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30 CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 211 Desenvolvimento e meio ambiente: uma falsa incompatibilidade As questões do crescimento econômico e, em particular, da geração de empregos são, sem dúvida, preocu- pações fundamentais para a sociedade brasileira. Nossa economia passou por grandes dificuldades nos últimos anos e, embora tenha sido mantida a estabilidade de preços, o baixíssimo nível de ati- vidades, combinado com alto desemprego, tem gerado um clima de frustração e desânimo. Na busca por culpados para essa falta de dina- mismo, as políticas ambientais são com freqüên- cia responsabilizadas pelas restrições à expansão da economia. Nas áreas industrial e energética, argumenta-se que as normas de licenciamento am- biental são excessivamente rigorosas e/ou lentas, o que desestimularia os empresários. Na área agrí- cola, uma velha queixa dos proprietários rurais é a de que o Código Florestal imobiliza áreas consi- deráveis, o que reduziria a produção e o emprego no setor. Mas até que ponto esses argumentos têm funda- mentação? O objetivo deste texto é mostrar que Uma idéia muitas vezes apregoada é a de que as políticas ambientais impedem ou prejudicam o crescimento econômico, desestimulando a implantação de indústrias ou impedindo a derrubada de florestas para abrir espaço para a agropecuária. Estudos recentes, porém, revelam que não há uma relação estatística entre o desmatamento e indicadores econômicos, e que a industrialização no país, fortemente apoiada em setores de elevado potencial poluidor, não proporcionou um crescimento sustentado, que trouxesse benefícios para toda a população. Carlos Eduardo Frickmann Young Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro E C O N O M I A 30 CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 211 diversos mitos sobre a incompatibilidade entre de- senvolvimento econômico e preservação do meio ambiente não se sustentam em uma análise mais rigorosa. Questões como a justiça social e a preser- vação ambiental, ignoradas ou minoradas no pas- sado, impõem atualmente exigências maiores aos processos de transformação produtiva. Enfim, para os países periféricos, não se trata ‘apenas’ de cres- cer a taxas acima da média mundial. É preciso ainda responder a questões mais profundas: Onde crescer? Para quem crescer? Por que crescer? Como crescer? DESMATAMENTO E DESENVOLVIMENTO O debate sobre o papel das florestas no processo de desenvolvimento brasileiro está repleto de mitos comumente aceitos sem a adequada sustentação teórica ou empírica. Entre tais mitos, destacam-se o de que (1) o maior fator de pressão sobre o des-

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Desenvolvimento e meioambiente: uma falsaincompatibilidade

As questões do crescimento econômico e, em particular,da geração de empregos são, sem dúvida, preocu-pações fundamentais para a sociedade brasileira.Nossa economia passou por grandes dificuldadesnos últimos anos e, embora tenha sido mantida aestabilidade de preços, o baixíssimo nível de ati-vidades, combinado com alto desemprego, temgerado um clima de frustração e desânimo.

Na busca por culpados para essa falta de dina-mismo, as políticas ambientais são com freqüên-cia responsabilizadas pelas restrições à expansãoda economia. Nas áreas industrial e energética,argumenta-se que as normas de licenciamento am-biental são excessivamente rigorosas e/ou lentas,o que desestimularia os empresários. Na área agrí-cola, uma velha queixa dos proprietários rurais éa de que o Código Florestal imobiliza áreas consi-deráveis, o que reduziria a produção e o empregono setor.

Mas até que ponto esses argumentos têm funda-mentação? O objetivo deste texto é mostrar que

Uma idéia muitas vezes apregoada é a de que as políticas ambientais impedem

ou prejudicam o crescimento econômico, desestimulando a implantação

de indústrias ou impedindo a derrubada de florestas para abrir espaço para

a agropecuária. Estudos recentes, porém, revelam que não há uma relação estatística

entre o desmatamento e indicadores econômicos, e que a industrialização no país,

fortemente apoiada em setores de elevado potencial poluidor, não proporcionou

um crescimento sustentado, que trouxesse benefícios para toda a população.

Carlos Eduardo Frickmann YoungInstituto de Economia,Universidade Federal do Rio de Janeiro

E C O N O M I A

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diversos mitos sobre a incompatibilidade entre de-senvolvimento econômico e preservação do meioambiente não se sustentam em uma análise maisrigorosa. Questões como a justiça social e a preser-vação ambiental, ignoradas ou minoradas no pas-sado, impõem atualmente exigências maiores aosprocessos de transformação produtiva. Enfim, paraos países periféricos, não se trata ‘apenas’ de cres-cer a taxas acima da média mundial. É precisoainda responder a questões mais profundas: Ondecrescer? Para quem crescer? Por que crescer? Comocrescer?

DESMATAMENTO E DESENVOLVIMENTO

O debate sobre o papel das florestas no processo dedesenvolvimento brasileiro está repleto de mitoscomumente aceitos sem a adequada sustentaçãoteórica ou empírica. Entre tais mitos, destacam-seo de que (1) o maior fator de pressão sobre o des-

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matamento é o crescimento demográfico nas áreasrurais, e o de que (2) o desmatamento é necessáriopara o crescimento econômico, a geração de em-prego e a garantia de melhores condições de vidada população rural.

A origem desses mitos está ligada a uma visãohistórica de que a perda de áreas florestadas éinerente à ocupação territorial e ao modo de produ-ção estabelecidos no Brasil rural desde a era co-lonial. Nessa ótica, apesar da alternância da mer-cadoria básica em cada ciclo da economia colo-nial (e, depois, imperial), percebe-se um padrãode ‘auge e crise’ a partir da exploração direta ouindireta dos recursos: a abundância do recursoprovoca sua rápida exploração predatória, o queleva ao declínio de longo prazo – pela escassezcrescente do recurso antes farto ou pela deprecia-ção do seu preço em função do aumento abruptode oferta.

Portanto, pode-se construir uma teoria comumaos ciclos econômicos históricos (pau-brasil, açú-car, gado, ouro e café), apesar das enormes diferen-ças nas formas de produção e distribuição dessesprodutos. Tais ciclos apoiavam-se no uso predató-rio de recursos naturais, com graves danos ambien-tais, e não eram formas sustentáveis que permitis-sem superar as contradições econômicas e sociaisda Colônia ou do Império.

Esse modelo de ocupação territorial prevaleceuna República, agora combinando força de trabalholivre, concentração fundiária e monocultivo oupecuária extensiva. O resultado foi a geração deexcedentes de mão-de-obra no campo, e a válvulade escape para acomodar a pressão social doschamados ‘sem-terra’ é a expansão da fronteira

Há, porém, limites para a capacidade de obterexcedentes ‘naturais’ de terra e assim acomodar osproblemas sociais brasileiros. O uso das terras defronteira está longe de ser uma solução definitiva.Por trás disso está a idéia de que as florestas sãoimprodutivas, têm baixo valor e pouco contribuempara o desenvolvimento do país. Assim, projetos decolonização consomem o restante das áreas de flo-resta, mas sem dar solução ao problema. A crise sedá quando não há mais áreas florestadas: sem apossibilidade de adiamento, os conflitos de terraeclodem com maior intensidade.

A esses fatores estruturais somam-se algunsconjunturais. A mecanização agrícola crescente eos ciclos especulativos de apreciação da terra sãonovos motores do desmatamento. A mecanização,ao reduzir a demanda de mão-de-obra, induz aoêxodo rural e, portanto, à ocupação das regiões defronteira agrícola, com derrubada de florestas. Amaior produtividade eleva o preço da terra, e àsvezes surgem ainda ‘bolhas’ especulativas, estimu-lando a venda de pequenas propriedades (de pro-dução familiar) e, assim, contribuindo para a re-dução do pessoal ocupado na agricultura.

Em suma, apesar da significativa expansão daprodução agropecuária, o número de pessoas em-pregadas no setor vem caindo sistematicamente,segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografiae Estatística (IBGE) (figura 1).

O mito de aceitação mais imediata – e o menosvalidado pelas estatísticas – é o que associa desma-tamento ao tamanho da população rural. De fato,o desmatamento foi intenso nas áreas de domínioda mata atlântica, que tiveram grande crescimen-to demográfico nos últimos 200 anos (hoje concen- �

Figura 1. Pessoal ocupadona agropecuária em todo

o Brasil, por posiçãona ocupação, de 1990 a 2002

PESSOAL OCUPADO NA AGROPECUÁRIA NO BRASIL

ANO TOTAL EMPREGADOR EMPREGADO TRABALHADOR TABALHADOR

POR CONTA PRÓPRIA NÃO-REMUNERADO

1990 14.911.400 4.000 5.135.200 115.200 9.657.000

1991 15.268.200 3.800 5.098.700 119.200 10.046.500

1992 15.642.100 3.600 5.063.500 123.300 10.451.700

1993 15.571.600 3.300 4.923.400 120.200 10.524.700

1994 15.365 300 3.300 4.849.600 121.500 10.390.900

1995 15.163.000 3.300 4.778.100 122.800 10.258.800

1996 13.905.800 2.700 4.502.800 115.400 9.284.900

1997 13.679.000 3.000 4.468.100 121.900 9.086.000

1998 13.292.900 2.900 4.301.600 120.000 8.868.400

1999 13.292.900 2.900 4.301.600 120.000 8.868.400

2000 13.496.100 3.000 4.735.300 117.400 8.640.400

2001 12.166.100 3.000 4.388.300 111.000 7.663.800

2002 12.508.400 2.600 4.307.400 112.700 8.085.700

FON

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agrícola em áreas de floresta.Assim, inicialmente a mata a-tlântica, depois o cerrado e hojea floresta amazônica têm sidoreduzidos para acomodar os con-flitos de terra sem que uma re-forma agrária seja efetuada nasáreas já ocupadas. Como essemesmo padrão de concentraçãofundiária repete-se nas novasáreas ocupadas, após algum tem-po são recriadas as condiçõespara novo avanço sobre áreas defloresta.

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tram mais de dois terços da população brasileira).Mas se a relação entre crescimento populacional edesmatamento fosse automática, seria esperadatambém uma redução na perda de florestas quan-do a taxa demográfica desacelerasse e, mais ainda,quando se tornasse negativa.

Infelizmente, isso não acontece. Dados sobre apopulação rural do Sudeste e do Sul do Brasilrevelam nitidamente o esvaziamento do campo.Essa população diminui desde os anos 60 nos es-tados do Sudeste, e desde os anos 70 nos estadosdo Sul (figura 2). A perda absoluta de populaçãorural nos últimos 40 anos chegou a mais de 7,5milhões de pessoas, mas o desmatamento em todosesses estados continuou a aumentar nesse período.Apenas de 1985 a 1995, a perda acumulada defloresta no Sudeste e no Sul superou 1 milhão dehectares (figura 3). Conclui-se, portanto, que apressão demográfica, por si só, não explica odeclínio da mata atlântica, pois há muito tempo apopulação rural vem diminuindo, mas o desma-tamento continua.

Outro mito que envolve o desmatamento é o deque este seria necessário para gerar empregos egarantir melhores condições de vida à populaçãoque se instala nas áreas de floresta convertidas àagropecuária. No entanto, ainda tomando como baseos estados do Sul e do Sudeste, as estatísticas nãocomprovam essa relação: houve redução de 2,4milhões de postos de trabalho na agropecuária entre1985 e 1996, apesar do já citado aumento de maisde 1 milhão de hectares de áreas desmatadas.

Um possível contra-argumento é o de que aredução de emprego rural seria inevitável, mas odesmatamento teria arrefecido essa tendência. Ouseja, a redução do emprego deveria ser menor emmunicípios com maior desmatamento. Tal questãofoi examinada no projeto de pesquisa ‘Sinais daMata Atlântica’, uma cooperação entre o Grupo deEconomia do Meio Ambiente (Instituto de Econo-mia, Universidade Federal do Rio de Janeiro) e aFundação SOS Mata Atlântica. O estudo analisoudados de 1.121 municípios inseridos no domínio

de mata atlântica nos estados do Rio Grande doSul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Ja-neiro e Espírito Santo, usando os dados dos CensosAgropecuários do IBGE (1985 e 1996) e os resulta-dos do Atlas da Evolução dos Remanescentes Flo-restais e Ecossistemas Associados da Mata Atlân-tica, da Fundação SOS Mata Atlântica, do InstitutoNacional de Pesquisas Espaciais e do InstitutoSocioambiental (períodos 1985-1990 e 1990-1995).

Em primeiro lugar foram estabelecidos ran-

kings de performance de cada um dos municípi-os, considerando as variações na atividadeagropecuária (pessoal ocupado no setor, uso dasterras para lavouras e pastagens, e efetivo debovinos) e a perda de remanescentes de mataatlântica. Os resultados mostraram claramente queinexiste uma associação positiva entre desma-tamento e geração de empregos – em geral, muni-cípios com maiores níveis de desmatamento apre-sentaram desempenho agrícola medíocre, e os demelhor performance econômica exibiram baixodesmatamento.

Um segundo estágio, mais sofisticado, testou amesma hipótese através de duas técnicas de esta-tística multivariada (análises ‘de grupamento’ e‘de discriminante’). Na dissertação do economistaMarcos T. Andrade (orientada pelo autor), os da-dos dos municípios de Santa Catarina, Paraná eRio Grande do Sul foram reunidos em apenas umabase de dados, e de novo desmentiu-se a relaçãoentre o emprego e a perda de floresta: os municí-pios com mais altas médias de desmatamento tam-bém mostraram baixa geração de empregos. Já osmunicípios com maior conversão de terras em la-voura são justamente aqueles com menor desflores-tamento. Além disso, os municípios de grandedesmatamento são, em geral, os que têm maioresmédias em aumento do número de tratores. Comose espera que isso ocorra em propriedades maiores(com maior capacidade de investir em maquina-ria), há um indicativo de que o desmatamentoseria mais extenso onde é maior a concentraçãofundiária.

VARIAÇÃO DA POPULAÇÃO RURAL NO SUDESTE E NO SUL

ESTADO 1960 A 1970 1970 A 1980 1980 A 1991 1991 A 2000

ESPÍRITO SANTO -147.583 -161.849 -39.538 -42.323

RIO DE JANEIRO -225.042 -181.571 -299.020 -39.009

MINAS GERAIS -390.615 -1.111.062 -359.794 -744.761

SÃO PAULO -1.283.720 -715.872 -505.773 163.321

PARANÁ 1.463.256 -1.268.225 -906.583 -473.386

SANTA CATARINA 214.797 -199.644 -122.590 -197.460

RIO GRANDE DO SUL 135.505 -608.375 -361.382 -273.322

Figura 2. Variação da populaçãorural (em número de indivíduos)nos estados de mata atlântica(Sudeste e Sul), em diferentesperíodos FO

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tes, já que essas fronteiras ainda estão ‘abertas’.Chama atenção, porém, a pouca demanda de mão-de-obra na atual expansão agrícola no Centro-oes-te, e já se nota leve tendência de queda dos preçosda soja em função do excesso de oferta. Ou seja,após os ganhos extraordinários pela incorporaçãode áreas de fronteira agrícola, não há porque espe-rar resultados diferentes dos vistos nas demaisregiões do país: êxodo rural e destruição contínuadas áreas de vegetação nativa.

