carlos humberto de almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como...

140
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CARLOS HUMBERTO DE ALMEIDA A COMUNIDADE SANTA ANGELITA: O “NOMOS” COMO CONSTRUÇÃO E ORDENAMENTO DE MUNDOS NOS CAMINHOS DE SUA HUMANIZAÇÃO CUIABÁ - MT 2006

Upload: others

Post on 25-Sep-2020

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CARLOS HUMBERTO DE ALMEIDA

A COMUNIDADE SANTA ANGELITA: O “NOMOS” COMO CONSTRUÇÃO E ORDENAMENTO DE MUNDOS NOS CAMINHOS

DE SUA HUMANIZAÇÃO

CUIABÁ - MT 2006

Page 2: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

CARLOS HUMBERTO DE ALMEIDA

A COMUNIDADE SANTA ANGELITA: O “NOMOS” COMO CONSTRUÇÃO E ORDENAMENTO DE MUNDOS NOS CAMINHOS

DE SUA HUMANIZAÇÃO

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação (área de Concentração, Educação, Cultura e Sociedade, na Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular, do Grupo de Pesquisa GPMSE - Movimentos Sociais e Educação) sob orientação do Doutor Luiz Augusto Passos

Cuiabá-MT 2006

Page 3: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

AGRADECIMENTOS

Do caminho até aqui percorrido, minhas gratas lembranças a João Vicente, Doutor

do Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Mato Grosso de

Cuiabá (MT), que hoje vive e ensina na Universidade Federal de Santa Maria (RS).

À Marinete, Antonio Carlos Barrozo, André, Sueli e Sirley, do mesmo

departamento, porque compartilharam seus conhecimentos e mostram-se solícitos como

companheiros de jornada acadêmica, oferecendo espaços para eu ensinar, oportunizando

e acreditando nesse projeto.

À gratificante presença dos mestrandos da linha Movimentos Sociais, das leituras,

dos seminários expostos, que sempre acrescentaram perplexidades e novos sentidos para

a vida científica.

A Maria Lúcia Muller e Maria Aparecida Morgado, porque foram pacientes

comigo, no cumprimento das disciplinas.

A Luiz Augusto Passos, meu orientador, que experimentou todos os caminhos

para que eu finalmente encontrasse algumas trilhas nas leituras propostas, na vivência,

em dissertar com a compreensão necessária sobre a realidade vivida com a comunidade

Santa Angelita.

Às pessoas mencionadas na pesquisa da comunidade, nas entrevistas, porque

sempre se dispuseram e se dispõem a todo o momento ao diálogo, às lembrança, às

próprias perplexidades do momento vivido e da “fala” que invoca novas percepções,

alegrias e tristezas, do passado...

À minha família que se regozijou pelo meu crescimento acadêmico, profissional e

espiritual.

Page 4: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

À Capes, Fapemat, PDACT (UFMT/UFF) por sua contribuição financeira e

acadêmica. Possibilitaram a realização da pesquisa com tranqüilidade.

Page 5: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

RESUMO

A presente investigação objetiva compreender os processos de aprendizado e reprodução do saber mediados por uma experiência pessoal, religiosa, na periferia de Cuiabá-MT em 1992; experiência esta, advinda da/na inserção junto à comunidade Santa Angelita. Utilizo uma abordagem etnográfica, fenomenológica, com entrevistas reflexivas. Observo a questão do aprendizado desses indivíduos e em como constroem seu saber fazendo história. Relato quais foram os resultados colhidos com a experiência vivida. Quis compreender as dimensões da experiência vivida eu com eles e eles comigo, pela e na consciência dos sujeitos de comunidade. Interpreto suas palavras, faço o vivido meu e o deles indissociáveis recriando novos significados para mim naquilo que escrevo. A cultura popular constrói sua própria temporalidade, singularizada: uma construção do saber com ritmo próprio, que aqui reúno e denomino tempo-do-aprender-da-comunidade. Nesse aprender-saber singularizado, destacamos o “Nomos” como processo de/em construção e em comunhão, libertando-se e autonomizando-se, fazerem-se sujeitos, solidariamente. Busco dessa maneira apreender novos significados que permitam repensar os pressupostos teóricos da pedagogia libertadora e popular. Palavras-chave: Autonomia - Construção do Saber - Educação Popular

Page 6: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

ABSTRACT

The present objective of this inquiry is to understand the processes of learning and reproduction of mediated knowledge by a personal, religious experience, in the periphery of Cuiabá-MT in 1992; experience this, happened of /in the insertion next to the community Angelita Saint. I use a ethnographic, phenomenological approach, with reflexive interviews. I observe the question of the learning of these individuals and in as they construct its to know making history. Story which had been the results harvested with the lived experience. It wanted to understand the dimensions of the lived experience I with them and they with me, for and in the conscience of the community citizens. I interpret its words, I make lived mine and of unbound them rebuilding new meanings for me in what I write. The popular culture constructs its proper temporality, singularized: a construction of knowledge with proper rhythm, that I congregate and I call here time-of - learn-of - the community. In this learn-to know singularized, we detach the “Nomos” as process of/in construction and in communion, becoming more free, to becoming citizens, solidarity. I search in this way to apprehend new meanings that allow to rethink the estimated theoreticians of the liberating and popular pedagogy.

Keywords: Autonomy - Construction of Knowledge- Popular Education

Page 7: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................09

CAPÍTULO I

1.1 O Cenário........................................................................................................18

1.2 A árvore...........................................................................................................33

1.3 Algumas interpretações...................................................................................31

1.4 Às margens do rio...........................................................................................34

CAPÍTULO II

2.1 A História do pensamento Teológico e Pedagógico na formação da

Educação...............................................................................................................45

2.2 Os primeiros referenciais teórico-metodológicos sobre compreensão de

sociedade. Diálogo entre a Teologia e a

Pedagogia..............................................................................................................46

2.3 A pós-modernidade e as discussões sobre a necessidade de construção e

definição de novos referenciais epistemo-teóricos para a

educação................................................................................................................57

2.4 O reencantamento da criação..........................................................................58

2.5 A pedagogia possível na educação como aquela da dia-a-dia, das condições

reais de existência.................................................................................................62

Page 8: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

CAPÍTULO III

3.1 Homem e Sociedade.......................................................................................67

3.2 Liberdade humana: há alguma?.....................................................................74

3.3 Berger e o pensamento existencialista............................................................77

3.4 O nomos como ato de criação.........................................................................80

3.5 Processos de Legitimação...............................................................................86

CAPÍTULO IV

4.1 Movimentos Sociais e Educação Popular- Nos Caminhos de uma outra

maneira de ensinar-

aprender................................................................................................................91

4.2 A dimensão humana como fonte para a criação de uma nova pedagogia....111

4.3 A razão, os sentidos e a existência................................................................115

4.4 Do Emílio à comunidade Santa Angelita, local da construção de uma

pedagogia da

comunidade.........................................................................................................117

4.5 A procura de Autonomia...............................................................................121

4.6 Identidade e sociedade no homem de Rousseau...........................................124

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................129

REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS. .........................................................138

Page 9: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

INTRODUÇÃO

A sociedade nos oferece cavernas quentes, razoavelmente confortáveis, onde podemos nos aconchegar a outros homens, batendo os tambores que encobrem os uivos das hienas na escuridão. Êxtase é o ato de sair da caverna, sozinho, e contemplar a noite (BERGER, 1986, p.166)

Essa pesquisa busca compreender como se constrói o saber nos processos de

formação de aprendizagem social na comunidade Santa Angelita, na cidade de Cuiabá,

Mato Grosso, Brasil. Procuramos compreender as dimensões nas consciências dos

sujeitos do povo, em como fazem e reproduzem seu saber, ao que aqui chamamos

tempo-do-aprender-da-comunidade. Buscamos compreender alguns sentidos na

maneira de como constituem suas vidas, o tempo social que vivem, como produzem e o

que produzem como sujeitos que têm sua maneira própria- e- pedagógica de ensinar

sobre o mundo. O que é o seu mundo? O que estrutura esse saber? Visamos com isso,

responder às minhas inquietações da vivência com eles como educador popular e sujeito

da fé, e contribuir no conhecimento de uma realidade social singularizada, que oferece

um olhar generoso aos espaços de construção da pedagogia. Trata-se de uma abordagem

etnográfica, fenomenológica, com entrevistas reflexivas.

O tema dessa pesquisa bem como o local de seu desenvolvimento, faz parte de

minha experiência como educador em 1992, e que deixou marcas, impressões que não

foram respondidas por mim sobre os resultados colhidos com as atividades que ali

realizei. Sentidos de frustração surgiram e abriram espaços de inquietação. Isso me faz

retornar a mesma comunidade procurando responder a essas inquietações. A essas

Page 10: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

10

perguntas sem as respostas que eu esperava, após o encerramento das minhas

atividades, obter. Hoje, retorno à comunidade Santa Angelita, e busco desvendar

algumas dessas marcas, algumas dessas impressões que ficaram em mim.

Iniciei minha participação como voluntário da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Envolvido pelo movimento de paixão, altruísmo. Acreditava que o conhecimento

adquirido em suportes cristãos, era instrumento adequado para levar minha contribuição

e “dar” àquela “comunidade marginalizada”, condições espirituais que a faria

compreender melhor suas condições sociais e empreender suas lutas na manutenção de

sua sobrevivência. “Minha compreensão de comunidade marginalizada” está no

sentido de que está às margens de potencialidades de realizar projetos de educar os

filhos em escolas adequadas; em ter como morar adequadamente; ao trabalho

remunerado com condições da presença de direitos trabalhistas assegurado; à saúde, a

informação mais crítica sobre os processos políticos e sociais da cidade em que vive; às

informações constitucionais sobre seus direitos e deveres como cidadão de um país,

com nacionalidade, com costumes em comum.

A minha paixão por eles, meus procedimentos morais, éticos e cristãos os fariam –

era minha pretensão - buscarem outras compreensões da vida, outras significações e

conseqüentemente, empreenderem suas lutas e resistências diante dos conflitos que

deviam enfrentar. Assim eu tinha acreditado...

Criávamos – nós, educadores - um discurso de que a comunidade deveria

reivindicar ao poder público o direito a moradia, a escola, a saúde, a empregos.

Suas casas eram lonas armadas, algumas tábuas, um ou outro tijolo. Distinto do

bairro vizinho, que possuía boa infra-estrutura e “animosavam-se” com a presença do

estranho, pelo aspecto (do feio, e por isso de marginalização-), que o bairro lhes

representava.

Page 11: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

11

A presença da rejeição pelo outro sempre presente, criava o desejo para que se

afastassem do local ou fossem despejados pela prefeitura, alegando ser área pública, que

seu assentamento no local era grilagem, que estavam se apossando de terras que não

lhes pertenciam, que a lei não se compatibilizava com tal empreendimento.

Foi também nesse sentimento de medo do desalojamento da comunidade que nos

aproximamos. Estrategicamente, procurávamos suas reivindicações mais imediatas para

nos aproximarmos, fazê-los compartilhar suas lutas conosco, mostrar que “estávamos

com eles”.

Foi um período em que me coloquei duas questões que, em verdade, podem ser

sintetizadas: a) como as pessoas daquele lugar respondiam sobre o que fazíamos ali,

como sujeitos que pretendiam que a comunidade avançasse nos rumos de qualidade de

vida, (um lugar para morar, trabalhar, educar os filhos); b) quais eram, para mim, os

resultados colhidos com essa experiência.

Afastei-me de Cuiabá por um período de cinco anos, e, ao concluir meus estudos

em Marília (SP), retornei em 2000, como bacharel em Ciências Sociais pela Unesp, com

as mesmas questões que emergiam sem respostas. Meu contato constante com a

comunidade oferecia-me a oportunidade dentro de um quadro teórico metodológico

mais organizado, de responder algumas inquietações do período de então, pois ali ainda

estão presentes os primeiros indivíduos, testemunhas dessa vivência.

Busco, hoje, compreender perspectivas de sentidos, ainda que numa realidade

diversa, responder o que animava o cotidiano daquela ocasião primeira. Então, eu, como

forasteiro, mas também iniciado em parte porque acolhido como se fizesse parte do

grupo, vivera porções de uma vida tecida em comum, fazendo parte da vida deles e eles

fazendo parte da minha. Na verdade fiz o papel para eles de ponte entre o mundo deles

Page 12: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

12

dando passos numa situação instituinte e o mundo instituído, do qual era, sobretudo no

campo educacional e eclesial, interlocutor privilegiado.

Quê mundo é o deles? Como vejo o mundo deles pelo meu olhar? Questões que

dirigem minha escrita, procurando descrever, interpretar possíveis sentidos que

permitirá, em parte, às pessoas compreenderem através de mim um pouco mais o

mundo dos moradores do bairro Santa Angelita.

Neste trabalho, retorno àquela comunidade para buscar um sentido entre tantos

outros sentidos, para interpretar os movimentos de resistência que ali existiam quando

estávamos presentes, na condição de membros da igreja presbiteriana e educadores

populares. Havia uma resistência em relação à nossa presença, na origem do poder da

nossa fala, da nossa religião, da nossa política, na maneira de percebermos o mundo

também instituído por nós versus a força do estranhamento no mundo instituinte da

realidade deles.

Procurando retomar reflexivamente uma caminhada entre eles, para re-memorar e

recuperar alguns significados que atenda à compreensão do insuperável estranhamento.

Retomo, com uma atitude contemplativa, para dar-me conta enquanto penso vejo e

sinto, quer dizer, com minhas percepções e meus sentimentos, explicitar significados

daquela experiência, num movimento intersubjetivo entre eles e eu, para então, alcançar

algumas “verdades” daquele momento.

Como sei que sou o outro na vida e história deles, procurarei explicitar meus

sentimentos, ressaltando os impactos que os atores causaram em mim, procurando

palavras que, parecem-me expressam a visão de mundo que junto construo através dos

signos-palavras. Farei isso a partir do momento das impressões do diálogo entre eles e

eu, da nossa experiência mútua. “Ouço”, ainda, os fatos dessa história, procuro

significados que me inquietaram desde então. Fui iniciado na com-vivência que me

Page 13: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

13

permitiu entrever os sentidos de suas vidas e quero procurar recuperar, traduzir o

movimento como compreensão que vem da intencionalidade fenomenológica com que

agora me posto diante do vivido. Essa compreensão implica em juntar recortes e vê-los

sobre um horizonte de significados que nos ultrapassavam a mim e a eles, e que muitas

vezes nos soldavam, referenciando-nos a sentidos públicos instituídos para entender,

afinal, o que nos invadia e animava os sentidos de nossas vidas.

Procurando realizar um movimento sensível em direção ao fenômeno singular que

está circunscrito numa totalidade, entendo algumas conexões presentes nessa totalidade,

que são os traços de muitos significados que nos dão uma chave, um caminho

percorrido pela comunidade Santa Angelita, seus sujeitos, suas próprias histórias de

compreensão deles no mundo.

Enunciar essa densidade opaca que tenho com meus informantes, é um desafio

complexo. Parte de um mergulho no cotidiano, buscando ouvir as vozes desses

informantes. Trata-se de uma construção que se faz intersubjetiva porque tecida a duas

mãos. Assim é que a comunidade é co-intrepretada por eles comigo e de mim com eles.

É assim que sigo a descrição densa explicitada por meu orientador Luiz Augusto

Passos, sob a fenomenologia de Merleau-Ponty. Estabelecer, segundo palavras dele, um

olhar carregado de intencionalidade, configurador e constituinte. Segundo ele, a

produção do conhecimento é resultado fenomênico-dramático de dois movimentos, o do

sujeito que intencionalmente inquire a realidade, e a realidade que se dobra ou resiste ao

conhecimento do sujeito e que se faz dialeticamente nesse mesmo conhecimento, de

forma que o fenômeno deste encontro torna este mesmo fenômeno uma simbiose entre

sujeito(s) e mundo(s). A realidade como pré-sença própria mediada na

existência/consciência do indivíduo.

Page 14: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

14

Assim, a pesquisa adquire espessura e densidade no conceito de cultura da

perspectiva interpretativista de Geertz. A pesquisa adquire uma inspiração pelo modelo

heurístico Bergeriano (Peter Berger) somada à etnografia Geertziana (Clifford Geertz),

conhecida como descrição densa, que servem ambas, de orientação teórico-

metodológico para esse trabalho.

Berger apresenta um esquema heurístico de interpretação dos fenômenos sociais,

dialético, no qual ele articula Durkheim, Weber e Marx. Cada um deles localiza um dos

momentos da dialética no qual em um dos momentos o homem faz a sociedade (Marx),

a sociedade, contudo, também faz o homem (Durkheim), e, em Weber, há um momento

intermediário em que o feito, o produzido humano ganha certa independência e cria o

nomos. O nomos passa a ser o ordenamento social, a possibilidade singular de a

sociedade fazer sua caminhada e construir seus destinos, de forma a dialetizar os três

momentos dialéticos.

Procurando entender a quebra dos processos sociais, porque não sei de antemão os

significados da experiência vivida com os atores da comunidade Santa Angelita; por

outro lado, como estou inserido no nomos, que é a ordem construída pela comunidade, a

seu jeito, é necessário viver reflexivamente em diálogo, atento epistemologicamente,

para conceituar, expressar e melhor poder apreender o vivido.

A modernidade como processo civilizatório se pôs como cultura para todos os

homens. Absoluta e universal procura universalizar e homogeneizar a tudo e a todos.

Porém, na comunidade Santa Angelita, local da minha pesquisa, os padrões éticos,

morais, enfim culturais, valorativos da modernidade, encontram resistências: há

“identidades” que não se curvam a essa operação de tudo querer homogeneizar. É dessa

forma que vou buscar a manifestação do fenômeno que pretendo estudar. Ele se media

na representação da “fala”, nas histórias/estórias de vida, na “memória do coração”, nas

Page 15: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

15

narrativas. A comunidade soube acumular historicamente. Tem suas formas de

expressão própria, uma lógica de mundo cotidiano feita para sua sobrevivência.

A consciência crítica parte desse saber popular, da opressão concreta, que um dos

condicionantes do forjamento da consciência, que vence as ambigüidades, percebe as

contradições na realidade. Na comunidade existem idéias sobre como vivem diante da

igreja, do poder político, das filantropias ali realizadas, da educação formal, que é força

de sua opressão. Não se curvam às realidades institucionais, mas negociam seu

cotidiano com essas formas instituídas. A partir daí institui sua realidade, mediando sua

vida e a valorizando-a, singularmente.

O trabalho etnográfico, em campo, segundo Geertz dá ênfase à cata de

singularidades e quebras, não deixando que dados massivos e lineares sejam os únicos a

construir significados, pois assim procedendo generaliza-se tudo e perde-se o sentido tal

qual ele emerge de um ser singular. Nele, na interpretação, é preciso, diz Geertz,

circunscrever o micro no macro porque é a partir disso que a expressão singular surge

como possibilidade semântica, abrindo-se a perspectiva densa e de forma nova que

agrega novos sentidos criativos e pessoais. Seres humanos nunca estão prontos, porque

o projeto humano e seu processo não estão fechados. Os homens são seres inconclusos,

por-se-fazer, essencial e ontologicamente.

Em Geertz, a linguagem tomada como universalidade pura, com sentidos cativos,

não comunica o mistério humano que somos. Sugere então. A questão dos sentidos está

voltada à “fala” e não à linguagem conceitual, genérica e abstrata em si mesma, a

linguagem dos signos. Para Geertz, discurso, linguagem, projeto e sociedade estão

interligados. O conhecimento assim se apresenta com vários sentidos, uma ordem entre

muitas ordens possíveis. E é aqui o lugar da interpretação, da intersubjetividade e da co-

autoria, onde não estão hipostasiados as pessoas da comunidade de Santa Angelita, da

Page 16: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

16

minha consciência como pesquisador. Nestes significados emerge a vida, o trabalho

cotidiano, a faina de produzir a existência singular e social.

Os mecanismos de linguagem paulofreirianos eram estudados mediante o

desdobramento das palavras geradoras em novas semânticas, sílabas que formavam

novas palavras, orientadas sobre serem essas a realidade de vida desses indivíduos.

Essa fala era a expressão do concreto, a reflexão do mundo sedimentada no

trabalho, nas condições de vida, nas alegrias da família, no trabalho em grupo, na

compreensão do semelhante.

Assim, no primeiro capítulo, procuramos estabelecer a construção das entrevistas

reflexivas, deixar nosso entendimento e o entendimento da comunidade sobre as

questões de como eles realizam suas vidas, criam responsabilidades sociais, protegem

seu lugar, fazem suas regras de vida, normatizam o coletivo, vivem suas

individualidades. Partimos sempre com o olhar de responder as inquietações da minha

experiência com eles e deles comigo: suas impressões e julgamentos da nossa presença,

da presença das coisas públicas, dos amigos, dos bairros vizinhos, de suas histórias

privadas. A singularidade de suas presenças num mundo maior que os cerca e de como

se sentem ligados a terra, e ao espaço que ocupam nele como lugar de moradia no

mundo.

No segundo capítulo, desta dissertação, procuro apresentar como a sociedade vem

construindo seus sujeitos pela história, alguns momentos de sua possível compreensão e

projetos de libertação em trabalhos do Professor Danilo Streck, citando pensadores,

como Santo Agostinho, Locke, Rousseau, Paulo Freire, na procura de uma teoria que

representa o mínimo de entendimento sobre o que é o homem, e a partir de que

pressupostos empreendem sua história como sujeitos de construção social, fazendo e

refazendo a pedagogia, interferindo na história e fazendo dela sua própria maneira de

Page 17: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

17

ver o mundo e de construí-lo. Daí a necessidade de novas leituras sociais, de novas

compreensões e de novas possibilidades de uma outra educação e de teorias

pedagógicas para encontrar o vivido no homem da modernidade.

No terceiro capítulo, apresentamos o nomos como conceito Bergeriano de

construção de mundos. Isso nos dá a possibilidade de construir a hipótese de que os

sujeitos nomizam suas vidas a partir de um mundo significativo e singular. Nenhuma

determinante social pode servir de base uniforme para condicionar e nos fazer

compreender a sociedade, como indivíduos que tramam e retramam a vida. Deixa-nos a

impressão de um mundo inacabado, e na permanente presença dos homens por-se-fazer.

No quarto capítulo, passo a apresentar a preocupação na construção de uma base

teórica para construção de uma pedagogia que dialogue com os sujeitos históricos,

descubra suas preocupações mais imediatas para criar na comunidade envolvida, o lugar

que assegura a todos os projetos coletivos. Para isso, buscamos referenciais para

construir uma pedagogia que se assente sobre alguns princípios éticos, partindo do

pressuposto de que ela somente pode ser elaborada dentro do mundo e com os sujeitos

envolventes no mundo e mais propriamente, no meu caso, na comunidade Santa

Angelita. Uma comunidade que se “assenta” no mundo e liga-se a ele com um olhar que

pouco posso conhecer, mas que nos acercamos dela para significar nossas próprias

vivências no mundo e com ela. Que resultará disso tudo? Restará com certeza uma

grande margem de novas inquirições, buscas, ressignificações abertas. Neste trajeto,

contudo, vivido, abre-se o projeto educacional de fazer-nos mundo, pessoas, limitados e

por isso necessitantes de reconhecer que carecemos de comunhão e de solidariedade.

Page 18: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

CAPÍTULO I

1.1 O CENÁRIO

Situado às margens do rio Cuiabá (MT), entre os bairros Jardim Santa Amália e

Jardim Araçá, o bairro Santa Angelita, é formado por famílias (120), que assentaram-se

ali em 1986, em condição reconhecida pelas comunidades periféricas e pelo poder

público como grilagem, pessoas que sem terrenos ou condições de pagar aluguel,

ocupam espaços públicos e constroem inicialmente seus barracos provisórios e iniciam

sua luta como cidadãos de um lugar. São famílias de baixa renda, que trabalham como

carpinteiros, pedreiros e que sem título de propriedade da terra, são ameaçados

constantemente de serem retirados do lugar pelo poder público.

Em 1986, surge então uma instituição, a Igreja Presbiteriana, que com

autorização do então prefeito Dante de Oliveira, obteve direitos de uso de pequena área

no local, para empreender ações sociais junto à comunidade Santa Angelita. E a partir

daí, como membro dessa instituição, também fui inserido nos trabalhos de aproximação,

realizando atividades recreativas e evangelizadoras.

Junto com a Igreja, surgiram as propostas de participação de uma agência

financiadora internacional1. Com o projeto social já em andamento, esta agência sentiu-

se confiante em selar um acordo com ajuda de custo para a manutenção, propondo

novas atividades, o que foi acordado. Na prefeitura municipal, também projetos como o

“Sopão”, uma medida para levar refeições a comunidades ainda sem infra-estruturas

adequadas, como saneamento básico, postos de saúde, entre outros serviços públicos. O

1 Visão Mundial.

Page 19: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

19

“Sopão” foi escolhido pela comunidade e esta passa a se organizar com o “Grupo de

Mães” assumindo a tarefa.

Essas comunidades, como é o caso do Santa Angelita, nasceram e ainda nascem,

cotidianamente, impulsionados pela falta de comida, sem casas para morar, de

trabalhadores em pequenos serviços, sem garantias trabalhistas. Sobrando ali um espaço

mal ocupado, lá se assentam com suas lonas, suas poucas tábuas. Assim é que vai se

fazendo gente de um lugar. Para que obtenham um primeiro reconhecimento social de

que ali mora, de que o lugar, “é propriedade de alguém”. As poucas tábuas, uma

pequena “peça” construída e as lonas, estabelecem um ambiente de moradia, são uma

demarcação, um “sinal” da presença do familiar, da morada, da presença de homens,

mulheres e crianças. Um território a ser respeitado. Ocupado.

Assim é que a igreja busca a comunidade para realizar um projeto de lavanderia

comunitária, mas que com o tempo vai “transformar-se”, ganhando outros propósitos,

intencionalidades e desejos, mediados pela vontade institucional da igreja e das agências

financiadoras, um condição de liberdade e cidadania. Essa condição era desejada pela

comunidade com seu grupo de mães, na preparação e organização do almoço para as

crianças, o alvo tático e primordial, e também nosso alvo principal no meio de tantas

necessidades materiais e educacionais.

A fome, crianças somente com suas mães, órfão ou abandonado pelos pais, ou

abandonada pelas mães, ficavam mais a mercê de deslocar-se para outros lugares,

aproximarem-se da prostituição, do pedir “fácil” nas casas e pelas ruas, entrar em

contato com as drogas.

Ainda a truculência dos pais com os filhos, nossa própria análise de nossas

truculências com as crianças, com os adolescentes, naquilo que falávamos, no dito, nas

conseqüências do “dito” espelho de nossos próprios exageros e arranjos. Em tudo, o

Page 20: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

20

“peso”, a atitude comprometida e comprometedora. Tudo tendo que ser realizado

cuidadosamente, numa educação permeada pelas nossas sensibilidades com eles e a

partir daí, nas atitudes que tomávamos.

Em meio a tantas “turbulências” era um lugar possível de organizar certas

atividades. A construção e compra de algum material, como tijolos no início do

assentamento, para aquelas famílias com crianças, sem espaços para cobrir-se,

esquentar-se do frio. Em tudo a comunidade participava, tomava as decisões a respeito

de quem deveria receber ajuda antes. Somavam, quantificavam as necessidades,

decidiam quem receberia antes, quem receberia depois. Entre eles, todavia, havia um

acordo, uma solidariedade gratuita mais percebível nesses atos.

A presença muito forte das mães no local das atividades, gerava um espaço de

sociabilização e participação intensa, juntamente com as crianças. Havia ali um grupo

permanente delas (15), que em tudo criavam suas percepções e sentidos. Ali

cozinhavam, lavavam a panelas, tricotavam nas tardes quentes, amarravam barbantes,

davam formas a fala e ao cordão amarrado. É delas que vou me ocupar nos diálogos

para o que aqui vou escrevendo, descrevendo, interpretando. Delas e “com” elas. Inicio

minha pesquisa com indagações abertas. Não procuro reuní-las em grupos para as

reflexões, mas vou reunindo as falas, minhas com as falas delas, e delas comigo, vamos

ligando as coisas aos nossos diálogos, às nossas reflexões, uma a uma, e aí, vou

transcrevendo, interpretando.

Em geral, chego, começo a falar, as lembranças surgem e com ela as

perplexidades, nossos momentos, o “sentido” no tempo. Somente minha presença já

estabelece essas lembranças. Sou uma parte histórica evocadora delas e da comunidade,

passo pelos sentidos deles e delas, das crianças que se tornaram homens, daqueles

momentos vividos.

Page 21: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

21

No ouvido, procuro resgatar compreensões do momento vivido por eles no

assentamento e de minha presença na experiência a partir de 1992, quando começo

minhas atividades. Parto de um diálogo solto e aberto, as pessoas são selecionadas em

meus passeios na comunidade, aquelas mulheres sensibilizadas pela experiência. Nas

visitas despreocupadas, mas atentas ao diálogo, nas percepções dos sujeitos. No

lembrado, surgem as reflexões, sugerem novas lembranças que se sucedem. Os ditos e

as reflexões pessoais, as esperanças da época, até o chegado, o momento presente, e as

mudanças alcançadas pelo vivido, tudo toma forma de novo. O que éramos e o que

somos depois do vivido.

