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CANTANDO A VÁRIAS VOZES NA ESCOLA: A PRESENÇA DAS
AFRICANIDADES NA MÚSICA E NA DANÇA.
Denise Andrade de Freitas Martins;
Claudia Foganholi Alves.
Apoio: CAPES
Resumo:
O presente artigo discute a possibilidade da abordagem da música e da dança africana
como estratégia de reconhecimento e valorização da história e cultura africana na
escola, com o objetivo de comunicar a possibilidade de abordar os aportes de
africanidades na escola e a presença das artes como uma estratégia para a
implementação das Leis Federais 10.369/2003 e Lei 11.769/2008. Dessa forma,
apresentamos uma intervenção com música e dança africana em uma escola brasileira
de educação básica, localizada no estado de Minas Gerais, com crianças entre nove e
onze anos de idade, realizada em sete encontros com as seguintes atividades: conversas
sobre a África, contação de história, construção de instrumentos, práticas de música e
dança africana, aplicação de questionário e apresentação musical. De natureza
qualitativa, os encontros foram registrados em diários de campo, posteriormente
analisados com base nos referenciais metodológicos da Fenomenologia. Os resultados
indicaram a presença da inseparabilidade da música e da dança africana e seu potencial
de mobilização para o envolvimento das crianças. As atividades realizadas pelas/os
participantes foram permeadas por um ambiente de colaboração, comunicação,
lideranças, aprendizagens e cuidados pessoais. Conviver com crianças em práticas
sociais que envolvem música e dança africana na escola pode ser uma forma de
aproveitar significativamente o potencial formador da arte e favorecer o conhecimento e
reconhecimento da cultura e história do povo africano, consequentemente da nossa
formação intercultural, cujas contribuições devemos igualmente anunciar.
Palavras-chave: Práticas sociais e processos educativos; Africanidades; música e
dança.
Introdução
Ligada a variadas situações do cotidiano, a música e a dança estão presentes nos
mais remotos registros da história da humanidade. No continente africano, a música
frequentemente acompanha as dinâmicas da vida nas comunidades, relacionando-se à
diversas atividades sociais como o nascimento de uma criança, a despedida de
visitantes, a preparação da terra e a celebração da colheita.
Nas culturas africanas, marcadas fortemente pela transmissão oral de
conhecimentos e saberes, a música e a dança estão interligadas e são carregadas de
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informações sobre o modo de viver dos grupos que dançam e entoam canções, com suas
histórias sobre suas relações com a natureza, o trabalho e os seus antepassados. A
música e a dança são ainda as linguagens usadas para o divertimento e fruição da
relação entre as pessoas e entre elas e seu tempo e espaço, agregando-as e/ou por vezes
indicando os aspectos que caracterizam a comunidade, contribuindo para o
reconhecimento do pertencimento ao grupo enquanto tocam, cantam, dançam ou
participam desse momento de fruição dos sons e movimentos gerados.
Ao falarmos das culturas africanas, os tambores são importantes representações
de sua musicalidade, no entanto a música no continente africano não é constituída
apenas de tambores, mas de muitos outros instrumentos, com rítmicas diversas, riqueza
de timbres e melodias das mais sofisticadas que nos são ocultadas pelo pensamento
eurocêntrico1 de valorização e hierarquização da sua própria cultura em detrimento da
dos outros povos.
Um exemplo da exuberância musical do continente africano é o canto realizado
a várias vozes, ou seja, cantado em alturas diferentes e ao mesmo tempo, presente
também na música de diversos outros povos desde tempos ancestrais até hoje. Existem
registros de que esse modo de cantar já era praticado entre os pigmeus do Gabão e nas
aldeias do Himalaia antes de se difundir na Europa. (WISNICK, 1989).
Embora praticada por muitos povos desde a antiguidade, essa forma de cantar a
várias vozes recebeu no ocidente europeu o nome de polifonia. O termo, que surge no
contexto da música religiosa católica, não apenas atribuiu um nome ao que já existia,
mas conferiu à igreja a condição de inventora dessa prática, da mesma maneira que o
pensamento eurocêntrico fez com tantos outros conhecimentos/invenções da
humanidade.
