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121 Cinema, a mais nova das artes Em 28 de dezembro de 1895, os Irmãos Lumière realizaram, no porão do Grand Café em Paris, a primeira sessão de cinema da história. O impacto dessa invenção foi tal que o século XX é definido por alguns teóricos da arte como a “Era do Cinema” (HAUSER, 1998, p. 957). Na definição de Riccioto Canudo (2009), o cinema é a “Sétima Arte”, já que surgiu depois da música, da dança, da pintura, da escultura, do teatro e da literatura. Talvez por agregar elemen- tos de quase todas as artes que o precederam, talvez por ter se tornado um meio de recursos ilimitados para o milenar hábito humano de narrar histórias, o fato é que o cinema ocupou um lugar central na vida cultural de pessoas do mundo inteiro nos últimos cem anos. O movimento em torno do cinema é tal que em função dele apareceram uma infinidade de revistas, programas televisivos, campanhas de marketing etc. Eis que surge a pergunta: o cine- ma, além de indústria, negócio e entretenimento, é também arte? Marcel Martin argumenta: [...] ninguém mais contesta seriamente que o cinema seja uma arte. Será então presunçoso pensar que existam, na história do cinema, uns cinquenta filmes tão preciosos quanto a Ilíada, o Partenon, a Capela Sixtina, a Mona Lisa ou a Nona Sinfonia, e cuja des- truição empobreceria da mesma forma o patrimônio artístico e cultural da humanidade? Sim, talvez, pois [...] se alguns desprezam o cinema, é porque na ver- dade ignoram suas belezas, e que de toda forma é absolutamente irracional negligenciar uma arte que, socialmente falando, é a mais importante e a mais influente de nossa época. (MARTIN, 2003, p. 13) Mas, se o cinema está presente há pouco mais de um século em nossas vidas, antes disso o ser humano já sonhava com ele. Neste capítulo estudaremos alguns pioneiros que deram forma às máquinas que tornaram o cinema possível (a câmera cinematográfica e o projetor) e veremos como alguns artistas foram, aos poucos, trans- formando essa novidade tecnológica na forma de arte mais popular da atualidade. O nascimento do cinema O parente mais antigo dos projetores de ci- nema foi a chamada Lanterna Mágica. Há relatos da sua existência desde o século XVI. Tratava- -se de um antecessor dos atuais projetores de slides. Essa máquina consistia em uma fonte de luz (inicialmente uma lâmpada a óleo, mais tarde substituída pela lâmpada elétrica), cuja lu- minosidade atravessava uma chapa translúcida pintada (com paisagens ou episódios de uma história) e projetava a imagem da chapa sobre uma parede branca ou tela. Domínio público. Lanterna Mágica, século XIX. Reprodução da pintura A Lanterna Mágica, 1798. Jean François Bosio. Domínio público. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Page 1: Cinema, a mais nova das artes€¦ · XX é definido por alguns teóricos da arte como a “Era do Cinema” (HAUSER, 1998, p. 957). Na definição de Riccioto Canudo (2009), o cinema

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Cinema, a mais nova das artes

Em 28 de dezembro de 1895, os Irmãos Lumière realizaram, no porão do Grand Café em Paris, a primeira sessão de cinema da história. O impacto dessa invenção foi tal que o século XX é definido por alguns teóricos da arte como a “Era do Cinema” (HAUSER, 1998, p. 957).

Na definição de Riccioto Canudo (2009), o cinema é a “Sétima Arte”, já que surgiu depois da música, da dança, da pintura, da escultura, do teatro e da literatura. Talvez por agregar elemen-tos de quase todas as artes que o precederam, talvez por ter se tornado um meio de recursos ilimitados para o milenar hábito humano de narrar histórias, o fato é que o cinema ocupou um lugar central na vida cultural de pessoas do mundo inteiro nos últimos cem anos.