Fica, portanto, a mensagem: as alterações pro-postas no Código Florestal, visando reduzir asáreas de conservação, irão resultar em ganhos eco-nômicos pífios, apesar do grande dano que pode-rão trazer aos ecossistemas afetados. É provável,inclusive, que ocorra o contrário: o maior desma-tamento poderá reduzir o alcance dos serviçosambientais prestados pelos remanescentes flores-tais, resultando em perda de produção e empregonas áreas rurais brasileiras.

INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

Conflitos entre a expansão industrial e o meio am-biente também costumam ser apontados nas áreasindustrial e energética. De fato, a industrializaçãobrasileira baseou-se em padrões tecnológicos deuso intensivo de recursos naturais e energia – prin-cipalmente por meio da queima de combustíveisfósseis e carvão mineral. Essa base energética estáassociada a problemas de poluição em nível global(aumento do efeito estufa e degradação da camadade ozônio), transfronteiriços (como as chuvas áci-das) e locais (degradação da qualidade dos solos,das águas e da atmosfera).

Assim, para produzir e exportar commodities

industriais (e primárias) de baixo valor agregado,

Um mito correlato é o de quea conversão da floresta para usoagropecuário é necessária para amelhoria das condições de vidada população. Nesse caso, a per-da da floresta poderia ser social-mente justificada mesmo em umcenário de esvaziamento demo-gráfico, se ocorressem ganhos emoutras esferas sociais: na renda,na educação e na habitação (me-nos gente, mas vivendo melhor).Mas é essa a realidade?

Para avaliar a questão, a eco-nomista Fernanda C. Santos, emoutra dissertação (também ori-entada pelo autor), comparou osmunicípios de maior e menor

ÁREA DESMATADA NO SUDESTE E NO SUL

ESTADO ÁREA ÁREA REMANESCENTES

DESMATADA DESMATADA (% DA ÁREA

(1985-1990) (1990-1995) ORIGINAL)

ESPÍRITO SANTO -22.484 -28.696 10,3%

RIO DE JANEIRO -165.454 -22.484 11,0%

MINAS GERAIS -69.168 -92.938 3,9%

SÃO PAULO -75.711 -63.740 9,0%

PARANÁ -156.687 -79.026 10,5%

SANTA CATARINA -106.312 -59.397 21,4%

RIO GRANDE DO SUL -57.003 -48.793 6,7%

Figura 3. Área desmatada (em hectares) em diferentes períodose percentuais de área de remanescentes de mata atlânticaem relação à área original desse bioma, nos estados das regiõesSudeste e Sul

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perda de floresta e a evolução do respectivo índicede desenvolvimento humano (IDH), que permitemedir a qualidade de vida, entre 1990 e 2000. Asconclusões repetem as anteriores: na maior partedos municípios de maior desmatamento o IDHpiorou ou manteve-se constante, em termos relati-vos. Também foi usada a técnica de ‘análise deregressão’ para avaliar a mesma correlação e o re-sultado foi igual: tomando-se o desmatamento co-mo variável explicativa e a melhoria das condi-ções de vida como variável explicada, não foi obti-da uma relação estatisticamente significativa en-tre ambos.

Enfim, os resultados desses trabalhos são claros:não há uma relação estatística entre redução dasáreas de floresta e aumento da atividade agro-pecuária em áreas do domínio de mata atlântica.Em grande parte dos municípios onde o desmata-mento foi mais acentuado no período 1985-1995/1996, observa-se um desemprego acima da médiana agropecuária. Relação semelhante, emboramenos acentuada, também foi observada para ou-tros indicadores de performance econômica, comoa área de lavouras (ou pastagens) e o tamanho dorebanho bovino.

É claro que importantes exceções ocorreram:em certos municípios, a perda de floresta foi acom-panhada por aumento em algum indicador econô-mico, em especial os ligados à expansão da pecuá-ria. Entretanto, quando isso ocorre, o ganho em umindicador econômico (área de pastagens ou reba-nho, por exemplo) costuma ser acompanhado porperda em outro indicador (área de lavouras), su-gerindo que o efeito de substituição entre usos daterra já desmatada foi significativamente maiorque o ganho de área por desmatamento.

Nos biomas cerrado e floresta amazônica, essaanálise pode, hoje, apresentar resultados destoan-

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passou-se a conviver com elevados níveis de polui-ção. Tal ‘progresso’ instala uma dupla exclusão. Aprimeira vem da distribuição desigual dos seusfrutos: as camadas mais abastadas ficam com amaior parte da renda e da riqueza geradas, e aindatêm um padrão de consumo mais elevado e maisintensivo em emissões. A segunda é a ambiental:as camadas excluídas são as que mais sofrem osefeitos da poluição (ver ‘Padrão de consumo e de-gradação ambiental no Brasil’, nesta edição).

Essa distorção resultou em uma especializaçãorelativa em produtos de baixo dinamismo tecno-lógico, que não rompeu o desequilíbrio fundamen-tal em termos da inserção do país no comérciointernacional. Como apontaram o autor e MariaCecília Lustosa, em 2001, o processo de industria-lização por substituição de importações baseou-sena idéia de que uma economia periférica não po-deria crescer sustentada apenas por produtos dire-tamente dependentes de recursos naturais (extra-ção mineral, agricultura ou outras). Esse processopossibilitou a implantação no país de uma base

industrial diversificada, mas tal avanço calcou-seno uso indireto de recursos naturais (energia ematérias-primas baratas – mais intensivas em emis-sões), e não no aumento da capacidade de gerar ouabsorver tecnologia (a chave do crescimento sus-tentado), que ficou restrita a algumas áreas. Issoresultou, em especial a partir do 2º Plano Nacionalde Desenvolvimento, em forte expansão de indús-trias de grande potencial poluidor (como as doscomplexos metalúrgico e químico/petroquímico),sem controle e tratamento dessas emissões – con-cluíram os dois economistas.

Se o processo de industrialização prevalecenteaté os anos 80 foi insuficiente para promover pro-gresso técnico e consumo de massa (levando a umcrescimento sem dependência de mão-de-obra erecursos naturais baratos), a situação se agravouainda mais com as políticas liberais adotadas nosanos 90. Diversos estudos recentes apontam o re-trocesso da estrutura produtiva brasileira, com aredução da importância relativa das atividades demaior conteúdo tecnológico, o retorno à pauta ex-portadora primária e aumento do desemprego nossetores de maior conteúdo tecnológico.

Não surpreende, portanto, que os setores in-dustriais com melhor desempenho nos anos 90sejam os de maior potencial poluidor – e que osde menor risco ambiental apresentem a piorperformance. Talvez mais importante seja aconstatação de que essa diferença de compor-tamento se acentuou ao longo dos anos 90, refor-çando os argumentos dos que identificam umaforte tendência de redivisão internacional do tra-balho, com o deslocamento gradual para a peri-feria das atividades ‘indesejáveis’, gerando confli-tos com o bem-estar das comunidades afetadaspela poluição.

O QUE ESPERAR NO FUTURO?

O cenário futuro tem que ser necessariamente pes-simista? Até agora, a questão ambiental tem sidoapresentada como um entrave ao crescimento.Ignora-se, porém, que garantir melhores condiçõesde vida (ou seja, ambiente melhor) não é só umacondição fundamental de garantir cidadania (ouseja, desenvolvimento) às camadas mais carentesda população. É também uma forma de gerar ren-da e empregos. Obras de saneamento básico, porexemplo, são grandes geradoras de emprego e qua-lidade de vida. Para isso, no entanto, é preciso umnovo modelo de política econômica, que abando-ne as metas de estabilização de curto prazo e en-foque o verdadeiro objetivo do desenvolvimento:uma vida melhor para todos. ■

SUGESTÕESPARA LEITURA

ANDRADE, M.T.N.‘É precisodesmatar paracrescer? –Evidênciasempíricas paraa região Sul doBrasil’ (Monografiade conclusão decurso – orientador:C.E.F. Young).Rio de Janeiro,Instituto deEconomia (UFRJ),2003.

SANTOS, F.C.‘Desenvolvimentoeconômico,pobreza edesmatamentono Brasil:Evidênciasempíricas paraas regiões Sule Sudeste nasdécadas de 80e 90’ (monografiade conclusão decurso – orientador:C.E.F. Young).Rio de Janeiro,Instituto deEconomia (UFRJ),2004.

YOUNG, C.E.F.‘Desmatamentoe o mito dageração deemprego rural:uma análise paraa Mata Atlântica’,in MILANO, M.S.e outros (org.),Unidades deconservação:atualidades etendências 2004,Curitiba, Ed.Curitiba/FundaçãoO Boticário deProteção àNatureza, 2004.

YOUNG, C.E.F. eLUSTOSA, M.C.J.‘Meio ambiente ecompetitividadeda indústriabrasileira’, inRevista deEconomiaContemporânea.Rio de Janeiro,v. 5, Ed. especial,2001.

YOUNG, C.E.F.e LUSTOSA, M.C.J.‘A questãoambientalno esquemacentro-periferia’,in Economia,Niterói, v. 4,nº 2, 2003.

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A derrubada de florestas para abrir novas áreasagrícolas não traz, no longo prazo, a melhoria dascondições de vida da população

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Padrão de consumoe degradaçãoambiental no Brasil

Níveis de renda mais altos podem levar a padrões de consumoambientalmente mais limpos, o que induz um de-senvolvimento tecnológico em que a degradaçãoassociada ao consumo é menos intensa. Quando, àmedida que sobe o padrão de vida, a taxa de au-mento da degradação ambiental torna-se menor quea do crescimento da renda, a degradação total dimi-nui, em termos relativos, apesar do maior consumo.

Se essa premissa estiver certa, espera-se que ocrescimento do consumo faça aumentar o nível dedegradação só até um certo nível de renda per

capita. A partir desse limite, a atividade econômi-ca já tem efeito menor no nível de degradação.Assim, a relação entre renda e degradação am-biental pode ser representada, em um gráfico, poruma curva em forma de ‘U’ invertido. Essa curvaé chamada, na literatura científica, de curva am-biental de Kuznets, em referência aos estudos pu-blicados em 1955 pelo economista norte-america-no Simon Kuznets (1901-1985). Isto é, a taxa dedegradação cresce junto com a renda até que estaatinge um valor limite, e começa a diminuir apartir daí.

A pressão de degradação ambiental gerada pelos ricos é certamente mais alta,

devido a seus níveis de consumo mais altos. Por outro lado, eles tendem a consumir

uma parcela menor de sua renda, o que leva a uma redução relativa nessa

degradação. O presente estudo é uma tentativa de tratar, no contexto da economia

brasileira, de questões como os níveis de degradação gerados por cada classe

de renda, a concentração desses níveis no país e o que aconteceria com os padrões

atuais de degradação se a desigualdade de renda fosse alterada.

Ronaldo Seroa da MottaCoordenação de Estudos de Regulação,Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (RJ)

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Tem sido bastante analisada, na literatura cien-tífica, a relação renda/degradação ambiental com-parando países em diferentes estágios de renda(deve-se observar que essa análise pode não captara evolução temporal da relação entre degradação erenda). Entretanto, são raras as análises sobre apressão de degradação originada em diferentesgrupos de renda dentro de um mesmo país. Embo-ra, na maior parte dos problemas ambientais, oemprego de novas tecnologias afete indistintamen-te a intensidade da degradação de todas as classes(o que reduz a possibilidade de se determinar umnível limite de renda), o padrão e a quantidade deconsumo em cada classe certamente variam e afe-tam diretamente o seu impacto ambiental.

Se a pressão de degradação dos ricos é certa-mente mais alta devido a seus níveis de consumomais altos, eles também tendem a usar uma par-cela menor de sua renda (menor propensão a con-sumir), o que reduz aquela pressão. Assim, é plau-sível esperar que, em um mesmo país, as mudan-ças na intensidade de degradação dependam maisda distribuição de renda e da propensão ao consu-

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mo do que de fatores tecnológicos – com isso, acurva em ‘U’ invertido pode não se manifestar.

Conhecer a tendência e a magnitude da relaçãorenda/degradação torna-se portanto um parâmetro-chave para analisar as questões do uso eqüitati-vo dos recursos ambientais que não podem serresolvidas no desenho e na aplicação das políti-cas ambientais, especialmente nos países emdesenvolvimento.

RICOS, POBRES E DEGRADAÇÃO NO BRASIL

O presente estudo – parte do projeto ‘Macroeco-nomic Policies for Sustainable Growth’ (‘PolíticasMacroeconômicas para o Crescimento Sustentável’),do Banco Mundial – é uma tentativa de tratar dasseguintes questões no contexto da economia brasi-leira: Quais são os níveis de degradação geradospor cada classe de renda? Quão concentrados estãoesses níveis? Quais serão as mudanças nesses ní-veis se a desigualdade de renda for alterada?

Para analisar os padrões de consumo para osgrupos de renda urbana no Brasil, calculamos apropensão a degradar para várias fontes de degra-dação e para 10 classes de renda urbana – deacordo com a classificação da Pesquisa de Orça-mento Familiar do Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatística para 1995-1996, baseada no salá-rio mínimo legal (faixas de 0-2, 2-3, 3-5, 5-6, 6-8, 8-10, 10-15, 15-20, 20-30 e >30) da época.

Os efeitos totais estudados foram estimados so-mando-se os efeitos ambientais das fases agrícolase industriais de produção aos efeitos do consumodireto de bens e serviços. A poluição industrial ea agrícola são realizadas para produzir bens queirão para o consumo direto – logo, cada unidade deconsumo direto tem sua poluição direta, mas tam-bém a indireta (das fases de produção industrial eagrícola).

Devido aos dados disponíveis, a análise limitou-se a duas fontes de produção (industrial e agríco-la), relacionadas com três fontes de consumo dire-to da população (transporte pessoal e coletivo, águae esgoto), e ainda a cinco principais efeitos am-bientais: 1. poluição industrial da água por maté-ria orgânica e inorgânica e poluição do ar por dió-xido de enxofre (SO2) e particulados; 2. poluiçãoagrícola pelo uso de fertilizantes; 3. poluição dotransporte domiciliar por emissões de monóxidode carbono (CO), hidrocarbonetos (HC) e óxido denitrogênio (NOx); 4. consumo domiciliar de água;e 5. descarga domiciliar de esgoto.