Nos anos 1000-1100 d. C. a palavra contraponto, do latim punctus versus
punctus, começou a ser usada no Ocidente para designar a música religiosa cantada a
várias vozes, pois até então se cantava a uma só voz, em latim, sem acompanhamento
instrumental e apenas os homens o faziam. Neste modo de cantar, as várias vozes se
sobrepunham a partir de uma voz base, que era o tenor. Cantar a várias vozes resultava
1Henrique Dussel (2007) chama de eurocêntrica a forma de compreender a realidade tomando como
centro histórico-geográfico as culturas europeias, sejam elas localizadas na própria Europa, sejam
transplantadas para outros países, tais como EUA, Austrália, África do Sul.
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em um tecido musical polifônico, ao contrário da monodia tão em voga na Europa nos
séculos anteriores. O advento da polifonia não era novidade nem mesmo no ocidente
europeu, pois já existia em alguns lugares da Europa antes de ser descrita como tal na
música litúrgica (GROUT; PALISCA, 1988).
Dessa forma, o termo contraponto nos sugere uma coerência com o pensamento
eurocêntrico, enquanto paradigma fundado em uma pretensa superioridade de sua visão
de mundo, coerente com a proposta de sobreposição de vozes, que implica na existência
de hierarquias, além disso, nos parece uma forma limitada de compreender a polifonia,
representando mais precisamente a polifonia na música da Europa ocidental.
Estas reflexões sobre os componentes ideológicos e paradigmáticos do
eurocentrismo nos fizeram abandonar uma ideia inicial de que a abordagem das
africanidades na escola pudesse ser representada metaforicamente pela polifonia,
sugerindo o canto a várias vozes nos componentes curriculares brasileiros e dessa
forma, propondo uma mudança no cenário onde apenas as vozes europeias e
estadunidenses ecoam. Nas escolas brasileiras, como consequência de nossa
colonização ainda nos dias de hoje os conteúdos europeus e estadunidenses representam
uma quase homogeneidade.
Nesse artigo sugerimos que a abordagem das africanidades na escola agregue
pontos de vistas diferentes, mas sem sobrepor vozes ou hierarquizar conhecimentos e
saberes, buscando consonâncias harmônicas. O objetivo desse artigo é o de comunicar a
possibilidade de abordar os aportes de africanidades na escola por meio da música e da
dança, como uma estratégia para a implementação da Lei 10.369/2003. Essa Lei
modifica a lei de diretrizes e bases para a educação nacional, tratando da
obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, posteriormente
complementada pela Lei nº. 11.465 de 2008 que inclui a obrigatoriedade do ensino da
história e cultura indígena (BRASIL, 2004; 2008).
Compreendemos as africanidades brasileiras como as expressões de culturas
de raízes africanas que estão diretamente vinculadas às visões de mundo próprias do
continente africano, e que, portanto, se constituem nos processos que geraram as
manifestações da cultura popular, não apenas no uso de gestos ou instrumentos
presentes na música e nas danças, mas também nos valores presentes na produção de
tais práticas (SILVA, 2009).
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Para isso buscamos descrever uma experiência com as africanidades na música e
na dança realizada em uma escola localizada no interior do estado de Minas Gerais, a
partir da fundamentação teórica proveniente do curso de Pós-graduação em Educação2
da Universidade Federal de São Carlos.
Dançando e cantando as africanidades na escola
A abordagem das Africanidades no ambiente escolar requer o reconhecimento
das possíveis diferenças entre as maneiras de ver o mundo e as relações humanas
próprias dos povos descendentes de africanos e as estabelecidas no projeto de sociedade
em que se insere a escola brasileira, que de acordo com Silva (2009, p.26), “estudar
Africanidades Brasileiras significa estudar um jeito de ver a vida, o mundo, o trabalho,
de conviver e lutar por sua dignidade, próprio dos descendentes de africanos”.