A conversa fácil surge de forma espontânea porque estou ligado a eles a partir

do momento de nascimento da comunidade porque ali estive presente e sei que os

sentidos daí compartilhados podem vir a tona, lembrando, rememorando o passado, as

impressões vividas, os conflitos e as felicidades. Não pretendo explicações sobre

qualquer fato, mas trazer as percepções dos momentos vividos, os sentimentos

compartilhados, meus e deles nas circunstâncias daquele tempo, e as reflexões daí

sugeridas, sem questionar qualquer momento particular. Deixar que cada um trouxesse

seus momentos percebidos, e a partir disso, construir algumas interpretações, pensando

contribuir nos espaços pedagógicos e nos espaços do educador popular.

Assim como o momento com G. Pergunta-me, ela, se sinto saudades daqueles

tempos, lembra das minhas dificuldades com seu filho nas atividades cotidianas. Diz

que hoje é outra mulher. O conhecimento da Bíblia a faz dizer que cometeu muitos erros

na época, que poderia ter sido melhor, ser menos radical com as questões, observar

menos o alheio, ser mais rigorosa consigo mesma, mais humana, criar menos conflitos,

ouvir mais, falar menos. Demonstra que certas atitudes (não me diz exatamente quais

foram), suas, feriram, machucaram outras pessoas, que isso magoou, criou

Page 22: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

22

ressentimentos, mexeu com as gentes. Que as pessoas têm muitos sentidos, cada um tem

uma compreensão das coisas, que faz escolhas diferentes, e que, por isso, nossa

posição(a igreja) de então era mais complicada, e que é possível compreender isso

hoje... Diz: “ mexer com cachorro é mais fácil que mexer com gente”.

Vou visitar o casal, seu A. e Dona P. para averiguar como o bairro ganhou esse

nome. Não sabe, mas diz que B. e G., foram os primeiros a chegarem no local. Chego

na casa de B.. Iniciamos uma conversa solta, digo que gostaria de saber como o nome

do bairro surgiu. Explico que é informação para minha pesquisa nos meus estudos.

Pedem o que ando fazendo, se casei, onde moro... A. filho de B. reconhece o lugar em

que moro. Diz que é perto da Igreja, ao lado do cemitério. Brinco e digo que lá

vagueiam coisas estranhas, relacionando isso com o cemitério, lugar de almas, de

assombração. A. diz que não tem medo, que essa coisa não existe. Ele teme a igreja.

Pergunto porque... As almas diz ele, ficam dentro da igreja rondando, porque sai do

corpo...Os pecados ficam lá dentro.

Retomo a conversa com B. e G.. B. não se reconhece como “grileira” porque ela

comprou o terreno onde mora de outro. G. assume uma postura de grileira, diz que

ocupou um lugar, sem perguntar se tinha proprietário, resolvem... É esse mesmo, não

tem ninguém, vamos entrar...

Segundo G. e B., a comunidade ganhou esse nome - Santa Angelita - como

promessa feita por A. C., caso o assentamento fosse bem sucedido. C. é um dos

primeiros a ocupar os terrenos ali, depois os vende. Não se sabe agora seu paradeiro. G.

e B., dizem que ele era locutor de comícios políticos.

A luta começou quando algumas pessoas perceberam que a área que devia ser

ocupada pela instalação de linhas de alta tensão, deixava uma boa margem para fazer

casas. A notícia sobre estas coisas logo se espalha, diz G... Imediatamente, não resta

Page 23: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

23

mais lugar sobrando. Cheguei seis meses depois e só tinha o terreno que hoje moro

desocupado. No início, me diz, a gente estendia as lonas; outros, algumas tábuas,

arames farpados e ocupavam os lugares. Nós mesmos instalamos uma lona, capinamos

o mato alto, ali. Mas tinha já um proprietário. Ele chegou, fiquei com medo. Ele tinha

ocupado uns seis terrenos, não tinha interesse em ficar, instalar casas, família. Só

negociar o que conseguira na ocupação. Demos o que tínhamos de dinheiro, ele aceitou,

foi embora.

O lugar trouxe gente de todos os bairros de Cuiabá, até de pequenas cidades do

interior. G. e B., dizem que o antigo proprietário E. B., sobrinho de “Ditão”, família

tradicional do local, - do qual eu mesmo alugo uma casa na atualidade-, vendeu essa

área e após a instalação da energia percebendo que moradores estranhos ocupavam a

área, alegou que a área era sua. Um pequeno grupo organizado então foi à prefeitura e

observou que ela foi vendida pelo mesmo. A partir daí, em reunião com Dante de

Oliveira, então prefeito e seu vice, Meirelles, recebem a “garantia” de que serão

protegidas no seu mandato, de que não serão desalojados.

Assim que desafiado pelas minhas inquietudes espirituais, procurei apresentar-

me em circunstâncias desconhecidas, (com a experiência do desconhecido, a

comunidade Santa Angelita) para concretizar mais satisfatoriamente minha nova vida

espiritual. A minha compreensão da vida ganhou novas valorações; benignidade,

solidariedade aos menos favorecidos, e a crença num novo campo de possibilidade de

vida para outras pessoas para desafiarem o mundo. As mesmas que eu iniciara na minha

vivência como sujeito de fé. Com um novo significado interiorizado, compreendi que

poderia estender esses benefícios a outros, entender que podia ser gratificante atender,

dar-me com meus conhecimentos.

Page 24: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

24

Então, com essa vontade, iniciei minhas atividades. Meu primeiro contato foi

com as crianças, visto que a presença delas era mais fácil, eram atraídas mais

facilmente, pelas brincadeiras, pela atenção que dávamos a elas, conversar com elas,

brincar com elas. As mulheres eu ajudava em conselhos cristãos. Dos homens fazia-me

mais amigo, estendia conversas sobre futebol, pescarias. Os homens sempre foram mais

difíceis na aproximação.

Andávamos pelas redondezas, pelas matas e beira de rio com as crianças.

Escalávamos morros, descobríamos carreadores marcados pelo gado e por outros

homens que ali passavam para pescar.

Criávamos o mundo de aventuras, de onças e jacarés, de cobras enormes, que

engoliam uma criança de uma só vez.

Os meninos mais corajosos, - pelos menos naqueles momentos eram desafiados-,

escolhiam-se a si mesmos para escalar os primeiros perigos, afugentar as onças, quando

só existiam gatos domésticos, fazer correr os jacarés para as águas, quando só existiam

as lagartixas.

Fazíamos dos espaços naturais o lugar dos sonhos e das aventuras. Subíamos aos

mais altos morros, a paisagem se estendia, e mergulhávamos com elas a procura de

outros caminhos perigosos, que nossos olhos e imaginação podiam criar.

Dali, demarcávamos novos dias para enfrentamentos de novos perigos que se

estendiam no horizonte, outras onças, outros jacarés.

Colhíamos ramos de flores silvestres, de fruta pão, de tamarindo, de goiabas.

A fruta-pão era muita apreciada pelas crianças, e suas árvores, nativas, eram

encontradas pelas redondezas. Mesmo no lugar onde nos concentrávamos para as

refeições, para orar, e terminar as atividades, havia uma árvore com muitos desses

frutos.

Page 25: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

25

Em suas casas as mães lavavam enquanto perambulávamos com seus filhos.

Lavavam louças, lidavam no fogão, nos serviços assalariados como empregadas

domésticas.

Os homens, nos serviços de carpintaria, pintura de casas, desapareciam durante o

dia do cenário do bairro, ganhavam o pão cotidiano, sobreviviam e faziam sobreviver

suas famílias.

Nós brincávamos com as crianças, tentávamos atraí-las, para que não se

afastassem da comunidade. A procura de sobrevivência as fazia afastar-se, buscar os

centros da cidade, o bairro portuário, lugar da presença da delinqüência, lugar de

presença de drogas, do tráfico e da prostituição, levados nos caminhos das mães que se

prostituíam muitas vezes para manter a vida familiar.

Mantê-las nos bairro era prioridade, e nossas atividades de recreação iniciavam-

se de manhã, na espera do almoço. Meninas e meninos.

O projeto tinha um rigor em manter um número de 150 crianças no mínimo,

analisando peso, a permanência e crescimento escolar, fazendo com que escrevessem

pequenas cartas regularmente para seus padrinhos, (através de agências financiadoras)-,

gentes de todo mundo, principalmente países de primeiro mundo, que remetiam certa

quantia mensal, ajuda aos países desfavorecidos. Pretendiam com isso o mínimo de

atendimento às crianças proclamando a necessidade delas irem para a escola, que as

mães percebessem essa necessidade, na ajuda de custo para alimentação que somado a

ajuda de órgãos públicos, completavam essas necessidades.

O campo ali próximo, de terra batida, servia para as crianças jogarem futebol.

Algumas crianças, fincavam seus pés na poeira e os arrastavam, levantando nuvens,

fazendo longos trajetos pelo campo.

Page 26: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

26

A bola incentivava a organização dos grupos, meninos e meninas faziam-se

competidores. As meninas arranhavam os meninos como último recurso para pará-los.

Suados e já perto do almoço, na urgência de cumprir com horário, - as mães que

ajudavam no preparo da refeição tinham atividades nas suas casas e precisavam partir-,

descíamos em direção ao rio para o banho, crianças aos gritos entrando na água e

criando preocupação aos nossos corações. Devíamos vigiá-los para não avançar para

águas mais profundas.

As reuniões com a comunidade eram realizadas sempre com pequenas refeições

(canjicas, doces caseiros), depois das discussões das pautas.

Essas pautas às vezes eram muito tensas. Alguns grupos achavam-se destituídos

dos favores do projeto em relação aos outros, poucos eram atendidos de cada vez e isso

gerava clima de desconfiança, as inimizades entre vizinhos, gerada por escolha de

presidentes de bairro, clube de mães, grupos que buscavam recursos para atender antes a

sua própria demanda, sua sobrevivência, agravada pelas condições de grilagem da terra,

da ameaça pública de despejo, de voltar à antiga condição, retornar ao lugar de origem,

os interiores do estado, a condição de pagamento de aluguel, (sem dinheiro para isso),

perder seus últimos tijolos e tábuas na construção de seus barracos improvisados num

projeto inseguro para morar em terras de ninguém, até o momento da ocupação, quando

se efetivam as primeiras lutas, as primeiras tensões, a busca do político para protegê-los,

ou sua vinda a procura de nas condições miseráveis desses, angariar votos nas

promessas, salvar a comunidade de seus infortúnios.

Isso fazia a comunidade dividir-se, animonisar-se. Eram diferenças que

pairavam rancorosamente sobre outras atribuições, prejudicava o andamento de outras

atividades, tornava difícil o andamento de outros processos que procurávamos instalar,

numa realidade que não era a deles. Propúnhamos a salvá-los da miséria, do

Page 27: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

27

desemprego, da falta de comida, de um espírito motivador, encorajador, que víamos no

bom exemplo que poderíamos dar, nos bons costumes que tínhamos, no conhecimento

de educadores, de missionários salvadores. Mas não pode “salvar” coisa alguma se não

se entende as pessoas, se não se vive, e não se pode sentir o resultado desses medos, das

implicações dos silêncios, ou das poucas palavras, dos olhares, os seus medos e suas

angústias, seus riscos no cotidiano, sem armas para a luta, a não ser o silêncio que

esconde verdades dos sofrimentos, ou nas palavras que desviam o sentido real das

coisas. São possíveis mecanismos de proteção, ou de ataque, de superação do

momento, de respirar, de sobreviver outro momento.

O certo é que entendo muito pouco daquele tempo, mas compreendi que fizemos

parte de lutas, a nossa e a deles. Nós porque acreditávamos numa espécie de vida, numa

maneira vitoriosa de vencer a vida e eles nesse mesmo sentido, conosco, mas na

construção de um todo deles, do qual fazíamos parte como um fragmento.

Eles também lutavam suas verdades, até o momento que nossas verdades não

eram mais possíveis juntas, nossas histórias já não poderiam mais se colocarem lado a

lado, juntas, porque são verdades que reivindicam absolutidade. Diferentes, construções

diferentes, permanecem teimosamente sós.

O projeto que nascera para criar uma lavanderia (projeto institucional),

comunitária, com o tempo ganhou outra característica: outras pessoas assumiram o

projeto, e a comunidade já não era chamada a opinar sobre as questões desses projetos

nascidos à distância de suas necessidades vitais.

Os processos eram nossos e não deles. Fazíamos parte de suas vidas, mas

pressupúnhamos como devia ser essa participação. Não entendíamos os processos que

se efetivavam lá em suas casas, além do conflito doméstico, da fome, do desemprego e

do emprego de pouca qualidade remunerada, da tensão em morar, dos filhos, das regras

Page 28: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

28

em andamento, da vida se fazendo, da vida que respira e reinicia sua caminhada pensada

e refeita significativa, no seu chão próprio.

O nosso olhar institucional era o de pobreza sociológica e moral, da presença da

violência de pessoas não evangelizadas, portanto portadores de ética destruidora de si e

dos outros. Não havia a percepção de liberdades, de diferença legítima, autônoma.

Sequer de alguma forma de luta positiva construída por eles mesmo. Muito menos de

como se apropriavam da nossa presença, e do quem falávamos, em seus espaços. Nós

éramos as possibilidades de melhora na qualidade de vida deles. Assim penso eu. Vejo

que assim se colocava o grupo. Assim, nossa presença (grupo institucional-igreja-

agência financiadora), tinha a possibilidade de criar forças para a comunidade no

momento que precisassem enfrentar a política em suas reivindicações, na educação

escolar e dos filhos nos espaços domésticos e sociais. Também tentávamos ganhar sua

simpatia, lutar pelas coisas que desejavam. O medo de que a prefeitura lançasse seus

tratores e destruísse o lugar. Dizíamos que caso os tratores viessem, deveríamos subir

neles, impedir a derrubada das casas. Tornávamo-nos amigos deles, seus simpatizantes

nos mesmos interesses.

Mas penso nesse momento em que escrevo, que eles fizeram lutas mais

perigosas para ocupar um lugar em que sequer sabiam quem era o proprietário,

arriscaram-se e organizaram-se, reivindicaram e alcançaram seus objetivos. Fracassaram

e obtiveram vitórias, fizeram sua existência construindo suas moradias, instalando suas

famílias antes de nossa presença. Eles trabalharam.

No início do projeto, a comunidade em maior número decidia quem receberia

antes os benefícios, aqueles mais necessitados de levantar melhor sua casa, em construir

um banheiro, um quarto de alvenaria.

Page 29: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

29

Havia mais transparência no que se referia a verba. A comunidade decidia qual

deles seria servido antes, segundo a necessidade de cada um, segundo a percepção da

comunidade e na sua avaliação das primeiras urgências. Isso gerava tranqüilidade. As

soluções eram decididas mais coletivamente. Depois a história mudou. Grupos iam e

vinham, poucos decidiam o que era melhor para os outros. Com isso, a desinformação

gerava dúvidas, desconfianças, confundia, aumentavam as animosidades já existentes,

fomentavam outras. Isso serviu para com o tempo, tornar inviável qualquer projeto mais

ambicioso. A comunidade já se diluía e se afastava em definitivo nos processos

comunitários.

Os pais sempre poucos presentes nas atividades cotidianas. As mães e as

crianças faziam dali seus espaços, tinham mais afinidades, seus espaços de encontros

com outros, alguém com quem falar, fazer parte do grupo de mães, opinar no cotidiano,

simplesmente jogar conversa fora, fofocar, comentar sobre seus filhos, o trabalho, a

escola, aos amigos e os inimigos, o gostar ou o não gostar disso ou daquilo.

Hoje, o lugar em que eram realizadas as atividades recreativas está ocupado por

moradores dos arredores, 05 famílias, gente sem lugar para morar que receberam

permissão do presidente do bairro para instalarem-se, apesar das más condições dos

espaços, sem banheiros adequados, esgotos. Ali, encontram um lugar para fugir dos

aluguéis, não gastar os pequenos salários conseguidos em pequenos serviços elétricos,

de carpintaria, em pintura de casas. Percebo a preocupação dessas famílias em mobiliar

as casas cuidadosamente, dar um aspecto de “novo” aos espaços ocupados, como as

mesas bonitas, uma linda cama. Uma forma diferente de tratar o interior das casas em

contraste com “o fora”, o derredor. Nos arredores cresce o capim. Algumas árvores

pequenas, sem muros, espaços abertos, rudes, permitindo certa privacidade dessas

Page 30: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

30

famílias. Quem chegou antes, teve o privilégio de escolher, quem chegou depois, pegou

o que sobrou dos compartimentos.

Alguns moradores do bairro quando inquiridos sobre essa condição do lugar

estar ocupado dessa maneira gostariam que o lugar fosse desocupado e preenchido com

outra atividade que beneficiasse o bairro. No lugar também já se instalou uma pequena

serralheria de um dos moradores.

Também a morte marcou presença.

Morreram ali, dois moradores. Um homem por uso excessivo de drogas, e uma

adolescente, pelas más condições de moradia, a umidade, os esgotos a céu aberto. Um

tipo de doença muito rara, segundo informação da mãe. Sua morte foi agonizante e

lenta. Muitos remédios, poucos resultados. Ficava boa, voltava para o hospital,

retornava, brincava alegremente com os irmãos. Num desses momentos, não voltou

mais. I., sua amiga me confidencia... Havia muita dor no rosto dela depois de morte...

Fui ver... Um rosto marcado pelo sofrimento! Pondera.

O bairro vizinho teima em continuadamente tentar desalojar esses moradores,

pelas más características que se atribui às más condições ambientais e sócio-econômicas

expressas pela marginalização daqueles que nada têm, em confronto com aqueles que

têm e desejam divulgar uma situação social superior, situação que não existe como fato.

Muitos ali não empreendem novas construções no bairro devido ao estado de

permanência em serem desalojados. Caso isso ocorra esperam indenizações.

Lembro-me do brilho das panelas em cima das caixas de água, no lugar em que

as casas pequenas são construídas, sem pintura, sem reboco, sem jardins ou árvores,

sem flores ou hortas. Apenas as panelas brilham em cima das caixas da água instaladas

no chão, aos olhares.

Page 31: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

31

Ali vive uma família que tinha uma vaca de leite. Durante o dia era levada por

um dos jovens para os melhores pastos, ou pequenas moitas de capim e a noite ocupava

uma pequena casa construída nos fundos. A produção de hortas não foi assimilada por

essa família, num dos projetos do grupo.

Aqueles que vinham, por exemplo, do nordeste, como esses, tinham mais

dificuldade em assimilar a cultura da pequena roça. Lá é a criação de cabras, de gado.

As hortaliças, com exceção do coentro produzido em poleiros, não é praticada.

Outras crianças e outras famílias conseguiam isso com mais facilidades,

vigiavam sua produção para que ninguém invadisse. Para iniciarem suas próprias hortas

em suas casas, demandou muito tempo. Na “creche”, elas foram estimuladas. Nos

canteiros preparados por nós, eram dadas sementes para que semeassem, identificassem

o que elas eram, do que nasciam delas. Aprendiam a identificar as plantas e a

acompanhar germinação e crescimento. Aprendiam a identificar ervas-daninhas

daquelas que eram comestíveis.

Assim iam aprendendo... No perguntar que perturbava; pelas suas curiosidades,

em chamar atenção, a limpar os canteiros e regá-los. Quando a colheita era farta, muitas

crianças e mães, no final das atividades, levavam alface e couve, cebolinhas, temperos.

Noutra casa o padeiro construira um forno rudimentar. Ainda hoje ele sobrevive

de vender seus pães. Seus filhos viajam para Portugal, estão indo embora, tentam lá

fazer fortuna, para retornar um dia e fazer um negócio, melhorar de vida.

Outro ainda instalou uma pequena mecânica de concerto de geladeiras e

máquinas de lavar. O bairro se especializa cada vez mais, mais serviços prestam. No

início da comunidade a mão de obra presente era de servente, pedreiro, pintor,

empregada doméstica...

Outra pessoa ainda produz temperos caseiros, com alho, sal, cebola.

Page 32: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

32

Lembro-me também que a homeopatia era aceita e compreendida no bairro2.

Fazíamos dias de atendimento e muitos procuravam. Inclusive pude aprender um pouco

sobre o preparo desses compostos, a ‘racionalidade’ do composto.

Na religião, a Igreja Assembléia de Deus é quem mais capta membros. O

número daqueles que fazem essa opção é cada vez maior.

Fazíamos pequenos cultos no bairro no início do projeto. Aqueles moradores

mais próximos das instalações se faziam presentes, aqueles que tinham maior acesso ao

grupo pela proximidade física, pelo diálogo no cotidiano, pela participação mais efetiva

nos cuidados da horta comunitária construída e cuidada pelas crianças, pelos pais e

pelos jovens. No tricô, no crochê, na construção dos tapetes, na conversa solta e fácil.

Muitas vezes eram as próprias mães que nos ajudavam nos serviços mais

simples. Os homens quando era preciso buscar esterco, cavar buracos, fazer cercas.

Recatadamente, escolhiam a distância, olhar de longe, mas alegrando-se de nossa

atenção com seus filhos.

Quando algum desses membros era escolhido para manter-se mais próximo do

grupo, ter responsabilidades trazia também consigo as intrigas dos vizinhos inimigos,

inimizades produzidas ali, as divergências do cotidiano.

Isso fazia aparecer tensões antes não existentes nas atividades. Percebíamos as

dificuldades em trazer membros de lá para cá para ajudar nos trabalhos. Mesmo as

crianças faziam seus inimigos, dos ‘inimigos’ dos seus pais.

Um desses pais teve que ser ameaçado de denúncia por uma pessoa do nosso

grupo. Um de seus filhos era continuamente amarrado a uma mesa com correntes, como

castigo. Seu pai determinada feita de uma visita que fiz a sua casa me fez “tomar a

tabuada”, - expressão usada por esse-, desse menino de aproximadamente 8 a 9 anos na

2 Houve um período de ligação maior dos Projetos sociais apoiados pela Visão Mundial e o Instituto Pastoral de Educação em Saúde (IPESP) de Mato Grosso que usava a Homeopatia como estratégia de organização comunitária e de luta solidária por direitos.

Page 33: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

33

época. Ele respondeu-me com perfeição e rapidez. Seu pai mostrou que esse resultado

era pela sua forma de educar os filhos. Um homem bastante severo e orgulhoso de sua

forma de entender o mundo. Hoje, após alguns anos, soube que esse menino, hoje um

jovem, matou outro rapaz com o uso de arma de fogo. Seu paradeiro é desconhecido, no

bairro não se fala mais seu nome. Nos últimos dias dessa escrita, falei com sua mãe,

esperei algum comentário nesse sentido... Tudo quieto.

1.2 A Árvore

Encontro C. na rua, marco data para ir a sua casa, falar, lembrar da “Creche”.

Mas as lembranças já começam a ocorrer, lembra de duas árvores que ali estavam, e que

num ato seu e de outro jovem, foram cortadas na época, na intenção de criar um campo

de futebol para as crianças. Lembro que o lugar ficou desolado sem as árvores, As

crianças, hoje jovens casados, também lembram das árvores e o sentimento que se

apossou delas. O campo não foi construído. Dois dias depois deste encontro com C.,

retorno a sua casa. Estou cansado, caminho devagar, chego, ele me recebe, se dispõe

com formalidade a servir-me com perguntas. Digo que prefiro deixar a conversa correr,

solta despreocupada, que não penso ficar ali agora, tento marcar para o dia seguinte, ver

os horários a minha disposição porque ele trabalha a noite às vezes, mas a conversa

começa a ganhar dimensões, começa a falar da família, da perda do pai, o padrasto que

assume sete filhos, professor de primário no interior de Mato Grosso. Com doze anos

sai de casa, a vida no interior, na roça, não é para ele, sente que deve partir. Parte, faz

picolés, vive de casa em casa, de lugar em lugar, emprega-se em Cuiabá, estabelece

Page 34: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

34

família. Diz que o que pensava quando tinha doze anos se mantém em sua vida hoje

com 38 anos, trabalhar, pensar em constituir família, ser honesto, firme nas decisões que

o obrigaram a sobreviver só desde a pré-adolescência... “Cara vira bandido quando

quer”.

Lembra da turma dos “Paraíbas”3, expressão que ele usa em referência a alguns

moradores vindo do nordeste, que a presença forte deles na creche, com suas crianças,

motivados, chegou e criou ciúmes, os outros se afastaram... A desunião entrou aqui e

criou ciúmes. Todos se isolaram. No começo do bairro as pessoas eram mais unidas,

um tocava violão, cantava, alegrava, hoje todo mundo se isolou... Você e a M... Lembra

aquela época? Era tão boa, as fotos que tenho... (Traz um álbum que carrego comigo

agora, emprestado, para pensar, olhar, lembrar)... Fazem isso... Santa Angelita... Tem

dias diferentes hoje, diferentes de antes que era mais gostoso... As coisas começam, mas

não são como queremos que seja, mas como é... As fotos das árvores, caídas ou em pé,

não tiramos fotos delas lembra? Olhamos o álbum, uma das fotos lembra o lugar de uma

delas, a outra sem a imagem, é localizada no imaginário, o dedo dele desliza pelo lado

direito da foto, tentando mostrar o lugar onde a árvore estava. Lamenta-se pelo ato,

lembra que após cortá-la, doeu-lhe quando M. aproximou dele e disse que aquela árvore

demorara 10 anos para ser o que era e que eles em 30 minutos a haviam derrubado a

machado.

Aprendi na creche a não sentir mágoa das pessoas. M. e você me ensinaram,

porque cedo ou mais tarde... Já fui da Igreja.

Na época não víamos futuro ali, não percebíamos... Depois que tudo terminou senti que era importante, que nossas lutas internas, eleições de presidente de bairro truculentas, por vezes e com violência tiveram

3 A maior parte da população mais empobrecida que ocupa Cuiabá, Várzea Grande e o interior dos municípios mato-grossenses vieram com a influência do ouro em trinta ou como soldados da Borracha. Onde as levas desciam do Nordeste e se fixaram na nossa região.

Page 35: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

35

impactos... Formaram-se grupos no bairro, interesses diferentes... Depois comecei a pensar que se um dia ganhasse na loteria, deixaria você tomando conta do lugar, faria esse lugar ser bom pra nós.

1.3 Algumas interpretações

Passei pela casa de “Seu Antonio”, tentando buscar as impressões primeiras dos

momentos da minha pesquisa. Seu Antonio estava lá na época de minha experiência.

Ele tinha recém chegado da Paraíba, e estava com dificuldades de se organizar no local

com seus filhos e sua mulher.

Procuro algumas lembranças na memória desse homem. Deixo a conversa fluir

de qualquer forma, atento, porém às suas memórias. Em suas palavras alguma coisa da

nossa vivência. Estou preocupado em arrancar as informações do passado, rememorar.

Demoro um pouco até que isso seja possível. O cotidiano dele é mais próximo e

emergente: conta coisas do dia. Aos poucos vou dizendo o que estou pretendendo. Seu

Antonio lembra de algumas coisas, tece alguns comentários fragmentados, de então.

Sinto resistência. Queria me tranqüilizar com algumas perguntas já prontas,

estabelecendo regularidades. Seria mais fácil, não precisaria espremer meu cérebro,

esperar, teimar, espremer o cérebro deles, os sentimentos e contradições.

O que parece mais claro é sua ênfase em apontar que a comunidade na época se

dividiu bastante. Havia muitos pequenos grupos que “chafurdavam” quando percebiam

a possibilidade de conseguir benefícios sociais da Instituição (Igreja Presbiteriana). Seu

Antônio logo sai, vai fazer um trabalho, capinar, manter a alimentação da família, mas

sei que tenho ali alguém que se dispõe a falar, e que o tempo e minha perseverança

mostrarão resultados.

Page 36: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

36

É domingo, já lá pelas quatro horas da tarde, cruzo com algumas crianças dali,

pastoreiam seu gado, levam-nos pelos melhores pastos, não existem cercas ou limites,

cruzam os bairros, estabelecem curiosidades, chamam a atenção, as vacas cruzam as

ruas, se perdem na noite, mexem nos lixos, fazem parte do cotidiano. Existe como

existem os cães, os gatos, fazem parte de uma mesma domesticidade, suas presenças

não são estranhas.

Experimento a casa de Dona P., moradora na comunidade, muitos filhos, viúva.

Acompanhei a morte do marido. Uma morte lenta, na cama. Câncer nalguma parte da

cabeça. Dois anos deitado, perdendo a consciência, com esperanças de viver. Um dia

um dos seus filhos veio correndo até mim, avisar-me da morte do pai. Logo de manhã,

pede que eu avise outros enquanto ele caminha pelo bairro avisando outros, não parece

abatido, tem 12 anos, os pés sempre machucados, descalços, esperto.

Sento na cama com ela, a casa não têm móveis, então todos que chegam ali, vão

para seu quarto. A cama serve de lugar para sentar, abrir conversa. Sua preocupação é

com seus netos, da nora chamada F. O companheiro está (desconfiam) tendo um “caso”.

Dona P. logo me relata as coisas, fala de fazer uma casa pequena para abrigar a mãe e as

crianças, ali onde trabalhávamos com o nosso projeto. Ali agora, outras famílias

alojaram-se, não pagam aluguel aos representantes do bairro que cederam essa

possibilidade de morarem sem responsabilidades maiores. Dona P. pensa em ocupar um

canto ali dos espaços, fazer a casinha para a nora. Argumenta que se aqueles estão ali

porque precisam, e de que sua nora também tem direito a um pedaço do espaço.

Depois vou perceber que ela fala de tijolos, me sonda muito sobre a

possibilidade de arrumar esses tijolos, de ajudar. Penso que a “velha” imagem das

nossas experiências de passado, de que tínhamos o poder de arrumar telhas, cimento,

alguma comida como instituição, a estimula nesse sentido, meio inconsciente, ou não.

