caderno temÁtico conflitos sociais na amÉrica latina

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CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA: UM ESTUDO A PARTIR DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS E POLÍTICAS CENTRO DE ESTUDOS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS OBSERVATÓRIO DE FENÔMENOS TRANSNACIONAIS NAS AMÉRICAS (CERI-OFTA) FACULDADES DE CAMPINAS Em parceria com EMBRAPA MONITORAMENTO POR SATÉLITE GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (GSI-PR) SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS ABRIL DE 2011

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Page 1: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

CADERNO TEMÁTICO

CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA:

UM ESTUDO A PARTIR DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS E POLÍTICAS

CENTRO DE ESTUDOS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

OBSERVATÓRIO DE FENÔMENOS TRANSNACIONAIS NAS AMÉRICAS

(CERI-OFTA)

FACULDADES DE CAMPINAS

Em parceria com

EMBRAPA MONITORAMENTO POR SATÉLITE

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (GSI-PR)

SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS

ABRIL DE 2011

Page 2: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA:

UM ESTUDO A PARTIR DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS E POLÍTICAS

Coordenação Geral do CERI-FACAMP

Professor Licio da Costa Raimundo

Coordenação Geral do CERI-OFA

Professor Alcides Eduardo Reis Peron

Professora Érika Laurinda Amusquivar

Professora Patrícia Nogueira Rinaldi

Coordenação das Pesquisas do Caderno Temático

Professora Érika Laurinda Amusquivar

Pesquisadores CERI-OFTA

Caio Felipe Stockler

Gabrielle Fernandes Teixeira

Henrique de Arruda Berengan

Marcela Laurito Gagliardi

Mateus Ubirajara Silva Santana

Rodrigo Di Próspero Jourdain

Pesquisa elaborada através da parceira institucional do Centro de Estudos de Relações Internacionais (CERI) das Faculdades de Campinas (FACAMP) com a EMBRAPA – Monitoramento por Satélite e com a Secretaria de Acompanhamentos e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (SAEI-GSI/PR).

Page 3: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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Ficha Catalográfica Elaborada pela Biblioteca da Facamp

Conflitos sociais na América Latina: um estudo a partir das

relações econômicas e políticas / coordenação de Érika Laurinda Amusquivar. – Campinas: [s.n.], 2011.

99f. Inclui Bibliografia

1. Socialismo. 2. Neoliberalismo. 3. América Latina. I. Amusquivar, Érika Laurinda. II. Centro de Estudos de Relações Internacionais. III. Observatório de Fenômenos Transnacionais

nas Américas. IV. Título.

CDD: 320.51

Page 4: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaríamos de reconhecer a dedicação e a excelência dos pesquisadores do

Observatório de Fenômenos Transnacionais nas Américas (OFTA) do Centro de Estudos de

Relações Internacionais (CERI), que são alunos do curso de Relações Internacionais da FACAMP.

Parabenizamos a todos pela perspicácia e criatividade na redação dos artigos, na exposição dos

temas no Seminário “América Latina: Temas da Agenda do Século XXI”, e na participação e empenho

nos demais projetos conduzidos internamente ao longo do ano letivo de 2010. Dentre tais projetos,

destacam-se: a consolidação da Newsletter CERI-OFTA como um meio de comunicação e debate

dos temas internacionais correntes com a comunidade de alunos e professores do curso de Relações

Internacionais da FACAMP; e a marcante participação dos pesquisadores do CERI-OFTA que

apresentaram seus trabalhos na I Jornada dos Estudantes organizada pela Asociación

Latinoamericana de Ciencia Política, realizada em Buenos Aires em julho de 2010.

Depois, mais uma vez gostaríamos de agradecer o avanço da parceria com a Secretaria de

Acompanhamento e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da

República (SAEI-GSI-PR), pela crescente oportunidade de incluir as análises realizadas pelos

pesquisadores do CERI-OFTA em sua missão de permanente estudo e acompanhamento dos fatos

relevantes para a inserção internacional do Brasil. Somos gratos em especial à Srta. Paula Lima, à

Srta.Carla Checchia, ao Secretário José Alberto Cunha Couto e ao Secretário-Adjunto Ministro José

Antônio de Castello Branco de Macedo Soares, que não mediram esforços para participar de nosso

Seminário e abrilhantá-lo com suas pertinentes considerações sobre os assuntos tratados.

Igualmente, agradecemos à Embrapa Campinas Monitoramento por Satélite, nas figuras dos

Senhores Dr. Evaristo Eduardo de Miranda e Mateus Batistella, cuja parceria possibilitou ao CERI-

OFTA não apenas realizar pesquisas de importante escopo para as relações internacionais do Brasil

quanto materializá-las sob a forma de bolsas de estágios na própria Embrapa para alguns de nossos

pesquisadores. Agradecemos enormemente a oportunidade dada aos alunos da FACAMP de

desenvolver profissionalmente suas pesquisas no interior dessa instituição que vem contribuindo

enormemente para uma gestão territorial que possibilite uma maior inserção internacional de nosso

país.

Agradecemos também aos professores do Curso de Relações Internacionais da FACAMP,

que contribuem, direta ou indiretamente, para a realização de nossas pesquisas. Destinamos um

agradecimento especial ao Professor Cesar Augusto Lambert de Azevedo, que neste ano contribuiu

enormemente com as atividades do CERI-OFTA coordenando diretamente um eixo de pesquisa

sobre a China, e cuja participação foi fundamental para a consolidação do debate deste tema no

Observatório. Ademais, não poderíamos deixar de agradecer aos Professores Ricardo Fábio Eduardo

Iaderozza, Fábio Luis Barbosa dos Santos, Ricardo Buratini e Rodrigo Sabbatini, que prontamente

aceitaram nosso convite em participar das mesas que compunham nosso Seminário, tornando

nossas discussões muito mais profícuas e multidisciplinares.

Page 5: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

5

Finalmente, agradecemos às Faculdades de Campinas (FACAMP), em especial ao

Coordenador do Curso de Relações Internacionais e Coordenador do Centro de Estudos em

Relações Internacionais, Professor Licio da Costa Raimundo, pela constante dedicação e apoio

institucional às nossas atividades; e à direção da FACAMP, nas figuras dos Professores João Manuel

Cardoso de Mello, Liana Aureliano e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, pelo sofisticado sistema de

ensino desenvolvido por eles na FACAMP e que nos incita diariamente ao aprofundamento da

pesquisa e do pensamento crítico sobre os dilemas do desenvolvimento latino-americano.

Page 6: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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ÍNDICE

PREFÁCIO: BALANÇOS E PERSPECTIVAS PARA A AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI .............................. 7

SOCIALISMO DO SÉCULO XXI – MODELO ALTERNATIVO DE DESENVOLVIMENTO? UM ESTUDO A PARTIR DOS RESULTADOS E PERSPECTIVAS NA VENEZUELA .............................................................................. 10

RESUMO .............................................................................................................................................. 10 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 11 VENEZUELA NOS ANOS 90: CRISE NEOLIBERAL E POLARIZAÇÃO ......................................................... 13 BOLIVARIANISMO: NOVO MODELO POLÍTICO-ECONÔMICO .............................................................. 14 PETRÓLEO: A FORÇA E A FRAQUEZA DO PROJETO BOLIVARIANO ....................................................... 18 UMA ALTERNATIVA BOLIVARIANA PARA AS AMÉRICAS? .................................................................... 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................... 28 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 30

O CONFLITO ARMADO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: UM REFLEXO DA INSTABILIDADE SOCIOECONÔMICA NA COLÔMBIA E NO PARAGUAI ........................................................................................... 34

RESUMO .............................................................................................................................................. 34 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 35 AS RELAÇÕES SOCIAIS EM QUE SE INSEREM AS FARC .......................................................................... 38

A normalidade do estado de exceção na Colômbia com o neoliberalismo ..................................... 40 PARAGUAI: O CONFLITO SOCIAL MILITARIZADO ................................................................................. 46

A manifestação do Exército Popular Paraguaio (EPP) .................................................................... 47 Estado de exceção paraguaio: a tensão entre o Estado e a sociedade .......................................... 51 Brasil e Paraguai: debate sobre o EPP e a crise social paraguaia................................................... 54

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................... 55 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 55

A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA NO NEOLIBERALISMO PERIFÉRICO: A AÇÃO DO MST NO MEIO RURAL E DOS PIQUETEROS NOS CENTROS URBANOS ........................................................................................................ 60

RESUMO .............................................................................................................................................. 60 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 61 A ERA NEOLIBERAL NA ARGENTINA E NO BRASIL ................................................................................ 62 A DINÂMICA DO CAPITALISMO SOB A ÓTICA DA RELAÇÃO ENTRE CAMPO E CIDADE ......................... 64 O MST E AS DEMANDAS SOCIAIS ......................................................................................................... 67

O Brasil em números ....................................................................................................................... 68 Modernização agrícola ................................................................................................................... 76 Do campo à cidade; da cidade ao campo ....................................................................................... 78 O MST e o governo Fernando Henrique Cardoso ............................................................................ 80 O MST e o governo Luiz Inácio Lula da Silva ................................................................................... 81

O CASO DOS PIQUETEROS ................................................................................................................... 86 A experiência neoliberal na Argentina ............................................................................................ 86 Surgimento dos Piqueteros: motivações econômicas, sociais e políticas ....................................... 88 Mecanismos e formas de ação ....................................................................................................... 89 Os diferentes grupos piqueteros e sua relação com o Estado ........................................................ 90 Da ditadura política à ditadura de mercado: a criminalização do movimento .............................. 91 O Movimento em perspectiva ......................................................................................................... 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................... 95 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 97

Page 7: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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PREFÁCIO: BALANÇOS E PERSPECTIVAS PARA A AMÉRICA

LATINA NO SÉCULO XXI

Alcides Eduardo Reis Peron1

Érika Laurinda Amusquivar2

Patrícia Nogueira Rinaldi3

Coordenadores CERI-OFTA

A primeira década do século XXI significou um período de intensas transformações e desafios

para os países para a América Latina, historicamente marcados pela problemática do

desenvolvimento econômico e social e pela tentativa de uma maior inserção internacional. Assim,

depois de ter passado a última década do século XX como o laboratório das experiências neoliberais,

a América Latina tomou rumos muito particulares. O objetivo geral desse trabalho é, pois, o de

realizar um balanço desse primeiro decênio com o objetivo de apontar quais serão os principais

determinantes e problemas que a América Latina e, sobretudo o Brasil, enfrentarão na busca por um

maior desenvolvimento e inserção internacional na segunda década do século XXI que se anuncia.

Em um primeiro aspecto, a América Latina – e mais particularmente a América do Sul –

vivenciou, no início desse novo século, uma mudança em sua situação política no que se refere à

vitória de vários partidos e coalizões políticas de esquerda, de tendências nacionalistas,

desenvolvimentistas ou socialistas. Essa mudança política, embora não tenha resultado em uma

transformação das políticas macroeconômicas ortodoxas, indicou, por outro lado, uma mudança

político-ideológica, particularmente no que se refere à orientação das políticas externas dos governos

da região, pautada principalmente na crítica dos modelos liberais, no diálogo entre os países latino-

americanos e na retomada de uma autonomia política e econômica que promova o desenvolvimento

da América Latina.

Outra característica dessa mudança política foi a tentativa de retomar a capacidade de

conduzir o próprio desenvolvimento econômico e determinar a sua inserção internacional por meio da

nacionalização e estatização dos recursos naturais e energéticos, especialmente do petróleo e do

gás. Muito embora, até o presente momento, tais nacionalizações não tenham possibilitado uma real

1 Alcides Eduardo dos Reis Peron é Mestrando em Política Cientifica e Tecnológica pela UNICAMP, Professor do Curso de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas e Coordenadora do CERI-OFTA/FACAMP. 2 Érika Laurinda Amusquivar é Mestre em Ciência Política pela UNICAMP, Professora do Curso de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas e Coordenadora do CERI-OFTA/FACAMP. 3 Patrícia Nogueira Rinaldi é Mestre em Ciência Política (com foco em Economia Política Internacional) pela UNICAMP, Professora do Curso de Relações Internacionais da FACAMP e Coordenadora do CERI-OFTA/FACAMP.

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alteração da estrutura e do modelo tradicional de inserção internacional das economias latino-

americanas, esse movimento tem possibilitado a manutenção de uma política externa mais assertiva

por parte desses países.

Tais mudanças coincidiram com um novo ciclo expansionista da economia mundial que

perdurou até o ano de 2008, o que permitiu a retomada do crescimento das economias da região. Por

um lado, como contraponto ao modelo de nacionalização e estatização, a América Latina se

consolidou como uma grande receptora de investimentos externos diretos, e consequentemente,

como uma região propícia à expansão das empresas transnacionais, em oposição ao fortalecimento

das empresas nacionais, talvez com exceção ao próprio Brasil, que aproveitou o ciclo expansivo para

internacionalizar suas empresas, sobretudo na região do Mercosul.

Por outro lado, esse crescimento pujante teve a significativa contribuição da China, que se

tornou uma das principais demandantes de commmodities agrícolas e energéticas da região,

puxando os preços desses produtos para cima. Isso permitiu um relativo fortalecimento da

capacidade fiscal dos Estados latino-americanos e permitiram tanto a redução da fragilidade externa

do continente diante da crise financeira de 2008 quanto possibilitou o financiamento de várias

iniciativas regiões de integração da infraestrutura energética e de transporte. Nesse sentido, essa

primeira década coloca uma nova potência capaz de determinar as trajetórias de crescimento latino-

americano, que é a China.

Finalmente, a despeito de essa década ter sido marcada por uma recuperação positiva da

inserção internacional dos países latino-americanos, não se pode deixar de enfatizar a continuidade

de graves problemas relacionados à heterogeneidade social do continente, e que se desdobram em

problemas de violência e fraca coesão social. Referimo-nos particularmente ao problema do

narcotráfico e das demais facetas do crime organizado, que nesse mesmo período, consolidou-se

como uma rede econômica transnacional, capaz de mobilizar somas vultosas de capital e colocar

grandes ameaças à chamada segurança nacional.

Esses elementos compõem as principais mudanças que marcaram o primeiro decênio do

século XXI para a América Latina, e a partir deles, consideramos fundamental traçar seus

desdobramentos para a próxima década, em termos das oportunidades e desafios que se recolocam

para a região em termos de uma inserção internacional mais pujante e um projeto mais sólido de

desenvolvimento. É a partir dessa problematização que discutiremos a posição da América Latina no

sistema internacional a partir desse novo século.

À luz desse cenário em que a América Latina se insere, este caderno especial, intitulado

Conflitos sociais na América Latina: um estudo a partir das relações econômicas e políticas,

busca refletir sobre os entraves de desenvolvimento da América Latina segundo um prisma social.

Dado que a importação de modelo de desenvolvimento econômico neoliberal foi imposta aos países

latino-americanos, o resultado é que tal fato agravou ainda mais a situação social nesses países. A

relação entre Estado e sociedade civil foi se revelando um tanto quanto tensa e por vezes

inconciliável, o que tornou o desenvolvimento nacional condicionado não só pelos efeitos das

políticas econômicas adotadas, mas também pela não-resolução de conflitos internos. Essa relação,

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portanto, é consubstanciada na violência que, por sua vez, aparece nos dois vértices – desde a

ausência do cumprimento Estado de seus deveres para com a sociedade civil, até a contestação (por

vezes armada) por parte da sociedade contra o modelo verticalizado de políticas econômicas

adotadas no final do século XX.

Esse artigo busca assumir, portanto, que a América Latina pode ser uma região capaz de

reverter tal situação, e se propõe a revisitar o ponto nevrálgico das relações na América Latina: sua

sociedade. Para tanto, deve-se fazer um balanço sobre as debilidades que se instauraram na região

para que as estratégias capazes de retomar o sonho do desenvolvimento não passe apenas pelo

crescimento econômico, mas pelo desenvolvimento social através da relação simbiótica entre Estado

e sociedade. Nesse novo século XXI surge uma nova oportunidade, mas ao mesmo tempo um novo

dilema: como alcançar a soberania latino-americana tanto no escopo político quanto econômico?

Esse estudo visa responder a tais questões pela ótica dos conflitos sociais com cinco estudos de

caso em diferentes países – Venezuela, Colômbia, Paraguai, Argentina e Brasil – mapeando a

natureza dos principais entraves ao desenvolvimento e refletindo sobre as perspectivas para as

próximas décadas desse século XXI.

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SOCIALISMO DO SÉCULO XXI – MODELO ALTERNATIVO DE

DESENVOLVIMENTO? UM ESTUDO A PARTIR DOS RESULTADOS

E PERSPECTIVAS NA VENEZUELA

Rodrigo Di Próspero Jourdain ([email protected])

Henrique de Arruda Berengan ([email protected]) 4

Orientação: Érika Laurinda Amusquivar5

Abril de 2011

RESUMO

A herança histórica de subdesenvolvimento na América Latina permitiu que um projeto alternativo

pudesse ser pensado na Venezuela. A partir do governo do presidente Hugo Chávez, o projeto de

desenvolvimento igualitário baseado nos preceitos do intitulado Socialismo do século XXI foi

construído, no qual os valores humanos e sociais são prioridades, acima da acumulação de capital.

Por outro lado, o processo de reforma dos dois pilares da sociedade moderna – Capitalismo e

Democracia – por meio da alteração dos mecanismos de funcionamento da sociedade, apresenta

potencial de difusão pelo subcontinente, como observado na Bolívia, com sua proposta de formação

de um Estado Plurinacional, integrado e participativo. Ao mesmo tempo, o projeto venezuelano do

Socialismo do século XXI permaneceria inserido em um mundo capitalista, e só conseguiria se

manter porque, paradoxalmente, participaria ativamente dentro de tal modo de produção, obtendo

recursos necessários para sua revolução por meio da exportação de commodities abundantes: o

petróleo da Venezuela e o gás natural da Bolívia. Ambos os países são considerados extremistas,

antidemocráticos e agressivos pela comunidade internacional, e o interesse do capital, a diversidade

étnica e a divergência de interesses entre o establishment liberal e as iniciativas de esquerda são os

grandes obstáculos a estes novos modelos de sociedade. Amparados por suas significativas reservas

de combustíveis fósseis, ambos os Estados buscam promover suas reformas de redistribuição de

renda, erradicação da pobreza e promoção do desenvolvimento humano. Mas este amparo os torna,

ao mesmo tempo, suscetíveis a constantes flutuações, colocando em questão a continuidade de suas

propostas de reforma.

PALAVRAS-CHAVE: Venezuela; Bolívia; Socialismo do século XXI; Modelo alternativo de

desenvolvimento; Bolivarianismo.

4 Rodrigo Di Próspero Jourdain e Henrique de Arruda Berengan são, respectivamente, alunos do 3º e 2º anos de graduação em Relações Internacionais e pesquisadores do CERI-OFTA / FACAMP Observatório de Fenômenos Transnacionais nas Américas do Centro de Estudos de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas. 5 Érika Laurinda Amusquivar é Mestre em Ciência Política pela UNICAMP, Professora do Curso de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas e Coordenadora do CERI-OFTA/FACAMP.

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INTRODUÇÃO

Os desdobramentos recentes na Venezuela apontam para um movimento político, econômico

e social que se apresenta como uma nova proposta de socialismo denominada Bolivarianismo.

Apesar de se apresentar com um cunho socialista, revolucionário, planificador da economia e

reformulador da organização da sociedade, o movimento se define como distinto do socialismo

marxista do século XX, proposto no passado pela União Soviética e por Cuba, que pregava o fim da

propriedade privada e a completa regulação estatal sobre a economia. Isso porque a proposta

venezuelana se baseia ideologicamente em uma concepção distinta, denominada Socialismo do

século XXI, peculiar e declaradamente independente do ideário marxista-leninista. Seus preceitos não

intencionam, por exemplo, findar o modo de produção capitalista, ou o livre-mercado, mas sim

reformar-lhes e conceder-lhes características mais humanas, com preocupações para com o bem-

estar e o desenvolvimento social.

Pensado pelo próprio presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a proposta bolivariana

pretende emancipar a Venezuela, em um primeiro momento (e possivelmente a América Latina, a

posteriori), das deficiências do Capitalismo sob o jugo neoliberal, e alterar as bases da sociedade

capitalista venezuelana, passando por estratégias de desenvolvimento, rumo a uma nova sociedade,

sob uma nova lógica, mais justa e igual, sem pulverizar o antigo modelo, mas colocá-lo sobre novas

bases. Desse modo, o Socialismo do século XXI permanece inserido em um mundo capitalista, e só

consegue se manter porque, paradoxalmente, participa ativamente de tal modo de produção, obtendo

recursos necessários para a revolução por meio da exportação de sua commodity abundante: o

petróleo. A permanência da dependência de exportações, entretanto, desvia o foco do

desenvolvimento no país. Voltar-se principalmente para os mercados internacionais reduz a

possibilidade de a economia venezuelana expandir-se de modo mais endógeno, voltando-se para os

interesses internos.

Politicamente, o Bolivarianismo detém uma proposta que também se considera

revolucionária, o de uma nova democracia – a Democracia Participativa. Enquanto a Democracia

Representativa fica propensa à formação de lobbies e à sub-representação de alguns setores, em

uma prática política elitizada e alternante, a Democracia Participativa, diferentemente, é o exercício

da democracia ascendente, isto é, “de baixo para cima”, com atuação direta da população sobre

quaisquer questões, com acesso desburocratizado e direto sob a forma de referendos e outros

processos. Tal prática altera totalmente o funcionamento da sociedade, uma vez que a torna capaz

de decidir por si mesma, mas, principalmente, capaz de pôr em prática suas próprias decisões.

A partir dessas constatações e propostas promulgadas pelo Bolivarianismo, é imperativo

questionar e analisar – com base na permanência da dependência das receitas do petróleo para a

promoção do desenvolvimento almejado por esse novo modelo socialista – até que ponto a pretensão

bolivariana da reforma do sistema capitalista na sociedade venezuelana pode de fato se firmar,

realmente, como uma alternativa viável às transformações impostas à sociedade pelo Capitalismo

neoliberal, que resultou em diversas deficiências econômicas e falências sociais? E diante da

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proposta de democracia participativa, quais foram as mudanças trazidas à sociedade venezuelana? E

quais seriam as falhas e potenciais deficiências do movimento?

O projeto de reforma bolivariano, entretanto, não fica limitado à Venezuela. Prevê também a

conquista de maior autonomia frente ao centro hegemônico capitalista, se estendendo à América

Latina como um todo: a “exportação” do ideário bolivariano é uma de suas próprias égides. Livrar-se

da dependência do comércio com grandes potências e das exigências neoliberais (que, mesmo com

a promessa de promover a riqueza, beneficiam em grande parte os países desenvolvidos em busca

de novos mercados) e garantir o desenvolvimento de dentro para fora são as grandes apostas do

Bolivarianismo, por meio da promoção da integração econômica e de acordos comerciais entre os

países latino-americanos. Sua intenção é a de emancipar a América Latina da condição de periferia

do Capitalismo, e promover um desenvolvimento mais endógeno, de acordo com os interesses e as

necessidades internas6. Dessa maneira, a exportação do modelo para outros países é parte

integrante desse projeto, reforçando-o tanto no plano externo mais próximo, isto é, na América Latina,

quanto em um âmbito externo mais ampliado, isto é, a comunidade internacional. A Bolívia é o

principal país no qual o projeto bolivariano repercutiu, agregando-o para si e adaptando-o às suas

características específicas. Os ideais bolivarianos podem ser observados nas ações de Evo Morales,

presidente do país, sobretudo na promoção da política de plurinacionalismo, que intenciona a

reaproximação das diferentes etnias na conformação de uma verdadeira nação boliviana. O país,

semelhantemente assolado pelo neoliberalismo, encontrou no Socialismo do século XXI uma

alternativa de desenvolvimento promissora, capaz de reorganizar uma sociedade marcada pela

monetarização das relações sociais e pela desagregação política baseada no etnicismo.

A condição de retomada de desenvolvimento pós-neoliberalismo sob uma proposta que

busque alterar as bases políticas, econômicas e sociais de ambos os países encontra diversos

obstáculos para se consolidar. Assim, o artigo versará também sobre os limites impostos por esse

sistema, bem como sobre as debilidades das políticas sociais traçadas atualmente. O objetivo desse

estudo, portanto, é analisar os efeitos sociais na Venezuela a partir da configuração política e

econômica que o país enfrenta na primeira década do século XXI, assim como sua repercussão ao

longo da América Latina, com um enfoque mais específico na Bolívia, onde se refletiram as

potencialidades de sucesso do ideal bolivariano como uma nova praxis política na América Latina

pós-neoliberal. Para se compreender os objetivos do movimento bolivariano, é vital entender as

origens do mesmo, de modo que este artigo fará uma breve análise da conjuntura venezuelana que

permitiu a ascensão do Bolivarianismo ao poder. E após estudar o movimento em si, sua força e sua

viabilidade, serão apresentadas as perspectivas de expansão e sua possibilidade de execução para

além da Venezuela.

6 O próprio nome do movimento remete a Simón Bolívar, herói na Venezuela e em grande parte da América Latina, símbolo da luta contra a dominação externa, líder responsável pela libertação do jugo espanhol de grande parte da América do Sul, e, por isso, assumido “como o símbolo numa luta que se diz em prol dos pobres e oprimidos pelo sistema capitalista, ou seja, em prol dos países periféricos do sistema internacional.” (RUA, 2006: 15). A associação ao herói vértebra um “pensamento antimperialista, latino-americanista e integracionista, (…) pela construção, ampliação e consolidação de (…) um espaço protagonista regional” (CAMPOS, 2008: 208), e busca “identificar uma trajetória antimperialista, antioligárquica e próxima dos setores populares (...).” (AYERBE, 2008: 273).

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VENEZUELA NOS ANOS 90: CRISE NEOLIBERAL E POLARIZAÇÃO

O governo de Carlos André Pérez (1989 a 1993) é caracterizado por introduzir as práticas

neoliberais na Venezuela. Diversas medidas, como pedidos de financiamento ao FMI, sob a condição

da liberalização de importações, preços e tarifas, ajustes fiscais, privatização de importantes

empresas estatais, movidas principalmente por capital estrangeiro, redução da máquina estatal e,

mais gravemente, o aumento dos encargos da dívida externa, desestabilizaram as condições de vida

e a economia do país ao longo de seu mandato.

Além disso, as flutuações internacionais no preço do petróleo, desde a década de 1980,

contribuíram para deteriorar as condições econômicas do país, extremamente dependente do

petróleo, arrasando a renda fiscal. Em 1989, a indústria petrolífera representava 17% do PIB, 87% da

pauta exportadora e 52% da arrecadação fiscal do governo (CIA, 1989). O PIB, que atingiu seu teto

no fim dos anos 1970, por conta dos crescentes preços do petróleo, caiu aproximadamente 20% ao

longo da década de 1980, regredindo os indicadores aos patamares da década de 1960, devido às

instabilidades no mercado petrolífero (RUA, 2006). A dependência do país sobre as exportações do

petróleo é significativa, e o mantém à mercê de flutuações internacionais.

Os mais afetados diretamente pela conjuntura econômica e pelas novas medidas neoliberais

foram os setores mais pobres e médios da população. Entre 1984 e 1991, a porcentagem de

população pobre passou de 36% para 68% (AYERBE, 2008: 273). Em 1997, a porcentagem era de

90%: 60% em situação de pobreza e 30%, de extrema pobreza (WEISBROT; SANDOVAL, 2008: 15).

A taxa de desemprego, que em 1988 era de 6,9%, subiu para 11,3% em 1997, enquanto a

informalização da economia foi de 34,8% para 48,7%. O salário médio real de 1997 era o equivalente

a apenas 34% do de 1978 (CANO, 2000).

Houve, de modo geral, um descontentamento da população diante do modelo neoliberal

(AVALLE, 2008), expresso na instabilidade política do período, no qual foram registrados: uma revolta

popular espontânea em 1989, conhecida como Caracazo, violentamente reprimida; duas tentativas,

falhas, de golpe de estado no início da década de 90; e o impeachment do presidente Pérez em

1993, por denúncias de corrupção (SERBIN, 2008: 120).

A economia venezuelana, concentrada grandemente no petróleo, apresentava altos índices

de polarização7, econômica e social: o neoliberalismo apenas aumentou a concentração de renda, a

desigualdade e a exclusão social, distanciando ainda mais as classes: a participação dos 20% mais

pobres na renda total era de 6,2% em 1994, enquanto a dos 20% mais ricos, 46,4%. A renda média

por habitante em 1998 era 6% menor que em 1989, e 27% menor que em 1980. O consumo médio

por habitante se reduziu 36,3% entre 1980 e 1997 (CANO, 2000).

A crescente polarização socioeconômica levou a um maior e mais drástico antagonismo

político (SERBIN, 2008: 120). A grande desigualdade, atingida ao longo dos anos, levou à Venezuela

certo ressentimento mútuo entre as diferentes classes sociais, baixas e privilegiadas. O país viu, em

7 A polarização, “somatória de antagonismos entre indivíduos”, é mais grave, e inclusive mais significativa que a medição da desigualdade social na avaliação de potenciais conflitos sociais, pois, nas sociedades polarizadas, “a aparição de conflitos é mais comum e possuem eles maior intensidade (...).” (SERBIN, 2008: 118).