No entanto, é frequentemente difundida e naturalizada no ambiente escolar a
escassez de conteúdos que favoreçam o reconhecimento da diversidade étnica que
constitui a nossa sociedade. Em consequência disso, tornam-se escassas também as
oportunidades de abordagem das relações etnicorraciais e das possibilidades de
combater as perversas ideologias racistas e as práticas de discriminação reproduzidas
pela escola, tão veladas quanto se apresentam em diferentes setores da sociedade.
De acordo com Silva (2003, p.28) entre os princípios propostos por uma
pedagogia antirracista, que pode ser conduzida pela abordagem das africanidades na
escola, está o estudo das diferentes matrizes culturais que constituem a cultura brasileira
“que nos encontros e desencontros de umas com as outras se refizeram e hoje não são
mais gegê, nagô, bantu, portuguesa, japonesa, italiana, alemã, mas brasileira de origem
africana, européia, asiática”.
A esse respeito Ribeiro (2002, p.150) afirma que “Crianças brasileiras de todas
2As discussões e a literatura que permeiam este artigo foram parte constituinte da
disciplina intitulada Teoria da Educação: aportes de africanidades, ministrada pela
professora Dra. Maria Waldenez de Oliveira e pelo professor Dr. Luiz Gonçalves
Junior, com a participação da professora convidada Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São
Carlos, no segundo semestre de 2011.
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as origens étnico-raciais têm o direito ao conhecimento da beleza, riqueza e dignidade
das culturas negro-africanas. Jovens e adultos têm o mesmo direito” e questiona: “Que
silêncio tão lamentável é esse, que torna invisível parte tão importante da construção
histórica e social do nosso povo, de nós mesmos?”.
Além de se apresentar como um meio de reconhecimento da identidade
brasileira, a música e a dança africana podem sugerir um ambiente de afirmação das
diferenças integrada a uma perspectiva de valorização da diversidade humana, onde ser
diferente é, sobretudo, um direito de ser do humano, pois, como afirma Santos (2005), é
preciso que tenhamos o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza, e o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza.
No entanto, essa possibilidade só se realiza enquanto contextualizada, ou
seja, a presença da música e da dança na escola, por si não garante a problematização da
realidade em que se insere e não é capaz de sozinha trazer à tona as contribuições e
influências da cultura e história africana no Brasil. Para que isso ocorra é necessário que
educadoras e educadores se comprometam com a mudança de posturas e crenças
difundidas no sistema escolar que hierarquizem e desqualifiquem, sobretudo as culturas
de matrizes africanas.
Presente nas culturas, a hierarquização é uma forma de ideologia que
naturalizada nos dá sempre uma única resposta, produzida por alguém que tem
vantagens e privilégios buscando ser dominante para mantê-los. Hierarquizar é fazer
valer uma única voz, exaltando-a em detrimento das demais.
A partir do conceito de cultura proposto por Freire (1979), de que cultura é toda
criação humana, cuja produção é resultado da ação de mulheres e homens em sua
interação intencional com a natureza, compreendemos que a cultura pode ser
representada pelo nosso jeito de ser e viver, ou seja, nossos modos de falar, vestir,
brincar, cultivar a terra, se relacionar com as pessoas tanto quanto pelas nossas formas
de fazer música, cantar e dançar.
Bosi (2012) reconhece a existência e convivência de diferentes culturas, suas
intersecções, novas tecnologias e diferentes meios a seu acesso, considerando que são
muitas as interferências entre os modos de ser e de viver, costumes, hábitos, gostos,
crenças do povo brasileiro. Para o autor, não existe cultura no singular, mas
singularidades de culturas, consideradas as diferenças e particularidades de um povo.
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Nessa perspectiva, a proposta da música e dança africana na escola nos remete a
uma superação da ideologia dominante e eurocêntrica que nos impõe um padrão
historicamente monoculural. Um projeto educador emancipatório deve conduzir
mulheres e homens, a tomar consciência de si, do outro e da natureza, de modo a
transpor a posição de refém para a de sujeito da própria vida.
