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fv Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Artes
Rafael Adorjan Tindó
Narrativas impressas: fotografias como folhas ao infinito
Rio de Janeiro
2017
Rafael Adorjan Tindó
Narrativas impressas: fotografias como folhas ao infinito
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
Orientadora: Profª. Dra. Regina Célia de Paula
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEHB
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta dissertação, desde que citada a fonte.
_______________________________________ _________________
Assinatura Data
T588 Tindó, Rafael Adorjan. Narrativas impressas: fotografias como folhas ao infinito / Rafael Adorjan Tindó. – 2017. 96 f. : il. Orientadora: Regina Célia de Paula. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Fotografia na arte – Teses. 2. Fotolivros – Teses. 3.
Livros de artistas – Teses. 4. Arte narrativa – Teses. I. Paula, Regina Célia de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.
CDU 77.04:002
Rafael Adorjan Tindó
Narrativas impressas: fotografias como folhas ao infinito
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
Aprovado em 3 de novembro de 2017.
Banca examinadora:
__________________________________________________
Profª. Dra. Regina Célia de Paula (Orientadora)
Instituto de Artes – UERJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Gustavo Lima de Campos
Instituto de Artes – UERJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Ivair Junior Reinaldim
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2017
AGRADECIMENTOS
A minha professora e orientadora Regina de Paula, agradeço imensamente a
confiança, generosidade e disposição de se aventurar comigo em um processo
aberto, que me trouxe grande amadurecimento por meio de encontros sempre
produtivos e agradáveis.
Aos professores Ivair Reinaldim e Marcelo Campos, o olhar sensível em
relação a minha pesquisa e a aceitação do convite para fazer parte da banca
examinadora.
Ao professor Roberto Conduru, a essencial colaboração nos caminhos
trilhados por Religare.
À professora Ana Kiffer, determinante para o ponto de virada, fundamental, na
produção de MSV432.
Às professoras Cristina Salgado, Leila Danziger e Sheila Cabo, suas
enriquecedoras aulas durante o período do curso.
A minha mãe, Madalena, e minha irmã, Helena, o permanente apoio e o
estímulo no cumprimento de meus objetivos.
A meu pai, Francisco, a iluminação e o constante aprendizado.
A Erika, o amor, parceria, compreensão e paciência.
A Vicente de Mello, a inspiração sempre renovadora por apresentar os
caminhos que me fizeram seguir pelo universo da fotografia, como arte e ofício.
Aos queridos amigos que sempre torceram e ajudaram desde o início e aos
outros que chegaram na reta final trazendo contribuições valiosas: Bia, Contente,
Dani, Elisa, Fabiano, Fernanda, Fran, Jac, Luisa, Luiza, Polly, Rapha.
Aos amigos e colegas conquistados no Programa, a experiência
enriquecedora e urgente dos Encontros de Greve e a organização do Seminário
Contingência, ações que realizamos para mostrar que a nossa luta pela Uerj existe e
resiste.
Tu que me lês tens a certeza de que compreendes a minha linguagem?
Jorge Luis Borges, A biblioteca de Babel
RESUMO
TINDÓ, Rafael Adorjan. Narrativas impressas: fotografias como folhas ao infinito. 2017. 96 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) - Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2017.
Esta dissertação objetiva analisar algumas das relações existentes entre livro e fotografia e seus possíveis desdobramentos, concentrando-se na criação dos livros de fotografa ou fotolivros como objetos de circulação da imagem impressa e nos seus cruzamentos enquanto livro de artista. Como metodologia foi adotada a análise de textos, obras e publicações referenciais que trazem uma visão sobre as questões do impresso na fotografia a partir de autores como Vilém Flusser, bem como trabalhos que dialogam com a produção do artista, como os de Claudia Andujar e Robert Smithson. O estudo dos processos de criação e desdobramentos das séries Religare e MSV432, que resultaram na produção autoral de dois fotolivros também são investigados no presente estudo.
Palavras-chave: Livro. Fotografia. Fotolivro. Livro de artista. Narrativas, Impressos.
ABSTRACT
TINDÓ, Rafael Adorjan. Printed narratives: photographs as leaves to infinity. 2017. 96 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) - Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2017.
This dissertation aims to analyze some of the relationships between book and photography and their possible developments, focusing on the creation of photographic books or photo books as objects of circulation of the printed image and in their crosses as an artist's book. As a methodology was adopted an analysis of texts, works and reference books that brings a vision on the issues of print in photography from authors such as Vilém Flusser, as well as works that dialogue with the artist's production, such as those of Claudia Andujar and Robert Smithson. The study of the creation and unfolding processes of the Religare and MSV432 series, which resulted in the authoring of two photobooks are also investigated in the present study.
Keywords: Book. Photography. Photobook. Artist book. Narratives, Printed material
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - O livro carbono, Waltercio Caldas, 1980....................................................16
Figura 2 - Livro de Carne, Artur Barrio, 1978-1979....................................................16
Figura 3 - Repressão outra vez, eis o saldo, Antonio Manuel, 1968-1973................17
Figura 4 - Untitled, Felix Gonzalez-Torres, 1993........................................................18
Figura 5 - As coisas estão no mundo, Marilá Dardot, 2014.......................................18
Figura 6 - Bürotisch-Matte, Bali-Mosfellssveit, Diether Roth e Björn Roth, 1994-
1996………………………………………………………………………………………….20
Figura 7 - Collected Works, Volume 7: bok 3b and bok 3d (Reconstrução dos livros
publicados em Reykjavík, 1961), Diether Roth, 1974……………………………….….20
Figura 8 - Artists who make pieces, artists who do books (Cutting book series),
Noriko Ambe, 2008…………………………………………………………………………21
Figura 9 - The americans. Robert Frank, 1958………………………………………….23
Figura 10 - Twenty six gasoline stations, Ed Ruscha, 1963…………………………...26
Figura 11 - Nine swimming pools and a broken glass, Ed Ruscha, 1968……….…...27
Figura 12 - Retrato de Ed Ruscha, Jerry McMillian, 1970..........................................29
Figura 13 - Questionário para um “Livro de Artista”, Nelson Leirner, 1984................32
Figura 14 - A nova arte de fazer livros, Ulisses Carrión, 2011...................................33
Figura 15 - Dear reader. Don’t read, Ulisses Carrión, 1979.......................................34
Figura 16 - Fernanda Grigolin....................................................................................36
Figura 17 - Rony Maltz...............................................................................................36
Figura 18 - Walter Costa............................................................................................36
Figura 19 - “A biblioteca é o museu”, “capítulo” da exposição Fenómeno Fotolibro,
Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB), 2017..............................38
Figuras 20 e 21 - Retratos da Garoupa, fotolivro, Fernanda Grigolin, 2012..............41
Figura 22 - Elástica, edições 1 e 2, 2011 e 2012.......................................................47
Figura 23 - Elástica e outras publicações - 3a Feira de Publicações Independentes
do Sesc Pompeia, 2014.............................................................................................48
Figura 24 - Feira Plana, Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), 2015.....................48
Figura 25 - Religare, detalhe da capa e fotolivro, Rafael Adorján, 2015....................51
Figura 26 - Sem título (série Reahu), Claudia Andujar, 1974.....................................55
Figura 27 - Religare, fotolivro, Rafael Adorján, 2015.................................................56
Figura 28 - Religare, fotolivro, Rafael Adorján, 2015.................................................56
Figura 29 - Religare, fotolivro, Rafael Adorján, 2015.................................................57
Figura 30 - Religare, fotolivro, Rafael Adorján, 2015.................................................57
Figura 31 - Sítio TURMA (Argentina), resenha do fotolivro Religare, 2016...............59
Figura 32 - Sans Accent/Sem sotaque, Rafael Adorján e Wes Foster, 2016............62
Figura 33 - Sans Accent/Sem sotaque, Rafael Adorján e Wes Foster, 2016............62
Figura 34 - Sans Accent/Sem sotaque, Rafael Adorján e Wes Foster, 2016............63
Figuras 35 e 36 - Doze esquinas de subúrbio e uma dúzia de quiosques de praia,
Rafael Adorján e Wes Foster, exposição Responder a tod_s, Despina, 2017..........65
Figura 37 - MSV432 #01, Rafael Adorján, 2017.........................................................68
Figura 38 - MSV432 #09, Rafael Adorján, 2017.........................................................68
Figura 39 - MSV432 #20, Rafael Adorján, 2017.........................................................69
Figura 40 - MSV432 #26, Rafael Adorján, 2017.........................................................69
Figura 41 - Frame do vídeo MSV432, Rafael Adorján, 2017.....................................71
Figuras 42 e 43 - Vistas da exposição MSV432, Rafael Adorján, Galeria da Gávea,
2017............................................................................................................................72
Figura 44 - Capa do fotolivro MSV432, Rafael Adorján, 2017...................................74
Figura 45 - Imagens do fotolivro MSV432, Rafael Adorján, 2017..............................75
Figuras 46 e 47 - Caderno para projeto MSV432, Rafael Adorján, 2017...................78
Figura 48 - Caderno para projeto MSV432, Rafael Adorján, 2017............................78
Figura 49 - Hotel Palenque, Robert Smithson, 1969..................................................81
Figura 50 - Hotel Palenque, Robert Smithson, 1969..................................................81
Figura 51 - Bilderatlas Mnemosine, Aby Warburg, 1924-1929...................................89
Figura 52 - Museu imaginário, André Malraux, 1947.................................................83
Figuras 53 – Trecho de ilustração-guia com desenho de obras integrantes da Nanica
2017............................................................................................................................86
Figura 54 - Fragmento flexível, Rafael Adorján, 2017................................................86
Figura 55 - Imagens das séries Religare e MSV432, Rafael Adorján, 2015 e
2017............................................................................................................................90
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................10
1 A CIRCULAÇÃO DA IMAGEM IMPRESSA NA ARTE ...................................13
1.1 Do impresso ao livro-objeto ..........................................................................13
1.2 O livro de fotografia enquanto obra ..............................................................22
1.3 Relações possíveis entre livro de artista e livro de fotografia ...................31
1.4 Editar como experiência estética: Elástica e as feiras de publicação de
arte impressa ...................................................................................................45
2 A EXPERIÊNCIA DA NARRATIVA NO LIVRO DE FOTOGRAFIA ................49
2.1 Religare ............................................................................................................53
2.2 Outras experiências em publicações e arte impressa: Reply All/Responder
a tod_s. ............................................................................................................61
3 O LIVRO POR VIR ...........................................................................................66
3.1 MSV432: A obra que estrutura o novo livro..................................................66
3.2 A casa imaginada ...........................................................................................76
3.3 Arquivo como criação de mundo ..................................................................82
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................87
REFERÊNCIAS ................................................................................................92
10
INTRODUÇÃO
Ao partir da relação mais que bem sucedida entre livro e fotografia, o objetivo
desta dissertação é desenvolver uma reflexão poética acerca de três momentos da
minha produção, que tem a publicação como elemento substancial. Antes mesmo da
fotografia, tenho desde a infância uma forte relação com o universo do papel, por
meio da produção de histórias em quadrinhos, inseridas em cópias artesanais
xerografadas ou mimeografadas, os chamados fanzines, em que sempre havia a
preocupação de reproduzir o trabalho com o objetivo de fazê-lo circular entre o maior
número possível de pessoas.
O primeiro momento do ensaio sobre minha própria produção se deu com o
processo de criação do fotolivro Religare. Concebido a partir de uma relação familiar
com meu pai, o projeto envolveu o surgimento de uma série fotográfica a partir de
uma experiência religiosa; o segundo, com a publicação Sem Sotaque/Sans Accent,
originada a partir de parceria com um jovem fotógrafo inglês, estabelecida a partir de
relações acerca do cotidiano de culturas diferentes; e, por fim, o novo livro de
fotografia, MSV432, resulta de minha vivência junto às etapas de transformação de
uma casa em obras que irá abrigar a futura sede de uma galeria e um estúdio,
configurando-se em espaço cuja finalidade é completamente diferente daquela para
a qual foi originalmente fundada.
No primeiro capítulo parto de algumas das relações existentes entre o livro e
a fotografia, assim como do cruzamento com outras experiências que problematizam
a imagem impressa, geralmente advindas do campo cotidiano para o artístico, para
então refletir propriamente sobre as conexões entre livro de artista e livro de
fotografia e de que forma minha obra se associa ao cruzamento dessas linguagens.
Nesse campo, apresento algumas proposições com base em elementos que são
intrínsecos a essas publicações, como a produção, a edição e a circulação da
imagem. Também analiso minha experiência como um dos editores da revista de
arte Elástica, produzida durante três anos, além da constante participação em feiras
de publicação de arte impressa, que contribuíram para minha inserção em crescente
rede de publicadores independentes.
11
Neste momento destaco importantes trabalhos que se tornaram referenciais
nesse campo, como os livros conceituais de Ed Ruscha, que reivindicam para o
autor todos os processos que envolvem a criação de uma publicação, bem como o
diálogo com a produção contemporânea no Brasil, compondo assim o início do
presente trabalho. Para o título, tomei como licença poética referência aos estudos
de Vilém Flusser, tornando-se o presente trabalho uma espécie de livro aberto que
pode ser manuseado em páginas como folhas.
Ainda nesse capítulo realizo, por meio de entrevistas, uma interlocução com
artistas e autores da minha geração que pensam a publicação como questão
fundamental em suas pesquisas relacionadas à arte e principalmente no debate
sobre os caminhos da imagem impressa na produção contemporânea no Brasil.
No segundo capítulo debruço-me sobre a experiência do livro de fotografia a
partir dos relatos de minha jornada pessoal que deram origem a Religare. Por aqui,
me aprofundo sobre os processos que envolveram a criação da série e a concepção
do trabalho enquanto publicação. Desenvolvo ainda um estudo sobre a importância
da narrativa no livro de fotografia, abordando perspectivas acerca do discurso não
verbal e do modo de pensar um trabalho que visa ao encadeamento de ideias por
imagens, sempre com exemplos que também se relacionam com minha poética,
assim como em outras publicações comentadas.
No terceiro capítulo apresento a proposta do recém-concluído projeto
MSV432, realizado a partir da imersão em uma casa no bairro da Gávea, Rio de
Janeiro, em obras para ser a sede de uma galeria, e que se estruturou para se
tornar meu novo livro de fotografia, o de maior aproximação com as características
do livro de artista, pela própria natureza do projeto. Além de uma série de imagens,
também foram incluídas a reprodução de páginas de um caderno-guia, criado para
construir um repertório poético acerca de todo o período de trabalho, e, ainda, a
produção de um vídeo que trata de elementos importantes relacionados a minha
convivência na citada casa em transformação. Aqui investigo em mais detalhes os
métodos utilizados que envolveram não só a criação do livro, mas de todos os
elementos do projeto por completo.
Nessa parte também procuro dialogar com pensadores que refletem sobre a
questão da memória, do imaginário e do arquivo na fotografia, fundamentais para a
12
concepção desse projeto em especial, bem como com artistas que geraram,
mediante suas poéticas, uma nova estruturação no impacto da fotografia sobre o
espaço arquitetônico.
Com base nessa organização metodológica, finalizo a dissertação analisando
a relevância do tema no campo das artes, no intuito de gerar alguma contribuição a
partir do que foi levantado. Estabeleço algumas questões para reflexão, que visam
incentivar a produção de mais trabalhos do gênero, com o objetivo de aproximar e
estimular esse público mais abrangente. Concluo analisando as diferenças e os
pontos de convergência das minhas séries Religare e MSV432 em relação aos seus
processos de criação e métodos de produção de suas poéticas.
13
1 A CIRCULAÇÃO DA IMAGEM IMPRESSA NA ARTE
1.1 Do impresso ao livro-objeto fotográfico
Os processos de produção, edição e circulação de imagens são os
condutores deste trabalho. O livro é mídia que tem em sua essência a reprodução
múltipla e a circulação como potenciais. A fotografia também possui a
reprodutibilidade e a distribuição como fundamentos, além da portabilidade como
característica fundamental. Em Filosofia da caixa preta, Flusser afirma que
“fotografias são superfícies imóveis e mudas que esperam pacientemente serem
distribuídas pelo processo de multiplicação ao infinito. São folhas” (1985, p.67). Com
a afirmação de que as fotografias são folhas, temos a confirmação de sua
materialidade como objeto impresso. Algo que pode ser tocado e que pode passar
de mão em mão, sem a necessidade de aparelhos técnicos para a sua distribuição,
podendo ser guardadas em gavetas, sem exigir memória sofisticada para seu
armazenamento. Certamente Flusser aborda tal conceito inserido no contexto de
uma época, os anos 80, um momento pré-digital da fotografia, quando suas
transformações ainda eram voltadas sobre a questão de seu próprio referente, mais
relacionadas a fatores como recepção e distribuição.