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razão deste intenso distanciamento, o surgimento de partidos defensores das populações carentes e

a emergência de líderes cujos discursos e ações visavam os menos privilegiados, também

geralmente menos representados. Tal polarização, inicialmente socioeconômica, tornou-se

gradativamente, nestas novas condições, política, uma vez que, agora, surgem, “preferências das

classes baixas e da classe média por determinados candidatos presidenciais, mais do que por

partidos tradicionais, e por determinadas políticas (...)” (SERBIN, 2008: 212). Ou seja, a decadência

econômica e a desarticulação social condicionaram a “politização das desigualdades sociais na

democracia venezuelana” (SERBIN, 2008: 121).

BOLIVARIANISMO: NOVO MODELO POLÍTICO-ECONÔMICO

A Revolução Bolivariana, proposta de Chávez para a Venezuela, é justamente uma

aproximação para refrear os impactos negativos que o Capitalismo neoliberal causou no país,

visando reformar a economia, a política e a sociedade venezuelanas, para “superar as deficiências e

falências sociais introduzidas pelo neoliberalismo, num contexto democrático (...)” (SERBIN, 2008:

119), uma vez que Chávez afirmou ser “impossível, dentro da estrutura do sistema capitalista,

resolver os graves problemas da pobreza da grande maioria da população mundial” (EMBAIXADA DA

REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA NOS ESTADOS UNIDOS, 2008).

O Bolivarianismo se propõe a reformar alguns pilares do Capitalismo, uma vez que critica o

“modelo econômico que até agora não apresentou resultados substanciais no combate à pobreza e à

desigualdade” (AYERBE, 2008: 167), como visto no colapso social da Venezuela na década de 1990.

É um movimento para a implantação do socialismo, mas não o socialismo da União Soviética ou de

Cuba (que revolucionou a organização econômica, mas se comprovou insustentável mundialmente

em 1989), e sim o de um novo socialismo, completamente diferente, o Socialismo do século XXI,

mais pluralista e menos centrado no Estado (WILPERT, 2006), ainda inserido na economia

capitalista, com um viés reformista, e não revolucionário.

No discurso de posse em 1999, Chávez afirmou:

(...) nosso projeto não é um projeto estadista. Muito menos averso ao extremo ao

neoliberalismo. Não, estamos buscando um ponto intermediário, tanto Estado

quanto seja necessário e tanto mercado quanto seja possível. A mão invisível do

mercado e a mão visível do Estado (…) (CHÁVEZ, 1999).

E, em continuidade às suas propostas bolivarianas, declarou, em 2005, no 5º Fórum Social

Mundial:

Precisamos reinventar o socialismo. Não pode ser o tipo de socialismo que vimos na

União Soviética, mas ele surgirá conforme desenvolvemos novos sistemas,

baseados na cooperação, não na competição. (...) Precisamos recuperar o

socialismo como uma tese, um projeto e um meio, mas um novo tipo de socialismo,

humanista, que coloca os homens, e não máquinas ou o Estado, à frente de tudo o

mais (SOJO, 2005).

Page 15: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

15

Chávez considera que o Socialismo do século XXI é “baseado na solidariedade, na

fraternidade, no amor, na justiça, na liberdade e na igualdade” (CHÁVEZ, 2006)8. A Revolução

Bolivariana, afinal, seria o verdadeiro caminho para uma ordem pós-capitalista, pós-burguesa, na qual

estes três princípios seriam realidade para todos os cidadãos, não apenas para uma ou outra classe

(WILPERT, 2006).

A grande reforma Bolivariana nos modos de organização da sociedade é o incremento do

envolvimento democrático da população no processo decisório, seja por meio de referendos e de

consultas populares, seja por meio do estímulo à criação de núcleos de auto-organização e de

ativismo. Há também a criação de outros dois poderes, para além dos tradicionais Executivo,

Legislativo e Judiciário: o Poder Eleitoral e o Poder Cidadão. A primeira nova forma de poder observa

e regula procedimentos eleitorais contra fraudes, abusos de poder ou compra de votos. Já a segunda

assegura a constitucionalidade dos demais poderes, atuando como ombudsman, procurador-geral e

auditor do país como um todo. A ampla participação popular no governo torna a Venezuela uma

Democracia Participativa, ao invés de meramente representativa (WILPERT, 2006).

Esta dinâmica política, exercida de baixo para cima, envolve de fato toda a população nos

processos decisórios, não apenas em eleições, e para além dos referendos. Tal estímulo se dá por

meio da criação de conselhos comunitários, os Círculos Bolivarianos, organizações de pequeno

porte, locais, que garantem o poder à própria sociedade, que se mobiliza, em benefício próprio, para

discutir e resolver questões locais, como educação, alimentação e pavimentação; ou para coordenar

a manutenção da assepsia e a organização da vizinhança, além de diagnosticar as necessidades e

prioridades da comunidade. Considerada como certa descentralização de poder, a medida aumenta o

envolvimento político da população, transferindo o gerenciamento e a atividade produtiva de fato para

os propósitos locais.

Além dos Círculos, há na Venezuela um grande estímulo para a criação de cooperativas e de

autogerenciamento e co-gerenciamento, por meio de preferência em concessões e licitações ou por

crédito favorecido, aumentando o papel dos próprios trabalhadores no processo decisório do setor

privado e estimulando trabalhadores a tornarem-se microempresários, por meio de educação,

treinamento específico, microfinanciamento e incentivos fiscais, trazendo a economia informal para a

formalidade e criando uma classe gerencial emergente. O número de cooperativas cresceu, de 1998

para 2005, aproximadamente, de 800 para 84.000. (LEBOWITZ, 2006).

Outra característica é a centralidade dos direitos sociais, como emprego, moradia e saúde,

tidos como deveres do Estado Bolivariano. Maternidade, planejamento familiar e base material de

acordo com necessidades materiais, sociais e intelectuais básicas da população também são

considerados direitos sociais. A Constituição determina que cabe ao Estado possibilitá-los e promovê-

los, o que acontece principalmente por meio das Missões Bolivarianas, programas sociais de

redistribuição de renda e de desenvolvimento humano, às quais são direcionadas praticamente

metade do orçamento do governo (WEISBROT; SANDOVAL, 2008 p.12 e 14). Tais Missões,

8 É interessante notar o uso, por parte do presidente, do lema da Revolução Francesa, de caráter burguês: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Page 16: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

16

enfocadas em diversas áreas, como saúde, educação e infraestrutura, são fundamentais para o

desenvolvimento econômico e humano da Venezuela. Segundo Chávez, as missões são “remédios

para os males que afligem a sociedade venezuelana desde sempre (...), mas não devem ser

encaradas como um fim e sim como um meio para possibilitar o desenvolvimento pleno no futuro”

(RUA, 2006: 59). É por meio das Missões que o Estado Bolivariano pretende atingir os objetivos de

sua revolução:

Tabela 1: Fins do projeto bolivariano e objetivos das missões bolivarianas

Fins do Projeto Bolivariano Objetivos das Missões Bolivarianas

Inclusão e Igualdade Social Garantir direitos sociais e elevar a qualidade de

vida.

Democracia Social, Popular e

Participativa

Reconhecimento e participação deliberativa dos

setores excluídos nas políticas públicas e na

assinação dos recursos do Estado

Estado Social Constituinte

Configuração de uma nova institucionalidade

pública, desburocratizada e alinhada aos

interesses e demandas da população.

Novo Modelo de Desenvolvimento

Endógeno

Desenvolvimento de projetos coletivos

comunitários e produtivos baseados em relações

de solidariedade e em condições sustentáveis,

econômica, ecológica e socialmente.

Fonte: D‟ELIA, 2006.

Os gastos do governo são imprescindíveis para sua manutenção. Em 2006, destinaram-se

44% do orçamento do governo, 24,8 bilhões de dólares, ou seja, 13,6% do PIB, aos programas

sociais (WEISBROT; SANDOVAL, 2008 p.12 e 14). A participação da PDVSA (Petróleos de

Venezuela S.A., companhia estatal de exploração de petróleo majoritária no país) na contribuição

para a realização das Missões também é vital. Alocando apenas parte de seus lucros da exportação

petroleira, em um cálculo que destina aos gastos sociais o excedente entre rendimento planejado, de

acordo com um preço do petróleo esperado para o ano, e o rendimento efetivo, devido a altas

inesperadas em seu preço (GUIA.COM.VE, 2009), a PDVSA contribuiu com 13,3 bilhões de dólares,

7,3% do PIB, em 2006, fazendo o gasto social venezuelano, para 2008 ano, atingir 20% do PIB, ou

seja, 38,1 bilhões de dólares, 314% a mais que em 1998 (WEISBROT; SANDOVAL, 2008: 14).

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17

Dentre outras ideias vitais para o devido sucesso da revolução está o aumento do papel das

empresas estatais e da influência do Estado no setor privado, inclusive através de nacionalizações,

para maior controle, regulação e planejamento estatal. Isso demonstra que o Bolivarianismo é um

projeto complexo, composto de intervenções estatais, tolerância ao setor privado e mobilização

política da sociedade.

Por fim, o Bolivarianismo é a resposta a uma sociedade extremamente dividida. Nas palavras

de Chávez:

É a democracia revolucionária. Não é apenas uma democracia representativa. É

uma democracia participativa, mais que isso, é uma democracia plena, em seu

sentido mais puro. Como Abraham Lincoln disse, um governo do povo, para o povo

e pelo povo. O que quer dizer que devemos transferir poder para as pessoas,

principalmente os mais pobres. Se você quer se livrar da pobreza, deve ceder poder

aos pobres, não tratá-los como pedintes (2005).

Desde o início de sua implantação, o Bolivarianismo tem melhorado a qualidade de vida da

população venezuelana. O número de pessoas que viviam em situação de pobreza e de extrema

pobreza em 1997, 60,9% e 29,5% da população, reduziu-se drasticamente com a implantação de

medidas bolivarianas: em 2007, tais valores passaram para 33,1% e 9,4% (WEISBROT; SANDOVAL,

2008: 15). Ou seja, antes do governo Chávez, 90% da população da Venezuela era considerada

pobre. Em 2007, este valor reduzira-se à metade em apenas uma década. Lembrando que estes

valores referem-se apenas à renda, e não contabilizam o acesso à saúde, à educação ou a melhora

da qualidade de vida da população, meta máxima da Revolução Bolivariana. A título de exemplo, a

missão Robinson praticamente erradicou o analfabetismo no país: em 2003, o país tinha 1,6 milhão

de analfabetos. Em 2006, o número foi reduzido para apenas 16 mil (MERCOSUL EDUCACIONAL,

2006).

Em suma, a grande proposta do projeto bolivariano se pauta na refundação da República, por

meio da permanência de um Estado regulador da vida econômica e social, da propriedade estatal do

petróleo e da universalidade dos direitos sociais, levando ao deslocamento da velha elite política e

trazendo a população ao poder em uma Democracia Participativa (MAYA, 2004).

A garantia dos direitos sociais e humanos é fundamental para um país tão polarizado. Assim,

da perspectiva do discurso bolivariano, garantir saúde, educação, moradia e alimentação, antes de

ser um instrumento para angariar votos, conforme atesta a oposição (semelhante ao que ocorre no

governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva no Brasil, diante de programas de bolsas de

assistência), denominando o governo paternalista, populista ou assistencialista, significa garantir

também a dignidade, a qualidade de vida e (pelo menos a expectativa de) um futuro promissor. A

proposta enfatiza, pois, que ao realocar a renda, seria possível reduzir desigualdades e até mesmo

atingir uma sociedade mais justa e igualitária, considerando inclusive ser possível atingir, por meio

dessas políticas, o desenvolvimento pleno e por igual de todos seus setores e de todas as suas

classes sociais.

E a centralização do poder nas mãos do presidente torna o processo decisório mais ágil, algo

necessário para o conjunto de mudanças da Revolução Bolivariana. Afinal, tamanho volume de

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18

mudanças, diante de interesses conflitantes e de tamanha polarização política, levaria muito tempo

para ser posto em prática. E apesar das críticas sobre esta intensa concentração, não se pode

desconsiderar o notável incremento de poder da população: a concentração do poder no Executivo se

equilibra com a descentralização do poder nas mãos da população. Enquanto o presidente é capaz

de concretizar rapidamente suas propostas, a população é livre para, a qualquer momento, anulá-las,

ou até mesmo depô-lo do poder. A grande revolução de fato reside na implementação da Democracia

Participativa, de baixo para cima, alterando toda a lógica de funcionamento da política existente na

América Latina. De acordo com a proposta de Chávez, a democracia participativa seria a mais

interessante, pois é uma forma de participação não totalmente indireta e, por isso, sob controle, sem

demasiada burocracia e para além da mera representação e, ao mesmo tempo, capaz de trazer os

benefícios da democracia direta, (considerada impraticável nas sociedades atuais, dado o grande

número tanto da população quanto de ideias e interesses distintos), pois os conciliaria a todos os

interesses por meio da ativa participação popular. O poder e o controle sobre os processos, as

propostas e as mudanças recaem sobre a população, mas apenas se ela desejar se manifestar.

E esta participação não se limita às eleições. A facilidade e a alta desburocratização de se

posicionar contra alguma medida governamental ou de inclusive depor políticos cujas promessas não

foram cumpridas, por meio dos diferentes tipos de referendo, reforçam o caráter democrático da

política no país, pois de fato a vontade da população pode ser efetivada. Os círculos bolivarianos

também são muito importantes para ressaltar o caráter participativo da política no país. Além de ouvir

as populações locais e promover a atenção a seus interesses, pedidos e necessidades, estimulam o

protagonismo, a deliberação, a tomada de decisões e, mais importante ainda, a ação. A participação

política não cabe apenas, portanto, ao Estado ou ao Governo, mas sim à toda a população

interessada. Quanto aos desinteressados e indecisos, cabe à posição ou à oposição conquistá-los,

seja ideologicamente, seja por ouvi-los e atender a seus interesses.

Os esforços do governo em estimular a participação eleitoral e política, além da própria

educação, que leva a população a uma maior preocupação e, consequentemente, a um maior

engajamento, portanto, não deixam de ser uma prática válida. Espera-se, no futuro, que toda a

população se envolva nos processos de escolha do governo, para que de fato o país todo seja

devidamente ouvido e representado, que toda a população atue em benefício de si própria, e não que

apenas vote e espere pelo cumprimento das promessas das campanhas. Estaria construindo, assim,

um país plenamente democrático, no qual a população seria de fato representada, mas, além disso,

realmente engajada na condução do desenvolvimento do país.

PETRÓLEO: A FORÇA E A FRAQUEZA DO PROJETO BOLIVARIANO

A Constituição Bolivariana fora promulgada, ratificada pela população e posta prática. Mas

são questionadas sua validade e sua viabilidade como efetiva alternativa ao capitalismo neoliberal, ou

seja, não fica clara a força que tal Constituição teria para refrear os anseios do capital e sobrepujá-lo

no jogo político. Isso porque não se pode esquecer que o Socialismo do século XXI não é um modelo

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19

excludente do modelo capitalista: pelo contrário, participa dele em um papel importante, o de

fornecedor de petróleo, a commodity fundamental. À luz desta interação, esta seção busca refletir se

o Bolivarianismo pode se manter, apesar de funcionar dentro de um modelo não-Bolivariano.

A proposta Bolivariana como reformuladora do Capitalismo (mais do que uma proposta de

destruição desse sistema) é de certo modo válida, pois intenciona reestruturar a lógica capitalista, de

acumulação pela acumulação, por um objetivo maior, o do desenvolvimento humano, o

desenvolvimento das capacidades humanas (LEBOWITZ, 2006). A alternativa sugerida pelo

Bolivarianismo é a da Economia Social, cuja lógica não é a do capital. Chávez afirma que ela “baseia

sua lógica no ser humano, no trabalho, no trabalhador e em sua família (…)”. A Economia Social não

gera ganho econômico ou valores de troca, mas sim “gera principalmente valor de uso” (LEBOWITZ,

2006). E tem como propósito “a construção do novo homem, da nova mulher, da nova sociedade”

(CHÁVEZ, 2003). A lógica de acumulação capitalista, da busca do lucro ao invés da satisfação das

necessidades humanas, é desfeita com a implantação do Socialismo do século XXI, pelo

“autogerenciamento no trabalho e pelo autogoverno na comunidade”, com novas relações de

produção, ou seja, na realização de um novo modelo de sociedade, de modo a “libertar o potencial

humano”, em uma organização mais humana e solidária (LEBOWITZ, 2006).

Mas, para a devida substituição da lógica capitalista por uma economia solidária, é

necessário poder político, tanto para gestar as novas relações de produção quanto para findar as

relações capitalistas de produção. O poder do Estado deve, mesmo que atrelado ao interesse do

Capital, possuir certa independência em relação a este, e, ainda, ser suficiente para suportar suas

pressões, como redução nos investimentos ou fuga de capitais (WILPERT, 2006). Para alcançar seu

objetivo, a ideologia Bolivariana deve alterar elementos essenciais do Capitalismo, modificando

práticas e meios de ação, revertendo a lógica capitalista de acumulação para a da Economia Social.

A propriedade privada dos meios de produção e a regulação das trocas reguladas por mercados

competitivos implicam na busca da maximização dos lucros. E lobbies, financiamento de campanhas

eleitorais e meios de comunicação de massa, elementos de influência da classe capitalista sobre o

Estado, alteram sua neutralidade em garantir o equilíbrio, mediar as relações entre os diferentes

interesses, tendendo a beneficiar os interesses do Capital e da maximização do lucro, ao invés do

desenvolvimento humano, individual e coletivo (WILPERT, 2006).

Mas o que garante à Venezuela o poder político e a capacidade de reformar de fato o

funcionamento do Capitalismo no país? O Socialismo do século XXI possivelmente poderia

corroborar a proposta de reforma da organização capitalista. Mas quais são suas condições de

efetiva implantação? Qual é a capacidade do Estado Bolivariano de promover o desenvolvimento

desatrelado do interesse dos empresários e investidores?

Para alterar a propriedade privada dos meios de produção, o Bolivarianismo propõe uma

fórmula diferente da tradicional via estatal. Sistemas de organização baseados em cooperação e co-

gestão são altamente estimulados pelo governo venezuelano. Em 1998, havia cerca de 800

cooperativas na Venezuela. O número passou para 100.000 em 2005 (WILPERT, 2006). Em 2008, o

setor cooperativo correspondia a 14% do PIB e a 18% dos empregos (EMBAIXADA DA REPÚBLICA

Page 20: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

20

BOLIVARIANA DA VENEZUELA NOS ESTADOS UNIDOS, 2008). A existência de empresas de

propriedade e controle estatais é explicada pelo caráter estratégico de sua produção, de interesse

nacional. Mas isso não implica na ausência de participação da principal beneficiária, a sociedade, em

seu controle, planejamento e administração. A própria população, além de representada pelo

governo, pode se envolver diretamente na gestão empresarial, que, devido à implantação da

Democracia Participativa, pode se mobilizar ativamente, inclusive na administração das empresas

estatais.

Vale enfatizar, entretanto, que não basta alterar a propriedade para reverter a lógica

capitalista de produção. Mas, conforme cresce a atividade cooperativa, cada vez mais o Capital perde

espaço. Uma vez desatrelados os interesses do capital, fica mais simples passar a buscar o objetivo

da solidariedade, da reciprocidade, da igualdade e da sustentabilidade; em suma, do

desenvolvimento e do bem-estar humanos, ou, seja, da Produção Social (WILPERT, 2006). As

empresas de Produção Social são “entidades econômicas dedicadas à produção (…) na[s] qual[is] o

trabalho tem valor autêntico”, sem discriminação hierárquica, mas sim igualdade entre os membros, e

baseada no planejamento participativo. Parte de seus lucros é redirecionada a projetos da

comunidade, espelho de seus objetivos de proporcionar bem-estar em lugar da acumulação. Além

disso, 30% dos contratos do governo, em valor, são para com tais empresas, meio de o Estado

estimular sua criação e a continuidade de seu funcionamento (EMBAIXADA DA REPÚBLICA

BOLIVARIANA DA VENEZUELA NOS ESTADOS UNIDOS, 2008).

Para distanciar-se da regulação das trocas, da produção e da distribuição por meio dos

mecanismos de mercado, o próprio Estado Bolivariano se coloca como novo regulador, ainda que

sem indispor o livre-mercado, mas apenas concedendo-lhe condições mais humanas,

semelhantemente à Social-Democracia. Age, portanto, como redistribuidor de riqueza, por meio de

reformas de terras, de programas sociais financiados pelo petróleo e da provisão de subsídios e

suporte a diversos setores, como as cooperativas. Além disso, o país tem gradativamente estimulado

novas formas de negociação, para além da troca intermediada por moeda, mas sim baseadas nos

princípios de solidariedade e da não competição, de acordo com as necessidades das comunidades,

sejam elas internas ou externas9. Estes mecanismos de alternativa ao mercado capitalista

propriamente dito enfatizam a cooperação e a solidariedade e, conforme se expandam e se tornem a

prática majoritária, podem deslocar a lógica do comércio, inclusive em âmbito internacional.

E para desatrelar o governo dos interesses privados, a Venezuela encontrou, de certa

maneira, meios de tornar-se menos dependente do capital e do interesse privado interno. Por um

lado, o governo destaca o mecanismo da democracia participativa, que enfraqueceu a influência do

interesse privado sobre o governo. Mas certamente o grande trunfo dessa política é o rendimento da

exportação de petróleo, commodity essencial no mundo capitalista, levando a questionar se essa é de

fato uma forma menos dependente do capital. Isso porque foi o petróleo que permitiu praticamente

9 Os acordos Petrocaribe, por exemplo, concedem melhores condições de pagamento para a compra de petróleo venezuelano pelos países caribenhos, mas, mais significativamente, permitem o pagamento em espécie, não em moeda. Outro exemplo foi a troca negociada com Cuba. Esta concedeu cerca de 20.000 médicos e equipamento médico, pagos em petróleo. Foi este acordo que permitiu a realização da missão social Barrio Adentro, com o objetivo de melhorar as condições de saúde da população (WILPERT, 2006).

Page 21: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

21

todas as medidas de reforma do Capitalismo. Vale lembrar que a indústria petroleira é estatal e,

portanto, seus rendimentos compõem a receita do Estado. Elas garantem a força desta instituição,

sua capacidade de substituir o investimento privado, cujos interesses são menos atendidos. O dilema

dos governos de esquerda, entre perseguir políticas progressistas e alienar o interesse do capital, ou,

em outras palavras, o bem-estar social e o estímulo ao interesse privado, é solucionado na

Venezuela pela exportação de Petróleo. Portanto, o governo, com o petróleo, é capaz de direcionar

investimentos e estabelecer regulações e taxas progressivas, sem se preocupar com o

desinvestimento privado, por ser capaz de substituí-lo pelo investimento estatal, sem sucumbir às

suas demandas e imposições (WILPERT, 2006).

A grande ironia é que o meio de desatrelar-se do interesse do capital internamente, o

rendimento e a força econômica, logo política, do petróleo, é justamente a exploração do recurso no

setor externo, ávido por mais fontes e menores custos para o combustível da Segunda e da Terceira

Revolução Industrial, do qual todo o desenvolvimento, seja ele capitalista e injusto, seja igualitário,

depende. As mesmas receitas advindas da exportação do petróleo, que, mal distribuídas e mal

alocadas para o desenvolvimento do país, polarizaram intensamente a sociedade Venezuelana,

agora dão plena força ao país e o torna capaz de melhorar a vida de sua população como um todo e

de alterar a lógica de funcionamento de sua economia capitalista.

Entretanto, este mesmo garantidor de força e capacidade econômica e política, o petróleo, é

também a grande fraqueza do Estado Bolivariano. Toda a promoção do projeto de desenvolvimento

social, de ampliação da democracia, de estímulo de uma economia solidária e da melhora na

qualidade de vida da população como um todo depende da força do Estado. E toda a força da

Venezuela atualmente depende apenas do petróleo. As receitas estatais, a capacidade de

investimento e de alocação de capitais do governo, a própria economia venezuelana, estão em torno

da exportação de petróleo, mercado sobre o qual o país não detém influência. Por mais eficiente,

tecnologicamente avançada, essencial para o desenvolvimento econômico e para a geração de

empregos que seja, a exploração de hidrocarbonetos depende da demanda internacional, altamente

instável e inconstante, onde inúmeros interesses internacionais conflitam, inclusive os da própria

OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), da qual a Venezuela é membro. Os

preços e a demanda por petróleo, totalmente flutuantes e nem um pouco sólidos, são a base do

desenvolvimento venezuelano. As próprias Missões Bolivarianas, principal meio de implantação do

projeto bolivariano no país, dependem grandemente do petróleo. Em 2006, cerca de um terço dos 38

bilhões de dólares, fundos totais destinados ao gasto social, derivaram diretamente dos excedentes

da PDVSA (WEISBROT; SANDOVAL, 2008 p.12 e 14). Foi o próprio governo que despendeu os dois

terços restantes, alocando 44% de seu orçamento (WEISBROT; SANDOVAL, 2008 p.12 e 14),

enquanto metade das receitas fiscais provém da indústria petroleira (CIA, 2006), o que mantém a

dependência dos gastos sociais sobre o petróleo.

Como se pode notar nos gráficos a seguir, cada vez mais a Venezuela exporta petróleo e

outros produtos relacionados à indústria de hidrocarbonetos:

Page 22: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

22

Gráfico 1

Fonte: Elaboração própria a partir de BCV, 2004; 2007; 2010

Gráfico 2

Fonte: Elaboração própria a partir de BCV, 2004; 2007; 2010

E, ao mesmo tempo, cada vez mais o país precisa importar bens de consumo, duráveis ou

não duráveis, mas básicos, como alimentos e vestuário, cujos complexos industriais são pouco

exigentes em tecnologia e em volume de investimentos, e tidos como básicos para o bem-estar da

população:

Page 23: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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Gráfico 3

Fonte: Elaboração própria a partir de BCV, 2004; 2007; 2010

Gráfico 4

Fonte: Elaboração própria a partir de BCV, 2004; 2007; 2010

Cada vez mais o produto interno bruto venezuelano tem se concentrado no setor primário,

mais precisamente na extração mineral. E é justamente este mesmo setor, cujo destino é

praticamente apenas a exportação, que resulta em enormes flutuações à economia venezuelana, por

estar muito mais envolvido com questões exógenas ao país do que ao próprio desenvolvimento

nacional. A concentração dos esforços do país no setor de hidrocarbonetos, que é, na prática, uma

Page 24: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

24

concentração na exportação desses recursos, bem como as grandes flutuações dela decorrentes

ficam visíveis com os gráficos a seguir:

Gráfico 5

Fonte: Elaboração própria a partir de CEPAL, 2009

Gráfico 6

Fonte: Elaboração própria a partir de SISOV, 2010

Resta questionar se o desenvolvimento venezuelano, portanto, baseado na exportação de

petróleo, é de fato sustentável. Pode um país fundamentar e manter sua prosperidade em um

mercado no qual é visceralmente dependente? A especialização na indústria do petróleo, ao mesmo

que é benéfica ao país, proporcionando-lhe crescimento, divisas, e fundos para o Estado, ao mesmo

Page 25: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

25

tempo torna a Venezuela sua refém, pois a leva a deixar de lado outros setores essenciais ao

verdadeiro desenvolvimento sócio-econômico, sustentável e estável, em virtude da chamada doença

holandesa, impedindo-a assim de melhorar de fato a qualidade de vida da população e do país.

Para assegurar suas bases econômicas, a Venezuela deve diversificar sua economia, e não

concentrá-la na exportação. Ao invés de apenas preocupar-se com os mercados estrangeiros, deve

obter no grande montante de capital obtido pelas exportações a força econômica necessária para

promover um desenvolvimento endógeno, voltado para os interesses nacionais venezuelanos, de

satisfação da população e de incremento da qualidade de vida. De nada adianta ter estes últimos

como objetivo ideológico, bem como uma maior força política, se o grande meio de efetivamente

alcançá-los é a atenção aos interesses econômicos externos, sobre os quais a vontade venezuelana

não detém nenhuma influência. Esta subordinação conduz a uma imensa desestabilidade econômica,

quando ela é essencial para a manutenção dos programas sociais, da aceitação popular das políticas

do governo e, consequentemente, do próprio poder político, em um país tão marcado pela

desigualdade, tão necessitado de efetivo envolvimento político para livrar-lhe de suas mazelas

sociais.

UMA ALTERNATIVA BOLIVARIANA PARA AS AMÉRICAS?

As propostas bolivarianas, ainda que com suas limitações, muito além de estarem restritas à

Venezuela, apresentam um escopo muito maior. Como seu próprio nome relembra, remetendo à

Simón Bolívar, há uma enorme carga de pensamento antimperialista e integracionista nos projetos

bolivarianos. Os países, na visão de Chávez, atualmente encontram-se em uma configuração

multipolar, divididos em cinco pólos geopolíticos de poder: Europa, Ásia, África, América do Norte e

América do Sul. A política externa bolivariana da Venezuela prioriza, além do fortalecimento da

soberania nacional, a promoção deste mundo multipolar e a busca do equilíbrio internacional

(SERBIN, 2008). O principal anseio bolivariano é o de equilibrar os pólos do sistema,

contrabalanceando a unipolaridade estadunidense, reforçada pela “expansão do unilateralismo da

administração Bush após o 11 de setembro (...)” (SERBIN, 2008: 128), por meio da integração plena

da América Latina e do Caribe em um pólo significativo, de maior relevância e com posição de

liderança no cenário internacional, de modo a torná-lo “(...) um grande bloco de poder político,

econômico e social” (SERBIN, 2008: 132). Seu contraponto é em relação à globalização neoliberal

sob hegemonia dos Estados Unidos, que, segundo a concepção de Chávez, caracteriza-se por seu

imperialismo, e mostra-se um entrave à visão bolivariana de um mundo multipolar e democrático.