Page 37: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

37

Começo a dizer que estou pretendendo. Ela se mostra solícita, mas quer negociar

comigo, não pressiona. Mostra a urgência nessa parte: os tijolos! Colabora, mas procura

negociar, conseguir ajuda. Porque exatamente ela pensa que posso ajudar? Não sei.

Terei deixado no passado uma imagem de poder? Novas averiguações deixarão isso

mais claro? Estou curioso com isso, com a imagem que estabeleci ali. Creio que um

pouco falsa. Ou um pouco verdadeira?!

Estabeleci algo não desejado, porque não entendo o que sou para ela, que poder

pensa ela que tenho? Que sentidos deixei da experiência com Dona P.? Talvez a queixa

a falta dos tijolos pudesse ser apenas um pretexto para compartilhar suas necessidades,

uma ponte para comunicação.

E quem sabe se a resposta material de levar-lhe tijolos geraria uma ausência de

comunicação e de solidão. Fecharia o desejo pela posse dos tijolos. Fecharia o diálogo e

a comunicação.

Passado algum tempo desses sentidos compartilhados com Dona P., volto a

rememorar. Encontrando-a alguns dias depois. A questão não foi mais posta.

Esquecida? Guardada, a espera que novas necessidades sociais (espirituais) a fizessem

vir à tona? Talvez ela estivesse tentando libertar-se de sentimentos de culpa em relação

ao filho. Ou ainda, ela tenderia a sofrer forte cobrança da sua igreja sobre a relação

conturbada do filho, e procurasse mostrar sua inocência da questão, ajudar a

desamparada nora e seus filhos, parecer melhor que a situação criada em parte pelo seu

filho... Eis teu filho, veja como fracassa... Também a culpa paira sobre você... Não o

educou nos caminhos de Deus... Retomo aqui no sentido religioso, bastante moralista,

coercitiva.

J., sua nora, lembra que viu alguma foto da “creche”. Ri com essa lembrança.

Alguma coisa ali pode ajudar. Estou ouvindo as impressões, mas será que alguma

Page 38: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

38

questão mais posta, mais regular, com perguntas me ajudariam, me dariam respostas

mais claras, mais caminhos, maior rapidez para encontrar respostas?

Sinto-me tímido na aproximação, nas lembranças, nos sentimentos que essas

lembranças me trazem. E as lembranças deles provavelmente trazem sentimentos,

escusas, sentimentos negociados, escondidos, meio encobertos pela densidade de suas

vidas, protegidos das experiências, de saberem-se frágeis ou fortes, tensos.

Há um sentimento de insegurança quanto à reação de alguns. Nos últimos dias

de nossas experiências como projeto, quando todos tinham partido, porque já não se

sabia mais o que fazer... Alguns moradores estavam bastante zangados. Entrar em

contato com a comunidade agora, é uma experiência muito estranha. Mesmo os meus

sentimentos agora são outros em relação ao lugar, mas parece que a história continua, a

minha e a do bairro, nossos sentimentos, nossas lembranças... Minha força, minha

segurança em relação ao lugar e a história, onde meu diálogo era possível, já não sei

mais como ele é possível. Sinto que meu diálogo deve partir de algum outro lugar, dos

rompantes, como o de J., que sem motivo aparente trouxe a lembrança da creche com

seu sorriso, que não sei bem o quê significa, mas que traz significados. Como captar o

passado, as lembranças, rememorar os momentos difíceis, os conflitos, quando não

estávamos juntos, mas éramos a própria situação em conflito, lados diferentes?

Não é fácil dizer as coisas, da minha parte, da parte deles. Há sorrisos, mas a

lembrança feliz é mais fácil. Mas e as lembranças ruins? Como compartilhar delas

quando os atores estavam em instâncias diferentes, nós lá (na Igreja), eles aqui no

bairro, sofrendo a interferência?

Sinto que devo negociar minhas leituras com Berger, estabelecer relações com

alguns teóricos, como possam me ajudar.

Page 39: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

39

Sei que ainda tenho muito que percorrer, e que a comunidade nesse sentido está

crua ainda, porque vejo muito pouco dela, preciso conversar mais com ela e isso

demanda tempo e paciência.

1.4 Às margens do rio

É quinta-feira à tarde. Desço pelas margens do rio Cuiabá, até um ponto

conhecido como Tapajós, observo a água descendo, o silêncio de vozes humanas, o

barulho da água que desce. Os caminhos que percorríamos com as crianças agora

mudaram de lugar, alargou-se, o córrego tem seu estreito maior.

Percorro uma estrada improvisada a beira do campo de futebol. Vou andando,

encontro L. com um bebê no colo. Ela me chama. L. vivia nas proximidades do projeto

no bairro Santa Angelita. Acompanhou, vivenciou algumas experiências, procuro iniciar

a conversa. Tiro uma folha do bolso, faço algumas anotações, que ela procura olhar com

curiosidade, ver o que estou escrevendo. Risco pouco, despreocupadamente, procuro

tirar dela a preocupação do papel e caneta na minha mão.

De repente ela fala do campo a nossa frente, a arquibancada... Diz que o campo

tomou conta, não vejo mais ninguém daqui... Um dia vou ter minha casa... Fiz minha

inscrição na prefeitura... O prefeito promete entregar certo número de casas a camada

social mais carente de recursos financeiros. Dona M. diz L., lembra de mim, e eu não

esqueço de você, nos lembramos daqueles tempos... Da creche (porque rememora, não

sei, não levanto nenhuma questão, deixo que a conversa surja)... O P. lembro do P.,

aquele rapaz que trabalhava com vocês. Ele comprava carne e verdura e trazia pra mim.

Page 40: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

40

Naquele tempo tudo bom, tudo junto com M. (integrante do grupo da Igreja, muito

atuante na época e que ainda hoje procura levar ajuda, visitar algumas pessoas do lugar,

jogar conversa fora), pintava, bordava, acabou tudo, acabou né C. (a filha)... Beto, M.,

jogava bola, havia alegria, tudo é assim, morre gente, nasce criança.

L. diz que tem conversado com Dona C. Pede para que eu vá visitá-la. Ela mora

nas dependências da creche, que ainda está lá, com suas instalações inadequadas. Como

ela, outras pessoas foram entrando, gente que não tinha onde morar, foram ficando, sem

precisar pagar aluguel, tem até um pequeno carro estacionado ali, dum dos moradores.

Confrontando-nos com problemas cotidianos, questões de relacionamentos dos

jovens, muitos filhos, separações abrutas, muitos problemas, de muita irritação, o

problema logo toma as dimensões da comunidade, se espalha rapidamente, formam-se

opiniões, tomam-se partidos, causam desagrados e dores, num jogo de quem é

“culpado”. Somos levados a participar desses momentos, de cuidar desses tratos, de

expressar opinião, provocados a tomar um dos lados. Mas ouvimos muito, falamos

pouco.

Uma pedagogia do silêncio? No meu silêncio e na voz da comunidade (do

estranho para mim) talvez seja mais possível captar alguns significados que se demoram

a ser percebidos quando meu “eu” interfere e procura prevalecer nos embates, em como

fazer as coisas num mundo que não é meu. Organizar as idéias, depois de ouvir as

idéias de lá, as necessidades da comunidade, de como organizar os problemas deles,

(qual deve ser a representação do educador nesse sentido)? Encontrar mecanismos,

procurar mecanismos de libertação para eles resolverem de maneira mais adequada suas

questões. Como posso ter esses mecanismos, quando minha vida tem outros

significados no cotidiano que se estende? A minha vida e a vida deles. Onde podem se

encontrar? Quando pensamos que nossa abordagem deve ser iniciada pela realidade

Page 41: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

41

deles, entendo que mesmo assim a palavra realidade marcará um desencontro se não

entendemos algum significado dessa realidade. Não se pode partir da palavra, mas do

sentido das coisas que as palavras não podem representar definitivamente.

Então, marcados pelo tempo, após alguns anos ali, percebi que outra dimensão

social surgia no meio da comunidade. As crianças crescendo, a vida ganhando outros

contornos, precisando de outros significados, novos instrumentos para transformação,

novos instrumentos para poder compreendê-la. Uma necessidade percebível, um outro

“sentido” aparecendo, “sensibilizando”. Um outro mundo se fazendo preciso e

necessário para a comunidade, e para mim junto a eles. Compreendi que a minha

permanência não poderia moldar novos tempos para outros, estimular qualquer ação. O

começo de alguma outra coisa já tivera início, não passava por mim, pelo instituído

(igreja), e não sabia o que poderia ser. Ainda hoje não o sei. Mas a impressão muito

forte permaneceu, uma relação de afastamento, da perda de sentido para minha vida, e

penso que para a deles-nossas vidas. Isso marcou definitivamente meu vivido com eles.

E me faz escrever e lembrar, rememorar, falar do sentimento de frustração. E nessa

“confusão”, restou-me uma palavra estimulante de meu orientador. O de que esse

momento para mim tenha sido o de transcendência. Perguntei como poderia ser isso e

não aquele sentimento que descrevo como frustração. Diz ele. O momento da crise é o

momento da percepção para um salto em busca de algo maior que passa pela

experiência vivida. A experiência nos leva para mais além de nós, para encontrarmos

nós mesmos. Movimentamos espaços das nossas vidas motivados por esse ou aquele

amor, e a partir daí, o amor ganha um outro movimento e faz a vida merecer ser

desafiada naquilo que ele chamou de transcendência. A escolha das novas condições de

trabalho, construção de processos e de resoluções de novos problemas.

Page 42: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

42

Na verdade da comunidade, sua realidade e concretude vai sendo realizada

sobre uma situação diferente em que a instituição, por exemplo, foi construída. Num

jogo de duas realidades. São realidades e histórias feitas sobre totalidades diferentes.

O choque é inevitável quando uma realidade quer ser realidade para a vida de

outros indivíduos, porque são embates diferentes. Isso levou a instituição igreja a um

conflito cada vez maior com a comunidade, e com o tempo exigiu dessa, seu

afastamento. Foi o que aconteceu nessa comunidade (Santa Angelita). A Igreja e suas

regras não faziam mais parte dessa realidade. Ela deixou de ter suas atividades aceitas

ali. Ali estava a igreja Presbiteriana com um viés de uma realidade diferente e que o

tempo iria determinar outras construções sociais para a comunidade. Nem mesmo a

presença solitária do instituído poderia fazer diferença. Sua presença seria moldada

dentro de outras presenças comunitárias, dentro de outros instituídos pelos sujeitos

sociais.

Marcados também interiormente por divergências sobre como viver e agir na

relação instituição–comunidade, o grupo também foi sendo desfeito. Houve durante a

permanência do projeto muitos conflitos entre aqueles dos nossos grupos que saíam ou

ali permaneciam. Mesmo entre nós houve muitas divergências, a ponto de algumas

vezes nos retirarmos, e outras vezes, assumirmos de novo, num constante conflito entre

comunidade e grupos que assumiam os trabalhos. O caminho entre a comunidade e

igreja-instituição já não era mais compartilhado. Havia um processo mais longo

ocorrendo na comunidade e não percebíamos qual era. Ela já caminhava para outros

significados.

Assim, no jogo da Igreja-instituído versus comunidade-instituíndo-se, exprimo

minhas perplexidades, o meu vivido, e na vontade de compreensão para chegar a uma

identificação ontológica do homem e explorar suas tendências evolutivas. É isso

Page 43: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

43

possível? E a partir de então, elaborar uma teoria pedagógica do homem superando as

forças da sociedade e refazendo-se nela num mundo diferente. Podemos declarar que o

homem combina elementos de descontinuidade, de alguma fixidez, com elementos de

descontinuidade que incluem condicionamentos sociais e culturais relacionados com o

tempo histórico em que vivemos, podemos considerar a humanidade como espécie,

incompletude, incerteza, liberdade e desafio.

E que nessa dimensão proposta acima, penso que podemos compreender

pequenas parcialidades da realidade. Descrevemos o mundo onde vivemos, mas

interpretamos muito pouco do vivido.

As comunidades, tanto quanto os indivíduos, são seres-em-relação. Um ser ao

mesmo tempo pessoal e social, uno e múltiplo, singular e plural, cotidiano e histórico,

jamais completo e definitivo, mas sempre-em-processo de fazer-se, de se superar, de ir

além de si próprio. Um ser educativo e evolutivo. Fazendo-se, conscientemente,

tencionando fazer e fazendo mais. Seres de cuja essência e cuja existência histórica,

ação e relação, são fatores ontogênicos, portanto, mais que fatores arbitrários ou

indissociáveis. Nesse contexto, podemos perceber a dimensão em que estes se colocam

para fazerem seus mundos, e das possibilidades de compreendermo-nos neste mundo

como homens.

O verdadeiro objetivo é encontrar seu pleno e verdadeiro eu mesmo, sua

verdadeira natureza, que só se explicita no “nós”. Algo que cresce dentro dos homens, é

eminente, e os desafia à transform-ação.

Uma natureza divina que se desenvolve lentamente, relacionando o sujeito com

sua multiplicidade, presente na cultura, na sua comunidade, na sociedade. Sujeito de

diversas naturezas, singulares, específicas, ao mesmo tempo dos agrupamentos

humanos sociais a quais pertencem. Todas elas em processo de transformação, numa

Page 44: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

44

dinâmica. Nada é e pode ser definitivo. Cada indivíduo dentro dessa natureza geral da

espécie humana tem o objetivo comum, de perseguir um crescimento a partir de dentro

de “si”. Ele próprio, o sujeito, o agente consciente desse processo.

Assim, é que me posiciono acerca do nomos social e singular gerado pela cultura

da comunidade de Santa Angelita. Maneira que escolho para interpretar a comunidade

Santa Angelita; para interpretar algumas regularidades; e considerar importantíssimas as

generalidades como as irregularidades, que permitem interpretar sentidos educativos e

pedagógicos daqueles moradores. Permite, ademais, interpretar como um grupo social

educa sua vida no contexto do mundo globalizado tantas vezes na contramão das

culturas dominantes. Santa Angelita se posicionou face ao “seu” vivido. Criou outros

mundos consciente ou inconscientemente que deram “conta” de identificá-lo com

aquelas forças estranhas que o fazem ser coletivo e ao mesmo tempo local. Faz ademais,

com que a vida seja reconstruída a partir das questões locais, de seus problemas locais,

parte de seu mundo particular que deve recriar continuamente, pintar outros traços, com

novos desenhos que expressem seu cotidiano significativo. Se fazem num jogo dialético

com outras forças sociais no mundo. Tudo julga e propõe dizer como isso “é”; se

propõe novos problemas, ato incessante, como um ato religioso, um ato da alma, que

mais do que se compreendê-la, precisa libertar-se.

Page 45: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

CAPÍTULO II

2.1 A HISTORIA DO PENSAMENTO TEOLOGICO E PEDAGOGICO NA

FORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Considero aqui, a partir da modernidade, a teologia e seus pressupostos de

construção de mundo. Não para criar uma outra pedagogia ou uma melhor pedagogia.

Não se esta ou aquela metodologia pode compreender e dar respostas mais adequadas

sobre os sujeitos da historia e das comunidades sociais, mas de que na historia dessas

percepções metodológicas, criamos um ambiente teórico reflexivo para os espaços de

educação, de educar o homem, de guiá-lo ou de caminhar junto com ele em sua marcha

fazendo história.

Os sujeitos como ordenadores do mundo humano, iniciam uma nova

configuração social, moldam novas valorações, interferem no lugar do divino e

requerem com isso que as maneiras de ensinar sobre o mundo sejam revistas,

revisitadas, ao encontro de novos conhecimentos, pensando novos espaços

significativos.

A realidade elaborada pelos homens a partir das relações de produção do capital,

forja e molda novos homens, sintetiza os velhos valores da idade média, os refaz com

outras percepções sociais, enfrenta novos desafios, recria uma outra sociedade,

reformula novos valores, uma nova ética, uma outra moral, um novo comportamento

social.

Page 46: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

46

Pretendo assim, historiar os espaços de compreensão de educação e de

construção pedagógica bem como os espaços de construção de mundos pelos sujeitos

após a era moderna; as invenções, as grandes navegações, o imaginário do homem, o

Iluminismo e as massas populares se inquietando e respondendo sobre o mundo com

novas percepções da vida buscando responder as inquietações de sua vivência no

mundo. Com isso, a pedagogia tem que ser permanentemente revista, recolocada,

compreendida e reelaborada num mundo de criação significativa em que nada é

homogêneo. É a partir desses pressupostos que pequenas comunidades neste mundo

poderão ser mais bem compreendidas. Ela de alguma maneira é resultado desses

espaços de globalização, de uma cultura voltada ao lucro, ao supérfluo. A comunidade

Santa Angelita vive em relação como produto da sociedade e ao mesmo tempo se

apossa dela e recria espaços que respondam às suas condições de existência, para o além

do aqui e agora, do que vejo.

2.2 Os Primeiros referenciais teórico-metodológicos sobre compreensão de

sociedade. Diálogo entre a Teologia e a Pedagogia

Os homens propõem e se propõem novos desafios. As novas condições

propostas por um novo mundo, projetam-nos com mais coragem e intensidade sobre os

espaços, fazendo e criando outras maneiras de sensibilidade com o mundo,

abandonando Deus no seu fazer significativo. E é assim que também estou mergulhado

na modernidade da Reforma Protestante que marcou minha vida e, portanto meu olhar.

Não saberia pensar dimensões ético-políticas que não dialogassem simultaneamente

Page 47: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

47

com dimensões das ciências da educação, da sociologia, e na teologia que vivo

cotidianamente. Esse é o meu olhar. Esse é meu ponto de vista e compreensão. E é a

partir dessa compreensão que procuro estabelecer pressupostos para construir minha

pesquisa. Por outro lado, minha abordagem a essa comunidade, com meu retorno a ela,

vem do sentido íntimo de certa fidelidade à presença evangelizadora, como educador da

fé, entre eles.

Essas reflexões ajudam a compreender minha experiência religiosa como

educador, e minha presença educadora a partir da fé, e que se apresentam interligadas à

forma singular da comunidade no construir sua vida e ao apropriarem-se do sagrado. É

no contexto histórico que ela pode ser mais bem compreendida, e a partir daí,

possibilitar significações na experiência vivida.

Parto do pressuposto de que no Brasil, as comunidades populares ao se

apropriarem do sagrado, o fazem em conjunto com outras questões que fazem sua vida,

que determina sua existência e lhes oferece sentido para viver na sociedade.

Essa educação é fruto das necessidades reais dessa comunidade, portanto de sua

liberdade, que em conjunto com o sagrado, tem uma maneira própria de realizar sua

educação no conjunto da sociedade. Apropria-se do sagrado universal numa realidade

unicamente sua, uma particularidade como não o há de fazer em nenhum outro lugar.

Pressupondo que essa apropriação corrobora sua sobrevivência, faz do sagrado

um instrumento singular na medida em que suas vidas são também construções

singularizadas pelas necessidades do cotidiano, valorações que só ganham significados

e sentidos quando minimamente compreendida numa realidade como não pode haver

em nenhum outro lugar. Isso pode nos auxiliar na compreensão de como se organizam,

de entendermos alguns pressupostos de sua forma de se fazerem homens, de estabelecer

Page 48: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

48

seu conhecimento, e a partir daí, como refazem seu mundo no espaço de pesquisa

envolvido.

A educação forma humanos sociais junto a outras estruturas comunicacionais,

acompanhando-os na história, e nos fazendo compreender a sua existência, em como

elaboram seus objetivos e constroem seus mundos.

Assim, sua formação, quando construída pela educação e religião, adquire

características complexas, profundas e pré-relacionadas de mil maneiras, junto a outras

estruturas sociais. Nesse sentido, a comunidade constrói suas relações para mais além

do ético, do político e do sociológico, na busca por outras formas de convivência para

dar sentido ao mundo construído.

Assim é que para Danilo Streck, do qual inicio diálogo com suas posições que

implicam uma pedagogia e uma teologia, lado a lado, são possibilidades, duas

linguagens que promovem um encontro para dar sentido a essa busca. Oferecem

referencias metodológicos para nos aproximar de um quadro mais significativo das

interferências humanas na dimensão social, e recriarmos com nossas percepções de

pesquisadores, novos pressupostos metodológicos, abre espaços para outras

possibilidades como homem de fé, e como educador popular.

Uma pedagogia com espiritualidade do povo, traduzida em lutas, em vivências,

em danças, em rezas e em crenças, uma teologia e uma pedagogia que surja dessas lutas.

Portanto elas são os caminhos feitos pelo povo, fazendo e refazendo seus sonhos,

alimentando-os nas lutas dessa cotidianidade.

Segundo Paulo Freire, uma educação que não pode ser obra de cálculos e formas científicas, mas que se constitua num espaço de lucidez e encantamento donde convivam as presenças do que se está fazendo e na ausência do que se deseja. Uma educação convidando a viver como moradores privilegiados de uma mesma sociedade, que ofereça espaço para todos morarem (STRECK, 2004, p.10)

Page 49: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

49

A educação, conclui Streck, para alcançar essa significação, deveria então, ser

construída sob um novo contrato social. Uma educação para mais além desse contrato

social. Construída na ternura, na solidariedade, na amorosidade, na vida vivida

plenamente, mas sabendo que elas estão fora do contrato social, e por isso a necessidade

da educação anteceder o contrato social, para garantir que ela seja vivida sobre essas

virtudes, com seus acertos e erros, utópica, esperançosa então, construída e mantida em

longo prazo.

Os limites entre as diferentes áreas do conhecimento nunca podem ser

estabelecidos com total claridade, porque a vida resiste a ser dissecada por especialistas.

Assim é que o químico estuda a composição da água dos rios, porém não observa que

fatores econômicos interferem nessa composição, nem o historiador percebe que

descobrimentos da física afetam a maneira dos homens conceberem o mundo.

Educadores e teólogos convivem nesse mesmo mundo donde a vida é tecida com

inumeráveis sentidos que não podem ser totalmente analisados. Aprender e ensinar é o

objeto dos educadores, e crer é a preocupação dos teólogos. O ser humano crê no

momento em que se põe confiadamente em uma nova situação, quando se abre a ela, e

cria um processo de aprendizagem.

Como compromisso confiado com Deus, como fundamento do alcançável do ser e, conseqüentemente, como o que vem a nosso encontro, o futuro, o novo, a fé é a condição e a motivação do aprendido, e o aprendido é a fé tomando forma. Assim como uma fé que não aprende é morta, uma aprendizagem sem fé, não será mais que repetição do passado ou a perpetuação do presente (STRECK, 2004, p.14).

A teologia e a pedagogia podem ser vistas como dois enfoques sobre a vida. A

teologia busca aclarar e elaborar a relação do ser humano como o centro do seu ser, o

coração do homem é central na vida pessoal. Assim, crer é, sobretudo, confiar o coração

Page 50: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

50

a algo ou alguém. Sem esgotar-se em si mesma, a condição humana não pode ser olhada

em aspectos específicos para ser compreendida, porque sua condição de existência é

inesgotável, não está esgotada em grupos de idéias ou de pensamentos.

A pedagogia busca compreender o processo de fazer-se humano e das

intervenções da sociedade nele.

Dentro da tradição cristã, crer e aprender, fé e educação têm uma estreita

relação. O Deus da fé, também é dador da fé ao povo e como tal, também ensina o povo

a caminhar e perseverar nos caminhos da justiça. O filho, Jesus Cristo, é o mestre que

chama seus discípulos para ensinar-lhes separadamente ou junto com as multidões

através das palavras e das ações, o que significa a Boa Nova em Deus.

Ainda que a educação haja estado presente em toda a trajetória da humanidade, a

constituição de um campo de conhecimento específico é um fenômeno dos últimos

séculos.

Até chegada da era moderna, a compreensão do ensino e da aprendizagem era

uma parte da teologia que a sua vez se confundia com a própria teologia, não havia uma

separação clara ou definida. Fazer-se homem ou mulher era na verdade fazer-se cristão.

Daí que nesse sentido, Deus é o grande pedagogo que surge para estabelecer com seu povo um novo paradigma no conceito de ensinar-aprender entre os homens. O santo de Deus, Jesus Cristo, intervém na humanidade e a conduz enquanto seu pai cuida de seu povo no deserto, o guia e combate a seu lado e em seu favor (STRECK, 2004, p.16)

Em Santo Agostinho, o princípio teológico da revelação é ao mesmo tempo um

princípio pedagógico.

Para este, tudo começa com a pergunta sobre o que pretendemos fazer quando falamos. Na resposta aparecem as idéias de aprender, ensinar e recordar. A linguagem é utilizada em sinais para representar coisas, e nela cabem as palavras o ofício de manifestar o pensamento de quem fala, pois

Page 51: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

51

é incerto se ele sabe o que está dizendo ou não. Para ele, o conhecimento verdadeiro vem pelas próprias coisas, e seu aprender é interiormente revelado por Deus (STRECK, 2004, p.17)

Aprender, portanto, sucede por uma iluminação interna. Sendo as coisas assim, o

grande e último educador é Deus, e dele depende esse processo. Isso não significa que

as palavras estejam desprovidas de importância, mas que elas têm a função de estimular

o homem a aprender.

São Tomás de Aquino vê na educação um meio para alcançar a plenitude

enquanto criação divina orientada a perfeição. O mundo é um lugar transparente, aberto

a racionalidade e a observação empírica, portanto, às experiências.

Nesse também Deus é a causa primeira que criou tudo para determinado fim, esse se encontra no topo de uma hierarquia que se move da potência e da possibilidade, da capacidade ao ato da realidade e da perfeição. Deus é ato puro, inteligência absoluta, e nele reside a verdade absoluta e eterna. Dele e para ele procede e conflui toda a inteligência (STRECK, 2004, p.18)

Conclui então, Danilo Streck, que não existe nenhum outro atuar perfeito da

inteligência, a não ser em direção a verdade absoluta, que é o lócus próprio onde se

encontraria o valor da inteligência, e daí procederia toda a verdade, a qual se pode

afirmar que provém de Deus mesmo.

No mundo atua a inteligência divina, deriva de Deus, então ensinar é ação e

prerrogativa de Deus, pois somente ele ensina de dentro para fora, de inteligência à

inteligência, e para compreendê-la, é preciso ler dentro de sua essência, que mesmo

dependendo dos sentidos para conhecer, nunca poderá ser falsa.

A verdadeira aprendizagem então não apenas assimila sinais, palavras e gestos,

mas é antes de tudo um processo, criado por Deus, diz Streck, que passando pelos

sentidos e pela inteligência, ocorre de dentro para fora.

Page 52: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

52

O sujeito do conhecimento passa a ser o intelecto, e os sinais sensíveis não

alcançam o intelecto, mas permanecem em potência sensitiva. Seguindo Tomás de

Aquino nesse raciocínio, o homem não pode ser ensinado por outro homem, porque

Deus é o criador e somente ele pode ensinar.

Nesse sentido então, cabe à Pedagogia procurar no intelecto do homem,- que é a

própria essência de Deus-, caminhos para penetrar nesse intelecto,

Tentando atribuir outra verdade aos homens num caminho traçado inicialmente pelo divino. Assim, a Teologia ocupa o lugar da ciência até o final da Idade Média. O conhecimento humano é sempre conhecimento mediado por Deus, na verdade, é a própria essência divina no homem. Deus mediando a vida numa totalidade, que não se encontrará novamente com o advento da Idade Moderna (STRECK, 2004, p.19)

Com Michel Montaigne na Modernidade, século XVI, a educação sofrerá sua

crítica. Salienta uma educação que leve a autonomia do pensamento, uma das principais

características do sujeito moderno. “Os homens tanto se apóiam uns nos outros, que

acabam por perder as forças” (STRECK, 2004, p.20).

O mundo se abre às possibilidades. Se espelhar nele é a maneira de conhecer

com exatidão. Deus e o mundo são dessacralizados nesse sentido. Os homens deverão

empreender novas forças, e ao empreendem, fazerem suas histórias, e a fazem,

povoarem o intelecto com outros saberes, mediarem o saber com forças racionais,

terrenas, descobrirem suas potencialidades como sujeitos, fazerem seus destinos. Agora

O divino desaparece da cotidianidade.

Na Alemanha, a Reforma Protestante (Lutero), estimula seus príncipes para

fazerem escolas junto com a leitura da Bíblia, diante de um novo mundo que se

apresentava. As invenções, as navegações e os descobrimentos de outros continentes.

Page 53: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

53

Com Comênius, teólogo e educador, segundo Streck, aparece a proposta de um

método para a educação e as escolas. Todos poderiam ser ensinados sobre todas as

coisas e de todas as maneiras possíveis, porque a educação,

É um ato de caridade, no sentido cristão, e por outro lado, parte do processo de formação da própria natureza criada por Deus. Por isso, Comênius abrirá crítica contra os teólogos que não queriam saber dos problemas escolares. Esse lança propostas para a organização nacional e internacional da educação, lança as bases racionais da Pedagogia Moderna (...) (2004, p. 21)

Esse pensamento é percebido em John Locke. O entendimento da

inteligência como algo natural, que faz parte das coisas desse mundo. Para Locke, o

homem nasce ignorante de tudo, e que através da experiência adquire o conhecimento

das coisas e do mundo. Não há idéias inatas nem processos que careçam de interferência

divina para acontecer.

O mundo criado por Deus funciona como uma máquina perfeita e harmoniosa,

mas que não é Deus quem irá organizar o aprendido, mas o homem mesmo diante de

um esforço, e pouco a pouco.