A corporeidade africana
Em uma visão de mundo africana o corpo não está dissociado nem em si mesmo,
nem em suas relações com a comunidade, ele está dentro do mundo. Altuna (1985,
citado por OLIVEIRA, 2004, p. 122) refere que nessa perspectiva de corporeidade, “o
indivíduo, a comunidade e o universo não vivem em justaposição, mas definem-se
como uma comunhão alimentada pelos incessantes intercâmbios da vida”.
Assim, apenas o coletivo é que pode atribuir significados para o “ser-no-mundo”
dos indivíduos que compõem a comunidade. Para o pensamento africano toda a vida é
interconectada e interdependente, em todos os seus aspectos, e toda a comunidade deve
viver em harmonia possibilitando a existência do outro (TEDLA, 1995).
O corpo, entendido no pensamento africano em sua capacidade de comunicar
suas experiências (OLIVEIRA, 2004) pode ser também o ponto de partida para
observamos as diferenças entre as visões de mundo africanas e as que se estabelecem no
sistema escolar brasileiro, sobretudo nos modos de relacionamento entre as pessoas. A
atitude de comunhão frente ao mundo e ao outro, se dá através da sensibilidade que
descobre o outro, na sua subjetividade, pela qual pode alcançar um elevado estágio de
consciência. O corpo é uma totalidade. O corpo se manifesta em gestos, posturas,
sentimentos, inteligência, expressando e comunicando sua presença.
Nas expressões da música e dança de matrizes africanas, corporeidade,
musicalidade, oralidade, circularidade e ancestralidade se manifestam conjuntamente
como saberes herdados das culturas africanas, fundamentais para a compreensão do
modo de ser e de viver dos povos africanos e afrodescendentes.
A música na África ultrapassa a ideia que temos no ocidente que é a de tocar um
instrumento, porque o corpo de quem toca ultrapassa o corpo do instrumento. A riqueza
da música e da dança africana está presente também na forma integrada de realizá-la, o
que difere do fazer musical ocidental. Ainda hoje no Brasil, música e dança são, muitas
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vezes, ensinadas e aprendidas de maneira dicotomizada, em processos onde gestos e
elementos musicais são geralmente abordados separadamente. Os procedimentos
metodológicos de ensino da música no ocidente, sobretudo nos conservatórios, além de
fragmentados são geralmente baseados na execução instrumental e na leitura musical.
Quando tratamos de estudos em aportes de africanidades não há espaço para a
presença de pensamentos dicotômicos como profano e sagrado, popular e erudito,
passado e presente, interior e exterior, vida e morte ou música e dança. Dessa forma, a
noção de corpo é a de um todo indivisível e não de um corpo biológico e fisiológico
sujeito à consciência, já que o corpo não é servo da consciência.
Para Merleau-Ponty (1994) corpo e consciência não são partes isoladas, não há
como atribuir determinada sabedoria à consciência ou ao corpo, pois ambos agem
conjuntamente, e, a consciência ocupa espaço na dimensão do comportamento do corpo
vivido e experimentado. Esse corpo do sujeito perceptivo é o corpo próprio ou corpo
fenomenológico, que é o corpo da experiência do corpo. A consciência é
originariamente “eu posso” e não “eu penso”.
O nosso corpo faz de si próprio o objeto que vai ao encontro das coisas, é
“habitado por uma potência de objetivação que trabalha na constituição dessas coisas,
tratando os dados sensíveis como representativos uns dos outros, animando e ordenando
estes mesmos dados, centrando-os numa pluralidade de coisas vividas e experimentadas
num núcleo inteligível” (MARTINS, 2000, p. 28).
Uma experiência de música e dança africana na escola
Entre uma série de atividades constantes do projeto de extensão universitária
“(Re) Cortando papéis, criando painéis” 3 desenvolvemos, com crianças entre nove e
onze anos de idade, vinte estudantes ao todo, sendo doze meninas e oito meninos, de
uma escola pública localizada na cidade de Ituiutaba/MG, uma intervenção com música
e dança africana, que constou de sete encontros. As atividades desenvolvidas foram
algumas perguntas empreendidas ao grupo; conversas sobre o continente africano –
povo, raça, cor, costumes, países e capitais; realização da música Taa-taa-te
3 O projeto “(Re) Cortando papéis, criando painéis” é uma atividade de extensão universitária criada na
cidade de Ituiutaba, Minas Gerais, no ano de 2007, envolvendo uma Universidade, uma escola de música
e uma escola de educação básica.