Para entender a extensão da política utilizada por Chávez é necessário analisar projetos

semelhantes que sofreram interferência da Venezuela para sua condução das políticas públicas. A

Bolívia, por exemplo, às luzes da influência bolivariana, construiu um governo baseado no

plurinacionalismo, tendo como principal pilar de sustentação a grande diversidade étnica e cultural

encontrada no território boliviano. Tal fator é relevante para analisar o processo econômico em

contrapartida às reivindicações sociais que ocorrem na Bolívia, fato utilizado como proposta de

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26

campanha de Evo Morales, presidente desde 22 de janeiro de 2006, além da aproximação marcante

com a Venezuela.

O projeto inicial de governo para a Bolívia, solidificado no partido P-MAS (Movimiento al

Socialismo), apresentava como objetivo a organização de uma sociedade democrática e participativa.

O fortalecimento político do país viria a partir da integração e cooperação de todos os diferentes

grupos e etnias, visto que, cada um à sua forma, contribuiu para o desenvolvimento do país até o

momento. Além disso, tal projeto só seria possível por meio de uma prática revolucionária focada na

mudança do caráter elitista existente na sociedade neoliberal.

O P-MAS foi, e ainda é, o partido que serve de ferramenta para esse embasamento

ideológico, o qual, após a vitória de Morales, seria uma realidade efetiva. Todos os seus

representantes se identificam com a construção de um modelo forte, fora do viés do neoliberalismo,

capaz de unificar todos os fragmentos étnicos presentes na Bolívia neoliberal. Considerando que a

economia neoliberal não somente destruiu políticas sociais, mas sim monetarizou as relações

humanas, descaracterizando toda a sociedade boliviana e latino-americana, as pretensões do partido

transpassam a esfera estatal, levando à formação de uma sociedade fundamentada em novas

práticas, mais coletivas e solidárias.

Para reverter esse cenário, o partido defende uma prática revolucionária, única, capaz de

reformular a sociedade desde suas raízes, destacando novamente toda a importância do homem

como centro da sociedade moderna, redistanciando-se dos preceitos neoliberais. As propostas de

Morales para a presidência foram vinculadas à luta dos movimentos sociais na Bolívia. Entre elas,

destacam-se a busca pela igualdade social para as maiorias nativas, a eliminação da corrupção das

estruturas do Estado boliviano e a nacionalização dos recursos energéticos. Os primeiros acordos

internos realizados foram focados nos direitos fundamentais como a alfabetização, a documentação

básica e a saúde, refletindo em propostas que modificaram profundamente a praxis política boliviana,

revelando um novo horizonte se comparado com os governos anteriores, cujas bases estavam

enraizadas no modelo neoliberal.

A nova era boliviana iniciada por Morales apresenta, já nos primeiros discursos, uma proposta

de rompimento com a ordem neoliberal vigente em toda América Latina. Nessa proposta, o Estado

acumula um papel decisivo, o qual se inicia com um choque produtivo no sistema econômico. Álvaro

Garcia Linera, vice-presidente da República, afirma, em um discurso na Praça São Francisco, que a

missão do governo é construir um Estado forte, capaz de ter autonomia perante todos os outros

setores.

Olhando para o futuro, temos a decisão, a vontade de construir um Estado forte,

sólido, do qual nos sintamos orgulhosos, estejamos onde estivermos. Tem que

haver um Estado forte na economia, para que não apenas sejam o mercado e a livre

competição que distribuam os recursos. Tem que haver um Estado forte que priorize

o que é necessário para a pátria, que proteja a todos, mas fundamentalmente aos

mais vulneráveis, aos mais esquecidos, que a maioria do nosso país e que hoje,

com um Estado forte no plano econômico, encontrarão melhores opções para o

desenvolvimento. (…) Queremos um Estado multicultural, em que os distintos povos,

os distintos idiomas, as distintas cores valham igual: que valham igual um vestido e

uma saia, um poncho e uma gravata, uma cor de pele mais clara e uma mais

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27

escura. (…) Compete agora (…) à sua gente empobrecida e à gente simples ocupar

o mando da nação e conduzir-nos por um caminho de bem-estar, por um caminho

de unidade e de integração nacional (2006).

Contando com grande apoio popular, Morales colocou em prática seu projeto de governo,

desde a nacionalização dos recursos naturais, destaque estratégico para o país, até a convocação da

Assembleia Constituinte, vista de maneira conturbada por grande parte dos governos latino-

americanos. Isso demonstrou a grande força do governo de acabar com a manipulação da mídia,

preocupação que pode ser vista inicialmente no discurso de posse de Morales no Congresso

Nacional, no qual afirmou que o povo boliviano está submetido a um terrorismo midiático, com intensa

manipulação das informações e ênfase no receituário neoliberal, que vem deturpando a multicultura

boliviana.

Morales, após assumir a presidência, foi o primeiro presidente latino-americano a realizar

uma viagem internacional a Cuba, e posteriormente à Venezuela, deixando clara a plataforma política

de esquerda a qual apóia. No território cubano, assinou convênios de apoio para terminar com o

analfabetismo, além de receber apoios na área de saúde pública. Na Venezuela, Morales conseguiu

apoio para a extensão da documentação legal a todos os bolivianos, o que era um problema

principalmente para os camponeses.

O petróleo, por sua vez, tem papel fundamental na integração da Bolívia e da região.

Segundo Chávez, serve para “costurar alianças e diversificar relações”, por ser uma commodity

fundamental, e, por isso, base de intensificação de relações comerciais. Diversos acordos de

integração já foram firmados com o intuito de “estabelecer um anel energético regional que garanta a

auto-sustentabilidade dos países sul-americanos”10

. Na Bolívia, o governo sofreu fortes pressões das

redes petrolíferas, porém, houve uma vitória do novo governo boliviano. Tais redes se abriram a

negociações com Morales, de acordo com as condições estabelecidas pela nova lei de

hidrocarbonetos. Até mesmo a Petrobrás já apresentou interesse em rever os contratos anteriores e

renegociar preços e condições melhores para o país.

Apesar de toda a proposta alternativa de desenvolvimento, a economia boliviana ainda é uma

das mais frágeis da América Latina. A crise econômica em 1980 abriu as portas para o capital privado

internacional, enraizando o projeto neoliberal na Bolívia, de modo que somente em 2005, com a lei de

hidrocarbonetos, o governo conseguiu traçar o projeto para um desenvolvimento alternativo ao

modelo neoliberal. Esse novo governo, bem como sua política econômica, permitiu três anos de

crescimento econômico, barrados apenas em 2009 com a recessão internacional. Isso ocorreu, pois a

Bolívia, também grande exportadora de commodities, teve suas vendas diminuídas, e

consequentemente, seu crescimento barrado. Para os próximos anos, o governo poderá enfrentar

problemas com o declínio do preço das commodities, a falta de investimentos externos na mineração

e hidrocarbonetos, além de uma infra-estrutura precária.

10 Entre eles, há os convênios entre a PDVSA e a Petrobrás de exploração conjunta, o estabelecimento de uma empresa petroleira comum com a Argentina e o projeto do Gasoduto do Sul, que ligará o continente da Venezuela à Argentina, com participação do Brasil e da Bolívia (DUPAS; OLIVEIRA, 2008: 252).

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28

Servindo de exemplo para a amplitude do bolivarianismo, a Bolívia esbarra no mesmo

problema de desenvolvimento econômico sobre a exploração de commodities. Para que haja o

devido estímulo à propagação dos projetos bolivarianos, o movimento deve comprovar-se efetivo.

Entretanto, como ressaltado, as próprias bases do bolivarianismo tanto na Venezuela como na Bolívia

ainda são demasiado frágeis, e enquanto o projeto não se mostrar viável e estável, dificilmente sairá

do plano das ideias e se consolidará politicamente pelo restante da América Latina. Além disso,

enquanto as ações de Chávez e Morales repercutirem internacionalmente como radicais e

antidemocráticas, a pouca aceitação de suas ideologias e as propostas bolivarianas permanecerão

limitadas à Venezuela e, em menor grau, à Bolívia, inclusive onde também esbarram em forte

oposição.

O Bolivarianismo mostra-se assim capaz de se expandir para além da Venezuela e mobilizar

mudanças e influenciar políticas de outros países da América Latina. A alternativa proposta pelo

movimento envolve diretamente a organização e o reformismo da sociedade capitalista em geral,

independentemente de fronteiras políticas, o que lhe garante uma maior legitimidade e possibilidade

de implantação em outros territórios. Esta, por sua vez, reforça o próprio peso político do movimento,

tornando-lhe ainda mais capaz de implantar suas reformas e de superar suas barreiras, sejam elas

exógenas ou inerentes ao próprio Bolivarianismo. Assim, a Venezuela pode torna-se, gradativamente,

um ator mais influente, na própria América Latina ou no processo político global. Embora essa

posição ainda não esteja consolidada, observa-se, na Venezuela e nos próprios países latino-

americanos, uma crescente preocupação com um desenvolvimento mais endógeno do continente,

mais independente do centro do sistema capitalista, com o objetivo maior de superar a posição

periferia do sistema. Este “processo de emancipação” é um vetor pelo qual a Venezuela pode tanto

encontrar um importante espaço de expansão de seus projetos bolivarianos quanto consolidar-se

como liderança caso transforme o Socialismo do século XXI em um projeto consistente e funcional de

condução política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A promessa de que o modelo neoliberal seria um catalisador do desenvolvimento na

Venezuela, de que a riqueza seria impulsionada e, com isso, o padrão de vida da sociedade em

geral, não se viu realizada. Não foi a sociedade em geral que foi beneficiada com a praxis neoliberal.

Os altos índices de desigualdade social e de concentração de renda comprovam tal fato. E estes

mesmos índices reforçaram a necessidade de mudança, pelo desenvolvimento da sociedade como

um todo.

O Bolivarianismo surgiu e ganhou apoio da população justamente por apresentar-se como

uma alternativa, por propor uma mudança na organização social. E sua chegada e permanência no

poder são resultados dos anseios da população, que aspirava por mudanças, por um

desenvolvimento mais igualitário, por uma melhor distribuição de renda, por qualidade de vida para

todos, de fato. Adepta principal desse movimento alternativo ao neoliberalismo, a Bolívia mostrou-se

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29

firme na luta pela realização de suas propostas, principalmente fundamentadas no partido Movimiento

al Socialismo. Apesar da oposição, receosa pela possibilidade de alteração no status quo, seja a elite

petroleira venezuelana, sejam as elites dirigentes na Bolívia, ou ainda as elites direitistas pró-EUA na

comunidade internacional, e das oscilações macroeconômicas sofridas recentemente, as mudanças a

favor da população da Venezuela e da Bolívia permanecem em voga.

O Socialismo do século XXI pode ser, de fato, uma alternativa ao Capitalismo. Não como

substituto, como foi o Socialismo Marxista, mas como seu reformulador, a partir do qual se prezem

mais as relações entre as pessoas. Por outro lado, por mais desafiador, crítico e ávido por mudanças

que seja, não pretende pôr um fim à organização capitalista, mas sim alterar sua lógica, sua base de

funcionamento, tornando-o mais humano e concedendo à questão social extrema importância.

O grande entrave, entretanto, à sua consolidação (e também o mais difícil de transpor) é o

próprio interesse do capital. As elites e os setores empresariais internos se oporão às reformas

propostas, aos limites impostos e ao novo viés de desenvolvimento econômico, pois vão de encontro

a seus interesses de acumulação infinita, despreocupada em relação ao âmbito social. E as elites da

comunidade internacional se posicionarão contrárias pelo fato de o movimento abrir precedentes,

apresentando um novo modelo, um novo paradigma de condução da economia e do

desenvolvimento, diferente do Capitalismo vigente. É necessário, portanto, à Revolução Bolivariana,

força política e econômica e suporte da população suficientes para manter válida sua proposta de

reforma do atual modelo capitalista, com a implantação do Socialismo do século XXI. Para tanto, é

necessário que o país garanta não apenas a saúde macroeconômica e o desenvolvimento

microeconômico do país, mas também reduza a força da oposição e as pressões internacionais, seja

do centro capitalista, seja da opinião popular mundial.

Esta mesma força, política e econômica, do Estado Bolivariano, essencial para a devida

implementação do Socialismo do século XXI, entretanto, se constitui sobre uma base frágil, exposta a

oscilações internacionais imprevisíveis e incontroláveis: a exportação de petróleo e gás natural. A

propriedade estatal dos recursos energéticos e certa regulação do Estado sobre a economia servem

justamente para melhor aproveitar as capacidades e as potencialidades dos países, reforçando,

entretanto, um desenvolvimento exógeno. O foco apenas sobre a exportação do petróleo, na

Venezuela, no passado, mostrou-se enriquecedor, mas tornou a o país extremamente dependente e

desigual.

O Bolivarianismo ainda não se desfez desta dependência, e permanece amarrado à dinâmica

capitalista do país e do mundo, e, apesar da força de suas propostas, ainda encontra certas

dificuldades em superar esta dependência. Ela torna a economia do país extremamente suscetível à

flutuações e impede a real emancipação nacional, o grande objetivo do movimento. Sem o

fortalecimento econômico, por meio da promoção da industrialização, que reforce a pauta

exportadora do país e o torne mais independente de importações, o desenvolvimento dos países

bolivarianos está fadado à interrupção, pois ancora todo um movimento político, econômico e social

em bases tão frágeis como a exportação de produtos primários é completamente insustentável.

Oscilações no preço e na demanda internacionais de petróleo interrompem o frágil fluxo de geração

Page 30: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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de renda, o que, por sua vez, interrompe as capacidades distributivas e alocativas do Estado

bolivariano, gerando insatisfação na população e incrementando a força da oposição, crítica ferrenha

dos projetos de Chávez.

Esta fragilidade interrompe inclusive a propagação do ideal bolivariano na América Latina. Se

a força política e econômica dentro do país está sobre bases vulneráveis a flutuações, então o próprio

movimento não tem força para se difundir internacionalmente, sem vigor nem mesmo em seu país de

origem. Sem um exemplo sólido do sucesso do projeto bolivariano, não haverá efetiva adesão de sua

ideologia em outros movimentos latino-americanos. Nem mesmo na Bolívia, na qual os ideais

bolivarianos foram adequadamente difundidos, observaram-se propostas viáveis de sustentação em

longo prazo do projeto, que, assim como em seu país de origem, permaneceu restrito à força obtida

por meio da exportação de commodities.

Todas estas dificuldades, entretanto, não descaracterizam o movimento como uma alternativa

viável. Resta-lhe consolidar as bases de sua força, diversificando sua economia e fortalecendo seu

fluxo de riquezas. Claro que o petróleo e o gás natural permanecem essenciais, como grandes

difusores de crescimento, meios de obtenção de receitas e de divisas. Mas se o desenvolvimento

limitar-se à expansão da exportação de commodities, ainda que essenciais, então este próprio

desenvolvimento continuará limitado. Sem estender a economia venezuelana, e a boliviana, a outros

setores essenciais ao bem estar da população, este próprio bem estar permanecerá restrito, limitado

aos desígnios dos instáveis mercados internacionais, sem bases sólidas, insustentável.

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Page 34: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

34

O CONFLITO ARMADO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: UM

REFLEXO DA INSTABILIDADE SOCIOECONÔMICA NA COLÔMBIA

E NO PARAGUAI

Marcela Laurito Lopes Gagliardi ([email protected])

Caio Felipe Stockler ([email protected])11

Orientação: Érika Laurinda Amusquivar12

Abril de 2011

RESUMO

A tensão existente nos governos, paraguaio e colombiano, frente à ação dos respectivos movimentos guerrilheiros Exército Popular Paraguaio (EPP) e Forças Revolucionárias da Colômbia (FARC) trouxe à tona o decreto de estado de exceção em ambos os países. No caso colombiano, é considerado, paradoxalmente, um estado permanente. Já no caso paraguaio, foi decretado tal estado de exceção num cenário de pressões nacionais e internacionais. Ao apresentar a atual situação dos países em que os movimentos estão presentes, focalizado no estado de exceção, além de analisar o grau em que os movimentos atuam, sua forma de ação e uma possível ligação para entender que o uso da força nos dois vetores – em retaliação aos movimentos armados sob o ponto de vista do Estado e a atuação violenta para eliminar os problemas inerentes ao Estado, sob a ótica dos movimentos – constitui, na verdade, uma formação do Estado, desde sua concepção civil a estruturação política e econômica, baseada na violência. O artigo desmistifica o conceito de violência

que permeia o próprio estado de exceção ao indicar que a construção do Estado está calcada na violência em suas diferentes formas, desde a ausência de direitos à luta armada o que arrasta para um problema crônico dentro da América Latina: insolubilidade dos problemas políticos, econômicos e sociais.Assim, compreende-se qual a justificativa do movimento com uso da violência e como essa atuação ocorre agora mediante a contenção proposta pelo Estado. PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo; Estado de Exceção; Forças Armadas Revolucionárias da

Colômbia (FARC); Exército Popular Paraguaio (EPP); Periferia

11 Marcela Laurito Lopes Gagliardi e Caio Felipe Stockler são, respectivamente, alunos do 5º ano de graduação em Economia para Relações Internacionais e do 3º ano de graduação em Relações Internacionais, e pesquisadores do CERI-OFTA / FACAMP Observatório de Fenômenos Transnacionais nas Américas do Centro de Estudos de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas. 12 Érika Laurinda Amusquivar é Mestre em Ciência Política pela UNICAMP, Professora do Curso de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas e Coordenadora do CERI-OFTA/FACAMP.

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35

INTRODUÇÃO

As fragilidades do desenvolvimento socioeconômico e político tornaram o crescimento

econômico dos países da América Latina dependente dos ciclos econômicos mundiais, tendo em

vista a ausência de fontes de financiamento autônomas capazes de suprir as necessidades

nacionais. Assim, esses países que iniciaram seu desenvolvimento de forma tardia perderam parte de

sua capacidade competitiva no cenário internacional devido a uma assimetria de peso político e

econômico, ficando à margem das decisões centrais do sistema capitalista, sendo eles considerados

a periferia do capitalismo.

Os conflitos sociais que emergem a partir desse cenário, representados, por exemplo,

pelas Forças Revolucionárias da Colômbia (FARC) e pelo Exército Popular Paraguaio (EPP) – grupos

essencialmente guerrilheiros, respectivamente de Colômbia e Paraguai, os quais se encontram na

zona periférica do desenvolvimento econômico da América Latina – surgem como um reflexo da

lacuna deixada pelo Estado no que concerne a sua responsabilidade social. Tais grupos, que

possuem a violência como pilar de sua relação para com o Estado, procuram uma maior participação

política, econômica e social, pois, somente dessa forma, seria possível sanar as lacunas e

deficiências de um problema estrutural característico desses países. Os conflitos sociais descritos

são mais visíveis na periferia do capitalismo, uma vez que nesta as contradições inerentes ao sistema

são mais visíveis do que nos países do centro, já que são economicamente mais frágeis e, portanto,

não têm recursos suficientes para conter as tensões de forma relativamente eficiente. Assim, para

compreender tais conflitos, é fundamental analisar as diferenças entre desenvolvimento e

crescimento socioeconômico.

Ademais, podemos relacionar o acirramento das tensões sociais e da atuação dos grupos

violentos à implementação do neoliberalismo na América Latina durante as décadas de 1980 e 1990,

quando o Estado deixou de ser o principal regulador da economia e passou tal função ao mercado.

Tal modelo foi imposto, em parte da região latino-americana, pelo Fundo Monetário Internacional

(FMI) para a obtenção dos empréstimos de financiamento das dívidas externas, principalmente dos

anos 1970, quando o choque dos juros americanos abriu espaço para que o capital saísse dos países

periféricos rumo aos EUA. Concomitantemente, há uma relação de simbiose entre o mercado e o

Estado, uma vez que, para que este consiga se financiar, há a necessidade de adequação ao modelo

neoliberal imposto pelo primeiro. Entretanto, esta união entre o Estado e o mercado não significa uma

postura menos totalitária do primeiro, e sim a emergência de um estado de sítio permanente

(BERCOVICI, 2004)13

.

Neste sentido, podemos considerar, a partir de Carl Schmitt14

, a prerrogativa do soberano

em um Estado, que corresponde à aplicação de um estado de exceção, uma vez que, com a

suspensão da constituição, passa a ter plenos poderes. Com isso, o soberano seria também

responsável pela distinção entre “amigo-inimigo”15

e, portanto, responsável por julgar quais facções

13 Gilberto Bercovicci é professor titular em direito econômico e economia política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). 14 Carl Schmitt (1888-1985) foi um jurista alemão que teorizou a respeito do Estado e da política. 15 A distinção entre amigo-inimigo para Schmitt é puramente política, em que o inimigo é aquele cuja existência ameaça a do Estado, e, portanto, se opõe a este.

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da sociedade ameaçariam o Estado, quais estariam auxiliando-o ou ainda àqueles que estão

indiferentes à ele (BERCOVICI, 2004). Um dos resultados de tal diferenciação, a partir do estado de

exceção, seria a formação de um indivíduo que não se encontra mais sob qualquer ordem jurídica,

um indivíduo inominável e inclassificável (AGAMBEM, 2004).

Seguindo a discussão sobre o acirramento das tensões sociais pós-implementação do

modelo político neoliberal, vemos que, no neoliberalismo, existe um trade-off verificado na

substituição da participação política direta pelo consumo. É evidente que tal relação de troca não é

única do neoliberalismo, mas se observa particularmente nele. De fato, 55,9% da população latino-

americana consideram que a participação no comércio (consumo) e o trabalho são primordiais para

que a população se sinta inserida na sociedade, contra 13,3% que afirmam que a participação política

seria a chave para tal inserção (CEPAL, 2008: 23). Assim, pode-se perceber que o neoliberalismo

teve um papel importante na alienação da população como classe trabalhadora, a partir do

descolamento do trabalhador do processo de trabalho de modo que primeiro se identifique com o

consumo. Portanto, esse modelo, embora se apresente como econômico, também apresenta uma

mudança significativa na percepção do mundo e na busca pela manutenção do status quo das

classes dominantes através de um trade-off com a população (WOOD, 1995). O que ocorre, então, é

a transformação das classes trabalhadoras em classes consumidoras (MARRAMAO, 1990). Destarte:

As maiores conquistas do neoliberalismo não aconteceram no plano econômico,

campo que canalizava suas maiores promessas, mas nos planos social e ideológico.

A combinação entre políticas de “flexibilização laboral‟ (...) , desemprego resultante

de ajustes fiscais em nível governamental e demissões maciças no setor privado,

enfraqueceu profundamente os sindicatos e a capacidade negociadora dos

trabalhadores, fragmentou e atomizou a força de trabalho, descolou os temas do

trabalho e das relações de trabalho para o debate público (SADER, 2009:51).

Assim, a tensão que se disfarça quando há a possibilidade do consumo fica evidente, uma

vez que o Estado não consegue mais prover sua parte no trade-off. Neste sentido, o passado colonial

da América Latina e sua economia pautada na exportação de recursos primários contribuíram para a

fragilidade econômica e para a dificuldade do Estado de cumprir sua parte no acordo. Assim sendo:

(...) o modelo neoliberal, por suas próprias características intrínsecas, não conseguiu

criar as bases sociais de sua reprodução e legitimação. A desregulação, tendo como

mola propulsora o destravar de todos os obstáculos à livre circulação do capital

levou – (...) - à canalização de vultosos recursos não para o setor produtivo, mas

para o financeiro, no qual o capital obtém lucros mais elevados, com muito maior

liquidez e quase sempre sem pagar impostos. Unido à abertura acelerada das

economias, produziu não apenas um intenso processo de contração de renda, de

exclusão de direitos formais dos trabalhadores e de desemprego, como também de

desindustrialização das economias do continente. (SADER, 2009: 50,51).

Além disso, dadas as características do sistema econômico neoliberal, há a proposta de

diminuição na arrecadação do Estado, que acirra a possibilidade de déficits fiscais16

. Neste sentido,

como o modelo neoliberal prega a necessidade de superávits fiscais, o governo tem que diminuir

ainda mais seus gastos para compensar a diminuição na arrecadação. Ou seja, quanto mais o capital

cresce na esfera financeira, há menos investimentos produtivos que gerem o efeito multiplicador e

menos o governo recebe de tributação. Como o Estado tem que diminuir os gastos, o movimento

16 Tal resultado representa que os gastos do governo são superiores a sua arrecadação.

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anticíclico que deveria ser feito por ele não acontece e há uma diminuição da renda nacional, tanto

pela redução dos investimentos privados quanto dos públicos.

Tal fenômeno de financeirização do mercado em busca de maiores níveis de lucros pode

gerar desemprego e desindustrialização nos setores que outrora eram comandados pelo Estado.

Assim, enquanto as elites conseguem obter rendimentos extras na esfera financeira, as outras

classes sociais empobrecem cada vez mais. Ademais, a abertura econômica permite a entrada de

empresas multinacionais que possuem um aporte de capital capaz de aniquilar as concorrentes

nacionais; ao mesmo tempo, tais empresas demandam uma diminuição dos direitos trabalhistas. Ou

seja, as reformas neoliberais trazem resultados perversos para as classes sociais menos favorecidas

pelo capital e para a indústria nacional, o que, em longo prazo, pode significar uma dependência

maior dos setores externos.

Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar que, além do atraso socioeconômico dos países

periféricos, a estrutura financeira do mercado ganha peso e se sobrepõe à estrutura produtiva

nacional, fato que acaba por desfavorecer toda a parte da população desprovida de capital e que

necessita de emprego, consequentemente aumentando o nível de pobreza entre a população. Neste

sentido, consideramos que, segundo Bercovici (2004), existe uma periferia do capitalismo e ela está

submetida a um estado de exceção econômico e político permanente. Em outras palavras, o

neoliberalismo irá propor um Estado que não regule as tensões entre capital e trabalho, mas que

defenda a rentabilidade dos capitalistas em última instância. Isto porque o processo de concorrência

capitalista força o setor privado a buscar sempre a máxima valorização do capital e,

simultaneamente, uma maior exploração do trabalho contraposta a uma constante redução do uso do

trabalho como forma de obtenção da mais-valia. Em um cenário no qual o Estado não tem uma

participação mínima de regulação, a exploração exacerbada possivelmente criará crises de

superprodução e especulação, de modo que os atores privados demandarão que o Estado atue em

um sentido anticíclico e garanta sua rentabilidade (MARX, 1999). Neste sentido, a população não terá

o mesmo apoio que o setor privado durante a crise, sendo relativamente abandonada pelo Estado e

forçada a viver sob a opressão do mercado, tanto quando conseguir se inserir no sistema, através da

exploração das tensões entre o capital e o trabalhador; como quando não se insere e fica à margem

da sociedade, o que pode constituir, portanto, um tipo peculiar de violência.

A contextualização para o entendimento da violência na Colômbia e no Paraguai passa pela

interpretação das medidas econômicas seguidas nos países ao longo de seu desenvolvimento,

intensificando-se, principalmente, após a implementação do neoliberalismo, a partir do qual há

crescimento econômico, mas não um desenvolvimento stritu sensu. Assim, pode-se dizer que a

questão da pobreza e da desigualdade social está no cerne das reivindicações das FARC e do EPP.

Nesse sentido é que serão analisados as FARC e o EPP como grupos guerrilheiros que,

aos olhos do Estado, tornam-se uma ameaça à ordem social da Colômbia e do Paraguai,

respectivamente, a partir do momento em que se opõem a ele por meio de ações violentas,

reivindicando maior responsividade estatal para com a população. Como consequência, o estado de

emergência passa a ser utilizado para garantir os princípios neoliberais, uma vez que a violência

permitida a partir do estado de sítio é utilizada contra os opositores deste modelo (BERCOVICI,

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38

2004). Em contrapartida, visa-se aqui a demonstrar que a ação violenta das classes baixas da

sociedade não pode simplesmente ser considerada como ameaça, mas, sim, como resultado de uma

estrutura política e econômica demasiadamente desigual, já que: “Separar a violência da totalidade das

relações sociais em que está inserida, assim como dos fundamentos materiais da sociedade na qual ela emerge,

limita profundamente a compreensão das forças que a movem” (FAULK, 2009).

