caderno de entrevistas "a narrativa no teatro infantojuvenil: teoria, análise e...
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Caderno de Entrevistas anexo à monografia de conclusão de curso "...Teatro Infantojuvenil: O narrador como eixo de uma possível linguagem." (2014), e a outros trabalhos acadêmicos ligados a pesquisa "A narrativa no Teatro Infantojuvenil: Teoria, Análise e Prática." Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto. Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil.TRANSCRIPT
Universidade Federal de Uberlândia
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC-CNPq-UFU)
Caderno de
Entrevistas
A narrativa no Teatro Infantojuvenil:
Teoria, Análise e Prática
Lucas de Carvalho Larcher Pinto
2012
Pensar um Teatro Infantil ou, como preferem
muitos, um teatro dirigido às crianças, implica
pensar a forma pela qual podemos permitir e
garantir às crianças um lugar e uma linguagem
diferenciadas, que as auxiliem na descoberta de
suas próprias linguagens. Um lugar e uma
linguagem que lhes permitam suporem-se
diferentes do que lhes é dado ser cotidianamente;
que permitam aprenderem, o quanto antes, a se
tornarem sujeitos e não objetos de cultura.
(Lourival Andrade Jr.)
Sumário
1. Apresentação.................................................................................................. 4
2. Entrevista com Ana Carla Machado de Moraes............................... 5
3. Entrevista com as narradoras de O Feitiço................................... 13
4. Entrevista com Mário Ferreira Piragibe........................................... 30
5. Entrevista com a Trupe de Truões..................................................... 40
Apresentação
Este Caderno de Entrevistas constitui um anexo do artigo final
da pesquisa de iniciação científica intitulada A narrativa no Teatro
Infantojuvenil: Teoria, Análise e Prática, desenvolvida pelo autor nos
anos de 2011 e 2012, e que integra o projeto de pesquisa docente
Tecendo Fios: Narrativa, Memória e Máscara na Formação e na
Criação Teatral, coordenado e orientado pela Prof.ª Dr.ª Vilma
Campos dos Santos Leite.
Com o intuito de relacionar a teoria estudada com a prática
teatral observada no local em que a pesquisa se desenvolveu,
escolhemos tratar as questões sobre a utilização da narrativa como
texto teatral no Teatro Infantojuvenil a partir de questões levantadas
por meio de observação e análise de alguns espetáculos de grupos da
cidade de Uberlândia-MG. Sendo eles: O soldadinho de chumbo, do
grupo Teatro do Miúdo, apresentado no ano de 2009; Simbá, o
marujo, do grupo Trupe de Truões, apresentado a partir do ano de
2008; e O Feitiço, do grupo Autônomos de Teatro, apresentado a
partir do ano de 2011.
Assim, este Caderno de Entrevistas contém depoimentos dos
diretores e dos atores que exercem a função de narradores nos
espetáculos por nós selecionados, que contribuíram de forma
substancial para a referida pesquisa, ao discorrerem tanto sobre
questões gerais sobre o teatro para crianças e jovens, como sobre
questões específicas sobre os trabalhos analisados.
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Entrevista com Ana Carla Machado de Moraes Diretora e narradora de O Soldadinho de Chumbo (Teatro do Miúdo)
Apresentação da Entrevistada...
Ana Carla: Eu sou Ana Carla Machado, diretora do Teatro do Miúdo. Sou
graduada em Artes Cênicas pela UFU. Fiz especialização em Interpretação
Teatral, e estou fazendo mestrado em Artes, ambos na UFU. Eu comecei no
Teatro Infantil trabalhando com o Paulo Merísio dentro de disciplinas da
graduação. Naquela época, a Trupe de Truões, que hoje é um grupo que não
tem nenhum vínculo com a UFU, nasceu no curso de Artes Cênicas, sendo
completamente vinculado à instituição. Mas a Trupe de Truões também veio
da experiência do Paulo Merísio com a Truanesca, um grupo de teatro do Rio,
ligado ao Teatro Infantil.
A primeira peça infantil a que assisti, digo aí uma peça de qualidade voltada
para o público infantojuvenil, foi a Rapunzel, da Truanesca. Mas assisti em
vídeo. Aí, o Paulo quis montar, e pediu autorização para a Truanesca. Naquela
época, eles estavam parados, sem montar nada. Aí, ele trouxe todo o cenário
do Rio, e a gente fez uma remontagem. Mas isso, assim, parece que assisti e fiz
logo a montagem. Não foi bem assim: Rapunzel acabou sendo o segundo
espetáculo Infantojuvenil da Trupe de Truões. Primeiro eu participei do
espetáculo Um herói fanfarrão e sua mãe bem valente, de autoria da Ana
Maria Amaral. É um texto narrativo, que não sofreu nenhuma adaptação para
ser usado no teatro. Esse espetáculo foi uma parceria, na época, com a Casa
do Livro, uma livraria que nem existe mais em Uberlândia. Essa era uma
parceria nossa com a Alcinete, que queria montar com a Trupe um texto. Ela
deu vários livros para o Paulo, e ele optou por Um herói. Foi minha primeira
experiência em Teatro Infantojuvenil na UFU como aluna de graduação.