A intensidade de degradação é a razão entre adegradação gerada em cada fonte (como emissõespara a atmosfera, lançamento de efluentes e uso de

água e energia) e a renda familiar. Ou seja, o quantode degradação é gerado por unidade monetária deconsumo. Para chegar a essas estimativas, nas di-ferentes fontes, foram utilizados dados estatísticossobre uso de água e energia, produção de resíduose de esgoto de diversas fontes e dados sobre gastosdomiciliares da Pesquisa de Orçamento Familiar(POF). Já a propensão a degradar foi calculada, emcada uma das classes de renda, multiplicando-se aintensidade de degradação em cada fonte pelapropensão a consumir (ou seja, o percentual médioda renda que cada classe de fato consome, tam-bém com base nos dados da POF). Multiplicandoa propensão a degradar (em cada classe de renda)pela renda média familiar (da respectiva classe),obtivemos o nível de degradação total de cada do-micílio e, em seguida, esse nível em toda a classe.

Os resultados mostraram que, no Brasil, não háevidências de uma curva em ‘U’ invertido para asrelações de degradação e consumo, considerandoos níveis de pressão de degradação por classe derenda. O estudo mostrou que, em geral, a intensi-dade de degradação por domicílio tende a dimi-nuir à medida que a renda domiciliar cresce.

Encontramos apenas uma exceção – não naintensidade de degradação, mas na propensão adegradar. Essa propensão, no caso do transporteurbano, apresentou uma curva em ‘U’ invertido,em especial devido à grande redução nos níveis deemissão dos carros novos, adquiridos quase sem-pre por pessoas mais ricas. Porém, em todos oscasos (inclusive no transporte urbano) identifi-camos uma relação positiva contínua entre o nívelde degradação total do domicílio e a renda. Issosignifica que a grande concentração de renda com-pensa as taxas declinantes de propensão a consu-

Os padrõesde consumodos ricose dos pobrestêm efeitosdistintos sobrea degradaçãoambientalno Brasil

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mir e a degradar que surgem quando a renda do-miciliar aumenta. Ou seja, as famílias que têmmaiores rendas tendem a consumir e a degradarmenos, mas, no Brasil, as diferenças de rendi-mento entre essas famílias e as de classes maisbaixas são tão significativas que mais do que com-pensam essa tendência, implicando o aumento dadegradação.

Usando nossas estimativas da propensão a de-gradar para cada fonte e classe de renda, medimoscomo a pressão de degradação se concentra divi-dindo a pressão de degradação total calculada paraos 10% mais ricos pela pressão calculada para os50% mais pobres. Exceto no caso da água tratadae do esgoto coletado, serviços concentrados nosdomicílios ricos, encontramos para cada fonte ta-xas de concentração acima de 0,2. Isso demonstraque os 10% da sociedade brasileira que habita osdomicílios de classes de renda mais alta tendem(em conjunto) a degradar mais, em termos relati-vos, do que os 50% mais pobres.

DISTRIBUIÇÃO DE RENDAE DEGRADAÇÃO

Por último, analisamos de que modo a pressão dedegradação iria variar se a distribuição de rendafosse alterada no Brasil. Para isso, desenvolvemosdois cenários com base na renda transferida entreclasses para medir as mudanças na pressão de de-gradação total. O cenário progressivo supõe a trans-ferência de renda dos ricos para os pobres e oregressivo supõe o oposto.

Como esperado, a transferência regressiva au-menta a degradação, enquanto a transferência pro-

gressiva a diminui. Em ambos os casos, porém, en-contramos que, nas fontes industriais e de transpor-te, a variação da renda transferida é maior que avariação resultante da degradação total. Já nos casosde água e esgoto ocorre, como esperado, o inverso.

A alta concentração da pressão de degradação apartir do padrão de consumo das pessoas ricas acres-centa outro aspecto negativo à distribuição desigualda renda no Brasil. Em suma, os resultados de nossosestudos suscitam sérias questões distributivas paraas políticas ambientais no Brasil, a saber:

1. Embora o nível de consumo das pessoas po-bres não seja, no seu conjunto, a principal fonte dedegradação na economia brasileira, são essas famí-lias menos privilegiadas que sofrem a maior partedos impactos negativos da degradação, por sua bai-xa capacidade de realizar gastos médicos, habitarregiões menos poluídas e ter acesso a saneamento.

2. Como a pressão total da degradação se deveprincipalmente ao padrão de consumo das classesde renda mais alta, o relaxamento no controleambiental cria indiretamente um subsídio para oconsumo dos ricos, às custas dos pobres.

Entretanto, como as taxas de concentração dadegradação são mais baixas do que as taxas deconcentração da renda, quando o controle da de-gradação se tornar mais severo, as pessoas pobrestenderão a pagar mais por esse controle (por uni-dade monetária de consumo) se esses custos foremrepassados através dos preços.

Embora esses resultados ofereçam algumas indi-cações a respeito dos aspectos distributivos da de-gradação urbana no Brasil, esse é um tema que iráexigir mais esforços de pesquisa, no sentido não sóde melhorar o detalhamento da base de dados (in-cluindo mais grupos de renda e outras fontes dedegradação), mas também de analisar os efeitosmultiplicadores de cenários de distribuição de ren-da que afetem os padrões de consumo. Ou ainda,com mais rigor, trabalhar os dados domiciliares deforma econométrica, testando estatisticamente cadauma das estimativas obtidas nos estudos.

As implicações do controle ambiental sobre adistribuição de renda, aqui apontadas, são cru-ciais para a elaboração de políticas ambientaisque visem reduzir a pressão de degradação noBrasil. Para que tais implicações sejam minimi-zadas, as políticas ambientais devem incluir me-didas compensatórias para a população mais po-bre. Sob essa perspectiva, a tributação sobre a de-gradação ambiental pode vir a ser uma opção,pois sua aplicação reduz os custos de controlesocial e gera, ao mesmo tempo, receitas fiscaisque podem ser recicladas na economia para criarespaço para as políticas compensatórias direcio-nadas aos pobres. ■

E C O N O M I A

SUGESTÕESPARA LEITURA

KUTZNETS, S.‘Economic growthand incomeinequality’,in AmericanEconomic Review,v. 45(1),1955.

SEROA DA MOTTA, R.(ed.), EnvironmentalEconomics andPolicy Makingin DevelopingCountries, EdwardElgar Publishing,Cheltenhan,2001.

SEROA DA MOTTA, R.Padrão deConsumo,Distribuiçãode Renda e oMeio Ambienteno Brasil,Texto paraDiscussão 856,Ipea-Rio, 2002.

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O aquecimento globale o papel do Brasil

A superfície da Terra está cerca de 0,6°C mais quente hoje do que há 100 anos.

É muito provável que a maior parte desse aquecimento seja decorrente da emissão,

por atividades humanas (queima de combustíveis fósseis, desmatamento e outras),

de gases que retêm radiação térmica – o chamado ‘efeito estufa’. Se não houver

um gigantesco esforço para reduzir essa emissão, é quase certo que o clima

do planeta venha a se alterar, com aumento da ocorrência de fenômenos climáticos

extremos, o que pode ter drásticas conseqüências para todos os seres vivos.

O Brasil pode contribuir para esse esforço adotando e tornando efetivas políticas

públicas que reduzam queimadas e desmatamentos, nossa maior fonte de emissões,

em especial na Amazônia.

Carlos A. NobreCentro de Previsão de Tempoe Estudos Climáticos,Instituto Nacionalde Pesquisas Espaciais (SP)

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Uma das atividades do Ano Geofísico Internacional, trans-corrido durante 1957 e 1958, foi a instalação deuma estação para monitorar a concentração dedióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Isso foifeito no Havaí (Estados Unidos), em Mauna Loa,montanha vulcânica situada no meio do oceanoPacífico e, portanto, longe de qualquer fonte depoluição. As primeiras medições revelaram umteor de cerca de 315 partes por milhão em volume(ppmv) de gás carbônico da atmosfera (0,0315%da massa total desta). Esse valor chamou a atençãoda comunidade científica à época, pois se sabiaque, no século 19, a concentração desse gás era decerca de 280 ppmv. Desde então, a concentraçãode CO2 não parou de crescer: chegou a 376 ppmvno final de 2003 e continua subindo entre 1,5 e2,5 ppmv por ano.

A preocupação mundial com a concentração dodióxido de carbono decorre do que se sabe, desdeo final do século 19, sobre as propriedades físicasda atmosfera. As moléculas de alguns gases quetêm baixíssimas concentrações na atmosfera –dióxido de carbono, vapor d’água (H2O), metano(CH4), óxido nitroso (N2O), ozônio (O3) – interagemcom a radiação eletromagnética na faixa do espec-tro conhecida como infravermelho termal e comisso dificultam a perda para o espaço da radiaçãotérmica, aquecendo a superfície do planeta. É ochamado ‘efeito estufa’.

Esses gases são fundamentais para manter oequilíbrio climático e condições ambientais ade-quadas para a vida na Terra – temperaturas quepermitam a existência de água na forma líquida(essencial à vida) e gasosa (essencial ao ciclohidrológico). Até o início da Revolução Industrial,no final do século 18, as concentrações de CO2 naatmosfera flutuaram entre 180 e 280 ppmv duran-te cerca de 20 milhões de anos. Bolhas de ar apri-sionadas nas geleiras da Antártida, que permitemestudar como era a atmosfera da Terra nos últimos800 mil anos, revelam que nesse longo período oteor desse gás não ultrapassou 300 ppmv.

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O atual crescimento dessa concentração derivada injeção na atmosfera, por ano, de cerca de 8 a9 bilhões de toneladas de carbono (na forma deCO2), pela queima de combustíveis fósseis, produ-ção de cimento e mudanças nos usos da terra,principalmente os desmatamentos das florestastropicais, além da emissão de outros gases de efei-to estufa. Do total injetado, cerca de 3,2 bilhões detoneladas permanecem na atmosfera e o resto éreabsorvido pelos oceanos e pelas plantas. A con-centração atmosférica de outros gases do efeitoestufa, como metano e óxido nitroso, também vemcrescendo, até mais rapidamente que a do CO2.

Outro gás de efeito estufa importantíssimo é ovapor d’água, mas seu teor na atmosfera é essen-cialmente controlado pela temperatura na superfí-cie. Entretanto, o progressivo aumento da tempe-ratura na baixa troposfera está aumentando a pro-dução de vapor d’água, criando um forte mecanis-mo de retroalimentação positiva do efeito estufa:maiores temperaturas implicam maior quantidadede vapor d’água, que induz efeito estufa adicionale, daí, aquecimento, reiniciando o ciclo.

Alguns dos gases que aquecem a superfície têmvida muito longa na atmosfera. A vida média doCO2, por exemplo, supera os 100 anos, e 15% dessegás perduram por até cinco milênios na atmosfera.Por outro lado, a maioria dos agentes que resfriama superfície (tipicamente partículas de aerossóisresultantes de poluição urbana e industrial de sul-fatos ou da queima de biomassa, que refletem parteda radiação solar) é rapidamente eliminada da at-mosfera, tendo vida média entre cinco e 15 dias. Olongo tempo de vida do CO2 na atmosfera traz maispreocupações. Mesmo se o teor atual desse gás naatmosfera fosse ‘congelado’, ele ainda afetaria osistema climático por muitos séculos, e o aqueci-mento continuaria. Nessa hipótese, estima-se que oaquecimento seria de 0,6°C a 0,8°C até o final doatual milênio, sendo que metade ocorreria até ofinal deste século, provocando até 2100 um aumen-to de até 8 cm no nível do mar.

A temperatura média global na superfície doplaneta elevou-se de 0,6°C a 0,7°C nos últimos 100anos, com acentuado aumento desde os anos 60.Os três anos mais quentes dos últimos mil anos dahistória da Terra aconteceram na última década.Hoje, as análises sistemáticas do Painel Intergo-vernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), quesintetizam o conhecimento científico sobre o sis-tema climático, levam a um razoável consenso deque o aquecimento global observado nos últimos50 anos é explicado principalmente pelas emis-sões humanas de gases de efeito estufa e de aerossóise não por eventual variabilidade natural do clima.Os aerossóis de origem humana podem mesmo

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estar ‘represando’ parte do aquecimento, já que seassume que seu efeito é o de resfriar a superfície,embora restem incertezas a esse respeito. Como osaerossóis são associados à poluição urbana e a efei-tos nocivos à saúde, a tendência global é a reduçãode sua emissão, o que removeria esse ‘represa-mento’. O efeito de aquecimento dos gases, então,poderá se intensificar.

A menos que ações globais de controle dasemissões de gases do efeito estufa sejam efetivadasnas próximas décadas, a demanda futura de ener-gia, em especial nos países em desenvolvimento(na medida de sua expansão econômica), ocasiona-rá alterações climáticas significativas, como umaumento das temperaturas entre 1,5°C e 4,5°C atéo final do século, acompanhado de fortes e pertur-badoras mudanças no ciclo hidrológico em todo oplaneta. As emissões teriam que diminuir cercade 60% para estabilizar as concentrações dos gasesem níveis menos perigosos para o clima.

Os países em desenvolvimento, historicamentemenos capazes de responder à variação natural doclima, são os mais vulneráveis às futuras altera-ções. O Brasil, sem dúvida, pode ser duramenteatingido, já que sua economia é fortemente depen-dente de recursos naturais ligados diretamente aoclima, como na agricultura e na geração de ener-gia hidrelétrica. Mudanças climáticas afetariamainda vastas parcelas das populações de menorrenda, como as do semi-árido nordestino ou as quevivem em área de risco de deslizamentos, enxur-radas e inundações nas grandes cidades.

O BRASIL NO ESFORÇODE REDUÇÃO DAS EMISSÕES

Qual poderia ser a contribuição brasileira ao en-frentamento da questão? Pode-se ter desenvolvi-mento social, econômico e ambientalmente susten-tável e ao mesmo tempo reduzir as emissões dosgases de efeito estufa?

Ainda que o Brasil, segundo a Convenção dasNações Unidas sobre Mudanças Climáticas, nãotenha compromissos quantitativos de redução des-sas emissões, está, como todos os demais países sig-natários, comprometido com a estabilização dos ga-ses do efeito estufa em níveis que assegurem a ha-bitabilidade do planeta. O IPCC, em seu relatóriode 2001, estima de modo subjetivo que a Terra es-taria em condições ‘climaticamente seguras’ en-quanto a temperatura global à superfície não au-mentar 2°C em relação ao nível anterior à acele-ração das emissões humanas desses gases.

As emissões brasileiras atuais de CO2 concen-tram-se em dois setores: (1) na queima de combus- �

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tíveis fósseis, que libera por ano de 80 a 90 milhõesde toneladas de carbono; e (2) na alteração dos usosda terra, principalmente a substituição de flores-tas e savanas por agricultura e pastagem, que libe-ra anualmente de 200 a 250 milhões de toneladasde carbono. O segundo setor responde por 65% a75% das emissões totais brasileiras de CO2, quetornam o país responsável por algo em torno de 4%das emissões globais. É um percentual pequeno, emcomparação com os principais países emissoresdesse gás (Estados Unidos, Rússia, China e Japão),mas ainda assim há claras possibilidades de redu-ção dessas emissões.