AS RELAÇÕES SOCIAIS EM QUE SE INSEREM AS FARC

Ao considerarmos que a análise da atuação das FARC deve ser realizada à luz de um

panorama que abranja tanto questões políticas-sociais quanto econômicas faz-se ímpar apontar que

os dados econômicos da Colômbia indicam que, apesar de possuir o 29º maior PIB do mundo, seu

ritmo de crescimento tem diminuído nos últimos anos17

. Ademais, para ilustrar a fragilidade da

economia colombiana, é necessário considerar o papel do setor agropecuário no país. Tal setor se

estendia por 44, 37% do solo, sendo que a maior parte deste era utilizado para pecuária (74,75%),

enquanto que a produção agrária, em si, ocupava 7, 37%. Em 2008, o setor agropecuário

correspondia a aproximadamente 8% (CEPAL, 2009) do Produto Interno Bruto (PIB) do país (Vide

Gráfico 1) e, apesar da produção agrária ter crescido entre 2002 e 2008, a participação da agricultura

na formação do PIB diminuiu. No entanto, a superfície cultivada aumentou entre 2003 e 2004, assim

como a produção agrícola, com destaque para o algodão (CEPAL, 2009). Entretanto, a agricultura

emprega aproximadamente 18% de toda força de trabalho, praticamente a mesma proporção que a

indústria, que representa aproximadamente 37,5% do PIB (CIA WORLD FACTBOOK, 2010). Assim,

impactos nas exportações de produtos do setor agropecuário teriam grandes consequências no

desemprego.

A taxa de desemprego aumentou de 10,6 % em 2008 para 12% em 2009, de forma que o

país ocupa a 130ᵃ posição, atrás da média mundial. O dado mais relevante, no entanto, é o da

população abaixo da linha da pobreza, que representava 46,8% da população em 2008 (CIA WORLD

FACTBOOK, 2010). É a partir de tal desigualdade social, do pouco apoio social e da fragilidade do

Estado aliado ao aumento da militarização deste que se cria uma lacuna de demandas sociais não

atendidas. Com isso, forma-se um espaço para a atuação de grupos paralelos ao Estado.

Assim, as FARC atuam na lacuna deixada pelo Estado colombiano que se intensifica a

partir da implementação do neoliberalismo. Paralelamente, a atuação das FARC poderia se tornar

uma ameaça ao Estado, uma vez que estas demandam a separação entre os objetivos do Estado e

os objetivos do mercado (“FARC-EP...”, 2010). Assim, o governo colombiano decreta o estado de

exceção como forma de lutar contra as FARC (“A NOVA DEMOCRACIA..”, 2009). Neste sentido,

como apontado anteriormente, a adoção do neoliberalismo e a violência estatal passam a acirrar as

tensões sociais existentes na Colômbia. É num contexto de pobreza e privação que movimentos de

oposição ao governo ganham um maior apoio popular18

, pois o Estado cessa o precário suporte que

dava à sociedade quando adota os princípios neoliberais. Paralelamente, a utilização do estado

17 As estimativas apontam que em 2009 o PIB colombiano foi de US$ 228401,95 bilhões de dólares, enquanto que o de 2008 era de US$ 243744,48 (UNCTAD Statistics Overview 2009). 18 Ao mesmo tempo, durante os anos 90 e o acirramento da crise econômica na Colômbia o Estado perde legitimidade (CANO, 2000).

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exceção se torna cada vez mais frequente, já que os grupos que se opõem à postura estatal de

extroversão e submissão ao capitalismo mundial passam a ser considerados uma ameaça19

. É neste

contexto que ocorre um acirramento das tensões entre Estados e cidadãos20

.

Essa crise, que ao fim dos anos 90 avassalava todos os países da América do Sul,

não começou, decerto, com a execução do programa neoliberal do Consenso de

Washington. Ela pré existia. Mas as condições econômicas, sociais e políticas, que

nos anos 60 e 70 haviam gerado os movimentos de insurgência, agravaram-se, ao

fim de uma década de políticas econômicas neoliberais, executada por governos

democraticamente eleitos. (BANDEIRA, 2002: 144)

A tensão, portanto, que se instala no subcontinente é fruto de um modelo econômico que

não se baseava na incorporação das especificidades de cada país, mas concebia a homogeneidade

de políticas econômicas baseadas na tríade do livre mercado, desregulamentação financeira e

intervenção mínima do Estado na economia, condicionando o desenvolvimento a tais modelos. No

caso mais específico da Colômbia:

A perspectiva era ainda mais sombria, devido ao fracasso do processo de paz, à

crescente intervenção militar dos Estados Unidos e ao fato de que Álvaro Uribe, logo

após assumir a presidência, decretara (agosto de 2002) o estado de exceção, a fim

de deter a violência, e anunciou um plano para recrutar um milhão de civis como

informantes do exército, medidas que podiam implicar ameaça aos direitos

humanos, restrição da oposição política e o estabelecimento de um estado totalitário

na Colômbia. (BANDEIRA, 2002:144)

Destarte, pode-se considerar que, na Colômbia, o neoliberalismo e o estado de

emergência são intrínsecos um ao outro. O neoliberalismo reforça o estado de emergência, pois traz

reformas que aumentam os ganhos financeiros do Estado de modo a garantir bases para financiar a

militarização (CANO, 2000). Ao mesmo tempo, o estado de emergência e o totalitarismo presentes

neste reforçam as reformas neoliberais que, apesar de terem sido largamente implementadas no final

do século XX, ainda têm se intensificado. Neste sentido, a recente eleição colombiana mostra um

apoio ao sucessor de coalizão de Uribe, que considerou um aprofundamento das reformas

neoliberais, inclusive por meio do apoio à ALCA, em suas propostas durante a campanha eleitoral em

2010 (BALZA, 2010). Entretanto, nestes primeiros meses de governo, o novo presidente tem proposto

mudanças significativas, principalmente quanto à questão da terra que, segundo o coordenador do

programa de políticas públicas Luís Cellis21

, é uma das razões para a violência de movimentos

contrários a uma reestruturação do campo (OPERA MUNDI, 2010).

Assim, o Estado atua principalmente de forma repressiva, com a busca constante de

desmantelar os movimentos populares sem, de fato, combater as características estruturais que

provocam tais movimentos (OLIVEIRA, 2008). Destarte, a privação material, a falta de

representatividade da população e a repressão estatal incentivam os movimentos opositores a

atuarem de uma maneira que se façam ouvir, o que incentiva ações violentas de tais grupos. Isso

ocorre, pois, a maneira que os grupos encontram para se fazerem representados é a atuação

violenta, forçando o Estado a reconhecê-los, minimamente, como grupo de oposição. Ao mesmo

19Em outras palavras, para Carl Schmitt, inimigos. 20 “Particularly since the neoliberal reforms of the 1990s that have increased poverty, Colombia's poor continue to resist their oppression in many different ways. In response, state repression on a variety of levels is needed to terrorize unarmed social movements and other community groups and activists” (BENNET, 2009). 21 Luís Cellis é coordenador do programa de políticas públicas de paz da organização não-governamental colombiana “Corporación Nuevo Arco-íris” (CNAI). Disponível em: < http://www.nuevoarcoiris.org.co/>.

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tempo, as FARC passam a exercer um papel organizador político local, através da instituição de

poderes guerrilheiros locais, que inclusive organizam tribunais para solução de controvérsias: “A

fórmula adotada pelas organizações guerrilheiras foi capaz de reduzir drasticamente a violência e as mortes por

armas de fogo na maioria das localidades onde foi implantada” (OLIVEIRA, 2008). O que ocorre então é que

grupos guerrilheiros, como as FARC, passam a ter um peso político, pois se tornam um ente político.

A normalidade do estado de exceção na Colômbia com o neoliberalismo

Para se compreender a questão do estado de exceção na Colômbia é necessário considerar

como este vem sendo utilizado no país e com quais resultados. Neste sentido, é importante apontar

que, por sessenta anos, a Colômbia tem vivido períodos de suspensão da Constituição e

implementação do Estado de exceção. Desde o final dos anos 1940, por diversas vezes, se instaurou

o estado de exceção no país, não obstante, em 1991, com a nova constituição, aparentemente havia

uma preocupação com a limitação do poder militar no Estado. Além disso, apesar de buscar um

aumento da presença reguladora do Estado para “corrigir os „desvios‟ do mercado” (CANO, 2000), foi

permitida a implementação de reformas de cunho neoliberal.

Durante o governo de César Gaviria (1990-1994), criou-se ainda o “Plano Econômico da

Revolução Pacifica” que previa novas reformas neoliberais, mesmo que se opusessem à nova

constituição (CANO, 2000). Apesar de um breve período de crescimento econômico, entre 1993-95

ocorre uma nova desaceleração, intensificada pela abertura e reformas que culmina no aumento do

desemprego e da violência. Assim, os ajustes praticados na economia colombiana durante os anos

1990 foram “perversos e também inúteis” (CANO, 2000). Perversos, pois trazem consequências

como “sofrimento, desemprego, destruição de empresas nacionais, maior desnacionalização, maior

endividamento e piora nas contas públicas, apesar do corte de gastos ante o aumento do montante

de juros” (CANO, 2000). Neste sentido, a destruição de empresas nacionais, desnacionalização,

maior endividamento e piora nas contas públicas enfraquecem a habilidade do Estado em atuar

contra crises, pois diminui suas bases de intervenção. Ao mesmo tempo, a piora do desenvolvimento

social vislumbrado pelo aumento do desemprego, sofrimento e desigualdade social, são sintomas de

um Estado que deixa lacunas que serão preenchidas, na prática, com a atuação das FARC, que

questionam tais ajustes e o modelo de crescimento econômico pelo qual o país optou. Além disso,

As reformas são, assim, simples (mas objetivos) meios de facilitar e acomodar

melhor os interesses do capital estrangeiro e fazer renascer, de forma disfarçada e

descarada, a ideia do “trabalho barato”, esse mesmo que as lideranças neoliberais

apregoam como dispensável no mundo moderno (CANO, 2000).

As reformas são inúteis, pois não resolvem os problemas inflacionários, nem permitem o

crescimento econômico sustentável, pois a diminuição da inflação depende de ajustes cambiais, juros

e cortes nos gastos públicos (CANO, 2000). Assim, a década de 1990, na Colômbia, foi um período

de baixo crescimento econômico (vide Gráfico 1), e, apesar de o país voltar a crescer a partir de

2004, entre 2007-2009 há uma desaceleração do crescimento. Segundo o governo colombiano, a

queda do crescimento do PIB se deu por causa da crise internacional e da diminuição do comércio

com a Venezuela. A crise afetou o país uma vez que provocou a redução da demanda internacional

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pelos produtos colombianos, juntamente com a queda do consumo interno e do investimento por

conta da incerteza gerada com a crise (BANREP, 2010).

Gráfico 1

Fonte: UNCTAD, Statistics Overview 2009

Diante da instável situação econômica que resultou no aumento da violência no final dos

anos 1990, cria-se, em 2001 a Lei de Segurança Nacional, que visava o estabelecimento de um

estado de exceção permanente a partir da retórica do combate à violência. Ao mesmo tempo, o Plano

Colômbia, que foi proposto entre 1998 e 2002, também previa um estado de permanente exceção (“A

NOVA DEMOCRACIA...”, 2009). Em 2003, o presidente Uribe propôs um aumento da presença de

militares no país, cria-se a Política de Segurança Democrática que prevê a atuação militar com poder

de polícia no território nacional (DARIO, 2007). Há uma continuidade entre o Plano Colômbia e a

Política de Segurança Democrática, que é esse viés da militarização e da exceção (“A NOVA

DEMOCRACIA...”, 2009).

A primeira Lei antiterror, de Abril de 2003, tinha por intuito prover as forças de

segurança do Estado, entre policiais e militares, de poderes legais de caráter

permanente para interceptar as comunicações, conduzir buscas domiciliares e

prender indivíduos sem mandato judicial. Uma segunda lei antiterror foi submetida

pelo executivo ao congresso em Julho de 2003, esta última estaria voltada para a

reforma do código penal, da regulação da expedição de processos judiciais e das

punições para uma série de crimes pretensamente relacionados a atos de

terrorismo. Além dessas leis, o governo propôs uma reforma constitucional e do

sistema judicial ampla, que incluía restrições às competências da corte

constitucional de justiça (DARIO, 2007).

Em 2005, a Colômbia destinava 3,4% do PIB para a militarização, o que a deixava na posição

de número 35 no ranking de países que destinavam a maior parte do PIB em gastos militares, atrás

de países como EUA e China. No período de 2001-07, a média de gastos militares era de 4,7% do

PIB, um dos mais elevados da região e acima da média de 2,9% dos países que estão em conflitos

no mundo (ELESPECTADOR.COM, 2008). Esses dados podem ser vistos no Gráfico 2 a seguir:

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42

Gráfico 2

Fonte: CEPAL, 2009 elaboração própria

Com a militarização, a exceção se tornou regra na Colômbia, uma vez que as garantias

democráticas cidadãs têm pouco ou nenhum poder de interferir no estado de exceção (“A NOVA

DEMOCRACIA...”, 2009). Isso porque a repressão que supostamente seria justificada pelo combate

às FARC não se limita aos guerrilheiros, e a população pode ser considerada como “inimigo” por

critérios de classe social ou etnia, por exemplo (“A NOVA DEMOCRACIA...”, 2009). Ao mesmo

tempo, a militarização também estimula os grandes proprietários de terra a legalmente se

organizarem para combater a guerrilha, criando grupos paramilitares (vide Figura 1 a seguir). Esses

grupos estão vinculados à posição de extrema direita de latifundiários em geral que atuam

violentamente contra possíveis movimentos que contrariem seus objetivos (OPERA MUNDI, 2010).

Neste sentido, o paramilitarismo se difere das FARC, uma vez que os objetivos que movem cada um

dos movimentos são diferentes. Enquanto que a atuação das FARC é motivada pelos fatores

econômicos e políticos citados acima, a motivação dos paramilitares é: “(...) promover interesses

econômicos de um determinado setor da sociedade com a tolerância ou o apoio do Estado [através

da violência] (FAULK, 2009). Além disso, é reportada certa relação dos paramilitares com a

distribuição de cocaína e heroína, e para controlar o tráfico, ocuparam militarmente a zona

fronteiriça, expulsando a população local (OSPINA, 2005).

Ademais, considera-se que os paramilitares são uma forma da elite se sobrepor ao

ordenamento jurídico, que já está enfraquecido com a implementação do estado de exceção e

atuação totalitária do Estado (OLIVEIRA, 2008). Diferentemente das FARC, que se tornam uma

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entidade política a partir da violência (OLIVEIRA, 2008), os paramilitares, que lutam pelos mesmos

objetivos da elite, já são representados perante o Estado; a violência dos paramilitares, ao contrário

das FARC, é objetivada pela repressão à oposição do Estado, que busca maior representação e

igualdade, bem como reivindicar as lacunas do Estado na promoção de direitos sociais (OLIVEIRA,

2008).

Figura 1: Localização das guerrilhas e forças paramilitares na Colômbia (2000)

Fonte: Le Monde Diplomatique, 2001

Outro aspecto a ser ressaltado é que embora o Estado colombiano tenha se mostrado contra

os paramilitares internacionalmente, ao se utilizar do estado de exceção para combater as FARC,

considerando-as como uma ameaça interna, permite-se indiretamente a atuação de grupos armados

de extrema direita. Ou seja, há uma espécie de pacto tácito entre governo e paramilitares, o que

resulta em maior violência contra a população, em meio a tal situação, pois, em geral, as forças de

segurança os paramilitares adotam políticas de massacre aos civis que julgam apoiar as FARC.

Assim, enquanto que o governo acusa as FARC de ser uma ameaça terrorista, este também apóia

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grupos paramilitares que expulsam a população das fronteiras, realizam ações violentas contra o

povo e ainda se utilizam do narcotráfico para se financiarem. Não obstante, estes grupos

paramilitares não são julgados como terroristas e não são o foco de combate no chamado Plano

Colômbia (OSPINA, 2005).

Prohibiting the formation of paramilitary groups with one law and facilitating their

existence with another; condemning their barbarities and at the same time assisting

their operations (...) even though in reality these 'illegal armed groups' have been

carrying out the dirty work unseemly for a state that claims to be democratic and

worthy of billions of dollars in US military aid (BENNET 2009).

Assim, o cenário interno colombiano é de extrema tensão e o Estado enfrenta uma crise de

ingovernabilidade, insuflada pelos indícios de acordo tácito do governo com os paramilitares para se

opor às FARC sem, entretanto, combater a pobreza, a miséria e a má distribuição de renda no país, o

que por sua vez reforça ainda mais as bases de reivindicação desse último grupo.

Uribe se recusa admitir a existência de um conflito político em um país que assiste a

uma guerra interna desde os anos 1950. A “ameaça terrorista” para ele é suficiente

como explicação. Para “pacificar” a Colômbia, há muito tempo o exército pactuou

com os paramilitares que enfrentam indiscriminadamente camponeses, estudantes,

sindicalistas, defensores de direitos humanos, jornalistas e militantes políticos.

(SOUEL, 2009)

Por outro lado, os grupos paramilitares possuem uma posição ambígua, passando a atuar

contra o Estado quando este propõe mudanças para atenuar a situação de desigualdade social do

país. Isso pôde ser verificado diante das novas propostas do governo recém-eleito de Santos, as

quais geraram a oposição dos paramilitares, uma vez que se focam na reestruturação do campo:

Esses sinais [sinais de mudança entre a gestão de Uribe e Santos] tocam dois

temas centrais do conflito: a questão agrária e as garantias políticas. O ministro da

Agricultura Restrepo fez uma declaração histórica sobre o tema da terra em um

recente debate convocado pelo ativista de direitos humanos Iván Cepeda. Falou de

restituição e de uma série de leis que, se aplicadas, levariam quase a uma reforma

agrária. É uma mensagem que atinge diretamente o coração do conflito e prepara o

caminho para uma possível solução do mesmo, diz o pesquisador (OPERA MUNDI,

2010).

Paralelamente, a população colombiana protesta contra a situação precária do trabalhador e

contra a pobreza, entretanto: “(...), um movimento nacional pela independência da Justiça e pela

revalorização salarial mobilizou mais de 80% dos efetivos do setor. Fechado a qualquer diálogo, o

chefe do Estado replicou decretando estado de emergência” (SOUEL, 2009). Nesse contexto, pode-

se considerar que o Estado colombiano toma algumas medidas de caráter totalitário, mesmo que se

apresente como democrático (FAULK, 2009). Em outras palavras, há uma virada totalitária contra os

interesses da população, que se assemelham com as demandas oficiais das FARC, e há a

polarização entre sociedade e governo, a partir da instauração do estado de exceção como

mecanismo de oprimir possíveis revoltas. Destarte, a guerra contra as FARC pode inclusive ter se

tornado uma desculpa para justificar ações totalitárias: “Para os sindicatos, a guerra contra „o

terrorismo‟ tem por objetivo camuflar os fiascos do poder: desemprego em alta, uma economia em

baixa, 70% de pobres e um aumento de 27% das plantações de folha de coca22

” (SOUEL, 2009). E

22 O Sistema de Medida do Cultivo de Folha de Coca das Nações Unidas (Simci) relata, em junho de 2008, um aumento de 27% da zona cultivada em 2007, sublinhando um retorno aos níveis de cultivo atingidos em 2002

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45

em última instância, a guerra contra as FARC se torna uma justificativa para a militarização; “as

despesas militares [6% do PIB] e a ausência de investimento social” (SOUEL, 2009).

Neste sentido, a população colombiana não tem representatividade, uma vez que o Estado

suspenda a constituição através do estado de exceção e legitime grupos paramilitares que assumem

papel de polícia nacional. Ademais, a democracia colombiana é considerada uma das mais frágeis da

América Latina23

(PNUD, 2004) principalmente se considerarmos que o Estado colombiano tem

demonstrado optar por uma virada totalitária. O resultado dessa configuração é que, ao mesmo

tempo em que as FARC se tornam justificativa para a violência do Estado, os sindicatos que se

opõem ao governo são ameaçados, e cada vez menos a população colombiana tem oportunidade de

se expressar por meios não violentos, ao passo em que o Estado se militariza cada vez mais

(SOUEL, 2009). Nota-se então que as relações sociais na Colômbia são mediadas principalmente

pela violência, e isso fica evidente à medida que a população está duplamente exposta às ações

violentas legais estatais e ilegais dos paramilitares (OLIVEIRA, 2008).

Uma vez que a preferia só se insere no capitalismo de forma subordinada, a Colômbia vive

um estado de exceção econômico permanente, principalmente após a implementação do

neoliberalismo. Como o modelo neoliberal não foi capaz de criar bases de apoio populares que

permitissem sua reprodução de forma relativamente pacífica, as tensões sociais se acirram durante

os anos de reformas. Tais tensões remetem a gargalos estruturais anteriores ao modelo neoliberal,

mas que encontram sua saturação durante os anos 1990/2000. Assim, grupos como as FARC

passam a ganhar representação entre as parcelas mais excluídas da população e se tornam uma

maneira de se opor a tal modelo. Não obstante, o Estado encara o grupo, e não o mercado

desregulado, como uma ameaça a si. Ademais, por estar na periferia, o Estado está mais fragilizado

diante dos choques externos e das medidas que ameacem o interesse do capital, podendo trazer

consequências econômicas que prejudicariam as elites exportadoras de commodities. Assim, o

Estado opta por combater as FARC diretamente, e não os gargalos que as gerou, por meio do estado

de exceção.

Entretanto, por não combater tais gargalos, observa-se que as medidas tomadas não são

suficientes para derrotar as FARC, e o estado de exceção se torna uma regra, pois sua aplicação

passa a ser usada ordinariamente. Desse modo, há um aumento da militarização e da violência no

país que não se reflete em uma diminuição das tensões sociais. Paralelamente, as elites, temerosas

pela possibilidade de perderem sua posição privilegiada, se organizam como outro grupo armado de

oposição às negociações com as FARC. Tal postura trava a atuação do Estado, pois este não pode

derrotar as FARC sem oferecer novas formas de reduzir as tensões sociais, mas também não pode

oferecer condições sociais melhores porque as elites irão se opor24

. Assim, “a Colômbia transformou-

se numa tragédia, cujas características todos conhecemos, e está em vias de transformar-se num

não-Estado e numa não-nação” (OLIVEIRA, 2004).

23 Assim, pode-se apontar que segundo o PNUD (2004) a região menos democrática da América Latina é a região andina. 24 Ademais, com a crise econômica de 2007/2008, o PIB colombiano se reduziu no ano seguinte, o que prejudica ainda mais a situação socioeconômica e diminui a capacidade do governo de investir, uma vez que com a redução do PIB há redução da renda e, portanto menores ganhos com a tributação.

Page 46: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

46

PARAGUAI: O CONFLITO SOCIAL MILITARIZADO

O acirramento da mobilização social no Paraguai, marcado, durante o último ano, pela

emergência e manifestação do grupo guerrilheiro denominado Exército Popular Paraguaio (EPP),

pode ser considerado como resultante de uma situação social, política e econômica que vem

mostrando suas deficiências derivadas de um desenvolvimento precário no país. Essa precariedade

do desenvolvimento nacional tem como resultado uma grande disparidade da situação

socioeconômica da população devido à ausência do desenvolvimento de uma base econômica

industrial forte no país e passa a ser aprofundada com a adoção do sistema econômico neoliberal

durante o século XX.

Pode-se comprovar o subdesenvolvimento paraguaio pelo Relatório de Desenvolvimento

Humano da ONU, que apresentou, no ano de 2007, o Paraguai em 95º lugar no ranking de

desenvolvimento socioeconômico do mundo e, enquanto em 2009 há uma queda dessa posição para

o 101º lugar do ranking (PNUD, 2010). Por outro lado, é possível observar que, mesmo após a

implantação do neoliberalismo, o IDH paraguaio cresceu. Todavia, apesar do crescimento, se

comparado com os demais países latino-americanos, o progresso do IDH está bem abaixo da média,

conforme mostra o Gráfico 3 abaixo.

Gráfico 3

Fonte: PNUD. 2010

Ademais, a ausência de redistribuição equânime de terras para o plantio de subsistência por

meio de uma reforma agrária, somada ao desprovimento de ajuda governamental à população

carente, obriga grande parte da sociedade a promover migrações internas, por falta de emprego tanto

no campo quanto na cidade. Concomitantemente, considerando a falta de indústrias de alto valor

agregado nos centros urbanos, a população paraguaia passa a sobreviver principalmente do tráfico

ilegal de mercadorias em sua fronteira nacional. Desse modo, pode-se considerar que, além do

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47

precário desenvolvimento industrial no país, a posse de terras no Paraguai e a ausência de políticas

sociais são questões primordiais para a compreensão da postura de ação violenta do EPP.

Ademais, o atual presidente paraguaio, Fernando Lugo, foi eleito com forte apoio da

população25

, pois sua campanha estava baseada na busca por mudanças econômicas e políticas que

permitissem um maior desenvolvimento do país. Tais mudanças correspondiam à reestruturação do

parlamento, uma maneira de romper com os resquícios da ditadura Stroessner26

, pois a formação

parlamentar paraguaia permanece quase a mesma desde esse governo; e, no escopo econômico, a

rearticulação dos investimentos estatais a partir da renegociação do tratado de Itaipu, que será

tratada adiante, já que traria maiores divisas para o Estado.

Entretanto, devido à crise política que o presidente enfrenta contra o parlamento, o

cumprimento de sua agenda em prol do desenvolvimento que alcance as necessidades sociais da

maior parte da população não é bem sucedido, refletindo, portanto, em um aumento das tensões

sociais. Tal aumento revela-se em um conflito armado e passa a ser considerado uma ameaça ao

Estado e também à sociedade, uma vez que a retaliação estatal se dá pela via armada, pois a

oposição às políticas estatais leva a um combate estritamente violento. Assim, ao mesmo tempo em

que os conflitos sociais ganham espaço e passam a agir de forma violenta, o Estado passa a buscar

soluções e medidas para controlá-los, que, no caso paraguaio, não têm sido eficazes. Para

corroborar essa questão, um dos maiores atores que apontam as deficiências de uma segurança

democrática na América do Sul são os Estados Unidos, por meio de seu report produzido pelo

Departamento de Estado estadunidense, o qual aponta que:

[…] a weak politicized judicial system, a police force widely viewed as corrupt and

ineffective, and a lack of strong anti-money laundering and terrorist financing

legislation continued to hamper Paraguays counterterrorism efforts” (Country

Reports on Terrorism 2008, Abril 2009).

Logo, o Paraguai tem passado por momentos de grande tensão sócio-política que resultam

nas manifestações do EPP e, por isso, faz-se necessário analisar a atuação desse grupo guerrilheiro

para se entender de que modo ele pode ser considerado uma ameaça ao Estado paraguaio. E, em

contrapartida, entendê-lo como uma resultante do desenvolvimento socioeconômico precário do país,

pois, como fora supracitado, é necessário analisar o contexto em que o movimento violento se insere

para que, então, ele seja realmente compreendido. Nesse sentido, é a condição estrutural de um

desenvolvimento socioeconômico imensamente assimétrico, associada a políticas que priorizam a

elite e não a população como um todo, que acentua essa manifestação.

A manifestação do Exército Popular Paraguaio (EPP)

O histórico do EPP nos remete a ações violentas27

praticadas pelo grupo desde o ano de

1997. Sua movimentação ocorre entre comunidades camponesas e pequenos grupos que vivem em

25 Lugo conseguiu uma vitória inquestionável nas eleições, conquistando 40,83% dos votos. 26 O General Alfredo Stroessner conquistou o poder no Paraguai em 1954 com o apoio militar, pelo partido Colorado, logo após o golpe contra o presidente Federico Chávez. Stroessner governou o país com mão-de-ferro e reprimiu toda e qualquer oposição durante os seus sete mandatos consecutivos que foram marcados por fraudes para que ele continuasse no poder. Todavia, seu regime ditatorial caiu em 1989, onde houve outro golpe militar liderado pelo general Andrés Rodríguez (GALLO, 2010). 27 Entre as atuações violentas do EPP está o sequestro de Maria Edith Debernardi, esposa de um dos empresários mais ricos do Paraguai, em 2001; em 2004, o rapto de Cecília Cubas, filha do ex-presidente Raúl Cubas Graum; em

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48

acampamentos em áreas de mata a fim de mobilizar indivíduos que estejam insatisfeitos com sua

situação socioeconômica, principalmente no que concerne à questão da terra. A atuação do grupo

guerrilheiro acontece principalmente nos departamentos de Concepción e San Pedro e, segundo

investigações conduzidas pelos serviços de inteligência do Paraguai e da Colômbia, alguns membros

do EPP teriam recebido treinamentos guerrilheiros das FARC, fato que aumenta ainda mais a

preocupação do governo paraguaio, pois essa ligação pode ser remetida a um possível envolvimento

do EPP com o narcotráfico (FREIRE, 2010).

Apesar de ainda haver uma incerteza quanto aos objetivos do grupo, segundo o discurso de

uma das principais dirigentes do EPP, Carmen Villalba, o povo tem o direito de suscitar mobilizações

para se defender e para exigir a responsividade do Estado para com suas necessidades básicas,

inclusive através de meios violentos, pois considera que a população é vítima da violência das

elites28

. Essas elites são, sobretudo, agrárias, e dispõem de grandes latifúndios desde os tempos da

colonização em detrimento da marginalização do restante da sociedade paraguaia29

.