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Depois, remontamos Rapunzel. Enfim, depois da graduação, entrei na
especialização, mudei-me, sempre vindo e voltando de Uberlândia. Acabei
saindo meio que por seleção natural da Trupe. E numa dessas minhas voltas a
Uberlândia, eu tinha muita vontade de dirigir, que já era um desejo de muito
tempo. Embora eu gostasse, e goste até hoje do trabalho que a Trupe
desenvolve, eu queria experimentar meu olhar como diretora, a minha forma
de contar uma história, porque eu acho que sempre estamos contando uma
história. Então, convidei alguns alunos da graduação em Artes Cênicas, e
montei O soldadinho de chumbo, do Andersen. Também sem adaptar uma
vírgula da versão que eu tinha.
Um conceito para Teatro Infantojuvenil...
Ana Carla: É teatro. Teatro Infantojuvenil é teatro, antes de mais nada.
Embora o foco seja o público infantojuvenil. É teatro para crianças, e não com
crianças. Aí tem uma diferença: o teatro feito com crianças acaba sendo um
pouco didático, em meios, em experiências escolares. Na verdade, o que eu
acho é que o Teatro Infantojuvenil se abre para o público infantojuvenil, mas é
um teatro para a família toda. Se você não suporta assistir a um espetáculo
infantojuvenil, eu acho que tem algum problema ali. É um teatro sem
fronteiras etárias, sem censura, porque ele abre para todo mundo, pra toda a
família. O adulto já foi criança, então ele vai perceber, se comunicar, voltar no
tempo. Pra mim, é um teatro sem fronteiras etárias.
Sobre as crianças e os jovens de hoje...
Ana Carla: São crianças e jovens aceleradíssimos. Então, tem que se pensar
sempre, e não é só no Teatro Infantojuvenil, não: é em todo teatro, o que está
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acontecendo no mundo. Em que contexto se faz teatro? Independente de ser
pra jovens, crianças ou adultos...
As coisas acontecem muito rápido. A comunicação é muito rápida. As pessoas
correm muito. As pessoas trabalham numa jornada muito maior. Então, as
crianças nisso acabam tendo menos contato com os pais dentro de casa. E qual
a forma que encontramos para ampará-las? A internet, os jogos e uma série
de coisas... É uma moçada que pensa muito rápido. Todos os meus amigos que
têm filhos, em geral, acabam dizendo sempre a mesma coisa, se surpreendem
com crianças de três anos! Eu sou muito próxima de uma criança de três anos
que frequenta bastante minha casa, e a gente acaba sempre falando assim:
“Nossa, com três anos eu era tão boba, não fazia tudo isso.” Eu não sei, pode
ser que não, que a gente não se lembre, mas a impressão que eu tenho é que
elas são mais cobradas, mais pressionadas. Eu acho todo mundo muito
acelerado. Como o teatro vai se comunicar com uma criança que tem quase o
olho quadrado de tanto ver TV, video game e internet? Como que a gente tira
a criança do quadrado da tela e coloca na roda? Pra mim, fazer teatro para
crianças hoje é isso. Não dá pra falar larga isso daí e vem aqui, porque aqui é
muito mais legal, mais “cult”! Não! Algumas negociações vão ter que ser feitas.
Não adianta querer que a criança de hoje seja a criança de trinta anos atrás.
Mas é possível negociar sim, brincar com toda essa tecnologia em cena, mas
são opções estéticas. O que eu acho que não dá pra fazer é levar o desenho
animado pra cena. Não! Pra mim isso já é outra coisa!
Sobre o conceito de linguagem...
Ana Carla: Eu entendo como forma de comunicar, um meio de comunicar.
Quando eu falo em linguagem, eu acabo colocando-a muito próximo de opções
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estéticas, cênicas. É a forma mesmo - e não o conteúdo! Não é a história que
vou contar, mas como eu vou contar.
Sobre a existência de uma linguagem própria dos espetáculos infantojuvenis...
Ana Carla: Bom, primeiro eu tinha várias ideias estéticas que vinham muito à
frente do conteúdo, da história. Elas eram muito moderninhas, e, ao mesmo
tempo, eu tinha uma briga comigo mesma de que eu não ia adaptar a
história. Então, como contar aquela história? Primeiro que não é uma história
brasileira, e eu sou um a atriz e diretora brasileira contando uma história
europeia. Mas, como contar isso, trazer para o universo infantojuvenil
brasileiro sem fazer com que o Andersen se debatesse no túmulo? Sem trazer o
desenho da Disney e colocá-lo em cena? O que acontece foi que, pensando em
criar um espaço lúdico, eu não queria começar, de cara, a contar O
soldadinho. Eu não queria que os personagens entrassem, contassem a história
bonitinha, e acabou! Eu queria criar uma outra atmosfera. E é claro que isso é
uma influência que eu tenho da Trupe de Truões porque foi ali que tudo
começou. Queria criar outro espaço, outros personagens, ou pelo menos atores
em outros estados, em outros contextos, e que de repente a história
começasse. Eu não sei te dizer como isso começou e aconteceu, mas eu acabei
indo para o contexto do circo.