Como visto, desmatamentos são a principal causadas emissões brasileiras. Sabe-se que muitas ati-vidades que direta ou indiretamente contribuemna derrubada da vegetação nativa são ilegais. Amaioria dos desmatamentos e queimadas que ocor-rem todos os anos na Amazônia, por exemplo,não tem autorização dos órgãos de meio ambiente(federal ou estaduais). O mesmo acontece na ex-ploração predatória de madeira. A aplicação efe-tiva e sistemática da legislação teria um efeito pro-fundo, reduzindo a área desmatada e, assim, di-minuindo muito as emissões brasileiras.

A posição da diplomacia brasileira nas nego-ciações referentes à Convenção sobre as MudançasClimáticas e a seu Protocolo de Kyoto tem coloca-do grande peso em (corretamente) responsabilizaros países desenvolvidos pelas emissões históricas epresentes e cobrar destes compromissos de redu-ção significativa de suas emissões. Entretanto, se-ria interessante o país assumir um papel autôno-mo relevante na questão da mitigação, criando con-dições para reduzir as emissões brasileiras, ondeisso fosse possível, sem afetar o desenvolvimentode melhores condições econômicas e sociais paraa população, que exigirá aumento do consumo deenergia per capita.

No reflorestamento, uma das modalidades in-cluídas entre os Mecanismos de DesenvolvimentoLimpo, previstos no Protocolo de Kyoto, o Brasilexibe gigantesco potencial, bastando utilizar áreasdegradadas e marginais para criar ‘sumidouros’ degases do efeito estufa, principalmente CO2 (queseria assimilado pelas florestas em crescimento,através da fotossíntese). Seriam necessários, no en-tanto, projetos de reflorestamento cobrindo enormesextensões (dezenas de milhares de quilômetros qua-drados) para retirar da atmosfera uma quantidadesignificativa de carbono.

Em comparação, políticas públicas que impo-nham o cumprimento mais eficaz da legislaçãoatual, principalmente o Código Florestal e osZoneamentos Ecológico-Econômicos, podem porsi só reduzir as taxas de reflorestamento em, no

mínimo, 10%. Já que o aumento anual de desma-tamento na Amazônia brasileira ficou entre 1,8 e2,3 milhões de hectares nos últimos cinco anos,uma diminuição de 10% faria com que as emissõesbrasileiras anuais de carbono caíssem em cerca de30 milhões de toneladas. Reduzindo os desma-tamentos na Amazônia, apenas pela aplicação dasleis florestais e ambientais, o Brasil se engajaria demodo construtivo ao objetivo maior da Convençãosobre Mudanças Climáticas, de estabilizar as con-centrações dos gases do efeito estufa em níveis quenão sejam perigosos ao sistema climático da Terra.

Esse posicionamento é totalmente coerente comos planos governamentais para a Amazônia (PlanoAmazônia Sustentável, Plano de Combate ao Des-matamento, Br-163 Sustentável e outros), todos pre-conizando grande redução dos desmatamentos equeimadas ilegais através de políticas públicasvoltadas para o maior cumprimento das leis (inclu-sive com uma massiva regularização fundiária) epara a exploração sustentável dos produtos flores-tais. Tecnologias de aproveitamento desses produ-tos, das mais simples até a biotecnologia, podemagregar valor a uma economia de base florestal,reduzindo a pressão sobre a floresta primária.Sistemas agroflorestais ainda fornecem outros ser-viços ambientais, além de estocar e seqüestrarcarbono, como manter a qualidade da água, esta-bilizar o ciclo hidrológico, reduzir a erosão, man-ter uma variedade de polinizadores úteis à agricul-tura e moderar os extremos climáticos.

Em suma, a diminuição dos desmatamentos equeimadas ilegais na Amazônia acrescenta umnovo componente aos já conhecidos benefícios depreservação da qualidade ambiental e qualidade devida das populações locais: uma importante con-tribuição brasileira ao esforço mundial de reduçãodas emissões de gases de efeito estufa visando re-duzir o perigo das mudanças climáticas. Por maisárduo que seja o caminho para atingir essa meta,uma atitude assim somente teria vencedores: apopulação, o país e o planeta. ■

C L I M A T O L O G I A

SUGESTÕESPARA LEITURA

HOUGHTON, J.T.; DING,Y.; GRIGGS, D.J.;NOGUER, M. ; VANDER LINDEN, P.J. &XIAOSU, D. (eds.).Climate Change: thescientific basis –Contribution ofWorking Group I tothe ThIrdAssessment Reportof theIntergovernamentalPanel on ClimateChange (IPCC),CambridgeUniversity Press,2001.

MCCARTHY, J.J.;CANZIANI, O.F.;LEARY, N.A.;DOKKEN, D.J. &WHITE, K.S (eds.).Climate Change:impacts, adaptation& vulnerability –Contribution ofWorking Group II tothe ThirdAssessment Reportof theIntergovernamentalPanel on ClimateChange (IPCC),CambridgeUniversity Press,2001.

METZ, B.; DAVIDSON,O.; SWART, R. & PAN,J. (eds.). ClimateChange: mitigation– Contribution ofWorking Group III tothe ThirdAssessment Reportof theIntergovernamentalPanel on ClimateChange (IPCC),CambridgeUniversity Press,2001.

(Os três textos acimaestão disponíveisem http://www.ipcc.ch/pub/reports.htm)

A derrubadade florestas,muitas vezesseguida porqueimadas,responde poraté três quartosdas emissõesbrasileirasde gases-estufa

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Gases de efeito estufaem hidrelétricas da Amazônia

Quem abre uma garrafa de refrigerante vê minúsculas bolhas emer-girem do líquido. Nesse caso, o gás carbônico (CO2)está dissolvido na água, que compõe a maior parteda bebida. A solubilidade do gás é mais alta sobpressão na garrafa fechada do que quando ela éaberta, de acordo com o princípio químico conheci-do como Lei de Henry, que estabelece que a solu-bilidade de um gás em um líquido é diretamenteproporcional à pressão parcial do gás. Os mergulha-dores, vale lembrar, estão familiarizados com ofato de que a queda súbita de pressão pode liberarbolhas de nitrogênio no sangue, pondo em risco avida daqueles que sobem rapidamente à superfí-cie da água.

No caso da água que emerge do fundo de umahidrelétrica, o efeito da pressão age em conjuntocom o efeito da temperatura (segundo o Princípiode Le Châtelier, o aquecimento da água tambémreduz a solubilidade dos gases nela dissolvidos).O efeito causado pela liberação da pressão é gran-de e imediato, mas requer um curto período detempo para que o Princípio de Le Châtelier seestabeleça e a temperatura se reequilibre.

A diferença de pressão entre uma garrafa derefrigerante fechada e aberta é pequena se compa-

Os chamados gases-estufa, entre os quais se destacam o dióxido de carbono

e o metano (também conhecido como ‘gás do pântano’), dificultam a dissipação

da radiação refletida pela Terra. Embora a discussão sobre as reais conseqüências

do aumento da concentração desses gases na atmosfera seja polêmica, é provável –

caso as emissões se mantenham nos níveis atuais – que no futuro o planeta enfrente

catástrofes ocasionadas por mudanças climáticas. Ao apresentar neste artigo dados

sobre o lançamento de gases-estufa por hidrelétricas da Amazônia brasileira,

o autor traz importante contribuição para um debate imparcial do tema.

Philip M. FearnsideInstituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

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rada à pressão no fundo do reservatório de umahidrelétrica. A 34,6 m (profundidade das tomadasd’água das turbinas na hidrelétrica de Tucuruí), apressão é alta (aproximadamente três atmosferas).A 10 m há uma estratificação da água em camadasde temperaturas diferentes: a água mais fria dascamadas baixas não se mistura com a água maisquente das camadas superiores, impedindo o mo-vimento do CH4 (metano) para a superfície.

O METANO

À medida que a profundidade aumenta na colunad’água, a concentração de CH4 também aumenta(figura 1). No reservatório de Tucuruí, a concen-tração desse gás a 30 m de profundidade era, emmarço de 1989, de 6 mg por litro de água (mg/l),uma estimativa conservadora para a concentraçãonessa época do ano a 34,6 m. O valor sobe para 7,5mg/l após ajuste para o ciclo anual, com base emmedidas tomadas pela equipe de Corinne Galy-La-caux na represa de Petit Saut (Guiana Francesa).

Os dados desse reservatório, onde se tomammedidas ao longo de todo o ano, são mais comple- �

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tos que os relativos às hidrelétricas da Amazôniabrasileira. Embora os dados de Petit Saut possamser usados para ajustar valores pontuais brasilei-ros, com base em números relativos (percentagens),não se pode lançar mão de valores absolutos porcausa da diferença de idade entre os reservatórios.

Logo que a água emerge das turbinas, a pressãocai até o nível de uma atmosfera, e a maior parte dogás nela dissolvido é imediatamente liberada. A águacolhida no fundo de um reservatório e trazida até asuperfície em um frasco de amostragem espumafeito refrigerante quando ele é aberto. Gases assimliberados incluem o CO2 e o CH4. Embora presentena água em menor quantidade que o CO2, o CH4 éque torna as hidrelétricas uma preocupação no quese refere ao aumento do efeito estufa.

O metano também é liberado no percurso daágua pelo vertedouro, onde a liberação de gás écausada não só pela mudança de pressão e tempe-ratura, mas também pela provisão súbita de umavasta área da superfície, quando a água é pulveri-

zada em pequenas gotas. No vertedouro da hidre-létrica de Tucuruí, a água sai em um jato a partirde uma fenda horizontal estreita a 20 m de pro-fundidade. Nessa profundidade a água tem umacarga significativa de metano: 3,1 mg/l, em média,ao longo do ano.

Em forma de salto de esqui, o vertedouro foiprojetado para maximizar a oxigenação do rio ajusante da barragem (figura 2). Em conseqüência,o metano presente na água é imediatamente libe-rado. Considerando que 353,6 trilhões de litrosd’água, em média, passam anualmente pelas tur-binas e vertedouros da barragem de Tucuruí, ve-rifica-se que a quantidade de CH4 exportada poressas estruturas é tremenda.

Levando-se em conta as suposições relativas àspercentagens de CH4 liberadas dessa água, em 1991foi lançado um total de 0,7-1,2 milhão de tonela-das de CH4 em Tucuruí, o equivalente a 4-7,1milhões de toneladas de carbono na forma de CO2,computado com base no potencial de aquecimentoglobal de 21, adotado para o metano pelo Protocolode Kyoto – isso significa que cada tonelada de CH4

tem, sobre o aquecimento global, o impacto de 21toneladas de CO2. A equivalência é conservadora,já que cálculos atuais do Painel Intergovernamentalde Mudanças Climáticas indicam um valor de 23para o potencial de aquecimento global do metano,o que aumentaria o impacto da emissão desse gáspelas hidrelétricas em 12% em relação aos valoresadotados pelo Protocolo de Kyoto. Há propostas al-ternativas para o cálculo da equivalência entre osdiferentes gases, mas os cálculos aqui apresentadosse baseiam na metodologia adotada pelo Protocolode Kyoto, por ser internacionalmente aceita.

A pressão parcial do CH4 na atmosfera é muitobaixa: 1,5 × 10-6 (em cada milhão de moléculaspresentes no ar, apenas 1,5, em média, é de me-tano). Dada a constante da Lei de Henry para o me-tano, o equilíbrio de CH4 à pressão de uma atmos-fera e à temperatura de 25oC é de apenas 0,035mg/l. Quando a água emerge das turbinas de Tu-curuí com uma concentração de 7,5 mg de metanopor litro, 99,5% se perdem em razão do efeitocombinado da queda da pressão, até o nível deuma atmosfera, e da elevação da temperatura, atécerca de 25oC. O papel da temperatura nesse pro-cesso pode ser visto a partir da relação entre atemperatura e a solubilidade de CH4: um aumentona temperatura de 15oC para 25oC, por exemplo,reduz a solubilidade de CH4 na água em 18,3%.

Figura 2. Em forma de salto de esqui,o vertedouro da hidrelétrica de Tucuruí oxigenaa água mas simultaneamente libera metano

Figura 1. Perfil da concentração de metano (CH4)na usina hidrelétrica de Tucuruí em março de 1989,com ajuste para um ciclo anual

FON

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DIS

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solo erodido e de carbono orgânico dissolvido quealcança o rio a partir do lençol freático. O carbonode CO2 derivado da fotossíntese no reservatório éapenas reciclado da atmosfera; o proveniente daterra firme está sujeito a decomposição aeróbica.

O carbono da represa que não é oxidado podedepositar-se em sumidouros (como os sedimentosdo fundo do reservatório), a jusante (na várzea oufoz) ou em sedimentos oceânicos, podendo aindapermanecer como carbono orgânico dissolvido porum longo período. A remoção de carbono por de-posição no reservatório não pode ser vista comobenefício, uma vez que o carbono dos sedimentosprovavelmente ter-se-ia acumulado em outros su-midouros na ausência de barragens.

No cálculo do impacto líquido causado por re-servatórios, deve-se levar em conta o CO2 liberadopela decomposição de partes das árvores inunda-das que se projetam para fora d’água (figura 3).Após o enchimento do reservatório, a quantidadede carbono envolvida é significativa na primeiradécada. Uma estimativa das emissões dessa fontefeita pelo autor deste artigo durante o ano de 1990indicou um total de 10 milhões de toneladas decarbono para as represas da Amazônia brasilei-ra: 2,55 em Tucuruí; 6,43 em Balbina; 1,13 emSamuel; e 0,01 em Curuá-Una.

Figura 3. Vista parcial do lago da hidrelétricade Samuel, em Rondônia, 13 anos após o fechamentoda barragem. Partes de árvores mortas permanecemacima da água, e a decomposição dessa biomassalibera CO2, sobretudo na primeira década apósa formação da represa

C L I M A T O L O G I A

Algumas estimativas do impacto de hidrelétri-cas consideram desprezíveis as emissões de gasespelas turbinas e vertedouros, com base na medidado fluxo de gases na superfície da água, feitas devárias centenas de metros a várias dezenas dequilômetros a jusante da barragem. Infelizmentepara o ambiente, a liberação de gás da água queemerge das turbinas ocorre em questão de segun-dos. O fato de que pouco ou nenhum metano sejaliberado rio abaixo é irrelevante. A quantidade deCH4 liberado nas turbinas e no vertedouro é ade-quadamente calculada por meio da diferença en-tre a concentração de CH4 na água à profundidadeda tomada d’água das turbinas atrás da barrageme a concentração na água do rio a jusante da bar-ragem. Como o novo equilíbrio é alcançado rapi-damente, logo que a água emerge das turbinas, nãohá tempo para as bactérias reduzirem o CH4 a CO2

antes de o gás ganhar a atmosfera.Com o sobe-e-desce do nível de água, inundan-

do e expondo grandes áreas de terra ao redor damargem, as represas se tornam verdadeiras fábri-cas de metano. A vegetação cresce depressa nalama exposta e se decompõe em condições anae-róbicas no fundo do reservatório quando a águavolta a subir. Isso converte gás carbônico atmosfé-rico em metano, com um impacto muito maiorsobre o efeito estufa do que o CO2 retirado daatmosfera por ação das plantas (21 vezes mais portonelada de gás ou 7,6 vezes mais por tonelada decarbono). A emissão natural desse gás ao longo deum rio sem barragens é pequena se comparada àemissão de um reservatório.