Acompanhando esse pensamento, ainda temos exemplos de outros teóricos,
como Arlindo Machado que, em seu livro A ilusão especular (1984), se debruça
sobre a questão do dispositivo da própria câmera fotográfica como meio diferenciado
para a produção de imagens, cujo espelho “nada teria de inocente”, pois o
dispositivo segue algumas configurações, elaboradas tecnicamente a partir de
determinados parâmetros predeterminados. As fotografias teriam então, segundo
Lucia Santaella e Winfried Nöth (1997, p.123), algo de arcaico, por sua
“subordinação ao suporte matérico, papel ou coisa parecida”. Ainda segundo esses
autores, “Nesse aspecto a fotografia é única, constitui-se num objeto singular. Mas
por outro lado, cada fotografia pode ser multiplicada ao infinito” (p.123).
Considerando que fotografias também são informações, é colocada em pauta a
questão de sua distribuição e de seu alcance sem que deixem de ser objetos. Isso
lhes confere valor, trazendo importância à distribuição fotográfica, que segundo os
autores, “ilustra a decadência do conceito de propriedade” (p.123.).
14
Em Ensaios sobre fotografia, de 1981, Susan Sontag lembra que, ao mesmo
tempo em que armazenam o mundo, as fotografias incitam a seu próprio
armazenamento, pois são guardadas em álbuns, emolduradas, postas na parede,
projetadas, exibidas em jornais e revistas, classificadas pela polícia, expostas em
museus, etc. No entanto, com o advento da fotografia digital como armazenamos
nossas imagens?
Recordo há alguns anos ter assistido a uma palestra sobre as possibilidades
de arquivamento de imagens digitais, proferida pelo especialista e coordenador de
preservação da Cinemateca Brasileira (São Paulo), o fotógrafo e educador Millard
Schisler. Ao final de sua fala, todos saíram com a nítida impressão de que não existe
mídia confiável, podendo até mesmo a chamada nuvem (espaço virtual de
armazenamento de arquivos) ser considerada passageira, segundo Schisler, que
concluiu ser ainda sua modalidade impressa a maneira mais apropriada de
preservar as imagens, apresentando então, para exemplificar, a figura de uma velha
caixa de sapatos como o espaço mais adequado para guardar fotografias.
Fato é que estamos vivendo a consolidação de um momento em que as
pessoas deixaram de ampliar as imagens que produziram para apenas usufruir
delas no campo virtual. O livro de fotografia não está na contramão dessa
propagação de imagens porque também é um objeto da contemporaneidade; ele se
apresenta, porém, como um item que carrega em si um pensamento mais cuidadoso
em relação aos critérios de seleção de imagens, àquilo que deve ou não ser
apresentado. Muitas vezes o mais importante é o que não se vê. Tal como Duchamp
(1965) reflete sobre as escolhas do artista e sua pulsão criativa em O ato criador.
Muitas dessas escolhas são totalmente subjetivas e ultrapassam determinados
limites do chamado plano estético.
No ato criador, o artista passa da intenção à realização, através de uma cadeia de reações totalmente subjetivas, Sua luta pela realização é uma série de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano estético (DUCHAMP, 1965, p.2).
As teorias de Flusser ganham ainda mais força nos dias de hoje se
considerarmos que o conceito de fotografia como folha não se perdeu, e permanece
com sua inscrição no mundo como imagem impressa, algo que encontra bastante
espaço na plenitude da era digital. Livros permanecem como um dos principais
15
veículos em que são abrigadas essas imagens seja em páginas de texto ou em
publicações repletas de fotografias distribuídas essencialmente para ser folheadas.
Dentro desse largo espectro de denominação, ainda cabem diversas
experimentações de linguagem no campo da arte impressa, que remetem às
fotocolagens cubistas, a algumas práticas dadaístas e a outras ações também de
ordem política.
Apresento neste estudo algumas proposições que têm origem no surgimento
do livro de artista e em seu desdobramento como livro de fotografia, partindo de
elementos que lhes são intrínsecos, como a produção, a edição e a circulação da
imagem.
Os livros de artista, mesmo não sendo necessariamente classificados como
livros fotográficos, apresentam características em comum, como o caráter
experimental, segundo o qual o próprio objeto “livro”, simbolicamente um forte
elemento cultural, tende a ser ressignificado, por meio de ramificações como livro-
obra ou livro-objeto, este último diretamente relacionado aos artistas conceituais no
Brasil, com obras seminais de Hélio Oiticica (Arma Fálica), Artur Barrio (Livro de
carne, Cadernoslivros), Nuno Ramos (Balada) e, particularmente, Waltercio Caldas
(O Colecionador, O Livro Carbono, Como imprimir sombras, Velásquez), artista que
é um verdadeiro bibliófilo, como se observa em entrevista concedida a Marília
Andrés Ribeiro (2006, p.189), publicada nos Anais do XXVI Colóquio da CBHA:
Eu diria que os livros são objetos da família dos espelhos e dos relógios. De alguma forma livros são máquinas constantes, seriadas, com continuidade e tempo próprios e o folhear de suas páginas faz com que sejam “objetos de visitação”. Essas características, todas tridimensionais, sempre me atraíram neste objeto. E os livros, como os espelhos, parecem ser sempre maiores por dentro do que por fora. Não é um desafio tentar fazer alguma coisa maior por dentro que por fora?
16
Figura 1. Waltercio Caldas, O livro carbono, 1980
Fonte: Sítio do artista Waltercio Caldas (http://www.walterciocaldas.com.br), Acesso em: 14 jan. 2017
Figura 2. Artur Barrio. Livro de Carne, 1978-1979
Fonte: HANEUSE, Louis D, 1978-1979 - Cortesia Galeria Milan (http://www.galeriamillan.com.br/pt-BR/ver-obra/livro-de-carne) Acesso em: 13 fev. 2017
Também merecem destaque artistas que têm relação direta com o impresso,
ainda que não necessariamente em formato decorrente de possibilidades oriundas
do livro. Obras produzidas com origem no cotidiano, realizadas a partir de jornais,
revistas, posters, materiais de descarte de gráficas, entre outros. É o caso de
17
Antonio Manuel, que trouxe para o artístico questões sobre estratégias de
circulação da imagem impressa do cotidiano, ao produzir de 1968 a 1975, obras
vinculadas à resistência à ditadura militar no Brasil. Na série Repressão outra vez,
eis o saldo, o artista alterou as manchetes de uma série de edições do jornal O Dia
e as recolocou no circuito de distribuição e venda na cidade do Rio de Janeiro.
Após essa ação, realizada com o artista Julio Plaza, transformou as matrizes dos
jornais manipulados em serigrafias com fundo vermelho, ocultas por uma cortina
preta, que deveria ser aberta pelo público. A exposição, que seria inaugurada no
MAM em 1968, acabou sendo interditada.
Figura 3. Antonio Manuel, Repressão outra vez, eis o saldo, 1968-1973
Fonte: ELOY, Leo, 2013, Sítio da Fundação Bienal de São Paulo (http://www.bienal.org.br/post.php?i=267) Acesso em: 23 fev. 2017
A ditadura manteve as cortinas cerradas, e o movimento, reprimido nas ruas,
não teria mais espaço de circulação simbólica. De certo modo, com o aumento da
tensão política, a cortina antecipava ironicamente o gesto da censura, que se
intensificaria após a publicação do AI-5, em dezembro daquele mesmo ano.
Outros exemplos problematizaram a questão da circulação da imagem
impressa como elemento poético. Em Untitled (1993), Felix Gonzalez-Torres
reproduziu um número ilimitado de cópias de dois cartazes − um com uma mesma
frase e o outro com uma determinada imagem −, e os empilhou, oferecendo-os
18
livremente aos espectadores de sua exposição. Embora muitas de suas obras não
fizessem uso de câmera para as produzir, o artista tinha formação em fotografia, e
algumas de suas peças demonstram um pensamento fotográfico. Quando trabalhos
como esses são apresentados como instalações, o que sobrevive é seu registro no
espaço, uma imagem que serve de testemunho de algo que o artista dispôs e que
não pode ser reproduzida de maneira tradicional. Tal ideia de reprodução e
repetição foi, aliás, uma constante na obra de Gonzalez-Torres.
Figura 4. Felix Gonzalez-Torres,Untitled,1993
Fonte: Sítio Artslant (https://www.artslant.com/global/artists/show/2048-felix-gonzalez-torres?tab=PROFILE), Acesso em: 15 mar. 2017
Já a instalação As coisas estão no mundo, de Marilá Dardot, foi formada por
três toneladas de papeis de teste, usados em gráfica para acertar cor e registro de
impressão de livros de arte, distribuídas no chão da galeria organizadas em 20
pilhas, cada uma delas esculpida no formato de uma letra, a fim de compor a frase
que intitula o trabalho.
19
Figura 5. Marilá Dardot, As coisas estão no mundo, 2014
Fonte: Sítio da Galeria Silvia Cintra (http://www.silviacintra.com.br/exhibitions/as-coisas-estao-no-mundo) Acesso em: 19 ago. 2017
Segundo o release da instalação, realizada na Galeria Vermelho, em 2014,
“Marilá usa esse material geralmente descartado em casas de impressão,
juntamente ao título da música de 1969 de Paulinho da Viola, “Coisas do mundo,
minha nega” para reafirmar que, como tudo mais que nos cerca, a arte está no
mundo e existe como objeto de percepção humana” (As coisas..., 2014). É nesse
universo da linguagem escrita que a artista já reconhecidamente produz seus
trabalhos, tomando como matéria uma relação particularmente direta com a
literatura; cabe enfatizar, entretanto, que essa instalação especificamente também
se caracterizou por experimentações visuais e espaciais trazidas pelo emprego dos
impressos, integrando-os a seu território de questões.
Na transição das questões do impresso para a o universo que abrange o
formato livro, uma referência para a compreensão conceitual, sobretudo no aspecto
da experimentação do livro de artista como livro-objeto, é o alemão Karl-Dietrich
Roth, mais conhecido como Dieter Roth (1930-1998). Com produção muito extensa
e exuberante por apontar para vários caminhos, Roth tornou-se mais conhecido pela
inventividade de seus trabalhos, que chegavam a incluir materiais como alimentos
podres, por exemplo, formando obras classificadas como arte biodegradável, que
tinham relação direta com a arte povera. Boa parte de sua obra apresenta grande
20
preocupação matérica, já que seus livros-obra e desdobramentos também trazem
questões para o campo escultórico. Amigo próximo de vários membros do Fluxus,
Roth é muitas vezes creditado como inventor do moderno livro de artista, por ter
sistematicamente desconstruído o objeto livro como forma, ao longo dos anos 50 e
60. Uma de suas criações, a série de livros Picture Books, produzida a partir de
1957, foi inovadora ao permitir através de furos, que mais de uma página fosse vista
ao mesmo tempo sem a necessidade de manuseio. O artista também tinha o hábito
de reutilizar livros encontrados nas ruas, sobras de impressão e jornais.
Figura 6. Diether Roth e Björn Roth, Bürotisch-Matte, Bali-Mosfellssveit, 1994-1996
Fonte: Sítio Contemporary Art Daily (http://www.contemporaryartdaily.com/2010/10/dieter-roth-and-bjorn-roth-at-hauser-and-wirth/) Acesso em: 23 ago. 2017
Figura 7. Dieter Roth, Collected Works, volume 7: bok 3b and bok 3d (Reconstrução dos livros
publicados em Reykjavík,1961),1974
Fonte: Fonte: Sítio Contemporary Art Daily (http://www.contemporaryartdaily.com/2010/10/dieter-roth-and-bjorn-roth-at-hauser-and-wirth/) Acesso em: 23 ago. 2017
21
Relacionado a um alargamento da materialidade do livro enquanto objeto,
encontramos semelhanças dos métodos trabalhados por Roth na obra de artistas
como a japonesa Noriko Ambe. Em Cutting book series, páginas de catálogos e
publicações são recortadas de forma a cortar padrões e informações preexistentes
nos livros de modo a adulterá-los. Num trabalho em especial foi recortado um livro
de reproduções da série Word paintings, de Ed Ruscha, outro artista que se tornou
referência na produção de livros de artista, principalmente em sua relação direta
com a fotografia e a construção de uma narrativa que serviu para a ascensão do tipo
de publicação que passou a ser denominada essencialmente photobook ou fotolivro.
Figura 8. Noriko Ambe, Artists who make pieces, artists who do books, 2008, Cutting book series
Fonte: Sítio Maho Kubota Gallery (https://www.mahokubota.com/en/artists/noriko-ambe/) Acesso em: 13 mar. 2017
A partir dos livros de Diether Roth e das escolhas posteriormente empregadas
por Noriko Ambe e outros artistas, podemos refletir acerca da ressignificação da
imagem de um objeto e sobre a sua própria condição de livro.
Johanna Drucker (2004, s.p.), artista e pesquisadora estadunidense,
professora da Universidade de Berkley, na Califórnia, considera inicialmente o livro
“metáfora, poema, e sequência narrativa ou não narrativa ao situar seus aspectos
históricos, teóricos, sociológicos e técnicos nos movimentos de arte de vanguarda
do século XX” e explica que “a capacidade de um livro de artista de funcionar
22
conceitualmente está normalmente relacionada à função de um espaço real de
performance ou exibição”. Nesse sentido, o livro de artista se apresenta como uma
espécie de libertação formal do livro de qualquer compromisso com a atribuição de
escritura, o que remete ao codex da era antiga tardia, para se tornar um objeto
repleto de possibilidades matéricas, passando também a ser manipulado, recortado
e triturado, ultrapassando fronteiras.
23
1.2 O livro de fotografia enquanto obra
A fotografia é somente uma ferramenta para realizar a obra, que é o livro. Edward Ruscha
A partir da metade do século XX, buscando validar seu status como
linguagem artística, a fotografia se consolidava como um dos mais importantes
meios de informação da cultura de massa, quando se popularizou por meio de seu
viés documental, junto com os avanços da indústria gráfica, intensificada nessa
mesma época. Livros e revistas tornaram-se, assim, veículos fundamentais para
circulação de trabalhos fotográficos de importância histórica. Com prefácio de Jack
Kerouac, Robert Frank lança em 1958 o livro que se tornou um verdadeiro clássico
do casamento bem-sucedido entre livro e fotografia, realizado a partir de uma longa
viagem pelos Estados Unidos, sem roteiro estabelecido e com o intuito de
desenvolver “um estudo visual de uma civilização”, nome do projeto que deu origem
ao seminal The americans.
O fotógrafo percorreu o país durante dois anos, registrando a vida de ricos e
pobres, na cidade e no campo, o que resultou em 27 mil imagens, das quais Frank
selecionou primeiro, duas mil. De uma última seleção, restaram as 83 fotos que,
podemos afirmar, contribuíram para definir o que eram os Estados Unidos dos anos
50, com o crescimento de sua sociedade consumista enfrentando o debate dos
direitos civis e outras questões políticas e comportamentais. A importância de seu
projeto como publicação é sintetizada por Frank em poucas palavras, mas que
costumam ser repetidas como um verdadeiro mantra dentro do universo de
produtores de fotolivro: “Depois da fotografia, o livro. E só depois a exposição”.
A seu editor, Gerhard Steidl, dono da Steidl, considerada a maior editora
de livros de fotografia do mundo, afirmou que as pessoas não deviam ser muito
respeitosas com suas fotos, que elas foram feitas para todo mundo e não para
ser vistas emolduradas, e que deviam sempre as olhar como olham para um
livro.
24
Figura 9. Robert Frank, The americans, 1958
Fonte: Sítio Steidl Books (https://steidl.de/Books/The-Americans-2131325657.html) Acesso em: 19 mar.2017
O curador inglês Gerry Badger (2015, p.135) afirma em seu artigo Por que
fotolivros são importantes? que a fotografia seria, “em essência, uma arte literária, e
o fotógrafo um narrador que se vale de imagens em vez de palavras, alguém que
conta uma história” Dessa forma, distingue a narrativa como elemento essencial da
relação entre fotografia e literatura, partindo da ideia de unidade, resultante de um
conjunto de imagens em sequência: tal como as páginas do livro, as fotografias
precisam ser lidas em sequência, uma após a outra, para fazer sentido. Evitando
generalizar, entretanto, é necessário lembrar que os livros de fotografia não atendem
a uma fórmula ou padrão para sua realização. E, mesmo conceitualmente, fotolivro é
termo recente aplicado a determinadas publicações que têm a fotografia como
linguagem principal, embora sejam repletas de especificidades que variam de
acordo com as características de cada projeto.