Bom, o espetáculo tem duas montagens, e elas têm uma diferença de um ano
e meio, quase dois anos, entre a estreia da primeira e da segunda, mudando,
também, os atores. Na segunda montagem, que é a que você está pesquisando,
porque você viu, o circo veio com muita força. Isso porque eu tinha um ator, o
Rodrigo, que dominava a técnica circense. Foi quando eu falei: “Se a gente só
brincava, dava uma pinceladinha na primeira, vamos realmente nos apropriar
dessa técnica.” Então, o Rodrigo fez oficinas com os meninos, e, enfim, a coisa
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aconteceu. Eu fiquei de fora. Como eu pretendia contar a história, mas
também dirigia, acabei ficando de fora, vendo as coisas acontecerem, e fui
montando cenas picadas, de momentos significantes. Isso tudo usando as
técnicas de acrobacia dos meninos.
Mas eu sabia que em algum momento eu tinha que entrar pra contar a
história. Eu acabava narrando, ou lendo o livro só pra cena deles acontecer.
Bom, o que aconteceu foi que eu fui me distanciando muito dos meninos
porque eu fiquei naquela situação de direção. Aí eu dizia: “Amanhã eu entro
pra contar, hein!” Um mês antes da estreia eu não tinha entrado. Isso
aconteceu na primeira vez e cometi o mesmo erro na segunda. E o que
aconteceu foi que, como eu tinha uma proposta de fazer um jogo de espelhos
no espetáculo, de contar O soldadinho e a história ir acontecendo atrás, sem
que eu percebesse até um certo momento, e depois eu me surpreendesse e
tivesse todo um jogo de cena: “Nossa, os personagens da história que eu estou
contando estão aparecendo...”, criado um ambiente bem lúdico. Só que acabou
que na estreia, por conta de estar dirigindo, ficou muito mais distante ainda.
Eu, até hoje, tenho certa dificuldade de assistir a O soldadinho. Não chega a
ser desconexo, mas parece que um era um espetáculo e este, outro. Era pra
ter esse jogo, mas não sei até que ponto as coisas... É engraçado, porque,
quando você começa a dirigir, você tem um roteirinho na cabeça, e tem horas
que as coisas tomam outro rumo, e você tem que fechar. Eu fechei na
contação. Era uma história da qual eu gosto, que eu estava a fim de contar. E
eu fui tentando ligar com a narração tudo que estava acontecendo, pra ver se
ficava mais ou menos balanceado. Pra não ficar uma narração oral cênica em
um ponto e uma ilustração atrás, nem pra que atrás fosse o espetáculo, e aqui
fosse uma bobagenzinha que acontecia na frente.
Esteticamente a linguagem usada foi da narração, com os meninos ilustrando
a história, que era contada, usando a técnica circense. E, embora não se fale
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de circo na história, brincamos com elementos lúdicos sem montar um super
circo. A gente brincou um pouco. Foi um grande experimento. Um grande
experimento que me serviu demais.
As recorrências levadas à cena...
Ana Carla: Olha, existe pra mim no universo infantojuvenil uma relação direta
com todo tipo de história, inclusive os desenhos animados, dos mais antigos
aos mais modernos. Se você estudar o Psicanálise dos contos de fadas vai ver
isso: tem sempre o vilão, tem sempre a mocinha. Em geral tem. Isso vem lá
dos contos de fadas. Todo mundo foi se apropriando dessa estrutura. E, como
eu peguei um texto, um conto dos mais reconhecidos mundialmente, ele já
veio com essa estrutura. Não tendo eu adaptado o conto, a própria história
me conduzia a convidar o público pra essa estrutura, pra o personagem (vilão,
mocinho) com clímax da história...
Eu, embora seja pesquisadora de teatro de animação, não acredito que tenha
usado formas animadas, porque, na segunda montagem, na qual fiz mudanças
nas transições do espetáculo, utilizava-me da narração, e de alguns bonecos e
objetos para ilustrar a história. Mas são bonecos comprados em papelaria, não
confeccionados para contar essa história. Eu não os animava. Eram ilustrativos.
Então, o recurso da animação eu não uso.
Brincadeiras, eu acabei usando algumas, sim.
E, no caso da máscara do clown, embora eu tenha contextualizado o
espetáculo no ambiente circense, não existia palhaço nesse circo. Na minha
formação, eu estudei, e estudo até hoje, clown... Algumas técnicas foram, sim,
utilizadas: a triangulação, a repetição. Não tinha palhaço no espetáculo, mas a
técnica clownesca estava, sim, presente ali de alguma forma. Eram umas
cenas de clown sem nariz.
