e
tambm por no existir, em vrios pases, um sistema jurdico que tenha como
atribuio especfica registrar informes sobre essas prticas.
Na comparao das definies de maus-tratos apresentadas por 58
pases, em relatrio da Organizao Mundial de Sade, observou-se que
algumas consideram que maus-tratos ocorrem mesmo quando a criana
lesada involuntariamente por atos de um ou ambos os pais, enquanto outras
definies s registram maus-tratos quando se constata a intencionalidade do
ato que provocou o dano. Segundo outro critrio, existem definies que se
centram no comportamento dos adultos, enquanto outras consideram que
maus-tratos existem quando ocorre dano ou ameaa de dano para a criana
(KRIG, DAHLBERG, MERCY, ZWI e LOZANO, 2003).
Para este trabalho, adotaremos a definio de maus-tratos de crianas e
adolescentes apresentada pela Organizao Mundial de Sade. A escolha por
essa definio se deu por diversos motivos:
por se tratar de um relatrio mundial, elaborado pela anlise de uma
extensa produo de 58 pases;
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por definir critrios comuns, visando a integrao de diversas
pesquisas, em contraposio a uma pulverizao de estudos soltos;
por criar uma infra-estrutura para avaliao dos trabalhos sobre
violncia a nvel mundial.
A definio a seguir foi retirada desse relatrio (KRIG et al., 2003) e
apresentada em 1999, na Reunio de Consulta da Organizao Mundial de
Sade sobre a preveno dos maus-tratos de menores. A saber:
Os maus-tratos ou a humilhao de menores abarcamtodas as formas de maus-tratos fsicos e emocionais, abusosexual, descuido ou negligncia ou explorao comercial oude outro tipo, que originem um dano real ou potencial para asade da criana, sua sobrevivncia, desenvolvimento oudignidade no contexto de uma relao de responsabilidade,confiana ou poder2(KRIG et al., 2003, p. 65).
2.2 Tipos de maus-tratos e sua ocorrncia no Brasil
No Brasil, as pesquisas e os programas de atendimento a crianas e
adolescentes apontam que o agressor, na maioria dos casos de violncia
domstica, o pai ou a me, havendo casos em que participam juntos do ato
de violncia. Segundo dados da Associao Brasileira Multiprofissional de
Proteo Infncia e Adolescncia (ABRAPIA), a me responsvel por
48,6% dos casos de violncia domstica e o pai aparece como agressor em
25,2% dos casos (SILVA e SILVA, 2005, p. 189; tabela 6).
2 Traduo da autora.
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Em relao idade da vtima, os casos de violncia domstica, segundo
dados da ABRAPIA atingem, em sua maioria, crianas de at 11 anos de idade
e corresponde a 74% do total (SILVA e SILVA, 2005, p. 190; tabela 8).
A definio apresentada (p. 54) abarca diversas modalidades de maus-
tratos (KRIG et al., 2003). Daremos ateno a quatro tipos em particular, que
aparecem em larga escala nas crianas abrigadas em instituies: os maus-
tratos fsicos; o abuso sexual; os maus-tratos emocionais e a negligncia.
Essas formas de violncia praticadas contra crianas, segundo dados de
diferentes fontes, aparecem distribudas da seguinte forma (SILVA e SILVA,
2005, p. 189; tabela 5 e 7):
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Os maus-tratos fsicos podem ser definidos como atos infringidos por
um cuidador que causam um dano fsico real, ou que tm o potencial de
provoc-lo 3 (KRIG et al., 2003, p. 66).
A UNICEF realizou um estudo sobre as diversas situaes de abuso
vividas na infncia e na adolescncia e constatou, a partir dos dados de uma
pesquisa do Laboratrio de Estudo da Criana (LACRI) da Universidade de
So Paulo (USP), que a violncia fsica responsvel por 34,2% dos casos de
violncia domstica no Brasil (SILVA e SILVA, 2005, p. 189; tabela 5).
3 Traduo da autora.
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Segundo informaes da ABRAPIA, a me apontada como a principal
agressora nesse tipo de violncia, respondendo por 38,14% dos casos de
violncia fsica, sendo seguida pelo pai (33,72%). As principais vtimas nesses
casos costumam ser os meninos (SILVA e SILVA, 2005, p. 55).
O abuso sexual definido como atos em que uma pessoa utiliza uma
criana, para sua gratificao sexual 4 (KRIG et al., 2003, p. 66).
tambm muito difcil estimar a prevalncia de abuso sexual, uma vez
que suas definies variam muito de uma cultura para outra. Alm disso, a
informao coletada das formas mais diversas, o que cria distores nos
dados obtidos, quando se confrontam diferentes pesquisas e culturas.
Conforme relatrio apresentado pela UNICEF (2005), o Disque-
Denncia do governo federal contabilizou 1.506 casos de explorao sexual
entre maio de 2003 e fevereiro de 2005.
De acordo com dados do LACRI, os casos de abuso sexual
correspondem a 7,8% dos casos de violncia domstica contra crianas e
adolescentes (SILVA e SILVA, 2005, p. 189; tabela 5).
As principais vtimas desse tipo de violncia, segundo informaes da
ABRAPIA (1999), so meninas (80%). Em relao faixa etria, 72% dos
casos envolvem crianas de at 11 anos de idade, sendo que a grande maioria
das vtimas de abuso sexual (49%) tem entre dois e cinco anos de idade
(SILVA e SILVA, 2005, p. 55).
Os principais agressores nos casos de abuso sexual so o pai (53,85%
dos casos) e o padrasto (32,87%) (SILVA e SILVA, 2005, p. 190; tabela 7).
4 Traduo da autora.
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Segundo KRIG et al. (2003), os maus-tratos emocionaisso produzidos
quando um cuidador no fornece as condies adequadas para o bom
desenvolvimento afetivo de uma criana e pratica atos cujos efeitos so
adversos sobre a sade emocional e o desenvolvimento da mesma. Esses
atos incluem: a restrio dos movimentos da criana, a ridicularizao, as
ameaas e as intimidaes, a discriminao, a rejeio e outras formas de
tratamento hostil.
Esse tipo de maus-tratos tem recebido ainda menos ateno mundial do
que os anteriores. muito difcil definir maus-tratos emocionais, uma vez que
muitas medidas disciplinares utilizadas e aceitas por uma cultura podem ser
consideradas psicologicamente nocivas por outra. Alm disso, as
conseqncias dos maus-tratos emocionais diferem muito, segundo o contexto
em que ocorrem e a idade da criana a eles submetida.
Segundo dados do LACRI, a violncia psicolgica corresponde a 13,5%
dos casos de violncia domstica contra crianas e adolescentes (SILVA e
SILVA, 2005, p. 189; tabela 5).
Esse tipo de violncia, de acordo com informaes da ABRAPIA (1999),
costuma ser praticado principalmente pelo pai (54,03%), seguido pela me
(17,34%) e pelo padrasto (13,30%) (SILVA e SILVA, 2005, p. 190; tabela 7).
A negligncia ocorre quando um dos pais no toma medidas que
promovam o desenvolvimento da criana, tendo condies de faz-lo, nas reas
de sade, educao, desenvolvimento emocional, nutrio, amparo e condies
de segurana.
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difcil diferenciar a negligncia da pobreza, pois em muitos casos uma
aparece associada outra. Algumas