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(CARVALHO, 2010) e dança; contação de uma lenda africana intitulada O menino
grávido (CARREIRA, 2008); confecção de instrumentos musicais (agogô, caxixi, pau
de chuva e tambor) e execução destes e de xilofones e metalofones; criação de
desenhos; registro de imagens e sons (fotos e filmagens) e apresentação musical.
Metodologia
Os procedimentos metodológicos para a coleta e análise dos dados dessa
intervenção, após assinados os termos de consentimentos, com respectivos cognomes,
foram iniciados com a aplicação de perguntas idênticas no início e no final das
atividades. As perguntas se referiram aos dados pessoais das/os estudantes e à
solicitação das seguintes informações: 1) O que é África?; 2) Cite cinco ou mais países
africanos e suas respectivas capitais; 3) Comente três músicas que você gosta; 4) Cite
músicas africanas que conhece; 5) Cite esportes, jogos, brincadeiras que você mais
gosta; 6) Cite jogos africanos.
Todas as atividades foram rigorosamente descritas em diários de campo. Para
Bogdan e Biklen (1991, p. 151), as notas de campo são “o relato escrito daquilo que o
investigador ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da recolha e reflectindo sobre os
dados de um estudo qualitativo”. Já os critérios de análise constaram de: análise
ideográfica - levantamento e agrupamento das unidades de significados; análise
nomotética – interpretação e categorização dessas unidades; modalidade de pesquisa
que possibilita “acesso ao mundo-vida e ao pensar do sujeito” (MACHADO, 1994,
p.41), espreitando outras possibilidades de ver e de sentir o outro nas relações
vivenciadas, porque a experiência é percebida de modo consciente por aquele que a
executa, e não por outro qualquer (MARTINS; BICUDO, 2005).
Analisados os diários de campo e evidenciadas as unidades de significados,
emergiram seis categorias: Conhecimentos sobre África; Envolvimento nas atividades;
Música e movimento: O corpo na música africana; Espírito de comunicação,
colaboração e liderança; Cuidados com a aparência.
Da categoria “Conhecimentos sobre África”, os/as estudantes pouco conheciam
de África em relação a país/continente, países/capitais, jogos/brincadeiras, exceto
Quiko, que disse ser o futebol, o Kung Fu e a capoeira de origem africana, além de
cantar: “Zum, zum, zum, capoeira mata um, Zum, zum, zum, capoeira mata um!”
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(Diário II,4). Percebia-se a noção de uma África como lugar de pessoas pobres e
magras: “na África os meninos são bem magrinhos” (Diário V, 3); “na África as casas
são pobres” (Diário VI, 3). Ser negro era ser marrom bombom, moreninha. No último
encontro, na apresentação da canção Taa-taa-te para outros estudantes da mesma escola,
finalizada a „coda‟ e lançada a pergunta: “De qual continente é esta apresentação?”,
dentre “Europa, Ásia, África”, a plateia inteira gritou: “África!” (Diário VII, 9).
Do “Envolvimento nas atividades”, a prontidão e entrega foram constantes.
Logo perguntavam: “O quê que vamos fazê hoje?” (Diário VI, 2), e já se organizavam
em círculo. Cantando-tocando-dançando a canção africana do país de Gana, “Taa-taa-
te”, os/as estudantes participaram com entusiasmo, alegria, dedicação, vontade e
interesse. Aproximavam-se da roda musical, entoando a melodia, mexendo os pés num
ritmo diferente, dançando, tudo ao mesmo tempo. Tocavam caxixis, chocalhos e pau de
chuva, ajudavam-se uns aos outros, no ritmo, nas notas musicais, no tempo da música,
nas entradas musicais..., uns se faziam de maestros, outros instrumentistas, sem brigas e
mal entendidos, de “uma forma prazerosa, sem gasto de energia que não fosse outra
coisa senão a música” (Diário V, 2). Perguntados sobre a “experiência de falar e fazer
música da África”, responderam ser “bom, maravilhoso, legal” (Diário VI, 4). A letra da
canção (Diário III, 8) foi escrita na lousa por um dos estudantes, antes mesmo que a
professora/pesquisadora assim fizesse.