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A máscara era utilizada, sim, mas não era clown: caracterizava um
personagem, o rato. Esse espetáculo é uma salada estética: os ratos usavam
nariz e o duende, também. O duende era a Jaque. Esses narizes não foram
usados como máscara. Aliás, os meninos não dominavam o uso de máscaras,
nem as de Commédia dell’arte, nem outras, que não fossem a do clown. Esses
narizes serviam apenas como mecanismos de caracterização dos personagens.
Ah! Além disso, como já disse, utilizei-me da narrativa.
Narradores: ator-narrador ou personagem-narrador?
Ana Carla: Sou uma atriz-narradora, não há construção de personagem.
Estava no nível da não representação. Não utilizei clown, não utilizei máscara.
Não cantei. E o ator, para mim, é de uma forma ou de outra um contador de
histórias.
Existe um Teatro Épico Infantojuvenil?
Ana Carla: Olha, se eu disser que sim, eu vou estar afirmando um conceito, e
acho complicado conceituar algumas coisas. É até uma questão minha, hoje,
como pesquisadora conceituar. Sei que é uma questão difícil, e, embora a gente
sempre tenha que buscar algumas respostas, eu sinto que a gente fecha em vez
de ampliar. A gente já diz Teatro infantojuvenil, como se fosse uma coisa a
parte do teatro. Se se eu disser que, dentro do Teatro Infantojuvenil existe o
Teatro Infantojuvenil Épico, embora isso localize de alguma forma
pesquisadores e profissionais da área, eu não gosto muito disso, não. Agora, eu
posso dizer que sim: “Brecht passou por ali.” Ele faz parte também de minha
formação, mas isso não de uma forma pensada. Veio em decorrência da
utilização da narrativa e da minha formação como atriz. Todas essas
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interferências inacabadas que eu tenho no meu corpo como atriz são cartas na
manga. Uma ou outra vai sair em dado momento, consciente, ou não. Então,
não diria que é Teatro Infantojuvenil Épico, não.
Sem considerações finais.
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Entrevista com as narradoras de 0 Feitiço Entrevistadas: Laís Batista Costa, Amanda Barbosa Vieira,
e Juliana Ferreira Prados.
Narradoras de O Feitiço (Autônomos de Teatro)
Apresentação das entrevistadas...
Amanda: Eu nunca havia trabalhado com Teatro Infantojuvenil, nem Infantil.
Nem antes da universidade, nem dentro da universidade. Eu comecei com O
Feitiço, e pouco depois com o Simbá, espetáculo da Trupe de Truões. Então,
minha experiência com Teatro Infantil foi a partir d’O Feitiço. Antes disso, eu
nunca tinha trabalhado, nem me interessado em trabalhar também. O
universo foi apresentado a mim pelo Paulo (Merísio), já que é uma das
vertentes da pesquisa dele. Ele que trouxe esse interesse para dentro da
disciplina (Interpretação V), que era trabalhar com a gente o Infantojuvenil, já
que éramos duas turmas que não tinham passado por essa experiência. Então,
ele se interessou e apresentou a proposta pra gente.
Laís: Eu também nunca tive, antes d’O Feitiço, experiência com Teatro
Infantojuvenil. O Feitiço foi desenvolvido numa disciplina que tinha também
como linguagem a comédia. Eu estou aqui confusa porque agora estou
querendo saber o que é Teatro Infantojuvenil, infantil! A gente está
apresentando O Feitiço, e em alguns momentos a gente vê que ele é mais
juvenil que infantil. Então, qual seria a diferença?! Eu não sei responder se eu
faço Teatro Infantojuvenil, porque agora eu estou com dúvida também. Vou
ter que ler sua pesquisa. Mas é claro que reconheço a diferença na linguagem
do “teatro adulto”, da linguagem do Teatro Infantojuvenil, que eu acho que se
caracteriza por essa utilização da narrativa mesmo. Assim como a Amanda fez
stand-in no Simbá, agora tem o Aladim, no qual usamos a narrativa...
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Juliana: Diferentemente das meninas, antes d’O Feitiço eu já tinha contato
com o teatro voltado pra criança. Eu também fico nessa dúvida de
infantojuvenil e infantil! Desde que eu entrei no curso (de Teatro da UFU) eu
trabalhei com a Vilma no projeto dela de extensão, chamado “Serelepe:
histórias à brasileira”, onde a gente montava histórias, contos populares.
Basicamente, a gente os recriava para serem contados na sala de aula,
especialmente para crianças. E uma dessas histórias, a que mais fez sucesso, é
“João mata sete”, onde eu fazia vários personagens... Esse foi meu primeiro
contato. Aliás, essa é até uma linguagem que a gente tem em O Feitiço, de
não ser um personagem fixo. Estamos sempre mudando. Depois, eu trabalhei
com o Jorge (Farjala) um conto da Maria Clara Machado, que não cheguei a
estrear. E a experiência de trabalhar com ele, que já tinha uma experiência em
Teatro Infantojuvenil, me despertava um interesse pra esse tipo de teatro.