Sendo a fotografia um índice, podemos pensar automaticamente no livro de
fotografia como um de seus símbolos referentes, já que as fotos podem ser
apresentadas de diferentes maneiras, seja na forma de projeções, ampliações,
álbuns virtuais ou do objeto em questão, o livro fotográfico. O livro é por si mesmo
um objeto simbólico em nossa cultura. Basta recordarmos sua importância
25
fundamental para as três principais religiões monoteístas: o cristianismo, o judaísmo
e o islamismo, que podem ser consideradas livrescas, posto que seus fundamentos
estão impressos em livros, escrituras sagradas que perpetuam a tradição.
A própria discussão acerca do termo “fotolivro” já parece bastante
desgastada, visto que seu uso já está amplamente difundido em relação à
expressão “livro de fotografia”. Existem, porém, pontos divergentes. Há quem prefira
o emprego da última, como o historiador Joaquim Marçal Ferreira de Andrade (2015,
p.206), ao considerar que, “O livro não adentrou a fotografia; ao contrário, foi a
fotografia que adentrou o livro, requalificando-o, chegando ao extremo de torná-lo
integralmente fotográfico – mas sem deixar de ser, essencialmente, livro”.
Nomenclaturas à parte, segundo Parr e Badger (2004), o fotolivro (termo
adotado por esses autores), é o veículo mais efetivo para apresentar um trabalho de
fotografia e mostrar a visão do autor para uma audiência de massa. Sendo assim,
ele seria inicialmente editado e organizado com essa finalidade. Ressaltam ainda
que tais livros apresentam uma narrativa que se encerra em si, diferenciando-se de
um catálogo ou portfólio, por exemplo.
Nesse universo, temos o exemplo de American Photographs, de Walker
Evans (1938), que, embora sendo na verdade catálogo de exposição, é publicação
sempre lembrada quando a origem da denominação “fotolivro” surge em algum
debate. Por trazer uma narrativa incomum, que o destacaria da linguagem dos
demais catálogos produzidos na época, se tornou muito mais conhecido do que a
própria exposição.
A transição fundamental ocorreu de fato quando algumas dessas publicações
começaram a ganhar o status de obra de arte, sobretudo em suas aspirações
conceituais, que ultrapassaram a simples ideia de “melhor suporte para apresentar
imagens”. Exemplo que pode ser considerado um ponto de inflexão é Twentysix
gasoline stations, de Edward Ruscha (1963), que permite fazer um elo entre as
teorias do livro de artista e do livro de fotografia. Essa obra, que se desdobrou em
uma série de livros, costuma ser mencionada de forma recorrente como uma
referência para a história da arte conceitual. O jornalista Sean O’Hagan, do The
guardian, considera essa série um marco importante, ao relacioná-la diretamente à
história da publicação de fotolivros independentes, iniciada nessa mesma época,
26
junto ao crescimento da cultura dos fanzines, originada pelo movimento punk nos
anos 70, e a cultura DIY (Do-It-Yourself). De fato, essa relação faz muito sentido por
diversos aspectos. Primeiramente pelo pioneirismo na realização de publicar de
forma independente, ainda que a questão de ser independente seja quase inerente à
prática artística. Na época, porém, não existia registro de proposta similar.
Outro ponto diz respeito à repercussão e ao alcance obtidos por seu projeto
devido à radicalidade do formato: um livreto banal e barato, que remete ao cotidiano,
bem distante da suposta neutralidade do objeto descontextualizado do chamado
cubo branco. Enquanto os livros de fotografia tinham o papel de consolidar a carreira
do fotógrafo, livros como o de Ruscha representavam uma postura política, pois
conceitualmente desejavam democratizar o acesso à arte.
Não por acaso, o livro foi produzido em papel comum, com fotografias
comuns, realizadas especificamente para o projeto, sem qualquer semelhança com
o que se esperaria de um livro de fotografia (lombada, capa dura, etc) ou de uma
ideia mais conservadora de obra de arte. Pintor de formação, Ruscha fez com que
esse não fosse também um livro de fotógrafo, por definição. A grande potência da
obra foi revelada justamente pelo estranhamento que ela causou. A primeira edição
de Twentysix teve apenas 400 exemplares numerados, assinados e vendidos a
meros três dólares, dando ao artista total autonomia sobre o controle da venda e
distribuição. Tal estratégia resulta por inserir o livro de fotografia no universo
conceitual, colecionável e independente dos livros de artista, originando os self-
publish books, que conquistam cada vez mais espaço hoje em dia.
Ed Ruscha seguiu com essa prática em outros títulos variados − como Some
Los Angeles Apartments (1965), Every building on the sunset strip (1966), Thirtyfour
parking lots (1967), Nine swimming pools and a broken glass (1968), Various small
fires and milk (1970), entre outros −, que se caracterizavam por uma suposta
“banalidade” do cotidiano, o que era enfatizado pela identidade visual muito próxima
dos títulos, adotando quase sempre a mesma tipologia e edições com tamanhos
aproximados.
27
Figura 10. Ed Ruscha, Twentysix gasoline stations, 1963
Fonte: Sítio Art Gallery NSW (https://www.artgallery.nsw.gov.au/collection/works/427.2008.a-vv/) Acesso em: 10 fev.2017
28
Figura 11. Ed Ruscha, Nine swimming pools and a broken glass, 1968
Fonte: Sítio Art Gallery NSW (https://www.artgallery.nsw.gov.au/collection/works/432.2008.a-m/) Acesso em: 10 fev.2017
29
Esgotando-se as edições, entretanto, o artista acabou incorporando a tradição
da gravura e dos livros de luxo, abandonando a prática até então adotada. Talvez
surpreso com a repercussão dos primeiros livros, produziu novas edições de
Twentysix (uma com tiragem de 500, e outra de 3000 exemplares), mas logo depois
considerou essa atitude equivocada, pois os mecanismos que permitiram o aumento
da circulação de sua obra já não democratizavam mais seu acesso devido à grande
valorização obtida por esses trabalhos. O artista chegou a comentar suas
metodologias de trabalho e intenções com a fotografia em entrevista concedida à
Artforum, em fevereiro de 1965, transcrita em Stiles e Selz, 1996, p. 356-357 e
citada em Silveira (2008, p.63):
Quando eu estou planejando um livro, eu tenho uma fé cega no que estou fazendo. Nem estou realmente interessado nos livros como tal, mas estou interessado em formas não usuais de publicações. O primeiro livro resultou de um jogo de palavras. O título veio antes mesmo que eu pensasse sobre as imagens. Eu gosto da palavra “gasolina” e da qualidade específica de “vinte e seis”. Se você olhar o livro, verá como a tipografia funciona bem – eu trabalhei tudo antes de obter as fotografias. Além de tudo, as fotografias que eu uso não são “artísticas” [“arty”] em nenhum sentido da palavra. [...] As minhas são simplesmente reproduções de fotos. [...] Para mim, elas são nada menos que instantâneos. [...] Eu eliminei todo o texto de meus livros – quero somente material neutro. Minhas fotos não são o que interessa, nem o assunto importa. Elas são simplesmente uma coleção de “fatos”; meu livro é mais como uma coleção de ready-mades.
Quando compara seus próprios livros a ready mades, fica evidente o
pensamento de Ruscha sobre a maneira como desenvolve seus trabalhos e como,
estrategicamente, reflete sobre seu próprio lugar na arte – como, aliás, também se
posicionava Marcel Duchamp. O que importa não é a fotografia, mas seu uso
conceitual como meio de chegar a uma linguagem própria, mediante suas
publicações, que podem ser exemplificadas pela subversão de certos elementos do
cotidiano, como postos de gasolina, piscinas, prédios e estacionamentos, junto a
elementos tipográficos.
30
Figura 12. Jerry McMillian, Retrato de Ed Ruscha, 1970
Fonte: Sítio da revista The New Yorker, 2014, (https://www.newyorker.com/culture/photo-booth/picture-desk-ed-ruscha-jerry-mcmillan) Acesso em: 8 mar. 2017
Artista com larga produção relacionada à fotografia e arte conceitual, Jeff Wall
examinou o uso da linguagem do fotojornalismo, da documentação e do amadorismo
na obra de artistas conceituais dos anos 60 e 70 no texto “Marcas da indiferença -
Aspectos da fotografia na, ou como arte conceitual”, de 1995. O período foi crucial
para a entrada da fotografia no circuito de arte, e um de seus principais expoentes
foi Ed Ruscha, sobre cujos livros, Wall comenta:
Os livros de Ruscha detonam o gênero “livro de fotografias”, aquela forma clássica em que a fotografia de arte proclama sua independência. Twentysix gasoline stations (1963) pode até representar os postos de gasolina no trajeto de Ruscha entre Los Angeles e a casa de sua família em Oklahoma, mas sua importância artística provém, num momento em que “a estrada” e a vida à beira da estrada já haviam se tornado um clichê autoral nas mãos dos epígonos de Robert Frank [...] tratando-a como um sistema e uma economia que se refletem tanto na estrutura das imagens feitas por Ruscha quanto da publicação em que aparecem (WALL, 2017, p.182).
31
No mesmo texto, Wall (2017, p.179) aponta que “O amadorismo é uma
metodologia redutivista radical na medida em que é a forma de uma personificação”,
colocando o conjunto de livros publicados por Ruscha entre 1963 e 1970 como o
mais puro exemplo de entrega a uma simulação de amadorismo exercida por quase
todos os fotoconceitualistas da época. Discussão que vai de encontro à
disseminação em larga escala da “fotografia amadora” durante os anos 60,
fenômeno significativo capitaneado por empresas como Kodak e posteriormente
revolucionado por outras, como Nikon e Polaroid, que se baseavam em sistema
mais popular com nível mínimo de capacitação. Assim o amadorismo deixava de ser
“uma categoria técnica para se revelar como categoria social móvel, na qual a
competência limitada torna-se campo aberto à investigação”.
Problematizando a questão dos livros de fotografia e trazendo-a para o
debate no contexto atual, a circulação está mais relacionada à tiragem do que
propriamente à inserção na sociedade desse determinado segmento de livro.
Reprodutibilidade, distribuição e circulação continuam sendo temas discutidos, pois
são elementos essenciais para compreensão acerca da diferença entre livro de
artista e livro de fotografia, sendo alguns de seus conceitos, diferenças e
cruzamentos analisados no próximo capítulo a partir de referenciais históricos e
diálogos com a contemporaneidade.
.
32
1.3 Relações entre livro de fotografia e livro de artista
Livros de artista são livros ou objetos em forma de livro sobre os quais, na aparência final, o artista tem um grande controle. O livro é entendido nele mesmo como uma obra de arte. Eles não são livros com reproduções de obras de artistas ou apenas um texto ilustrado por um artista. Na prática, essa definição quebra-se quando o artista a desafia, puxando o formato livro em direções inesperadas.
Stephen Bury (1995)
Book art pode ser visto como uma arte de ação, uma espécie de happening ou teatro, considerando a situação em que o trabalho é experimentado e exige a participação do leitor. O livro fica no centro de tal situação, mas a experiência é controlada pelo leitor.
Büchler (1986) O livro é um volume no espaço. Livro é uma sequência de espaços (planos) em que cada um é percebido como um momento diferente. O livro é, portanto, uma sequência de momentos.
Julio Plaza (1982)
Para se estabelecer algum parâmetro diante de possibilidades de definição
tão amplas sobre as relações entre livro de artista e livro de fotografia, é preciso
retomar a questão do livro de artista propriamente dito. Tendo a produção no Brasil
como referência, apontamos como importante marco a exposição Tendências de
livros de artista no Brasil, realizada no Centro Cultural São Paulo (CCSP) em 1985,
com curadoria de Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa.
Nessa exposição foi apresentada produção até então jamais reunida,
incluindo experiências radicais, como a dos concretos e neoconcretos que
enfatizavam a presença da imagem gráfico-espacial por meio de elementos visuais
em seus poemas-objeto. O olhar curatorial extrapolava os limites da concepção de
livro de artista já naquela época, pois as curadoras consideravam ser possível no
Brasil um novo tipo de interação, de identidade entre “forma” e “conteúdo”, ao
“pensar numa tipografia criadora (...) numa nova ideia de livro (...), pois suas
realizações não requerem necessariamente o suporte livro, podendo extrinsecar-se
em outras formas, como o cartaz, o filme, etc.”. (FABRIS, DA COSTA, 1985, p.12)
33
Figura 13. Nelson Leirner, Questionário para um “Livro de Artista”, 1984
Fonte: Catálogo Tendências do Livro de artista no Brasil, 1985, Centro Cultural São Paulo
Devido a sua importância histórica, houve uma segunda edição, pouco mais
de 30 anos depois, realizada entre novembro de 2015 e março de 2016 no mesmo
CCSP e atualizada com a presença de artistas fundamentais que não estavam na
primeira edição − como Neide Sá, uma das articuladoras centrais do
Poema/Processo (movimento de vanguarda que contava também com Flaves Silva,
Alvaro de Sá e Wladmr Dias-Pino) −, artistas da geração atual, que lidam com a
poética e os desdobramentos do livro de artista em seus trabalhos − como Bruno
Mendonça e Rafaela Jemmene do projeto Sobrelivros − e também dos próprios
curadores da segunda edição, Amir Brito Cadôr e Paulo Silveira, dois importantes
nomes relacionados ao tema, ambos com teses publicadas sobre livro de artista no
Brasil.
Cadôr criou uma biblioteca com acervo de publicações de artista e livros
sobre o tema dentro da Escola de Belas Artes da UFMG, onde atualmente é
professor, tendo ainda realizado o projeto gráfico e a tradução de The new art of
34
making books, do poeta e artista mexicano Ulisses Carrión, que incorpora em seus
livros elementos de outros livros de artistas. Publicado originalmente em 1975, esse
título é um dos mais importantes textos a respeito do potencial do livro como
estrutura, em que é explicada a diferença entre o escritor que escreve textos e o que
faz livros. Feito originalmente para uma audiência de poetas, a publicação surgiu
como uma espécie de manifesto que reverberou entre os jovens artistas que se
interessaram pelo livro como forma de arte.
Os livros de poesia visual e concreta de Carrión ampliaram o próprio uso do
livro como suporte para expressão artística, ao utilizar a página como um espaço
singular. Carrión foi um dos primeiros artistas a produzir também uma escrita teórica
sobre livros de artista.
Figura 14. Ulisses Carrión, página de A nova arte de fazer livros, 2011
Fonte: Blog oficial do Seminário “Perspectivas do Livro de artista”, 2011, UFMG (https://seminariolivrodeartista.wordpress.com/2011/03/29/ulises-carrion/) Acesso em: 26 abr. 2017
35
Figura 15. Ulisses Carrión, Dear reader. Don’t read, impressão sobre papel, 1979
Fonte: Sítio World Art Foundation (https://www.worldartfoundations.com/museo-jumex-ulises-carrion-dear-reader-dont-read/) Acesso em: 8 mar. 2017
Outro artista que teorizou sobre as vicissitudes do livro de artista, mas pelo
viés da produção industrial e sua relação com as linguagens artísticas, Julio Plaza
(1982, p.2) afirma que:
Colocar o problema do livro de artista é colocar automaticamente dois outros aspectos que lhes são inerentes e que delimitam a produção do livro como trabalho artístico: primeiro, as relações entre o livro e seu sistema de produção industrial e segundo, as relações das artes entre si, sobretudo entre a literatura e as demais linguagens tais como: o jornal, a fotografia, o telégrafo, o cinema, a propaganda e ainda tipos de reprodução tradicional como técnicas reprodutoras das linguagens artístico-visuais.
À medida que ia desenvolvendo a pesquisa, fui sentindo necessidade de
estabelecer diálogo com artistas e autores da minha geração com produção teórica
que também tratasse do universo que eu vinha abordando; já não me bastavam os
breves encontros em feiras de publicação. Desenvolvi, então, uma investigação
sobre a produção daqueles que atualmente também produzem fotolivros e livros de
artista no Brasil. Percebi o quanto era importante me comunicar com meus pares e
seus estudos, tais como os de Paulo Silveira (As existências da narrativa no livro de
artista), Michel Zózimo (Estratégias expansivas: publicações de artistas em seus
espaços moventes), Fernanda Grigolin (Ensaio sobre livro de fotografia como livro
de artista), Leticia Lampert (Fotolivro ou livro de artista?), além de artistas-
pesquisadores que tratam a publicação como questão importante dentro de suas
poéticas, tais como Regina Melim, Fabio Morais, entre outros.