O DIÓXIDO DE CARBONO

A emissão de gás carbônico de reservatórios é bas-tante diferente da emissão de metano no que serefere ao impacto líquido sobre o efeito estufa.Diferente do metano, só uma porção do gás car-bônico emitido pode ser considerada impactante,pois grande parte do fluxo de CO2 é cancelada pormeio de absorções que ocorrem no reservatório. Ometano não entra em processos fotossintéticos,embora seja reduzido lentamente a CO2, que podeser removido na fotossíntese. Durante os cerca de10 anos que cada molécula de metano permanecena atmosfera, o efeito estufa que isso causa deve serconsiderado um impacto líquido da represa.

O CO2 liberado na superfície do reservatório,bem como o CO2 liberado em turbinas e verte-douros, não pode ser considerado emissão líquida.O carbono desse CO2 terá entrado na água a partirde fontes de fotossíntese no reservatório, comofitoplâncton e macrófitas, de material orgânico e

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C L I M A T O L O G I A

Em Tucuruí, o impacto total das emissões esumidouros dos diferentes gases de efeito estufasomava em 1990 (seis anos após o fechamento dabarragem) o equivalente a 7-10,1 milhões de tone-ladas de carbono de CO2. Um cenário ‘alto’ e outro‘baixo’ refletem uma larga faixa de incerteza, quese deve sobretudo às suposições acerca da percen-tagem de CH4 liberada pelas turbinas (figura 4).

A magnitude dessa emissão pode ser entendidapor comparação com a que se verifica na cidadede São Paulo. Em 1990, o Brasil emitiu 53 milhõesde toneladas de carbono de combustíveis fósseis,segundo cálculos do especialista em energia Emí-lio La Rovere, da Universidade Federal do Rio deJaneiro. Portanto, a emissão de 7-10,1 milhões detoneladas de carbono equivalente a CO2 de Tucuruíem 1990 representava de 13% a 19% da emissãode combustível fóssil produzida na época pela po-pulação do país (170 milhões de habitantes). Aemissão de Tucuruí era de 1,3 a 1,9 vezes maiorque a do combustível fóssil queimado pelos 17milhões de habitantes da área metropolitanade São Paulo (10% da população brasileira). ■

GÁS FONTE DE EMISSÃO C EQUIVALENTE A CO2

CONTRIBUIÇÃO

(MILHÕES DE T)*

RELATIVA (%)

CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO

‘ALTO’ ‘BAIXO’ ‘ALTO’ ‘BAIXO’

CH4

EBULIÇÃO + DIFUSÃO 0,537 0,537 5% 8%

DECOMPOSIÇÃO ACIMA D’ÁGUA 0,003 0,003 0,03% 0,04%

PERDA DE SUMIDOUROS NO SOLO DA FLORESTA 0,001 0,001 0,01% 0,01%

PERDA DE CUPINS DA FLORESTA -0,015 -0,015 -0,15% -0,22%

TURBINAS 4,023 0,945 40% 13%

VERTEDOURO 3,066 3,066 30% 44%

CH4 TOTAL 7,61 4,54 75% 64%

CO2

DECOMPOSIÇÃO ACIMA D’ÁGUA**

2,55 2,55 25% 36%

DECOMPOSIÇÃO ABAIXO D’ÁGUA 0,03 0,03 0,30% 0,43%

PERDA DE ABSORÇÃO DA FLORESTA 0,06 0,06 1% 1%

CO2 TOTAL 2,64 2,64 26% 38%

N2O*** PERDA DE FONTES NO SOLO DA FLORESTA -0,14 -0,14 -1% -2%

TOTAL 10,11 7,03 100% 100%

*Potencial de aquecimento global de CH4 = 21; N

2O = 310.

**Baseada na decomposição acima do solo, em área de floresta derrubada para implantação de atividades agropecuárias.***Óxido nitroso.

Figura 4. Emissões de gases-estufa na hidrelétricade Tucuruí em 1990. Os componentes são de anosdiferentes: áreas de hábitat e níveis de água(1988); emissão por unidade de área por ebuliçãoe difusão (1996-1997); fluxos de água das turbinase do vertedouro (1991); conteúdo de CH4 na água(1989); emissões de decomposição (1990)

HIDRELÉTRICAS E OUTRAS FONTESDE ENERGIA: UMA COMPARAÇÃO

Emissões de várias fontes se concentram no inícioda vida de uma hidrelétrica, e o efeito estufa queprovoca para gerar energia tem um perfil temporalbem diferente do perfil das emissões causadas pelaprodução da mesma quantidade de energia a partirde combustíveis fósseis. As emissões em uma bar-ragem ocorrem até vários anos antes de ela começara produzir energia, resultando também da fabrica-ção de cimento e aço empregados na sua constru-ção. A liberação de CO2 pela decomposição de ár-vores mortas acima da água e do CH4 resultante dadecomposição das partes macias da vegetação ini-cial e das macrófitas é mais alta nos primeiros anos,após o enchimento do reservatório. Qualquer pon-deração das emissões por tempo (atualmente nãoincluídas no Protocolo de Kyoto) favoreceria a alter-nativa dos combustíveis fósseis, em comparação coma geração de energia hidrelétrica.

Mesmo sem considerar as emissões decorrentesda construção da barragem e as ponderações acer-ca do tempo, é expressiva a emissão de gases deefeito estufa por hidrelétricas amazônicas. Isso seaplica não só a barragens com potência muito baixapor área inundada, como Balbina e Samuel (ver“Balbina: lições trágicas na Amazônia”, em Ciên-

cia Hoje no 64), mas também a barragens comoTucuruí, cuja potência por metro quadrado inun-dado é superior à média das barragens planejadasna Amazônia em geral.

SUGESTÕESPARA LEITURA

FEARNSIDE, P.M.‘Greenhousegas emissionsfrom Amazonianhydroelectricreservoirs:

The exampleof Brazil’s TucuruíDam as comparedto fossil fuelalternatives’, in

EnvironmentalConservation,24: 64-75,1997.

FEARNSIDE, P.M.‘Greenhouse gasemissions froma hydroelectricreservoir (Brazil’s

Tucuruí Dam) andthe energy policyimplications’,in Water,Air and SoilPollution,

133: 69-96,2002.

FEARNSIDE, P.M.‘Greenhouse gasemissions fromhydroelectric dams:controversies

provide aspringboard forrethinking asupposedly “clean”energy source’,in Climatic

Change (no prelo).GALY-LACAUX, C.,

DELMAS, R.,KOUADIO, J.,RICHARD, S., &GOSSE, P.‘Long-termgreenhouse gasemissions fromhydroelectricreservoirsin tropical forestregions’,in GlobalBiogeochemicalCycles,13: 503-517,1999.

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Quanto custa a água gratuita que o setor produtivo utiliza em seudia-a-dia? Quanto a sociedade brasileira paga pelagratuidade desse recurso mineral que muitos en-tendem como uma dádiva da natureza ao homem?

Durante séculos, a humanidade considerou aágua como algo inesgotável. Seu controle signifi-cou poder, desenvolvimento e conforto para inúme-ras sociedades. Alguns exemplos clássicos do usoda água na Antiguidade são as civilizações da Meso-potâmia (rios Tigre e Eufrates), do Egito (rio Nilo)e da China (rio Amarelo), e a antiga Roma (na‘cidade das águas’ alimentada pelos aquedutos).

A gradativa sofisticação do mundo nos últimosséculos também modificou a relação do homemcom a água. A dependência humana em relaçãoaos bens de consumo, cada vez mais sofisticados,aumentou vertiginosamente a demanda da água.Há 200 anos, a maioria dos lugares habitados eracapaz de satisfazer toda a necessidade de água dasociedade local e de absorver toda a poluição lan-

As populações humanas vêm usando a água doce,

desde tempos imemoriais, como se esse recurso fosse inesgotável.

A partir de meados do século 20, porém, cresce em todo o mundo

a consciência de que a água em condições de uso torna-se

cada vez mais escassa, em função do crescimento populacional,

do intenso uso industrial e agrícola e do acelerado aumento da poluição

de rios e lagos. Essa consciência precisa ganhar força no Brasil,

onde as culturas do desperdício e da água gratuita e a falta de investimentos

em saneamento tornam crítica a situação dos recursos hídricos em algumas áreas.

Paulo Canedo de MagalhãesLaboratório de Hidrologia,Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia,Universidade Federal do Rio de Janeiro

O custo daágua gratuita

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çada em seu meio ambiente, sem deixar rastrosmuito significativos.

Atualmente, a situação sofreu uma inversãodrástica. A água, que sempre serviu como base naprodução de alimentos e de lazer para o homem,e como insumo básico do setor produtivo, é cadavez mais insuficiente e poluída. Hoje, poucos luga-res habitados ainda têm uma relação despreocupa-da com a água. Em muitos locais, ou os recursoshídricos são usados com racionalidade e preocupa-ção, ou a população pagará, em breve, um elevadotributo ao descaso.

Após a Revolução Industrial, em especial apósa Segunda Guerra Mundial, vários países começa-ram a identificar problemas em suas águas e tive-ram que resolver conflitos entre usuários desserecurso. O mundo entrou em um período em queefluentes industriais e esgotos domésticos acele-raram a degradação das águas dos rios. Um perío-do marcado pelo desmatamento e pela ocupação

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Figura 1. A água salgadarepresenta 97,5 % do volumetotal de água na Terra,enquanto a água docerepresenta apenas 2,5 %desse volume

H I D R O L O G I A

desordenada dos solos, que intensificam as enchen-tes e as doenças transmitidas através da água. Umperíodo em que o crescimento populacional exigeo aumento na produção de alimentos, o que de-manda mais água. O mundo, portanto, vive umanova era, na qual a água passou a ocupar um papelde extrema relevância nas políticas públicas: a erado ‘ouro azul’.

A ÁGUA NO PLANETA

É importante salientar que, embora a água sejaabundante no planeta, é pequena a sua disponibi-lidade para o homem. Os cerca de 1,4 1018 litrosde água existentes na Terra são praticamente imu-táveis no tempo, mas a maior parte (97,5%) dessaágua é salgada e inadequada ao uso, sem um tra-tamento dispendioso. A água doce corresponde apouco mais de 2,5% do volume total desse recurso,mas 69,5% dela está congelada e 30,1% está nosubsolo. Enfim, descontados também os pântanosinsalubres e a água atmosférica, apenas umapequenina parcela da água existente – 0,27% – seapresenta sob uma forma facilmente utilizável pelohomem, em rios e lagos (figura 1).

O subsolo, principalmente o subsolo profundo,contém quase 100 vezes mais água do que a super-fície. No entanto, o uso adequado dessa água re-quer tecnologia avançada de investigação hidro-geológica e de perfuração de poços.

O tempo necessário para que uma gota da águasuperficial escoe até o oceano é medido em dias,enquanto o tempo de residência da água em umaqüífero profundo pode chegar a muitos anos.Portanto, a circulação global de água na nature-za não depende apenas do volume desse recursoarmazenado em cada componente do ciclo, mastambém do seu período de renovação. De qual-quer forma, a demanda total de água no mundoé muito inferior à disponibilidade. Em nível glo-

bal, não há propriamente uma escassez hídrica, esim uma má distribuição espacial e temporal daágua, que, somada à distribuição irregular dapopulação humana na Terra, faz com que algu-mas regiões sofram permanentemente com a faltadesse recurso.

A atividade dos pouco mais de 6 bilhões dehabitantes da Terra vem extenuando os recursoshídricos da grande maioria das bacias hidrográfi-cas densamente povoadas. Se aceitarmos que, em2050, a população mundial se estabilizará em tornode 11 bilhões de pessoas, é fácil entender as gra-víssimas conseqüências para o homem caso estenão altere drasticamente a relação que vem tendocom a água.

A disponibilidade de água por habitante variamuito entre os países. Alguns contam com enor-mes reservas hídricas (como o Canadá, apesar dasgeleiras) e outros quase não têm água (como a Jor-dânia) (figura 2). Os países do Oriente Médio, ondeo petróleo é abundante, contam com cerca de 1%da água doce renovável do planeta para sustentar5% da população mundial – o que anuncia asdificuldades que terão nas próximas décadas. Umagravante, nessa região, é o fato de que a maiorparte da água disponível em cada país tem suaorigem fora de suas fronteiras ou em regiõeslimítrofes.

Outros países têm boa disponibilidade hídricamédia por habitante, como o Brasil, que possui umadas maiores reservas hídricas do planeta. Entretan-to, como a maior parte dessa água situa-se em re-giões pouco habitadas (Norte e Centro-oeste), pode-se entender porque o país também tem problemasde abastecimento de água em regiões como o Nor-deste (devido à quantidade insuficiente) e o Sudeste(devido à baixa qualidade de suas águas, compro-metidas pela alta carga de poluição). Assim, embo-ra o Brasil tenha muita água disponível, a situaçãonão é confortável na maior parte do país.

A ÁGUA NA TERRA VOLUME (X 1012

L) %

SALGADA (97,5% DO TOTAL MUNDIAL)

OCEANOS E LAGOS 1.338.085 99,05

SUBSOLO 12.870 0,95

TOTAL DE ÁGUA SALGADA 1.350.955 100 %

DOCE (2,5% DO TOTAL MUNDIAL)

ÁGUAS CONGELADAS 24.4 69,55

SUBSOLO 10.546 30,11

PÂNTANOS 11 0,03

RIOS E LAGOS 94 0,27

BIOMASSA E VAPOR ATMOSFÉRICO 14 0,04

TOTAL DE ÁGUA DOCE 35.029 100 %

TOTAL DE ÁGUA DOCE E SALGADA 1.385.984 (X 1012

L)

FON

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Raciocínio similar pode serfeito para vários outros paísesbem providos de água. Todos ospovos do mundo precisam deuma profunda reflexão sobrecomo ‘racionalizar o uso’ desseelemento, absolutamente essen-cial à vida.

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H I D R O L O G I A

Nos últimos 20 anos, diversos países, principal-mente na Europa, implantaram novos modelos degestão de recursos hídricos, ou reforçaram os quejá adotavam. Uma gestão moderna baseia-se emdecisões colegiadas, multilaterais e descentraliza-das. Tal modelo fortalece a responsabilidade decada cidadão e da sociedade nas questões relativasà água, tanto no caso do consumo quanto no usodos corpos d’água como receptores de efluentes.Praticamente todos os modelos atuais incluem acobrança pelo uso da água bruta como um instru-mento de racionalização de seu uso, de geração derecursos financeiros e, em alguns casos, de recu-peração de custos para implantar ações capazes demelhorar a qualidade da água e aumentar a dispo-nibilidade hídrica.