Tanto que eu fiz menos teatro adulto. Fiz mais peças voltadas para infância e
juventude. O Feitiço foi minha terceira experiência.
Sobre um possível conceito para Teatro Infantojuvenil...
Laís: Eu não sei se eu consigo falar o que é. Até pouco tempo, num trabalho
com o Ricardo (Augusto) de aulas na Trupe, ele passou um texto, que você
conhece, e que o Paulo sempre cita: “Pecinha é a vovozinha”. Lá tem algumas
coisas dos dez pecados do Teatro Infantojuvenil. Então, de repente, eu já tenha
uma noção do que não é legal nessa linguagem e do que é recorrente. Aquele
apelo à plateia, com a participação da criança... O que mais?
Juliana: Subestimar a inteligência da criança...
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Laís: Que ela não consegue ler os códigos, e que temos que dar tudo
explicadinho. Então, acho que esses são alguns traços que vêm apontando para
tipos de Teatro Infantojuvenil que existem e que talvez sejam mais comuns!
Amanda: Eu não me arrisco, porque eu não sei. O mesmo espetáculo pode ser
apresentado a uma criança, pode ser apresentado a um adulto, a um jovem.
Cada um vai ter seu tipo de leitura, assim como em um espetáculo adulto
também. Acho que é uma questão de linguagem. De algumas coisas não
ficarem muito claras, em decorrência do conhecimento que a criança pode ter
ou não. Mas eu não consigo separar ainda. Depois que eu comecei a trabalhar
fiquei mais perdida do que antes, porque sempre tive uma grande birra com
Teatro Infantojuvenil. Principalmente por assistir a peças que têm todas essas
questões que eu condeno, que eu acho que menosprezam a inteligência da
criança, que querem dar as coisas mastigadinhas, e acham que a subjetividade
não pode existir em um espetáculo, porque a criança não compreenderia,
sendo que ela pode compreender. Então, eu sempre condenei. Depois que eu
comecei a trabalhar, comecei a pensar nessa questão de o que separa o teatro
adulto do Teatro Infantojuvenil; aí que eu me perdi, mesmo. O Feitiço é um
espetáculo que se encaixa na comédia e no Infantojuvenil. Então, eu não me
atrevo a conceituar.
Juliana: Eu também não tenho um conceito. Mesmo tendo feito... O nome da
matéria que eu fiz com o Jorge Farjala era Teatro Infantil e Infantojuvenil,
mas não me lembro de ter um conceito dentro dessa disciplina que me faça
lembrar e falar pra você hoje. Mas, trabalhando com a Vilma, quando a gente
criava ela deixava a gente muito livre, mas sempre falava uma coisa assim do
“tatibitate”. Essa palavra pra mim a descreve e o que ela pensa sobre o Teatro
Infantojuvenil. Então, eu sempre tive a preocupação de, ao estar fazendo um
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teatro voltado para a criança e para o jovem, que não fosse essa coisa
“infantilóide”, de não ser mastigado, de não ser entregue. Às vezes, eu fico
olhando O Feitiço e pensando se realmente é um Teatro Infantil ou
Infantojuvenil. Às vezes, eu tenho a impressão de que os adultos se divertem
muito mais. A gente apresentou num espaço que tinha muitas crianças, e foi
meio até que, um baque, porque as crianças não riam. Fiquei pensando se é,
realmente, uma linguagem pra criança que a gente está fazendo. Por isso, o
conceito foge pra mim, muitas vezes. O que a Amanda falou eu não tinha nem
chegado a pensar. Onde se divide o Teatro Infantojuvenil e o teatro adulto? Eu
também não sei falar.
Um teatro apenas para crianças e jovens ou também para crianças e jovens?
Laís: Também! É justamente o que a Amanda falou: essa questão de respeitar,
ou melhor, de considerar o vocabulário da criança, no sentido daquilo que ela
conhece e talvez esteja no universo dela. Porque não adianta a gente querer
colocar uma referência que ela ainda não domina, ou não conhece. Então,
talvez a questão esteja mais dentro da referência de um tema, ou... Acho que
não muda o jeito de fazer o teatro: o lúdico vai estar presente em outros tipos
de teatro. Ressignificação também. O simbólico. Tudo isso tem. Talvez seja uma
questão de referência do universo dessa idade em que eles se encontram, e
talvez da forma com que ela (a criança) enxerga. Porque, talvez, a gente pode
fazer uma cena pra criança, em que ela vai viajar muito mais que o adulto,
pois o adulto já vai estar cheio de formas de como deve pensar: o certo e o
errado.
Sobre as crianças e jovens do tempo presente...
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Amanda: Muito mais críticos do que as crianças de quando eu era criança.