Nesse sentido, vale ressaltar que grande parte da população paraguaia vive abaixo da linha

da pobreza e a maioria da população só consegue se inserir marginalmente no sistema capitalista a

partir da economia informal, como a produção de maconha. Essa inserção ocorre de tal modo já que

as vastas extensões de terra pertencem aos grandes latifundiários, que maximizam sua produção

para o interesse econômico próprio. A pobreza e a extrema pobreza são evidenciadas no Gráfico 4

abaixo, que apresenta o crescimento desses fenômenos na sociedade paraguaia.

Em seguida, é importante ressaltar que, apesar do nível de produção agrícola ter aumentado

ao longo dos anos devido à ampliação da produção agrícola privada, esta possui menor participação

na composição do PIB paraguaio, já que seu valor agregado é baixo e não se compara com o valor

agregado pelos setores de serviços, de manufaturas e de indústrias. Nesse sentido, é válido também

comparar a evolução do PIB paraguaio com o PIB brasileiro, por exemplo, para aclarar ainda mais a

situação econômica desfavorecida do Paraguai, conforme pode ser visto nos Gráficos 5 e 6.

2005 e 2006, o assassinato de três policiais e o incêndio de uma delegacia. Já em julho de 2008, foi atribuído ao grupo guerrilheiro o sequestro do pecuarista e ex-prefeito de Tacuatí, Luis Alberto Lindstron, mantido em cativeiro por 34 dias até que o grupo recebesse o resgate e então o libertasse. Outro sequestro foi o do pecuarista Fidel Zavala ocorrido em 2010 (PAULIN, 2010). Não está na refrencia. 28 “Una de sus principales dirigentes, Carmen Villalba detenida por el secuestro de María Edith de Debernardi, una de las grandes fortunas del país, reivindica desde la prisión "el derecho a la defensa, incluso por medios violentos". "¿Qué más violencia que la que ejercen los matones en las haciendas contra campesinos indefensos a los que expropian de todo?", declaró en una conferencia de prensa que dio en 2008, desde la misma prisión” (DÍAZ, 2010). 29 “De todos os países da América Latina, o Paraguai é o que possui a maior concentração de terra na mão de poucos fazendeiros. De acordo com o último censo agropecuário, feito pelo Ministério da Agricultura, 1% dos proprietários concentram 77% das terras, enquanto que 40% dos pequenos agricultores (que possuem até 5 hectares) têm em suas mãos 1% das áreas. Enquanto existem mais de 350 mil famílias sem-terra, 351 proprietários concentram 9,7 milhões de hectares” (MST, 2006).

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Gráfico 4

Fonte: CEPALSTAT, 2008.

Gráfico 5

227,565

478,575

644,729

1595,498

3,931 4,653 7,095 16,1010

200

400

600

800

1000

1200

1400

1600

1800

1980 1990 2000 2008

Evolução do PIB em Milhões de dólares

Brasil Paraguai

Fonte: UNCTAD – Handbook of Statistics, 2009

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Gráfico 6

Fonte: UNCTAD – Handbook of Statistics 2009

Ao considerar tais dados, pode-se perceber que a falta de indústria e a alta concorrência

entre os poucos capacitados para a inserção no mercado no setor de serviços explicita ainda mais a

grande importância da terra como possibilidade de uma melhor inserção no sistema econômico por

parte da população camponesa. E, por esse motivo, o EPP reivindica a reforma agrária.

Deve-se considerar, também, que os bens que o país importa são commodities industriais e

bens de consumo duráveis, ou seja, produtos tecnologicamente superiores às commodities in natura

exportadas. Isso se torna relevante ao analisarmos a dependência tecnológica que caracteriza o

subdesenvolvimento mais latente do país. Esse processo de obtenção de divisas através da

exportação de commodities tende a manter os gargalos estruturais da economia30

que resultam em

uma sociedade desigual.

Assim, a questão da pobreza e má distribuição de renda e terra são aspectos intrínsecos à

manifestação de grupos de pressão social, como o EPP, que utilizam a violência. Logo:

Es posible que mensajes como ese provoquen simpatía en una zona que ha sido

relegada por el Estado, que tiene grandes carencias de comunicación, en la que hay

enormes estancias de hasta 20.000 hectáreas y en las que las organizaciones

campesinas denuncian habitualmente abusos", acepta el ministro. "No sabemos con

precisión cuántos simpatizantes puede tener el EPP, pero lo que importa es que es

un grupo criminal que opera en una zona en la que es usual el tráfico de drogas y de

armas. Nosotros nos lo tomamos muy en serio, porque son peligrosos. No pueden

poner en peligro la estabilidad de las instituciones pero sí la vida de personas y

aumentan la inseguridad en una zona que ya es proclive al crimen organizado

(DÍAZ, 2010).

30 No caso paraguaio, podemos apontar como gargalos estruturais da economia as suas deficiências econômicas, que limitaram, e continuam a limitar, o seu desenvolvimento, como, por exemplo, a falta de um parque industrial, a dependência das exportações, além de seus problemas internos decorrentes da concentração de terras, entre outros.

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Insere-se na questão da má distribuição de terras no Paraguai a manifestação do EPP na

região de fronteira entre esse país e o Brasil, pois muitos colonos brasileiros habitam esse espaço

próximo à fronteira e lá desenvolvem uma vasta produção agrícola (MAZZONETO; SION, 2010).

Mas assim como se poderia dizer que não há um Estado paraguaio em certas

zonas, há isso sim um Estado brasileiro no Paraguai”, assinala Marielle Palau, do

centro de pesquisa BASE31

. “Houve uma política de apropriação agressiva do

território paraguaio por parte de colonos brasileiros”. O jornalista Rolando Ávalos

assinala inclusive que “não existe soja paraguaia, existe soja no Paraguai”. Já para

a socióloga Milda Rivarola o problema é ainda mais grave: “praticamente metade do

Paraguai é quase um território transnacional da globalização que está sob a

influência econômica do Brasil. Mas esses enclaves nunca foram realmente

paraguaios. A Cargill e a Monsanto ocuparam um espaço que estava politicamente

vazio 32

(CRISCAUT, 2010).

As demandas por terra e a objeção aos brasiguaios – população brasileira que vive na

fronteira com o Paraguai – se relacionam com a carência da reforma agrária e com a necessidade de

sair da pobreza, principalmente porque o Estado paraguaio não consegue de fato suprir as

necessidades da população e nem se fazer presente em determinadas áreas, principalmente nas

rurais, onde latifundiários tem maior influência.

Com efeito, os brasiguaios também se preocupam com a violência guerrilheira devido às suas

terras de cultivo de grãos33

:

Aqui, os brasileiros são imigrantes estrangeiros e com uma situação econômica

muito boa, então é normal que tentem nos prejudicar. Provavelmente, os brasileiros

serão vítimas desses guerrilheiros” - disse a advogada Vilma Dias de Oliveira. –

“Não sabemos o poder de fogo real deles” - diz ela, que vive há 30 anos em

Ernandaria, na região da fronteira com o Brasil (FREIRE, 2010).

Portanto, é esse o contexto em que o EPP passa a agir, ou seja, o movimento emerge frente

às medidas de um modelo neoliberal implantado às avessas, que traz consigo implicações negativas

no Paraguai. Então, o Estado passa a tratar o movimento como ameaça e tenta suprimi-lo pela via

violenta.

Estado de exceção paraguaio: a tensão entre o Estado e a sociedade

A tensão social no Paraguai sempre esteve presente no país, principalmente no que tange à

questão de ocupação de terras. Como mostram os dados abaixo, a desocupação de extensas áreas

ocupadas por camponeses imposta pela via violenta, com o objetivo de utilizar as terras para fins

agrícolas e interesses da elite, se faz presente no país há alguns anos. A seguir, observa-se o gráfico

7, que apresenta dados da população desabrigada e ferida devido a combates violentos que tinham

por objetivo evacuar grandes extensões de terras para que se tornassem áreas agricultáveis.

31 ONG BASE Investigaciones Sociales. 32 O Chaco Boreal, 60% do total do território nacional que se encontra a oeste do rio Paraguai, concentra somente 4% da população. Ver Milda Rivarola, “Política, población y territorio”, palestra apresentada no seminário “Paraguay, territorios e historia”, Assunção, agosto de 2009. 33 Um dos latifundiários brasileiros que vive em Santa Rosa de Araguari, em San Pedro afirma que aumentará a segurança ao redor de sua propriedade de 150 hectares e relatou que “por enquanto, ninguém mexeu com a gente, mas eles (do EPP) parecem muito perigosos. Estamos trabalhando tranquilamente, mas já nos reunimos (com outros brasiguaios) para aumentar nossa segurança”.

Page 52: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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Gráfico 7

Fonte: BASE.IS, 2009.

Logo, a tensão já existente entre o Estado e a sociedade aumenta ainda mais com a atuação

do EPP, que por sua vez passa a agir de forma violenta e a propor não só a conquista do poder por

uma via revolucionária, mas a reforma agrária universal. Assim, o Estado paraguaio, ameaçado pela

ação do grupo de esquerda, oferece, em última instância, uma recompensa pela apreensão dos

revoltosos34

e decretou o estado de exceção.

Logo, observa-se o problema estrutural do sistema político e jurídico do Paraguai, pois a

“caça” aos membros do EPP deixa de ser feita pelos governantes e pela polícia responsável pela

segurança do país e passa a estar nas mãos de mercenários. Os problemas de segurança do Estado

remetem a uma debilidade de atuação dele próprio, que busca as vias da supressão de direitos

democráticos temporários para o combate dessa violência.

Para tal efeito, a principal medida tomada pelo governo paraguaio para conter a ação dos

guerrilheiros, de forma mais imediata e rigorosa, foi o estado de exceção decretado durante 30 dias

em cinco departamentos do Paraguai. Aprovado em abril de 2010, o estado de exceção permitia ao

Presidente da República a utilização das Forças Armadas, Força Pública e Polícia Nacional

livremente (CARMO, 2010). Entretanto:

Un estado de excepción de 30 días no sirve para cumplir los objetivos diseñados,

aunque si para otros propósitos. "El Ejército no estaba allí para capturar a los 20 o

40 posibles militantes del EPP en la zona, sino para dar respuesta a otros muchos

problemas que allí existen". De hecho, al finalizar el estado de excepción, los

militares no han vuelto completamente a sus cuarteles sino que unos centenares se

han quedado en la zona para reforzar la presencia del Estado, tranquilizar a los

hacendados y dar más respaldo a las fuerzas de seguridad. "Para este tipo de

34 O presidente Fernando Lugo ofereceu uma recompensa de 500 milhões de Guaranis (moeda corrente paraguaia) para quem pudesse fornecer uma informação útil que leve a captura de algum membro do EPP (PANNUNZIO, 2010).

Page 53: CADERNO TEMÁTICO CONFLITOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

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trabajo, todos sabemos que lo fundamental la labor de inteligencia, como en los

asuntos del narcotráfico", asegura Filizzola35

(DÍAZ, 2010).

Assim, os argumentos do grupo guerrilheiro do EPP concernem à produção de maconha nas

regiões como uma justificativa de uma maior presença do Estado nessas regiões – não como um

braço social-assistencialista, mas opressor, pela via das Forças Armadas, de modo a minar as

atividades ilegais. Destarte, pode-se considerar que o motivo para a aprovação do estado de exceção

pode ter relação com questões sociais que não necessariamente estejam ligadas ao EPP.

Ademais, há ainda outras questões que devem ser consideradas. A adoção do estado de

exceção no Paraguai traz à tona a preocupação com a militarização do país, uma vez que:

O que preocupa é a intenção de militarizar o país. A militarização não é a solução.

“Estamos muito próximos de uma ditadura militar e esse tipo de atitude, tanto no

campo como na área urbanal, nunca resolveu nossos problemas sociais", acusou à

ANSA a representante da entidade, Mariel Palau, fazendo alusão ao período

comandado pelo general Alfredo Stroessner, entre 1954 e 1989. Ainda segundo

Palau, haveria a intenção de se "aprovar uma lei para que as Forças Armadas

possam atuar a qualquer momento, sem a necessidade de Estado de Exceção

(MAZZONETO; SION, 2010).

Assim, a aprovação do estado de exceção pode ser considerada uma ação mais complexa e

com objetivos maiores do que acabar com o EPP. Neste sentido, é possível apontar que a ideia

original do Presidente Lugo seria desmantelar as relações de poder existentes no parlamento desde a

época da ditadura. Como o poder parlamentar, em oposição, já havia previsto seu impeachment, tudo

o que o parlamento precisava, então, era um artifício para tal ação (CRISCAUT, 2010):

Essa desculpa para um “golpe institucional” apareceu, por exemplo, em 15 de

outubro de 2009, quando o Exército Paraguaio do Povo (EPP)36

sequestrou o

pecuarista Fidel Zavala. Após três meses de cativeiro, em 17 de janeiro passado,

Zavala foi liberado são e salvo. E, embora não tenha sido “resgatado” pelo governo,

mas “libertado” pelos apelos de sua família junto aos raptores, o episódio evidenciou

a fragilidade do novo governo e duas facetas questionáveis de sua administração:

os acordos de cooperação em matéria de segurança e terrorismo com o governo

colombiano e a tendência crescente de enquadrar na via militar conflitos derivados

de condições sociais e agrárias de há muito relegadas (CRISCAUT, 2010).

Além disso, a militarização do país traz maior oposição ao Presidente, uma vez que há a

possibilidade de mudança na lei para que as Forças Armadas sejam usadas sem a necessidade de

instauração do estado de exceção, o que poderia ser visto como uma postura totalitária do governo

(MAZZONETO; SION, 2010). Assim, a instauração do estado de exceção deve ser vista como uma

maneira de controlar o país à luz do neoliberalismo e dos interesses políticos e econômicos do

Estado, nesse caso, da elite paraguaia, por meio da violência contra os opositores a esses

interesses. O EPP pode se tornar uma justificativa para uma virada totalitária na América Latina, à

semelhança das FARC na Colômbia, uma vez que o Paraguai enfrenta oposição interna, de direita –

os grupos de pressão ligados aos latifundiários e à elite – e de esquerda – como o EPP.

35 Ministro do Interior Paraguaio. 36 Suposto grupo reduzido de camponeses e membros do partido de esquerda Pátria Livre, cujos objetivos são pouco claros, mas que atua com um profissionalismo surpreendente em alguns dos departamentos mais pobres das zonas de expansão da soja, limítrofes ao Brasil, e no departamento de San Pedro. A direita, com o coloradismo duro e dissidente de Lino Oviedo, buscou vinculá-lo às FARC da Colômbia e, inclusive, ao próprio Lugo, já que muitos de seus dirigentes foram seminaristas. Informações de Verónica Smink, “Paraguay: massivo operativo contra insurgente”. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/mundo/america_latina/2010/01/100125_2323_operativo_insurgentes_paraguay_epp_irm.shtml>

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Brasil e Paraguai: debate sobre o EPP e a crise social paraguaia

Considerando a pressão pela qual o Estado paraguaio tem passado, e a sua insuficiência em

sanar essa problemática interna, o presidente Fernando Lugo tem buscado ao menos minimizar a

possibilidade de preocupação generalizada na América Latina quanto à atuação do EPP e a crise

dentro de seu país. A retaliação do Estado paraguaio aos membros do EPP tem sido feita; todavia, é

válido lembrar que dois dos principais procurados pelo governo do Paraguai estão no Brasil, como

refugiados políticos37

.

Uma das principais questões colocadas em pauta no que tange à política externa entre

Paraguai e Brasil é que, atualmente, a delegação paraguaia pressiona o governo brasileiro, por meio

da apresentação à Organização das Nações Unidas (ONU) de uma carta que afirma que o refúgio

não pode ser sinônimo de impunidade, ou seja, o Paraguai deseja a extradição dos acusados para

que sejam levados a tribunal e, então, julgados (ANSA, 2010). O objetivo do julgamento decorre da

suspeita de que os três refugiados sejam coordenadores do EPP e, por isso, sua tortura e punição

ainda estão na agenda no Parlamento paraguaio (PANNUNZIO, 2010). Neste contexto, pode-se

perceber uma atitude totalitária do governo paraguaio, a qual remete ao tempo da ditadura, uma das

propostas de Lugo não foi concretizada. Ademais, deve-se considerar que, de acordo com os direitos

dos refugiados, os acusados não podem ser extraditados para o Paraguai, uma vez que a extradição

pode significar ameaça à vida (ACCIOLY; CASELLA, 2010).

Além da questão da extradição dos possíveis coordenadores do EPP, há certa preocupação

por parte do governo brasileiro no que concerne à segurança de suas fronteiras com o Paraguai. A

livre ação dada aos grupos de segurança nacional do Paraguai pelo estado de exceção influenciou o

ex-presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva a decidir instalar bases da Polícia Federal e da

Força Nacional de Segurança ao longo de 11 estados brasileiros, além da presença de 500 homens

com apoio aéreo e de embarcações para que suas fronteiras estivessem protegidas contra a ação

dos membros do EPP e também como o objetivo de dar assistência aos brasiguaios que vivem na

região e correm o risco de ter suas terras invadidas. Ademais, o Congresso brasileiro analisa a

possibilidade de doação de três aviões Embraer para a Força Aérea Paraguaia (FAP) a fim de

controlar o narcotráfico, em troca de um Boeing 707 (LINO; CARRASCO, 2010).

Concomitante a esse assunto de segurança, a questão energética da usina de Itaipu

negociada entre os governos brasileiro e paraguaio é bastante influente na tensão social paraguaia,

pois uma melhora nos termos e nas condições de troca de seu fornecimento energético, a partir de

Itaipu, pode gerar maior desenvolvimento econômico, ou seja, amenizar, por meio de um relativo

crescimento econômico, a mobilização da população no que diz respeito a sua condição

37 O poeta e escritor Juan Arrom e o jornalista Anuncio Martí se mudaram para o Brasil há cerca de seis anos a fim de conseguirem proteção contra a repressão do governo paraguaio, ou seja, asilo político, pois foram acusados do sequestro de dona Maria E. Debernardi, e, como consequência, foram presos ilegalmente e torturados. A ligação entre eles era que, no passado, durante a ditadura de Alfredo Stroessner, ambos participaram do Movimento Pátria Livre que se opunha ao governo ditatorial. Como forma de repressão, eles foram presos e mantidos em cativeiro sob sessões de tortura, mas foram resgatados pela irmã de Juan que buscou incessantemente localizá-los quando desapareceram e provar a ilegalidade do ocorrido. Após o resgate, foi possível provar as sessões de tortura pelas quais os acusados passaram e, para que não enfrentassem um processo justo de julgamento, os militares forçaram Juan e Anuncio a atravessarem a Ponte da Amizade para obter asilo político no Brasil e ficar em segurança. Atualmente ambos são motivos de pressão paraguaia sobre o governo brasileiro para suas respectivas extradições (PANNUNZIO, 2010).

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55

socioeconômica. As propostas do Presidente Lugo de promover maiores gastos sociais dependeria

dessa nova fonte de financiamento, uma vez que a energia não consumida pelo Paraguai poderia ser

comercializada com qualquer outro país a preço de mercado.

Portanto, é possível observar que a pressão internacional contra o EPP tem buscado,

relativamente, a minimização desse movimento a fim de amenizar a tensão social dentro do Paraguai

e evitar possíveis ameaças aos países vizinhos. O Brasil tem mostrado interesse em cooperar por

meio de algumas medidas de segurança38

. Todavia, acerca da extradição dos refugiados, o Brasil

permanece com a decisão dada pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) de manter sua

segurança, assim como nos casos do italiano Cesare Battisti e do colombiano Oliverio Medina,

“embaixador” das FARC (LINO; CARRASCO, 2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, podemos dizer que as problemáticas sociais no Paraguai e na Colômbia, apesar

de serem vistas como uma ameaça ao Estado e à sociedade de ambos os países, envolvem também

todo um contexto político, estrutural e até mesmo histórico que tem impactado nos levantes e no

acirramento da violência como instrumento de reivindicação da população por uma maior presença

do Estado no que tange à provisão de melhor condição socioeconômica da população.

Os Estados se veem ameaçados, uma vez que a necessidade de defender sua política

capitalista neoliberal e garantir o fluxo de renda nacional acaba por minar a possibilidade de assistir

às camadas sociais mais necessitadas. A população, ao ver membros da elite e do governo desfrutar

de seus privilégios, enquanto, ela mesma não se vê assistida em qualquer aspecto por eles, passa a

agir de tal forma, de modo a exigir a responsividade estatal.

Nesse sentido, deve-se concluir deixando as seguintes questões: será que a população, ao

se ver ameaçada pela carência de recursos, está correta em agir de tal forma, mesmo sendo

retaliada violentamente pelo Estado? Além disso, a postura do Estado de observar em sua própria

sociedade uma ameaça não seria um erro, quando, na verdade, a violência social é utilizada devido à

lacuna que ele próprio estabelece? Como dito anteriormente, a conjuntura estrutural é que traz as

consequências atuais, e, por isso, não podemos fazer uma única reflexão e afirmação, seja ela qual

for.

REFERÊNCIAS

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60

A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA NO NEOLIBERALISMO

PERIFÉRICO: A AÇÃO DO MST NO MEIO RURAL E DOS

PIQUETEROS NOS CENTROS URBANOS

Gabrielle Fernandes Teixeira ([email protected])

Mateus Ubirajara Santana ([email protected])39

Orientação: Érika Laurinda Amusquivar40

Abril de 2011

RESUMO

Este artigo tem como principal objetivo apontar os limites do modelo de desenvolvimento

socioeconômico adotado pelo Brasil e pela Argentina nos últimos vinte anos, buscando demonstrar

de que maneira as demandas dos principais movimentos sociais presentes nesses Estados –

respectivamente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos

Piqueteros – expressam esse desgaste. Para isso, o trabalho propõe identificar os impactos que as

políticas neoliberais provocaram nas relações de trabalho nesses dois países, priorizando a análise

da alteração das funções produtivas no meio rural brasileiro e nos centros urbanos argentinos, além

de um estudo das mudanças na relação campo-cidade provocadas pelo advento do neoliberalismo.

As políticas neoliberais geraram maior especialização, eficiência e rentabilidade no processo de

acumulação de capital, mas não foi capaz de promover uma distribuição mais equânime nas

sociedades brasileira e argentina. Nesse sentido, buscaremos demonstrar como o MST (movimento

rural) e os piqueteros (movimento urbano) se tornaram importantes atores políticos na luta contra

esse modelo econômico, ao priorizarmos nossa discussão em duas questões centrais que se

encontram na pauta de discussão desses movimentos: a distribuição e utilização da terra por um

lado, e o nível de emprego e industrialização por outro.

PALAVRAS-CHAVE: MST, Piqueteros, Neoliberalismo, trabalho, renda

39 Gabrielle Fernandes Teixeira e Mateus Ubirajara Santana são alunos do 4º ano de graduação em Relações Internacionais, e pesquisadores do CERI-OFTA / FACAMP (Observatório de Fenômenos Transnacionais nas Américas do Centro de Estudos de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas). 40 Érika Laurinda Amusquivar é Mestre em Ciência Política pela UNICAMP, Professora do Curso de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas e Coordenadora do CERI-OFTA/FACAMP.

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INTRODUÇÃO

Durante todo o processo de desenvolvimento econômico e social latino-americano, alguns

países se destacaram mais que os outros, com a promessa de desenvolvimento econômico baseado

na construção de todo seu parque industrial. Dois países que mais se aproximavam de um modelo

desenvolvimentista na América do Sul eram o Brasil – por seu vasto território e políticas estratégicas

que determinaram sua influência no subcontinente latino-americano – e a Argentina, que na década

de 1970 apresentava níveis de desenvolvimento equiparado com países desenvolvidos, como os da

Europa ocidental. Havia, portanto, características em comum a esses países: ambos possuíam a sua

parcela de projetos desenvolvimentistas capazes de transformar o cenário latino-americano em

termos de projeção de poder econômico.

No entanto, a inserção do modelo econômico e social neoliberal, iniciada em meados da

década de 1970 e consolidada nos anos 1990, permitiu que a América Latina priorizasse este modelo

em detrimento do projeto nacional-desenvolvimentista que vigorou no período pós-guerra. Em linhas

gerais, tal modelo contemplava uma cartilha de regras para o crescimento econômico dos países

baseado na supressão de políticas econômicas intervencionistas por parte do Estado, assim como na

sua ausência no atendimento de demandas da sociedade civil, o que acarretou sérias instabilidades,

tanto econômicas quanto sociais. Com a inserção do projeto neoliberal na América Latina, pôde-se

notar que o Brasil e a Argentina foram os países mais prejudicados pelo processo de deterioração

dos termos de troca, pulverizando todo seu modelo desenvolvimentista. Consequentemente, o

cenário que se delineou para esses países e os demais atores estatais latino-americanos no novo

século XXI foi o de instabilidade, tanto econômica quanto social.

É nesse ínterim que grupos sociais passaram a intensificar suas reivindicações, que se

concerniam principalmente às questões sociais de direitos como emprego, terra e renda. Aponta-se,

portanto, para um problema que vem se desvelando com maior evidência a partir da década de 1990

e que se arrasta para o advento do novo século: a entrada de capitais estrangeiros nesses países

não significa necessariamente maiores taxas de emprego e, por conseguinte, uma homogeneidade

de renda, uma vez que a maior parte deles, diferentemente do que ocorria no período do nacional-

desenvolvimentismo, não são de caráter produtivo, mas meramente especulativo.

À luz desse cenário de transição desenvolvimentista para economias de mercado41

, torna-se

necessário entender a forma pela qual a relação, por vezes paradoxal, “Estado - modelo econômico -

sociedade”, interage com os espaços campo e cidade. Analisar essa interação é importante para

repensar as bases do desenvolvimento socioeconômico, uma vez que tanto o campo quanto a cidade

apresentam importantes funções no que diz respeito à reprodução e circulação do capital. Além

disso, esses espaços têm impactos diretos nas formas de reprodução das relações sociais baseadas,

principalmente, no trabalho.

41 É importante destacar que tanto o Brasil quanto a Argentina tinham os instrumentos necessários para seu desenvolvimento, mas foram constrangidos a abdicar desse projeto em favor de um novo modelo econômico e, como consequência, marginalizaram questões tão importantes à sociedade.

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62

Assim, a problemática que se constrói nesse trabalho é entender de que maneira os

movimentos sociais latino-americanos, em destaque o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST), no Brasil, e os Piqueteros, na Argentina, podem ser compreendidos não apenas como

formas de resistência e de respostas sociais aos efeitos do neoliberalismo no campo e na cidade,

mas também como movimentos sociais capazes de proporem formas alternativas de

desenvolvimento.

Portanto, o objetivo geral do trabalho é expor de que maneira as reivindicações desses

movimentos podem evidenciar as condições necessárias para se buscar esse desenvolvimento e

assim desmistificar a imagem negativa impressa pelo senso comum, privilegiando uma análise que os

reconheça como indivíduos marginalizados das relações de produção e que, por meio dessas

organizações coletivas, conseguem exercer sua liberdade de expressão e contestar sua condição

social. Pretende-se, ademais, mostrar em que medida essas ações coletivas representam uma

resistência aos efeitos que o sistema neoliberal provocou – ao buscar uma alteração da estrutura

vigente e, consequentemente, das condições sociais da classe que defendem – e, portanto, apontar

as possíveis alternativas a esse modelo de desenvolvimento capitalista.

A ERA NEOLIBERAL NA ARGENTINA E NO BRASIL

Se a ditadura militar havia preparado o terreno para os experimentos neoliberais elaborados

pelos economistas da Escola da Chicago42

– por meio da parcial venda de companhias estatais, dos

incentivos à vinda de corporações multinacionais, da proibição de greves e das desregulamentações

trabalhistas que permitiam que os empregadores demitissem irrestritamente os trabalhadores (KLEIN,

2008) – nos anos 1990, com as privatizações massivas realizadas no governo Menem, na Argentina,

e no governo Collor e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, e com o aumento das

desregulamentações e da precarização no mundo do trabalho, o neoliberalismo se instala

definitivamente nos dois países.

As políticas neoliberais adotadas tanto pela Argentina quanto pelo Brasil durante a década de

1990 foram caracterizadas pela privatização massiva de ativos e empresas públicas,

desregulamentações trabalhistas e redução do emprego público. Enquanto no plano externo essas

medidas foram combinadas com uma ampla abertura tanto para o comércio quanto para o capital

externo, no plano interno realizava-se uma política fiscal altamente restritiva, de altos tributos e cortes

nos gastos do governo, além de políticas de valorização cambial, nitidamente enquadradas nos

ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Com as mudanças ocorridas no modelo capitalista em curso, os que mais perderam com as

políticas neoliberais foram, sem dúvida, os trabalhadores urbanos e rurais, fato visível nas precárias

condições sociais: crescente processo de concentração da renda, redução de gastos públicos com

42 Escola americana, liderada pelo economista liberal Milton Friedman, que teve decisivo papel na difusão da crença de se adotar políticas liberais para promover o crescimento econômico, principalmente nos países periféricos. O Chile, durante a ditadura de Pinochet, é o exemplo mais expressivo da adoção dessa cartilha neoliberal proposta pela Escola de Economia de Chicago (Cf. KLEIN, 2008).

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63

saúde, educação e habitação, deterioração das condições de trabalho e dos salários, aumento do

desemprego e das taxas de precarização e crescente exclusão social. Diante desse cenário, tanto os

trabalhadores urbanos e quanto os rurais passam a viver em condições cada vez mais incertas,

principalmente pela crise no mercado de trabalho, caracterizada pela crescente escassez de emprego

nos dois espaços.