36
Como já mencionado, o movimento vem passando por significativo
crescimento, já existindo, aliás, uma editora de São Paulo, Ikrek edições, dedicada a
promover e divulgar a produção de livros de artista no Brasil, publicando obras de
Luis Camnitzer, Regina Vater, Thiago Honório, entre outros. Pensando o livro como
suporte artístico, essa editora surgiu com o intuito de dar visibilidade e
reconhecimento a diversas iniciativas presentes no sistema de arte, ajudando-as a
circular, com a consciência de estarem se inserindo em um espaço novo, entre o
acervo, o arquivo e a biblioteca. Uma consciência que procura expandir as barreiras
de um universo fechado e segmentado, geralmente retroalimentado pelos fotógrafos,
como escreveu o professor e pesquisador Ronaldo Entler, no artigo “Sobre
fantasmas e nomenclaturas (parte 3): fotolivros”, para o sítio Icônica:
Num ambiente artístico mais amplo, o fotolivro continua sendo “essa coisa do pessoal da fotografia” com a qual outros públicos e outros artistas pouco se identificam. De fato, as publicações alavancadas por toda essa movimentação não chegaram às livrarias dos museus ou das Bienais, e os fotógrafos continuam sendo os grandes consumidores de fotolivros. São os próprios fotógrafos os que mais se empolgam com as novas publicações, são essencialmente eles que estouram seus orçamentos para comprar os livros dos amigos (ENTLER, 2015).
Diante de uma discussão de certa forma polêmica, resolvi entrevistar três
jovens autores contemporâneos que pensam e produzem inseridos nesse contexto:
Fernanda Grigolin, Rony Maltz e Walter Costa, todos com artigos e ensaios
publicados sobre a produção de livros de fotografia no Brasil. Propus uma conversa
mais longa a partir de três perguntas, que serviram de gatilho para que pudessem
discorrer sobre a questão do livro de fotografia como livro de artista, seus meios de
produção, difusão e circulação, entre outros desdobramentos, como o surgimento de
especializações e pós-graduações específicas a respeito do fotolivro no universo
acadêmico, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, mas que começa a tomar
forma também na América Latina.
37
Figura 16. Fernanda Grigolin Figura 17. Rony Maltz Figura 18. Walter Costa
Fonte: Cortesia da autora Fonte: Cortesia do autor Fonte: Cortesia do autor
Fernanda Grigolin é artista visual, editora e pesquisadora. Durante dez anos
foi ativista de movimentos sociais no Brasil e na América Latina. Possui
especialização em direitos humanos (USP) e é mestre em artes visuais pela
Unicamp.
Rony Maltz é professor e artista visual, mestre em fotografia pelo ICP-Bard
College (NY). Faz livros de fotografia e projetos multimídia que exploram as
convenções do estilo documental e os limites entre texto e imagem.
Walter Costa estudou fotografia na Blank Paper Escuela de Fotografia, em
Madri. É fotógrafo e editor independente italiano com base em São Paulo.
Pesquisador na área da edição criou o projeto The Rising Card, é um dos
fundadores do grupo de discussão sobre fotolivros Trama e coordenador do grupo
de estudos Lombada − Laboratório de Fotolivros.
Os três apresentaram suas percepções sobre o assunto, a partir das
seguintes questões. Rony Maltz preferiu agrupar as questões em uma única
resposta:
1. Para você, a produção autoral de um livro de fotografia pode ser vista da
mesma forma que a de um livro de artista? Quais são os pontos comuns e os
elementos diferenciais em torno desses tipos de classificação?
Fernanda Grigiolin: Pode e não pode. Livro de fotografia tem um, digamos assim,
“guarda-chuva” bem amplo. Pode ser desde um portfolio que alguém editou e fez
esse portfolio no formato livro. Pode ser desde algo que entreguei para um editor e
38
ele editou para mim, ou até mesmo pode ser uma impressão em uma gráfica rápida.
Acho que não tem diferenciação. Tem muita gente produzindo teoria sobre esse
tema, como o Paulo Silveira, tentando pensar definições sobre o que é a coisa, mas
creio que mais importante do que seja a coisa é [o modo] como é realizada. O que
eu lembro sempre é que o livro de artista de alguma forma nasce cunhado dentro de
um contexto das artes visuais, no momento em que há certa “crise” dos meio
tradicionais e os artistas passam a utilizar outros suportes, como instalações, vídeos,
livros. Temos os exemplos do Fluxus nos EUA, dos poetas concretos na América
Latina. E olhando para a história da arte, tem muita gente que trabalha pensando na
questão do livro único, enquanto outros pensam no livro reprodutível, e eu mesma
me localizo nesse segmento. E pelo viés da produção, edição e circulação, nem todo
livro de fotografia é um livro de artista. Cada vez mais eu uso a palavra “publicador”
por acreditar que publicar não é só um ato público, mas também político. Cada vez
mais eu acredito que a potência do livro é também política. Não é só a partir de um
viés do belo, mas a partir da denominação de um olhar político/público. Um livro de
artista é aquele em que produção, edição e circulação estão no mesmo pé de
igualdade e ali há um conceito de uma pessoa que é a publicadora disso. Ela pode
ser um editor, ela pode ser um artista, mas o conceito de publicador é muito mais
interessante do que o conceito de autor, por exemplo.
Walter Costa: Nesse sentido tem pontos em comum e outros de diferença. Um livro
de fotografia pode ser um livro de artista, em termos de produção, por exemplo. Em
relação ao livro de artista, existe a questão de o artista acompanhar cada parte do
processo de produção, de estar presente. Geralmente vemos esse processo por
meio da questão do livro artesanal, de tiragem mais reduzida. Há uma tendência a
uma “artesanalização” do livro de fotografia em relação ao livro de artista. Lembro de
um provérbio inglês que diz “Quando a maré sobe, todos os barcos sobem junto”, ou
seja, se é para ser bom, tem que ser bom para todo mundo. Isso é verdade até certo
ponto no caso do livro, porque entram em jogo as diferentes estratégias editoriais
que servem basicamente para fazer a pessoa ter vontade de comprar. O livro
artesanal, que lida com a questão da exclusividade da obra de arte, pode virar um
múltiplo, com tiragem reduzida, assinada pelo artista; daí se começa a criar
mecanismos que também sevem para chamar a atenção do público. A presença do
autor em todo o processo, a tiragem reduzida, o mito da exclusividade e a questão
39
de se pensar o livro como uma obra são alguns pontos. Outra questão importante
sobre livros de artista e livros de fotografia é que muitas vezes não é nem o autor
que estipula essas diferenças; são pessoas alheias ao autor. Temos, por exemplo,
livros que foram publicados incialmente sem nenhuma pretensão. Muitas vezes essa
distinção é feita muito tempo depois. As 3.000 cópias dos livros de Ed Ruscha, que
curiosamente ainda são encontradas em bibliotecas públicas nos EUA na sessão
“transportes”, ficaram um bom período circulando nas bibliotecas dos museus e
agora estão onde? Na coleção dos museus. Fenômeno que aconteceu também com
outros livros, claro. O próprio The Americans, do Robert Frank, já não está mais na
biblioteca do MoMA, mas na coleção do museu. O que quero dizer é que posso
fazer um livro de fotografia, e ele acaba virando livro de artista; é porque utilizam
uma catalogação que escapa do controle do artista. Mesmo sabendo que, em sua
totalidade, o livro é algo que você tem que manusear, abrir, sentir o cheiro, etc. É aí
que o paradigma está mudando. A provocação que o Horacio Fernández lançou com
a curadoria da sua parte na exposição de fotolivros em Barcelona mexe exatamente
com isso, porque ele a chamou de “A biblioteca é o museu”. O museu não é aquele
espaço do cubo branco, com a obra pendurada na parede, e os livros são uma coisa
[com] que você tem que interagir, indo muito além da coisa mais básica, que é olhar
para as lombadas. Assim como nos livros, o museu é o que está dentro.
Figura 19. A biblioteca é o museu, “capítulo” da exposição Fenómeno Fotolibro, Centro de Cultura
Contemporânea de Barcelona (CCCB), 2017.
Fonte: COSTA, Walter in sitio da Revista Zum, 2017,(https://revistazum.com.br/exposicoes/fenomeno-fotolivro/) Acesso em: 15 jul. 2017
40
2. Em relação à produção atual no Brasil, como você problematiza a questão
em torno do fotolivro? Ele já pode ser visto como uma linguagem consistente
ou também existe certa valorização/modismo em relação ao formato?
FG: Em relação ao fotolivro, é algo de uma força que não podemos negar. Vemos
cada vez mais grupos de discussões e muitos fotógrafos com uma relação muito
forte com esse conceito de fotolivro. Mas eu tenho muita preocupação em relação à
visão de alguém como Martin Parr, por exemplo, ao cunhar esse termo quase como
um objeto modernista. Comparam muito o fotolivro à coisa da prosa, das grandes
narrativas, e, se pensarmos na arte contemporânea ou mesmo na literatura
contemporânea, ele se adequa mais a uma literatura do “menor”, mas do menor
como o mínimo, do essencial, da coisa cotidiana, da não grandiloquência. Há uma
artificialidade de como o projeto é criado, primeiro porque ele é ligado ao mercado,
vem de uma necessidade de as pessoas criarem um fortalecimento de grupo. Ao
perguntar “Como vai ser a circulação das nossas fotografias?”, Marcelo Brodsky já
projeta que as imagens venham a circular no formato livro, porque, querendo ou
não, são formatos que se completam, casam muito bem. Sem dúvida, existe um
projeto político-ideológico e mercadológico por trás do termo fotolivro. Não importa
muito o termo, se é “fotolivro” ou “livro de fotografia”, mas sim o que há por trás
disso. E em tudo o que vira certo modismo, há pessoas imitando um processo ou
mesmo o produto final, mas sem realizar todos os procedimentos. Mesmo com um
vínculo forte com o mercado, existem fotolivros muito bons, consistentes. Tem gente
fazendo um excelente trabalho, [gente que] utiliza o termo fotolivro e está confortável
com isso. Muitas vezes, o importante mesmo é aquela narrativa que está sendo
proposta, a história que há por trás. Por fim, acredito que o livro de fotografia tem
uma relação muito forte com a prosa, e o livro de artista tem uma relação muito forte
com a poesia.
WC: Por estarmos tratando do Brasil, existem muitas questões. A primeira das quais
passa pela questão econômico-social do país e do continente latino-americano. É
fato que há muita experimentação sobre o que está acontecendo por aqui, o que
gera debates sobre o entendimento do fenômeno do fotolivro como um modismo.
Existe também uma questão difícil que é pensar como definir o que vai ficar depois
de um tempo. Somente a posteriori, quando seremos capazes de olhar o fenômeno
41
com certa distância, é que vamos ter capacidade de “historicizá-lo”, por meio das
fontes produzidas pelos cronistas da época. Mas é complicado tornar-se historiador
no momento em que a história está acontecendo. Já sabemos que o fotolivro vem do
livro de fotografia, mas também existe algo mais. Da mesma forma que uma
mudança de termo representa uma mudança de conceito. No mundo das
publicações fotográficas, aquela que apresenta uma sequência de imagens autorais,
dotadas de um cuidado na hora de construir um objeto, é o fotolivro. Aquilo que
simplesmente é uma coleção de imagens bonitas é mais um livro de fotografia. Ou,
como dizia Horacio Fernandez, um livro de fotografia seria como ver uma galeria de
pinturas e um fotolivro seria mais como ver um filme. Ou seja, a diferença é clara,
pois é a narrativa que dá um ritmo a essas imagens. No Brasil, cada vez mais a
percepção dessa mudança é notada, mas ainda não se entende por completo o que
ela seja. Estão chamando de fotolivro coisas muito experimentais, e efetivamente
investigam e abraçam um entendimento narrativo, mas com formatos que às vezes
não dialogam em nada com o conteúdo do trabalho. Como agora está se escutando
muito a palavra “fotolivro”, as pessoas usam o termo por achar que, assim, o que
elas produzirem tem chance de vender mais. Ainda é uma situação de transição,
porque por aqui o fenômeno é bem mais incipiente. E são os autores
contemporâneos, que estão investigando o mesmo formato, mais
experimentalmente, que me fazem acreditar nisso. O que faz com que, cada vez
mais, as pessoas entendam o que é e o que não é o fotolivro, e isso certamente vai
além do mero modismo. Outra questão é que todos aqui estão muito mais atentos às
novidades da Europa e dos EUA, e não conhecem o livro que acabou de sair no país
vizinho. Precisamos de uma rede que integre mais fortemente os autores latino-
americanos não só para que se conheçam melhor, mas para que possam também
ajudar quem vem de fora a se situar sobre o que efetivamente está acontecendo por
aqui. Muitas vezes esquecemos que o livro serve para circular. Por isso, devemos
pensar globalmente e atuar localmente.
3. Como autor/artista, como a sua produção se insere nesse contexto? O que
se negocia e o que não se negocia em relação às escolhas e estratégias de
circulação do trabalho (tiragem, valor, trocas)? Onde você acredita que seu
trabalho deva estar? Que lugar ele deve ocupar?
42
FG: Meu primeiro livro, Retratos da garoupa, foi realizado quando concluí uma
especialização em fotografia no Senac. O curioso é que meus amigos fotógrafos
diziam que o livro tinha poucas fotografias, e meus amigos escritores diziam que
havia pouco texto. Esse projeto acabou sendo pouco acessado no universo
fotográfico, pois buscava um olhar diferenciado. Era uma ficção a partir do diário dos
três últimos anos de vida de meu pai, em que também havia a apropriação de meu
próprio álbum de família. Quem acabou vendo esse trabalho com muito mais
cuidado foi gente relacionada ao livro de artista. Em relação às escolhas e
estratégias, uma questão que não negociamos é a nossa autonomia; devemos
publicar sempre o que achamos interessante. Nossa autonomia como artista, como
pesquisadora, é algo que eu não negocio. Não sei exatamente que lugar o trabalho
deve ocupar, mas no momento, eu pesquiso um processo que é vinculado a um
recorte histórico, que são os anarquistas dentro da história do Brasil, chamado
Arquivo 17. Eles tiveram e ainda têm muito protagonismo político, desde a greve de
1917 até os movimentos atuais, como o Passe livre. Sinto que os temas a que me
dedico são sempre fora do mainstream, de forma que meu trabalho é muito
articulado com seus protagonistas, com seus próprios narradores. Também tem o
fato de não estar dentro de uma galeria e nem dentro de um processo editorial
institucionalizado. Meu trabalho está sempre nesse lugar da borda.
Figuras 20 e 21. Fernanda Grigolin. Retratos da Garoupa, fotolivro, 2012
43
Fonte: Sítio da Coleção de Livros de artista da UFMG (https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/2016/02/26/retratos-da-garoupa) Acesso em: 28 ago. 2017
WC: Pessoalmente como autor/artista, o livro que tinha publicado um tempo atrás
teve uma tiragem muito limitada, o que contradiz meu discurso de ser uma pessoa
que busca tentar fomentar e difundir a obra de todas as maneiras possíveis. Acabei
fazendo um livro com apenas 60 cópias, o que me doeu muito, pois não tinha verba
para imprimir mais, e ele esgotou. O projeto que estou fazendo agora visa a uma
difusão bem maior a partir do “abaratamento”. A questão é sabermos quem é o
nosso público. De nada importa querer chegar a esses novos públicos com um
produto tão caro. Uma coisa que aprendi aqui trabalhando com vários autores,
editando e produzindo livros juntos, é sempre pensar nas limitações que temos aqui
de materiais, de difusão (custos de envio) não como limitações, mas como
possibilidades de tornar o livro algo mais barato e de ele conseguir circular da forma
mais honesta possível. Vamos para a guerra com as armas que temos. Mas, pela
nossa condição, precisamos saber em quais guerras podemos combater e em quais
nem devemos nos meter. Sobre o que se negocia, não tem uma fórmula. A verdade
é que sempre vamos ter que abrir mão de algo. Cada autor tem que sentir qual é a
conjuntura para sentir o que realmente dá para fazer. Daí temos coisas que podem
ser negociadas, mas de maneira positiva, quando temos a união do autor, do editor
e do designer, [todos] entrosados para a tradução de um trabalho ser a melhor
possível ao se tornar um livro. Aí, sim, vejo que negociações são necessárias, para
se explorar o potencial de um projeto da maneira mais coerente com um certo
formato. Já o que não se negocia é a honestidade de seu próprio trabalho. E o risco
de cair nesse erro acaba sendo muito recorrente devido à pressa. Acaba-se fazendo
44
coisas de maneira afobada, que subestimam o leitor, ou pensadas somente para
vender. No Brasil, livro não faz dinheiro. Então se a proposta não for boa, nem
mesmo tiragem baixa ou outros recursos com aspecto mais “artesanal” vão significar
que o trabalho seja bom. O que eu acredito é que o livro fica. Você fez bem, ele fica.
Você fez mal, ele fica também.
Rony Maltz: Sim. O livro de fotografias autoral não deixa de ser um livro de artista.