O movimento em torno do cinema é tal que em função dele apareceram uma infinidade de revistas, programas televisivos, campanhas de marketing etc. Eis que surge a pergunta: o cine-ma, além de indústria, negócio e entretenimento, é também arte? Marcel Martin argumenta:

[...] ninguém mais contesta seriamente que o cinema seja uma arte. Será então presunçoso pensar que existam, na história do cinema, uns cinquenta filmes tão preciosos quanto a Ilíada, o Partenon, a Capela Sixtina, a Mona Lisa ou a Nona Sinfonia, e cuja des-truição empobreceria da mesma forma o patrimônio artístico e cultural da humanidade? Sim, talvez, pois [...] se alguns desprezam o cinema, é porque na ver-dade ignoram suas belezas, e que de toda forma é absolutamente irracional negligenciar uma arte que, socialmente falando, é a mais importante e a mais influente de nossa época. (MARTIN, 2003, p. 13)

Mas, se o cinema está presente há pouco mais de um século em nossas vidas, antes disso o ser humano já sonhava com ele. Neste capítulo estudaremos alguns pioneiros que deram forma às máquinas que tornaram o cinema possível (a câmera cinematográfica e o projetor) e veremos como alguns artistas foram, aos poucos, trans-formando essa novidade tecnológica na forma de arte mais popular da atualidade.

O nascimento do cinemaO parente mais antigo dos projetores de ci-

nema foi a chamada Lanterna Mágica. Há relatos da sua existência desde o século XVI. Tratava--se de um antecessor dos atuais projetores de slides. Essa máquina consistia em uma fonte de luz (inicialmente uma lâmpada a óleo, mais tarde substituída pela lâmpada elétrica), cuja lu-minosidade atravessava uma chapa translúcida pintada (com paisagens ou episódios de uma história) e projetava a imagem da chapa sobre uma parede branca ou tela.

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Lanterna Mágica, século XIX.

Reprodução da pintura A Lanterna Mágica, 1798. Jean François Bosio.

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A lanterna mágica agregou melhorias ópti-cas ao longo do tempo, até que, durante o século XIX, shows com a lanterna mágica circulavam pela Europa, incluindo movimentos simples de personagens e outros efeitos. Esses eventos se tornaram populares entre as crianças, antevendo o sucesso dos desenhos animados no século XX. Com a invenção da fotografia, pelo francês Nicéphore Niépce (1765-1833) em 1826, e sua posterior popularização, esses shows passa-ram a incluir fotografias de paisagens e países distantes.

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Praxinoscópio, 1882.

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Teatro Óptico, 1889.

O francês Émile Reynaud (1844-1918) aprimorou os sistemas de projeção com o de-senvolvimento do Praxinoscópio, que projetava grupos de 12 imagens sucessivas, produzindo a sensação de movimento dos seus desenhos pintados à mão. Sua invenção foi tão popular que lhe permitiu criar o Teatro Óptico, onde projetava filmes mais longos e em telas maiores. Com essa novidade ele conseguia reunir grandes plateias.

A lógica do movimento das imagens já ha-via sido descoberta através da criação de um pequeno brinquedo chamado Fenascistoscópio, em 1832. Exibindo rapidamente imagens está-ticas que mostravam pequenas variações em fases sucessivas do movimento, era possível ao observador ter a ilusão do movimento dessa imagem. Esta máquina foi aprimorada em 1834 e chamada de Zootropo, seguindo o mesmo princípio de funcionamento: através de pequenas fendas, fragmentos sucessivos do movimento da imagem produziam a ilusão de movimento.

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Fenascistoscópio, século XIX.

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Disco de imagens, século XIX.

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Zootropo, 1889.

Mas como reproduzir o movimento da rea-lidade? O fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904) mostrou o caminho através de experimentos com o uso de múltiplas câmeras. No seu experimento mais famoso, colocou 24 câmeras fotográficas lado a lado ao longo de alguns metros de uma pista de corrida de cava-los, com cordões esticados ligados a cada uma delas. Ao correr pela pista, um cavalo sucessi-vamente rompia cada cordão, disparando uma câmera de cada vez. Essas fotografias, obser-vadas sucessivamente, são o primeiro registro bem-sucedido do movimento da realidade.

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Fotografias de Muybridge, década de 1870.

A invenção definitiva do cinema aconteceu somente em 1895, quando os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) criaram o cinematógrafo, que funcionava, ao mesmo tempo, como uma máquina de filmar e um projetor.

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Cinematógrafo dos irmãos Lumière, 1895.

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Sessão do Cinematógrafo no Grand Café, 1895.

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Chegada do trem à estação, um dos curtas-metragens dos Lumière exibidos no Grand Café, 1895.

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Cartaz das sessões do Cinematógrafo dos Lumière.

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Depois da bem-sucedida primeira sessão no Grand Café, em Paris, no final de 1895, os irmãos Lumière produziram inúmeros filmes documentando a vida cotidiana em diferentes cidades da Europa, Ásia e Estados Unidos. Eles formaram equipes de operadores e de projetores que correram o mundo para mostrar sua invenção.