A ÁGUA NO BRASIL

O Brasil, que possui cerca de 12% das reservasmundiais de água doce, também coleciona confli-tos pelo uso dos recursos hídricos. A irregulardistribuição da população brasileira, junto com airregular distribuição de água, faz com existam nopaís os mais diferentes cenários de disponibilida-

DISPONIBILIDADE DE ÁGUA EM ALGUNS PAÍSES

VOLUME ANUAL (1012

L) DISPONIBILIDADE HÍDRICA ANUAL

PAÍS ÁREA POPULAÇÃO

(MIL KM2) (MILHÃO HAB.) MÁX. MED. MIN. POR ÁREA POR HAB.

(103 L/KM

2) (10

3 L/HAB.)

ARGÉLIA ■ 2.380 28 14 5.882 501

ARGENTINA 2.780 35 610 270 150 97.122 7.714

BRASIL 8.512 160 7.640 5.745 5.200 674.918 35.906

CANADÁ 9.980 30 3.760 3.290 2.910 329.659 109.666

CHINA ■ 9.600 1.300 3.930 2.700 1.970 281.250 2.077

ESPANHA 510 40 253 108 27 211.764 2.707

EUA 9.360 261 3.680 2.810 1.960 300.214 10.766

FRANÇA 550 58 263 168 90 305.454 2.897

ÍNDIA ■ 3.270 919 1.794 1.456 1.065 445.259 1.584

JORDÂNIA ■ 100 5 1 9.600 184

LÍBANO ■ 10 3 3 280.000 915

LÍBIA ■ 1.760 5 5 2.843 1.003

MÉXICO 1.970 93 645 347 229 176.142 3.735

MARROCOS ■ 447 27 30 67.114 1.112

PORTUGAL ■ 90 11 157 19 15 211.215 1.727

RÚSSIA 17.080 150 4.541 4.059 3.533 237.646 27.061

SENEGAL ■ 200 9 17 85.000 1.889

SITUAÇÃO HÍDRICA: ESCASSEZ MÉDIA ■ ESCASSEZ ELEVADA ■ ESCASSEZ TOTAL ■

Figura 2.A distribuiçãoda água doceno mundoé muito irregular:alguns paísestêm muita,como Canadáe Brasil, e outrosquase nenhuma,como Argéliae Jordânia

FON

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01

A RACIONALIZAÇÃO DO USO DA ÁGUA

Diante desse quadro alarmante, a Organização dasNações Unidas (ONU) e várias outras instituiçõesvêm debatendo o tema e propondo ações que ra-cionalizem e tornem mais eficiente o uso da águano mundo. O tema foi incluído pela primeira vezna agenda política internacional na conferênciamundial sobre meio ambiente realizada pela ONUem Estocolmo (Suécia), em 1972.

Outros encontros promovidos pela ONU discu-tiram o problema, entre eles a primeira conferên-cia específica sobre água, em Mar del Plata (Argen-tina), em 1977, que discutiu a escassez, a deterio-ração e o uso ineficiente desse recurso. Avanço re-levante foi obtido na Conferência das Nações Uni-das sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em1992, no Rio de Janeiro (a Rio-92): o lançamentoda Agenda 21, um compromisso internacional paraa preservação do meio ambiente, onde é defendidoo princípio de que os poluidores devem assumir oscustos da degradação que causam. Finalmente, o2º Fórum Mundial da Água, em Haia (Holanda),em 2000, emitiu a Declaração sobre a Segurançada Água no Século 21, um alerta sobre a polui-ção nas principais reservas hídricas do planeta.

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de hídrica. Cerca de 73% da água brasileira estãona Amazônia, habitada por somente 4% da popu-lação. Assim, os restantes 27% devem suprir 96%da população. Portanto, embora a disponibilidadehídrica anual, considerando todo o Brasil, seja daordem de 35 milhões de litros por habitante, naAmazônia esse valor chega a 655 milhões de litrospor habitante, enquanto os brasileiros que vivemem outras regiões contam com 10 milhões de li-tros por habitante/ano, disponibilidade maior quea de muitos países, mas 65 vezes menor que aexistente na Amazônia.

Embora nenhum estado brasileiro tenha, glo-balmente, valores de disponibilidade média na si-tuação de escassez elevada ou total, há localidadesonde esse índice é, anualmente, inferior a 500 millitros por habitante, o que evidencia uma situaçãode escassez total localizada (figura 3). Algumasáreas do Brasil apresentam sérios problemas deescassez hídrica: o semi-árido nordestino e as re-giões metropolitanas das maiores capitais, emparticular as do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Os índices dessas duas regiões metropolitanassão tão críticos que o abastecimento público de-pende da ‘importação’ de águas de regiões vizi-nhas. O Sistema Cantareira retira cerca de 31 m3/s

dos rios Atibaia e Jaguari, na bacia do rio Pira-cicaba, para São Paulo. Já o Complexo Hidrelétricode Lajes retira cerca de 110 m3/s dos rios Paraíbado Sul e Piraí, dos quais 50 m3/s destinam-se àregião metropolitana do Rio de Janeiro.

Na região semi-árida nordestina, onde vivemcerca de 35 milhões de pessoas, os índices dedisponibilidade hídrica são inexpressivos. A re-gião necessita de uma solução similar à adotadapara São Paulo e Rio de Janeiro, através da trans-posição das águas da bacia do rio São Francisco.Esse projeto, apesar da grande polêmica, deve seriniciado em 2005, pelo menos para complementara água necessária ao abastecimento público.

O FUTURO DA ÁGUA NO BRASIL

A ocupação desordenada das áreas urbanas, asso-ciada ao crescimento econômico do país, refletiu-se no uso da água, notadamente a partir da segun-da metade do século 20. As políticas públicasfalharam ao não utilizar esse recurso como um dosfatores de ordenamento da ocupação do solo, e esteserá um dos futuros desafios da Política Nacionalde Recursos Hídricos (Lei 9.433/97), criada para

DISPONIBILIDADE DE ÁGUA EM GRANDES ÁREAS E EM ALGUNS ESTADOS BRASILEIROS

DISPONIBILIDADE HÍDRICA

REGIÃO ÁREA POPULAÇÃO VOLUME ANUAL

(MIL KM2) (MILHÃO HAB.) (10

12 L) POR ÁREA POR HAB.

(103 L/KM

2) (10

3 L/HAB.)

BACIA AMAZÔNICA 3.900 6,6 4.350 1.078.462 655.289

ATLÂNTICO SUDESTE 224 12,9 125 607.143 9.690

ATLÂNTICO NORTE/NORDESTE 1.029 31,5 255 276.968 8.098

ATLÂNTICO LESTE 545 36,3 125 251.376 3.444

ALGUNS ESTADOS

RORAIMA 204 0,3 373 1.822.037 1.482.053

AMAZONAS 1.593 2,4 1.852 1.159.853 761.033

MATO GROSSO 853 2,3 523 611.770 229.815

RIO GRANDE DO SUL 281 9,9 190 676.305 19.400

PARANÁ 205 9,2 114 552.911 12.391

BAHIA 555 12,9 36 64.663 2.816

SÃO PAULO ■ 248 35,0 92 369.869 2.650

RIO DE JANEIRO ■ 44 13,7 30 673.886 2.172

RIO GRANDE DO NORTE ■ 52 2,6 4 82.563 1.654

PERNAMBUCO ■ 97 7,6 9 96.484 1.249

BRASILBRASILBRASILBRASILBRASIL 674.918 35.906

SITUAÇÃO HÍDRICA: ESCASSEZ MÉDIA ■ ESCASSEZ ELEVADA ■ ESCASSEZ TOTAL ■

Figura 3. No Brasil, a disponibilidade média anual de água chega a 35,9 milhões de litros por habitante,mas esse valor varia muito entre as regiões e entre os estados, e em alguns deles o recurso é escasso

FON

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garantir, às futuras gerações, água em quantidadee qualidade necessárias à vida, ao bem-estar e aodesenvolvimento de suas atividades.

A falsa concepção de abundância hídrica foiresponsável por inúmeras mazelas. Entre elas,salientamos: 1. a cultura do desperdício, 2. a ca-rência de investimentos em tratamento de esgotospara proteger a qualidade dos rios, e 3. a culturada água gratuita.

Quanto ao desperdício, o Brasil ostenta eleva-dos valores de perda de água. Embora as grandesempresas estejam alertas para o problema da água,o setor industrial como um todo ainda engatinhana prática do reuso de água e minimiza os inves-timentos no tratamento de seus esgotos. O setoragrícola consome enormes volumes de água, semmaior esforço para adoção de técnicas de irrigaçãomais econômicas. Já o setor de saneamento, seminvestimentos adequados há mais de três décadas,perde mais de 47% da água tratada que produz.Sem o repúdio das autoridades e da sociedadeorganizada, a cultura do desperdício segue exau-rindo a já escassa água de nossos rios. Enquantoisso, cerca de 40 milhões de brasileiros não tem odevido acesso à água tratada.

Tão preocupante quanto o consumo irracional deágua é a falta de investimentos em tratamentos deesgotos industriais e domésticos. Corpos d’água queno passado eram vivos e produtivos, em particularjunto aos grandes centros produtivos do país, estãomorrendo hoje devido ao excesso de poluição, dian-

te da sociedade desavisada e das autoridades impo-tentes. Um rio morto dissemina doenças e suas águasnão têm mais serventia, o que reduz a disponibili-dade hídrica na área banhada por ele. As regiõesmetropolitanas do Rio e de São Paulo são lamentá-veis exemplos desse processo: os vários rios ali exis-tentes não têm qualquer uso para a população, eambas as regiões precisam ‘importar’ água parasuprir boa parte das suas necessidades, antes garan-tidas pelos rios agora ‘mortos’.

A chamada cultura da água gratuita é a outragrande mazela. Nenhum bem, em especial se forescasso, pode ser considerado ‘gratuito’. Se umusuário não paga por um bem que utiliza, a cole-tividade o está subsidiando. Portanto, se o indus-trial não pagar pela água que usa como matéria-prima em sua fábrica, ou se o produtor de alimen-to não pagar pela água utilizada, será a sociedadeque arcará com tal prejuízo. Além disso, o uso de‘bens gratuitos’ é sabidamente perdulário.

Quando um elo do setor produtivo lança esgotosnão tratados e ‘mata’ um rio, faz uma enormeeconomia em seus gastos. No entanto, a conta dasobras para ‘importar’ água e suprir a demanda queo rio morto não consegue mais cobrir será pagacom dinheiro dos cofres públicos, assim como aconta da recuperação daquele rio. Trata-se da fa-mosa ‘regra’ da privatização dos lucros e socializa-ção dos prejuízos. Pode não ser fácil entender quea água não é gratuita, mas é muito fácil percebero custo da falta d’água. ■

H I D R O L O G I A

SUGESTÕESPARA LEITURA

CARNEIRO, P. R. F.Dos pântanosà escassez: usoda água e conflitosna Baixada dosGoytacazes, SãoPaulo, Ed. AnnaBlume, 2004.

MINISTÉRIO DO MEIOAMBIENTE. Baciado rio Paraíba doSul – Livro da bacia,documento 1do Sistema Nacionalde Informaçõessobre RecursosHídricos, MMA/ANA,2001.

MINISTÉRIO DO MEIOAMBIENTE.Cobrança pelo usoda água bruta –Experiênciaseuropéiase propostasbrasileiras, MMA/SRH, 2001

Página na internetdo Laboratório deHidrologia (http://www.hidro.ufrj.br/)

Para abastecera cidade doRio de Janeiro,já é precisoutilizar águadesviada do rioParaíba do Sul,na elevatóriade Santa Cecília,em Piraí

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Agronegócio edesertificação no Brasil

O chamado agronegócio está em evidência, sendo muitas vezes apon-tado como o caminho mais curto para o cresci-mento do país. Mas que efeitos esse processo deprodução – que implica a anexação de novas fron-teiras agrícolas e o uso intensivo de tecnologia –terá sobre o meio ambiente? A expansão das cul-turas associadas ao agronegócio, no Brasil, podelevar à desertificação grandes extensões de terra?

Antes de iniciar a análise dessas questões, épreciso indicar como, nos debates que se seguem,são entendidos termos como agronegócio e deser-tificação.

Agronegócio é definido como a atividade agrí-cola em que a produção destina-se basicamente aomercado externo. Fortemente apoiado no desen-volvimento técnico-científico atual, o agronegócioé desenvolvido em grandes propriedades, com usointensivo de mecanização, fertilizantes e agrotó-xicos – o que reduz a necessidade de mão-de-obrae expulsa populações de suas áreas tradicionais.Trata-se de uma agricultura de capital intensivo,que depende de financiamento.

Considerado pela política econômica oficial o principal motor

do desenvolvimento brasileiro, o agronegócio – a produção agropecuária

apoiada em novas tecnologias e voltada para a exportação –

vem provocando, segundo diversos estudos, danos ao meio natural

e transformações sociais importantes. Os problemas já constatados

em diferentes regiões do país apontam para a necessidade de se realizar

mais estudos sobre esse tema, para que os processos

de degradação sejam mais bem entendidos.

Dirce Maria Antunes SuertegarayDepartamento de Geografia,Universidade Federal do Rio Grande do Sul

G E O G R A F I A

Desertificação, por sua vez, é um conceito de-finido a partir da Conferência de Nairóbi (Quênia),em 1977, sendo entendido como processo de de-gradação de terras que causa significativos danosà vegetação, à fauna e ao solo, e pode, em casosextremos, promover ressecamento climático. Esseconceito, portanto, é utilizado para explicar a de-gradação de terras em áreas de clima árido, semi-árido e subúmido, mas não nas de clima úmido,mesmo que nestas o processo de degradação sejasimilar. Para identificar processos de transforma-ção da natureza em ambiente tropical, têm sidousados conceitos como ‘degradação do solo’,‘desertificação ecológica’ e, em áreas de degrada-ção associada a formações arenosas, ‘arenização’.

Este artigo empregará o conceito de degradaçãodo solo e/ou, em casos mais restritos, o de areni-zação, mantendo o significado do conceito de de-sertificação como restrito a ambientes áridos esemi-áridos (caso específico do Nordeste, no Bra-sil). Poucos trabalhos científicos aprofundam essetema no país, embora o debate político e a impren-

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G E O G R A F I A

sa apresentem o agronegócio como um dos maissignificativos fenômenos da agenda econômicanacional (ver ‘Agronegócio e política econômica’).

A SITUAÇÃO NO CERRADO

Desde os anos 70 e com mais intensidade nos anos90, o espaço brasileiro de maior difusão do agro-negócio é o cerrado. Este, segundo o advogado eambientalista Rodrigo Freire, é “o segundo maiorbioma do Brasil, constituído por mais de 700 es-pécies de plantas lenhosas, 935 tipos de aves, 298de mamíferos e 268 de répteis, além de insetos eanimais invertebrados”. Ocupa quase 2 milhões dekm2, ou seja, cerca de 20% do território nacional.