A partir desse pensamento, a conduta humana e sua compreensão passam a ser

efetivamente uma ciência, ainda que Locke reconheça a diferença de aprendizado de

cada pessoa em suas potencialidades, pelo fato delas exigirem mais ou menos, o

entendimento sobre suas experiências. É uma visão que tem poder emancipatório e

libertador.

E a partir desse pensamento, - tabula rasa-, a linguagem não mais pode explicar as diferenças, nem a razão, nem a evocação de qualquer forma de legitimação divina para as diferenças socialmente construídas. Agora se devem redobrar os esforços para saber como o indivíduo que nasce como, uma tabula rasa, adquire seu conhecimento (STRECK, 2004, p. 22-23)

Page 54: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

54

Já Rousseau, constituirá uma pedagogia que busca na natureza fundamentos para

ensinar.

Em seu “Emílio”, o sujeito se educa, uma vez que a natureza está no sujeito, tudo que ele necessita está dentro dele mesmo para desenvolver-se. Ao educador caberá apenas protegê-lo das influências negativas do meio em que vive. Nesse processo, porém, o educador deve ter conhecimento da natureza do educando, do seu desenvolvimento (STRECK, 2004, p.23)

Nesse caso, o ser humano é moldável, aberto as interferências dos educadores

que desenvolverão suas atividades mais como uma ciência. A escola laica, pública, será

a instituição que melhor irá representar os desejos universalizantes do Iluminismo e

passará a ser parte das reivindicações populares e constituições nacionais.

Pestalozzi, referencia Streck, constitui sua pedagogia também sob os auspícios

da natureza da criança. Nele a educação não acontece por acaso, como em Rousseau,

porque têm suas leis e podem ser provadas.

A educação familiar deve ser reproduzida na educação pública e que essa só tem valor para a humanidade se imita a primeira. A educação também não precisa inventar nada. Ela é um exercício de adaptação da sabedoria dessa natureza. Ao educador corresponde a atividade de escutar esta sabedoria para realizar sua arte de ensinar bem (STRECK, 2004, p. 24)

A educação possuindo ou não um fundo religioso, buscará compreender

questões como o interesse do aluno, a percepção e a atenção, sem recorrer a Teologia.

Não resistindo aos encantos da racionalidade científica, as propostas

pedagógicas são reduzidas a fórmulas e métodos. Manifesta-se claramente no

positivismo de Herbert Spencer em 1855.

Page 55: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

55

A verdade da ciência tem um valor universal intrínseco, busca compreensões universais com o objetivo de racionalizar a vida para ser vivida de acordo com leis objetivas e imutáveis da ciência. A teologia para esse autor, deprecia a ciência quer por sua vez coloca que o não-religioso é a recusa da ciência em estudar a criação que envolve os seres humanos (STRECK, 2004, p. 25).

A Teologia não mais cobrirá a totalidade do conhecimento humano, a realidade

medieval começa a ser esquecida, e junto com ela, a Teologia como método de explicar

a sociedade e o universo.

Do nascimento deste novo mundo, mediado agora pela ciência, a religião será

reconhecida como um mundo que não fará mais sentido para o homem moderno. Ela

passará então, a ser uma forma de conhecer o mundo que obstrui a caminhada da

sociedade rumo aos seus destinos, às possibilidades dos homens guiarem seus desejos,

projetarem suas vidas sem a mediação da divindade Deus. Trata-se do movimento de

afirmação da autonomia humana, de sua não dependência, de sua emancipação contra

toda a heteronomia. Todo reconhecimento do sagrado manterá um vínculo de

dependência que impedirá o homem de exercer sua autocriação e liberdade, sem tutelas.

Comte mesmo definirá esse momento como estágios de desenvolvimento da

sociedade humana. Primeiramente, ela passou pelo Mítico, depois pelo Teológico, e

finalmente o estágio último desse desenvolvimento; a Ciência. Nesse espírito, a

educação será um processo cientificamente controlado. A Teologia nesse quadro terá

pouco a oferecer.

Durkheim, outro positivista, busca estabelecer a educação como ciência baseada

na Sociologia. A educação seria assim, uma ciência e a Pedagogia como meio caminho

entre a arte e a prática da ciência, sendo que essa ficaria mais bem definida como uma

teoria educacional. A ciência da Educação deveria observar os fatos mais objetivos nos

Page 56: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

56

diversos sistemas educacionais de cada país, criando e estabelecendo em cada lugar,

suas leis.

Essas idéias influenciaram a educação no Brasil, na legislação e na prática, ao

mesmo tempo em que a Igreja e a Teologia mantiveram suas bases tradicionais no

poder.

Forças paralelas, desregradas, desvinculadas da realidade social existente. Os avanços da ciência eram frutos do mal, uma ameaça à institucionalização teórica em verdades absolutas que foram concebidas durante séculos de poder. A paz entre a ciência e a teologia surgirá com Concílio Vaticano II. Modernidade e Teologia, Igreja e Ciências juntas (STRECK, 2004, p. 27)

A América Latina de forma peculiar, apesar de sua colonização e com ela a

modernidade européia com seus valores, persistiu por outro lado com suas tradições

culturais, construiu movimentos de resistência, ocasionou uma outra cultura.

Numa busca de identidade latina americana, em movimentos de resistência nos

anos 60, a realidade concreta em que vivem os povos, fez com que os olhos da Teologia

e da Pedagogia se voltassem no sentido de criar uma educação que estivesse relacionada

às reais condições dos povos e nos seus movimentos de lutas e transformação.

A Teologia da Libertação de Gustavo Gutierrez, e a da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, em 1971/72, testemunham reflexões com propostas de mudança. Esses refletem no pensamento europeu a possibilidade para reverter a situação dos oprimidos. Não que esse pensamento seja libertador, mas porque nesse pensamento encontra-se na verdade, as condições de opressão dos povos da América latina (STRECK, 2004, p. 29)

Buscam as questões da cotidianidade, da vida dos povos latino-americanos, os

porquês de suas limitações. A partir disso, criam uma base para dialogar com a Teologia

e a Pedagogia e com as outras áreas do conhecimento. Os princípios dessas duas

linguagens agora devem ter outro contorno, principalmente porque as condições de

Page 57: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

57

existências nesse continente, não são o mesmo da Europa. Boff menciona isso em sua

teologia quando estabelece a diferença essencial entre a teologia européia que se centra

sobre o homem, e a teologia do terceiro e quarto mundo que se centra sobre a não

humanidade estabelecida como fato pela injustiça econômico-social.

Streck observa que havia uma excessiva confiança na racionalidade moderna

que permeava a leitura da realidade e os projetos de libertação, porque a concepção

pedagógica se baseava numa visão de sujeito autônomo, que dotado de racionalidade o

capacitava para criar e recriar um mundo conforme grandes projetos pré-definidos.

Podemos entender que a instituição da escola, permeada pela realidade da

modernidade, não permite o sujeito definir seus destinos. Nesse sentido, é preparado

para atender uma demanda social já definida. Fé cega na Ciência, e crítica contra uma

Teologia com pensamento linear que não contribui na transformação da sociedade.

2.3 A pós modernidade e as discussões sobre a necessidade de construção e

definição de novos referenciais epistemo-teóricos para a educação

A pós-modernidade irá revelar que há trocas qualitativas que exigem novos

instrumentos metodológicos para sua compreensão. No cotidiano e no saber plural, os

grandes paradigmas devem afastar-se, e dar lugar àqueles mais emergentes, como a

fome, o emprego, entre outros.

Isso possibilita pensar que a Teologia e a educação possam estar distantes dos

debates mais emergentes prepostos acima?

Page 58: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

58

No espaço do mundo globalizado, sabemos que as grandes decisões não

observam as grandes massas e não são tomadas considerando essa perspectiva. Os

saberes dessa grande massa têm pouco a oferecer.

Pode-se, no entanto questionar-se se essa grande massa com seu olhar, não

conseguem ter melhores condições de observar a realidade da sociedade. Quer dizer,

pode existir uma compreensão privilegiada a partir desse ângulo.

Então, o diálogo com outras disciplinas e saberes, pode fazer surgir outro ângulo sobre o conhecimento da realidade, e aquele paradigma racional-universal pode ser pluralizado, estabelecido pelo intercâmbio do conhecimento entre a filosofia, ciência, saber popular, a arte, e tudo aquilo que pode integrar o conhecimento (STRECK, 2004, p. 35-36)

E é na América Latina, que o discurso de duas mãos, entre dominantes e

dominados, pobres e ricos, opressores e oprimidos, pode revelar uma diversidade de

conhecimento em processo de emergência e revelação.

2.4 O reencantamento da criação

A colonização e a modernização ocultam o Outro, uma cultura criada sob a força

de verdade absoluta, supostamente superior. Porém, repentinamente, o Outro apresenta

sua história e seu mito, deixa de fazer parte de um passado distante, surge no horizonte,

caminhando e fazendo parte dos caminhos por onde transitam os homens.

O Outro é o próprio caminho construído com outros símbolos, outros

significados, ali onde já não é mais permitido a verdade absoluta, e os caminhos e as

possibilidades possíveis, começam a se estender. Sujeito que fez na resistência, seu

pensamento. Agora é esperança e sonhos, e neles se faz e refaz como homem. Caminho

Page 59: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

59

aberto, busca desafios, aventuras, perspectivas que abrem decisivamente a esperança.

Toda pedagogia é uma pedagogia da esperança, segundo Paulo Freire.

Tudo poder causar a admiração e o espanto. Tudo pode conter uma mensagem

que há de se decifrar.

Tudo poder ser portador de um mistério, e esses constituem enigmas que decifrados, desaparecem. O mistério é a profundidade das realidades, de cada uma delas desafiando os homens, mas que permanece em mistério. O mistério não é o limite do conhecimento, mas o ilimitado do conhecimento (STRECK, apud Boff, 2004, p.54)

A linguagem do reencantamento também penetra no mundo da educação. Novas

linguagens expressam novas realidades. É a busca de uma nova atitude diante da vida,

numa cotidianidade mais complexa e com mil faces, em que mulheres e homens se

fazem historicamente. Deus está encarnado, é parte do processo vital no universo dessa

construção.

Uma nova criação se faz necessária na complexidade do mundo globalizado.

Essa nova criação deve passar pelo local, pelas casas, pelo cotidiano, pelo corpo. Ainda

que os problemas sejam globais, as vítimas são locais. No espaço de convivência dessas

vítimas se encontra a universalidade da vida.

Essas buscas revelam a fragilidade da vida que se reinventa, na produção de

desertificação da terra, no seu manejo errado, débil, mostrando que somos dependentes

dentro de um sistema pluricêntrico, buscando recuperar os sentidos e a sensibilidade. O

distanciamento entre sujeito e objeto de conhecimento já não oferece um caminho

adequado às condições atuais da realidade social, ao seu enfrentamento.

Se o conhecimento científico traz importantes contribuições, precisa por outro

lado aprender com outros saberes, racionalidades e sentimentos.

Page 60: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

60

A Teologia pode ressignificar os símbolos as liturgias e os ritos das culturas

mais sábias, relacionarem o homem com os espaços naturais.

Reconstruindo suas origens, todas as culturas, em conjunto, pode fazer novas

tramas sociais, construir seus destinos. E é nesse sentido, que tanto a teologia quanto a

ciência não poderá dar respostas definitivas, mas apresentar algumas e não fechar as

portas a outras que os homens fazem na procura de um destino melhor.

Então, o desafio está em conceber uma educação como parte da vida que gosta de si mesma e que por isso continua se recriando e reinventando. Isso implica dois movimentos complementares; buscar a sintonia da educação com tudo que tenha vida e promova a vida. O outro consiste em reconhecer que essa vida é complexa e que a prática pedagógica eficiente exige a mediação de muitas áreas do conhecimento (STRECK, 2004, p. 67)

Em Rubem Alves, os jardins começam com sonhos. Deus sonhava o mundo

acabado. Se acabar seu sonho, que será dos homens? O homem perdeu a capacidade de

sonhar?

O mundo foi criado pela palavra divina que deu forma ao mundo e criou ordem

no caos. Os instrumentos criados pelos homens para dominar a natureza, dominou os

homens também, e a qualidade humana de sonhar pode ter ficado na construção de um

mundo dessacralizado.

Em Boff, Streck percebe ainda a necessidade de que,

É preciso refazer a aliança com a terra e selar um pacto de amizade com todos os seres humanos, porque morrem as ideologias e envelhecem as filosofias, porém os sonhos permanecem. Que os sonhos e o húmus da terra são os únicos elementos que permitem continuamente o homem projetar novas formas de convivência social e de relacionamento com a natureza (...) (2004, p.68)

Page 61: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

61

Nessa percepção, Streck questiona o que o educador pode trazer de novo para o

campo pedagógico? Jesus, O Cristo, pode ser mediador, ou apresentar algum mediador

nesse sentido? Que práticas são possíveis de aprender de seu ensinamento, e que

mudanças sociais podem possibilitar na vida das pessoas?

Jesus e seus seguidores vão até as gentes e começam a cada manhã um novo

caminho. Uma pedagogia do caminho é uma pedagogia disposta a ir e receber. É uma

pedagogia da disponibilidade, de abertura ao novo, da inquietude e da pergunta. Os

lugares novos não deixam saber o que os aguarda, e o dia seguinte é uma incógnita.

Uma prática pedagógica que nasce do encontro, de que a educação é um processo que

sucede entre pessoas. Uma educação que se põe a caminho quando o homem inicia sua

jornada existencial, se faz na presença das necessidades do dia-a-dia, no cotidiano dos

indivíduos.

Jesus não era encontrado em lugares definidos, numa escola ou sinagoga, senão andando de povoado a povoado, entrando na casa das pessoas, como os cobradores de impostos, o centurião, de prostituas e pescadores, em grupos ou multidões ao pé das montanhas, falando e ensinando entre caminhadas. Uma pedagogia feita no caminho e que se faz ela mesmo caminho (STRECK, 2004, p.91)

O futuro dos homens está permeado de esperança, mas a falta de perspectiva é o

grande desafio que a humanidade confronta, especialmente entre a maioria excluída da

população. O termo exclusão é uma referência sociológica, pedagógica e teológica desta

época. De uma impotência frente a um mundo demasiado grande complexo e ao mesmo

tempo pequeno para todos.

Mas nos ensinamentos do Cristo de Deus, não são as grandes discussões que

caracterizam o ensinamento do filho. É sua prática pedagógica realizada nos obstáculos

do cotidiano, no dia-a-dia. O reino de Deus a ser vivido através dessa cotidianidade, dos

desafios mais urgentes, daquela realidade com temporalidade diferente a cada dia. Cada

Page 62: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

62

dia é um dia de desafios diferentes que exigem novos instrumentos para serem

enfrentadas. Uma pedagogia do enfrentamento e do desafio que nunca se esgota.

2.5 A Pedagogia possível na educação como aquela surgida do dia-a-dia, das

condições reais de existência

Mas também é uma pedagogia que se media na falta de solidariedade entre

homem e mulher, que mais que exclusão social, soma-se também no trato com a terra,

com o ar e a água, com a vida em todos os sentidos.

Uma pedagogia do ser pensada em termos de que o homem ocupa espaços

naturais que começam a manifestar sinais de esgotamento e com ela, se esvai os

sentidos e significados que os homens dão as suas vidas em relação com esses espaços.

A terra é o espaço ocupado, e o lugar de início do homem em relação consigo mesmo, e

com os outros homens. Sem a terra com suas montanhas, suas árvores, suas selvas, o

homem não pode tramar símbolos, fazer os espaços da cultura, criar saberes. Nesse

quadro, cabe buscar uma nova compreensão para o lugar do ser humano dentro do

mundo, (pedagogia) não como senhor e dominador, senão como parte de uma imensa

teia da vida. Nela a presença do sagrado, guardada no coração dos homens, se

manifestando naqueles momentos em que se encontra impotente diante do mundo e dos

próprios homens, em busca de respostas para aquelas questões mais vitais sobre sua

vida, sua permanência no mundo. Do ponto de vista da teologia cristã, Jesus promete

vida em abundância dentro do mundo, uma mensagem da vida e não da morte. Por tudo

isso, Jesus, o Cristo feito homem, é fonte inspiradora para uma educação no novo

milênio.

Page 63: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

63

Com Paulo Freire, a pedagogia é uma pedagogia da esperança. Essa pedagogia

deve ser cuidada e orientada. Como em Jesus Cristo, que parte da realidade existente no

mundo dos homens, uma pedagogia do dia-a-dia, que se revela no presente, Freire parte

da esperança para construir a educação.

A esperança em Paulo Freire não precisa ser criada e recriada através da educação, mas que se deva desenvolvê-la de acordo com os projetos do ser humano no mundo. Freire parte da pedagogia da esperança, ou seja, essa pedagogia não deve ser educação para a esperança, senão da esperança para se fazer educação (STRECK, 2004, p.106)

Em Freire, essa pedagogia procura reinventar comunidades, sem, porém,

retroceder no tempo, sabendo que o fato de fazermo-nos humanos na comunhão com os

outros homens, ainda não define o tipo e a forma desta comunhão, nem garante sua

existência. Até porque todo o processo não é um processo linear, entre os homens na

história.

Seu argumento é de que somos parte da vida em cosmos, vidas diferentes que se

desenvolvem em muitos tipos de forma de vida, todos entrelaçados no mesmo cosmos

do qual faz parte a sociedade humana.

A escola assim, tampouco pode ser vista como uma instância acabada, como um

ponto fixo ou mesmo um centro do qual se estabelecem relações com a família e a

comunidade.

Construções e realidade teóricas, a solidariedade carrega em si muitos sentidos

inesgotáveis, possibilita que se tenha uma idéia dela como um encontro de várias áreas

do conhecimento e de práticas diversas.

Com a formação da sociedade constituída por longos séculos, a humanidade

deixou o mundo natural e o conquistou, conheceu suas leis e se instrumentalizou para

conquistá-lo. Ao instrumentalizar-se com métodos científicos, fez da realidade

Page 64: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

64

conhecimento compartimentado para entendê-las mais claramente, e conseqüentemente

a mente humana se colocou fora e sobre os processos sociais.

Os homens se reconhecem como seres culturais. Nesse reconhecimento,

descobrem-se como homens que fazem história numa relação com o mundo natural e

social. Isso demonstra que não se pode conhecer a sociedade a partir da física, da

biologia ou de outros processos científicos naturais.

O homem em sociedade é processo realizado no tempo, através dos anos, em

rupturas e separações no mesmo mundo cósmico. Ao mesmo tempo em que se fazem

homens, criam um estranhamento nele, iniciam seu distanciamento.

Penso, logo existo. Capra (1982) faz uma alusão nesse sentido. Este pensamento,

(Descartes), segundo ele, desperta o homem para uma separação com a natureza. O

homem repentinamente torna-se observador das coisas a sua volta, retoma a vida

manejando a natureza como algo separado do cosmo do qual faz parte. De alguma

forma, ainda prepõe o pensar como se fora uma instância autônoma por sobre uma

existência secundarizada. Implica ainda, segundo Passos (2004), “uma confusão e

indistinção entre a ordem gnosiológica e a ontológica, do ponto de vista filosófico”.

Essa racionalidade do conhecimento do universo leva o homem para mais além

dele. E perde-se no lugar de sua humanidade, que é o próprio cosmo.

No processo educativo, é importante distanciar-se da realidade. No momento de formação da consciência, o homem percebe-se distinto dos demais animais. O homem não é um ser de adaptação ao mundo natural e social, mas quando toma distancia dele consegue fazer uma reflexão e transformar aquilo que vê no mundo do qual faz parte (STRECK, apud Morin, p.115)

Edgar Morin argumenta que a cosmologia, junto com a ciência da terra e a

ecologia, permite ao homem conhecer sua inserção no cosmos, na terra e na vida. Os

homens como filhos marginais do cosmos formado de partículas, mas perdidos nele,

Page 65: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

65

quase como estranhos, com uma história, com uma finitude cósmica. Mesmo com todos

os conflitos e diferenças como espécie, os homens têm um destino comum, mesmo não

sabendo qual seja. É um desejo universal que seduz o homem a perceber-se nesse

cosmos, como parte. Isso induz os homens a uma cultura e mística da solidariedade.

Capra vê a vida tecida a partir de um parâmetro de redes, o que significa que as relações de uma “comunidade ecológica” não são lineares, mas que se envolvem relações múltiplas de interdependência e de que somos parte dessa comunidade ecológica (STRECK, 2004, p. 117)

Para Leonardo Boff, houve uma sucessão de cosmologias. O mundo no início

era um mundo do sagrado, com Deus no topo da hierarquia com a cosmologia

teocêntrica e a educação procurando adaptar as pessoas nessa ordem.

A cosmologia da modernidade dividiu o mundo em dois. O mundo da matéria e

o mundo do espírito. A Teologia e a Ciência separam-se. Dois mundos. Aí a educação

tem o papel de ajudar a desvelar os signos da máquina, criação de Deus, o arquiteto,

para usá-la e amplificar os conhecimentos com novas criações.

Há uma relação num conjunto completo de energias que estão permanentemente

em relação entre si.

Deus aparecendo como força espiritual, força criadora e regeneradora. A

educação como experiência multiforme dos movimentos desse jogo e de sua

intervenção nele.

Ao homem cabe na modernidade a liberdade de criar e intervir no mundo sem a interferência de Deus. No mundo de tantas particularidades culturais, o homem deve dar conta dele. Porém, os povos velam suas próprias seguranças, e por isso a humanidade não vela num mesmo coração seus destinos (STRECK, 2004, p. 119)

Page 66: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

66

Existe, portanto, uma ruptura no modo de ser, sentir, atuar, pensar, imaginar, que

segundo Morim, são signos que requerem da educação o desenvolvimento de

instrumentos metodológicos para entender os novos problemas que se formulam.

Boaventura de Souza Santos alimenta a leitura de que o conhecimento é local,

ainda que sejam problemas internacionais. Pensar localmente e pensar globalmente,

construindo uma sociedade civil a partir da realidade mais próxima, sem perder de vista

os vínculos mais amplos, regionais globais e planetários. Quanto mais global o

problema, mais local devem ser as soluções para terem eficacidade nas relações

imediatas com o mundo e com os outros.

Educação da solidariedade exige o desenvolvimento de novas capacidades como vibrar juntos, inventar e criar, recriar e relacionar, informar, comunicar, expressar, localizar, processar e utilizar a imensa informação da aldeia global, buscar causas e prever conseqüências; criticar, sistematizar, e tomar decisões com transdisciplinariedade (STRECK, 2004, p. 124)

Uma das reflexões da educação nessa encruzilhada dos tempos é uma atividade

básica de perguntar pelo sentido das coisas, pelo sentido da vida. Essa é uma

necessidade que parece ser proporcional aos avanços da tecnologia e a conseqüente

necessidade de adaptação.

Permeado e inserido na modernidade, os novos homens sociais que daí surgem,

enfrentam desafios numa relação em que são expostos cotidianamente. A arte de

reinventar, como fator de resistência e de busca de liberdade num quadro em que o

mando de classes, do jugo de classes sobre classes, impede aos homens a serem parte do

processo, de se fazerem sujeitos de transformação. Se a sociedade nova pressupõe

outras atitudes, liberta o indivíduo da pretensa e falsa “escuridão” da idade média, por

outro lado, a modernidade finca novos marcos ao homem e o impede nos rumos de ser e

fazer-se ser, no sentido de transcender em suas relações como homens. Se a divindade

Page 67: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

67

impedia esse trajeto anteriormente, o mundo criado pelas mãos humanas, pelas suas

idéias, e desejos no presente, é impedido por novos deuses nascidos da criação humana

e fortalecidos pela força do lucro, das relações de poder, em quem têm o poder de

usufruir do ser, e aniquilar na maioria a realização de sua liberdade. O trato das coisas

materiais como realização do ser mais elevou a maioria, a ser menos. No amor às

coisas, o desamor aos homens e sua possibilidade de realização como seres humanos no

mundo, como seres inconclusos. E nas pequenas comunidades, como aquela em que

estou inserido (Santa Angelita).

Page 68: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

68

CAPÍTULO III

3.1 HOMEM E SOCIEDADE

Os processos culturais expressam a intervenção e a representação do coletivo

sobre a terra e dos espaços que o rodeiam. O homem sobre a terra é a sua própria

história, em como estabelece determinadas vocações, sua trajetória, em como se

explicam nos processos de ocupação que se aceleram quando o homem se percebe como

indivíduo e utiliza instrumentos para dominar a natureza, criar os espaços sociais.

Os grupos sociais materializam a práxis na condição de atores, em suas múltiplas

possibilidades, nos seus sítios, nas suas casas, no rio que oferece o peixe generoso, nas

suas festas religiosas.

A produção humana é dinâmica, contínua e incessante, socialmente construída.

Ali se realizam determinadas atividades produtivas e a sociedade imprime seu modo de

vida e singularidades.

Quando ocupam os espaços, trazem uma particularidade no seu modo de ocupar,

explicam seus suportes materiais, explicam sua existência como espécie, sua

humanização e o sentido de viver ali naquele lugar.

Natureza e psiquismo integram-se aos sistemas físicos e bióticos, isto é, da

produção da vida. O homem modifica a natureza para atender necessidades da vida

cotidiana e a ensina para novas gerações, maneja espaços territoriais, estabelece seus

laços, se constituem como homens, fazem-se conhecer e conhecer o mundo que o

rodeia. Os homens organizam seu território em função de suas necessidades vitais, nos

Page 69: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

69

seus costumes, numa visão de mundo com a idéia que ele faz da sua ordem. É deste

impulso que o microcosmo de Santa Angelita pulsa e constrói uma rede de

solidariedade. E, é desse cotidiano que os processos educacionais das mulheres e das

crianças, dos homens no trabalho, aconteciam no cotidiano. Processos educacionais,

estes, do povo simples, que Berger de ponto de vista de uma antropologia social nos

auxilia na compreensão da complexidade e das construções dos muitos sentidos dessa

cotidianidade. Nesses espaços é construído a identidade do grupo, os valores

axiológicos, as referências e o reconhecimento do grupo nos seus processos de

enculturação, introjeção, que é sua internalização até a externalização do aprendido. É

nesta relação, que produz o ato nomeante, o ato ordenador e realizador da atividade

construtora de mundos, que os humanos se constroem em rede.

No ato fundador da ordem, diz Berger, o homem oculta o caráter construído

desse ordenamento social, para que possa reproduzir-se, evitando assim o caos. A

religião é a força que abriga e dá credibilidade as construções sociais da realidade.

Nesse sentido, o “adulto normal” é aquele que vive dentro de coordenadas que

lhe foram atribuídas. Os homens possuem uma cosmovisão, colecionam endereços e

informações sociais já prontas no mundo. De sorte que não precisem inventar novos

scripts que poderão alterar a ordem social, e simplificarão a existência cotidiana e os

momentos de crise de passagem.

A personalidade passa a ser identificada como a maneira como a pessoa está

localizada com precisão num mapa social. Então a localização, diz Berger, informa ao

indivíduo aquilo que ele pode fazer e o que pode esperar da vida, e aquilo que jamais

poderá ter e vir-a-ser.

Page 70: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

70

Estar localizado na sociedade significa estar no ponto de intersecção de forças

sociais específicas. Quem ignora essa força age com risco para sua própria segurança

social, dado o poder de enquadramento e persuasão da sociedade.

A pessoa age em sistemas definidos de poder e prestígio e depois que aprende

sua localização, sabe também que não poderá fazer muita coisa para mudar a situação. É

um mapa traçado por estranhos sobre o qual se têm que rastejar4. As coordenadas do

movimento são sempre criadas por outros.

A localização da sociedade constitui uma definição de regras que têm que ser

obedecidas. São “eles” quem mandam por meios de regras de manipulação como a

difamação, o ridículo, o ostracismo, entre outros. São códigos de conduta que não

devem ser quebrados sob pena do sofrimento.

A sociedade é uma prisão antes de qualquer coisa. Durkheim deixa isso mais

claro, nos diz Berger, quando diz que uma “coisa”, é algo como uma pedra, por

exemplo, com que se “topa”. Uma “coisa” é aquilo contra a qual se investe em vão,

aquilo que por fim pode cair sobre a cabeça de uma pessoa e matá-la... A lei é uma

instituição social que ilustra bem isso.

Assim, que em Durkheim, os homens querem os papéis que a sociedade atribui,

e desejam aquilo que a sociedade espera deles. A sociedade determina não só o que

fazem os homens, como também o que são os homens. A localização social afeta a

conduta humana (fazer) e também a essência de sua humanidade.

A sociedade deste ponto de vista prossegue Berger, existe porque as definições

da maioria das pessoas, bem como as respostas que devem dar a sociedade, possuem

poderosas pressões sociais que garantem a adequação das suas respostas.

4 Esta passagem de Berger é relativizada por ele mesmo, na medida em que afirma o limite da socialização por sobre a autonomia dos sujeitos, por isso encontram-se sempre campos em que os sujeitos inserem dimensões de liberdade e de criatividade.

Page 71: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

71

A sociedade proporciona o script para todos os personagens, esses assumem os

papéis sociais que lhe foram distribuídos antes de levantar o pano: o drama social pode

ir adiante como planejado.

O papel social oferece o padrão segundo o qual o indivíduo deve agir na

situação. Os papéis, além disso, trazem em seu bojo, tanto as ações como as emoções e

atitudes a eles relacionadas. O papel expressa sentimentos, fabrica emoções. Uma

pessoa sentir-se-á mais humilde ao se ajoelhar e mais indignada ao sacudir o punho. A

pessoa incorpora o papel que desempenha e esse papel acarreta certa identidade. A

identidade é atribuída socialmente, sustentada socialmente e transformada socialmente.