Apesar do sucesso instantâneo, os irmãos Lumière acreditavam que o fervor em torno do cinematógrafo cessaria assim que ele deixasse de ser uma novidade. Talvez isso tivesse acon-tecido e o cinematógrafo seria mais uma das máquinas modernas de função utilitária, como a lâmpada ou o telefone, se não tivesse sido descoberto por alguns artistas pioneiros que transformaram-no em suporte para a produção de entretenimento e arte, como é o caso de Méliès, como veremos a seguir.

Méliès e o cinema como entretenimento

O primeiro desses pioneiros foi o francês Georges Méliès (1861-1938). Ele era mágico e estava presente na primeira sessão do cinema-

tógrafo dos irmãos Lumière. Ficou tão empolgado com o novo invento e suas possibilidades que tentou logo adquirir um, mas os irmãos recusaram sua oferta, argumentando que o aparelho não se destinava a fins comerciais.

Méliès conseguiu comprar uma cópia do cinematógrafo na Inglaterra e, da mesma forma que os irmãos Lumière, passou a registrar cenas do cotidiano de Paris. Dessas suas “brincadeiras” surgiu uma série de trucagens que encantaram o ilusionista e depois suas plateias. Conta-se que um dia ele parou de rodar uma cena de rua na me-tade do rolo. Quando retomou o giro da manivela com a câmera na mesma posição, as pessoas que estavam em cena já haviam ido embora. Ao assistir as imagens, o “sumiço” repentino dos passantes pareceu, aos seus olhos de ilusionis-ta, pura mágica. A esta trucagem deu-se o nome de stop-action. Outros efeitos especiais, usando perspectiva forçada, múltiplas exposições e ce-nários fantásticos foram criados.

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Os efeitos de múltiplas exposições e perspectiva forçada permitiam que Méliès “conversasse” com sua imagem filmada em outro momento posicionado em outro lugar do quadro.

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Mais próximo da câmera, aumentando seu tamanho.

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Méliès fez mais de 500 filmes e construiu o primeiro estúdio cinematográfico da Europa. Seu fascínio e sua especialidade eram os efei-tos especiais que divertiam crianças e adultos em histórias fantásticas. Chaplin e D. W. Gri-ffith, nomes fundamentais da arte do cinema, consideravam-no um mestre. Seu filme de maior sucesso, com 14 minutos de duração, foi Viagem à Lua, produzido em 1902.

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O estúdio de Méliès: paredes de vidro e filmagens de dia para aproveitar a luz do Sol.

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Cena clássica do maior sucesso de Méliès, o filme Viagem à Lua, 1902.

Entretanto, o cinema estava prestes a encontrar sua identidade nas mãos de “explo-radores” que vieram a seguir.

Estados Unidos e o cinema como indústria

Entre 1897 e 1904, as sessões do cine-matógrafo dos Lumière e os filmes fantásticos

de Méliès criaram nos Estados Unidos a febre das motion pictures (imagens em movimento), e logo surgiram norte-americanos interessados em produzir seus próprios filmes.

Como os filmes da época exigiam muita luz para imprimir a imagem e os refletores de luz potentes dos estúdios ainda não existiam, os produtores migraram para o oeste, no es-tado da Califórnia, atrás do clima ensolarado e seco. Para facilitar as filmagens, tanto ex-ternas (nas ruas e cenários) quanto internas, os estúdios eram construídos com paredes e tetos de vidro que aproveitavam melhor a luz do Sol. Foi assim que, a partir de 1911, se iniciou um aglomerado de estúdios em um bair-ro relativamente desocupado de Los Angeles chamado Hollywood.

A demanda do público por filmes crescia e, com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) estourando na Europa, o eixo de produção cinema-tográfica transferiu-se para Hollywood. Foi nessa época que nasceu o conceito de Indústria Cinema-tográfica, com a divisão do trabalho em funções especializadas: roteiristas, produtores, operadores de câmera, diretores e montadores. Esse processo permitia que vários filmes estivessem em produção ao mesmo tempo, em etapas diferentes, diminuin-do custos e aumentando a produtividade.

Em meio a esse ambiente industrial, desta-caram-se o cineasta D. W. Griffith (1875-1948) e os comediantes Charles Chaplin (1889-1977) e Buster Keaton (1895-1966).