Destaca-se, entre as principais culturas vincu-ladas a esse tipo de produção, o plantio da soja emgrandes propriedades, com uso de alta tecnologiade produção, em especial a irrigação. O avanço daagricultura sob novas bases ou sistema produtivopromove, em um primeiro momento, a destruiçãoda fauna e flora. Posteriormente, ocorrem efeitosnegativos no solo e na água.

No caso do solo, significativos estudos têm reve-lado problemas de degradação, em grande partedevidos à ocorrência de erosão linear, ou seja, for-mação de ravinas e voçorocas. Nesse aspecto, des-taca-se o estudo da geógrafa Selma Simões deCastro e outros na bacia do alto rio Araguaia, em

1999, indicando que, no Brasil, as mais ativasvoçorocas são causadas por distúrbios na vegetaçãoe pelo uso impróprio do solo. O estudo constatou,na região, a ocorrência de ravinas e voçorocas as-sociadas a solos predominantemente arenosos,e atribuiu o processo à natural susceptibilidadedo solo e, em larga medida, ao processo de desflo-restamento.

O cerrado permaneceu por longos anos comoárea de ‘reserva’ para a expansão agrícola, devidoà infertilidade do solo e à escassez de água, obs-táculos superados mais recentemente pela tec-nologia. Atualmente, tornou-se uma das novas fron-teiras agrícolas, mas a expansão das culturas nessaregião parece só ser possível mediante uso inten-sivo de mecanização, fertilização e irrigação, alémde financiamento. Essa recente fase de crescimen-to agrícola pode levar a nova pressão sobre os re-cursos e, em conseqüência, a sua degradação.

Além de danos ambientais, a substituição docerrado pelo agronegócio promove outras transfor-mações. Segundo o antropólogo Luiz Tarley deAragão, esse bioma sofreu mudanças radicais nastécnicas produtivas e no modo de vida das popu-lações. A modernidade, associada à racionalidadeprodutiva, transformou um sistema de produçãobaseado culturalmente na articulação entre natu-reza, religiosidade e festa. Além de concentrarterra, a introdução de modos de produção com�

Agronegócio e política econômicaO Ministério da Agricultura, Pe-

cuária e Abastecimento indica

o agronegócio como a princi-

pal locomotiva da economia

brasileira. A soja, destaque

maior do agronegócio, teve no

período 2002/2003 uma safra

de 52 milhões de toneladas,

com área plantada de 18,4 mi-

lhões de hectares. Até os anos

80 as lavouras concentravam-

se nos estados do Sul (Rio

Grande do Sul, Paraná e Santa

Catarina), mas a pesquisa

agropecuária adaptou essa cul-

tura a outras áreas e a soja

difundiu-se pelo Centro-oeste,

além do oeste da Bahia e sul do

Maranhão e Piauí. A previsão é de

ampliação das áreas destinadas

ao agronegócio, já que, além da

soja, é estimulada a produção de

cana-de-açúcar, café, cacau, algo-

dão, frutas, produtos florestais e

pecuária. Essa política agrícola mo-

difica o panorama econômico do

país e também o ambiente. Os

principais problemas ambientais

já indicados como associados ao

agronegócio são: desmatamento,

perda da biodiversidade, erosão

hídrica (ravinas e voçorocas), for-

mação de areais, assoreamento

dos cursos d’água, contaminação

do lençol freático, salinização,

perda e envenenamento do

solo, esgotamento potencial

dos recursos hídricos (pelo

comprometimento dos ma-

nanciais). O agronegócio, en-

fim, promove transformações

efetivas na biodiversidade e

na dinâmica da natureza, in-

dicando uma nova fase de

pressão sobre os recursos na-

turais suportada pelo discur-

so da sustentabilidade eco-

nômica, uma vez que esse pro-

cesso não garante a preser-

vação do ambiente, dos recur-

sos e da vida humana.

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G E O G R A F I A

elevado investimento degrada o ambiente e expro-pria a população de seu hábitat tradicional, des-truindo seus ritos, representações e formas de pro-dução aliadas à conservação.

Dados do Ministério do Meio Ambiente e Re-cursos Naturais (MMA) indicavam, em 1996, que76% da área de 1,89 milhão de km2 já estavamalterados por atividades agropecuárias. Desde 1970,ampliam-se as áreas de culturas de ciclo curto(grãos). O crescimento da agricultura (soja, milho,feijão, café, mandioca) apoiou-se no uso de máqui-nas, fertilizantes, corretivos e defensivos agrícolas,e tem resultado em perdas de área de coberturavegetal, degradação de solos e contaminação poragrotóxicos.

PERDA FLORESTAL NA AMAZÔNIA

Na Amazônia brasileira, o embate entre oagronegócio e o ambiente é também significativo.Ali, as diversas formas de exploração têm levadoao que o geógrafo Aziz Ab’Saber chamou, em 1977,de savanização – a substituição da floresta pelocerrado e, depois, a sua transformação em campo.Esse processo decorre da destruição da mata pormadeireiros e mineradoras. Mais recentemente, emfunção das políticas de estímulo, é o agronegócioque promove a derrubada da floresta. Estudos in-dicam que, na Amazônia, a soja e a pecuária indu-zem as queimadas e o desmatamento.

Em 1996, o MMA já afirmava que o impacto daagricultura na Amazônia era o desmatamento, queatingia, no final dos anos 80, “quase 400 mil km2

(8% da área total da floresta)”. O mesmo docu-mento apontava que “o desmatamento associado aouso agrícola e pastoril de áreas significativas dafloresta, em particular em Mato Grosso, Rondônia,Pará (sul), e Maranhão (oeste), promove um pro-cesso de degradação revelado pelos altos índicesde erosão do solo e perda de nutrientes em áreasdesmatadas, com implicações hídricas quanto aoescoamento superficial, vazão e extravasamento derios”. Já o Instituto Nacional de Pesquisas Espa-ciais, este ano, estimou em 23.750 km2 o desma-tamento da Amazônia no período de 2002/2003.A diminuição da floresta incluiu nove estados:Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso,Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.

O desmatamento marca, na Amazônia, o iníciode uma transformação ambiental que inclui pro-cessos como a exposição do solo, a lavagem super-ficial com perda de solo, o assoreamento dos riose, ainda, processos de arenização, que começam aser identificados e estudados ali. Na arenização, adegradação do solo pela erosão hídrica linear (ra-vinas e voçorocas) promove a formação de depósi-tos de areia facilmente mobilizados pelo vento.Em muitos lugares, esses depósitos acabam se co-nectando e formam grandes extensões de areiaexpostas (os areais), onde é difícil a fixação de ve-

A procura pornovas áreaspara lavourasde grãos paraexportação,como a soja,tem resultadona perdade florestas

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SUGESTÕESPARA LEITURA

AB’SABER, A.Os domíniosda naturezano Brasil:potencialidadespaisagísticas.São Paulo,Ateliê Editorial,2003.

CAVALCANTE, E. G.Geoeconomiado semi-áridoirrigado:a experiênciade Petrolinasob o enfoque dasustentabilidade dodesenvolvimento.Recife,Editora Universitá-ria da UFPE,1997.

PINTO, M. N. (org.)Cerrado:caracterização,ocupaçãoe perspectivas.Brasília,Editora daUniversidadede Brasília,1993.

ROSS, J. L. S. (org.)Geografia do Brasil.São Paulo,Editora daUniversidadede São Paulo,1995.

G E O G R A F I A

mento de cadeias produtivas estratégicas, como afruticultura irrigada, a criação de caprinos e ovi-nos e a agricultura de sequeiro. O agronegócio, naótica das políticas econômicas, é uma das possibi-lidades para a sustentabilidade da região.

Como o agronegócio decorre de políticas de ex-pansão agrícola mais recentes, são incipientes osestudos que associam a desertificação do Nordestea essa forma de produção. Isso não significa quepossa ser considerada uma atividade sem riscos, jáque, no cerrado e na Amazônia, vários estudosrevelaram problemas ambientais ligados a essaforma de expansão da agricultura.

NOVA EXPANSÃO NO SUL

No sul do Brasil, o agronegócio é um processoconsolidado. No Rio Grande do Sul, a soja é ogrande exemplo. Os problemas de degradação dossolos na região original de cultivo desse grão sãosemelhantes aos de outras regiões. Entre eles, des-taca-se o processo de arenização no sudoeste doRio Grande do Sul. Embora já identificado comonatural em estudos da autora deste artigo, o fenô-meno também decorre de intensificação da degra-dação do solo pela expansão de monoculturas, emespecial as de soja, desde os anos 70. A extensãodessas lavouras diminuiu, nos anos 80, mas recen-temente elas voltaram a se expandir no sudoestegaúcho, com sua introdução em áreas de coxilhas(colinas) através de plantio direto, por exemplo.

AGRONEGÓCIO E DEGRADAÇÃO

Pode-se visualizar, a partir de vários estudos e/oudenúncias de movimentos sociais (no cerrado, naAmazônia ou no Nordeste), os seguintes problemasambientais associados ao agronegócio: desmata-mento, redução da biodiversidade, erosão hídrica(em particular na forma de ravinas e voçorocas),contaminação do lençol freático, salinização, per-da e envenenamento do solo pelo uso de adubose fertilizantes, além da substituição do trabalhohumano pela mecanização, concentração de terrase perda da diversidade cultural. Na linguagem jor-nalística, trata-se de um processo que em algunsanos resultaria em desertificação. Na linguagemeconômica, o agronegócio representa a possibilida-de de expansão agrícola e crescimento econômico.Embora o tema seja complexo, estudos já concluí-dos constatam processos de degradação da nature-za causados pela expansão do agronegócio. Cabe,portanto, aprofundar essas investigações, para ob-ter uma melhor compreensão de tais processos. ■

getação. Esse processo, que começa a ser observa-do na Amazônia, já ocorre em ampla escala emregiões do Brasil onde a grande lavoura comercialse instalou.

Em entrevista recente, Dom Tomás Balduíno,bispo emérito de Goiás, afirma que o agronegócio“também intensifica a concentração de terra”. Se-gundo ele, “o processo avança no cerrado, no Pan-tanal e na Amazônia e também está dominando,com uma voracidade extrema, as pequenas pro-priedades”. Ao mesmo tempo, diz, “a agriculturaestá sofrendo um processo de empobrecimen-to muito forte e os pequenos agricultores estãosendo obrigados a deixar a terra”. Dom TomásBalduíno completa: “Pequena parte do capital ge-rado pelo agronegócio contribui para o superávitprimário, mas a grande massa de dinheiro fica nasmãos de poucos.”

DESERTIFICAÇÃO NO NORDESTE

Segundo publicação recente do Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística (IBGE), “a desertifi-cação está associada a erosão e degradação do solo,com danos à fauna e à flora. As regiões sujeitas àdesertificação são as que apresentam índice dearidez (razão entre precipitação e evapotranspi-ração potencial) de até 0,65. Quanto mais áridaé uma região, menor é o valor do índice de arideze maior é o risco climático de desertificação”.

No Brasil, o processo de degradação do solo quepode levar à desertificação propriamente ditaocorre no Nordeste. Os estudos sobre a desertifi-cação, na região, associam esse processo à presen-ça histórica do latifúndio e/ou do minifúndio combaixa produtividade (existente em grande núme-ro, mas de extensão total reduzida). Atribui-se essadegradação à pressão sobre os recursos com a cria-ção de ovinos e caprinos. Na caatinga, os processosde degradação mais relatados são a perda do soloe a perda da diversidade da flora e da fauna.

O agronegócio no semi-árido nordestino, segun-do o documento ‘Cenários para o Bioma Caatinga’,elaborado por um grupo de trabalho do MMA,“tem dependido muito do desenvolvimento daagricultura irrigada”. Isso poderá ser maximizado,continua o documento, nas áreas da região comelevado potencial de recursos hídricos. Sob essaperspectiva, os cultivos mais promissores são os defrutas e aqueles integrados ao desenvolvimento deaqüicultura. As estratégias de consolidação do agro-negócio no semi-árido são: expansão da infra-es-trutura de irrigação, revitalização de microbaciassubterrâneas, treinamento técnico e estímulo aofinanciamento. Os planos incluem o desenvolvi-

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‘Zonas de sacrifício’ e ‘bota-foras’:

Os conflitos de caráter ambiental podem ser definidos como aquelesem que certas atividades ou instalações – empre-sariais ou vinculadas ao poder público – produzemefeitos indesejáveis transmitidos pelo ar, pela águaou pelo solo, afetando com isso ambientes resi-denciais ou de trabalho. Tais conflitos vêm ocor-rendo com alguma freqüência no Brasil, devido aotipo de desenvolvimento econômico e à expansãodas cidades, provocando cada vez mais respostasda população atingida, na forma de manifestaçõespúblicas, enfrentamentos com os responsáveis oudenúncias (através dos meios de comunicação oude instâncias governamentais e legais).

A incidência e as características desses confli-tos, no estado do Rio de Janeiro, foram recente-mente avaliadas pelo Instituto de Pesquisa e Pla-nejamento Urbano e Regional (Ippur), da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro, no ‘Mapa dosConflitos Ambientais’. A iniciativa faz parte do

Nos últimos 15 anos, centenas de conflitos de caráter ambiental envolvendo o poder público

ou empresas, de um lado, e populações de baixa renda, de outro, ocorreram em terras fluminenses.

Uma análise desses casos revela que têm origem no enfraquecimento da ação das agências

ambientais oficiais (estaduais e federais), bem como ao dinamismo ou falta de dinamismo

da economia (estagnação, até meados dos anos 90, e retomada de investimentos a partir de então).

Portanto, fortalecer o controle dos órgãos públicos e garantir maior participação da população

nos estudos ambientais, nas decisões sobre licenciamentos e no controle do respeito às leis

ambientais aumentaria a capacidade de prevenir e dar tratamento democrático a esses conflitos.

Henri Acselrad*Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional,Universidade Federal do Rio de Janeiro

* Colaboraram Felipe T. B. Caixeta, Joana Tolentino Batista, Gustavo Neves Bezerra e José Luiz de O. Soares.

E C O L O G I A U R B A N A

os conflitos ambientais noestado do Rio de Janeiro

projeto ‘Mapa da Justiça Ambiental no Estado doRio de Janeiro’, desenvolvido pela Federação deÓrgãos para Assistência Social e Educacional (Fase),em conjunto com o Ippur.

Os casos de conflitos ambientais que envolveramcomunidades mais pobres foram levantados, ao lon-go de 15 meses, a partir de fins de 2002, nos regis-tros de instituições públicas como a Fundação Esta-dual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), oMinistério Público (estadual e federal) e a Divisão deRecursos Minerais. O estudo selecionou casos de de-núncias originadas de mobilizações de moradores deáreas de baixa renda e visou identificar como as agres-sões ambientais afetam essas pessoas, que têm menoscondições de se fazer ouvir no espaço público.