O legado das políticas neoliberais foi devastador, pois ao restringir o emprego urbano, tornar

as condições de trabalho precárias e aumentar o nível do trabalho informal mal remunerado e de

péssima qualidade, permitiu: (1) o aumento massivo do desemprego – situação evidente na Argentina

e que inclusive condicionou o surgimento do movimento piquetero – e (2) a penalização da agricultura

familiar, provocando a falência de milhares de pequenos produtores – situação verificada no Brasil,

cuja maior evidência seria o aumento das bases sociais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

(MST).

A evolução do sistema capitalista, desde o capitalismo comercial, passando pelo industrial,

chegando ao financeiro, provocou mudanças muito significativas no modo de vida, nas relações

econômicas, no mundo do trabalho e na estruturação do espaço geográfico. No que concerne ao

espaço geográfico, o presente artigo analisará, em um primeiro momento, a dinâmica do capitalismo

sob a ótica da relação campo-cidade, a fim de buscar compreender os desdobramentos do capital

nesses dois espaços e suas consequências para a sociedade.

E posteriormente, pretendemos corroborar a tese de que a luta pela terra, no caso do MST, e

a luta pelo emprego, no caso dos piqueteros, se tornou a última opção para uma parcela significativa

da população, num período de crescente insegurança do desemprego, do subemprego e da

marginalização social devido às transformações da dinâmica produtiva global. Nota-se que à medida

que se amplia a exclusão social e marginalização de grande parte das classes menos favorecidas,

tanto urbanas quanto rurais, as bases sociais desses movimentos também aumentam, dando a essa

população a esperança do trabalho, da sobrevivência, da dignidade e da possibilidade de reprodução

social.

A partir dessa constatação, pretende-se argumentar que as lutas sociais têm sido um

importante instrumento de confronto contra o movimento do capital: tanto o MST quanto os piqueteros

têm se transformado em focos de resistência às políticas neoliberais, mesmo num contexto de

enfraquecimento e desmonte das classes trabalhadoras tanto no campo quanto na cidade. Sendo

assim, analisaremos as principais demandas do Movimento dos Sem Terra (MST), no Brasil, exemplo

dos impactos perversos que tais políticas acarretaram para a população no campo, e dos Piqueteros,

na Argentina, exemplo de como as ondas de privatizações e o processo de desindustrialização

acarretado pelas políticas neoliberais criaram tensões sociais nas grandes cidades argentinas,

propiciando grande mobilização da sociedade civil.

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A DINÂMICA DO CAPITALISMO SOB A ÓTICA DA RELAÇÃO ENTRE CAMPO E

CIDADE

Uma das possíveis formas de compreender a dinâmica do capitalismo e a nossa própria

sociabilidade é por meio da análise das interações entre campo e cidade, uma vez que esses

espaços possuem importantes funções relativas à reprodução e circulação do capital, além de

afetarem diretamente os mecanismos de reprodução das relações sociais pautadas, sobretudo, no

trabalho. De modo a entender como as forças do capital na era neoliberal incidiram sobre as

populações rurais e urbanas, provocando os conflitos sociais expressados nos dois movimentos

sociais que estão sendo analisados neste trabalho, faremos uma breve análise sobre a relação entre

campo e cidade, destacando suas principais funções para a acumulação do capital e sua

transformação ao longo do tempo.

Segundo Henri Lefébvre43

(apud MARQUES, 2002), a evolução histórica da relação campo-

cidade está dividida em três momentos: a era agrária, a era industrial e a era urbana.

Nas sociedades agrárias, a cidade se caracterizava apenas como local de consumo,

enquanto o campo era o lugar em que a produção tinha a função de atender a demanda do meio

urbano. Ao fazer uma análise da evolução da formação das cidades, Marta Inez Medeiros Marques44

cita Marx:

Neste período, a separação entre cidade e campo pode ser entendida como

separação entre capital e propriedade da terra, ou seja, como o início de uma

existência de desenvolvimento do capital independente da propriedade da terra, ou

seja, como o início de uma existência e de um desenvolvimento do capital

independente da propriedade da terra. Isto se dá quando os servos, tornados livres,

passam a desenvolver trabalhos de artesãos na cidade, dando origem a uma forma

de propriedade que tem por base somente o trabalho e a troca (MARX, 1987: 79

apud MARQUES, 2002: 105).

Ao se consolidar a separação entre produção e comércio, aumenta-se progressivamente o

processo de divisão do trabalho e das funções de cada espaço. Assim, o campo torna-se o locus do

fornecimento dos produtos necessários para a produção industrial das cidades, local onde se

realizam as trocas comerciais. Nesse sentido, é possível perceber que são os centros urbanos que

ditam todo o ritmo de produção rural, o que demonstra a subordinação desse espaço em relação às

cidades.

A emergência da economia de mercado capitalista, que superou o modo de produção feudal,

aprofunda ainda mais a divisão social do trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas,

promovendo a rápida circulação e centralização de capital, necessárias para a revolução industrial.

Nesse momento emerge a era industrial, que marca uma modificação no fundamento da riqueza, a

qual passa a se basear no trabalho e na troca presentes nas cidades – diferentemente da sociedade

agrária, pautada na propriedade da terra.

43 Henri Lefébvre (1901-1991) foi um importante filósofo francês, profundo estudioso da obra de Marx, que tentou resgatar na sua acepção sobre a produção social do espaço o princípio fundamental da teoria marxista: o homem como sujeito da sua história. 44 Professora Doutora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.

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65

Com o surgimento das cidades industriais, que concentram grande parte do capital produtivo,

há uma atração dos camponeses para as áreas urbanas, que também foram expulsos do campo em

função do processo de cercamentos45

. Assim, as cidades passam a abrigar um crescente número de

camponeses, que servirão de mão-de-obra para as indústrias. Como afirma a cientista social Maria

Glória Gohn:

O campo sempre foi um celeiro disponível para repor continuamente os

trabalhadores da cidade, ou para complementar os ciclos da produção na cidade por

meio de expedientes na economia informal que barateavam os custos da própria

reprodução da força de trabalho (GOHN, 2006: 214).

Com a industrialização, o processo de urbanização torna-se inevitável. Nesse sentido,

Lefébvre aponta para a formação de um tecido urbano e para a centralidade do papel da cidade no

processo de acumulação capitalista como características fundamentais da era urbana – período em

que há a incorporação progressiva do espaço rural por essas novas estruturas e atividades realizadas

nas cidades, que se tornam um espaço construído para a circulação de mercadorias e pessoas.

Segundo Marques (2002), o movimento urbano, associado ao processo de industrialização,

provoca o surgimento de novas atividades cuja função é estruturar a circulação das mercadorias, bem

como organizar toda a atividade econômica. Assim, a cidade emerge como sede dessas novas

funções técnicas e administrativas, além de exercer um papel na difusão das relações de produção,

como, por exemplo, por meio da propagação do consumo.

No que se refere à atual relação entre campo e cidade, é possível afirmar que o espaço

urbano e o espaço rural não podem ser analisados de maneira separada, mas a partir de uma

perspectiva que os considere como uma relação indissociável. De acordo com José Eli da Veiga46

,

não há mais uma nítida separação entre campo e cidade. Há atualmente um processo de

urbanização que se encarrega de modificar a sociedade em geral, atingindo e, consequentemente,

incorporando o meio rural (MARQUES, 2002).

O capitalismo é, portanto, diretamente responsável pelas profundas mudanças que ocorreram

nas relações entre campo e cidade, pois esses espaços representam o lócus do modo de produção

desse sistema. A análise da relação campo-cidade não pode ser feita de maneira dicotômica, em que

na cidade prevalecem apenas os setores industrial e de serviços, enquanto que no campo predomina

apenas o setor agrícola. O agronegócio47

, por exemplo, que se consolidou de forma profunda no

Brasil, dispõe de inúmeras tecnologias de ponta, o que demonstra o crescente processo de

urbanização do campo através da industrialização da agricultura.

Para além de uma análise estritamente econômica, a evolução dos diversos modos de

produção capitalista ao longo da história também transformou profundamente as relações sociais

45 Cercamentos constituíram o processo de exclusão dos trabalhadores de seu meio de sustento, as terras produtivas, na transição do modo de produção feudal para o capitalismo, mediante sua transformação em propriedade. 46 José Eli da Veiga é professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Núcleo de Economia Socioambiental (NESA). 47 O agronegócio é caracterizado por uma rede que envolve desde a produção e comercialização de insumos, passando pela produção agropecuária, até a transformação, distribuição e comercialização de produtos agropecuários. É caracterizado pelo emprego de altas tecnologias, aumentando significativamente a mecanização do campo. Dessa maneira, é possível perceber um nítido desenvolvimento tecnológico desse espaço, o que o coloca como uma importante extensão espaço urbano.

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66

tanto no campo quanto nas cidades. O trabalho – fator essencial para integrar os indivíduos na

sociedade – foi estruturalmente modificado durante o processo de industrialização.

A reestruturação produtiva da era de acumulação flexível e o modelo neoliberal, por meio da

desregulamentação dos mercados, da abertura comercial e financeira e desmantelamento do Estado,

provocaram efeitos regressivos, e as baixas taxas de crescimento econômico transformaram o

desemprego em um grave problema estrutural. Dessa maneira, tanto nas cidades como no campo,

as oportunidades de trabalho que surgem – quando surgem – são normalmente de baixa qualidade,

situação agravada pela privação dos direitos trabalhistas. O resultado desse cenário é uma crescente

exclusão social, precarização das relações de trabalho e estagnação econômica, que impede a

criação de novos empregos.

Sobre a ampliação do mercado de trabalho no campo, a modernização conservadora da

agricultura48

transformou as paisagens rurais em grandes lavouras tecnificadas. A nova dinâmica

territorial provocou intensas mudanças nas relações de trabalho no espaço rural: aumento da

desqualificação, sub-proletarização, além do aumento de desemprego, que redefine a subordinação

dos trabalhadores a essa nova dinâmica de produção. O capital agroindustrial-financeiro

internacionalizado incorporou diversos espaços rurais à economia mundial, mediante a monocultura

para exportação, a instalação de agroindústrias e a „integração‟ de grande parcela dos pequenos

produtores ao mercado, além da expulsão de milhares de famílias que viviam do trabalho na terra,

que perderam seu meio de produção e a possibilidade de acesso a terra.

Essas populações aglomeram-se precariamente nos centros urbanos, amontoando-se nas

periferias das cidades, sem qualquer alternativa de trabalho, sendo esse processo, pois, redefinidor

da questão cidade-campo. Esse movimento de ocupação urbana, sem a criação de uma estrutura

viável nas cidades capaz de receber o grande contingente de pessoas provenientes do campo e sem

o amparo das redes de proteção do Estado, acabou transferindo a miséria do trabalhador rural para a

miséria do trabalhador urbano.

Diante dessa indissociável relação campo-cidade, é possível afirmar que o desenvolvimento

sócio-econômico de um país depende diretamente da harmonia entre esses dois espaços, uma vez

que não se promove o desenvolvimento apenas em um deles. Quando analisamos os conflitos

sociais que surgem nesses espaços, como exemplificado pelo MST no Brasil e os piqueteros na

Argentina, apesar de muitos considerarem que são conflitos de natureza distinta, é preciso ter em

mente que a origem e os condicionantes dos conflitos são bastante semelhantes, como

demonstraremos a seguir.

48 A modernização conservadora é caracterizada pela subordinação da atividade agrícola às exigências da reprodução e acumulação do capital, o que promoveu a racionalidade técnica e científica na agricultura brasileira.

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67

O MST E AS DEMANDAS SOCIAIS

No contexto da implantação das políticas neoliberais no Brasil, é possível notar a forte

intensificação da luta pela terra nos anos 1990. Houve aumento no número de ocupações de terra,

acampamentos e crescentes manifestações a favor da reforma agrária. O Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)49

é uma expressão desse fato, considerado um dos atores

políticos mais importantes da luta pela terra e pela reforma agrária, além de ter se tornado o principal

movimento social que se opõe ao projeto neoliberal no país. O objetivo desta seção é discutir de que

forma essa organização social representa um espaço onde os indivíduos marginalizados das relações

de produção conseguem exercer sua liberdade de expressão por meio de mobilizações coletivas.

Segundo Claudinei Coletti50

, o crescimento do movimento a partir de 1995 foi possível devido

a um conjunto de fatores, dentre eles: o caráter aparentemente democrático do governo Fernando

Henrique Cardoso; os efeitos sociais perversos das políticas neoliberais, que provocaram a falência

de inúmeros produtores agrícolas; o aumento do desemprego rural e urbano, que permitiu que o MST

recrutasse essa parcela da sociedade marginalizada e expandisse suas bases sociais; a ausência de

“constrangimentos econômicos” entre os sem-terra, como o medo da demissão e do desemprego,

fatores que facilitam a mobilização desses trabalhadores; e, por fim, a ideologia anticapitalista do

MST, que permitiu ao movimento resistir à hegemonia neoliberal (COLETTI, 2005).

Através da organização e mobilização da população rural e urbana marginalizada pelos

efeitos do capitalismo neoliberal, o MST aponta a dificuldade do governo em solucionar os problemas

sociais dos brasileiros. Na medida em que o emprego nas cidades não é mais uma opção para

aqueles que foram expulsos do campo, ou para os trabalhadores marginalizados nas periferias e

favelas do meio urbano, uma das formas de sobrevivência passa a ser a luta pela terra ou a

resistência nela. Por isso, as pressões dos sem-terra aumentam e o movimento exige

constantemente respostas do governo às suas demandas.

O MST tem se destacado no cenário das lutas sociais no Brasil pelas ocupações de terras, de

prédios públicos e pela realização de marchas. Quase todos os estados do Brasil se tornaram palco

de luta do MST, em que há o confronto direto com os grandes proprietários rurais e com o próprio

Estado, transformando os sem-terra em uma classe autônoma e distinta, não mais em apenas

trabalhadores desapossados. Esses são os principais métodos utilizados pelos sem-terra para

pressionar o governo e a sociedade e, assim, tornarem conhecidas suas reivindicações, que muitas

vezes são considerados violentos. Dessa maneira, devido aos meios que utilizam para reivindicar, há

49 Na primeira metade da década de 1980, vários movimentos de luta pela terra já haviam promovido ocupações de terra em várias regiões do Brasil, como no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo. O MST começa então a se formar no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, em um momento histórico marcado pela crise do regime ditatorial instaurado no país em 1964. O MST surgiu da reunião desses movimentos populares, e foi fundado oficialmente em 1984 no Paraná, na cidade de Cascavel, como um movimento de luta pela terra, reforma agrária e transformações sociais, sendo composto basicamente por pequenos agricultores sem-terra, desempregados ou subempregados rurais, e até por desempregados urbanos que não encontram emprego nos centros urbanos. 50 Doutor em Ciências Sociais e Mestre em Ciência Política pela UNICAMP, professor do Centro Universitário Padre Anchieta e das Faculdades Hoyler, integrante do Cemarx, autor do livro “A estrutura sindical no campo” (Campinas: Ed. da Unicamp, 1998) e da tese de doutorado “A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal”(Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2005).

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uma tendência de criminalização do MST por parte de alguns setores da sociedade, sobretudo da

classe capitalista e dos latifundiários. Trata-se também de um movimento social que consegue

articular demandas que não só contemplam a reforma agrária, mas que envolvem a parcela da

sociedade desprovida de direitos sociais, o que se traduz em uma violência velada de supressão de

direitos à dignidade da pessoa humana.

Dada a importância política e ideológica que o movimento assumiu para o conjunto das classes

populares e suas organizações no cenário político do país e, até mesmo, latino-americano, as

próximas seções se propõem a analisar como o MST é uma representação de contestação ao

sistema neoliberal implantado no país. O movimento, através de suas reivindicações, levanta sérios

questionamentos em relação aos impactos sociais das políticas adotadas no passado, tentando

alterar a estrutura vigente e, consequentemente, transformar as condições sociais da classe que

defende.

O Brasil em números

Há uma combinação entre desigualdade e pobreza no Brasil, assim como em toda a América

Latina, que permite caracterizá-lo como um país de expressiva polarização da riqueza. O crescimento

econômico provoca uma relativa diminuição da pobreza, mas é muito aquém do que se espera. No

país e em toda a região latino-americana, nunca existiu um crescimento igualitário. Os altos níveis de

pobreza e miséria poderiam diminuir de forma mais significativa através de mudanças na distribuição,

e não pelo crescimento (PAES DE BARROS; MENDONÇA, 1992 apud HOFFMAN; CENTENO,

2006). Os índices colocam o Brasil como uma potência econômica, mas essa posição não mudou a

alta concentração de renda nas mãos da elite. Em 2009, o PIB do país foi de $1,574 trilhões de

dólares, e mesmo com um número tão expressivo, e em 2008 registrou-se que 26% da população

ainda vive abaixo da linha da pobreza (CIA, 2010).

Quando se analisa o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil entre 2006 e 2007,

o país se manteve entre aqueles classificados como de desenvolvimento humano elevado (IDH entre

0,800 e 0,899), com 0,813, colocando o país em 75º lugar no ranking mundial em uma lista com 182

países e territórios (PNUD, 2009). Porém, é importante notar que os brasileiros mais pobres vivem

em condições de desenvolvimento humano comparáveis aos países com elevado grau de

desigualdade, como a Índia; em contrapartida, os 20% mais ricos vivem em situação melhor que a

fatia mais rica da população da Suécia, Alemanha, Canadá e França. As informações estão no

relatório do PNUD, que analisa os números recentes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e

cita um estudo europeu que conclui que países que atingiram alto desenvolvimento humano (IDH

maior de 0,800) nos últimos anos, como o Brasil, ainda têm parte da população sofrendo privações

comuns às de países do fim da lista (PNUD, 2008).

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69

Somente com a redução da desigualdade é que será possível diminuir a pobreza e melhorar

a possibilidade de crescimento econômico em ritmos aceitáveis. Ao analisarmos o índice de Gini51

do

Brasil, em 2001 este se apresentava aos 59,3 pontos centesimais, e apesar de em 2006 ter caído

para 55,9 pontos, ainda é insuficiente para retirar o Brasil da lista dos países com um dos piores

níveis de distribuição de renda do mundo. O atual índice de Gini do Brasil é aproximadamente 10

pontos mais elevado que o dos Estados Unidos, que possui 46,9 pontos e, entre as nações

desenvolvidas, é considerado um dos piores exemplos de distribuição de renda. Em comparação com

o Canadá – 39,9 pontos – o Brasil está 17 pontos acima da sua distribuição de renda

(GARSCHAGEN, 2007). Assim, mesmo se comparado com países em desenvolvimento, o índice de

Gini do Brasil ainda é muito elevado, e apesar da sua diminuição nos últimos anos, o país é mais

desigual do que todos os países com IDH superior ao seu (PNUD, 2006).

Gráfico 1: Evolução do índice de Gini

FONTE: PNUD, 2006.

Em uma lista com 126 países e territórios, o Brasil é o 10º mais desigual. A tabela a seguir

aponta a evolução da desigualdade em alguns países comparando três relatórios do Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2006).

A desigualdade de renda já está enraizada na história brasileira. O profundo grau de

desigualdade distributiva do país é o principal determinante da pobreza. Quando analisamos a renda

apropriada pelos 10% mais ricos da população, em apenas oito países essa parcela se apropria de

uma fatia de renda nacional maior que a dos ricos brasileiros. No Brasil, essa parcela da população

se apropria de 45,8% da renda, menos que no Chile (47%), Colômbia (46,9%), Haiti (47,7), Lesoto

51 O índice de Gini é utilizado para medir o grau de concentração de renda em determinados grupos. Varia de zero a 1 e, quanto mais baixo o índice, melhor é a distribuição da renda de um país.

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70

(48,3%), Botsuana (56,6%), Suazilândia (50,2%), Namíbia (64,5%) e República Centro-Africana

(47,7%) (PNUD, 2006).

Tabela 1 – Evolução da desigualdade nos países

FONTE: PNUD, 2006.

Por outro lado, apenas em sete países a parcela da riqueza apropriada pelos 10% mais

pobres é menor que no Brasil. No país, os pobres detêm somente 0,8% da renda, número superior à

dos pobres da Colômbia, El Salvador e Botsuana (0,7%), Paraguai (0,6%), e Namíbia, Serra Leoa e

Lesoto (0,5%). Quando se compara os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, a fatia da renda obtida

no Brasil pelo quinto mais rico da população (62,1%) é quase 24 vezes maior do que a fatia de renda

do quinto mais pobre (2,6%) (PNUD, 2006).

Os valores reportados não deixam dúvidas quanto à singular posição do Brasil: está entre os

países com maior grau de desigualdade do mundo, e as consequências da má distribuição também

atingiram o campo. No Brasil, apenas 2,5% das propriedades era de menos de dez hectares,

enquanto 80% tinham porções de cem hectares ou mais até 1980 (REYNOLDS, 1996 apud

HOFFMAN, CENTENO, 2006). Menos de 1% das posses da terra era de mais de mil hectares, mas

elas respondiam por 43% do total da terra (WOOD; CARVALHO, 1988 apud HOFFMAN; CENTENO,

2006).

No Censo Agropecuário 2006 do IBGE, foram identificados 4.367.902 estabelecimentos52

da

agricultura familiar, o que representa 84,4% dos estabelecimentos brasileiros. Esses

estabelecimentos ocupavam uma área de 80,25 milhões de hectares, ou seja, 24,3% da área

ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Estes resultados demonstram a

concentração da estrutura agrária brasileira: os estabelecimentos não familiares, apesar de

representarem 15,6% do total dos estabelecimentos, ocupavam 75,7% da área ocupada. A área

52 Pelo IBGE, estabelecimentos agropecuários se referem a “toda unidade de produção que é dedicada, total ou parcialmente, a atividades agropecuárias, florestais e aquícolas, subordinada a uma única administração: a do produtor ou a do administrador. Independente de seu tamanho, de sua forma jurídica ou de sua localização em área urbana ou rural, tendo como objetivo a produção para subsistência e/ou para venda, constituindo-se assim numa unidade recenseável” (IBGE, 2006).

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média dos estabelecimentos familiares era de 18,37 hectares, enquanto que a dos não familiares era

de 309,18 hectares (IBGE, 2006). A concentração de terras no Brasil é, portanto, não apenas

persistente como crescente.

Se considerarmos os dados da estrutura fundiária do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA), que analisa os imóveis rurais53

, o Gráfico 2 exemplifica tal concentração.

Enquanto a área total dos imóveis está quase que igualmente dividida entre os três grupos, o número

de imóveis demonstra a profunda desigualdade da estrutura fundiária brasileira (GIRARDI, 2008).

Gráfico 2: Estrutura fundiária em 2003

FONTE: GIRARDI, 2008

O Mapa 1 mostra o índice de Gini da estrutura fundiária dos municípios brasileiros em 2003.

Nesse ano, os municípios que apresentaram médio/baixo índice de Gini (até 0,500) representavam

apenas 16,6% dos 5.565 municípios e compreendiam 6% do total da área dos imóveis rurais. É

possível perceber que a região Sul e o estado de Rondônia concentram boa parte desses municípios.

Os valores do índice entre 0,501 e 0,800 foram verificados em 76,9% dos municípios, e

representavam 83,1% da área total dos imóveis rurais. Essa é, portanto, a classe predominante no

Brasil. Os municípios com índice acima de 0,800 correspondiam a 6,4% e possuíam 10,8% da área

total dos imóveis rurais (GIRARDI, 2008). Já o Mapa 2 mostra os dados suavizados do índice de Gini

em 2003, melhorando a análise da concentração fundiária no território brasileiro.

53 Os dados da estrutura fundiária do INCRA devem ser analisados com cautela, uma vez que “o cadastro do INCRA é abastecido com dados de natureza declaratória, não havendo conferências com informações dos cartórios de registro de imóveis, o que indica a fragilidade do sistema. A declaração de uma área superior ou inferior à área real do imóvel pode ter como objetivo a redução de impostos, omissão de terras improdutivas, ampliação de crédito rural e grilagem de terras. Por isso, devemos considerar possíveis desvios principalmente no tamanho da área dos imóveis rurais. Esses possíveis desvios nos dados do INCRA não os inutilizam, pois essas práticas ilegais, por mais numerosas que possam ser, não se aplicam à maioria dos detentores” (GIRARDI, 2008).

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A análise do índice de Gini não deixa dúvidas: os médios e altos graus de concentração

fundiária são os que predominam no Brasil. A maior parte da área total dos imóveis rurais apresenta

concentração média/alta.

Mapa 1 – Índice de Gini em 2003

FONTE: GIRARDI, 2008.

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Mapa 2 – Índice de Gini em 2003 (dados suavizados)

FONTE: GIRARDI, 2008

Além da concentrada estrutura agrária do Brasil, o campo ainda é caracterizado pelas suas

elevadas taxas de pobreza rural. Na década de 1970, por exemplo, havia uma maior concentração de

pobres nessa região. Entre 1970 e 1990, devido ao êxodo rural, diminuíram as taxas de pobreza rural

em 14%, porém, essas taxas nas cidades aumentaram em 30% (ROSENTHAL, 1996

apudHOFFMAN, CENTENO, 2006).

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74

Se analisarmos o rendimento médio do Brasil e de seus respectivos estados em 2006, é

possível perceber que em todos eles as populações rurais têm rendimentos bem abaixo aos das

populações urbanas. O Nordeste, por exemplo, possui rendimentos médios muito inferiores a um

salário mínimo, conforme se verifica no Gráfico 3 a seguir. Há claros contrastes entre a renda da

população urbana não-agrícola em comparação à população rural e agrícola, o que demonstra como

o espaço rural ainda concentra grande parte da população de baixa renda.

Gráfico 3 - Rendimento domiciliar per capita, populações agrícola, rural e urbana não-agrícola, por UF

(2006).

FONTE: FIQUEIREDO et.al., 2009.

Hoje o Brasil é um país essencialmente urbano, apresentando, no ano de 2008, 86% da

população vivendo nas cidades (CIA, 2010). Porém, a enorme quantidade de pessoas que migrava

do campo para as cidade ao longo dos anos transferiu os problemas sociais para as áreas urbanas. A

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75

Tabela 2 mostra essa evolução da urbanização brasileira por regiões dos anos 1980 ao ano 2000.

Em seguida, o Gráfico 4 aponta o total da população urbana e rural entre 1960 e 2000.

Tabela 2 - Grau de urbanização, segundo as Grandes Regiões – 1980 / 2000

FONTE: IBGE, 1980-2000.

Gráfico 4 - População residente, urbana e rural no Brasil (1960/2000)

FONTE: IBGE, 1960-2000.

Os dados do Censo Demográfico 2000 confirmam a tendência crescente de aumento da

urbanização no país. Na década de 1950, o Brasil passa a adquirir características de um país cada

vez mais urbano, principalmente devido à expansão industrial do Sudeste. O estado de São Paulo,

em particular, passa a ser um pólo de atração da grande massa da população migrante de origem

nordestina. Devido ao acréscimo de 26,8 milhões de habitantes urbanos, o grau de urbanização

aumentou de 75,59% em 1991 para 81,23% em 2000 (IBGE, 1960-2000). A migração rural-urbana

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76

está, portanto, intimamente ligada ao processo de industrialização da economia do país, além de ser

consequência da modernização conservadora do campo, como será visto na seção a seguir.

Modernização agrícola

O foco em relação à modernização agrícola durante o período do regime militar foi,

primordialmente, o da construção de grandes empresas rurais, que acabavam por favorer a

concentração da propriedade da terra. Essa foi a fase de transição do desenvolvimento agrícola

brasileiro: a substituição das formas “tradicionais” de produção para formas tecnologicamente mais

avançadas. A partir de 1965 houve uma significativa mudança da estrutura e do perfil de parte da

produção agrícola. A integração de setores agrícolas ao âmbito da valorização do capital industrial foi

concretizada através dos chamados “complexos agroindustriais”. Para que isso fosse possível, o

Estado desempenhou um importante papel nesse processo, garantindo sua consolidação (COLETTI,

2005).

Os “complexos agroindustriais” dizem respeito ao vínculo que a agricultura brasileira

estabeleceu com a indústria, o qual se deu em dois sentidos: por um lado, foi desenvolvida a indústria

para a agricultura, que produzia insumos como fertilizantes e defensivos, além de máquinas

agrícolas, como tratores e arados; por outro, se consolidou as indústrias encarregadas da

transformação industrial, da distribuição e comercialização dos produtos agropecuários. Em suma, a

agropecuária integrou a produção industrial como consumidora de insumos e maquinarias ou como

fornecedora de matérias-primas para as agroindústrias (COLETTI, 2005).

Os resultados desse desenvolvimento agrícola foram tanto o aumento na capacidade

produtiva da terra e do trabalho, aumentando de forma significativa a produção e a produtividade;

quanto a continuidade da extrema concentração da propriedade, verificando também um aumento da

exploração da força de trabalho, maior pressão sobre a mão-de-obra familiar nas pequenas

propriedades e a acentuação profunda do êxodo rural.