O norte-americano David W. Griffith é consi-derado o criador da linguagem cinematográfica. Até os primeiros anos do século XX, como se viu nos filmes de Méliès, as histórias eram con-tadas como um teatro filmado: uma sucessão de cenários (reais ou construídos) onde os per-sonagens transitavam e interagiam. Entre 1908 e 1913, Griffith produziu em Hollywood quase 500 curtas-metragens1. Neles, experimentou o uso de movimentos de câmera, planos detalhe2,

1 Curta-metragem é um filme de duração inferior a trinta minu-tos, entretanto há diferentes padrões para classificar essa ca-tegoria que pode variar dentro de um padrão máximo de até 20 minutos.2 Plano detalhe é uma imagem onde aparece apenas um detalhe da cena.

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montagem paralela3 e outros métodos para criar suspense, construir ideias com imagens e dar força às histórias. Griffith foi construindo um repertório de posições de câmera, ângulos, movimentos e enquadramentos: uma verdadeira gramática da imagem, que é usada até hoje.

Em 1915, Griffith realizou o primeiro longa--metragem4 americano, O Nascimento de uma Nação, um épico com mais de três horas de duração que narra a história de duas famílias separadas pela Guerra da Secessão5. Nesse filme, o cineasta aplicou todos os métodos nar-rativos que vinha desenvolvendo para contar com dramaticidade a história. O filme foi um sucesso de bilheteria e tornou-se um clássico do cinema. Seu brilho, no entanto, é até hoje ofuscado pela visão preconceituosa com que Griffith apresenta os negros americanos, sendo inclusive respon-sabilizado pelo renascimento da Klu Klux Klan, seita de fanáticos racistas, que reapareceu na época do lançamento do filme.

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Cena de O Nascimento de uma Nação, 1914.

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Klu Klux Klan é glorificada no filme.

3 Através da alternância entre planos de duas sequências, a mon-tagem paralela forma um novo significado implícito, interpretado pelo espectador.4 Obra cinematográfica com duração superior a 60 minutos.5 Também conhecida como Guerra Civil que ocorreu nos Estados Unidos entre os anos de 1861-1865.

A comédia americana dos anos 1920 re-tratava a vida urbana, a “civilização das máqui-nas”. Carlitos – o vagabundo de chapéu coco e bengala, criado pelo diretor e ator Charles Chaplin – tornou-se o personagem mais famoso do cinema, aparecendo em clássicos como O Garoto (1921), Em Busca do Ouro (1925), Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936).

Já Buster Keaton recebeu o apelido de Bus-ter (demolidor) por sua resistência aos tombos. Ficou famoso como “o cômico que nunca ri”. Entre seus filmes estão Nossa Hospitalidade (1923) e A General (1927).

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Charles Chaplin em O Garoto, 1921.

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Buster Keaton em Nossa Hospitalidade, 1923.

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Após o término da Primeira Guerra Mundial (1918), os estúdios europeus retomaram a pro-dução, levando, através de novos experimentos, a arte do cinema a novos patamares e à realiza-ção de novas obras-primas.

Europa e o cinema como arte

Entre a produção dos pioneiros do cinema na Europa dos anos de 1920, cabe destacar as inovações dos cineastas alemães e russos, respectivamente, na fotografia e na montagem dos filmes.

Muitos filmes alemães da década de 1920 foram totalmente filmados dentro de grandes estúdios muito bem equipados, localizados em Berlim. Cenários imensos eram construídos, dando ao diretor controle completo sobre as filmagens, para que ele pudesse definir a ilu-minação, a posição de câmera e a posição dos atores sem a interferência comum a gravações externas.

F. W. Murnau (1888-1932) foi o principal cineasta alemão desse período. Ele e sua equipe aproveitaram as condições favoráveis dos estú-dios para experimentar novas possibilidades de uso da câmera, fazendo isso ao mesmo tempo com muita inventividade e profundidade. O filme que melhor expressou as novas possibilidades dos estúdios foi A Última Gargalhada (1924).

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Cena do filme A Última Gargalhada, 1924.

O filme narra a decadência de um orgulhoso porteiro de hotel de luxo, rebaixado à posição de atendente de banheiro. Nas imagens anteriores, vemos como as linhas da porta sugerem a sen-sação de aprisionamento no momento em que o personagem recebe a notícia do seu rebaixamen-to. Na segunda imagem, a expressiva fotografia do protagonista como atendente do banheiro reforça seu sentimento de humilhação.