O papel representado é expectante e se relaciona com a expectativa da sociedade em

geral.

Individualidade e sociedade são o verso e o reverso da mesma medalha, assim, a identidade não é pré-existente, mas atribuída em atos de reconhecimento social. Somos aquilo que os outros crêem que sejamos, e esses outros dão amparo quando representamos aquilo que esperam de nós (BERGER, 1986, p.115)

Nesse sentido, a dignidade humana é uma questão de permissão social, porque

os homens devem procurar espelhos com outros homens para construir plausivelmente

sua identidade.

O homem representa papéis dramáticos. Ele tem que usar uma máscara para

representar diferentes papéis sociais. Assim a biografia da pessoa afigura-se como uma

seqüência de desempenhos num palco, para diferentes platéias.

O eu deixa de ser uma entidade objetiva. Será um processo criado e recriado

continuamente em cada situação social, diz Berger.

Page 72: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

72

Também a interpretação “real” da personalidade não está no inconsciente,

porque o ego inconsciente está sujeito à produção social quanto o chamado ego

consciente. O papel contém identidade (BERGER, 1986, p.121)

A representação dos papéis e os processos formadores de identidade são

geralmente irrefletidos e não planejados, “quase automáticos”. Eles acreditam no que

representam, e seguem pela vida contentes convictos de estarem à altura de todas as

expectativas.

Qualquer pensamento está fundamentado na sociedade. Ela gesta a idéia, o

pensamento. Todas as idéias devem ser examinadas cuidadosamente para se determinar

sua localização na existência social das pessoas que as cogitaram.

Toda sociedade pode ser vista em termos de sua estrutura social e de seus mecanismos sócio-psicológicos, e também em termos das cosmovisões que atua como o universo comum habitado por seus membros. Essas variam de uma sociedade para outra e dentro de mesmos setores da mesma sociedade (BERGER, 1986, p.129)

A sociedade encontra formas de nomizar os sujeitos e de atribuir sentidos às suas

vidas. Tornam harmônicas inclusive as experiências de ruptura, estranhamento e caos5.

A religião nos diz Berger, é um fenômeno que pode ser localizado socialmente

em termos de funções específicas. Como na legitimação da autoridade política no

abrandamento da rebelião social, que é a maneira como a religião empresta sentido ao

caos, ao sofrimento, de modo a convertê-la, de fonte de revolução, em veículo de

redenção.

O indivíduo adquire socialmente sua cosmovisão quase da mesma forma como adquire papéis e sua identidade. Tanto quanto suas ações, suas emoções e sua auto-interpretação são pré-definidos para ele pela sociedade, da mesma forma que sua atitude cognitiva em relação ao

5 Caos é a sensação de perda da ordem, tudo o que aniquila a possibilidade de ordenamento, desorienta e faz sucumbir na quebra de sentidos.

Page 73: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

73

universo que o rodeia, “mundos aceito sem discussão”, curso engendrado no curso de sua história (BERGER, 1986, p.132)

Essa cosmovisão determinada socialmente, já está em parte incorporada à

linguagem usada pela sociedade, da qual aprendemos o mundo, ordenamos nossa

experiência e interpretamos nossa própria existência.

A concepção Durkheimiana, nos mostra que a sociedade se manifesta como algo

objetivo. Ela “existe”, é externa a nós, não pode ser negada e que se tem de levar em

conta. Ela nos cerca, circunda nossa vida por todos os lados.

Estamos na sociedade, localizados em setores específicos do sistema social. Essa

localização pré-determina e pré-define quase tudo quanto fazemos, desde a linguagem

até a etiqueta, desde nossas convicções religiosas até a probabilidade de que venhamos a

cometer suicídio.

Na localização social, nossos sentidos, desejos, e resistência, não são levados em

consideração, mesmo sem negar essas resistências, adianta muito pouco para qualquer

transformação social. Assim que a sociedade como fato objetivo é externo, manifesta-

se, sobretudo, na forma de coerção.

As instituições, por outro lado, moldam nossas ações e até mesmo nossas

expectativas. Somos recompensados na medida em que nos ativermos as nossos papéis.

Ao sairmos fora desses papéis, a sociedade dispõe de um número quase infinito de

meios de controle e coerção. As sanções da sociedade são capazes a todo o momento da

existência, de nos isolar entre outros homens, expor-nos ao ridículo. Privar-nos de nosso

sustento e de nossa liberdade. Em último recurso, privar-nos da própria vida. A lei e a

moralidade da sociedade podem apresentar complexos justificativos para cada uma

dessas sanções.

Page 74: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

74

O homem está localizado na sociedade não somente no espaço como também no

tempo, tempo socialmente construído. Nossa sociedade constitui uma entidade histórica

que se estende temporariamente além de qualquer biografia individual. A vida dos

homens passa a ser uma majestosa marcha no tempo, um encarceramento da sociedade.

As estruturas da sociedade tornam-se estruturas de nossa própria consciência. A sociedade não se detém à superfície de nossa pele, ela nos penetra e nos envolve. As paredes de nosso cárcere já existiam antes de entrarmos em cena, mas nós a reconstruímos eternamente. Somos aprisionados com nossa própria cooperação (BERGER, 1986, p.136)

Ou seja, reiteramos por nossa corporeidade o que foi dito antes de nós no tempo.

3.2 Liberdade humana: há alguma?

Se somos colaboradores somos pré-definidores da situação em questão. Então,

somos colaboradores da manutenção da definição particular. Em Weber, é a

intencionalidade da ação social em oposição ao desinteresse Durkheimiano por essa

dimensão.

Durkheim ressalta a externalidade, a objetividade, o caráter coisificado da

realidade social.

Berger demonstrará, contudo, que esta externalização não subsistirá sem um

outro momento dialético à externalização e a própria resignificação que cada ser

humano confere ao papel representado, como é o caso da interpretação Carismática de

Weber.

Page 75: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

75

Weber enfatiza os significados, as intenções e as interpretações subjetivas levadas a uma situação social pelos atores que dela participam. Nesse, a compreensão sociológica passa pela interpretação de significados presentes na sociedade. Nessa concepção toda situação social é mantida pela trama de significados para ela levados pelos vários participantes (...) (1986, p.141)

No pensamento weberiano, certas pessoas conseguem discordar, romper o

consenso e arrumar seguidores. É a Teoria do Carisma desenvolvida por esse. Nessa

teoria, o sujeito pode redefinir novos valores e pressupostos de existência. Weber

considera uma das forças motrizes da história. Se o mundo volta a rotina depois, nos diz

ele, já não é mais o mesmo.

Weber acentua, de sua parte, que os atos significativos dos homens podem

oportunamente ajudar a modificar o edifício social. Na existência humana, a sociedade

nos define, mas é dialeticamente por sua vez definida por nós. Assim se não existe

poder total na sociedade, também não existe impotência total, na perspectiva weberiana.

Assim procedendo, o personagem de Weber, passa nesse sentido, cada vez mais a ser construído pela própria pessoa e não pelas ideologias do sistema que o circunda. Mesmo a um preço psicológico bastante alto, construir um espaço espiritual em que as expectativas cotidianas da sociedade podem ser ignoradas quase totalmente (BERGER, 1986, p.149)

Com Weber o indivíduo tenta transformar as estruturas sociais sem se apartar

delas, usando-as deliberadamente de maneiras imprevistas, cortando um atalho na selva

social de acordo com seus próprios propósitos.

Isso ocorre na sociedade industrial, por exemplo, quando os trabalhadores

empregam a organização oficial de uma fábrica para fins discordantes às intenções da

administração. O nativo “representa” o papel do servo ao mesmo tempo em que planeja

a revolta.

Page 76: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

76

Pode-se assim observar que os seres humanos quebram, subvertem –

admoestávamos acima - o determinismo social. A consciência que se tem da sociedade,

é convertida, fazendo com que as determinações se convertam em possibilidades

diferentes daquelas postas como verdades absolutas, coercitivas, coisificadas.

Como nota bergeriana, do ponto de vista dos guardiões oficiais da ordem, é

perigoso permitir que um número excessivo de indivíduos pratique o jogo social com

reservas mentais.

Toda libertação dos papéis sociais tem lugar dentro de limites que também são

sociais. Embora os homens sejam coagidos e forçados, as instituições sociais funcionam

como teatros, nas quais os homens representam os dramas sociais, porém fingem que

esses dramas sejam verdades eternas, agem como se não houvesse outras maneiras de

serem, de dramatizar outro mundo.

Mas se a realidade social é criada por convenções, pode ser modificada também por convenções. No drama das representações sociais existe uma saída para o determinismo social imposto, certa liberdade dos controles sociais (BERGER, 1986, p.153)

Mesmo que o homem seja participante de um mundo já construído, do qual

supostamente pouco possa fazer, é nos limites dessa representação dos papéis que ele

pode construir um outro mundo. Já não se adequa a uma representação social sob

coerção, mas um mundo tramado nessas redes, não mais o mundo pronto e acabado,

mas a possibilidade de sua liberdade para fazer novos mundos, criar e entrelaçar novas

redes que sejam sua manifestação humanizada.

Pode-se ainda pensar na possibilidade de que o homem seja livre, mas diante das

expectativas, recue escondendo-se do enfrentamento que o torne ser humanizado. Os

Page 77: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

77

obstáculos que a vida propõe podem fazer o homem recuar de sua condição de

construtor de seu destino. O pensamento Existencialista nos propõe essa possibilidade

de conferir um projeto singular à nossa humanidade social.

O nomos, portanto de qualquer sociedade, sempre será gestado por ele, na entre-

relação entre os sujeitos que a compõem, sempre haverá espaço de criação, de

ressignificação, de capacidade de propor novas alteridades e criar novos consensos e

universalidades. O que senti junto ao povo do Santa Angelita era parte desta autonomia

que refaz, recria, instituintemente, um outro universo, um outro código de valores, um

outro referencial prenhe de novidades que não nos era acessível a nós, que vivíamos, de

certa forma, prisioneiros de valores pré-estabelecidos, normativos, rígidos e para os

quais sentíamos como que em caos, perdidos e desencontrados.

3.3 Berger e o pensamento existencialista

Berger nos traz o exemplo Sartreano da “má fé”. É uma simulação de que

alguma coisa é necessária quando esta, na verdade, é voluntária. Trata-se de uma fuga

da liberdade, numa desonesta evasão à “agonia da opção”. Nessa expectativa o

pensamento Sartreano comenta:

A sociedade é como uma película de mentiras. A possibilidade da má fé mostra-nos a realidade da liberdade. O homem age de má fé porque é livre e não deseja encarar sua liberdade de frente. A má fé é a sobra da liberdade humana. Sua tentativa de fugir a essa liberdade está fadada a derrota. Sartre nos diz que o homem está condenado à liberdade (BERGER, 1986, p.159)

Page 78: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

78

Os homens dizem não haver alternativas. Assim as instituições canalizam o

comportamento humano. Assim a sociedade é uma imensa máquina de má fé.

Sob o aspecto da má fé, a sociedade é um mecanismo para fornecer álibis que

eximem uma pessoa de alcançar a liberdade.

No “mann6” de Heidegger, Berger nos diz que os homens são levados a transpor

o medo, o terror, a serem protegidos dos acontecimentos da morte, do nascimento, dos

desejos. Esses acontecimentos são camuflados a medida de rotinas e rituais sociais que

tem a função de camuflar esses terrores, para que sejam melhor enfrentados, não como

um episódio pessoal e solitário, mas como uma solidariedade expressa numa corrente

universal humana que vence os tempos e se definitizam como gênero ou como classe.

Nesse quadro, os homens são inautênticos porque não vivem em plena consciência da natureza singular, insubstituível e incomparável de personalidade, sem perder-se nas abstrações constituídas socialmente no “Mann”. Assim as questões angustiantes da existência do homem são obscurecidas (...) (1986, p.164)

A singularidade possível de sua existência é capitulada diante das abstrações

constituídas socialmente. Essas respostas aclamam as inquietações que surgem quando

os homens se perguntam sobre o nascimento e a morte. Alguém morre e a sociedade diz

“ todos morreremos”. Essa “verdade”, o todo mundo morreremos, oculta do indivíduo

que ele morrerá solitariamente, porque é sempre um indivíduo sozinho que morre, e aí é

que está o terror, afirma Berger. Agora, se isso lhe começar a causar questionamentos e

angústias, os homens começam a se perguntar e o terror da vida começa a ter que ser

enfrentado de uma outra maneira. O Man encobre essas angústias, ordena, nomiza o

homem, dá-lhe respostas sobre suas inquietações, seus pesadelos - alguns morrerão, mas

a humanidade existirá através do tempo.

6 O “Homem”

Page 79: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

79

A sociedade lhe propõem respostas, e nesse sentido ele perde a chance de

construir sua existência, porque sua vida não pode ser construída sob um álibi, uma

pseudo-verdade da sociedade, visto que a singularidade de sua existência somente pode

ser respondida por ele mesmo, as respostas à seus pesadelos e angústias só podem ser

encontradas na sua singularidade de homem que se propõe a concluir sua humanização,

enfrentar seus terrores.

Os homens estão cercados de trevas enquanto se precipita na vida em direção à

morte. Quando o homem se pergunta o porquê sobre sua condição de existência, num

ou outro momento, é sufocado pelas respostas convencionais da sociedade que oferece

sistemas religiosos e rituais que livra os homens de examinar sua consciência e a

vulnerabilidade de sua existência.

O mundo diz que está tudo bem. A sociedade oferece um nomos para proteger os

homens do nada, de calar as dúvidas mais profundas e latentes.

Então o “Mann” de Heidegger, é uma conspiração visando à existência inautêntica. A sociedade é um forte com a função de proteger os homens do terror, de organizar para esses, um cosmos de significados dentro do quais suas vidas têm sentido; todos os significados (BERGER, 1986, p. 165)

A autenticidade somente pode ocorrer dentro da sociedade, porque todos os

significados são transmitidos em processos sociais.

Todos os caminhos levam a uma curiosa contemplação do ser, sejam religiosos,

filosóficos, sempre têm localização social.

Da mesma forma que a sociedade é fuga da liberdade, nela também pode ser

encontrada a existência social livre. Fica assim, óbvio que a sociedade é um álibi, a

aldeia do que caminho de libertação. A aldeia porque ela enclausura a autenticidade

humana, ela é a coletividade de onde os homens encontram-se perdidos, mas o é

Page 80: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

80

também o espaço que lhes dá sentido para buscarem sua liberdade, porque somente a

partir da aldeia, onde se escondem os homens, a liberdade é possível.

Berger pondera que para os homens confrontarem a condição de sua humanidade

sem mistificações, é preciso afastar-se das rotinas sociais. Significa que a liberdade

pressupõe certa liberação da consciência. Quaisquer que sejam as possibilidades dos

homens libertarem-se, não se pode esperar que elas se concretizem no mundo aprovado

pela sociedade.

Nesse sentido, o homem inicia seu caminho de libertação a partir do momento

que se vê como ser participante da sociedade, emergido nela, mas que também pode

subir a tona, elevar-se. Na co-participação no mundo e com os outros homens, fazer sua

construção de mundo em busca de sua humanização.

3.4 O nomos como ato de criação

Assim, podemos entender que o indivíduo não é modelado como uma coisa

passiva, inerte, mas ao contrário. Formado no curso de uma prolongada conversação, ele

é o participante, ou seja, o mundo social com suas instituições, papéis e identidades

apropriadas não é absorvido pelo indivíduo, e sim apropriado por ele.

Apropriado porque existe uma mediação entre ele o outro. Essa mediação é o

mundo criado no diálogo, na percepção de mundos diferentes, e nas possibilidades da

criação de outra forma de viver e conviver no e com o mundo.

Uma vez formado o indivíduo conhecível, ele deve continuar a participar da

conversação que o sustenta como pessoa na sua biografia em marcha.

Page 81: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

81

Por pequeno que seja o seu poder de mudar as definições sociais da realidade,

ele deve ao menos continuar a dar sua aquiescência aos que o formam como pessoa.

Uma ordem significativa, ou nomos, é imposta às experiências e sentidos

discretos dos indivíduos e limita, como condição humana, mas também possibilita a

abertura de horizontes inteiramente novos, a partir de sua singularidade em diálogo com

outras singularidades. A sociedade é uma atividade ordenadora, ou nomizante, mas que

não se constrói sem a aquiescência de cada um e de todos os partícipes da trama social.

A socialidade do homem pressupõe o caráter coletivo dessa atividade

ordenadora, e é presente em toda a interação social.

Toda ação social supõe que o sentido individual seja dirigido aos outros e a

interação social contínua importa em que os diversos sentidos dos atores se integrem

numa ordem de significado comum. Significado que tende, no cotidiano a superar as

meras razões lógicas, os riscos do caos e desordem, ou mesmo uma ordem pela

racionalidade, mas abre ao projeto humano uma aventura de expressar o amor, a

esperança, o acolhimento, o carinho, a solidariedade. Dimensões que Danilo Streck

resgata nos processos educacionais, sobretudo no meio do povo pobre da América

Latina, onde a solidariedade e a gratuidade constituem experiência da partilha na/da

pobreza.

É errôneo supor que a conseqüência nomizante da interação social deva desde o

início, produzir um nomos que abarque todas as experiências e significações discretas

dos participantes individuais.

Como se a sociedade desde seu início, em suas origens, tenha seu nomos

expandido quando a interação social passa a incluir áreas cada vez maiores de

significados comuns, e, portanto não tem sentido imaginar que esse nomos deva incluir

a totalidade dos significados individuais (BERGER, 1985, p.32)

Page 82: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

82

Assim como não pode haver indivíduo totalmente socializado, afirma Berger, é,

portanto, completa ou confluente ao padrão social, assim sempre haverá também

significados individuais que permanecem fora ou à margem do nomos comum, em

discrepância aos padrões naturais genéricos.

As experiências marginais do indivíduo são de considerável importância para a

compreensão da existência social. É a ordem que se faz e refaz continuamente. Refaz-se

porque está sempre inacabada. A ordem é o nomos em caminhada, é o homem

inconcluso num ordenamento infinito. Quando cria, ordena, quando ordena, recria.

Apesar disso, há uma lógica inerente que impele todo nomos a expandir-se em

áreas mais amplas de significado. Embora a atividade ordenadora da sociedade nunca

atinja a totalidade, pode ainda assim ser descrita como totalizante. É o que de forma

mais organizável e visível se expressa pelo controle dominante ou ainda de forma mais

radical no civilizatório.

O mundo social constitui um nomos tanto objetiva como subjetivamente. O

nomos objetivo é dado no processo de objetivação como tal. No exemplo da linguagem,

ela é uma imposição da ordem sobre a experiência. A linguagem nomiza impondo

diferenciação e estrutura no fluxo ininterrupto da experiência.

Quando um item é retirado da experiência e é nomizado, esse ganha fluxo e

estabilidade como a entidade assim nomeada. É um processo de reificação, onde a

dimensão da subjetividade cede à instrumentalização e ao mercado, torna-se também

dimensão humana, mercadoria e coisa. A linguagem proporciona, além disso, uma

ordem fundamental de relações pela adição da sintaxe e da gramática ao vocabulário. É

impossível usar a linguagem sem participar de sua ordem. Então na linguagem está a

ordem. Nela é possível encontrar o fluxo histórico.

Page 83: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

83

Pode-se dizer que toda linguagem empírica (a fala) constitui um nomos em

formação, ou com igual validade, uma conseqüência histórica da atividade nomizante de

gerações de homens. Somos linguagem!

O ato nomizante visa uma ordem compreensiva de todos os itens que possam ser

objetivados linguisticamente, isto é, visam um nomos totalizante.

Sobre o fundamento da linguagem e por meio dela é construído o edifício cognitivo e normativo que passa por conhecimento numa sociedade. Naquilo que sabe, toda sociedade impõe à experiência uma ordem de interpretação que se torna conhecimento objetivo mediante o processo de objetivação. Participar da sociedade é participar do seu saber, ou seja, coabitar o seu nomos (BERGER, 1985, p.34)

O nomos objetivo é interiorizado no decurso da socialização. O indivíduo se

apropria dele tornando-a sua própria ordenação subjetiva da experiência. É em virtude

dessa apropriação que o indivíduo pode dar sentido a sua própria biografia.

Os elementos discrepantes da sua vida passada são ordenados em termos de que

ele sabe objetivamente sobre a sua própria condição e a dos outros. Sua contínua

experiência se integra na mesma ordem, embora a última possa ter de ser modificada

para permitir essa integração.

O futuro atinge uma forma significativa porque se projeta nessa mesma ordem,

em outras palavras, viver num mundo social é viver uma vida ordenada e significativa.

A sociedade é guardiã da ordem e do sentido, não só objetivamente, nas suas estruturas

institucionais, mas também subjetivamente, na sua estruturação da consciência

individual. Ela não somente nos desenha por sua substância, mas também porque aquele

fundo de silêncio que recortam as palavras e os sentidos (Merleau-Ponty).

Por esse motivo, a separação radical do mundo social, ou anomia, constitui tão séria ameaça ao indivíduo, porque perde os laços que o satisfazem emocionalmente, mas também sua orientação na experiência.

Page 84: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

84

Torna-se anômico no sentido de se tornar sem mundo. Quando é interrompida a conversação em que ele construía e sustentava seu nomos, é mergulhado na anomia (BERGER, 1985, p.34)

Significa que a “ordem civilizatória” implantada com valores naturais nos

propõe que as internalizemos como única possibilidade junto à humanidade singular dos

homens e mulheres?

Ocorre que a discrepância dos padrões dominantes faz com que os homens

percam suas posturas morais e psicológicas e se tornem inseguros quanto as suas

posições cognitivas. O mundo começa a vacilar nesse momento, pois a conversação que

o sustentava começa a esmorecer.

Os homens são forçados a impor uma ordem significativa à realidade que

pressupõe o empreendimento social de ordenar a construção do mundo. O nomos pode

ser entendido como um escudo contra o terror. E aqui a religião adquire uma importante

função nomizadora e legitimadora.

Quando o homem é separado da sociedade, isso expõe os muitos perigos que

sozinho é incapaz de enfrentar, além das tensões psicológicas, já que ele é um ser social.

O perigo da separação é a ausência de sentidos, pesadelo, e nele o indivíduo é

mergulhado num mundo de desordem, incoerência e loucura. A realidade e a identidade

são malignamente transformadas em figuras de horror destituídas de sentido. Estar na

sociedade é ser “são” no sentido de ser escudado da suprema insanidade de tal terror.

A anomia é intolerável até o ponto em que o indivíduo pode lhe preferir a morte. Reciprocamente, a existência num mundo nômico pode ser buscada a custo da própria vida se o indivíduo estiver persuadido de que esse sacrifício tem alcance nômico (BERGER, 1985, p.35)

As situações marginais que vão além dos limites da ordem da rotina e da

existência cotidiana, podem fazer surgirem suspeitas de que o mundo seja fraudulento.

Page 85: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

85

A partir daí, essas suspeitas se estendem ao consciente, criando neuroses, fazendo

aparecer o terror para os homens, de que seu nomos seja ameaça.

O nomos assim, pode ruir porque não atende mais a perspectiva social, o lado diurno da vida, contrário ao mundo das sombras da noite. Nesse sentido, o nomos é um edifício levantado frente às poderosas e estranhas forças do caos que deve ser mantido em cheque a todo custo (BERGER, 1985, p.37)

A sociedade desenvolve procedimentos que ajudam seus membros a ficarem

orientados para a realidade oficial e ao voltar à realidade sair das esferas marginais da

irrealidade ao nomos socialmente estabelecido.

Assim, o indivíduo recebe da sociedade métodos para deferir o mundo de

pesadelos da anomia, que é o caos, a desordem, e conservar-se nos limites seguros dos

nomos estabelecidos.

Temos, pois, a reprodução e a sustentação da ordem conservadora. Porém, a

ordem do mundo está permanentemente ameaçada por sua recriação, pela alteração de

suas partes. Que o mundo social é precário. É preciso formas mais estáveis para manter

e conferir legitimidades ao mundo social construído, ao nomos, papel que Berger atribui

a religião. A religião confere estabilidade à nomização.

Mas os mundos socialmente construídos são precários, amparados pelas

atividades humanas, são eles mesmos ameaçados constantemente pelos fatos humanos

do egoísmo.

Os programas institucionais são sabotados por indivíduos com interesses

conflitantes. Não raro os indivíduos os esquecem. Os processos de controle social visam

atenuar essas ameaças.

A socialização procura garantir um consenso perdurável no tocante aos traços

mais importantes do mundo social. O controle social procura conter as resistências

Page 86: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

86

individuais dentro de limites toleráveis. É neste sentido que a religião ao nomizar

explicitamente o sentido da morte, do mal e do pecado, desenvolve significações às

experiências de quebra e de ruptura, nomiza a desordem e exorciza o caos, excedendo o

papel legitimador da ordem social inquebrantável. Solda, diz Berger, as realidades

sociais arbitrárias ao realissimum aeternum. Esconde assim, para que dure, as tênues

raízes da fabricação humana do social.

Não se pode, pois desconsiderar, o peso que poderá ter os fatores de

motivação religiosa e de organização da presença presbiteriana assim como se deu no

Bairro Santa Angelita, e o significado nada relativo da ordem apontada. Sempre tinha

certa consciência de que estes processos eram processos vivos e ativos. Trabalhamos

pela libertação ou pela dominação? Ou quem sabe ainda, estas coisas nunca estejam

completamente separadas no mundo social e das nossas práticas de educadores e

evangelizadores. Santos e Pecadores...

3.5 Processo de legitimação

Existe um processo importante para escorar o oscilante edifício da ordem social

que é o processo de legitimação.

Essa legitimação é o saber socialmente objetivado. As legitimações são as

respostas a quaisquer perguntas sobre o porquê dos dispositivos institucionais.

As legitimações pertencem ao domínio das objetivações sociais, isto é, ao que

passa por saber em determinada coletividade. Isto significa que a objetivação tem um

Page 87: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

87

caráter de objetividade muito diferente das cogitações meramente individuais sobre o

porquê e o para que dos acontecimentos sociais.

As legitimações podem, além disso, ser de caráter cognoscitivo e normativo.

Não se limita a dizer às pessoas o que devem ser.

As idéias podem ser importantes para a legitimação, mas o que passa por “saber”

numa sociedade não é idêntico ao corpo de idéias. As legitimações consistem em sua

maior parte num caráter pré-teórico.

O nomos de uma sociedade legitima-se antes de tudo pelo simples fato de existir. As instituições estruturam a atividade humana. A legitimação começa com declaração quanto a coisa real e genuína. Somente sobre esta base cognoscitiva é possível a preposição normativa adquirir significados. A legitimação não é uma ideação teórica (BERGER, 1985, p.43)

O nomos de uma sociedade legitima-se antes de tudo pelo simples fato de

existir. Quando os sentidos das instituições são integrados mecanicamente, as

instituições são legitimadas, até ao ponto em que as ações institucionalizadas aparecem

como evidentes por si mesmas aos que as executam.

Em outras palavras, o mundo socialmente construído se legitima a si mesmo em

virtude de sua facticidade objetiva. Contudo legitimações são necessárias em qualquer

sociedade que se funda nos problemas da socialização e controle social.

Para que outras gerações habitem o mesmo mundo social, existem fórmulas

legitimadoras para responder às perguntas que surgirão nas mentes de novas gerações.

O objetivo essencial de todas as formas de legitimação é a manutenção da ordem

tanto a nível subjetivo como objetivo. A religião foi historicamente o instrumento mais

amplo e efetivo de legitimação.

A religião legitima de modo eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades

Page 88: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

88

empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado, que está além das contingências dos sentidos humanos e da atividade humana. Interpreta-se a ordem constitucional como se fosse algo que existiu desde os tempos ou do grupo e se oculta a caráter de “construído pelos homens” (BERGER, 1985, pp. 45-46)

A religião legitima as instituições sociais, infunde-lhes um status

ontológico de validade suprema, situa-a num quadro de sagrado e cósmico. Assim, as

construções históricas das atividades humanas transcendem a história e o homem.

Uma relação entre o cosmo (divino), uma relação entre a sociedade e o cosmos

como uma relação entre o microcosmo (sociedade) e o macrocosmo (cosmo). O “aqui”

embaixo tem uma ordem análoga “lá em cima”.

E, quando participam da ordem institucional, os homens participam do cosmos

divino. Toda família humana reflete a estrutura dos cosmos, sua representação e

encarnação.

A estrutura política estende à esfera humana o poder do cosmo divino e a autoridade política é concebida como agente dos deuses ou até idealmente uma encarnação divina. O poder humano, o governo e o castigo se tornam assim, fenômenos sacramentais, canais pelos quais forças divinas são aplicadas à vida dos homens para influenciá-los. O governante fala em nome dos deuses ou é um deus e obedecer equivale a estar em relação correta com o mundo dos deuses (BERGER, 1985, p. 47).

Porém, o esquema microcosmo/macrocosmo de legitimação da ordem social, é

típico das sociedades primitiva e arcaica. Nas civilizações modernas sofrem

transformações, inevitáveis, com certo desenvolvimento do pensamento humano para

além do mundo mitológico de visão de mundo de forças sagradas permeando a

experiência humana.

A legitimação religiosa pretende relacionar uma realidade humana definida com

a realidade última, universal e sagrada.

Page 89: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

89

As construções da atividade humana, intrinsecamente, precária e contraditória,

recebem, assim, a aparência de definitiva segurança e permanência. Os nomoi

humanamente construídos ganham um status cósmico.