O fotolivro, como qualquer livro, não é uma linguagem, é um meio. Talvez estejamos
falando de uma questão de nomes, em vez de objetos por definição distintos. Mas
nomes são importantes, eles definem as coisas. Sempre achei bastante estéril a
polêmica em torno das nomenclaturas: "fotolivro" x "livro de fotografias" x "livro de
artista". Parece, pelos termos como esse debate costuma ser colocado, que o
problema é terem criado uma nova gaveta, e a solução seria definir critérios
inequívocos para colocar cada coisa de volta em sua gaveta. Segundo essa lógica,
bastaria definir o que fotolivros “são” (e [as expressões] livros de artista e livros de
fotografia também precisariam ser redefinidas para acomodar a nova categoria), e
poderíamos voltar a dormir tranquilos. Não acho que a questão seja tão simples. Em
vez de buscar distinções intrínsecas à materialidade, às estéticas ou às temáticas (a
"mensagem") dos livros, me parece mais útil refletir sobre os “motivos” da
emergência de novas terminologias para designar um formato (o livro impresso) que
existe há muitos séculos. O livro de fotografias, em particular, existe há pelo menos
150 anos, coincidindo com a invenção da própria fotografia. Por que, então, a
necessidade de termos novos para defini-lo? Que tipo de livro é esse ou que formas
de pensar o livro já não cabiam nos modelos preexistentes, precipitando a criação
de novas definições? Porque existe claramente, para além de qualquer
diferenciação de fato, um desejo de diferenciação. Para responder a essas
perguntas, precisamos buscar não diferenças materiais nos próprios livros, mas
as “condições” que fizeram emergir esse desejo de expressão de um novo; o
contexto que permitiu o aparecimento desse “novo”. Essas condições de
possiblidade precedem a disseminação do “termo” que permitiu concentrar saberes
e pessoas em torno desse novo fazer na forma de um "projeto" mais ou menos
autoconsciente (o "universo dos fotolivros"). Essas condições deviam estar postas
antes mesmo que tenha sido possível identificar conscientemente a falta que esse
45
nome − ou o dispositivo que ele designa − veio preencher. Penso que a resposta,
portanto, aponta para um conjunto de pensamentos, afetos, atitudes críticas e
perspectivas sobre o formato impresso, uma constelação de questões que teriam
surgido da esteira de um processo mais amplo de desmaterialização da imagem.
Intuo que no centro desse processo esteja o desejo de haver mais especificamente
a convergência da imagem fotográfica com o suporte material em um momento em
que ambos estão sendo ressignificados na era digital. Temos que entender como
esses termos se deslocaram. "Fotolivro", nesse aspecto, é menos um tipo de objeto
específico do que um prisma que nos permite enxergar os livros de fotografias sob
diferentes critérios. É por isso que não existem apenas fotolivros contemporâneos;
podemos achá-los ao longo de toda a história da fotografia − seja lá que história for
essa. Não arrisco dizer o que o fotolivro é antes de entender por que "fotolivros"
agora.
46
1.4 Editar como experiência estética: Elástica e as feiras de publicação de arte
impressa
Elástica foi uma revista de arte elaborada a partir de uma parceria entre mim,
a crítica e pesquisadora Beatriz Lemos, e a escritora e tradutora Thais Medeiros. De
breve duração, a publicação teve três edições, lançadas em 2011, 2012 e 2014.
A primeira edição da revista contava com o seguinte tema: “Para que mais
uma revista de arte?”. Ao lançar a pergunta, nos questionávamos se não seria a
publicação o próprio trabalho de arte em si, numa maneira de buscar um elemento
diferencial em relação às outras publicações do gênero. A pergunta alude à
importância das revistas de arte no Brasil, mas sem desejar entrar no mérito
histórico, situação em que teríamos que lançar um comentário à parte sobre
publicações pioneiras nesse campo, como Gávea, Navilouca, Malasartes, Pólem e
Rex Time, e, mais recentemente, projetos como Planeta Capacete e O Ralador. Na
época, tínhamos nas revistas Tatuí, surgida no Recife, e Recibo, que se originou no
contexto artístico da cidade de Florianópolis, exemplos de publicações
independentes bem-sucedidas e parceiras, mesmo que com objetivos editoriais
bastante diferentes, já que a nossa não era exatamente uma publicação sobre crítica
de arte.
Na primeira edição (2011), a revista contou com a colaboração de Felipe
Scovino, Flávia Meireles, as editoras da Tatuí, Ana Luiza Lima e Clarissa Diniz, o
editor da Recibo, Roberto Traplev, além de trabalhos de artistas convidados, como
Cristina Ribas, Elvis Almeida, Luiza Baldan e Vicente de Mello. A capa é assinada
por Carlos Contente, que também foi o artista entrevistado.
Em torno do binômio “Arte e sustentabilidade”, o segundo número (2012),
teve Paulo Nazareth como artista entrevistado e idealizador da capa. As demais
colaborações foram de André Dahmer, Bruno Caracol, Jarbas Lopes, Ivan
Henriques, Juliana Monachesi, Paulo Miyada, Pedro França, Peetsa e Viviane
Gueller, entre outros.
A terceira edição (2014), com capa inteiramente na cor branca e papel
texturizado apenas com o número 3 destacado no canto inferior direito, dentro de um
47
círculo em alto-relevo, abordava a questão da invisibilidade na arte. Os
colaboradores dessa edição foram Agência Transitiva, Ana Chaves, Denise Alves-
Rodrigues, Dudu Tsuda, Francine Jallageas, Lucas Sargentelli, Michelle Mattiuzi,
Pedro Victor Brandão, Rodrigo Savastano e Vivian Caccuri, com destaque para os
postais anexados da série Canudos, de Ícaro Lira.
A experiência com a Elástica nos colocou diretamente em contato com o
então promissor circuito de publicações independentes, formado inicialmente em
São Paulo, por meio da Feira Tijuana de Arte Impressa e da Feira de Publicações
Independentes do Sesc Pompeia. Com a revista, participamos da terceira Feira
Tijuana, quando ela ainda ocupava um espaço dentro da Galeria Vermelho. Hoje a
feira está em sua 16a edição, já tendo circulado em cidades como Rio de Janeiro,
Buenos Aires, Lima e Porto.
Com foco na produção de livros de artistas da América Latina, a Tijuana
acabou dando origem a fenômenos de massa como a Feira Plana – em cuja
segunda edição (2014), quando ainda era realizada no Museu da Imagem e do Som
(MIS-SP), lançamos o terceiro número da Elástica −, de caráter mais diversificado e
que segue em plena expansão. Sua edição mais recente foi realizada no Pavilhão
da Bienal de São Paulo, atraindo milhares de pessoas em apenas em um fim de
semana.
A experiência de editar uma publicação independente se deu à medida que
houve um crescimento significativo desse circuito. A partir desse momento,
percebemos que precisávamos nos estruturar melhor para poder seguir em frente.
Deveríamos ao menos estabelecer uma periodicidade para conseguir fidelizar um
público leitor e continuar buscando parcerias, mesmo que de forma independente.
Cada um dos editores, porém, começou a se envolver mais intensamente em outros
projetos que também passavam pela produção de publicações experimentais, como
a Rébus, dedicada a arte, poesia e tradução, editada por Thais Medeiros, e a
plataforma Lastro – Intercâmbios livres em arte, voltada para servir de abrigo e
rizoma de práticas e reflexões sobre arte contemporânea no contexto da América
Latina, idealizada e desenvolvida por Beatriz Lemos. Eu mesmo já caminhava para a
produção da série Religare, que iria gerar a criação de meu primeiro livro de
48
fotografia. No momento, os três editores seguem produzindo seus próprios projetos,
em paralelo.
Em meados de 2014, entretanto, havia ideias sobre a elaboração da quarta
edição, mas tivemos que encerrar temporariamente as atividades da Elástica, ainda
que com a sensação de que muito mais poderia ser realizado. De alguma forma,
sentimos também que demos uma contribuição substancial que ultrapassou os
limites desse mesmo circuito de arte, o que pode ser comprovado pela procura de
pessoas de diversos segmentos que utilizaram a revista como fonte de pesquisa e,
quase três anos após o lançamento de sua derradeira edição, seguem
acompanhando os desdobramentos que ela gerou.
Figura 22. Elástica, edições 1 e 2, 2011 e 2012
Fonte: O autor
49
Figura 23. Elástica e outras publicações - 3a Feira de Publicações Independentes do Sesc Pompeia,
2014
Fonte: O autor
Figura 24. Feira Plana, Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), 2015
Fonte: ARUME, Igor in Sítio Babilônia Editorial (http://babiloniaeditorial.com.br/ecos-da-feira-plana/) Acesso em: 19 fev. 2017
50
2 A EXPERIÊNCIA DA NARRATIVA NO LIVRO DE FOTOGRAFIA
Uma história deve ter início, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem.
Jean-Luc Godard
2.1 Religare
Produzidos em larga escala e a baixo custo, livros e publicações de artistas
absorvem o desejo de se quebrar um dos paradigmas da década de 1960 e se
consolidam como prática artística. Partindo da aspiração a acesso e alcance,
apresento o processo de criação de meu primeiro livro de fotografia, Religare, como
exemplo de proposição.
Sabe-se que a fotografia tem vínculo inexorável com a morte. Tanto Roland
Barthes (1984) em A câmera clara como Susan Sontag (1983) em Sobre fotografia
se aproximam da mesma reflexão: toda fotografia é um memento mori, a tirania do
tempo prevalece dentro da câmera, a quietude de um instante congelado compete
com o caráter efêmero da vida. O presente nasce e morre, tudo ocorre
simultaneamente, e a fotografia, como meio atado ao presente, é também
processadora de pequenas mortes, uma após a outra.
A partir da relação vida, morte e transcendência, surgiu o projeto Religare,
palavra que em latim significa “ligar, juntar, unir”, a religação do homem com a
natureza e consigo mesmo, mas que também significa uma nova ligação entre o
homem e Deus. Por isso eu buscava uma relação direta com o uso enteógeno (do
grego en = dentro/interno, theo- = deus/divindade, genos = gerador), ou "gerador da
divindade interna" ou “deus dentro”, da bebida ayahuasca, conhecida por seu uso
ritualístico e seus efeitos modificadores da percepção e da cognição.
O Santo Daime é uma manifestação religiosa de origem cristã surgida no
Acre, no início do século XX. Seu fundador foi Raimundo Irineu Serra, o Mestre
51
Irineu, nascido no estado do Maranhão, um afro-brasileiro de alta estatura, filho de
ex-escravos e que em 1912 chegou ao então território do Acre, integrando-se com
19 anos ao movimento migratório de extração do látex em seringais
(ALBUQUERQUE, 2006).
A expressão Daime provém do “verbo divino Dar, dar para os que
necessitassem e pedissem, originando assim o nome Daime” (FRÓES, 1986, p.32).
Daime indica, portanto, a invocação que deve ser feita ao espírito da bebida no
momento de sua ingestão. Os relatos sobre o encontro de Raimundo Irineu com a
ayahuasca informam que certa vez, ao ingerir a bebida, ele teve a visão de uma
senhora que foi identificada como Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da
Floresta que, a partir de então, passou a fornecer-lhe os fundamentos essenciais da
doutrina, concedendo-lhe o título de chefe-império Juramidã, que o identificava “a
entidades espirituais incaicas, precursoras na utilização da ayahuasca, como o rei
Huascar” (MACRAE, 1992, p.67).
Esses são, portanto, elementos que evidenciam a origem brasileira da
doutrina, considerada patrimônio imaterial de nossa cultura. Um de seus símbolos
centrais é o Santo Cruzeiro, que para alguns é a cruz de dois braços ou cruz de
Caracava. Existem várias interpretações para seu significado, tendo sido adotada
por cruzados, templários e missionários como um poderoso amuleto, símbolo de
proteção. Entre os daimistas, é comum caracterizarem o segundo braço como o
significado do retorno de Jesus Cristo.
A partir de meus períodos de convivência com a doutrina do Santo Daime na
comunidade do Vale do Matutu, em Aiuruoca, na região da Serra da Mantiqueira, no
sul de Minas Gerais, foi gerada uma série composta por 33 imagens. O fotolivro
resultante dessa experiência foi elaborado com o intuito de buscar uma relação mais
intimista com o espectador, a fim de aproximá-lo da atmosfera vivenciada por mim, o
que pode ser observado a partir da escolha de elementos na edição de imagem e no
projeto gráfico.
A presença de um tema específico ou um eixo principal pode facilitar a
compreensão da ideia central do livro de fotografia como um todo. Apesar de essa
não ser uma condição para sua concepção, percebemos aqui a narrativa estruturada
52
a partir de um processo que tem a religiosidade como eixo central. As imagens com
elementos religiosos são essenciais para sua concepção. Também estão presentes
paisagens e ambientes internos como signos referentes da comunidade em questão.
No projeto Religare, referências para além da fotografia também são de
grande importância. A proposta de realizar um livro de imagens com essas
características vai-se evidenciando a partir das escolhas realizadas e
desempenhadas por fatores que compõem seu projeto gráfico. Feita a opção desse
suporte, decisões foram tomadas em etapas como seleção dos materiais e escolha
do papel para a impressão das imagens, do tipo de encadernação e obviamente, do
próprio discurso narrativo, remetendo às chamadas “narrativas impressas” às quais
me referi na introdução, compondo o título deste estudo.
Figura 25. Rafael Adorján, Religare,detalhe da capa de fotolivro, 2015
Fonte: O autor
O livro abre com a epígrafe que foi extraída do hino 71 “Chamo o tempo”, do
hinário O Cruzeiro atribuído ao próprio Mestre Irineu, e que traz uma lição ao mesmo
tempo disciplinadora e afetuosa, bem característica de muitos dos hinos da Doutrina:
Firmeza no pensamento
Para seguir no caminho
Embora não aprenda muito
Aprenda sempre um bocadinho
No livro também se destacam a presença de alguns elementos, tais como a
cor verde na capa, o desenho dos veios de uma folha em baixo-relevo, que alude
53
diretamente a uma das fotografias da série, a figura da cruz de Caravaca e as letras
do título em dourado, além da douração das páginas, que fazem menção à Bíblia
Sagrada, uma referência à relação da doutrina do Santo Daime com a tradição
cristã.
Além desses aspectos, Religare é, sobretudo, uma experiência imersiva de
total conexão com um ambiente, criada a partir de uma relação com a
espiritualidade, motivada por conversas com meu pai, que era fardado1 há cerca de
20 anos na doutrina. Sempre tive curiosidade em realizar uma vivência junto a esse
ambiente, sendo também uma maneira de me reconectar a meu pai. Tais aspectos
influenciaram diretamente toda a condução do projeto.
Quando decidi então iniciar as primeiras vivências com ayahuasca junto à
comunidade do Matutu, havia pensado inicialmente em fotografar justamente o
momento do transe durante o ritual, incluindo todas as suas etapas e possivelmente,
a reação das pessoas após a ingestão da bebida. Desde o primeiro momento, sabia
que era algo muito delicado, pois tal opção poderia levar-me a uma caricatura ou
espetaculização, que consequentemente seria um caminho fácil e direto para o
estereótipo.
Antes de levar essa formulação sobre o trabalho adiante, as primeiras
imagens que vieram à mente foram as de Arthur Omar, artista que já havia realizado
o potente Antropologia da face gloriosa, em que faz um paralelo com a estética da
mística cristã, em imagens sobre o carnaval em que o “êxtase espiritual partilha da
mesma natureza do transe dionisíaco, produzido por embriaguez, fascinação,
paixão, comoção, desvario ou frenesi”, segundo a professora e pesquisadora Ivana
Bentes (citada em MACHADO, 1998), que escreveu o prefácio do livro. O sagrado e
o profano produzindo sensações iguais.
1 O fardado é o membro da doutrina de Juramidam que deve participar de forma sistemática dos trabalhos oficiais, concentrações do calendário oficial, zelando pelo brilho, alegria, disciplina e devoção na execução de nossos rituais. O fardamento é o momento em que o aspirante torna-se adepto e membro efetivo da casa, por meio do ritual que consiste em vestir a farda ritualística e receber a Estrela, insígnia que simboliza seu compromisso com a doutrina, implicando a aceitação dos preceitos cristãos, uma afirmação de fé e o voto de obediência espiritual ao atual comando da casa. Retirado de O Fardamento... (2015), disponível em: http://www.santodaime.org/site/ritual/fardamento, acessado em: 7 set. 2017.
54
Esses foram alguns dos fatores que conduziram o trabalho para outro
caminho, optando por seguir uma visão mais plácida e contemplativa, e, ao mesmo
tempo, onírica, com forte presença de elementos da natureza. A próxima etapa do
projeto seria então sedimentar o caminho para estabelecer uma relação de
confiança por meio do envolvimento com a comunidade, o que passava por
constantes negociações com dirigentes e integrantes da doutrina. Ainda em tom de
relato, não poderia arriscar uma relação de convivência que apenas dava seus
primeiros passos. A partir de uma abertura inicial, decidi então começar a participar
dos rituais sem levar comigo qualquer tipo equipamento, apenas me dedicando à
experiência em sua totalidade.