No contexto do neoliberalismo, a modernização agrícola se intensificou ainda mais. O modelo

agrícola tem sido afetado por quatro principais elementos provenientes das políticas neoliberais: 1) os

desiguais ajustes estruturais impostos aos países em desenvolvimento permitiram que os países

desenvolvidos continuassem com seus programas de subsídios. Os países subdesenvolvidos tiveram

que abrir seus mercados, e o setor agrícola foi duramente atingido, pois carecia de apoio,

principalmente do Estado, que ao reduzir seu papel de garantidor da seguridade social, permitiu o

aumento da pobreza rural; 2) o setor privado pôde aumentar sua influência com a desigual

liberalização do setor agrícola, a qual também abriu caminho para a especialização da produção em

detrimento de bens manufaturados e para o crescimento econômico (MORISSET, 1997 apud

BUCKLAND, 2006 apud GIRARDI, 2008; 3) as corporações transnacionais aumentam cada vez mais

o controle sobre a produção de novas técnicas e organismos, e suas cadeias de produção têm o foco

na produção em grande escala e privilegiam os grandes produtores; 4) por fim, há o direito sobre a

propriedade intelectual, aplicado em várias dimensões, como nas novas variedades de plantas, o que

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aumenta o poder de monopólio das grandes corporações que as desenvolvem (BUCKLAND, 2006

apud GIRARDI, 2008).

Dessa maneira, o agronegócio54

tornou-se a base desse modelo agrícola neoliberal, que

domina tecnologias e políticas agrícolas, além de ser controlado pelo capital. Por sua vez, o

campesinato, quando produz no agronegócio, o faz de maneira subordinada, ou seja, não é inserido

nesse sistema, pois não possui controle nenhum sobre a produção. Nesse contexto, o modelo

agrícola neoliberal aumentou a concentração, permitiu o maior domínio pelas grandes corporações,

levou prejuízos aos agricultores, direcionou a produção para grandes estabelecimentos agrícolas,

favoreceu os países desenvolvidos, aumentou a especialização, incentivou a monocultura e provocou

a degradação ambiental e aumento da pobreza. O caráter excludente, concentrador e predatório do

modelo neoliberal na agricultura não permite, pois, um desenvolvimento sustentado (GIRARDI, 2008).

É possível concluir, com base nessas observações, que o desenvolvimento capitalista da

agricultura no Brasil “resolveu” a questão agrícola (níveis de produção, produtividade, preços dos

produtos), mas agravou a questão agrária (as relações sociais de produção no campo) (COLETTI,

2005). E com a solução da questão agrícola, caracterizada por uma visão estritamente economicista,

a reforma agrária passou a ser vista muito mais como uma maneira política de solucionar um

problema de justiça social, cujo objetivo seria o de melhorar as condições miseráveis do camponês.

Principalmente no período da modernização agrícola durante a ditadura, a migração das

áreas rurais para as urbanas serviu como uma “saída” para a questão agrária e transferiu os

problemas sociais para as cidades. Esse movimento de ocupação urbana, sem a criação de uma

estrutura viável nas cidades para receber o grande número de pessoas que vinham do campo,

acabou acentuando o forte crescimento das favelas e da violência urbana. Assim, a miséria do

trabalhador rural se transformou em miséria do trabalhador urbano. Esse trabalhador urbano, sendo

de origem rural ou não, vivendo em condições extremamente precárias, acabou por considerar a

possibilidade de voltar ao campo como uma solução para a sua situação. A volta ao campo deveria,

porém, ser coletiva, na forma de um movimento social de luta pela terra, no caso, o MST (COLETTI,

2005;GALVÃO, 2008).

As políticas neoliberais, ao restringirem o emprego urbano, precarizarem as condições de

trabalho, aumentarem o nível do trabalho informal mal remunerado e de péssima qualidade,

penalizarem a agricultura familiar e provocarem a falência de milhares de pequenos produtores, criam

um contexto no qual muitos questionamentos são levantados contra o neoliberalismo. É nesse

contexto que surge o MST, juntamente com vários outros movimentos sociais, como uma reação às

condições precárias a que são submetidos diversos setores da sociedade, desmascarando as falsas

promessas do neoliberalismo.

O MST se tornou, assim, o movimento social mais importante no que diz respeito à luta contra

o projeto neoliberal que vem sendo implantado no país, além de ser uma das principais expressões

54 Agronegócio “é um complexo de sistemas que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças. O movimento deste complexo e suas políticas formam um modelo de desenvolvimento econômico controlado por corporações transnacionais” (WELCH e FERNANDES, 2008: 165)

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políticas da luta pela terra e pela reforma agrária. Nesse sentido, tem demonstrado que é capaz de

organizar ofensivas políticas e ações independentes, com base em princípios que vão contra o

neoliberalismo. Essa posição foi reforçada no V Congresso Nacional do MST, em 2007, quando o

movimento definiu oficialmente sua luta contra o neoliberalismo:

Nos comprometemos a seguir ajudando na organização do povo, para que lute por

seus direitos e contra a desigualdade e as injustiças sociais. Por isso, assumimos os

seguintes compromissos: articular com todos os setores sociais e suas formas de

organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o

imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro

(MST, 2009).

Diante desse contexto, a proposta de um novo modelo para a agricultura no Brasil, levantada

por movimentos sociais como o MST, se dá em algumas direções importantes55

: primeiro, há a

necessidade de acabar com a concentração de terras; segundo, é preciso atentar para a

internacionalização da agricultura brasileira, como acontece na compra de terras por estrangeiros, o

que aumenta a dominação de empresas transnacionais sobre esse setor; em terceiro lugar, critica-se

a própria função do latifúndio no país, que não privilegia a alimentação da sociedade, mas sim a

exportação (produção de soja, milho, cana de açúcar contra produção de arroz e feijão, por exemplo),

atendendo a interesses externos apenas; por fim, o modelo agrário hoje existente é caracterizado por

uma lógica de violência, que expulsa trabalhadores rurais ou se limita a explorar profundamente o

trabalham daqueles que ainda restam no campo (MST, 2010).Portanto, as críticas ao modelo agrário

vigente levam à defesa de outro modelo, que englobaria a reforma agrária baseada na

democratização das condições de vida no campo e na rejeição dessas características postas com o

modelo dominante: violência, exploração do trabalho e devastação ambiental.

Além disso, a reforma agrária ainda pode ser vista como estratégica no estabelecimento de um

novo padrão econômico de soberania nacional, como afirma Márcio Pochmann56

, pois seria um

importante instrumento contra a desnacionalização da propriedade da terra que vem ocorrendo no

Brasil, ameaçada pelos ditames econômicos das grandes corporações multinacionais. Para

Pochmann, a alteração da estrutura fundiária brasileira é primordial para o projeto de soberania

nacional, uma vez que é uma decisão sobre o poder econômico das corporações no Brasil. Seria o

contrapeso ao processo de internacionalização da propriedade de terra no país, que aumenta devido

à crescente escassez de terras férteis, água doce e minerais. O economista também condenou a

concentração de terras no Brasil e destacou a necessidade de reocupação do campo, espaço que

sofreu forte esvaziamento, aumentando a pobreza e exclusão social nas cidades (FERREIRA, 2009).

Do campo à cidade; da cidade ao campo

A configuração essencialmente urbana da sociedade brasileira sofreu profundas

transformações com a implantação das políticas neoliberais, principalmente no que diz respeito ao

55 É importante ressaltar, contudo, que a problemática da reforma agrária não surgiu com o neoliberalismo. Esse modelo capitalista apenas tornou ainda mais inviável sua realização. 56 Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor de economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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aumento do desemprego. O diagnóstico durante o processo de reestruturação produtiva em âmbito

global era de que a regulação do mercado de trabalho, das relações trabalhistas e as debilidades no

sistema educacional de formação e qualificação profissional da mão-de-obra seriam os principais

causadores do desemprego. A solução seria, portanto, flexibilizar essas relações. Contudo, o que se

percebe atualmente é que os ajustes estruturais promovidos não acarretaram os efeitos esperados,

uma vez que há um crescente aumento da precarização do trabalho e do número de trabalhadores

desempregados (SILVA, 2004).

Diante de tal realidade, é possível afirmar que o mercado de trabalho no Brasil passa por uma

profunda crise tanto no campo como na cidade, principalmente após os anos de estagnação

econômica. Nos anos 1990, além do aumento do desemprego e da informalidade, houve uma

crescente deterioração da qualidade de vida e do trabalho, de modo que os trabalhadores têm se

sujeitado a condições cada vez mais incertas, com baixos salários, péssimas condições de trabalho e

flexibilização dos direitos trabalhistas.

Na atual fase capitalista, os fatores determinantes do desemprego intensificaram os fluxos

migratórios e seus desdobramentos, e o que se percebe hoje é um crescente retorno dos

trabalhadores ao campo, uma vez que se verifica a incapacidade de aumentar a oferta de emprego

nas cidades. Em relação ao campo, a aliança terra-capital gerou uma forte migração para as cidades

na década de 1970, invertendo abruptamente a relação campo-cidade, uma vez que fechou as

fronteiras agrícolas ao trabalhador rural. Dessa maneira, os trabalhadores, parte deles expulsos do

campo e induzidos a acreditar nas promessas de emprego nas cidades, tem cada vez mais

questionado o modelo capitalista brasileiro (SILVA, 2004).

Os trabalhadores têm demonstrado que a volta ao campo pode ser uma forma de resistência

por meio do seu retorno e enraizamento. Essa é uma resposta à lógica do capitalismo, que ao

desenraizar as pessoas da terra, as transforma em proprietárias de sua força de trabalho apenas. Na

tentativa de contrariar esse processo é que se situa a luta pela terra, que se transformou em um

importante instrumento para os trabalhadores “migrantes” que lutam por sua sobrevivência e

dignidade. Os assentamentos rurais têm se transformado na possibilidade de construção da própria

existência, além de ter se tornado uma forma de resistência contra o capital (SILVA, 2004).

Na medida em que os camponeses lutam para voltar à terra, eles resistem, ao mesmo tempo,

contra a expropriação. Esta luta tornou-se, portanto, um importante meio para voltar ao ambiente em

que o trabalhador foi expropriado ao longo da modernização da agricultura, além de ser uma reação

às experiências frustrantes no mercado de trabalho nas cidades. É importante ressaltar, porém, que

esses migrantes não são apenas camponeses expulsos do campo, mas também os excluídos das

cidades, expulsos pela “modernização produtiva” da indústria. Por isso, também se configura como

instrumento de enfrentamento ao modelo excludente e que concentra cada vez mais renda, terra e

capital, baseado numa sociedade historicamente marcada pelos latifúndios e pelo consentimento do

Estado em relação aos interesses das elites.

Tanto a classe trabalhadora como os desempregados, ao se depararem com condições cada

vez mais precárias, respondem a essas mudanças através de sua reação organizada, numa

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confrontação social contra o capital. As lutas sociais têm, portanto, se tornado um importante

instrumento de resistência e um novo canal de expressão. Nesse sentido, o MST se destaca ao

movimento, ao criticar uma situação aparentemente insolúvel, promove manifestações como forma de

resistência à expropriação, expulsão e exclusão dos trabalhadores, e acredita na construção de uma

organização que se oponha aos latifundiários, ao neoliberalismo e à miséria. Os trabalhadores sem

terra lutam pelo direito ao trabalho e à dignidade que lhe foram roubados, se transformando em

importantes atores políticos ao trazer de volta o poder da reivindicação e da exigência do

cumprimento das leis (SILVA, 2004).

O MST e o governo Fernando Henrique Cardoso

A principal postura do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) em relação ao MST foi de

criminalização. Essa postura é exemplificada pela afirmação de FHC, no início de seu governo, ao ser

questionado pela CNN a respeito da repercussão das ações do movimento, principalmente as

ocupações de locais de grande movimento: “O Brasil é um país urbano e temos mais de 75% da

população nas cidades. Esses são problemas localizados”. Após o episódio do massacre de Eldorado

dos Carajás, em 1996, o presidente afirmou: "os sem-terra e a polícia militar são representantes do

Brasil arcaico" (CARDOSO apud COMPARATO, 2001).

Quando, em 1997, o movimento preparava a marcha de dois meses para Brasília, o governo

subestimou a capacidade do MST de realizá-la, desprezando seu poder de mobilização, o que

demonstra o despreparo do governo mesmo diante de pesquisas que informavam que 80% da

população era a favor da reforma agrária. A frase pronunciada pelo então Ministro do

Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, demonstra esse fato: "O MST é um movimento

numericamente pequeno. Está trazendo 1.500 pessoas para Brasília. O Rotary e o Lions57

têm muito

mais gente" (COMPARATO, 2001).

Apesar da estratégia do governo de desqualificar o MST, tentando diminuir a importância e o

alcance de suas ações, além de buscar enquadrá-lo como um movimento criminoso, o presidente

FHC e o MST realizaram cinco encontros relevantes entre 1995 e 2000. Esses encontros

demonstram que houve reconhecimento mútuo, entre o governo e o movimento, de que ambos

constituem-se em importantes interlocutores políticos, por um lado, e que são adversários, e não

inimigos, por outro. De fato, seria um erro a pretensão de eliminar um ao outro, pois o MST necessita

do governo para alcançar seus objetivos, assim como o governo não pode ignorar o MST. Como

resultado desses encontros, o MST conseguiu alguns resultados positivos, como o assentamento de

várias famílias ao longo do mandato de Fernando Henrique Cardoso (COMPARATO, 2001). O peso

político do MST desde então vem crescendo significativamente e muitos dos assentamentos

realizados no Brasil nos últimos anos devem-se à pressão exercida pelas ocupações de terra e pelos

acampamentos dos sem-terra.

57 O Rotary e o Lions são clubes de serviços que têm por objetivo financiar programas e projetos de ajuda a pessoas carentes e comunidades necessitadas.

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O MST e o governo Luiz Inácio Lula da Silva

Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) à presidência do Brasil em 2003,

aumentaram as expectativas de que a reforma agrária seria feita no país. No mesmo ano, membros

do MST e um grupo de especialistas coordenado por Plínio de Arruda Sampaio58

participaram da

elaboração do II PNRA (Segundo Plano Nacional de Reforma Agrária) que, assim como o I PNRA59

,

nunca foi realizado.

No inicio do século XXI, a principal barreira à reforma agrária foi e ainda é, sem dúvida, o

agronegócio, que controla a terra por meio de sua mercantilização, retirando a questão da reforma

agrária do campo político para o da economia capitalista. O governo Lula fez do agronegócio a

principal base de sustentação de seu governo. Como afirma Carlos Walter Porto-Gonçalves60

, há

uma significativa desproporção entre os recursos públicos destinados aos grandes empresários do

agronegócio e os destinados aos pequenos produtores – cerca de 28 bilhões de reais contra 4,5

bilhões em 2004 (PORTO-GONÇALVES, 2005).

Essa nova conjuntura redefine as correlações de forças a favor do agronegócio. Mesmo

diante desse cenário desanimador, o governo Lula e o governo FHC foram os que mais assentaram

famílias se comparados aos governos anteriores. Aproximadamente 80% das realizações em número

de assentamentos, famílias e área ocorrem durante esses governos, como mostram as tabelas a

seguir. É possível perceber, com base nas tabelas, que houve significativo aumento das ocupações

durante as duas gestões do governo FHC. Na primeira, o governo apostou no fim do conflito pela

reforma agrária a partir de uma ampla política de assentamentos. Contudo, o problema da questão

agrária continuou, principalmente devido ao seu caráter estrutural. Dessa forma, nos anos que se

seguiram, o governo inverteu radicalmente a estratégia, apostando na criminalização dos movimentos

de luta pela terra, principalmente em relação às ocupações realizadas. As medidas políticas adotadas

acabaram atingindo em certo grau as ações dos movimentos, como é possível observar pela redução

do número de famílias ocupantes e, consequentemente, redução do número de assentamentos na

segunda gestão do governo (FERNANDES, 2008).

58 Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária e coordenador da equipe de elaboração do II PNRA para o governo do presidente Lula. Em 2010, candidatou-se à presidência da república no Brasil e foi derrotado. 59 O I PNRA foi elaborado durante o governo Sarney, em 1985. 60 Doutor em Geografia e professor do programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense; integrante do Grupo do Trabalho Hegemonia e Emancipações de CLACSO e ex-presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000).

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Tabela 3: Ocupações de terra no Brasil (1985 – 2006)

FONTE: FERNANDES, 2008.

Tabela 4: Reforma Agrária no Brasil (1985 – 2006)

FONTE: FERNANDES, 2008.

A primeira gestão do governo Lula, por sua vez, gerou grandes expectativas pela realização

da reforma agrária, como dito anteriormente. Nesse período, os movimentos de luta pela terra

realizaram o maior número de ocupações desde então. Diferentemente dos últimos anos do governo

FHC, o governo Lula não adotou a postura de criminalizar as ocupações, pelo contrário, sempre

buscou dialogar com os movimentos. Porém, a política agrária adotado por Lula acabou provocando

um refluxo da luta pela terra e pela reforma agrária.

Marina dos Santos, integrante da Coordenação Nacional do MST, questionada sobre as

diferenças entre o governo FHC e Lula em relação ao movimento, respondeu:

A principal diferença entre os dois governos está relacionada ao tratamento dado

aos pobres do campo que realizam ocupações de terras e manifestações pela

Reforma Agrária. O governo FHC, por meio dos ministros, dos presidentes dos

órgãos da Reforma Agrária e até do presidente da República, tratava a questão

agrária e os trabalhadores sem-terra como caso de polícia. Era o mesmo tratamento

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dos governantes dispensado aos grevistas até o começo do século 20. Dessa forma,

legitimavam a repressão da polícia e a violência dos latifundiários. Já o governo Lula

tem mais sensibilidade e compreende a importância histórica da luta pela Reforma

Agrária do MST. Tanto que nos receberam para audiências e nos convidaram para

participarmos de conselhos para discutir a fome no país. Essa é uma diferença

fundamental, que não vai acabar com o latifúndio, mas ajuda os movimentos sociais

(MST, 2006).

O agronegócio recebeu, portanto, tratamento especial e tem se apropriado das terras dos

latifúndios, além de manter um estoque de terras para o futuro. Diante da proteção do agronegócio, o

governo investiu mais na regularização fundiária de terras na Amazônia do que na desapropriação de

novas terras a fim de criar novos assentamentos. Essa política atingiu diretamente o MST, pois ao

priorizar a regularização fundiária, aumentou significativamente o tempo de acampamento das

famílias (FERNANDES, 2008). E com as políticas de refinanciamento das dívidas do agronegócio e

aumento de créditos de investimentos e custeio, o poder de reivindicação dos movimentos foi

diminuindo, pois intensificou a dinâmica do agronegócio. As facilidades concedidas pelo governo

permitem o aumento recorde de desmatamento em áreas do Mato Grosso, Rondônia e Pará, por

exemplo.

Em 2005, na tentativa de contrapor esse processo, o MST promoveu uma nova fase de

mobilização, uma vez que os números de assentamentos no governo Lula não foram expressivos. O

movimento organizou a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, e o resultado foi a negociação com o

governo para assentar 430 mil famílias até o final do mandato. Porém, em 2003, o governo assentou

somente 36 mil famílias e não 60 mil como havia prometido. Em 2004, foram assentadas 81.200

famílias, contra o compromisso de assentar 115.000 (PORTO-GONÇALVES, 2005).

Sobre o primeiro mandato do governo Lula e o trato com a Reforma Agrária, Marina dos

Santos afirmou:

A Reforma Agrária não avançou de forma necessária para desconcentrar a

propriedade da terra no país durante o governo Lula. O governo deu prioridade para

o modelo agroexportador, baseado na produção de monocultura em latifúndios para

a exportação de soja, cana, algodão e eucalipto. Os assentamentos realizados não

atacaram o latifúndio. A maior parte foi em projetos antigos, regularização fundiária

ou em terras públicas. Mais da metade se concentrou na região da Amazônia Legal,

sem estrutura e distante dos principais mercados consumidores. Os objetivos do

Plano Nacional de Reforma Agrária do próprio governo não serão cumpridos. Não

foram atualizados os índices de produtividade, que determinam se uma terra pode

ser desapropriada ou não. Seguem ainda a tabela de 1975, que desconsidera a

evolução tecnológica e química do período. Por outro lado, o governo ampliou

significativamente o crédito para a pequena agricultura, levou a luz elétrica aos

assentamentos, fez o atendimento das famílias acampadas com cestas básicas e

ampliou os investimentos em projetos de educação, saúde, cultura e lazer nas áreas

de Reforma Agrária (MST, 2006).

Em 2006, último ano da primeira gestão do governo Lula, foram registradas 545 ocupações

de terra em todo o Brasil, sendo que 108 ocorreram somente do Estado de São Paulo. (ORIGUÉLA,

2010). Se compararmos esses dados com o último ano da segunda gestão de Lula, em 2010, os

números apresentam uma significativa queda. Nesse ano, até o mês de agosto, foram registradas

apenas 20 ocupações no mesmo estado. Das 51 ocupações registradas até agosto de 2010 em oito

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estados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Sergipe, Rio Grande do Sul, Espírito

Santo e Mato Grosso), 32 foram realizadas pelo MST (ORIGUÉLA, 2010).

Em todo o Brasil, entre janeiro e julho, foram registradas apenas 131 ocupações, com a

participação de 11.113 famílias. Em comparação com o mesmo período de 2009, foram registradas

200 ocupações com 18.478 famílias. Os acampamentos também sofreram uma redução: passaram

de 22 com 2.626 famílias no primeiro semestre de 2009, para 12 com 1.088 famílias no mesmo

período de 2010 (ORIGUÉLA, 2010). Essa A redução das mobilizações de movimentos como o MST

representa um retrocesso no seu poder de reivindicação, uma vez que diminui a pressão sobre o

governo em relação à realização da reforma agrária. Nos próximos gráficos é possível perceber o

movimento das ocupações e o número de assentamentos realizados nos últimos 21 anos no país.

Gráfico 5: Número de ocupações e assentamentos no Brasil (1988-2009)

FONTE: ORIGUÉLA, 2010.

Os dados do gráfico permitem concluir que nos anos de muitas ocupações, houve também

aumento do número de assentamentos realizados. Em 2008 e 2009 é possível perceber significativa

redução das ocupações e, consequentemente, dos assentamentos. As ocupações em 2008 foram

389 e foram obtidos 118 assentamentos; em 2009, 391 ocupações e 125 assentamentos. Já a tabela

acima mostra, de forma mais detalhada, a diminuição das ocupações durante o governo Lula.

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Tabela 5: Luta pela terra – Governo Lula

FONTE: ROCHA, 2009.

Tabela 6: Implantação de assentamentos rurais – Governo Lula

FONTE: ROCHA, 2009.

Em entrevista, um dos líderes do MST no Pontal do Paranapanema, Clédson Mendes,

quando perguntado sobre as perspectivas das ocupações em 2010, afirmou:

Não dá para saber. O que influencia, por exemplo, quando você faz um monte de

ocupação é porque você tem um monte de famílias acampadas, o contingente do

MST acabou diminuindo, e o principal motivo é a monocultura, na nossa região, no

caso, é a da cana. E como não houve muita conquista, você pega a década de 90 foi

onde o MST mais conquistou assentamento, e também a década que mais fez

ocupação de terra. Agora da década de 2000 para cá está diferenciado, e os

acampamentos, a falta de conquista é o principal motivo deles. E começamos

também a fazer lutas mais centralizadas, então antes qualquer 20, 30 famílias

fazíamos ocupação com maior facilidade, hoje não, para você fazer ocupação

precisa ter muita gente, porque a gente sabe que ta enfrentando uma unidade de

classe dos latifundiários, no caso do agronegócio” (ORIGUÉLA, 2010).

Como mostra Clédson Mendes, o avanço do agronegócio tem sido o principal obstáculo para

o avanço da luta pela terra, que aumenta a luta de classes. É possível afirmar, portanto, que se

observa hoje o aumento das tensões entre latifúndios, agronegócio, sem-terras acampados e até

mesmo os assentados (ORIGUÉLA, 2010).

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Sobre o governo Lula e sua política de assentamentos rurais, Clédson Mendes afirmou:

Sem dúvida alguma, o governo Lula não cumpriu com o que prometeu. Em 2009

assentou apenas 16 mil famílias, é um absurdo, que era para assentar 90 mil. E sem

dúvida alguma das 16 mil famílias metade são lotes que vem vagando,

principalmente no Norte do País, regularização de lote, sai uma família e entra outra,

essa outra é contabilizada e não quer dizer necessariamente que é família

acampada. No Pontal, o último assentamento do MST foi em 2006, 2007, o

Margarida, com 91 famílias. O INCRA considera a regularização, nós não

consideramos. Muitos assentamentos não privilegiam os acampados (ORIGUÉLA,

2010).

Ainda de acordo com Clédson Mendes, muitas famílias desistiram da luta pela terra ao longo

do governo Lula:

Eles tinham uma expectativa que no governo Lula garantiu que ia assentar todas as

famílias acampadas. Muitas famílias aguardaram até 2004, 2005, aí viu que não se

concretizou o assentamento e desanimaram, foram embora para a cidade, outros

foram assentados, mudaram de região, como aqui no Pontal também tem uma

especificidade que é terra devoluta, se tornou mais difícil conquistar terra pelo

ITESP, pelo governo do Estado, então as famílias foram para outra região que o

INCRA assentou mais famílias, foi gente para Andradina, outros foram para Iaras,

foram em busca de conquistar um pedacinho de terra. E outras permanecem na luta

(ORIGUÉLA, 2010).

Conforme afirma o MST, no Brasil há hoje 96 mil famílias acampadas. Muitas famílias

desistiram dos acampamentos pelo falta de avanço nas conquistas, como se percebe no Pontal do

Paranapanema. Muitas delas migraram para as cidades e outras se deslocaram para outros

acampamentos, movidas pela esperança de, um dia, obter um pedaço de terra. A conjuntura atual se

caracteriza, portanto, pela não realização da reforma agrária, pelos baixos números de ocupações de

terra, avanço do agronegócio, falta de acesso ao crédito e aumento do endividamento de famílias

assentadas. E apesar desse quadro um tanto quanto desanimador, não se pode perder de vista que

as ocupações exercem um papel extremamente importante no processo de democratização da terra,

pois representam a luta por terra e dignidade. Além disso, as ocupações reascendem a esperança de

reconectar o sujeito à política (ORIGUÉLA, 2010).

O CASO DOS PIQUETEROS

A experiência neoliberal na Argentina

A alteração das relações de trabalho e, consequentemente, das relações sociais nos grandes

centros urbanos argentinos devem ser compreendidas a partir das reformas políticas promovidas

pelos governos neoliberais, particularmente o governo de Carlos Menem. Sendo assim, torna-se

necessário analisar quais foram essas políticas, para que posteriormente se possa compreender de

que maneira elas impactaram na sociedade argentina e condicionaram o surgimento dos piqueteros.

A Argentina dos últimos vinte anos ilustra o que se pode chamar de laboratório para as

doutrinas e políticas econômicas pregadas pelo Consenso de Washington – conjunto de medidas

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econômicas que surge no final da década de 1980, cuja proposta era de que os Estados em

desenvolvimento que passavam por dificuldades econômicas adotassem reformas de liberalização.

Assim, a Argentina se tornou um dos países latino-americanos que mais se adequaram às propostas

neoliberais do Consenso de Washington, evidente na sua liberalização econômica, na integração

internacional e na perda significativa de autonomia política econômica nacional nos últimos vinte anos

(BATISTA JR, 2002).

Desde a subida ao poder do presidente Carlos Menem em 1989, período no qual a Argentina

sofria graves crises de hiperinflação, o modelo de substituição de importações61

presente na política

econômica argentina desde a década de 1930 dá lugar a medidas neoliberais atreladas à economia

globalizada, cujo objetivo era, sobretudo, tornar a taxa de câmbio mais competitiva (HAINES, 2009:

125).

Ao assumir a presidência, Menem, em primeiro lugar, praticamente entrega a condução da

economia para a multinacional Bunge & Born62

, sancionando posteriormente as Leis de Reforma do

Estado e de Emergência Econômica, que eliminou quaisquer tipos de mecanismos de intervenção

estatal, de proteção tarifária e de subsídios por parte do Estado. Assim, o presidente argentino

implanta o chamado Plano BB, que dá início a um processo de privatizações de ativos e de empresas

públicas, desregulamentações trabalhistas e redução do emprego público. No plano externo, essas

medidas foram combinadas com uma ampla abertura tanto para o comércio quanto para o capital

externo, enquanto no plano interno, realiza-se uma política fiscal altamente restritiva, de altos tributos

e cortes nos gastos do governo, além de políticas de valorização cambial, nitidamente enquadradas

nos ditames do Fundo Monetário Internacional (HAINES, 2009. pp. 126-127).

Depois, uma das reformas estruturais adequadas à lógica de mercado (eliminação de

intervencionismo estatal) efetuadas por esse presidente foi a Lei de Conversibilidade, de abril de

1991, quando o peso argentino passa a ser atrelado ao dólar americano na paridade de um para um.

Essa política de valorização cambial, com fins de combate à hiperinflação, foi combinada com uma

política monetária restritiva, que conseguiram, de fato, resolver a crise inflacionária, na medida em

que a inflação que era 84% em 1991, diminuiu para 17,5% no ano seguinte e desaparecendo em

1995 (HAINES, 2009: 195).