Assim é que a instituição da realeza divina, por exemplo, é apreendida como um elo decisivo entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Deste modo, o status cósmico da instituição é experimentado sempre que os homens entram em contato com ela no curso ordinário dos acontecimentos. A legitimação se torna evidente do ponto de vista da objetividade institucional, quer da consciência individual (BERGER, 1985, p.49)

Todas as instituições possuem no mundo humano, caráter de objetividade e suas

legitimações também possuem caráter de objetividade. As legitimações religiosas

fundam, porém, a realidade socialmente definida das instituições na realidade última do

universo, na realidade “como tal”.

As instituições ganham um caráter e aparência de inevitabilidade, firmeza e

durabilidade com as qualidades dos próprios deuses, às quais se referem.

Empiricamente, as instituições mudam a medida que mudam as exigências da

atividade humana sobre as quais se baseiam. Elas são ameaçadas pelo tempo e pelos

conflitos e discrepâncias entre os grupos que se quer controlar.

As legitimações cósmicas elevam as instituições acima das contingências

humanas e históricas. São aceitas como óbvias pelos homens e pelos deuses. Essas

legitimações se tornam sagradas, imortais, transcendem a morte dos indivíduos e a

disseminação da coletividade. Funda-se num espaço sagrado no qual a história humana

é um simples episódio.

A consciência subjetiva individual permite que o indivíduo tenha um senso

definitivo da retidão moral, tanto cognoscitiva como normativa nos papéis que se espera

que ele represente na sociedade marcada pela “cosmificação” das instituições.

Page 90: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

90

O indivíduo só se identifica com um papel na medida em que os outros o identificam com ele. O indivíduo precisa desse reconhecimento dos outros. Ele é tudo aquilo que a sociedade o identifica em virtude de uma realidade cósmica, o seu ser social arraiga-se na realidade sagrada do universo (BERGER, 1985, p.50)

Como as instituições, os papéis se investem de uma qualidade de imortalidade.

Os papéis defrontam-se com uma facticidade divina outorgada. As legitimações

acarretam sanções extremamente poderosas contra o desvio do papel descrito.

A legitimação religiosa interpreta a ordem da sociedade em termos sagrados do

universo, assim, ela relaciona a desordem que é a antítese de todos os nomoi

socialmente construído e do caos que é um velho antagonista. Ir contra a ordem da

sociedade é arriscar-se a mergulhar na anomia.

Quando a ordem socialmente construída é negada, o homem arrisca-se no

mundo da irrealidade, que é o mundo da desordem porque só há ordenamento quando a

sociedade se propõe. Ali a sociedade não se apresenta. Viver nesse mundo solitário, as

margens sociais, é perder-se num mundo sem sentido, porque desprovida da presença

dos homens. A sociedade é respaldo que identifica os homens, lhes oferece um lugar

aconchegante junto a outros homens, podem compartilhar do mesmo calor, das mesmas

esperanças, dos sonhos que só podem se realizar entre os homens mesmos, e não na

solidão que é a negação da sociedade, ordem negada.

Aliar-se as forças da escuridão, negar a realidade é não sobreviver a solidão, e

sem o respaldo social, os homens não conseguem manter de pé as próprias contra-

definições do mundo, que são seus conflitos. É assim que a realidade definida pela

sociedade, é a própria realidade cósmica, a ordem do universo.

Quando negada, o homem assume-a ganhando qualidade de “mal” e de

“loucura”, as virtudes e a realidade do demônio. É confronto permanente entre a luz e

as trevas, a segurança nômica, a ordem, contra o abandono anômico, a desordem, o caos

Page 91: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

91

social. O nomos é a ordem suprema que abarca deuses e homens, cria significações

sociais, constrói um lugar comum para os homens viverem.

A necessidade de legitimação surge no decurso da atividade humana. O grau de

legitimação religiosa varia no tempo de acordo com múltiplos fatores históricos.

Dialeticamente, as legitimações nascem da atividade humana, cristalizadas em

complexos de significados que se tornam parte de uma tradição.

As construções sociais são atividades humanas, continuamente. O poder legitimante no nomos é compreensivo precisamente porque atende a realidade da vida, e as situações marginais duvidosas postas em dúvida. O nomos é a certeza de proteção contra o horror, a certeza da vida com sentidos, porque o nomos social é subjetivamente significativo para si e objetivamente significativo na mente dos outros (BERGER, 1985, p. 55-57)

Os êxtases de temor e violência são por esses meios mantidos dentro dos limites

da “sanidade”, isto é, do mundo social.

Os mundos são construídos e mantidos socialmente, sua realidade objetiva e

subjetiva depende de processos sociais específicos que reconstroem e mantém os

mundos particulares. Cada mundo requer uma base social para continuar sua existência

como um mundo que é real para os seres humanos reais.

Quanto menos firme se torna a estrutura de plausibilidade, mais aguda se torna a

necessidade de legitimação para a manutenção do mundo e vice versa. Quão mais firme

mais plausível. O desenvolvimento de legitimações ocorre em situações que estão

ameaçadas.

A religião deriva de uma realidade objetiva social e subjetivamente social dos

seres humanos que a produzem para a vida. Para manter uma religião o indivíduo deve

manter uma estrutura adequada de plausibilidade, porém, as dificuldades práticas

variam historicamente.

Page 92: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

CAPÍTULO IV

4.1 MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO POPULAR-

NOS CAMINHOS DE UMA OUTRA MANEIRA DE ENSINAR - APRENDER

A educação no contexto da realidade brasileira, exige referencial teórico,

sabendo desde já que ela expressa uma doutrina pedagógica que se baseia numa

filosofia de vida, uma concepção de homem e sociedade. Uma realidade social concreta

através de instituições seja a Igreja, a família, a escola, a comunidade, que se tornam

porta vozes de uma determinada doutrina pedagógica.

O sujeito é portador de uma exigência de felicidade, não apenas como

representante de universalidade, mas como individualidade por si própria, porque cada

indivíduo toma em suas mãos o provimento de sua existência. Na busca da satisfação de

suas carências, situa-se de modo imediato em relação à sua “destinação”, às suas

finalidades e metas.

Esse movimento do ser objetiva sua liberdade e independência. O homem tem

consciência dos riscos e perigos de sua existência, busca coisas absolutas, certezas para

poder seguirem e se identificar, ainda que na fragilidade. Sua independência é poder

compreender o mundo, de como relacionar-se com ele.

A escola capitalista reproduz as diferenças sociais e dissimula as funções da

classe dominante. Mas, como aponta Carlos Rodrigues Brandão (1995), a educação

existe em toda a parte e pode haver estruturas sociais de transferência de saber de uma

geração a outra, onde ainda não foi formado um modelo formal de educação de ensino

centralizado.

Page 93: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

93

O homem que transforma com o trabalho e a consciência, parte da natureza em

invenções de sua cultura, com o tempo transforma parte das trocas feitas no interior

dessa cultura em situações sociais de aprender-ensinar-aprender.

Esta se instala dentro de um domínio propriamente humano de trocas, de

símbolos, de intenções de padrões de cultura e de relações de poder, e a seu modo faz o

homem evoluir, torna-o mais humano.

A natureza do homem, ainda segundo Brandão, exige organizações físicas e

espirituais na educação e de forma como o homem a pratica, impele as espécies vivas à

conservação e à propagação de seu tipo. Assim, recria e elabora o conhecimento para

um determinado fim, mas que a educação existe sob diferentes formas e é praticada em

situações diferentes.

Podemos observar que nas comunidades humanas, existe o espaço educacional

que não é a escola. Esse espaço é o lugar da vida e do trabalho, do templo, da oficina,

que reúne pessoas e atividades diversas onde viver e fazer faz o saber.

A educação escrita surgiu em estados enriquecidos e preso entre as mãos dos

educadores a serviço dos seus senhores, sob trabalho explorado. Na sociedade grega, a

reprodução do saber era para um tipo de homem livre, que buscava o desenvolvimento e

participação da vida da polis. Essa primeira educação era praticada em todos os cantos

onde as pessoas conviviam com a comunidade.

Os gregos ensinam que em toda parte e muito mais do que a escola, a educação

existe por toda a parte, como resultado da ação de todo o meio-cultural sobre os seus

participantes. É o exercício de viver e conviver o que educa.

A escola é só um momento provisório onde isso pode acontecer. Por isso é a

comunidade quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o que pode ser vivido e

aprendido da cultura, seja ensinado com a vida e também com a aula do educando.

Page 94: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

94

No mundo ocidental, com a difusão do Cristianismo, surgem idéias sobre a

educação que isolam o saber da sociedade e a educação submete o destino individual ao

cristão. O homem que aprende busca na sabedoria a perfeição que ajuda a salvação da

alma.

No Brasil não há igualdade entre os brasileiros e a educação consolida a

estrutura de classe. Mas no pensado e no vivido há diferenças e as pessoas protestam e

cobram de quem faz a lei, que pelo menos ela seja cumprida, que a escola exista para

todos. Há idéias e interesses econômicos e políticos que se projetam sobre a educação.

A fala esconde em seu discurso, os interesses de grupos para seus usos.

Mas é possível ver no discurso sobre a educação, a preocupação em desenvolver

as faculdades inatas dos homens na formação do caráter como atividade criadora para

que se realize as potencialidades físicas, morais e intelectuais, num processo contínuo

até a morte. Assim definida a educação, seria possível guiar o homem no curso

dinâmico da vida, na humanidade dos homens, virtuoso na moral, no julgamento, tendo

recebido isso da civilização e conservando a herança secular das gerações.

As exigências sociais formam tipos concretos de pessoas para a continuidade da

reprodução da ordem social. Então a educação está formalizada sob exigências de

controle, que são as regras e normas que regulam a comunidade, as forças produtivas aí

criadas sob a consciência de uma cultura elaborada para ela e não com ela. Da forma

como os homens se organizam, determinam suas posições sociais, suas idéias, como e

para quê esse tipo de educação é pensado.

O rumo e as transformações decorrentes do mundo moderno engendram e

exigem dos homens uma ressignificação do conhecimento para se readaptar ao mundo,

e a educação passa a ser um saber com valor de mercado, com controle sobre as

pessoas.

Page 95: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

95

Sob as aparências do pobre e das imposições do saber, esses resistem e elaboram

seu próprio saber, recriam uma identidade própria e participam nas lutas políticas. Refaz

seu pensar, sua educação além da escola.

É preciso compreender que a educação é uma necessidade da existência, visto

que o homem se humaniza através da educação. Porém, os espaços aonde acontecem a

educação, são diversos.

Nos bairros, ao construírem suas casas ou ao realizarem seu assentamento

impróprio à legalidade, definem-se como sujeitos de um lugar, de suas condições de

vida, tramando e ganhando expressão pública, sugerindo questões daquilo que é sua

vida. Apresenta suas dificuldades, seus problemas e soluções, o mundo real que é sua

determinação de mundo, apresentando-se como homem social. Elabora e se mostra

construtor de seu tempo histórico, se percebe como realidade dos fatos, os compreende

no e com seu mundo, e elabora um mundo para si. Não vive o mundo de outros, como

verdade do outro, diria Freire.

Concebem como devem viver suas vidas, e refazem novas tramas que

comportam significados que os fazem homens de um lugar, que refletem sobre seu lugar

e empreendem novas ações.

O homem é um ser de relações. Sua identidade vai plasmando no processo...

Constrói na relação com diferentes vertentes que a realidade lhe apresenta.

Os atores ali, são o vizinho, os amigos e inimigos, mas que são de qualquer

forma frutos do seu saber, que é o seu fazer, que é experiência. Quando trama é porque

entende, relacionando fatos, criando critérios sobre valores morais, éticos.

Sua compreensão nasce em função da lógica de outros grupos políticos e de sua

lógica. A partir disso reconstroem e se organizam em função das imposições dessa

condição, porque os homens aprendem o sistema e o jeito dos políticos e fazer-se

Page 96: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

96

legalmente ouvido é atuar dentro de um jogo. Ao atuar no jogo, permite-lhes se

reorganizarem sobre o conhecimento adquirido, incorporando esse novo saber à

historicidade das elaborações populares. Suas conquistas são incorporadas na

comunidade e se autonomiza à medida que assimila e reelabora critérios para suas

reivindicações de forma mais eficaz. E é nas atividades sociais que dinamizam o

conhecimento adquirido.

E é em se narrando que se percebem definidos socialmente. Mas através de que

representações e sob que práticas sociais?

Se a historicidade é fruto de mediações nas consciências dos atores que refletem

e repercutem sua reflexão em uma realidade que é sua, como expressão de práticas

elaboradas oralmente, possibilita o tempo real desses, denunciam critérios do mundo

que é sua concretude.

A experiência de vida das pessoas em práticas sociais comuns os associa e os

fazem compartilhar e delimitar ações políticas objetivas. Faz isso em conversas com as

autoridades do lugar, definindo conhecimento de si e dos outros que os faz

aprendedores e fazedores, historicizando o lugar, dando forma do seu real e viabilizando

suas vidas, reclamando, insurgindo-se, afirmando-se.

Mesmo sua maneira de morar, de se colocar naquele lugar, criando um ambiente

com más condições de moradias, os põe sob olhares marginais, pelas más características

que dá ao bem morar, à marginalização daqueles que nada tem, contra aqueles que têm.

Esse mesmo é um fator contra qual eles devem lutar. Precisam do reconhecimento de

suas presenças, ali, bem como o respeito por parte desses olhares vizinhos. Como

exemplos, procuram afirmar-se, fazer suas presenças significativas, para si e para os

outros.

Page 97: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

97

Suas presenças nesse lugar inspiraram minha aproximação, mesmo sem

nenhuma experiência comunitária, nem do tamanho estranhamento que iria vivenciar

como grupo institucional. Muitos, - assim como eu-, observo, não tinham nenhuma

experiência como educadores, ou mesmo qualquer experiência em trabalhos de tamanho

estranhamento. Mesmo assim, sentia-me marcado com um poder daqueles que tem,

institucionalizado, e pela minha presença de fé, para dar aos que não tem e que

supostamente não enxergam, não refletem o mundo vivido, vivem o mundo de outros,

na sombra do outro,- aproximando mais de uma linguagem paulofreiriana-, as causas de

seus problemas.

Minha atitude bem como a do grupo, vejo nesse momento, era bastante ingênua.

Supúnhamo-nos como aqueles que poderiam ser a salvação da comunidade, de

instrumentalizar suas lutas para uma melhor qualidade de vida. Isso nos fazia ignorar

uma construção a duas mãos. Isso forçava a comunidade Santa Angelita, ao

estranhamento, porque eram forçadas as construções significativas nossa, de uma

realidade que não lhes pertencia.

O choque é inevitável quando uma realidade quer ser realidade para a vida de

outros indivíduos, porque são embates diferentes. Isso levou a instituição igreja a um

conflito cada vez maior com a comunidade, e com o tempo exigiu dessa, seu

afastamento. Foi o que aconteceu nessa comunidade (Santa Angelita). A comunidade

enfrentou e construiu significados importantes com a nossa presença religiosa, mas que

novos tempos de construção se faziam necessárias. Daí que o projeto institucional já

não poderia perceber. O objetivo da instituição havia sido cumprido, e a comunidade

mesmo já fazendo escolhas antes, fazia outras para o presente-futuro. Novas regras

precisavam ser elaboradas, outras questões do mundo deles precisavam ser refeitas.

Page 98: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

98

Houve durante a permanência do projeto muitos conflitos entre aqueles dos

nossos grupos que saíam ou ali permaneciam. Mesmo entre nós houve muitas

divergências, a ponto de algumas vezes nos retirarmos, e outras vezes, assumirmos de

novo, num constante conflito entre comunidade e grupos que assumiam os trabalhos, até

o momento que se percebeu, comunidade e igreja, que os caminhos da instituição e da

comunidade não eram os mesmos. A ruptura foi conflitante, negada, às vezes rancorosa.

Procuro deixar claro aqui todos os sentimentos presentes daquela intervenção,

como eram significativos, seu sentido, conflitos e confusões, sem mediar ainda por uma

leitura mais clara desse momento. Procuro traçar com a maior fidelidade possível

aqueles momentos, sem torná-los brandos, ou generosos. Porém, mais compreensíveis a

partir de referenciais teóricos conhecidos. Procuro ser o mais objetivo possível nas

minhas subjetividades, nos encontros e desencontros daquele momento. Relato o agora,

os sentidos nesse momento, mas sem desviar dos sentidos daquele momento anterior. O

que sou depois do vivido, e o olhar daquele momento vivido.

Os resultados colhidos então foram de que a permanência institucional não

conseguia compreender mais a comunidade e a comunidade não compreendia o que

queria a instituição.

Penso que os destinos traçados pela diferentes realidades da igreja e comunidade

tinham sentidos e significados diferentes. Eram autonomias, e como autonomias, não

poderiam fazer parte dos mundos diferentes, estar na realidade do outro com um mundo

de significados estranhos, com certo tipo de liberdade singular que cada grupo

construiu, igreja de um lado e do outro, a comunidade. De quem é o desreconhecimento

das realidades? Se estiver interessado em fazer minha realidade ser a realidade do outro,

até onde ela é viável ou pode ser viável numa educação popular?

Page 99: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

99

Podemos avaliar que tenha havido sentidos compartilhados e outros discrepantes

quando da intervenção de igreja no âmbito íntimo ou dos valores culturais da

comunidade.

A comunidade norteou alguma ação além daquelas norteadoras da instituição e

institucionalização no processo histórico, e elas fazem parte hoje de seu processo de

autonomia. Importa detectar alguns sentidos, algumas significações daquele momento.

Existe ali na comunidade uma analise a ser realizada quanto aos processos

históricos e culturais dos sujeitos implicados na experiência, como movimento social.

São seres que assumem o mundo como seres sociais responsáveis, que se sentem

desafiados em suas manifestações, e por ela dão concretude na defesa prática de uma

ética que os universaliza.

Nesse sentido nossa presença na comunidade era intencionalmente de libertá-la

de sua miséria. Nós como sujeitos respondendo pelo futuro da comunidade, fazendo

com que ela seguisse nosso caminho histórico da institucionalização social, uma nova

maneira de encararem suas vidas. Objetivávamos isso pelas atividades recreativas, nos

pequenos trabalhos artesanais, na soltura de pipas com as crianças, nos conselhos e

esclarecimentos aos casados, a organização do grupo de adolescentes, organizando as

eleições, promovendo-as. Qualquer eleição interna, mesmo de adolescente, levava à

questionamentos devido a presença de conflitos, principalmente entre as mulheres. Ali

elas se apresentavam mais em todas as situações. A refrega era ponto facultativo na

comunidade. Tudo devia ser feito cuidadosamente. Do grupo de mães,

institucionalizado pela prefeitura de Cuiabá, assim como eleições de líderes

comunitários. Tudo gerava animosidades. Isso causava transtornos. Novas energias se

faziam necessárias para acalmar as refregas depois das eleições, contornar os conflitos

na comunidade, criada geralmente por ressentimentos da derrota desse ou daquele

Page 100: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

100

candidato. Interessava a nós a totalidade da comunidade e não sua fragmentação

ideológica partidária. Procurávamos auxiliá-las em sua organização, nas visitas aos

órgãos públicos buscando cobertores, observando da praticidade de algum projeto

viável e desejável pela comunidade, no ensino e no trato com os outros sujeitos, da

necessidade de sensibilidade com os outros. Mesmo a tentativa de criarmos lideranças

ali no lugar, era tarefa impossível. Não desejavam aquela ou essa atividade que lhes

dessem responsabilidade. Isso mostrava bem que nosso projeto não poderia ser

assumido por eles. E como poderia, penso eu, visto que não houve uma escolha clara

por parte deles de nossos objetivos institucionais Em nenhum momento, percebo,

tomaram qualquer decisão sobre isso. Era o mundo nosso, institucional, vivendo no

mundo de outro. Dois estranhos num mesmo lugar com projetos diferentes.

Estávamos bastante seguros dos instrumentos que usávamos. Assim podemos

apontar que a instituição como construção valorativa tencionava atribuir a comunidade a

realização de aspirações sacramentadas num diálogo pedagógico de educação vertical,

sobre o que ser e como dever ser. Eram seres inacabados, no sentido que seu

acabamento seria possível mediados por uma pedagogia do não reconhecimento (eu-

instituição), de qualquer autonomia possível do outro, (eles-comunidade) não porque se

conhecesse ali qualquer tipo de autonomia mas porque se desreconhecia a probabilidade

de fazerem-se autonomia sem a instituição-igreja.

Na presença dessas reflexões, a educação poderia abrir possibilidade para que

seus sujeitos fossem libertados com o uso de instrumentos criados por atividades e

necessidades do qual faz parte a manutenção de suas vidas. Quer dizer, seus métodos

devem ser instrumentos criados e recriados a partir de sua expectativa de vida, daquilo

que ele, os sujeitos da comunidade, acreditam ser mais emergente e compreensível para

realizarem-se como seres de humanização.

Page 101: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

101

Importa também, nessa reflexão avaliar até que ponto desvaloriza o sujeito

aprendente, ali projetar instrumentos (institucionais) para sua liberdade. Como observar

e criar espaços da vida de maneira crítica junto com eles, para estabelecer com a

comunidade, uma consciência que reflita e ressignifique suas condições históricas, suas

misérias, sua pobreza, enfim, suas condições sociais.

Nesse tipo de processo educativo que ali experenciamos, a tomada de

consciência para eles, - já existentes, porque não podemos apontar que não exista uma

tomada de consciência porque não passa pela autonomia de outro grupo, no caso a

Igreja-, existe outra possibilidade de construção de mundo, e isso fica claro quando

compreendido que fazemos parte de mundos diferentes, apesar de vivermos no mesmo

mundo, as singularidades de entendimento sobre ele são estranhas a compreensão total

de ambas as partes, instituição-comunidade. Os mundos do qual faço parte, mundo

construído e em construção deixou um estranhamento no final da experiência de quem

eram eles, mas nunca tive dúvidas de quem era eu. Mas e quem são eles?

Quando deixamos o local, a comunidade não assumiu nenhuma responsabilidade

de projeto social. Podemos dizer que nela não há projeto nenhum? Até aquele momento,

pensava que não. Ou que tínhamos falhado no trabalho de deixarmos uma herança de

nossa ação impregnada nela. Procuro avaliar isso hoje. O que ficou e como a

comunidade se faz como grupo que procura o mesmo destino de fazer parte de um

lugar, fazerem-se homens, obterem respeito, reconhecimento social?

Mas mesmo quando não se mostra visível que eles não caminham nossos

caminhos, ou qualquer significado seja experimentado por causa daquela intervenção,

penso que os projetos sociais da comunidade passam por outra realidade, seu projeto é

projeto que não posso compreender, porque minha construção de mundo, de realização

e aspiração do outro não são reconhecidos por mim, justamente porque sou o estranho

Page 102: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

102

no mundo deles. Quando o faço por eles, não construo para mim, mas para o outro, e aí

já não posso construir um mundo de significações duma realidade que não é minha para

um sujeito que tem outras ancoragens sócio-históricas e identitárias. Nesse caso a

imposição de um script para os outros aprofunda a heteronomia, a colnização do outros,

o aliena e reifica.

Qualquer interlocução sem dominação, parece-me que primeiro, deveria re-

conhecer o problema que ali enfrentam, depois mais claramente, construir um diálogo

que estabeleça o problema mais significativo, e do qual a comunidade sinta-se mais

presa... Para libertar-se como protagonista de sua história. Ninguém liberta ninguém,

diria Freire. Aqui se trata mais de solidariedade e de comunhão. E aí envolvem outros

problemas, as dimensões maiores da comunidade, outros significados, outros valores e

outras cordialidades... Engloba vivências num quadro maior de todas as percepções de

mundos e do qual devo me cercear de saberes, criar sensibilidades, porque nela nada é

determinante. A problematização pode ser um caminho comum do diálogo sem

paternalismos e dependências. Toda solução vinda pronta, além de fragmentada não

permite a compreensão, a significação e o processo de nos tornarmos sujeitos de

comunhão. Ofereci instrumentos. Eram necessários? Poderia gerir, com poder e veto,

caso viessem a utilizá-lo ao seu jeito? Nunca saberia como, na verdade, uma

comunidade se apossaria deles. Nem para que finalidades o usariam. Posso manter

legitimamente o direito de vetar-lhes o acesso? É possível que isso renovasse o processo

de dominação e dependência.

Podemos assinalar que a educação nesse sentido, que utiliza recursos e

proposições, debate aberto, não deva ser de uma mão somente, e por isso suas

iniludíveis incompreensões e desencontros. Não posso sonhar os sonhos de outros, e

Page 103: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

103

nem eles podem sonhar meus sonhos, mesmo quando instrumentalizo e me

instrumentalizo. Recusar-se a ser objeto não me autoriza o controle de pessoas.

Penso que nessa possibilidade não haveria construção de mundos, porque eles

são construídos na ação de sujeitos que sonham, na relação de homens que se fazem

mediada pela intervenção dos sonhos de outros homens. E assim é porque o desencontro

tão presente das maneiras de ensinar-aprender-instituição-comunidade.

Vejo que o processo para que se reconhecessem como homens, e construíssem

um mundo de significações importantes, significações, portanto, foram “dadas”.

Impregnou-se o lugar de valorações para refazerem-se como homens. Uma impregnação

com os sujeitos que desejavam representar para eles, a nosso ver, “nós” , a única

possibilidade de sua libertação da dominação do outro, do isolamento e do egoísmo de

si próprio e de obter pela solidariedade e a entre-ajuda a própria humanização.

Havia um pressuposto equivocado: o refazer era conosco, a partir daquilo que

refletíamos para eles, das imagens que enviávamos para eles, e na percepção de que

somente as imagens enviadas por nós era a única imagem possível para a construção de

um mundo melhor. Nossa experiência com eles criava mediações em nossas reflexões e

a partir daí, sem maiores consultas, projetávamos novas ações. As respostas às

compreensões eram dadas pelo grupo institucional: numa concepção tradicional e

paternalista-autoritária.

A partir de nossas avaliações, de nossas sensibilidades, defendíamos as nossas

posições, respondendo sempre por nós e naquilo que acreditávamos, e pensávamos

sobre a vida deles e como refazerem-se como sujeitos históricos, “homens melhores e

bons”.

O pensar deles não era captado nem ouvido. A visão autoritária, autocrática, não

permitia pensar que eles pudessem usar de juízo, de liberdade, sem perderem-se por ela.

Page 104: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

104

Tudo era pensado como treinamento, transmissão, adestramento. Não nos era possível

imaginar um liberdade reativa, autônoma, pensante. Na verdade, ainda o expresso não

era compreendido. A compreensão da instituição era a de que eles eram os

“necessitados” e “carentes” em comparação conosco. E, como tal, careciam de ajuda

dados por aqueles que tinham condições de entender seu sofrimento e dar-lhes

instrumentos adequados de luta, e assimilá-los ao nosso mundo, aos nossos valores,

única forma de conceber o desenvolvimento máximo de uma humanidade. Éramos

centrípetos, etnocêntricos.

Nesse quadro, a mudança deveria consistir em pensar educativamente que não

poderemos ser os protagonistas salvadores do que está perdido. Nem compreendê-los

como humanidades incompletas ou pervertidas. Trata-se sempre, na mesa do mundo de

convidar os homens e mulheres com suas histórias de vida sobre o porquê de viverem

como vivem e compartilhar de seus sonhos, de pensarem e darem respostas de onde

vieram e para onde vão, num mundo em que todos somos passageiros e carecemos uns

dos outros. Porque vieram, para onde desejam ir? Perspectivar os desejos que permitem

resgatar a liberdade, a fome da vida, o sentido da existência. O que são como

humanidade, como enfrentam seu passado, como aspiram seu futuro. Compreender suas

lições e entendimentos de suas experiências espelhados naquilo que os educadores,

pedagogos, cientistas, pesquisadores poderão contribuir, em localizar do ponto de vista

do conhecimento suas histórias honestas e seus caminhos de criação.

É preciso ainda avaliar as relações estabelecidas. Como pensam as presenças de

pessoas que possuam alguns instrumentais técnicos de auto-ajuda, de grupo operativo,

de formas de cooperação. Tem-se para eles e qual importância ou relevância poderão ter

para suas vidas. Até quando, ou quanto e como estes educadores podem lhes servir

como instrumentos de suas vidas, da necessidade ou não necessidade dessas

Page 105: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

105

intervenções. Como melhor podem utilizar isso para contribuição de suas condições

como seres comunicantes e sociais? Como propor, acolher ou avaliar certas escolhas e

não outras, entre as finitas possibilidades dadas, pela maneira de ensinar e compartilhar,

e de arriscar-se e aventurar-se sobre novos destinos.

Avalio, por outro lado, que naquele momento, mesmo não intencionalmente,

como estratégia pensada e articulada, nossa aproximação amistosa, solidária, gentil,

acabava por propiciar atitudes rígidas quanto à escolha ética da comunidade. O

propósito que nutríamos era sempre de esclarecimento a melhor ética a ser vivida, tanto

pelas crianças, como os pais. Mas assim acabava-se por desejar impor ao outro nossa

maneira de ver o mundo, censurando outras possibilidades abertas à liberdade, posto

que faltava-nos, como falta à modernidade, a incompletude e as possibilidades abertas à

criação de novas humanidades.