Dessa forma, minha relação com a ayahuasca sem a presença de câmera
levou-me a desenvolver “as imagens mentais” que sempre menciono em conversas
posteriores à realização do projeto. De fato era algo que me preocupava, pois
também precisava produzir alguma materialidade a partir daquelas experiências
internas que me transformavam e influenciavam diretamente meu olhar. Quando
finalmente me senti à vontade para começar a fotografar, percebi que estava sendo
criada uma narrativa que se calcava predominantemente no silêncio e no respeito
àquela atmosfera específica. Sentia que precisava dar passos cuidadosos, porém
firmes, com a confiança de que o conjunto apresentado seria capaz de estabelecer
total conexão com aquele ambiente e que pudesse refletir a intensidade do que foi
essa vivência a partir de uma história contada visualmente em 72 páginas.
Por sua experiência no cruzamento de diversos campos de práticas artísticas,
históricas, institucionais e pedagógicas, como o da antropologia e da religião,
sobretudo as de matrizes africanas, tanto do estudo de rituais quanto da produção
de artistas vinculados a comunidades de terreiro e suas relações socioculturais no
Brasil, convidei o historiador e professor de história e teoria da arte da Uerj Roberto
Conduru a escrever um texto especialmente sobre o projeto. Após acompanhar o
trabalho de edição e os possíveis desdobramentos da série, Conduru escreveu o
ensaio que integra o fotolivro Religare intitulado Dai-me fotos, em que destaca os
aspectos relacionados aos métodos de observação dos ritos religiosos e à transição
entre esses domínios, enfrentando limites, especificidades e intercâmbios
55
Figura 26. Claudia Andujar, Sem título, (série Reahu), 1974
Fonte:http://maristelafarias6.blogspot.com.br/2016/08/a-queda-do-ceu-autobiografia-e.html. Acesso em: 15 set. 2017
No caso de Religare, também existe um aprofundamento que o distingue do
caráter documental mediante o “modo de ação artístico”, destacado por Conduru. O
descrito “modo de se aprofundar na fotografia como fazer reflexivo” dessa série se
estabelece a partir da já mencionada total conexão com o ambiente na experiência
do processo, mas muito também se deve à força de seu conjunto, fundamental para
se constituir a poética de uma narrativa, cujas características analisaremos a seguir.
56
Figura 27. Rafael Adorján, Religare, fotolivro, 2015
Fonte: O autor
Figura 28. Rafael Adorján, Religare, fotolivro, 2015
Fonte: O autor
57
Figura 29. Rafael Adorján, Religare, fotolivro, 2015
Fonte: O autor
Figura 30. Rafael Adorján, Religare, fotolivro, 2015
Fonte: O autor
58
Flusser (2007, p.102-103), em O mundo codificado: por uma filosofia do
design e da comunicação, aponta que “o mundo ocidental é ‘histórico’ no sentido de
que é concebido por linhas, ou seja, como um processo, de forma que a escrita
linear representa o mundo ao projetá-lo em uma série de sucessões”. Essa
concepção também nos ajuda a refletir sobre a questão da narrativa, ampliando o
entendimento de sucessão de linhas ao de imagens, fundamentais para a
constituição de um livro de fotografia, como é o caso de Religare e outros títulos.
A narrativa, elemento que tem por definição a “exposição de um
acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados,
reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens” (HOUAISS, 2009,
p.1342), não representa necessariamente uma sequência lógica de fatos ou ficções
com “início, meio e fim”. São muito diversas as perspectivas abrangidas por esse
termo, em que cabe um ilimitado número de nuanças atribuído a um modo de
pensar ou mesmo a um processo de trabalho, que poderá ter o livro de fotografia
como finalidade. Dispositivos periféricos, como diários, anotações em blocos ou
cadernos, e-mails e objetos pessoais dos mais variados também podem transformar-
se em condutores de uma poética originada supostamente a partir de um objeto
trivial, cotidiano, assim como o exemplo dos já mencionados livros de Ed Ruscha e
outros fatores de ordem mais intimista.
Devido à circulação do livro Religare em alguns países da América Latina, fui
convidado pela artista visual, fotógrafa e editora Fernanda Grigolin a conceder uma
entrevista sobre minha experiência com o projeto para o sítio argentino TURMA,
uma plataforma de intercâmbio, produção e difusão da cultura visual latino-
americana, com base em fotografia e livros, com sede em Buenos Aires e que conta
com Religare entre seus títulos. Na condição de autora e artista Fernanda também
foi entrevistada por mim, respondendo a questões sobre livros de artista e livros de
fotografia, como já vimos. A partir da conversa, tive uma excelente oportunidade de
rever fatos importantes sobre uma história que pensava já ter contado, mas que
sempre se pode renovar quando somos convocados a resgatá-la a partir da
oralidade. O encontro resultou em uma resenha sobre meu livro, com o título
Religare, la mystica e la ancestalidad. Segue a entrevista que deu origem à resenha
publicada em TURMA:
59
Figura 31. Sítio TURMA (Argentina), resenha do fotolivro Religare, 2016
Fonte: http://somosturma.com/tag/religare/ in Religare, la mística y ancestralidade. Acesso em: 13 jul. 2017
Fernanda Grigolin: Religare é uma palavra mística em latim que significa religar o
humano a Deus, mas ao ver seu livro, vejo que a mística está nos objetos. Qual é a
importância dos objetos para o livro e para você?
Rafael Adorján: Digamos que os objetos sejam vestígios dessa mística, como o que
fica diante daquilo que sentimos e que não conseguimos ver, mas apenas sentir. Ou
como algo que está visível somente para nós, assim como as sensações que tive
diante das experiências com a ayahuasca. Há certo mistério a partir da memória que
existe naqueles objetos e que ganham uma importância com sequência de imagens,
em forma de narrativa. O balanço como objeto também pode simbolizar o vestígio de
uma busca por equilíbrio, que é algo também desejável na relação da obra como
livro.
FG: Onde está a sua ancestralidade?
RA: Justamente por não precisar por onde ela se manifestava foi que decidi partir
para essas experiências místicas. Houve a necessidade de vivenciar um caminho
espiritualizado, que me trouxe respostas inesperadas, e elas me fizeram ir ao
encontro da ancestralidade que habita nosso interior. Uma busca que resultou na
60
própria reaproximação afetiva com meu pai, que já tinha uma relação de 20 anos
com a doutrina do Santo Daime.
FG: O que é essencial em Religare, que apenas Rafael poderia nos dizer?
RA: Costumo dizer que antes de ter permissão para fotografar durante o ritual do
feitio (preparo da bebida), por exemplo, já havia feito as minhas “fotografias mentais”
enquanto estava acampado. Creio que além da jornada espiritual que estava
vivendo, também estava produzindo imagens que ficaram na retina e não havia
como ser transferidas pela câmera, porque eram fruto dessa vivência interior, sob o
efeito da experiência com a ayahuasca. Por isso acredito que Religare também seja
sobre aquilo que não se vê.
Como concluo em parágrafo final de meu texto no próprio livro, “Religare é o
fruto dos meus períodos de convivência na região do Matutu, de coração aberto e
respeitoso, após a afirmação de uma aproximação de confiança, no intuito de viver
em harmonia a delicadeza de um tempo-espaço próprio”.
61
2.2 Outras experiências em publicações e arte impressa: Reply All/Responder
a tod_s
Diante do campo de possibilidades aberto por Religare, um ano mais tarde foi
elaborada a publicação Sans Accent/Sem sotaque, projeto realizado de forma
colaborativa e a distância, em curto espaço de tempo, para a exposição Reply all,
proposição do curador Raphael Fonseca. Dez artistas brasileiros foram selecionados
para realizar trabalhos em conjunto com outros dez artistas residentes da cidade
inglesa de Manchester, alunos da Manchester School of Art, sem jamais ter
estabelecido qualquer tipo de contato entre si.
Por afinidade poética, o curador selecionou como meu parceiro o jovem
artista e fotógrafo Wes Foster, que também desenvolve uma produção artística
relacionada a publicações. O processo de criação e desenvolvimento do trabalho foi
realizado por completo durante pouco mais de um mês, entre o final de junho e o
início de agosto de 2016, e apresentado logo em seguida na Grosvenor Gallery, que
pertence à mencionada escola de arte britânica.
A ação do trabalho em conjunto teve a comunicação como fator de
fundamental importância para o desenvolvimento da publicação, já que o processo
de produção se deu quase que completamente a partir de e-mails, trocados entre os
artistas, o curador e a assistente de curadoria do projeto em Manchester, Nuria
Lopez de la Oliva. No intuito de estabelecer uma dinâmica comum de trabalho,
sugestões foram surgindo nessas correspondências, em que um escrevia e
apresentava referências sobre seu trabalho e o lugar em que vivia, enquanto o outro
“reagia” a partir daquilo que havia recebido.
Repletos de trocas de imagens de nossas rotinas, relacionadas a elementos
de classe, sociabilidade e paisagem, aos poucos fomos percebendo que ali mesmo,
no conteúdo daqueles e-mails, já estávamos diante da fonte principal do que
desejávamos para a concepção da obra em si. Sobrepondo a comunicação de
ambos em inglês com as fotos produzidas por um e outro, fizemos uma edição
experimental da publicação, sem definir autoria nem delimitar onde começa ou
acaba a contribuição de cada um. O próprio título Sem sotaque, Sans accent, em
62
inglês, surgiu como uma solução bem-humorada a partir da narrativa “entrecortada”
pelos modos de lidar com os diferentes aspectos culturais existentes entre os dois
países.
Figura 32. Rafael Adorján e Wes Foster, Sans Accent/Sem sotaque, 2016
Fonte: O autor
Figura 33. Rafael Adorján e Wes Foster, Sans Accent/Sem sotaque, 2016
Fonte: O autor
63
Figura 34. Rafael Adorján e Wes Foster, Sans Accent/Sem sotaque, 2016
Fonte: O autor
O projeto ganhou continuidade que resultou na exposição Responder a tod_s,
que ficou em exibição entre 27 de abril e 24 de maio de 2017, no Despina, Largo das
Artes, no Centro do Rio de Janeiro e dessa vez contou com Ludimilla Fonseca como
curadora assistente. As mesmas parcerias de colaboração de Reply all foram
retomadas, mas com a finalidade de produzir novos trabalhos após um mês de
diálogo virtual, com proposições que não precisavam ser em nada semelhantes
àquelas apresentadas em Manchester. Tendo, portanto, mais responsabilidade com
montagem, instalação e a presença de público local mais conhecido e propenso a
refletir mais diretamente sobre o trabalho, propus a meu parceiro Wes um projeto de
maiores proporções, que ocupasse uma área de mais destaque no espaço
expositivo em vez de pensar em editar uma nova publicação (ideia que chegou a ser
cogitada, mas em seguida descartada).
Após diversos contatos efetuados por dispositivos de comunicação a
distância, como e-mail e Skype, decidimos que o trabalho seguiria algo na linha de
artistas que têm na tipologia arquitetônica um objeto de obsessão na fotografia,
como o casal alemão Hilla e Bernd Becher, da escola de Düsseldorf, e também Ed
Ruscha, que viria a ser um artista-chave tanto para minha produção quanto para a
64
de Wes, possibilitando uma espécie de poética comum, mas mantendo a essência
de produzir um trabalho colaborativo e único.
Doze esquinas de subúrbio e uma dúzia de quiosques de praia ou vice-versa
é, desde o próprio título, uma referência direta tanto aos livros quanto ao modus
operandi de Ruscha, mas com uma dose extra de senso de humor ao estabelecer
um contraponto entre paisagens bem distintas de dois países que dialogam a partir
de elementos comuns ou outros mais inusitados. A escolha de Wes foi fotografar
sistematicamente em seu caminho para o trabalho, esquinas de Hull (subúrbio
próximo à cidade de Manchester, onde vive) repletas de casas de arquitetura típicas
do estilo vitoriano, algumas delas geminadas e que são apresentadas de maneira
peculiar por meio de seu conjunto. Ao partir de uma monotonia da paisagem, Wes
questiona valores e padrões de vida daquela sociedade de maneira algo irônica,
bem ao estilo de uma tradicional comédia inglesa.
Já o meu “tema de obsessão” teria que ser algo que gerasse um contraste à
série que Wes estava desenvolvendo, com suas fotografias de esquinas típicas de
subúrbio. Foi dessa forma que decidi ir em busca de quiosques da praia da Barra da
Tijuca, captando todos eles de maneira frontal, no intuito de criar uma espécie de
catalogação de uma arquitetura típica de elementos pitorescos que beirassem o
kitsch.
A montagem do trabalho na exposição, com a apresentação de cada imagem,
lado a lado, alternando o ambiente de cada local teve a intenção de enfatizar essas
diferenças de aspecto cultural, mas também de criar uma espécie de jogo, em que a
vista buscasse formar possíveis combinações entre pares de fotos similares.
Dessa forma, os trabalhos “casaram” gerando uma dinâmica própria por meio
de uma relação formal entre imagens distintas, mas que surgiu a partir da
informalidade advinda de elementos do cotidiano de ambos. O trabalho não se
apresenta como publicação, mas, pelo formato de suas impressões, lida com o
caráter sequencial da leitura gerada por uma narrativa inerente a esse suporte.
65
Figuras 35 e 36. Rafael Adorján e Wes Foster, Doze esquinas de subúrbio e uma dúzia de quiosques
de praia, exposição Responder a tod_s, Despina, 2017
.
Fonte: O autor
66
3 O LIVRO POR VIR
O livro que é o Livro é um livro entre outros. É um livro numeroso, que parece se multiplicar por ele mesmo, por um movimento que lhe é próprio e no qual a diversidade do espaço em que se desenvolve, segundo diferentes profundidades, realiza-se necessariamente. O livro necessário é subtraído ao acaso. Escapando ao acaso por sua estrutura e sua delimitação, realiza a essência da linguagem, que desgasta as coisas transformando-as em sua ausência e abrindo essa ausência ao devir rítmico, que é o movimento puro das relações (BLANCHOT, 2005, p.331).
3.1 MSV432: A obra que estrutura o novo livro
O projeto do livro recém-concluído, com o título MSV432 (código originado a
partir do endereço Rua Marquês de São Vicente, número 432) e que antes,
provisoriamente intitulou-se Memória descritiva, propõe uma reflexão entre memória
e narrativa a partir de um imóvel tombado em processo de reforma para se
configurar em espaço com finalidade diferente da anterior.
De maio de 2016 até maio de 2017, acompanhei as obras que envolveram
parte das etapas de transformações de um chalé, de arquitetura neoclássica,
construído no século XIX, e inaugurado mais precisamente em 1881, localizado no
endereço citado, em frente à Praça Augusto de Lima, na Gávea, bairro pitoresco do
Rio de Janeiro situado entre o mar e a mata atlântica.
Conhecida no século XIX como Rua da Boa Vista, a Marquês de São Vicente
era formada quase em sua totalidade por chácaras. Em fotos da casa no início do
século XX, é possível ver um bonde puxado por burros ou cavalos, que faziam a
volta no quarteirão da casa. Alguns registros dessa época demonstram a
manutenção de um aspecto praticamente rural, enquanto o restante da cidade já
começava a passar por grandes transformações urbanísticas.
O imóvel, durante muitos anos, pertenceu a duas gerações de uma mesma
família. Construída pelo comerciante José Correa Guimarães, foi sendo habitada
pelos herdeiros até seu neto, o engenheiro Armando Guimarães, vendê-la ao
antiquário Antônio Caetano, na década de 1980. Caetano realizou uma grande
67
reforma nos anos 90, após a Prefeitura da cidade decretar o tombamento pelo
Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, um instrumento necessário para garantir sua
preservação após diversas propostas de compra feitas por imobiliárias e sempre
recusadas pela família.
Um relatório da época do tombamento descreve o local de forma
praticamente bucólica: “um exemplo rústico e singelo de um só andar, de grande
pureza arquitetônica, erguendo-se à beira do Rio, à maneira das antigas chácaras
da Gávea” (NEVES, 1985). São notáveis essas características pelo fato de o imóvel
“ainda preservar a arquitetura das chácaras comuns no bairro naquela época, com
um pequeno jardim em que se destacam um abacateiro e um jambo, tendo o rio
Rainha, atualmente de águas bem rasas e poluídas”, segundo uma reportagem do
Jornal do Brasil, de setembro de 1986, que apontava para os riscos da lenta
deterioração por efeito do tempo daquela que acabou se tornando a última
construção em estilo chalé que restou em toda a Rua Marquês de São Vicente, bem
como pela então possível perda do patrimônio pela família Guimarães.