Durante o filme, a câmera se move pelas ruas, corredores, elevadores e sempre se coloca em lugares expressivos e originais. Desafiando os limites técnicos da época, a câmera foi colo-cada sobre bicicletas, suspensa em cabos ou amarrada à cintura do operador. Em uma cena famosa, durante o casamento de sua filha, o protagonista fica bêbado e a sala é mostrada girando, refletindo a sua confusão mental. Esse é um dos exemplos do uso subjetivo da câme-ra, ou seja, fazer-nos ver o que o personagem vê e como ele vê, incluindo a distorção do seu olhar, se assim for o caso. Tratava-se de algo totalmente novo para a época, desenvolvido por Murnau e sua equipe.

Para terminar falando de outro aspecto único do cinema, vamos ver como os experimen-tos de cineastas russos enriqueceram o uso da montagem no cinema. A montagem de um filme é a forma como o cineasta reúne imagens (chamadas de planos) para contar sua história ou transmitir uma ideia. Sobre a pesquisa dos russos, conta Ken Dancyger:

Enquanto Griffith se contentava em contar histórias através de um tipo de estrutura de montagem, que vimos em O Nascimento de uma Nação, os jovens diretores russos sentiam poder levar adiante o contro-le exercido pelo diretor cinematográfico sobre o seu material. Mediante novos tipos de montagem, eles

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planejavam não só contar histórias, como também interpretá-las e delas retirar conclusões intelectuais. (DANCYGER, 2003, p. 15)

Um cineasta russo chamado Lev Kuleshov (1899-1970) realizou um experimento que abriu radicalmente as possibilidades do uso da montagem.

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O Efeito Kuleshov, 1922.

Kuleshov tomou um close-up de um homem observando algo e montou essa imagem, sem nenhuma alteração, seguida de um close-up de um prato de comida, de uma senhora morta e de uma jovem. A plateia que assistiu à projeção reconheceu a fome do homem em relação ao prato de comida, o horror diante da senhora morta e o interesse em relação à jovem. Mas

os realizadores sabiam que o close do homem era o mesmo e que ele estava sem nenhuma expressão no rosto.

Esse experimento demonstrou que o es-pectador é capaz de projetar seus sentimentos sobre aquilo que vê em um filme. Para Kuleshov, o filme consiste em fragmentos e montagem desses fragmentos, que, na realidade, podem ser diferentes da “realidade montada” no filme. Portanto, o que importa não é o conteúdo das imagens, mas a sua combinação. E aí está o poder do cinema para provocar reflexão no espectador.

O cineasta Sergei Eisenstein (1898-1948) aprofundou essa discussão em livros e estudos. Mas o que nos interessa é que, com esses princípios, ele realizou algumas obras-primas do cinema, das quais destacamos O Encouraçado Potemkin (1925).

O filme conta a história de um motim dos marinheiros de um navio de guerra russo, mo-vimento esse que é apoiado pela população da cidade de Odessa, onde o navio estava apor-tado. Em uma manifestação popular de apoio aos marinheiros, os cidadãos da cidade são violentamente atacados pelas forças imperiais nas escadarias de Odessa. O filme mostra esse episódio trágico em uma sequência de imagens inesquecível que entrou para a história do cine-ma. A seguir vemos fotogramas desse momento do Encouraçado Potemkin.

Sergei Eisenstein e imagens da sequência do massacre na escadaria de Odessa.

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A força dramática das situações constrói-se através da combinação de imagens: as botas dos guardas descem as escadas, mãos seguram espingardas, um berço desce descontrolada-mente as escadarias, uma mãe segura o filho ferido nos braços etc. Reflexões assumem a forma de imagens, conforme um outro exemplo citado por Hauser:

Eisenstein mostrou a seguinte sequência em O En-couraçado Potemkin: homens trabalhando desespe-radamente, praça das máquinas da belonave; mãos atarefadas, girando volantes; rostos distorcidos pelo esforço, pressão máxima do manômetro; um peito empapado em suor, uma caldeira fumegante; um braço, um volante; um volante, um braço; máquina, homem; máquina, homem; máquina, homem. Duas

realidades profundamente diferentes, uma espiritual e uma material, aí se conjugaram, e não só conju-garam mas identificaram-se; de fato, uma origina-se da outra. (HAUSER, 1998, p. 986)

Assim, para Eisenstein, o cinema cumpre com a função de questionar, provocar o espec-tador para que ele busque as respostas em sua própria vida.

Mesmo que os cineastas posteriores não tenham seguido à risca as explorações de alemães e russos, seus experimentos abriram novas possibilidades no campo, cada vez mais irrestrito, de atuação e influência do cinema, a sétima arte.