Aquilo que somos está sempre impregnado em nós, e ajudar nesse sentido,

carece antes de uma atitude de compreensão do que sou eu e do que a comunidade quer

que eu faça ali, construindo, eu meu mundo na compreensão da novidade que “podem

ser eles”, sempre atento aos novos rumos que ali nasçam. Poderei, então, como

possibilidade, me refazer neles como educador, e eles podem se refazer em mim que

também expresso na rede de ações regulada por valores.

Uma educação que se fará melhor a partir do entendimento da presença do

educador e da construção de um tipo de pedagogia empreendida a partir de pressupostos

da aceitação e limitações possíveis, minhas e da comunidade. Perguntar aos sujeitos

viventes da comunidade, se determinada construção da realidade deles é significativa, a

partir de que valorações seriam importantes para conquistar representação social em

outras esferas. Iniciar uma atividade representativa. A partir daí encontrar algumas

Page 106: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

106

significações que respondam minimamente sobre a comunidade, de consultar e refletir

com ela, porque e o que se consulta é sua vida.

Leonardo Boff nos mostra que a ética produz muitas morais, porque cada cultura

ou região do planeta são diferentes. Elas determinam valores, normas e práticas do ser

humano em seu arranjo existencial, social e ecológico concreto. “A terra como o lugar,

a nossa casa comum. Não há mais diferença entre terra e humanidade” (2003:22).

O ethos7 então, é uma atitude de responsabilidade e de cuidado com a vida. Nela,

os homens constroem suas vidas como seres sociais, manejam os espaços naturais,

estabelecem uma relação singular com a natureza dependendo de como organizam-se e

a partir daí, identificam-se com o espaço maior, numa dimensão planetária, a terra como

o grande lugar da criação e da representação de significados e de sentidos de sua

humanização. Penso como Boff que

A atividade criadora do ser humano transpõe sonhos em práticas surpreendentes e em obras expressivas do que seja e do que pode ser a criatividade humana, num mundo de trabalho livre, libertado do regime assalariado moderno, onde não existe mais posto de trabalho (BOFF, 2003, p. 22)

Logo, os homens irrompem na história com sua complexidade, assim como a

terra fez sua história mediada pelo universo cósmico, constituindo ambos uma única

dinâmica aberta à vida e para a vida.

Na modernidade, incorporou-se a tecnologia a natureza e nela o homem se fez

concretude existencial, o universo onde vive, se move e constrói suas singularidades.

7 È uma atitude de responsabilidade e de cuidado com a vida, com a convivência societária, com a preservação da terra, com cada um dos seus nela existentes e com a identificação de um derradeiro sentido do universo. É, podemos afirmar, a casa que habito junto com outros homens e dou sentidos à vida.(grifo nosso)

Page 107: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

107

No ethos como lugar da morada, o abrigo permanente. Nesse lugar, nos diz Boff, o homem enraíza-se na realidade, dá-lhe segurança e permite a ele sentir-se bem no mundo. Não é de antemão, dada pela natureza, mas tem de ser construída pela atividade humana, sua ação formadora do que chamamos de cultura (BOFF, 2003, p. 28).

O lugar da morada, como lugar do fazer cultura, humanizar o mundo, portanto,

deve ter a qualidade de ser retrabalhada, enfeitada, melhorada. Nesse sentido o ethos

nunca está acabado, mas aberto porque nessa morada os homens criam e recriam

continuamente novos sentidos e significados, trata do que Maturana chama de

autopoiésis, capacidade humana de se autoproduzir.

O ethos então, é a Ética, o lugar de se morar e viver bem, poder defender a vida,

espaço de criação de princípios para a manutenção da vida.

Assim, o centro do ethos, que é a morada dos homens, é o bem segundo Platão.

Quando se sente bem em casa, os homens realizam um fim almejado, cria mediações

adequadas a sua realidade, estabelece hábitos, normatiza a vida. Torna-se humano

porque habita o mundo que é sua casa concreta na Terra.

Morar nesse sentido é criar seu mundo. A auto-realização do cidadão mediado

pelos hábitos, pelas virtudes e estatutos que são os caminhos concretos da realização

pessoal e societária.

O bem platoniano e auto-realização aristotélica constroem os costumes, os

valores de uma determinada cultura. Como existem muitas singularidades culturais,

existirão muitas culturas, e daí, muitas morais. Então o ethos é a casa, e ethos moral

como o conjunto dos meios ordenados a um fim, num mundo de muitas possibilidades e

sentidos.

Verificamos assim, que, a moral visa fazer a morada e o meio social

sustentáveis, autônomos e habitáveis, construindo felicidade para os homens, sua casa,

morada humana. A moral organiza a boa morada, faz com que a morada seja

Page 108: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

108

significativa, dê sentidos aos homens viverem em comunidade, e lhes dê sentido à

própria vida através de seus costumes e valores.

Para estabelecer a morada, no entanto, é preciso critérios. Cabe ao logos humano

definir o que é bom e habitável para todos. Nesse sentido, “a razão deve saber auscultar

a natureza, o que seja bom ou não. Ela não é muda. Está cheia de mensagens e apelos”

(BOFF, 2003:31).

Os gregos afirmam que o logos humano não está fora e acima da natureza, mas é parte, um órgão da própria natureza que capacita captar o que é bom ou ruim para a morada humana. A natureza assim se expressa através do logos e com o logos, que é a razão humana (BOFF, 2003, p. 31)

Vemos então que o logos ganha a dimensão central como a capacidade

intelectiva e racional do ser humano.

Mas para Leonardo Boff, a natureza não é captável apenas pela razão (logos),

mas por outros órgãos que compõe a capacidade perceptiva do se humano, como a

intuição, a simpatia, a empatia, os sentidos espirituais, e especialmente o sentido do

cuidado para com tudo que vive e tem valor. Por outro lado, a cultura ocidental e sua

cultura, privilegiam o logos e dele faz a instância básica de discernimento para orientar

as vontades.

Se assim é, natureza e logos, a razão, constitui e são referências para determinar

os comportamentos morais da sociedade. Como todas as pessoas são portadoras de

natureza e de logos, as duas categorias objetivam a felicidade, a auto-realização humana

num ambiente harmonizado. Como categorias distintas, estão a serviço de construção da

morada humana pessoal e social. “Mas também, natureza e logos estão inseridos na

história, num processo em mudança, em construção do ainda não ensaiado e

instituído” (BOFF, 2003:32).

Page 109: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

109

Se pensarmos a modernidade, vemos que o pensamento grego de natureza e

logos harmônico é rompido. Surge um conflito da razão e das interpretações sobre a

natureza e missão da razão.

Essa dimensão da historicidade entre natureza e logos, nos diz que se “se todo

logos é natural, nem toda natureza é lógica”.

Na idade média a natureza era compreendida de forma metafísica, com leis

imutáveis e previsíveis, um sistema fechado e equilibrado entre natureza e razão a

serviço do divino. Nos tempos modernos, a compreensão do logos mudou. Este é

subjetivado. O sujeito racional agora é portador privilegiado do logos. Serve e ordena a

natureza, a transforma num processo civil universal, conjugada com uma ação política,

livre e humana.

Esse sujeito racional é criativo, com capacidade de projeção e ordenação, de

liberdade e autonomia, de maioridade e responsabilidade porque intervêm no mundo e

na sua história. Já não ausculta somente a natureza, mas a si mesmo, a seus desejos e

planos. Um criador numa ordem em que se sente responsável, porque interventor no

mundo do qual faz parte. Age sobre o mundo e reclama sua própria história.

Em Hegel o sujeito burguês como plasmador da história. Em Marx, o proletário, sujeito com a missão de revolucionar o mundo, criar cidadãos livres solidários e participativos. Podemos pensar que cada um desses sujeitos projeta um ethos no mundo, uma casa que abriga felicidade e um conjunto de valores, princípios e utopias esperançosas com suas morais práticas (BOFF, 2003, p. 34)

Moral para a burguesia seria aquilo que a ajuda a acumular e garantir a posse e o

controle dos meios de produção e dos instrumentos de sua subjetividade coletiva que é

seu ethos no mundo. Para o proletário, internalizar nas pessoas processos

Page 110: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

110

revolucionários capazes de derrubar o estado burguês e a partir daí, transformar as

relações sociais. Eis o ethos proletário.

Os dois sujeitos, porém, excluem a alteridade e subjetividade da natureza. Então

como pensar a subjetividade moderna a partir desse logos, já que são excludentes

socialmente?

Discute-se que o homem está fazendo um retorno à natureza, a procura de uma

subjetividade que atenda a sua morada, a sentir-se bem, e ao mesmo tempo auto-

realizado. Nesse retorno, o logos se expressa na história e produz cultura, significações

e processos de espiritualidade.

Na contemporaneidade, a compreensão é de que a “natureza” possua

subjetividade e espiritualidade. O acesso a natureza agora se faz pela estrutura de

sensibilidade, pelo cuidado, pelos eros que é a estrutura do desejo, pela intuição e pelo

simbólico e sacramental.

Nesse espaço de vida, o ser humano possui um lugar singular. Está dentro, é

parte da natureza, inserido no imenso processo de evolução natural. Com sua

consciência e por seu saber técnico, intervém nela, e se faz, para ela, seu plasmador. É

objeto do concreto porque é interventor da natureza. Mas é também parte dela. Natureza

e homens em relação de transformação, os destinos dos dois se encontram numa mesma

relação, humano-natureza-homem-humanizado.

Na natureza então se encontra a convivência, a adaptação, a tolerância e a

solidariedade entre todos que inspiram atitudes para a existência humana pessoal e

social. Nela estão inseridas as virtudes dos sujeitos quando a possuem e a transformam.

Quando transformam a natureza, suas vidas também são modificadas e transformadas.

Fora dela o homem perde sua humanização, sua ação no mundo e com os outros

sujeitos.

Page 111: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

111

4.2 A Dimensão humana como fonte para a criação de uma nova pedagogia

Como se encontra enraizado, como um ser-no-mundo com os outros e com a

natureza, como parte dela, emerge como um ser de desejo ilimitado, daí seu caráter de

projeto infinito, com capacidade de projetar-se infinitamente nesse mundo. Quando se

projeta, assume atitudes, como a capacidade de cuidado e de responsabilidade por sua

vida, pela dos outros sujeitos, e pelos espaços naturais.

“Não é sujeito entregue as fatalidades dos dados da natureza, mas plasma esses

dados e lhes dá um sentido que atende a sua vida pessoal e social” (BOFF, 2003:52).

Humaniza sua vida, propicia a si mesmo um dado significado que o faz ser homem,

sentir-se em segurança, ter uma morada, relacionar-se e construir solidariamente com

outros sujeitos.

Assim, Boff propõe uma educação enfatizando os dados objetivos ligados aos

processos naturais, considerando que a educação deva ser organizada pensando nas

contribuições procedentes das outras ciências e de como os sujeitos fazem parte

objetivamente nelas.

A autonomia dos sujeitos são condicionamentos objetivos da natureza humana.

A felicidade da vida humana não é arbitrariamente construída à revelia das condições

que a própria vida humana coloca, mas sim de que enquanto vida humana, ela aponta

para muitos sentidos e para valores que compõem e estruturam o bem estar da casa

humana, vale dizer, do ethos.

Com isso entendemos que o ser humano, sua essência e natureza, é uma questão a ser sempre retomada e aprofundada. Trata-se de entender então não somente o dado, mas também de constatar como o dado é feito, refeito, entendido reinterpretado e projetado (BOOF, 2003, p. 56)

Page 112: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

112

Queremos entender com isso, de que não podemos com alguns dados submeter o

conhecimento humano, compreendermos sua natureza humana completamente. Ela

sequer existe sem o humano. O humano e o cultural já se apreendem como natureza.

Como ainda não está pronto e acabado, mas está sempre em nascimento, não é projeto

marcado pelo tempo definido, mas projeto indefinido e infinito. Assim, os sujeitos

avançam para além de si mesmos, buscam satisfação que preencham suas inquietudes e

angústias. Quando caminham com essa responsabilidade, mudam seu mundo e

convocam outros mundos para se fazer homem, construindo-se pessoal e coletivamente

a vida toda, ao longo de sua história. Realiza-se, quando convoca outros homens no

mesmo mundo, “pois somente se realiza como um-em-si à medida que para os outros

sai de si e se relaciona com os demais. Ele é, portanto um- em- si relacionado” (BOFF,

2003:56), e relacionante.

Mesmo suas paixões, ou seus desejos, bem como seus impulsos não indicam

concretamente nenhuma norma de ação concreta. Sua intervenção na natureza está

marcada pela emoção, pela vontade e autodeterminação. Suas paixões se manifestam no

trato com os espaços naturais.

Como seres humanos conectados no mesmo planeta, advindo de um imenso

processo cosmogênico, deparamo-nos com nossas mãos intervindo no processo

histórico da natureza em sua formação dentro do tempo. O ser humano desentranhou a

potencialidade dela e acelerou um processo de freamento da natureza, criou e moldou

um outro mundo.

Ocupando a natureza, em diferentes processos, os povos historicizam a vida,

criam várias culturas e tradições espirituais, fazem surgir forças complexas e misteriosas

na aventura humana, no caminho de sua infinitude. Ao mesmo tempo percebem que é o

único espaço para conviver e criar um destino comum sobre valores e atitudes. E este

Page 113: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

113

processo é o caminho da educação: projeto pessoal e coletivo, universal e singular a um

só tempo.

Citando Enrique Dussel, Boff observa que os formuladores de éticas não têm

consciência do lugar social a partir donde se pensam e atuam; dentro dos sistemas

dominantes e a partir de quem ocupa o centro do poder. Quer dizer, não percebem que

existe uma periferia e uma exclusão mundial fruto desses sistemas fechados sobre si

mesmos, incapazes de incluir a todos por isso, produtos permanentes de vítimas.

Continuando nessa proposta pedagógica, Boff propõe uma ética a partir daqueles

excluídos, dos que estão de fora, dos que tem seu ser negado. Como os excluídos são a

maioria, a todos os demais estariam garantidas então as mudanças necessárias para uma

inclusão universal.

Então primeiro salvar a vida dos pobres e depois garantir os meios de vida para

todos, como o trabalho, a saúde... Bem como depois garantir a sustentabilidade da casa

comum, a Terra, o lugar da morada humana, da criação dos sentidos humanizadores.

E aí sua proposta de romper com os sistemas homogeneizadores

desumanizantes, que se fecham as transcendências sociais e mesmo de uma

aproximação com o divino.

É um caráter salvífico e messiânico. A salvar a vida, a enxugar lágrimas, a despertar a compaixão e a incentivar a colaboração para que todos se sintam filhos e filhas da terra e irmãos e irmãs dos outros. Está centrada nas coisas essenciais a vida e aos meios de mantê-la, bem como da maioria das gentes empobrecidas (BOFF, 2003, p. 68)

Para encontrar uma vida leve e feliz a justiça e o diálogo não devem ser

suprimidos, porque é fonte e início de conversações entre os sujeitos, e o lugar do

estabelecimento e construção de significados. Nesse mesmo lugar, a vida ganha

Page 114: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

114

sentido, porque entende os diferentes valores e argumentos e da necessidade de incluir

seus sujeitos.

A singularidade do ser humano nos remete a um entendimento de que este

possui comportamentos carregados de expressão significativa, de valores, de uma

estrutura de cuidado, de racionalidade, liberdade e autonomia.

Nesse conjunto, os sujeitos plasmam o mundo a sua volta. Sua casa, morada que

o enraíza no lugar e o faz ser na história, ser participativo e humanizado com outros

sujeitos, não pode acontecer, sem a presença do sagrado, da justiça e de compaixão.

Somente neste sentido a terra pode ser habitável. Num sentido humanizador,

significativo.

Essa mesma morada somente poderá ser um lugar em comum, se houver uma

integração que resulte de relações justas consigo mesmo, com as outras pessoas, com as

diferentes culturas, com a vida mesmo, no mesmo lugar, a Terra.

A sociedade ocidental tem construído seus significados pelo logos. Mas

entendemos que somente a razão não pode demonstrar todos os momentos da

experiência humana. Entendemos também que tampouco constrói todos esses

momentos.

Na afetividade, o cuidado essencial, a experiência espiritual do indivíduo se

confronta como ser em dimensão num lugar de muitas possibilidades, aberto a fazer-se

eu na experiência. Assim é compreensível se pensar e compreender que se justifica

pensar no humano enquanto condição necessária para construir uma pedagogia que

recupera a sua relação com a dimensão cósmico /humano.

Page 115: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

115

4.3 A razão, os sentidos e a existência

Boff questiona sobre qual seria a experiência base da vida humana. Para ele, é o

sentimento, o afeto e o cuidado. Não é o logos, a racionalidade, mas o pathos.

É a capacidade de sentir, de ser afetado e de afetar. Esse é o arranjo existencial concreto do ser humano. Nesse sentido a existência não é simplesmente existência, mas uma co-existência sentida e afetada pela ocupação e pela preocupação, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo e com os outros, pela alegria, ou pela tristeza, pela esperança ou pela angústia (BOFF, 2003, p. 80)

Assim, o sujeito sente o mundo, os outros sujeitos, o eu sujeito como parte de

uma totalidade complexa dentro do mundo.

O pathos, na verdade, não se opõe ao logos, porque o sentimento é uma forma

de conhecimento, mas de natureza diversa da razão. E os homens a têm dentro de si

transbordando por todos os lados. O homem guiado pelos sentimentos. O conhecimento

adquirido pelos sentimentos, o pathos, se identificando com o real num processo de

simpathia, se alegrando e participando de sua vida.

As plantas e os animais pertenciam à própria história, os sujeitos participavam

dessa natureza num tempo anterior a idade moderna. Homens e elementos da terra

reciprocamente estabeleciam relações afetivas.

Pensando nessa relação, Boff procura transformar o pathos com a tradição do

logos. Com a cabeça e o coração redescobrir que ambas são faces de uma mesma

moeda, e daí, da combinação desses, “nascerá o cuidado com o mundo e da relação dos

sujeitos no mundo e na natureza” (2003:82).

A essência do ser humano nessa perspectiva relacionante, seria como ser de

cuidado, mais que um ser de razão e de vontade. Significa isso, o cuidado como uma

Page 116: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

116

relação amorosa para com a realidade que lhe garanta a subsistência e espaços para

desenvolver suas lutas. Vemos assim, que Boff constrói uma “pedagogia de cuidado”,

porque pensa no cuidado pela vida e no corpo, no espírito e na saúde, na pessoa amada

em que sofre e na casa “Terra”, sua morada. Seu ethos o enraíza como ser no mundo e

na Terra. Anterior a ação da razão e da liberdade, o cuidado possui subjetividade à

medida que é parte e parcela do todo. É modo de ser concreto no mundo, com valor

intrínseco.

Uma razão cordial que se revela nos sujeitos, no universo e na terra, no jogo das

relações de cuidado, de desvelo e de atenção. Os homens sentem-se envolvidos

afetivamente e ligados ao destino do outro e de tudo que se faz objeto de cuidado, um

sentimento de responsabilidade.

O cuidado nesse sentido funda uma ética capaz de proteger a vida e garantir os

direitos dos seres humanos e de todas as criaturas. Garantir a com-vivência e a

solidariedade, a compreensão, a com-paixão e o amor, de criar sujeitos de ações que

tem responsabilidade no mundo e com os outros homens.

Uma “pedagogia de cuidado” que funda uma ética fundamental para proteger o

planeta, a vida e garantir o direito de todos os seres vivos. Na maneira em que os

sujeitos manejam os espaços naturais-vivos fazem surgir uma realidade com caráter de

agressão ou de harmonia fazendo nascer uma consciência ética na pessoa, e daí, uma

capacidade de resposta e de responsabilidade para com todos os espaços onde a vida se

apresenta.

Assim se faz necessário a participação de todos os sujeitos históricos de todas as

culturas para estabelecer princípios presente no ato comunicante, utilizando os mesmos

valores e regras. Nessa ética, o ser humano aprende junto com as diferenças, e

possibilita quebrar a hegemonia dos poderosos.

Page 117: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

117

Os excluídos quando se percebem em suas lutas e seus sacrifícios,

reciprocamente, reagem com com-paixão, participam das lutas de libertação. A ética do

pathos consiste então nessa luta de com-paixão, uma luta dos mesmos sentimentos.

Nessa luta, o empobrecido é o sujeito da libertação, tem força histórica para

transformar a sociedade, utiliza as distintas morais, valorações, respeita as tradições,

não detém a verdade consigo, mas constrói uma casa, uma morada em comum com

todos os outros sujeitos. Respeita as singularidades convivendo com elas. As diferenças

apontando para o mesmo lugar, o de proteger o interesse coletivo, a manutenção de

todos os seres vivos bem como sua reprodução.

No sentido de um bem-viver social, numa pedagogia “de cuidado” proposta por

Boff, precisamos pensar como podemos instalar esse projeto numa educação que pense

os espaços sociais como instrumento de saber das comunidades humanas. E pensar

também que ensinar antes é aprender nas muitas maneiras possíveis dos sujeitos

construírem suas vidas, e nomatizar seus valores comunitários. E de que não passa

somente pelos caminhos da economia, da política, dos espaços ambientais, mas por

todos eles, condicionando a vida dos sujeitos. Isso faz com que os homens construam

seus espaços de liberdade, de ajuda mútua, de compromisso de uns com os outros, da

responsabilidade maior de manter a vida, de apossar-se do mundo, de se apoderar de

seus espaços de criação e recriação.

Page 118: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

118

4.4 Do Emílio à comunidade Santa Angelita, local da construção de uma pedagogia

“da comunidade”

Uma educação minimamente aprendente com os sujeitos do lugar, visto que

minha-nossa percepção ainda é parcial-concreta: o que vejo é nossa-minha-

subjetividade-comunidade Rousseau em seu “Emílio” , apresenta uma importante

contribuição nesse sentido. Procurarei adequar suas questões as minhas questões sobre a

experiência na comunidade Santa Angelita, local da minha pesquisa e também das

minhas inquietações. Ao mesmo tempo, lugar do meu “acerto de contas comigo

mesmo”, com aquilo que realizei ali. Pretendo com isso, levantar alguns sentidos que

respondam algumas indagações e possibilidades sobre a construção do aprender-saber

entre os indivíduos, e de como se coloca o educador-educando na perspectiva

Rousseaniana. Danilo Streck, dissertando as questões desse tema em Rousseau,

simplifica bastante meu trabalho, em seu livro “Rousseau e a Educação”, obra

referenciada por mim na bibliografia.

Se o Emilio critica o poder religioso que sustentava uma estrutura social injusta,

Rousseau coloca esse poder com expressão cultural, maneira dos povos honrarem a

Deus, cada comunidade com sua peculiaridade, num espaço de concretude de

construção da vida muito singular. Não se trata de uma sociedade justa ou injusta. Cada

construção se faz singularmente porque a realidade presente também é diferente em

cada grupo social.

A religião essencial nesse autor é, portanto, aquela que surge do coração dos

homens, que servem a Deus em virtudes espelhadas no homem “natural”. O desejo de

cada homem correspondendo à necessidade de todos os homens.

Page 119: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

119

Na natureza humana estaria o ímpeto e os critérios para buscar a verdade e para

se chegar a ela. Humanizando-se pela interferência na natureza, problematizando a vida

nela e com ela.

Isso é tarefa da razão e da consciência. Não se deve submeter a razão

simplesmente sob qualquer ordenamento, mas submetê-la sob o ordenamento de razões.

“Preciso de razões para submeter minha razão” (STRECK, 2004:21). O verdadeiro

ensino parte da vida e das perguntas que as atividades cotidianas submetem os homens.

Em Rousseau vemos sua educação preocupando-se primeiramente pela criança.

Acompanhá-la até estar pronta para viver em sociedade, ser cidadão na comunidade dos

homens. Entendendo que o tempo dele, era o tempo do homem desvencilhar-se da

educação da igreja porque não permitia o desenvolvimento das liberdades e, portanto

das potencialidades humanizadoras libertando os homens. Homens que historicizavam

suas vidas.

Os homens e mulheres como indivíduos não são sujeitos acabados, prontos, e

nos lembra Freire que se constituem sujeitos inconclusos, por-se-fazer,

permanentemente. A partir de Rousseau, aprender-ensinar passará a ser fenômeno não

explicável pela vontade da intervenção divina.

Nessa reflexão, penso que a comunidade da minha pesquisa desenvolveu seu

tipo de autonomia e liberdade, porque nós mesmos sentimos a resistência à nossa

maneira cristã de ver o mundo. A comunidade vai além das necessidades de precisar

trabalhar para sobreviver. Ela constrói valorações a partir dessas necessidades, do

próprio sagrado, mas com sentidos singulares daqueles da instituição. Também ela não

está determinada por um único conceito, mas como nos diz Paulo Freire, está

condicionada para muitas significações e possibilidades.

Page 120: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

120

Assim, Rousseau também ajuda a compreender que é preciso reconhecer as

marcas do tempo sedimentadas na história coletiva. Nenhum decreto de des-

reconhecimento da realidade de um grupo social, que arbitrariamente possa querer se

concretizar nessa história, poderá fazê-lo sem a permissão dessa realidade concretizada.

Diz-nos que é preciso encontrar um ponto de apoio que dê segurança para sair do ciclo

da necessidade ou da fatalidade do presente, quer dizer, não sob o critério de instituição

alguma, ou nas relações de qualquer poder mediador dos interesses da comunidade.

Os homens como agentes livres nos propõem uma pergunta diz Rosseau.

Desejam ser educados para qualquer coisa? Isso leva-nos a retornar a comunidade Santa

Angelita e perguntarmo-nos acerca do quanto ignoramos e não sabermos sobre suas

vidas, valores e sentidos. Eles precisavam ou desejavam interferências em suas vidas?

Recebendo o outro, aprontam-se para as questões, tem suas respostas, elaboram

seus argumentos singularmente, sabem-se vivendo com outros homens, diferenças, e

tem seu modo de apreender e conviver com a diferença.

Se em Locke, outro contratualista, a felicidade humana ou a miséria dependem

de como este dirige seu destino, em Rousseau,

A compreensão da pessoa e da educação implica colocar a criança ou o educando como centro do processo de aprendizagem. Não se trata mais de organizar o conhecimento de forma a se adaptar melhor a mente da criança como era a preocupação de Locke, aquilo que ele denominou de “Tábula rasa” (STRECK, 2004, p.27)

Para Rousseau, interessa observar as brincadeiras das crianças, suas linguagens,

os modos de raciocínio. Inicia-se assim o estudo do homem, colocando-o como

centralidade, nele mesmo está o processo de que deriva sua educação e aquilo que a faz

querer aprender. Daí parte as razões para ensinar. A criança quer aprender porque existe

Page 121: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

121

uma distância entre os desejos e a capacidade humana de querer realizá-lo. Nesse

distanciamento se realiza a educação, projeto do ser-mais humanizante, em Freire.

No caso do homem natural, não haveria razão para se pensar em educação, já

que seu mundo é harmônico. A educação por isso é um processo aberto, sabe-se o ponto

de partida, mas não o de chegada.

4.5 A procura de Autonomia

No tempo, historicizadas, estão as marcas das atividades significativas do

coletivo comunitário. Certa compreensão dessa realidade torna possível concretizar

novas mediações sociais. As instituições sociais com seus critérios predefinidos,

funcionais e a-históricos pouco podem encontrar de significativo da realidade

concretizada da comunidade a partir daquelas necessidades mais urgentes, como o

comer, morar, vestir, amar. Deve ser por isso, encontrado um ponto de apoio sustentável

para empreender atividades que possam ir além do discurso exterior, um monólogo

distante das realidades presentes, apontados persistentemente por Paulo Freire.

Nessa perspectiva, a autonomia é a possibilidade de o indivíduo pensar por si

mesmo, não apenas idéias, mas todas as outras necessidades humanas sejam materiais

ou espirituais, reduzindo com isso as dependências da institucionalidade ou da

dominação e controle de uns poucos, fortes, sobre os outros, a grande maioria.

Na comunidade de Santa Angelita não pensávamos muito sobre essa autonomia.

Críamos que tínhamos o melhor instrumento para ser utilizado na melhor qualidade de

vida deles, sem perscrutar a sua realidade, de como se forjavam nas lutas, de que forma

avaliavam nossa conduta com eles. O sagrado ocupava uma dimensão imprescindível na

Page 122: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

122

istrumentalização de suas lutas, da criação de seus significados. Com o sagrado havia

outras valorações em permanência entre eles que não percebíamos, e que estavam além

daquelas mais urgentes, como segurança, moradia, emprego, a educação dos seus filhos.

A vida na comunidade atravessa outras questões. Eu mesmo percebi isso,

quando certas situações cotidianas ali, requeriam uma mudança de identidade para

penetrar no mundo deles, e do qual protegi e recuei com temores por ter que penetrar

num mundo estranho a mim. Pude perceber que eu era outro e nunca poderia ser eles.

Seria perder-me. Ora, não existe na comunidade e nos seus sujeitos o mesmo temor? A

mesma proteção, a mesma fuga?

Depreende-se de Danilo Streck que o homem natural em Rousseau é

particularmente livre, bastando-se a si mesmo. Possui forças endógenas capazes de sarar

as feridas do corpo e da alma. Por natureza não é um ser social. Sua socialização é fruto

da civilização. Sua própria razão é fraqueza, condenado a viver numa sociedade onde

nasce livre e morre entre grilhões.

O sujeito Rousseauniano é um sujeito isolado, não comunitário, que faz sua

história solitariamente. Se nascer livre, perde sua liberdade na sociedade, exigindo

forçosamente que esse sujeito deseje mudanças para sobreviver.

No seu contrato social ela poderá ser garantida porque cada um entrega-se à

vontade geral que, efetivamente, não é ninguém. A mesma vontade geral garante as

liberdades individuais.