Após o falecimento de Antônio Caetano na década de 2000, o espaço muda
novamente de mãos e, após período em inventário, passa novamente por uma
grande reforma com o intuito de transformar a casa na nova sede da Galeria da
Gávea, conhecida por ser um espaço na cidade dedicado à fotografia, e que já conta
com estúdio e escritório localizados na mesma Rua Marquês de São Vicente.
Convidado a realizar um projeto sobre esse processo da nova etapa do chalé,
fiquei durante mais de um ano me relacionando com o espaço de forma a considerá-
lo um organismo vivo, gerador de imagens construídas em sintonia com seu
processo de transformação constante, incluindo a circulação daqueles que habitam
o lugar temporariamente por força de seu trabalho.
68
Figura 37. Rafael Adorján, MSV432 #01, 2017
Fonte: O autor
Figura 38. Rafael Adorján, MSV432 #09, 2017
Fonte: O autor
69
Figura 39. Rafael Adorján, MSV432 #20, 2017
Fonte: O autor
Figura 40. Rafael Adorján, MSV432 #26, 2017
Fonte: O autor
70
No intuito de me organizar para um longo projeto, me planejei para
estabelecer uma rotina. Criei o hábito de fazer visitas, que chamei de “imersões”, ao
local quinzenalmente no início e, depois, semanalmente, quando decidi intensificar o
trabalho mais alinhado com o progresso da obra. Estive no local tanto nos finais de
semana, para conviver com o espaço vazio, como durante dias de semana em
horário comercial, com a obra a pleno vapor.
Dessa forma, fui produzindo métodos de criação, que consistiam não somente
em fotografar, mas também em escrever, desenhar em um caderno-guia com
anotações, colagens com contatos dos filmes que estava produzindo junto a cópias
de fotos mais antigas, bem como documentos, relatórios e reportagens de época
sobre a casa, assim como entrevistas realizadas com moradores da Gávea, que
conheciam bem a região e me contaram histórias relacionadas aos antigos donos do
imóvel. Fato é que tinha em mente a construção de um repertório com a finalidade
de engendrar um arquivo informal, como referência para povoar um imaginário que
servisse de base para a criação de uma poética a respeito daquele lugar,
processada e editada a partir do material resultante de cada imersão com a obra em
andamento.
Meses após estar habituado a visitar a casa, comecei a fazer vídeos de curta
duração durante as imersões nos dias de semana, em horário de pleno serviço dos
operários da obra, que originaram uma videoinstalação, apresentada no subsolo da
casa durante a exposição sobre o projeto. De certa forma em contraste com as
imagens, o vídeo MSV432 mergulha mais profundamente no contexto da rotina do
expediente e de seus trabalhadores, imprescindíveis para a concretização da
referida transformação da casa.
Mais voltada para o aspecto da presença humana em sua relação com o
espaço arquitetônico, a edição do vídeo evidencia um aspecto mais “sujo” e ruidoso,
apresentando imagens, a partir de janelas que vão se subdividindo, exibindo
simultaneamente diferentes ambientes da casa durante momentos específicos da
obra em andamento. O som foi captado durante a própria obra e mesclado a outras
sonoridades, de natureza mais etérea e espacial, com o objetivo de criar um estado
de suspensão, naturalmente estranho àquele universo da obra.
71
Figura 41. Rafael Adorján, frame do vídeo MSV432, 2017
Fonte: O autor
A partir de toda a realização que envolveu MSV432, escrevi o texto abaixo,
produzido especialmente para a publicação, em que comento a experiência de se
trabalhar em um projeto de longa duração, tendo a área demarcada de uma casa
como lugar de criação. Reflito sobre escolhas e métodos adotados junto à questão
de ter o processo como protagonista do trabalho, em que a imaginação também se
torna elemento fundamental:
Ao pensar a casa como um organismo vivo, construí um arquivo poético me deixando envolver pela energia que vibrava daquela matéria, a partir da imersão em um espaço-tempo que se recriava a cada momento. Em um mergulho labiríntico, de dentro para fora, parti da pedra fundamental em seu subsolo e fui descobrindo os ambientes até a área externa. Assim, conexões foram estabelecidas em sequências de formas, cores e composições, sobrepondo-se ao caos, subliminarmente. MSV432 é o endereço, mas também o código de acesso a uma obra aberta, dentro de uma obra em aberto.
72
Figuras 42 e 43. Rafael Adorján, vistas da exposição MSV432, Galeria da Gávea, 2017
Fonte: O autor
Uma exposição com o resultado do projeto foi apresentada no próprio espaço
da casa ainda com a obra em processo de finalização, configurando-se como uma
espécie de ocupação temporária por todos os seus ambientes, com as imagens
impressas em diferentes tamanhos, pregadas diretamente na parede, sem moldura
e com a própria iluminação utilizada na obra, adaptada de forma a criar uma
desejada atmosfera em relação ao trabalho. Havia a preocupação com os prazos de
andamento da obra, que estava em ritmo acelerado para conseguir cumprir a data
73
de abertura oficial, e realizar a exposição de acordo com o planejamento inicial, que
visava evitar a aparência do “cubo branco” de uma galeria convencional. Após um
evento de abertura, o público em geral teve acesso à exposição MSV432 durante os
dois últimos fins de semana de agosto de 2017. No último sábado da mostra, foi
organizada pela galeria uma conversa comigo e com a presença da curadora Luisa
Duarte sobre os processos de criação e edição do trabalho.
No tocante à publicação MSV432 em si, creio que seja importante
analisarmos certas escolhas, feitas a partir da própria concepção de processo que
permeia todo o projeto. Elementos que envolvem a sequência narrativa, o tipo de
papel utilizado, o tamanho das imagens e todo o desenho gráfico elaborado.
O formato do livro remete a uma revista de capa dura no estilo “canoa”, sem
lombada nem folhas grampeadas, com as páginas unidas por uma fita elástica preta
amarrada a três furos. Suas dimensões se assemelham a um caderno de capa azul-
acinzentada que, por sua vez, remete à cor original encontrada em algumas paredes
da casa e também à de pastas utilizadas por engenheiros e mestres de obras com
arquivos como plantas e outras informações sobre o andamento das etapas da obra.
A imagem formada pela serigrafia de uma grande pedra com a capa aberta é
também bastante simbólica no sentido de representar o que passei a denominar
“pedra fundamental”, a pedra então localizada no subsolo, que foi completamente
partida para revestir outros ambientes da casa. O alto-relevo no título MSV432
presente na capa também se relaciona diretamente com a textura encontrada na
própria pedra e em outros elementos, o que nos remete ao pensamento sobre “livros
feitos para ser lidos também com as mãos”, mencionado por Walter Costa. Seu
miolo é formado por 40 imagens em sequência não linear, a partir da minha
experiência de imersão com os ambientes da casa, que se inicia em seu subsolo até
encontrar a área externa, dando forma às conexões que denominei “mergulho
labiríntico” no texto que escrevi sobre o trabalho. No livro MSV432, objeto que exige
uma relação de mais proximidade com o espectador, as imagens apresentam
laminação mais brilhante que as ampliações fotográficas da exposição no intuito de
enfatizar elementos como cores, sombras e texturas dos objetos. Mesmo sendo
produzidas tanto no formato digital 35mm (proporção 3x4) quanto em negativo de
médio formato de 120mm (proporção 6x7), as fotografias no livro foram cortadas
proporcionalmente no mesmo tamanho para evitar uma possível hierarquização
ditada pelo tamanho da imagem.
74
Algumas páginas do caderno-guia − repleto de desenhos e colagens, que me
acompanhou durante todo o processo − estão reproduzidas em fac-símile em papel
pólen e encartadas no meio do livro, entremeadas pelo texto curatorial, por um texto
assinado por mim e pela ficha técnica. As etapas de criação e desenvolvimento
desse caderno, bem como sua relevância para o projeto, estão detalhadas a seguir.
Figura 44. Rafael Adorján, capa do fotolivro MSV432, 2017
Fonte: O autor
76
3.2 A casa imaginada
A ideia de casa, da pré-fabricada à mal-assombrada, é quase sempre
relacionada a habitação, lar, abrigo. Ao se apresentar como objeto de constante
transformação, entretanto, a casa também pode ir além, e tornar-se o lugar mais
propenso àquilo que chamo de criação de mundos, onde, a partir de uma temática
dada, crio espécies de ficções, baseadas em experiências, fatos históricos e outros
dados que levam a possíveis desdobramentos, geralmente reorganizados pela
apresentação de uma narrativa sequenciada por mim.
Ao aceitar a proposta de realizar um projeto de longa duração envolvendo
uma casa em especial, que passava por obra de peso para se transmutar em local
de finalidade completamente diferente daquela para a qual foi originalmente
concebida, percebi que estava sendo convocado para uma tarefa que exigiria
grande envolvimento e dedicação no intuito de construir algo sólido e consistente,
que pudesse ganhar corpo e se alicerçar.
Em tom de desafio aceito, escrevi em um quadro a seguinte pergunta-chave,
que me guiaria em todas as etapas do trabalho: “O que faz um projeto específico se
tornar universal?”. Acreditava estar sempre refletindo a respeito no dia a dia, ao
pensar a casa em questão como um organismo vivo, de maneira a fazer caber
naquela área de espaço delimitado, um universo de possibilidades ilimitadas.
Os métodos de trabalho escolhidos visavam estabelecer uma intimidade com
o lugar. As visitas eram ocasiões propícias a produzir métodos de criação, batizados
de imersões, que consistiam não somente em fotografar, mas também em produzir
um caderno-guia, destinado a anotar, desenhar e realizar colagens com contatos
dos filmes que estava produzindo, gerando assim um arquivo particular, junto aos
documentos coletados. Material esse formado por cópias de fotos mais antigas, bem
como documentos, relatórios e reportagens de época sobre a casa. Também
entrevistei alguns moradores da Gávea, que conheciam bem a região, e coletei
histórias relacionadas aos antigos donos do imóvel, como, por exemplo, Adriana
Bocayuva, gerente da Associção de Amigos do Museu Histórico da Cidade do Rio
de Janeiro, e Marisa Guaranys, escritora. Ambas, com cerca de 50 anos de idade,
nasceram e cresceram na Gávea, acompanhando de perto suas transformações ao
77
longo de décadas. Conheceram Armando Guimarães, proprietário da casa na época
do tombamento do imóvel e presenciaram seu momento mais difícil, que foi o
processo de deterioração, quando havia o temor da perda do patrimônio familiar e
do desaparecimento de uma das construções mais antigas do bairro, já que não
havia recursos para sua restauração. Essas informações propiciaram ao projeto um
caráter mais investigativo, que me levou à busca de documentos e matérias de
jornais desse período.
Por estar repleto de informações, tive a ideia de construir um repertório com a
finalidade de engendrar um arquivo informal, servindo de base para a criação de
uma poética a respeito daquele lugar, processada e editada a partir do resultante de
cada imersão com a obra em andamento.
A produção do caderno teve início no âmbito da disciplina “Novos suportes da
escrita”, também conhecida como “Cadernos do Corpo”, ministrada pela professora
Ana Kiffer, do programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, e
cursada por mim durante a época em que comecei a frequentar a casa, que logo
passou a ser apelidada de “casinha amarela”. Em vez de uma monografia
tradicional, o curso em questão apresentava como opção de avaliação, a criação de
um caderno, envolvendo uma pesquisa a respeito de algo de natureza pública ou
particular. No mesmo momento, pensei que o caderno, totalmente desenvolvido a
partir das minhas vivências sobre a casa, seria um elemento que impulsionaria um
potencial imaginativo sobre o processo, protagonista deste trabalho, sobretudo pelo
fato de eu não saber exatamente qual seria o resultado de estar produzindo algo
condicionado à evolução da obra, na qual o que se via em um momento poderia
estar completamente diferente depois.
Nesse sentido, as imagens dispostas se apresentaram como um mergulho
labiríntico, de dentro para fora, partindo da pedra fundamental em seu subsolo e
ganhando os outros ambientes até a área externa, mas sem hierarquizar o trajeto.
Conexões foram criadas quase que de maneira abstrata por meio da sequência de
formas e cores no espaço. Também importante considerar os vestígios da força de
trabalho empregada por aqueles que realmente habitaram o local durante todo esse
período e que de fato são agentes dessa alomorfia, já que parte fundamental de
toda a obra está nos trabalhadores que a ergueram, com suas funções bem
78
definidas. É disso que nos fala a poeta portuguesa Matilde Campilho em seu poema
“Two-Lane Blacktop”:
Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas
são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contém em si a possibilidade
de fazer gente
Figuras 46 e 47. Caderno para projeto MSV432, 2017
Fonte: O autor
79
Elementos desse projeto revelam uma relação implícita entre fotografia,
memória e arquivo, tendo o objeto “casa” como lugar referencial. Dessa forma,
podemos buscar alguns pontos de convergência com outras produções, no que
tangem a seus métodos de criação e organização, por meio da utilização de
dispositivos processuais como diários, cadernos e outras fontes complementares
que servem de base e conjunto para a citada relação, acrescentando-se também
questões sobre transformações do espaço arquitetônico, mas jamais como apologia
à ruína.
Nesse sentido, havia o risco de cair em uma cartografia da ruína, tão em voga
na obra de muitos artistas contemporâneos do início do século XXI. Mesmo sem a
intenção, existia o perigo de o trabalho se associar a um tipo de visualidade similar,
e por isso alguns cuidados foram tomados. Resolvi adotar uma espécie de limite
ético, onde as imagens da casa em mutação procuravam não forçar a estetização de
um ruído predominante.
Figura 48. Caderno para projeto MSV432, 2017
Fonte: O autor
No texto Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos,
Reinhart Koselleck (2006) aponta para a da importância de se vincular uma simples
imagem a uma dimensão que também envolve muito de nossa capacidade
imaginativa, ao refletir sobre a relação intrínseca de tempo vivido com memória.
Quem busca encontrar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas no rosto de um homem, ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Ou ainda, deve evocar na memória a
80
presença, lado a lado, de prédios em ruínas e construções recentes, vislumbrando assim a notável transformação de estilo que empresta uma profunda dimensão temporal a uma simples fileira de casas (KOSELLECK, 2006, p.13).
Dos dialógos possíveis entre MSV432 e a poética de outros trabalhos
referenciais, tomamos como exemplo, Hotel Palenque, de Robert Smithson. Durante
uma viagem ao México em 1969, o artista fotografou um antigo hotel que estava
passando por um ciclo de decadência e renovação simultâneas. Podemos afirmar
que tal obra encarna a noção do artista de uma "ruína em sentido inverso"2 como
nos versos da canção “Fora de ordem” de Caetano Veloso (1991), “Aqui tudo
parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”.
Smithson usou as imagens produzidas em uma palestra apresentada aos
estudantes de arquitetura da Universidade de Utah, em 1972, em que ele
humoristicamente utilizou o termo “de-architecturalized". O trabalho existe hoje como
instalação de slides com uma gravação de sua voz. Assim como em outras
produções suas, Hotel Palenque oferece uma abordagem teórica do artista sobre os
efeitos da entropia, que é uma medida do grau de desordem na paisagem cultural.
Por envolver situações que fogem de seu controle, sem conseguir estabelecer
um ponto que seja propriamente o final, o risco e a aposta são fundamentais para a
compreensão da poética dos trabalhos de Smithson. Ao pensar MSV432 como o
código de acesso a uma obra aberta, dentro de uma obra em aberto, também temos
esse traço enigmático sobre o resultado como um todo. Direcionando-se no sentido
oposto do mundo contemporâneo e de suas relações ditadas por agilidade e
eficiência, busca-se uma paciência do olhar, de forma a habitar o momento presente
sem se preocupar de imediato com o porvir.
2 Em "The monuments of Passaic" (Artforum, dezembro de 1967) Robert Smithson usou a frase
"ruínas em sentido inverso" para se referir a um "panorama zero", um lugar de "construção nova que acabaria por ser construído". O que Smithson testemunhou no seu levantamento arqueológico de Passaic, New Jersey foi uma ampla gama de novos materiais de construção fadados à fragilidade. Ele estava comentando sobre a vasta expansão dos subúrbios, e a criação de locais sem antecedentes que eles tiveram. Esse é o "oposto" da ruína romântica "porque os edifícios não vão cair em ruínas depois de construídos, mas irão sim ascender em ruínas antes de ser construídos”.
81
Lidar com o processo como matéria em tempos dispersos se torna um desafio
uma vez que o considerado mais importante geralmente habita um lugar anterior ou
posterior àquilo que é visto apenas como um hiato entre passado e futuro. De certa
forma, trabalhos sobre a questão processual acabam frequentemente lidando com
esses riscos.