Para saber mais

A arte da burguesia

(BERNARDET, 1981, p. 11-15)

No primeiro dia de exibição pública de cine-ma – 28 de dezembro de 1895, em Paris – um homem de teatro que trabalhava com mágicas, Georges Méliès, foi falar com Lumière, um dos inventores do cinema; queria adquirir um aparelho e Lumière o desencorajou, dizendo- -lhe que o “cinematógrapho” não tinha o menor futuro como espetáculo, era um instrumento científico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas. Mesmo que o público, no início, se divertisse com ele, era uma novidade de vida breve, logo cansaria. Lumière enganou-se. Como essa máquina de austeros cientistas virou uma máquina de con-tar histórias para enormes plateias, de geração em geração, durante já quase um século?

Nesse 28 de dezembro o que apareceu na tela do Grand Café? Uns filmes curtinhos, filmados com a câmera parada, em preto e branco e sem som. Um em especial emocio-nou o público: a vista de um trem chegando na estação, filmado de tal forma que a

locomotiva vinha de longe e enchia a tela, como se fosse se projetar sobre a plateia. O público levou um susto de tão real que parecia. Todas essas pessoas tinham com certeza viajado ou visto um trem, a novidade não consistia em ver um trem em movimento. Esses espectadores sabiam que não havia nenhum trem verdadeiro na tela, logo não havia por que assustar-se. A imagem na tela era em preto e branco e não fazia ruídos, por-tanto não podia haver qualquer dúvida, não se tratava de um trem de verdade. Só podia ser uma ilusão. É aí que residia a novidade: a ilusão. Ver o trem na tela como se fosse verdadeiro. Parece tão verdadeiro – embora a gente saiba que é mentira – que dá para fazer de conta, enquanto dura o filme, que é de verdade. Um pouco como um sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só sabemos depois, quando acor-damos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema [...]

A máquina cinematográfica não caiu do céu. Em quase todos os países europeus

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e nos Estados Unidos no fim do século XIX foram acentuadas as pesquisas para a produção de imagens em movimento. É a grande época da burguesia triunfante; ela está transformando a produção, as relações de trabalho, a sociedade, com a Revolução Industrial; ela está pondo seu domínio sobre o mundo ocidental, colonizando uma imensa parte do mundo que posteriormente viria a se chamar Terceiro Mundo [...] dessa época, fim do século XIX, início deste, datam a implan-tação da luz elétrica, a do telefone, do avião

etc., e no meio dessas máquinas todas, o cinema será um dos trunfos do universo cultural. A burguesia pratica a literatura, o teatro, a música etc., evidentemente, mas essas artes já existiam antes dela. A arte que ela cria é o cinema.

Não era uma arte qualquer. Reproduzia a vida tal como é – pelo menos essa era a ilusão. Não deixava por menos. Uma arte que se apoiava na máquina, uma das musas da burguesia. Juntava-se a técnica e a arte para realizar o sonho de reproduzir a realidade.

Dica de estudoA melhor e mais prazerosa introdução ao

cinema mudo é assistir a algum dos clássicos de Charles Chaplin: O Garoto (1921), Em Busca do Ouro (1925), Luzes da Cidade (1931) e Tem-pos Modernos (1936), todos lançados em DVD e disponíveis nas melhores locadoras. Através desses filmes é possível perceber por que Cha-plin é considerado um dos grandes gênios do cinema mudo. Com certeza, foi o mais popular, pois foi capaz de produzir cenas inesquecíveis, com muita criatividade, profundidade, acessíveis a todos os públicos.

Exercícios de aplicação

O cinema é uma arte que nasceu na era 1. das máquinas e, para que ele existisse, foi necessário o desenvolvimento de má-quinas que captassem (1) a imagem e (2) o movimento da realidade. Que invenções permitiam a captação da imagem e do mo-vimento, e em que ano surgiram?

Em quais áreas da realização cinematográ-2. fica destacaram-se os cineastas alemães e russos durante a década de 1920?

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Gabarito

Exercícios de aplicação

A 1. fotografia, inventada pelo francês Nicéphore Niépce, em 1826, permitiu a captação da ima-gem da realidade. O cinematógrafo, inventado pelos irmãos Lumière em 1895, permitiu a captação do movimento da realidade.

Os alemães destacaram-se na 2. fotografia dos filmes, enquanto os russos exploraram novas possibilidades da montagem.

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