Muito mais antenadas, muito mais abertas à informação. Então, eu os vejo
mais críticos, tendo uma visão de mundo muito maior.
Juliana: Eu concordo com a Amanda. Esse Teatro que é Infantil ou
Infantojuvenil, que a gente critica que não é um bom teatro para crianças, que
é esse teatro “infantilóide”, é o teatro a que a gente assistia às vezes, e que
agradava, porque a gente não tinha uma visão crítica como as crianças têm
hoje. Mas a construção dessa ideia crítica das crianças, que é algo que eu
também venho pesquisando, provém da mídia. Esse acesso à informação que
elas têm hoje, e que nós não tínhamos, é que faz que a exigência para nós,
atores, produtores e criadores de teatro, seja maior. Nós temos que criar
coisas com maior qualidade e pensar muito no que estamos passando para
essas crianças. Porque, realmente, elas criticam, elas sabem diferenciar o que é
bom do que é ruim, e essa crítica soa muito construtiva pra quem faz teatro.
Você receber a crítica de um adulto que trabalha com, ou mesmo que seja um
leigo, mas que já tem uma ideia ou opinião formada sobre, e receber uma
crítica de uma criança ou de um adolescente em formação é diferente. Então,
eu acho que hoje a gente faz teatro para pessoas de um poder crítico muito
mais aguçado. Crianças e jovens com uma cabeça diferente.
Amanda: E pensar que as crianças aplicam aquilo que veem. A gente (Trupe de
Truões) teve uma experiência recente com o Aladim, que tem uma cena na
qual a princesa toma banho, feita na sombra. Para as crianças menores, era
mágico a princesa tomando banho, vendo as bolhas de sabão. Para os jovens,
era tentador. “A mulher está pelada, ela vai passar aqui e eu vou tentar ver.”
É a referência do cotidiano deles. A gente escutava comentários para o
príncipe ir direto ao ponto e tentar agarrar a princesa, enquanto os meninos
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(menores) já achavam bonita a questão do conto de fadas, do príncipe
apaixonado. Então, acho que tem muito a referência aí do que se vive hoje.
Laís: Eu concordo com tudo isso. E eu acho que a palavra que define, talvez,
porque alguns ficam surpreendidos, ouros ficam... Parece que eles querem ser
surpreendidos, porque é tanta coisa que eles veem no vídeo. Isso tudo que já foi
falado da internet, da televisão. Parece que eles esperam um pouco de
surpresa, algo que seja diferente. Eu já senti, em alguns momentos, essa
postura que eles já chegam armados, às vezes. Acontece no início do
espetáculo. Aí, de repente, eles vão aquietando, e vão percebendo que é uma
linguagem diferente. Que não é a televisão, realmente, que não é filme. Que
não vai ter um efeito muito fantástico. Eles vão percebendo que é uma outra
linguagem, e vão se aquietando um pouco. É claro que depende do espaço,
porque na escola ficar quieto é nunca.
Um conceito para linguagem...
Laís: É um código. É uma codificação para comunicar. Bem seco. São códigos
estabelecidos para uma certa comunicação, relação.
Existiria uma linguagem própria do Teatro Infantojuvenil?
Laís: Eu acho que é mais predominante, talvez, eu já falei que ressignificação
acontece no teatro adulto, mas acho que predomina mais esse aspecto, de
acordo com a minha prática. A gente vê que o tempo todo existem muitos
objetos que vão tentar, ali junto com a trama, com o texto, com a atuação,
enfim, estabelecer códigos. “Então, esse objeto significa isso.” Acho que é muito
mais forte esse jogo de ressignificação a partir do objeto, do lúdico.
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Amanda: Eu não consigo definir linguagem, mas como todos os espetáculos
infantojuvenis em que eu trabalhei foram com a direção do Paulo (Merísio),
além da ressignificação do objeto, utiliza-se a narrativa. Eu vejo em todos,
todos. Feitiço, Simbá, O Aladim e Rapunzel, que foram aqueles em que
trabalhei. E o que assisti: Um herói fanfarrão. E eu vejo muito forte a questão
da narrativa no espetáculo infantojuvenil. Essa questão de ter uma pessoa
conversando diretamente ali com o público, e que não é um personagem, mas
que é uma pessoa que também assiste. N’O Feitiço, por exemplo, eu vejo isso
muito claro: eu estou narrando porque eu estou assistindo à história, eu estou
contando a você aquilo a que estou assistindo. É a minha versão. Como é que
eu comento aquilo que eu estou vendo? Então, eu vejo muito forte, nessa
linguagem do Teatro Infantojuvenil, a narrativa.
Laís: E tem a ver com contar histórias, que nessa idade... Eu não sei como é
agora, mas, antigamente, tinha mais essa cultura de contar história. Isso era
mais forte em família mesmo, e tradicionalmente e culturalmente tinha-se
mais essa prática de contar histórias. Esse encontro.
Juliana: Essa tradição oral...