No período de 1992 a 2002, foram identificadas251 situações-problema, em 49 municípios flumi-nenses. Essa amostra envolve variadas situações –como disposição inadequada e lançamento clan-

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E C O L O G I A U R B A N AE C O L O G I A U R B A N A

destino de resíduos tóxicos; poluição do solo, ar eágua; valões, lixões e enchentes; loteamentos emáreas inadequadas; prejuízo à pesca pela atividadede prospecção de petróleo no mar; deslocamentode pessoas por poluição industrial ou instalação deresorts; danos decorrentes de mineração; vazamen-to de óleo; privatização indevida de recursos hídri-cos e outras – e fornece um quadro dos conflitosambientais no estado e das estratégias dos atoressociais envolvidos.

Os casos foram agrupados em quatro classes ge-rais segundo a atividade ou fato que desencadeou oconflito: 1. atividades industriais; 2. ausência de sa-neamento; 3. essas duas causas ao mesmo tempo; e4. outros (uso do solo rural, loteamento em áreas derisco, apropriação privada de recursos hídricos etc.).

Os conflitos mais freqüentes estão associados aoenfraquecimento do controle ambiental pelas agên-cias públicas (que multiplica os ‘acidentes’ porimprevidência consciente, associada com freqüên-cia a processos de terceirização em estatais), àrelativa estagnação econômica do estado até mea-dos dos anos 90 (muitas indústrias fecharam eseus espaços tornaram-se depósitos irregulares deresíduos) e à retomada econômica a partir de en-tão, baseada na expansão da exploração do petró-leo no norte fluminense (levando a conflitos compescadores) e dos investimentos industriais nomédio vale do rio Paraíba do Sul (levando a casosde poluição de solo e águas).

REDUÇÃO DA CAPACIDADE DE CONTROLE

O ano de 1992, quando ocorreu a Conferência dasNações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvol-vimento (a Rio-92), marcou o auge do interessepelas questões ambientais no Brasil, em função doacirramento do debate público e do destaque queo tema ganhou na imprensa. Nos anos seguintes,porém, o esperado aperfeiçoamento do controle

cos duvidosos. O controle da qualidade do ar e daágua ficou por vezes nas mãos dos próprios agentespoluidores. Esse cenário teve reflexos na incidên-cia e na natureza dos conflitos ambientais, tam-bém favorecidos pela ação pública (regulação efiscalização) insuficiente, tanto no período de es-tagnação econômica quanto após a retomada emmeados dos anos 90.

Segundo registros do Ministério Público e daFeema, as agressões ambientais costumam tornar-se públicas a partir das denúncias encaminhadaspelas populações atingidas à Defesa Civil (munici-pal e estadual) e ao Corpo de Bombeiros (e àsvezes diretamente ao Ministério Público, em car-tas-denúncia e queixas formais). Em boa parte doscasos, a Feema é notificada dos problemas pelaDefesa Civil e pelos Bombeiros. Os fiscais do es-tado também detectam irregularidades durante vis-torias. Os principais denunciantes são moradoresdas cercanias de fábricas, pedreiras, áreas de des-carte e localidades desprovidas de saneamento.

A população reage a odores vindos de locaiscomo galpões, fábricas fechadas, lixões, cerâmicase outros locais, associando a eles males como ná-useas, vômitos, irritação nos olhos, dores no corpo,manchas na pele, sangramentos nasais, desmaios edificuldades respiratórias. Moradores às vezes tes-temunham e denunciam despejos indevidos demateriais (em terrenos baldios, pastos e mangues)e incidentes de contaminação de crianças por re-síduos tóxicos (às vezes com mortes). Entre osagentes acusados pelas agressões ambientais estãoempresas que se apropriam de áreas e de seusrecursos para suas atividades, assim como órgãosgovernamentais que regulam o uso do solo e asinstalações de infra-estrutura sanitária.

Registra-se também a atuação do Ministério Pú-blico, do Legislativo estadual, de instituições depesquisa e de organizações não-governamentais(ONGs). O Ministério Público (estadual e federal),quando acionado, recolhe informações, exige cor- �

ambiental pelos órgãos públicosnão ocorreu. Ao contrário, hou-ve uma redução geral da capa-cidade de ação governamental.No final dos anos 90, os órgãosambientais já tinham dificulda-des para levar seus técnicos atéas áreas-problema.

Com a degradação das estru-turas de controle oficiais, mui-tas atribuições foram transferi-das para empresas privadas econsultorias, originando estudose relatórios de impacto ambien-tal incompletos e laudos técni-

Os lixões,alguns pertodas margensda baía deGuanabara,constituemuma das fontesde conflitosno estadoFO

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reções ou media soluções (por exemplo, a assina-tura de Termos de Ajustamento de Conduta, ouTACs). Se, na investigação das denúncias, surgemindícios de irregularidades, são instauradas AçõesCivis Públicas (para punir responsáveis, exigir solu-ções ou corrigir os problemas) ou ações criminais.Para avaliar os casos, o Ministério Público requisi-ta informações à Feema, ao Ibama e às prefeituras,mas muitas vezes não recebe as respostas nos pra-zos previstos ou estas são incompletas. Faz falta,para a resolução dos conflitos, um diálogo mais es-treito e ágil entre o Judiciário e a as prefeituras.

O Legislativo, em alguns casos, repercute asdenúncias da população, mas pode favorecer confli-tos, quando altera normas de uso do solo e com issobeneficia interesses econômicos em detrimento daproteção ambiental. Centros de pesquisa podemfornecer informações e laudos técnicos e formularpropostas. ONGs, sindicatos e associações de mora-dores e pescadores são agentes das denúncias.

PROBLEMAS DE TODO TIPO NO ESTADO

As denúncias que chegam às agências do governoe ao Ministério Público e os problemas verificadosem vistorias envolvem empreendimentos variados.As indústrias multinacionais do ramo químico fi-guram como responsáveis por poluição do ar (ca-sos de Belford Roxo, 1992; e município do Rio deJaneiro, 2000), do solo (Belford Roxo, 1992; e Re-sende, 2002) e das águas (B. Roxo, 1992; e Resende,2002). Algumas aparecem em casos de descarteclandestino de resíduos tóxicos (Nova Iguaçu, 1992e 1999, e Rio de Janeiro, 2001) e têm sítios contami-nados dentro e fora de suas plantas (B. Roxo, 1992;e Resende, 2002). Empresas metalúrgicas e de gal-vanoplastia também aparecem na lista (armazena-

mento de produto tóxico em Angra dos Reis, 2002;Aterro Volta Grande em Volta Redonda, 2000; edescarte de zinco em Sepetiba, 2002). Indústriastêxteis (Nova Friburgo, 2002), usinas de cana-de-açúcar (Campos, 1999 e 2001), hidrelétricas (Can-tagalo, 2001; e N. Friburgo, 1999), fábricas de pro-dutos de beleza (Nova Iguaçu, 2001) e de benefi-ciamento de alimentos (Rio e Itaperuna, 2002; e No-va Friburgo, 2001) estão citadas ainda entre os agen-tes que degradam os ambientes das populaçõesfluminenses.

Em função de acidentes como rompimento dedutos, explosões e vazamentos, as indústrias derefino e armazenamento de petróleo e derivadosdestacam-se no recebimento de multas e na assi-natura de TACs. Tais acidentes (pó branco em B.Roxo, 2001; rompimento de duto em Japeri, 2000;derramamento de 1,3 milhão de litros de óleo,2000; e contaminação em refinaria, 2002) poluemo ar, o solo e o mar, causam danos à saúde e in-viabilizam atividades tradicionais, como a pesca.

Explosões em pedreiras geraram denúncias empelo menos 20 municípios, em função do medodas pessoas, dos danos em residências e dos aci-dentes com vítimas. A extração mineral (pedra,saibro e outros) em unidades de conservação temmotivado ações do Ministério Público, da polícia,da Feema e do Legislativo estadual (Duque deCaxias, 2000 e 2002; Niterói, 2001), e há casos decoação a moradores (Niterói, 2000; São Pedro daAldeia e N. Iguaçu, 2001).

Relatórios de vistoria da Feema verificaramque mesmo empresas licenciadas armazenaramlixo tóxico inadequadamente, contaminando so-los e lençóis freáticos, e fizeram despejos clan-destinos de resíduos (V. Redonda, 2000). Depó-sitos provisórios de resíduos são incendiados (D.Caxias e Queimados, 1998), espalhando nuvens

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O descartede resíduostóxicos feitopela indústriaIngá Mercantilcausa sériosproblemasambientaisna baíade Sepetiba

tóxicas sobre comunidades po-bres, e problemas de saúde sãoatribuídos à presença de resí-duos (Queimados, 1998; Magé,2002; e B. Roxo, 2002). Resí-duos tóxicos são lançados emlixões (Rio Bonito, 1999; S.Gonçalo, 2000) e terrenos bal-dios (cianeto, no Rio, 2000) ouenviados a cerâmicas e firmasde ‘reciclagem’ que não cum-prem leis ambientais (Rio Bo-nito, 1999; Queimados, 2000;Itatiaia, 2002).

O poder público tem respon-sabilidade nos danos causadospor empresas estatais (como noderramamento de 1,3 milhão de

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Page 28: Ciencia hoje desenvolvimento e meio ambiente uma falsa incompatibilidade

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litros de óleo em Duque de Caxias, 2000; no Ater-ro Volta Grande, em Volta Redonda, 2000; e emobras de empresas públicas), pelo não fornecimen-to de serviços de saneamento (enchente em N.Iguaçu, 2002; e Estação de Tratamento Guandu) epor desrespeitar a legislação, como na construçãode conjuntos residenciais em área de risco emDuque de Caxias (2001), em área industrial em B.Roxo (2002) e em área de restinga em Arraial doCabo (1995). Representantes do poder público(municipal, estadual e federal) às vezes editamleis e concedem licenças que desrespeitam precei-tos legais.

Inúmeras prefeituras fluminenses têm proble-mas com a Justiça e foram multadas pelos órgãosambientais por causa de seus lixões e aterros, comoem Niterói (1996), Campos e Miguel Pereira (1999),Teresópolis (2000), B. Roxo e Cabo Frio (2001), eGramacho (2002). Pressionado pelo MinistérioPúblico e por setores da sociedade, o governo es-tadual decidiu financiar usinas de reciclagem, masos poucos projetos que saíram do papel continhamfalhas estruturais, sendo interditados ou investiga-dos, como em B. Roxo e Queimados (1995), MiguelPereira (1999) e Mendes (2000).

‘ZONA DE SACRIFÍCIO’ E ‘BOTA-FORA’

Certas localidades destacam-se por concentrar prá-ticas agressivas ao ambiente (poluição industrial doar e da água, depósitos de resíduos tóxicos, contami-nação do solo, falta de abastecimento de água, bai-xos índices de arborização, riscos associados a en-chentes, lixões e pedreiras), que atingem popula-ções de baixa renda. Tais locais são chamados, pelosestudiosos da desigualdade ambiental, de ‘zonas desacrifício’ ou ‘paraísos de poluição’, pois a desre-gulação ambiental favorece os interesses econô-micos predatórios. Essas localidades tendem a serescolhidas para a instalação de novos empreendi-mentos de alto potencial poluidor, o que se soma àatuação dos agentes políticos e econômicos locais,que se empenham em atrair investimentos de todotipo, seja qual for o custo social e ambiental.

É o caso de áreas dos municípios de Itaguaí (nailha da Madeira e no entorno do porto de Sepetiba),Santa Cruz e parte de Campo Grande. Em Itaguaí,as populações enfrentam a poluição hídrica (devi-da à falta de saneamento) e o abandono de resí-duos tóxicos pela empresa Ingá Mercantil. No mu-nicípio há registros de conflitos associados à am-pliação e às atividades no porto de Sepetiba (con-taminação do mar, afetando a pesca), e recente-mente a resistência da população impediu a insta-lação de uma usina termelétrica a carvão. Próximo

ao distrito industrial de SantaCruz, os impactos vêm da au-sência de saneamento, das emis-sões de poluentes do ar e água ede sítios contaminados em fá-bricas fechadas. Os descartesclandestinos de resíduos tóxicosrepetem-se (em 1992, 1993 e1997), causando intoxicação (as-sentamentos Araguaia e Nova

SUGESTÕESPARA LEITURA

ACSELRAD, H. (org.).Conflitos ambientaisno Brasil. Rio deJaneiro, RelumeDumará, 2004.

ACSELRAD, H. Conflitossociais e meioambiente no estadodo Rio de Janeiro.Rio de Janeiro,Relume Dumará,2004.

FUKS, M. Conflitosambientais no Riode Janeiro – Ação edebate nas arenaspúblicas. Rio deJaneiro, Ed. UFRJ,2001.

Canudos, 2001; Santa Cruz, 2001). Por causa dosdescartes clandestinos, algumas localidades rece-bem o nome de ‘Bota-Fora’.

Outra zona de sacrifício é o distrito de Adrianó-polis, em Nova Iguaçu, no entorno da Reserva Bioló-gica do Tinguá. O bairro, que chegou a ser escolhidopara sediar o primeiro aterro de resíduos tóxicos doestado, a Central de Tratamento de Resíduos (esco-lha que não se efetivou), abriga um grande depósitodo óleo tóxico ascarel e é cortado por gasodutos elinhas de transmissão de energia. Em 2003, a pre-feitura instalou ali um aterro sanitário, após longabatalha judicial com os moradores. A região entre arodovia RJ 113 e o rio Iguaçu (distritos de Vila deCava, Marambaia e Adrianópolis), muito rica emmananciais hídricos, assistiu à degradação dosrecursos ambientais pela operação do lixão da Ma-rambaia e outros vazadouros clandestinos.

A pesquisa mostra, em suma, que o licenciamen-to ambiental não é mera barreira burocrática aodesenvolvimento de uma região. Ao contrário doque sugerem as queixas das empresas contra a“demora excessiva”, as “exigências descabidas” eos “empecilhos burocráticos” do processo de li-cenciamento ambiental, que inviabilizariam in-vestimentos, os casos pesquisados indicam que,como as agências públicas têm dificuldades parafiscalizar o respeito às normas, os licenciamentoscom freqüência revelam-se necessários, mas in-suficientes, para proteger a população – em espe-cial os grupos de menor renda – dos riscos ambien-tais dos empreendimentos. Grande parte dos con-flitos no estado tem origem na dificuldade de fazerrespeitar as normas ambientais. Portanto, o forta-lecimento dos órgãos públicos e a maior partici-pação da população nos estudos ambientais, nasdecisões sobre licenciamentos e no controle do res-peito às normas ambientais em vigor levaria a umamaior capacidade de prevenir e dar tratamento de-mocrático aos conflitos ambientais no estado. ■

A resistência da populaçãode Itaguaí impediua instalação no municípiode uma termelétrica a carvão

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