O Emílio ganha sua autonomia nesse sentido. Sua educação é regida numa

sociedade regida pelo contrato. Parte Rousseau de uma educação do homem natural,

livre, educado isoladamente, para mais tarde se submeter aos grilhões da coletividade.

Page 123: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

123

É importante observar que Rousseau pretende submeter às experiências para

exercitar o corpo e os sentidos das crianças. Suas experiências criariam os desejos pelo

aprender, a estimularia a desenvolver virtudes.

Penso nessa possibilidade para todos os sujeitos, não somente para as crianças,

em qualquer sociedade e qualquer tempo. Criar, a partir deles, outras maneiras de recriar

o mundo, perceptivo em suas consciências, nas idéias que fazem sobre os espaços que

vivem, na idéia que fazem de com-viver com outros seres humanos no mesmo lugar.

Tomar distância da educação bancária, denunciada por Paulo Freire, que enche a

cabeça do educando e não permite ao indivíduo ser ele mesmo, pensar seu mundo e

anunciar o que deseja que seja seu mundo. Se no mundo de Rousseau, ele pretendia

uma educação que orientasse os sujeitos, (a criança), num mundo já não mais

predeterminado pelo nascimento, na contemporaneidade, o homem também tem

dificuldade em encontrar seu lugar. E assim, a educação já não consegue responder a

essas necessidades.

A aprendizagem do aluno em Rousseau pretende colocar questões ao alcance da

criança e que aprenda a ir encontrando as respostas por si mesmo.

A motivação surgindo de dentro do coração da criança, do desenvolvimento da capacidade de sentir os fenômenos da natureza. Busca suas próprias respostas, estabelece relações e julgamentos. Daí surge o aluno e homem, com a simplicidade da própria natureza, perfeita, equilibrada, livre (STRECK, 2004, pp. 46-47)

O Emílio assume uma função prática e produtiva, um artesão. Mais do que

preparado para uma profissão é um sujeito que desafia a vida com outras questões no

caminho de se fazer cidadão. A sociedade agora será seu caminho e mediação como

construção de homem para cidadão. Sua vida não é mais isolada como foi sua educação.

Conquista autonomia.

Page 124: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

124

No bairro Santa Angelita, local do “meu acerto comigo mesmo”, como sujeito

de fé e educador popular, os “Emilios” são os sujeitos empíricos e “existenciados” no

cotidiano comunitário, os quais resistem à instituição e à institucionalização. O Emílio é

o próprio povo que julga o mundo, arbitra sua vida e a vida do sagrado, faz escolhas em

todas as dimensões sociais, humaniza e dá sentidos a sua vida.

Se o Emilio não tem história, apenas julga os fatos por si mesmo, na cultura ele

terá confrontos com as mais diversas culturas. Se pela história estudava o coração dos

homens, agora, como homem, chegou o momento de estudar o que esse coração julga

conveniente e bom. Sua felicidade está perto de si mesmo, nas pequenas coisas e das

pequenas experiências. Este Emílio parecia, em sua simplicidade e inteireza, momentos

vivos existencializados por pequenas práticas quentes e cotidianas do cuidado com a

vida no Bairro Santa Angelita. Era, contudo, um Emílio fragmentado. Também ele

cercado de contradições, para que fosse o mesmo Emílio, o tempo todo. Mas também eu

mesmo vivia na minha pele esta contradição de ser e não-ser, no cotidiano, e isso nos

ligava, eles a mim e eu a eles.

4.6 Individualidade e sociedade no homem de Rousseau

A educação do homem natural não pode ser conciliada com a do homem da

sociedade, pois o Emílio é um projeto individual. Mais do que não pensar essa dimensão

natural, é colocar o homem no centro de uma comunidade perversa e corrupta.

Como é possível uma educação que educa longe da concretude dos homens

vivendo no coletivo, pudesse ser factível, para somente depois colocá-lo na constelação

Page 125: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

125

dos homens, para construir sua vida nesse coletivo? Que desafios encontra esse homem

de Rousseau, educado isoladamente?

Rousseau nesse sentido desafia o tempo presente bem como essa possibilidade

de educação. Mas ao mesmo tempo desafia as leis e seu poder de garantias de liberdade.

A verdadeira liberdade está inscrita já no estado de natureza, no coração dos homens, na

consciência e na razão.

Nesse sentido, a liberdade somente pode ser pensada depois desse momento e

não vivendo em sociedade. Somente o contrato social dará conta de assegurar certa

autonomia humana.

Rousseau nos propõe uma questão. O que é cultura e o que é natureza no

homem?

Mostra-nos o que a pessoa é e pode ser. Em nossa época os produtos da natureza humana se confundem com as inovações tecnológicas. Os homens perturbam a ordem das coisas, deformam-se a si mesmo como homens. Nasce livre, logo é escravo de tudo e de todos (STRECK, 2004, p. 70)

Já não é mais possível o retorno ao estado de natureza após o contrato social. A

dependência das artes e das ciências revela sua inutilidade para a produção da

felicidade, afastam o homem do estado de natureza.

Rousseau exalta as qualidades do homem natural. Porém, a sociedade já não

permite esse retorno. Nessa sociedade, Emílio é colocado para viver.

Como educadores, seguindo Paulo Freire, é preciso que se seja um especialista

na leitura de mundo.

Ao observar, pode-se saber que embora os homens não se assemelhem a suas

palavras, por mais frágeis que sejam, são os caminhos para as obras e daí a importância

de se observar as palavras.

Page 126: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

126

Para Rousseau, a curiosidade do observador, e penso eu que a partir daí o

educador também, “deve ter um estado de espírito, um jeito de ser no mundo, que

embora acompanhado de desilusões, conduz os passos do observador” (2004:79), e do

educador para a presença de uma nova pedagogia.

Com o Emílio, as paixões motivam a perfeição da razão. O homem quer

conhecer porque deseja, quer saber mais sobre a sua existência. Muitas são as

dimensões da vida e a educação não pode obter êxito em todos os fatores que favorecem

ou dificultam o processo de aprender-ensinar.

Se o preceptor sonha o Emílio, uma criança nesse processo educacional, também

os homens podem ser sonhados a partir do que sonham como homens sociais, vivendo

com cidadãos.

Um grande interesse em conhecê-los, uma grande imparcialidade para julgá-los, um coração suficientemente sensível para compreender as paixões e suficientemente calmos para não experimentá-los. O tripé interesse em conhecer os homens, capacidade de julgar e coração sensível para compreender. Eis o método de Rousseau para a educação do Emílio e dos homens sociais (STRECK, 2004, p. 86)

A revolução de Rousseau está em que educador perde o seu lugar cativo de

ensinante.

Nisso, o mestre ensina porque sabe aprender e por isso ensina, e não porque

sabe. Deve descobrir as questões certas e colocar os meios para que aprendam. Precisa

aprender colocando-se no lugar do outro, da criança, de penetrar nas idéias dos sujeitos,

e de sentir as coisas da alma.

A educação assim como parte de um processo formativo da natureza e por outro

lado, também as instituições e a sociedade. Não é possível proteger o Emilio o tempo

todo da corrupta sociedade de Rousseau. Natureza e sociedade, porém tem limites nesse

processo formativo.

Page 127: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

127

O educador, no sentido de Rousseau, é alguém que sonha o mundo. Ele conhece profundamente sua realidade e, a partir desse conhecimento, se lança a propor e a experimentar outras formas de viver juntos (STRECK, 2004, p. 89)

O contrato social não produz solidariedade nem a compaixão. Aí a educação

deve se propor para além desse contrato, porque se leis não promovem esses

sentimentos, resta aos corações romper com a formalidade das leis.

A razão se instrumentalista e se capacita para denunciar a perversidade do

mundo e para projetar um futuro novo e significativo.

O preceptor de Rousseau sonha seu educando, o deseja, o inventa. Gerado

primeiro como um gesto de amor, procura fazê-lo saborear a vida. Viver

experimentando a vida a partir dos significados que o educando se propõe ao preceptor.

Conhecer cada etapa da vida pelo educando e daí, a construção de uma nova pedagogia,

de novos pressupostos teóricos.

Mas a sociedade como um todo passa a ser o contexto pedagógico, não mais a

ilha de Robinson Crusoé, e do Emílio solitário de Rousseau. A presença de todas as

virtudes e inconstâncias humanas passa a ser um desafio novo, a necessidade de uma

outra pedagogia.

O contrato social precisa para vigorar, de cidadãos capazes de sentir com o outro

e de agir com autonomia.

Na pedagogia de nossos tempos, a exigência e responsabilidade de novos

agentes se fazem presente, com a presença forte do pensamento de Rousseau, na criação

de uma outra pedagogia formadora de educação.

Com Rousseau passamos a ensinar a partir do aluno, de sua vida. Não como o

isolado Emílio, distante da sociedade e de sua realidade, mas a partir do Emílio como

centro do aprender-ensinar. A partir dele também resta-nos apresentar novas questões e

novas respostas em nosso tempo, diz Streck, mas sem deixarmos à margem o Emilio, do

Page 128: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

128

que ele representa e ressignifica nos Emílios de nosso tempo. A meu ver, na minha

comunidade, Santa Angelita, o contrato social, e as determinações da institucionalidade

precisava ser superada, e o era, em determinadas dimensões do cotidiano, onde era

possível sonhar uma nova ordem e novas relações.

Rousseau nos faz ainda crer no educando, numa natureza boa e numa educação

que procura promover a independência pessoal. Uma fé na bondade da pessoa. Ele se

apresenta no ver e aprender como a grande possibilidade de nos tornarmos humanos,

razão última de qualquer pedagogia.

Page 129: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando iniciei essa pesquisa tinha a intenção de identificar e responder

definitivamente às minhas inquietações da experiência vivida. Encontrar uma tonalidade

suficientemente clara para estabelecer o problema das relações entre o educador ou

agente e as pessoas de origem popular, e encontrar alguma(s) resposta(s) satisfatória(s).

O caminho percorrido foi muito cansativo, cheio de indagações, interrogações.

Inclarezas, na verdade. Um mundo de perguntas sem respostas. De todas elas, nenhuma

ficou realmente clara, ou mesmo se aproximou daquelas primeiras interrogações que

estimularam minha pesquisa sobre as perplexidades hauridas na experiência vivida.

Resta-me muito tempo de busca e de formulação que requer voltar ao campo, sair do

estado de natureza, do paraíso e retornar para o mundo do conflito, o mundo do contrato

social, não para ater-se à sua ordem institucional, mas para recriá-lo pelo cuidado

pedagógico e pela solidariedade.

Mas se você, caro leitor, chegou até aqui, - não importa qual o real motivo que o

fez chegar aqui, comigo -, quero que saiba do meu esforço pessoal quando escrevi;

desejei e busquei escrever sobre minha vivência como sujeito impregnado de fé em

transformar o mundo vivido. Não pensei na dimensão dessa transformação inicialmente,

nem consultei nada. Tinha uma firme convicção estimulada pela fé que, então, bastava.

Em todos os momentos da pesquisa de campo com meus informantes, não

sinalizei dados fechados, perguntas prontas para fazê-lo compreender, - explicando -,

minhas inquietações. Não priorizei na pesquisa a escolha de alguns indicadores que

aplicados à vida da comunidade pudessem determinar minhas respostas numa

racionalidade lógica previamente arranhada. Creio mesmo, que o problema inicial, o

Page 130: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

130

do meu “estranhamento8” do ali realizado não se esboçou em qualquer momento das

entrevistas. Não procurei concluir definitivamente minha vivência. Percebia-me

limitado e circunscrito a um espaço e tempo próprio que não tinha ponte para a

comunidade. Eles eram “outros” para mim, e eu, o “outro” para eles. Eles se tornavam

humanizados, com autonomia sem mim. Não pude ir além. A única percepção sentida

foi sempre a presença da minha perplexidade diante dos diálogos. Nos sentimentos

compartilhados com as pessoas da comunidade Santa Angelita, percebi outras

dimensões cotidianas que mereciam outro olhar para entender minimamente algum

significado mutuamente compartilhado. Foi tudo diferente do que imaginara no começo

do percurso. De uma perplexidade feliz, no sentido de que a vida se refazia e se refaz

em novidade, às vezes por causa e outras vezes apesar de mim. Eu não era o centro e a

grande referência.

As respostas teóricas encontradas em Paulo Freire, de que os homens vivem na

sombra do outro, verdade do outro, ou em Marx, em que tudo está impregnado pelas

relações do capital, do lucro, e aí cabe Freire, como verdade do capital, mostraram-se

apenas alusivas, e incompletas à luz do vivido. Não foram suficientes por compreender

minhas inquietações. Quando experimentei esses sentimentos, nas mediações desses

autores, nalgum momento de nossos diálogos e deles-comigo-comunidade, o

estranhamento sempre se fez presente: era também tudo isso, mas não só... Tudo nos

ultrapassa.

Andrioli afirma: “Gramsci afirma que o povo sente, mas nem sempre

compreende e sabe; o intelectual sabe, mas nem sempre compreende e muito menos

sente”. (http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli.htm)

8 Estranhamento no sentido de que no final da vivência em 1992, sentía-me atordoado, perplexo com o desfecho de nossas (minha), presença na comunidade. Ela tinha se locomovido para um lugar distante Isso causou-me um sentimento de que nosso (meu) tempo ali teria sido inútil. Por isso retorno à ela. Busco compreendê-la, e perceber o tempo vivido com ela e o tempo que ela vive.

Page 131: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

131

Junto às minhas paixões do momento vivido se junta certo sentimento de

frustração. Repentinamente, a existência entre eles e eu era sentida por mim em

caminhos com sentidos diferentes, desencontrados. Não infelizes! – Desencontrados! O

que fora feito ali então? O que ficara de nossa relação? O que poderia encontrar hoje,

após o momento vivido? Que reconhecimento ficara de mim por eles e deles por mim?

Completo estranhamento de ambas as partes? Mundos estranhados, porém,

significativos, para mim e para eles. Talvez esse fosse o caminho da liberdade de

ambos, da comunhão e da liberdade.

Posso dizer que são questões abertas para a compreensão de uma pedagogia que

nunca termina; mas que ensina que, perguntas e respostas, não poderão responder como

fazer educação. Uma pedagogia, talvez, marcada por certa inconformidade necessária.

Coisa concreta que sai das palavras estranhadas e entranhadas nos sujeitos da

comunidade, e de minha parte, como observador-subjetivo-objetivo, percebível junto e à

margem daquelas valorações do instituído.

Essa pedagogia nasce de verdades provisórias dos sujeitos, segundo Freire, gente

que pensa e procura pensar certo. A comunidade tem suas expressões próprias de

pensar, de construir a sua realidade, de concretizar sua vida, de julgar e agir com

autonomia junto a muitas determinações que penetram suas vidas.

Como Rousseau, minha curiosidade como observador e também como aquele

que viveu e desejava uma transformação social na situação observada, enche meu olhar

e meu ser de espiritualidade, me faz ser singularizado com presença no mundo e com a

comunidade Santa Angelita. Uma aproximação nem sempre fácil, porque está sempre

acompanhada de profundas desilusões... E frustrações, mas também de “ruptura com o

que sei”, para “ser” lançado para além do agora, provocando-me para ousar... Uma

história a ser construída, uma necessidade que já começava surgir com os muitos

Page 132: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

132

sentidos que “recheia” toda a dimensão social-comunitária. E somente pude me guiar

nela acompanhado numa Antropologia Social bergeriana, a partir daquilo que ele chama

de nomos, ato nomizante e normatizante na comunidade. Parte do pressuposto,- do qual

me apoiei metodologicamente-, de uma maneira singular e própria da comunidade

refazer seus vividos com outros mundos; de organizar-se em atos significativos para

suas vidas, de criar resistindo à pura reprodução, jeito de contestar e de enviezar os

projetos estabelecidos “de fora”... Um ato único e representativo em espaços de

convivência definidos, mas que não existem em nenhum outro lugar. Um ato para seu

mundo apenas. Pressupondo, contudo que esse ato seja ordenação do tempo

comunitário, diferente de qualquer outro lugar e tempo-social-histórico. Ele não pode

existir noutro mundo humano, noutros espaços sociais. É único. Sua possibilidade e

necessidade singular o fazem significativo apenas na comunidade Santa Angelita. Nele,

ela está só. E longa é a marcha para perceber seus significados, interpretar com alguma

lucidez um nomos (atos nomizadores e significativos neles), atos do quais não faço

parte, mas de que sou “o outro”, o forasteiro, o intruso. No sentido bergeriano, tenho

meu próprio nomos significativo. Ele parte do meu processo histórico-social de vivência

e com-vivência com outros mundos e mais exatamente “aqui”, na comunidade Santa

Angelita. Homem de fé “misturado” na comunidade e nos seus afazeres cotidianos, as

presenças pedagógicas de aprender-ensinar sobre suas vidas, a pedagogia da

comunidade é o ponto donde circundam todas as possibilidades, estão presentes suas

potencialidades, seu fazer-comunitário, numa maneira própria-e-pedagógica de ver o

mundo. Como educador e presença de fé na comunidade Santa Angelita, não pude com-

viver em projetos em longo prazo. A comunidade, efetivamente, não permitiu. Os

sentidos e as problematizações dos sujeitos comunitários – visualizados por mim como

marginalizados - já se “faziam outros”. As condições de moradia, trabalho,

Page 133: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

133

escolarização respondiam a outras necessidades. Poderíamos até ter permanecido ali,

mas os sentidos comunitários já não poderiam conter os “mesmos sentidos”. A fixação

mais longa no espaço, e os processos de organização coincidiriam com um processo de

afastamento rumo a outros sentidos para ressignificar os mundos cotidianos

“dessacralizados”, nos meus conceitos estreitos de fé institucionalizada. Havia mundos

em conflito.

Nem a comunidade tinha a mesma significação para mim, por que já não os

compreendia, nem deles para comigo, por que já não sabiam mais o que propunha. O

que se passou?

Aquilo que pude com-viver com eles, a história comunitária que passa pelo eu-

institucional, não percebeu que a comunidade já estava a caminho de outros “fazeres”.

Podia, sob certa permissão dela, me aproximar, ver e compartilhar alguns momentos

enquanto ela ainda não partiu – autônoma e independente - rumo a outras construções e

das quais ela não permitirá uma segunda aproximação. Acredito numa educação e uma

pedagogia que espere os momentos permitidos, que saiba aprender esses momentos tão

fugidios, esse olhar opaco que nos oferece à compreensão e aos momentos de sua

presença. Podemos observá-la e com-viver com ela naqueles espaços construídos pela

grande comunidade humana. Mas sem uma pedagogia definitiva e terminal, porque

como pensava Paulo Freire, as verdades são provisórias e assim, as teorias pedagógicas

também devem ser provisórias. Eu, em grande parte, as esperava definitivas.

Sabendo, desde já, que ela passa pelo mundo da cultura; e, na cultura, os espaços

da religião e do religioso, do místico, dos niilismos, do nada e do tudo, de descrenças e

das crenças, das tolerâncias e intolerâncias, dos amores e dos ressentimentos, passam

pelas paixões e pelos desencantamentos e encantamentos produzidos no mundo pelos

homens.

Page 134: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

134

Apesar da permanência desses sentimentos, mas já iniciado no processo da

pesquisa, ela continua se fazendo. E eu continuo expressando minhas perplexidades na

vivência enquanto educador. E de que minhas paixões, e a sua leitor, nos fazem

conhecer e desejar usufruir do impossível, porque sentimos nele a possibilidade de

dimensões que podem nos ultrapassar e responder as nossas mais íntimas perguntas. O

momento da não-compreensão é o nosso momento, como observadores-pesquisadores,

de um encontro de descobertas em relação à nossa própria vida como homens, e na

vivência com outros homens: não somos seres transparentes a nós mesmos. Estrangeiros

que somos a nós mesmos e a este mundo, dizia Camus.

O indivíduo, assim, não é sujeito passivo, e/ou descompromissado com seu

destino. Nem aquietado. O divino realizado com a presença de Deus, ou sem Ele, desde

que possui o arbítrio para fazer isso, e a liberdade de invocá-lo quando desejar, - O Deus

impotente no mundo e com o mundo, e que ao mesmo tempo se faz potente na

fragilidade humana - permite aos homens potencializar suas realizações humanas,

desenvolvê-la a partir de dentro de “si”, de maneira singular. À medida que pode

concretizar essa transformação latente, liberta seu mundo, seu “eu”. Potencializado

numa nova alma, pode refletir seu mundo, compreender e perceber sua força espiritual,

como força que pode criar e recriar em si, a vida. A partir da verdade que nasce daí,

estabelece o poder que recebe da concretização de sua liberdade, responde as suas

inquietações.

Procurando o caminho da perfeição e felicidade, o homem a faz com a

consciência. Faz parte da natureza e sua regra é um modo de ser no mundo. Deixando

esse caminho de lado, a própria natureza do ser é negada. É o próprio corpo como

manifestação do espírito, a propriedade que anima a matéria e lhe dá vida. O espírito é

Page 135: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

135

“todo ser que respira”. A atitude que coloca a vida no centro e a promove contra todos

aqueles instrumentos que promovem a sua morte, morte existencial, morte social.

A espiritualidade protegida e alimentada significa o espaço interior das relações

de todas as coisas, superar os instrumentos que diminuem os homens na realização do

seu “ser”. Significa vivenciar a realidade, libertar-se das opacidades, perceberem o outro

lado significativo que promove a vida, marcado pelos nossos momentos vividos e

significativos quando realizamos nossa busca procurando responder aos vividos,

interpretamos, nos enchemos de perplexidades, de questões novas, de novos problemas.

Nos caminhos dessas inquietações escrevemos e nos lançamos para frente. Não

porque encontramos respostas definitivas, mas por que elas permanecem indefinidas.

Abertas e estimulantes na mesma bitola do mistério, aberto, segundo Boff, a poder ser

conhecido sempre mais.

Vivo e moro hoje próximo do local da pesquisa. Ainda nessa noite do mês de

fevereiro, fui buscar uma encomenda que havia feito (queijo), produzido por um dos

moradores dali. Procurei andar em sua rua principal (a única!), e responder às questões

talvez mais inquietantes, hoje. Questões que punha antes de iniciar minha pesquisa,

algum princípio construído com aquela vivência.

Desejo, neste momento, encontrar com alguns moradores e poder questionar,

lançar novos olhares sobre o que fizemos e, principalmente, sobre o que faríamos de

outra(s) maneira(s), ou de que maneira faríamos desde o rememorado, das nossas

lembranças históricas. No entanto, me encontro só. Revejo o que fiz. Vivo uma fé de

tolerância com as fragilidades dos sujeitos e as minhas. Tolerância demais?! As mesmas

de outros lugares; a afetividade, a solidariedade, as lutas cotidianas com os filhos, os

filhos dos vizinhos, os vizinhos, os pequenos conflitos.

Page 136: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

136

Penso que o instituído possa em grande parte ser a forma fossilizada de “lei pela

lei”, a pura configuração do contrato social, freqüentemente desumanizadora. Onde

vige o poder e não o carisma, e onde freqüentemente se mata o carisma. O instituído

pode ser força alienante, no sentido que é um mundo estranho e acabado, ou mesmo se

fazendo historicamente num sentido oposto ao outro sentido daqueles em construção

comunitária no Santa Angelita. O instituído, contudo, pode ser forma humana também

se humanizando nas atividades solidárias com os indivíduos comunitários, quando

interdependentes, quando em diálogo. Dois mundos, um se fazendo (comunidade) e

outro se refazendo mundo ou igreja.

Hoje percebo melhor o tempo-do-aprender-da-comunidade diferente do

instituído. Tempos diferentes que precisam reconhecer-se num novo projeto social. Um

nomos a ser compartilhado, o meu, (instituído singularmente) enquanto igreja, o deles

(instituindo-se também singularmente) enquanto comunidade, e o da sociedade que aí

está numa perspectiva dramática e conflitiva... E que é projeto viável, somente

realizável, se compartilhado solidariamente, nas trocas, no mútuo reconhecimento de

parte a parte, incompletos ambos, mas podendo-se complementar.

O desdobramento da educação por vir, para mim hoje, será fruto do processo

inacabado e ao longo da vida de todos e de cada um.

Penso que hoje minhas interferências seriam diferentes. Meus próprios valores

deveriam ser compartilhados com eles, de como vivo e vejo o mundo. Esperaria por

respostas dos seus mundos propostos, ouviria e procuraria intervir com meu mundo,

mas não de maneira instituída.

Mostraria um pouco mais do humano que sou e de como me pretenderia como

sujeito nos diálogos com eles, de minhas afetividades, de minhas próprias tristezas,

Page 137: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

137

colocando-me não como indivíduo pronto e acabado como o fiz no início da vivência,

como aquele “ser” que já “é”.

Não me colocaria como humanizado, previamente liberto no mundo e trazendo

‘de fora’ a possibilidade de libertação para homens e mulheres marginalizados e a

mercê de uma sociedade auferida pelo “ter”.

Hoje me colocaria como educador que-está-se-fazendo-humano com eles e não

como pessoa já humanizada que vai ao encontro deles para humanizá-los. Lembro

Freire: estar em comunhão. Se humanizar em comunhão. Essa é a possibilidade:

humanizar-se com a comunidade, juntos, num processo aberto, instituinte.

Page 138: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS

ADORNO, Theodor W.. Organizador: Gabriel Cohn, coordenador: Florestan Fernandes.

Sociologia. Ed. Ática, SP, 1986.

ALBUQUERQUE, J. A. Guilhen. Coordenador. Classes médias e política no Brasil.

Paz e Terra, RJ, 1977 (pp 35-52)

ARRUDA, Marcos. Humanizar o infra-humano: A formação do ser humano integral:

homo evolutivo, práxis e economia solidária. Marcos Arruda; [prefácio Leonardo Boff].

– Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

BERGER, Peter L.. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da

religião [Organização Luis Roberto Benedetti; tradução José Carlos Barcellos]. - São

Paulo: Paulus, 1985.

_______. Perspectivas Sociológicas. Uma visão humanística. tradução de Donaldson M.

Garschagen. Petrópolis, Vozes, 1986.

BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. 13 Ed.,

Petrópolis: Vozes, 1995.

BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder. Editora Ática, São Paulo, 1994.

_______. Ethos Mundial/ Leonardo Boff.- Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação/Carlos Rodrigues Brandão- 33 ed.

São Paulo, Brasiliense, 1995 (Coleção primeiros passos: 203)

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação.: São Paulo: Cultrix, 1982.

Page 139: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

139

CARMO, Paulo Sérgio do. Merleau-Ponty: uma introdução/Paulo Sérgio do Carmo.

São Paulo; EDUC, 2000.

CARREIRO, C.H. Porto. Freud, Marcuse ou a dialética? Editora Alba, RJ, 1971.

CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. Ed. Ática, SP, 1997 (pp 288-296)

DAVEIRA, Adriano Solmar Nogueira e. A fala do povo. A reprodução do

conhecimento no saber popular. Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1985.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. (Coleção Debates).

ELIAS, Marisa Del Cioppo. Celestian Freinet; uma pedagogia de atividade e

cooperação/Marisa Del Cioppo Elias. Petrópolis, RJ, Vozes, 1997.

EZPELETA, Justa. Pesquisa Participativa/ Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell; (traduzidos

por Francisco Salatiel de Alencar Barbosa), SP, Cortez; autores associados, 1986.

FREIRE, Paulo. Conscientização; teoria e prática de libertação. Uma introdução ao

pensamento de Paulo Freire [trad. de Kátia de Mello e Silva; revisão téc. de Benedito

Elison Leite Cintra] 3 ed., SP, Moraes, 1980.

_______. Educação como prática da liberdade. RJ, Paz e Terra, 1994.

_______. Educação e mudança/ trad. Ernani Gadoti e Lílian Lopes Martin. RJ Paz

e Terra, 1981.

_______. Pedagogia do Oprimido, 17. ed. RJ, Paz e terra, SP, 1987.

_______. A Importância do ato de ler; em três artigos que se complementam- 37.

ed, SP, Cortez, 1999.

_______. Ação Cultural para a Liberdade. 5 ed; RJ, Paz e Terra, 1981.

GEERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia/Clifford Geertz; tradução, Vera

Ribeiro; revisão técnica, Maria Claudia Pereira Coelho. – Rio de Janeiro: Zahar Ed.,

2001.

_______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989

Page 140: Carlos Humberto de Almeidacarlos humberto de almeida a comunidade santa angelita: o “nomos” como construÇÃo e ordenamento de mundos nos caminhos de sua humanizaÇÃo

140

GEUSS, Raymond. Teoria crítica; Habermas e a Escola de Frankfurt. Trad. Bento

Itamar Borges - Campinas, SP; Papirus, 1988.

MORRISH, Ivor. Sociologia da educação; uma introdução; trabalho de Álvaro Cabral,

revisão técnica de Jather Pereira Ramalho, 2 ed., RJ, Zahar, Brasília, INL, 1975.

STRECK, Danilo R. Educação para um novo contrato social/ Danilo R. Streck.-

Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

_______.Pedagogia de outra manera de convivir: Diálogo com la teologia. Dimension

educativa, Bogotá, 2004.

_______.Rousseau & a Educação/ Danilo R. Streck.- Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Editora perspectiva, São Paulo,

2001.

ROMÃO, José Eustáquio, SANTOS, José Eduardo de Oliveira Santos (Coordenadores).

Questões do Século XXI, Tomo II. Editora Cortez, São Paulo 2003. (Coleção Questões

da Nossa Época; v. 10)