A pesquisa de Smithson curiosamente se desdobrou em outros formatos,
sendo também apresentada em forma de publicação, exatamente como um livro
de textos e imagens, com a reprodução de um de seus manuscritos anexada,
tendo a primeira edição lançada muitos anos depois, já postumamente, em 1995.
Figura 49. Robert Smithson, Hotel Palenque, 1969
Fonte: Solomon R. Guggenheim Museum, © Robert Smithson Estate
Figura 50. Robert Smithson, Hotel Palenque, 1969
Fonte: Solomon R. Guggenheim Museum, © Robert Smithson Estate
82
3.3 Arquivo como criação de mundo
No ensaio O arquivo vulnerado ou as ruínas da fotografia, a pesquisadora
María Angélica Melendi (2015), que já havia publicado Arquivos do mal – mal de
arquivo, sobre a produção da artista Rosangela Rennó, se debruça sobre a questão
da fotografia dentro e fora dos arquivos e as possibilidades daquilo que se pode
aproximar de certa “inocência” ou “autenticidade” da visão:
Em princípio, tudo o que se apresenta como uma exibição, como um espetáculo, adquire o estatuto de ficção. Mas a fotografia, ao se constituir como uma prova do real desmente a ficcionalidade e oferece algo “a mais” que a experiência estética. Porém, a fotografia mente, porque o que se vê na fotografia não é a verdade, e sim a reiteração de um código cultural. (...) O mesmo acontecerá com as fotos científicas, identificatórias ou classificatórias do passado que, não tendo nenhuma pretensão artística, alcançam o estatuto da arte, na medida em que vem evaporar-se o sentido primeiro de determinar identidades, criar categorias, estabelecer tipos, classes e subclasses (MELENDI, 2015, p.75-76).
Nesse aspecto, é certo que a fotografia contemporânea não carrega a
preocupação de delimitar fronteiras entre verdade e ficção, tendo a sua proliferação
digital considerada um elemento-chave de práticas híbridas que atravessam os
campos da arte e da literatura. Podemos observar a maneira que artistas como
Sophie Calle e Christian Boltanski aproximam, intercalam e substituem imagens
fotográficas e textos, de forma a dar ao arquivo um aspecto de protagonismo, prática
constante no contexto da arte contemporânea. Ou, então, no arquivo como objeto
investigativo e político, como visto nos trabalhos de Marcelo Brodsky, que trazem à
tona registros de crimes ocultados durante a ditatura militar na Argentina. Temos,
em álbuns de família, álbuns dos naturalistas, dos artistas viajantes, dos arquivos de
penitenciárias, dos médicos, dos psiquiatras, fotos que estão onde não se esperava
que estivessem. Uma dialética que, de certa forma, corresponde à experiência do
Bilderatlas Mnemosyne (Atlas de imagens Mnemosyne), projeto do teórico e
historiador da arte alemão Aby Warburg, formado, entre 1924 e 1929, por painéis
com grupos de imagens de várias épocas (reproduções fotográficas, fotos, cartões-
postais e diversos tipos de material impresso), desenvolvidos em etapas ao longo de
anos, em uma disposição constantemente modificada. Um projeto ambicioso e único
até o momento, no que diz respeito ao método e à utilização da fotografia nas artes
83
visuais, mas também sobre o pensamento histórico da representação da imagem.
Warburg afixou mil reproduções fotográficas com grampos sobre painéis forrados de
tecido preto. A última versão do BilderAtlas continha, por fim, 63 painéis de
170x140cm, a ser publicados de forma que todos os detalhes das ilustrações
presentes se mantivessem visíveis. A ideia era criar uma constelação de dados, que
procurava estabelecer um sentido em linhas de transmissão de características
visuais ao longo dos tempos, fugindo da ideia clássica de historicismo, de arquivo −
um catálogo em que criamos a maior totalidade possível sobre um conjunto de
dados − e instaurando uma noção de pathos, ao estabelecer conexão entre as
imagens relacionadas à experiência.
Figura 51. Aby Warburg, Bilderatlas Mnemosine, 1924-1929
Fonte: Cornell University,1929,The Warburg Institute
A questão do arquivo também está presente em O museu imaginário, do
escritor, teórico e pensador de sua época André Malraux, criado em 1947. Trata-se
de um projeto formado por um repertório que visava gerar o inventário de um mundo
ativado por uma dialética arquivista, segundo a qual toda coleção de imagens
aponta claramente para o redimensionamento da experiência. Formado por um
arquivo do imaginário, constitui um repertório que pretende “eliminar as fronteiras do
espaço e do tempo e fazer-nos vislumbrar o inventário do mundo”, ainda segundo
Melendi. Nos anos pós-Segunda Guerra Mundial, a desconstrução e remontagem
dos arquivos propiciaram uma imagem dinâmica e contingente ao entendimento da
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fotografia, organizando-se em justaposição serial ao apresentar leituras sequenciais,
expressando um potencial de formas mediante atlas, álbuns, arquivos e livros,
propondo uma nova estruturação no problema do impacto sobre a memória da
imagem fotográfica, que começava a se destacar como prática na arte
contemporânea.
Figura 52. André Malraux, O museu imaginário, 1947
Fonte: JARNOUX, Maurice, 1947, Paris Match via Getty Images
Em seu ensaio Desempacotando minha biblioteca, Walter Benjamin (1987)
resgata a ideia da criação de arquivo por intermédio da figura do colecionador, em
que mais interessa a ideia de concepção da arte de colecionar, exemplificada pelo
relacionamento com seus pertences, do que a coleção que cultiva em si. Por sua
visão, o colecionador ganha um espírito aventureiro, ao relacionar o ato de procurar
e comprar livros a uma experiência de fruição, de alguém que não põe em destaque
seu valor funcional ou utilitário, mas que estuda e ama as coisas, como o cenário de
seu destino:
Minhas compras mais memoráveis ocorreram durante viagens, como transeunte. Propriedade e posse estão circunscritas a uma tática. Colecionadores são pessoas de instinto prático; quando conquistam uma cidade desconhecida, sua experiência lhes mostra que a menor loja de antiguidades pode significar uma fortaleza, a mais remota papelaria, um ponto-chave. Quantas cidades não se revelaram para mim nas caminhadas que fiz à conquista de livros! (BENJAMIN, 1987, p. 230-231)
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Ainda sobre Benjamin e sua relação de “colecionismo como paixão”, podemos
lembrar a anedota que envolve seu exílio, em que atravessou os Pirineus a pé,
fugindo do nazismo e levando consigo uma única pasta preta, que continha um
manuscrito, “mais importante que sua pessoa”, segundo o próprio Benjamim.3
Além de Benjamin, também devemos nos lembrar de Marcel Duchamp e sua
boîte-en-valise, a famosa “caixa-maleta” produzida em 1941 que reunia 69
reproduções em miniatura de suas próprias obras. A partir dessas referências, a
historiadora da arte, crítica e curadora Pollyana Quintella idealizou e produziu o
projeto Nanica | exposição portátil, apresentado recentemente no Espaço Saracura,
no Rio de Janeiro.
Fui convidado a participar da proposta em um momento de total
comprometimento com as possibilidades relacionadas a MSV432, em que também
parto de dispositivos que estruturam uma narrativa imagética relacionada à memória
e à construção de um arquivo em meus processos de trabalho, o que me fez pensar
em criar algo que fosse originado como um desdobramento natural da pesquisa
então em pleno andamento.
Algumas especificações solicitadas em Nanica envolviam a portabilidade
como questão, como não ultrapassar a escala de 10x10x10cm. A partir de uma
imagem realizada no ambiente da referida casa em obras, vinha fazendo testes
cromáticos com a técnica de fotolitogravura, no intuito de produzir múltiplos que
seriam prolongamentos do projeto. Havia muito material de descarte, e, de algumas
sobras, fiz cortes no formato 10x10cm, e depois resolvi fragmentá-los em tiras, que
dessem a possibilidade de uma reorganização natural. A ideia era formar uma
espécie de jogo sem objetivo final, mas que convocasse à interação, ao ato de
encaixar, reorganizar e, de fato, brincar com diferentes combinações Assim surgiu
Fragmento flexível (FF), o “mini” que se integraria à caixa, construída especialmente
para abrigar os trabalhos dos 15 artistas convidados para a proposição.
3 Há muitas especulações sobre o conteúdo dessa pasta – uma delas diz que se tratava da última versão das Passagens, que Benjamin considerava a obra mais importante de sua vida (ver Otte, jan.-jun. 2007).
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Figura 53. Trecho de ilustração-guia com desenho das obras integrantes da Nanica, 2017
Fonte: Folheto de apresentação geral do projeto Nanica
Figura 54. Rafael Adorján, Fragmento flexível, 2017
Fonte: O autor
Os exemplos aqui apresentados revelam procedimentos, sempre
relacionados à fotografia, como ativadores de circulação da arte que se tornaram
meios para sua difusão e acesso. Refletem sobre a memória, seja ela vivida ou
imaginada, trazem questões do impresso, tais como suporte, formato e tiragem,
como poéticas. Um atravessar que segue do livro às folhas soltas, das reproduções
às miniaturas, ecoando sobre as possibilidades de reconfiguração do arquivo como
as já mencionadas criações de mundo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Uma foto é um vestígio. Mas um vestígio de quê?”
“Daquilo que se quis fotografar ou do que foi fotografado sem premeditação, sem vontade, sem desejo? Do objeto em si ou de um simples fenômeno? Do fotografável ou do infotografável?” (SOULAGES, 1997, p.13)
É com essas indagações que François Soulages (1997) inicia a introdução de
Estética da fotografia − perda e permanência, lançado há 20 anos, propondo um
método de análise que conduz a fotografia a um processo contínuo de interpretação,
pois toda foto é “esse vestígio enigmático que faz sonhar e que constitui problema,
que fascina e inquieta” (p.14). O que será que mudou após esse período?
A dinâmica da vida vai sempre trazer mais perguntas do que afirmações, mas
podemos nos assegurar de que, assim como o mundo, a fotografia mudou. Diante
disso, Soulages reeditou recentemente seu livro, considerando as diversas
transformações que transcorreram nessas duas décadas desde sua publicação. Se
antes as questões existentes ainda eram referentes à discussão de seu status e
representatividade artística em meio às diversas áreas do conhecimento, a fotografia
de hoje apresenta investigações inerentes ao mundo globalizado, como a
popularização das selfies, advindas sociologicamente da “modernidade líquida4” e
tecnologicamente de seu desenvolvimento digital.
Com o transbordamento da fotografia digital, mudamos a nossa forma de ver
as imagens. Sabemos, no entanto, que sua propagação massiva não irá pôr fim a
sua difusão em papel. A recém-inaugurada sede do Instituto Moreira Salles em São
Paulo possui biblioteca especializada em fotografia, com uma sessão especial
dedicada aos fotolivros. Tal iniciativa, com ênfase na produção brasileira, é única em
nosso país e ainda conta com destaque para produções latino-americanas e
orientais. Este ano também foi inaugurado o Museu da Fotografia, em Fortaleza,
abrigando um dos maiores acervos de fotografia do Brasil. São exemplos de projetos
4 Conceito cunhado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman para caracterizar a época em que vivemos, por meio de seu conjunto de relações e instituições, além de sua lógica de operações, que se impõe e que dá base para a contemporaneidade.
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ambiciosos que demonstram o interesse vivo pela fotografia como modalidade
impressa. Mesmo em contínuo crescimento, porém, o acesso à fotografia como
linguagem artística permanece voltado para um núcleo muito segmentado, que vive,
sobretudo, de um curto circuito que se retroalimenta.
Apesar do crescimento das feiras de publicação, ainda temos pouco em
comparação a outros países, onde existe mais incentivo ao desenvolvimento de
trabalhos do gênero, seja por meio de políticas públicas ou mesmo pela presença de
redes de circulação mais consistentes. Em nome da acessibilidade, procuro sempre
fazer com que minhas próprias publicações tenham um valor de venda acessível.
Como nas estratégias adotadas por Ruscha, o objetivo é fazer o trabalho circular,
aproximando e estimulando a produção para um público mais abrangente, que
ultrapasse as fronteiras de nosso próprio meio.
Aliadas a esse pensamento, as chamadas narrativas impressas são modos
de fazer com que determinados conjuntos de imagens adquiram forma e sentido,
gerando uma força advinda da sua potência como unidade, num processo em que é
preciso trabalhar qualidades como o desapego, pois durante a realização de um
projeto geralmente precisamos descartar elementos de que gostamos, mas que não
se encaixam no quebra-cabeça condicionado por aquela determinada sequência.
Em entrevista publicada recentemente no sítio da revista ZUM, Soulages
afirmou que “toda foto é uma imagem da imagem”. Nunca estamos diante da pura
impressão, mas da exploração dessa impressão, como se não estivéssemos nunca
diante do crime, mas sim da investigação policial gerada a partir dele. Malraux
também dizia que não pintamos um pôr do sol, mas um quadro semelhante a um
quadro em que havia um pôr do sol, o que comprova que cada imagem produzida é
precedida por outras gerações de imagens.
Estimulado por minhas séries fotográficas pude refletir sobre algumas dessas
imagens que nos precedem, me aprofundando sobre questões relativas à memória e
ao arquivo por meio de peças-chave do embate das relações estabelecidas pelo
impresso como obra, bem como sobre os diálogos possibilitados pela experiência
dos cruzamentos entre livro de artista e livro de fotografia, suas conexões,
desdobramentos e desafios de se querer acomodar algo muitas vezes
inclassificável.
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Sobre a produção de Religare e MSV432 é possível encontrar alguns
cruzamentos, especialmente na relação de aprofundamento com os ambientes em
que eles foram produzidos. Ambos são projetos que têm no espaço fator de
fundamental importância. Religare é fruto da experiência pessoal junto a uma
comunidade que faz uso de ayahuasca, em rituais que frequentei durante todo o
período em que produzi o trabalho, vivenciando os efeitos causados pela
experiência com a bebida enteógena; MSV432 é resultante das jornadas de
convivência em uma casa em transformação, que pude acompanhar em detalhes ao
estabelecer uma rotina de produção constante no período de um ano em que convivi
no espaço da obra. Apesar de características muito diferentes, os métodos de
trabalhos são análogos, gerados a partir de imersões em locais que precisaram ser
vivenciados para que pudessem ser reinventados. Uma espécie de busca da
ancestralidade da imagem, tal como as gerações de imagens que nos precedem,
como afirmado por Soulages.
Consequentemente, minhas séries também se caracterizam pela questão
processual em suas dinâmicas de criação, de esperas e intervalos que dependem
da relação com o outro. Outras similaridades se constituem no campo da visualidade
fotográfica, através de um olhar que busca certa harmonia da forma por meio de
cores, linhas, composições geométricas, trazendo embates da natureza do desenho
para minha poética. Alguns desses elementos foram destacados de minhas fotos e
levados à capa deste trabalho, de maneira a se criar uma identidade visual a
respeito das séries.
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Figura 55. Imagens das séries Religare (2015) e MSV432 (2017)
(a) (b)
(c) (d)
Legenda: (a) e (c) – Série Religare; (b) e (d) – Série MSV432
Fonte: O autor
A importância das fotografias como folhas, passadas de mão em mão, e sua
materialidade como objeto inspiraram esse estudo, e nesse sentido, o pensamento
de autores como Flusser segue pertinente, pois a distribuição da fotografia é infinita
na sua possibilidade de multiplicação a partir de uma matriz. Antes com o negativo e
agora com o digital, a fotografia permanecerá existindo também como impresso, da
mesma maneira que “a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita,
perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”,
constituindo uma espécie de arquivo do universo, que é na verdade, o próprio
universo de acordo com Jorge Luis Borges (2000, p.57) em seu conto “Biblioteca de
Babel”.
Vemos assim a importância das fotografias ao infinito, um impulso sem controle
alimentado por nós mesmos a cada dia com imagens que vão preenchendo um livro
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aberto, que desencadeiam narrativas, mas que não têm fim. Sem limites de
circulação no espaço do pensamento e da imaginação, Soulages nos lembra que a
última imagem criada é a que faremos na nossa cabeça, onde elementos novos e
antigos se articulam, ordenando-se em um lugar que jamais é definitivo, ou seja, “a
imagem da imagem é, ainda hoje, o inacabável”,5 tal como a “obra aberta dentro de
uma obra em aberto” a que me refiro em meu próprio texto para MSV432 e na
página derradeira do caderno que me guiou para o projeto, em que, diante da
necessidade de invenção de uma imagem, faço um desenho imaginado do espaço
da planta da casa e escrevo:
Posso não saber tanto assim sobre o espaço, mas eu o imagino.
5 Soulages, 2 out. 2017.
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