Sobre “Música e movimento: O corpo na música africana”, a inseparabilidade
música e dança foi uma constante. Cantar/tocar/dançar eram ações interligadas,
emaranhadas, em comunhão, em verdadeira interatividade. Uns aprendiam com os
outros, olhando-se e movimentando-se: “O Quiko olhou intensamente para os meus pés,
e entrava e saía da brincadeira, até conseguir cantar e fazer o ritmo ao mesmo tempo”;
“Uma das meninas, não teve a menor dificuldade, bem solta cantava e ritmava o corpo
todo, num „sacolejar‟ muito gostoso de ver”; “Escrevemos os nomes das notas no chão e
as crianças cantavam e colocavam as mãos e, em seguida, os pés, nas respectivas notas
musicais” (Diário III, 4,5,6).
Em relação ao “Espírito de comunicação, colaboração e liderança”, dois dos
estudantes, Quiko (negro) e Minotauro (branco de avó materna negra) tomaram a frente,
no processo de aprender a canção africana, a dança, os diferentes ritmos, a construção e
execução dos instrumentos, e, ainda, carregando livros, sacolas, aparelho de cd,
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instrumentos musicais, pesquisando, coletando e organizando os materiais para a
construção dos instrumentos (copos de iogurte e de Yakult, latas de cerveja e de
refrigerantes, caixa de papelão, tubos de papelão, sementes grandes, grãos de feijão),
organizando e coordenando a apresentação musical.
Dos “Cuidados com a aparência”, os/as estudantes se prepararam no dia da
apresentação (último encontro), usando roupas limpas, cabelos penteados e um dos
meninos, também negro, com a cabelo todo aparado e ao lhe perguntar se o corte de
cabelo era em função da apresentação, ele disse que sim (Diário VII, 1).
Considerações
Dada a experiência de aportes de africanidades com música e dança africana na
escola, analisadas as categorias, os arquivos fotográficos e audiovisuais, evidenciaram-
se as seguintes palavras-chave: inseparabilidade música e dança (dançar, cantar, tocar se
constituem em um só ato); ação em movimento (dançar, cantar, tocar implicando-se
mutuamente); circularidade (dançar, cantar, tocar como um continuum); solidariedade
(ajuda mútua, colaboração, força potente para novos aprendizados).
Para Carlos Kater (2004, p.47), ser capaz é estímulo potente, é a “chama interior”,
é o “brilho nos olhos”, um diferencial na educação. Práticas como essa, onde a música,
a dança são fortes componentes de agregação, humanizam as pessoas, constituem os
“grupos-sujeitos” de Costa (1997), onde cada um se prolonga no outro. É tanto o
“desenvolvimento da musicalidade e da formação musical quanto o aprimoramento
humano dos cidadãos pela música” (KATER, 2004, p.46).
Laços de boa convivência, amorosidade e encantamento se estabeleceram nessa
prática, humanizadora e potencialmente formadora. Na mobilidade das ações pode-se
sim, construir a solidariedade, onde o „diálogo‟ e o „ato de fé‟ mostram-se atitudes
necessárias àqueles que participam, envolvidos numa só ação, expressando-se.
(FREIRE, 2004).
Conviver e por isso participar com crianças em práticas sociais que envolvem
música e dança africana, mesmo que sejam no espaço da escola, pode ser uma forma de
aproveitar significativamente o potencial formador da arte. Os/as estudantes, envolvidos
nas atividades por gosto e vontade próprias, satisfeitos com o processo e produção,
orgulhosos de si mesmos, pareciam mostrar que algo aconteceu, a confirmação de um
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conceito em Africanidades, do povo africano, cuja história e contribuições não podemos
silenciar: A afirmação da vida.
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