Laís: Agora, talvez se contem histórias, mas, talvez, de outras maneiras. E
culturalmente são os mais velhos que contam histórias, e as crianças (que estão
começando a conhecer) ouvem, escutam, vão escutando. Talvez exista alguma
relação...
Quais os elementos recorrentes vocês identificam n'0 Feitiço?
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Laís: Tem todos. Por exemplo, do popular tem a brincadeira de “nós andamos
iguais”, que a gente retrabalhou e canta como “nós buscamos muito”. É
popular, por isso é reconhecido.
Juliana: O “morto-vivo”.
Amanda: Além das brincadeiras, a música vem do popular, apesar de ter
músicas pop, a internacional. “O canto do povo desse lugar” é uma cantiga
que eu aprendi quando era pequena. Aí eu fui ouvir outra vez quando a gente
foi montar... Formas animadas. Tem tudo.
Juliana: O humor, a narrativa...
Amanda: Você, elencando, me fez lembrar o processo de trabalho de
Interpretação V. A gente trabalhou o exercício do exagero, do clown, da
comédia, e assim fomos trazendo os carinhosamente chamados de
“monstrinhos”. Ressignificação de objetos, sempre...
Juliana: A cadeira só foi selecionada no fim, porque no início cada um tinha
um objeto.
Amanda: Desde o dia que ele (Paulo Merísio) sentou com a gente e disse que
tínhamos tido uma falha no currículo, ou seja, Interpretação II era para ter
sido comédia, e trabalhamos Brecht, assim como trabalhamos na III. A V era
livre! O Paulo (Merísio) tinha muita vontade de que nós passássemos pela
comédia. No início, era para trabalhar temáticas brasileiras. O Tropicalismo, a
Tropicália. E depois é que foi definido que ele queria trabalhar infantojuvenil
com a gente. Aí é que a gente afunilou. Mas, como ele deixou claro que a gente
ia trabalhar a comédia e o Teatro Infantojuvenil, foi necessário fazer módulos.
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Portanto, teve uma época em que ele pediu pra que cada grupo trabalhasse
uma linguagem: um trabalhou melodrama, outro contemporâneo, outro
clown. Tanto que uma parte da turma contou a história d’O Feitiço com todos
os alunos pelados, porque era o contemporâneo. Ele trabalhou tudo isso.
Acabou que n’O Feitiço tem um pouco de tudo. Muitos desses elementos foram
trabalhados de forma sucinta. Quando a gente para para analisar, podemos
ver que todos foram trabalhados, e todos estão presentes n’O Feitiço.
Laís: Eu vejo muito forte a máscara do clown nos narradores. O trio aqui, eu
acho que tem a ver... Um não teria como existir sem o outro, sem a
construção do outro. E isso me faz lembrar o clown.
Juliana: Nós somos inseparáveis!
0 trio é um recurso do cômico também. Maria Clara Machado, por exemplo, se utiliza muito dos trios. Não sei se isso é intencional do Paulo, mas acredito que sim!
Amanda: Acho que não. Porque eram quatro narradores. Quando o Paulo falou
que queria trabalhar com O Feitiço, um filme que o havia marcado muito,
éramos dez ou doze. Doze. E aí ele foi separar os personagens, e não teria
personagem para todo mundo.
Juliana: Por isso surgiram os narradores e o Ananias, que na época eu fazia.
Amanda: A Juliana no semestre seguinte ia para Europa, e, como tinha o Frei,
o Paulo criou a extensão dele (o frei), que é o Ananias (antigo personagem da
Juliana). Tudo com a intenção de que, como a Juliana ia embora, não precisar
22
repor. Só que, como o personagem foi bem construído, e tinha um cunho
muito cômico, acabamos chamando a Camila para substituir.
Sobre a utilização da narrativa...
Amanda: Eu gosto justamente por isso. Eu tenho a impressão de que estou na
plateia também, contando uma história. Dentro e fora. Eu acho que, não sei se
é porque é narrador, me sinto muito mais no direito e com liberdade de não
seguir a linha reta.
Juliana: Parece que a gente toma conta da história de uma forma que a gente
se sente muito mais liberto para criar também. Eu não sei, mas, quando é um
texto dramático, fica uma coisa fechada. A narrativa te dá uma liberdade de
criação também. Você se sente dono do texto também para poder brincar com
ele e com o personagem. Eu acho legal também o que a Amanda fala. Aí eu
fico lembrando, me vêm uns flashes da peça, e vejo como que é. Há momentos
em que a gente está, mesmo, observando os outros movimentarem, assim
como nós mesmas contando. E isso para mim é muito gostoso em cena.
Laís: Eu acho que a narrativa também traz uma coisa de proximidade com o
espectador, que vem dessa liberdade que a gente tem de sair um pouco daquilo
que está bem fechado. Desse vai e vem que a gente pode fazer. Eu acho que o
público fica mais à vontade quando a gente joga, fala, conversa o texto com
ele em alguns momentos. E esse jogo de jogar aqui, jogar lá, traz o público
mais para dentro e deixa ele mais à vontade para responder também,
comentar, etc...