No entanto, apesar de ter combatido a inflação, a política de forte valorização cambial trouxe

severos problemas ao saldo comercial argentino. Entre 1992 e 1999, o Estado apresentou um déficit

comercial de aproximadamente US$ 24 bilhões, produto da crescente cifra de importações, que em

1987 era de US$ 6.360,160, passando para US$ 26.430, 855 em 1998 (HAINES, 2009: 133) – um

nítido efeito da facilidade do consumo de produtos importados por parte da população, já que a

paridade peso argentino com o dólar americano encontrava-se na proporção um por um.

61 O Modelo de Substituição das Importações, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), refere-se ao plano de desenvolvimento industrial para os países de capitalismo tardio (ou seja, aqueles países que ficaram para trás no processo de industrialização na economia internacional). Segundo a teoria cepalina, somente com medidas protecionistas, intervencionistas e de progressiva redução dos produtos importados do centro (de alto valor agregado), os países da periferia podem alcançar seu desenvolvimento econômico. 62 A Bunge & Born é uma corporação multinacional, fundada, em 1818, na Holanda. Atualmente se dedica ao processamento de soja e à industrialização de fertilizantes.

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Assim, a lei da conversibilidade rompeu com o monopólio legal da moeda nacional (ou seja,

com o peso argentino), favorecendo a consolidação de um sistema bimonetário, que significou uma

circulação simultânea de peso e dólar na economia argentina, com uma forte predominância deste

último nas questões relativas a depósitos e empréstimos até o governo Duhalde, em 2002.

Consequentemente, as políticas de Menem durante toda a década de 1990 minaram qualquer tipo de

autonomia política monetária, se subordinando, assim, às forças de mercado externas.

Não é de se surpreender, dessa forma, que no período compreendido entre 1991 e 1999, o

desemprego na Argentina cresceu de 6,9% para 13,2 (HAINES, 2009). A extrema valorização

cambial barateou a compra de produtos estrangeiros, tornando mais atrativo importar do que produzir

internamente, provocando um grave processo de desindustrialização. Somam-se a esse quadro de

abertura econômica as inúmeras privatizações de empresas estatais63

realizadas no governo Menem

e nos posteriores – e consequentemente os processos de reestruturações e enxugamento dos

quadros de funcionários – o que, ajuda e explicar o aumento do nível de desemprego na economia

argentina.

Surgimento dos Piqueteros: motivações econômicas, sociais e políticas

Tendo exposto o cenário econômico da Argentina na década de 1990, pode-se, então,

apresentar as consequências sociais que essas políticas trouxeram. Os sociólogos Maristella Svampa

e Sebástian Pereyra (2004) argumentam que a adoção do modelo neoliberal trouxe duas

transformações fundamentais para a sociedade argentina64

: o aumento da desigualdade entre ricos e

pobres, fundamentalmente nos últimos 30 anos; e a coexistência de crescimento econômico com

aumento do desemprego. Dados revelam que enquanto o crescimento econômico do país manteve

uma média de 4,2% ao ano entre 1990 e 2008, apresentando uma média ainda mais alta entre 2003

e 2008 (8,5% ao ano)65

, o nível médio de desemprego entre 1990 e 2000 foi de 12,2%66

e de 14,4%67

entre 2001 e 2009, com pico de 25% no ano de 2002, momento em que estourou a crise econômica

argentina.

O elevado índice de desemprego na Argentina, resultante das privatizações, do processo de

desindustrialização e da reestruturação produtiva das empresas, somado à precarização

generalizada no ambiente de trabalho (terceirizações, subcontratações, contratos temporários,

fragilidade sindical) criaram condições para se instaurar uma crise social na Argentina.

É nesse pano de fundo que surgem as primeiras manifestações dos piqueteros, mais

especificamente em 1996, quando um grupo de trabalhadores demitidos da empresa YPF68

– em um

63 Desde a década de 1990 diversas empresas estatais argentinas foram privatizadas, como: Empresa Nacional de Telecomunicaciones (ENTEL), Empresa Líneas Marítimas Argentinas (ELMA), Aerolíneas Argentinas S.E., Yacimientos Petrolíferos Fiscales S.E. (YPF), Servicios Eléctricos del Gran Buenos Aires (SEGBA). 64 Para os autores, o neoliberalismo na Argentina tem início na ditadura militar, porém se exacerba no governo Menem. 65 Dados do National Accounts Main Aggregates Database. 66 Dados do Instituto Nacional de Estadística y Censo (INDEC). 67 Dados da CIA World Factbook. 68 YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales) é uma empresa que se dedica à exploração, refino e venda de petróleo e gás. Até 1999 era estatal, porém foi vendida para a companhia espanhola Repsol no governo de Carlos Menem.

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89

contexto de demissão em massa devido ao processo de privatização pela qual a empresa passava –

resolveu interditar uma importante via de acesso em Cutral Có – Plaza Huincul (aglomerado urbano

localizado na província de Neuquén). A reestruturação da empresa, que também passou a terceirizar

seus serviços, implicou na redução do quadro de trabalhadores de 51 mil funcionários em 1990 para

5.600 em 1992, provocando uma retração de 75% do emprego (HOPSTEIN, 2007: 336). As

consequências da privatização da YPF se mostram incalculáveis, já que toda a atividade econômica

da região de Cutral Có e Plaza Huincul estava pautada nas atividades dessa empresa.

Obviamente que esse caso ilustra apenas o marco simbólico do início do movimento

piquetero, uma vez que a Argentina, na década 1990, passava por graves crises econômicas –

brevemente explicitadas anteriormente – que resultaram em altos níveis de desemprego e que fez

emergir uma série de manifestações sociais. O acontecimento de Cutral Có e Plaza Huincul pode ser

caracterizado como aquele que ganhou projeção nacional e que, além de ter despertado o país para

a necessidade de encontrar uma solução para o problema do desemprego, representou a

insatisfação popular em relação às políticas neoliberais de Carlos Menem (HOPSTEIN, 2007: 338).

Nesse sentido, é importante destacar que também havia claras motivações políticas para o

surgimento dos piqueteros, diante da insatisfação não só em relação às políticas neoliberais, mas

também em relação à tradição política organizativa associada ao peronismo e ao partido justicialista,

existente desde os anos 1960 (SVAMPA; PEREYRA, 2004). Dessa forma, o movimento piquetero

pode ser visto como uma confrontação ao Estado, motivada não só por demandas de caráter material

(aspecto econômico), mas também por uma insatisfação com as questões de ordem pública,

principalmente em relação à estrutura de governos locais do partido justicialista.

Sendo assim, o movimento piquetero surge em duas regiões principais: no interior do país,

devido ao colapso das economias regionais e das privatizações de empresas estatais; e na cidade de

Buenos Aires (núcleo de conflitos sociais), fundamentalmente em virtude do processo de

desindustrialização e empobrecimento pela qual o centro urbano vem passando desde os anos 1970,

acelerado no governo de Menem (SVAMPA e PEREYRA, 2004). Pode-se inferir, dessa forma, que no

primeiro caso as privatizações das empresas e o consequente enxugamento de funcionários são a

principal motivação para os levantes piqueteros, enquanto no caso da capital argentina isso se

explica pela fuga das empresas, verificada nos últimos anos. De qualquer forma, é fundamental

destacar que os piqueteros tendem a atuar em regiões urbanas, onde existe alta atividade industrial.

Mecanismos e formas de ação

O nome piquetero se refere aos “piquetes”, cuja acepção original refere-se às formas de

pressão utilizadas pelos trabalhadores defensores da realização de greves como forma de impedir ou

barrar aqueles que persistem em continuar a trabalhar (os chamados “fura-greves”). Atualmente, há

uma dificuldade em dar longo prosseguimento às greves, devido à existência de um contingente que

permanece trabalhando, além de diversos outros fatores que tendem a minar sua formação e

manutenção na nova forma de estruturação do trabalho, como as privatizações, as terceirizações, o

medo de ser demitido (aspecto que inclui a própria competitividade no ambiente de trabalho), o

enfraquecimento dos sindicatos, e a desintegração e atomização da classe trabalhadora.

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Nesse sentido, os piqueteros, conscientemente ou não, parecem ter encontrado uma nova

forma de fazer protesto: são desempregados – portanto, não estão em conflito direto com o

empregador, já que se incluem fora das relações de produções – que, por meio dos cortes de ruta

(bloqueio de vias, estradas e ruas) encontram um modo de chamar a atenção do Estado e da própria

sociedade civil para suas condições sociais.

Esse mecanismo de ação se mostra inovador, na medida em que, ao invés de parar a

produção da mercadoria dentro da fábrica (caso das greves, por exemplo), passa a bloquear sua

circulação, em um espaço que extrapola os limites do local onde a produção se realiza. Essa

inovação é particularmente importante na era da globalização do capital por dois motivos principais.

Primeiro porque a criação de mecanismos de bloqueio da circulação do capital atinge a base da

produção da riqueza dos dias de hoje, que, diferentemente do período fordista não é mais fixa, mas

centrada no livre fluxo de mercadorias (além de informações e de pessoas) (HOPSTEIN, 2007: 334).

Segundo porque há uma alteração na forma de se fazer reivindicação social, deslocando o lócus do

conflito de dentro da fábrica, no momento da realização da produção – como ocorria com as greves,

ação muito característica no modelo fordista – para fora dela, no momento de sua circulação, o que

propicia maior contato junto à sociedade civil. Embora essa forma de protesto dos piqueteros

represente uma inovação de ação entre os movimentos sociais, é necessário ressalvar que sua

origem tem ligações com as organizações tradicionais, como os sindicatos e os partidos políticos69

.

Os diferentes grupos piqueteros e sua relação com o Estado

Talvez as principais características do movimento piquetero sejam sua heterogeneidade e as

várias correntes de pensamento que existem entre as organizações. Segundo Hopstein (2007), existe

uma clivagem entre as organizações institucionalizadas, isto é, grupos organizados, estruturados e

ligados a partidos políticos, e organizações que assumem uma postura política mais radical, que se

negam a fazer parte do Estado, pois têm como princípio que isso seria uma forma de cooptação e de

alinhamento aos interesses estatais. A gestão dessa organização de linha mais radical se dá por fora

das estruturas institucionalizadas e à margem dos processos eleitorais, e por isso apresenta noções

mais libertárias, de autonomia, independência, horizontalidade organizacional, poder popular, etc.

(HOPSTEIN, 2007: 339).

Existem várias facções no movimento piquetero, tornando possível alocá-las nessa divisão. A

Federación Tierra y Vivienda (FTV) e a Corriente Classista y Combativa (CCC) se enquadram no

primeiro grupo, já que estão associadas à Central de Trabajadores Argentinos (CTA)70

, além de

apresentarem uma linha mais moderada, pois aceitam as estratégias de ação do Estado, se

inscrevendo, portanto, dentro da estrutura de poder. Seu caráter moderado, ademais, se explica pela

organização de parciais, deixando espaço para a circulação, visando com isso evitar confrontos

diretos com a polícia e com a população.

69 A ideia de piquete, aliás, é um resgate aos piquetes de fábrica. 70 Organização de trabalhadores ocupados e desocupados que surge em oposição ao sindicalismo tradicional, visando a implementação de um novo modelo sindical (HOPSTEIN: 339).

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Por outro lado, o Bloque Piquetero (que reúne o Movimiento Teresa Rodriguez e o Polo

Obrero) segue uma linha mais radical, objetivando o “comunismo revolucionário”. Nessa mesma linha

está o Movimiento de Trabajadores Desocupados (MTD), que agrupa a Coordinadora de

Trabajadores Desocupados (CTD) e a Aníbal Veron. Apesar de existir fontes que afirmem que este

último grupo receba subsídios do Estado, seus militantes afirmam categoricamente que rejeitam

qualquer tipo de ajuda do governo. Como já dito anteriormente, essa opção se explica pela crença de

que o Estado, ao conceder benefícios, sobretudo o plan trabajar71

, tende a apaziguar as

manifestações e não resolver de fato o problema.

A relação dos piqueteros com o Estado no concernente à distribuição dos planes trabajar,

aliás, é bastante ambígua e abre brechas para várias interpretações. A cientista social Graciela

Hopstein expõe três possíveis visões sobre essa relação: (1) pode representar uma tentativa de

cooptação por parte do Estado para frear a luta piquetera – em uma sequência lógica de bloqueios de

estrada, seguida por repressão, negociação com o Estado e, por fim, novos subsídios; (2) pode ser

encarada como saída de emergência para que as pessoas não morram de fome ou (3) pode

representar uma conquista do movimento social, na medida em que, com os recursos conquistados,

os membros têm a possibilidade de desenvolver uma organização política e produtiva de modo

independente do Estado, ou seja, ele não pode impor programas de caráter assistencial e arbitrário

(HOPSTEIN, 2007: 346).

Apesar das diferenças ideológicas, organizacionais e de ação entre as várias facções

piqueteras, é inegável que há diversos pontos de convergência entre elas, como a utilização do

piquete na estratégia de luta – com o objetivo de interromper o ciclo produtivo na fase da circulação

da mercadoria – a articulação com o Estado, já que a maioria deles recebe subsídios por meio dos

plan trabajar e a identificação entre os manifestantes enquanto condição de “desocupados”, ou seja,

não possuem emprego formal e estável (HOPSTEIN, 2007: 341).

Da ditadura política à ditadura de mercado: a criminalização do movimento

Como já exposto anteriormente, os piqueteros emergem em um momento em que o

neoliberalismo já havia se consolidado plenamente no território argentino. Se a ditadura militar,

levada a cabo pelos militares em 1966, havia preparado o terreno para os experimentos neoliberais

elaborados pelos economistas da Escola da Chicago72

– por meio da parcial venda de companhias

estatais, dos incentivos à vinda de corporações multinacionais, da proibição de greves e das

desregulamentações trabalhistas que permitiam que os empregadores demitissem irrestritamente os

trabalhadores (KLEIN, 2008: 108-109) – nos anos 1990, com as privatizações massivas realizadas no

governo Menem e com o aumento das desregulamentações e da precarização no mundo do trabalho,

o neoliberalismo se instala definitivamente no Estado argentino.

71 O Plan Trabajar é um sudsídio distribuído pelo governo para a população desempregada. 72 Escola americana, liderada pelo economista liberal Milton Friedman, que teve decisivo papel na difusão da crença de se adotar políticas liberais para promover o crescimento econômico, principalmente nos países periféricos. O Chile, durante a ditadura de Pinochet, é o exemplo mais expressivo da adoção dessa cartilha neoliberal proposta pela Escola de Economia de Chicago (KLEIN, 2008).

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Essa transformação de um semi-Estado de providência – existente no período pós-guerra até

meados dos anos 1970 – em um Estado neoliberal desencadeou a exacerbação dos conflitos sociais,

dado o processo de exclusão social gerado, visível no acentuado aumento da desigualdade social, do

desemprego e da marginalização das camadas mais pobres. O questionamento que se propõe nessa

seção, no entanto, é se no atual Estado “democrático” argentino – em oposição ao Estado ditatorial73

,

em que a população se encontrava de mão atadas diante da implantação das políticas neoliberais

que lhes tolhiam diversos direitos políticos e sociais – os cidadãos possuem, de fato, suas

prerrogativas asseguradas pela Constituição.

A conclusão a que se chega é que, apesar do fim do regime militar em 1983 e do processo de

redemocratização iniciado desde então, o direito à liberdade de expressão e de reivindicação

parecem não ser uma possibilidade viável na sociedade argentina, pelo menos no plano prático.

A resposta social às políticas neoliberais, traduzida nos movimentos piqueteros, vem sendo

lidada pelo governo argentino por meio de um sistema institucional altamente repressivo, que tende a

criminalizar os movimentos sociais, visando com isso o controle dos choques sociais provocados pelo

sistema altamente desigual implantado. Os bloqueios de estradas realizados pelos piqueteros

começaram ser tratados como assunto penal, sob o argumento de que a obstrução de vias públicas

impedia o direito à circulação das pessoas, tornando-se, portanto, ilegal o direito de peticionar

(SVAMPA; PANDOLFI, 2006: 2).

Dessa maneira, muitos manifestantes passaram a sofrer não somente com penas de

repressão ou de prisão, mas também com a violência mais direta, praticada pela ação policial,

implicando até mesmo em mortes. O caso mais ilustrativo talvez seja o massacre de 26 de junho de

2002, em Puente Pueyrredón, em que as forças repressivas do Estado provocaram o assassinato de

dois importantes militantes piqueteros do MTD (Dario Santillan e Maximilliano Kosteki), deixando,

além disso, um saldo de mais de 70 feridos e cerca de 170 detidos – dentre estes, muitos alegaram

ter sofrido diversos tipos de coerção no momento da prisão, como simulações de fuzilamento

(SVAMPA; PANDOLFI, 2006: 7).

É interessante observar a contradição entre discurso e prática que predominou no governo de

Néstor Kirchner (2003-2007) em relação ao problema: enquanto, no nível da retórica, o presidente

defendia uma política de não repressão, aberta às manifestações sociais, no plano prático, observou-

se uma campanha política de deslegitimação do movimento por meio de ações violentas dos agentes

estatais e da própria mídia, que reforçava a desqualificação dos métodos utilizados pelos piqueteros

Iniciou-se, dessa forma, um processo de criminalização e de judicialização do movimento, verificados

nas recorrentes medidas de investigação, (per) seguimento e controle de vários grupos piqueteros

por parte de juízes e fiscais do Estado. (SVAMPA; PANDOLFI, 2006: 3- 4).

Outro momento marcante refere-se à dezembro de 2001, em que o país se viu diante de uma

das maiores crises registradas em sua história, que resultou até mesmo declaração de Estado de

73 A ditadura militar argentina provocou a morte ou o “desaparecimento” de cerca de trinta mil pessoas (KLEIN, 2008: 110).

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sítio, e um saldo de 33 mortes e várias prisões – maior repressão vivenciada pela Argentina nos

quase 30 anos de regime democrático (SVAMPA; PANDOLI, 2006: 7).

Nitidamente, esse Estado de exceção responde à necessidade de contenção das tensões

sociais provocadas pela ditadura de mercado implantada nos países periféricos. Segundo o

economista e cientista social José Luis Fiori (2001, pp. 133-137 apud BERCOVICI74

, 2007: 67), os

Estados periféricos, por terem cada vez menos autonomia na adoção de políticas econômicas frente

às decisões do grande capital, acabam se vendo diante de quadros de deslegitimação democrática,

nos quais se observa o desmantelamento do Estado e formas cada vez mais sofisticadas de

autoritarismo. Reforçando essa ideia, Bercovici afirma: “Com a globalização, a instabilidade

econômica aumentou e o recurso aos poderes de emergência para sanar as crises econômicas

passou a ser muito mais utilizado, com a permanência do estado de emergência econômico”

(BERCOVICI, 2007: 67).

A criminalização do movimento piquetero – aplicada por meio dessa espécie de Estado de

exceção, que age com repreensão política para lidar com os conflitos provocados pelas próprias

políticas neoliberais – é somada à criminalização da pobreza: forças da segurança do Estado têm

ocupado os bairros pobres argentinos, por meio do chamado Plano de Proteção Integral dos

Bairros75

, visando, aparentemente, resolver o problema da insegurança. No entanto, essas ações,

além de levarem a um processo de naturalização da associação entre “pobreza” e “delito”,

classificando as camadas mais pobres como “classes perigosas”, acabam por criar e isolar zonas de

despojados de direito em nome da conservação da ordem social (GARGARELLA; SVAMPA, 2004

apud SVAMPA; PANDOLFI, 2006: 5).

Sem ignorar o fato de que a violação dos direitos humanos durante a ditadura militar

argentina era muito maior que a privação de direitos enfrentada pela população na atual ditadura de

mercado, é possível questionar até que ponto esse Estado democrático cumpre sua função de

garantir os direitos sócio-econômicos dos cidadãos, e seu exercício de liberdade de expressão e

manifestação.

O Movimento em perspectiva

Apesar do significativo crescimento do movimento desde seu surgimento até o ano de 2003 –

em 1999 os piqueteros haviam realizado 140 piquetes, e em 2002, 1609, contando apenas os

realizados até o mês de junho (“PIQUETEROS...”, 2002) – acredita-se que houve uma reconfiguração

e ressignificação do movimento a partir de então. Mesmo não havendo números concretos de sua

ação atualmente, é possível observar manifestações cada vez mais esporádicas e uma crescente

estigmatização por parte da população, que os enxergam como aproveitadores, que não querem

procurar emprego e que visam apenas perturbar a ordem. Segundo uma enquete realizada pelo

74 Doutor em Direito do Estado e livre docente em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 75 Plan de Protección Integral de los Barrios.

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instituto OPSM76

, nove entre cada dez cidadãos estavam pouco ou nada de acordo com as

organizações piqueteras (XIMENES, 2008: 15). Trata-se de um dado interessante, pois no período

ápice da crise econômica argentina, o movimento contava com a adesão de grande parcela da

sociedade, porém os manifestantes de hoje não são mais vistos como os antigos.

Os governos de Néstor Kirschner (2003-2007) e de sua esposa, Cristina Kirschner, que

assume a presidência em 2008, mas que praticamente dá continuidade às políticas de seu

antecessor, contribuíram sobremaneira para o enfraquecimento do movimento piquetero. O caráter

“progressista” e assistencialista dos governos Kirschner – expresso, por exemplo, na concessão dos

planes trabajar que atende às demandas mais imediatas da população – somado à política de

criminalização do movimento, tanto por parte do governo, quanto por parte da mídia, que tendem a

deslegitimar sua ação, produziu seu desgaste, induzindo a opinião pública argentina a desqualificar

moral e politicamente a organização (XIMENES, 2008: 8).

Torna-se claro, dessa forma, que a estratégia de cooptação e desarticulação do governo

parece ter dado certo, pois se antes a maioria dos grupos piqueteros rechaçavam os governantes,

agora grande parte de suas facções passaram a se alinhar aos governos Kirschner, aderindo à

suposta ideologia nacional-populista77

. Como resultado, observa-se o processo de institucionalização

das organizações – requisito necessário para a administração dos planos sociais cedidos pelo Estado

– e sua ação cada vez mais assumindo formas de passeatas ao invés dos originais bloqueios de

estradas78

(CAVALCANTE, 2008: 5).

Outra explicação pode ser encontrada na própria redução do desemprego no país, que caiu

de 25% em 2002 para 7,9% em 2009. As atividades ligadas à manufatura, por exemplo, saiu do

patamar de -11% em 2002 para 12% em 2004 e 7,9% em 2008. O setor de construção também

apresentou crescimento: de -33,4% em 2002 para 29,4% em 2004, porém decresceu para 9,9% em

2007. De maneira geral, a atividade econômica argentina aumentou de -10% em 2002 para 7,8% em

2008, valores bastante significativos (NATIONAL ACCOUNTS MAIN AGGREGATES DATABASE,

2010).

Pode-se concluir que para melhor compreensão das manifestações piqueteras é

imprescindível contextualizá-las no cenário de crise econômica e social presenciado na Argentina nos

anos 1990. O processo de desindustrialização, verificado principalmente em Buenos Aires, e a

adoção do modelo de trabalho flexível (ondas de privatizações e corte massivo de funcionários,

visando à redução de custo para a maximização do lucro) criam um campo fértil para reivindicações

sociais, principalmente dos desocupados – parcela da sociedade civil mais afetada pelas reformas

políticas neoliberais.

No entanto, a repressão e a criminalização da ação dos piqueteros por parte do Estado,

juntamente com problemas de fragmentação interna, tendem a deslegitimar e consequentemente

enfraquecer o movimento. Visando a construção de uma organização mais forte e coesa, torna-se

76 Opinión Pública, Servicios y Mercados. 77 Entre essas organizações, podem ser citadas o Barrios de Pie e a Federación Tierra, Vivienda y Habitát (FTV). 78 O argumento dos movimentos que se alinharam é de que a alteração do cenário político tornou necessária a alteração das estratégias de luta.

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fundamental que as facções superem divergências entre si e busquem uma unidade que os integrem.

Dessa maneira, torna-se possível buscar alianças com outros atores e, assim, talvez alcançar

projeção internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi exposto ao longo deste artigo, pode-se concluir que as tensões sociais

verificadas na periferia capitalista, no caso particular do Brasil e da Argentina, só podem ser

compreendidas quando associadas à estrutura e conjuntura sócio-econômica em que esses conflitos

emergem ou se intensificam. Diante do cenário que se delineou nesses países de forte instabilidade

econômica e social – principalmente durante a década de 1990 e início dos anos 2000, quando são

implantadas as políticas neoliberais – seria previsível a explosão de reações populares de

contestação a esse modelo, que se mostrava cada vez mais contraditório pela falta de

correspondência entre o discurso de uma nova era de prosperidade que integraria crescimento

econômico sustentado com redução da pobreza e a emergência de uma realidade cada vez mais

desigual.

Os projetos de desenvolvimento articulados pelos Estados que vigoraram no período

nacional-desenvolvimentista passaram a não encontrar mais espaço na agenda pública, uma vez que

o único caminho que parecia possível para a defesa dos interesses nacionais era a abertura dos

mercados e a interdependência sem limites da nova era da globalização. Não se pode negar que

durante os anos 1990, tais políticas tiveram resultados positivos na erradicação das hiperinflações, no

aumento das exportações e na busca por balanços fiscais mais equilibrados. Todavia, naquilo que é

fundamental – crescimento econômico combinado com igualdade social – o desempenho foi

medíocre.

As expectativas foram, portanto, frustradas: o cenário nessa década foi o aumento da

desigualdade, da concentração da renda, da pobreza, do subdesenvolvimento, da financeirização

econômica e da criminalidade. Embora, na primeira década do século XXI, tanto o Brasil como a

Argentina tenham apresentado um quadro de progresso econômico com grande capacidade de

geração de renda, ele não foi suficiente para que seus principais problemas estruturais fossem de

fato superados. Apesar da forte modernização de suas economias nos últimos anos, os países latino-

americanos em geral apresentam uma situação de grave e de crescente miserabilidade das suas

sociedades quando comparado com países emergentes, por exemplo. O cenário que se formou foi o

de extraordinários avanços científicos e tecnológicos convivendo com indivíduos à beira da miséria e

da fome.

Nos dois espaços analisados, o Brasil e a Argentina, as consequências do neoliberalismo

foram devastadoras: aumento massivo do desemprego, que condicionou o surgimento dos

piqueteros, e a penalização da agricultura familiar no Brasil, levando milhares de pequenos

produtores à falência, aumentando significativamente as bases sociais do MST.

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No caso das manifestações piqueteras, o processo de desindustrialização, verificado

principalmente em Buenos Aires, e a adoção do modelo de trabalho flexível (ondas privatizações e

corte massivo de funcionários, visando à redução de custo para a maximização do lucro) criou um

campo fértil para reivindicações sociais, principalmente dos desocupados – parcela da sociedade civil

mais afetada pelas reformas políticas neoliberais. No entanto, a repressão e criminalização da ação

dos piqueteros por parte do Estado nos últimos anos, juntamente com problemas de fragmentação

interna, tendeu a deslegitimar e consequentemente enfraquecer o movimento.

No caso do MST, a principal barreira à reforma agrária continua sendo o agronegócio,

baseado no controle da terra por meio de sua mercantilização. Ao fazer do agronegócio a principal

base de sustentação do seu governo, Lula redefiniu a correlação de forças a favor desse modelo

capitalista, atingindo duramente o MST e provocando um refluxo da luta pela terra e pela reforma

agrária. Porém, mesmo com a diminuição do poder de reivindicação do movimento nos últimos anos,

importantes conquistas foram alcançadas. O fim da postura de criminalização do movimento pelo

governo é uma delas, pois ao contrário de FHC, Lula sempre buscou dialogar com o MST. Por outro

lado, que se percebeu foi a não realização da reforma agrária, os baixos números de ocupações de

terra, avanço do agronegócio, falta de acesso ao crédito e aumento do endividamento de famílias

assentadas. Mas, mesmo diante desse contexto, as ocupações ainda exercem um papel de extrema

importância no processo de democratização da terra.

O tratamento de choque realizado pela ditadura nesses países, a fim de promover a abertura

neoliberalismo, não conseguiu se realizar plenamente, ou seja, não eliminou focos de resistência a

esse modelo. Quando a vitória do grande capital parecia certa, o surgimento de reações populares

passou a ter um efeito importante nos países. O neoliberalismo não conseguiu esconder seus efeitos

perversos: a pobreza, a desigualdade social, a falta de terra, emprego, moradia e educação. Diante

desse cenário, diversos grupos sociais, como o MST e os piqueteros, passaram a intensificar suas

reivindicações, lutando por direitos sociais. Esses dois movimentos podem ser compreendidos,

portanto, como importantes formas de resistência e de respostas sociais aos efeitos provocados pelo

neoliberalismo tanto no campo como na cidade.

Diante desse contexto, seria até possível acreditar que esses países estariam condenados ao

subdesenvolvimento. Mas uma concepção como essa leva em consideração apenas a dinâmica

econômica global, marginalizando as dinâmicas sociais, políticas e culturais, assim como as lutas

sociais internas dos países. Nessa direção, a organização coletiva dos vários setores da sociedade,

insatisfeitos com a realidade, aumentaram cada vez mais sua influência e importância ao buscarem

uma alternativa a esse modelo capitalista.

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