Vocês associam os personagens aos tradicionais contadores de histórias?
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Juliana: No feitiço eu não vejo assim não. Talvez pela forma como foi
construído e tal. Mas, em outra experiência com o Jorge, que eu relatei, foi
mais ou menos assim: era uma avó que contava a história dos gatinhos, na
qual tinha o lúdico envolvido e tal. Mas, n’O Feitiço eu não fico assim como
narradora. Acho que o monstrinho entra tanto dentro da gente que eu não
consigo me imaginar de outra forma. Ele é muito grotesco, ao mesmo tempo é
muito cômico, não parece que é uma pessoa...
Laís: Eu tenho a impressão que o contador está fora da história, e os nossos
personagens, além de fora, também estão na história. Eles podem interferir no
rumo que pode tomar, ou não.
Juliana: É como se não tivesse uma linearidade na linha do tempo, fosse uma
coisa atemporal. E, de repente nós, como narradores, entramos na história
que foi lá anos atrás e volta no futuro de novo. É muito natural, sabe!?
Amanda: De certo modo eu enxergo uma semelhança, porque nós estamos
contando uma história. É a minha visão que eu estou passando. Assim como
minha avó, quando ia contar uma história, podia mudar o caminho da
história, da mesma forma meu monstrinho também pode interferir. Ele está
vivendo a história. Então, como eu estou contando, e tem essa questão
atemporal, eu vivi e estou contando o que eu vivi. Então, eu tenho isso para
mim: estou dentro, mas estou contando a verdade daquilo que eu relacionei.
Tanto é que eu consigo enxergar que eu é que estou contando a história, e, se
eu quiser mudar o fluxo dessa história, tudo bem, pois sou eu que estou
contando.
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Laís: Não sei se eu entendi muito bem a pergunta. Mas a imagem que me vem
é daquele ser passivo, e a gente conta, fazendo. Conta a história, não no
tempo, lá, mas a história no tempo, aqui.
Amanda: Eu vejo muito a imagem da criança quando ela quer contar alguma
coisa. Ela não viveu, mas ela conta como se tivesse vivido. Como se ela fosse o
super herói que salvou a princesa. Então, eu vejo e me referencio pela criança,
quando ela vai contar. Ela escuta uma história e vai contar para o irmão, e ela
vai contar do modo dela, como se ela estivesse dentro. Então, eu considero a
criança como uma pessoa que conta história, que narra uma história. Por isso
eu enxergo essa semelhança.
Vocês se consideram atrizes-narradoras ou personagens-narradores n’0 Feitiço?
Amanda: Eu me considero personagem-narrador. Até a última apresentação,
eu corrigia todo mundo que falava “narradoras”, porque, pra mim, era
“narradores”. Eu enxergava não como três figuras femininas, mas três figuras
que não eram femininas. Poderiam até não ser masculinas. Mas não eram
femininas... Pessoas que trabalham comigo, não no teatro, mas fora, falam:
“Que legal as narradoras.” E eu falava: “Não é “narradoras”, e sim
“narradores”. Se for para enxergar um sexo, eu vejo o masculino, acho que
pelo modo como foram construídos. Apesar de tudo, se deu pelo processo de
escolher um personagem a partir do quadro do Brughel, que tinha homens e
mulheres!
Juliana: Não era para ser do mesmo quadro, mas acabou que todo mundo
acabou pegando os mais conhecidos, porque era difícil achar outros. Era tudo
muito medieval, tudo camponês, tudo muito grotesco. Então, eu não acho que
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os narradores tenham sexo também. Para mim, eles não têm gênero. É como
se fossem anjos, ou algo assexuado. Quando eu visto figurino, eu deixo de ser
feminina, tudo muda completamente no meu corpo. Tanto é que a Marcela,
que é a Isabela, dá uma modificada no figurino dela, e dá pra perceber que ela
está muito mais feminina. E eu olho pra mim e olho pras meninas, e não vejo
nada de feminino. Mas eu acho bacana não ter gênero nesses narradores,
porque nós somos tão curingas, fazendo tanta coisa o tempo todo, que ,se a
gente tivesse um gênero, às vezes poderia soar estranho.
Em algum momento vocês deixam de serem os monstrinhos? Vocês quebram os personagens?
Juliana: Acho que o único momento é a ninfa.
Laís: Mas, ainda sim... Agora eu não sei!
Amanda: Eu acho que é um monstrinho! Porque tudo que eu fizesse em cima
do tablado era personagem. No meu caso eu ainda faço um caçador.
Juliana: Mas, ao mesmo tempo, o jogo que a Amanda criou, porque ela é
terrível: enquanto a gente estava fora do tablado, não era para existirem
realmente personagens. Mas ela começou a fazer caras e bocas, e o
personagem surgiu muito ali fora. Então não só nós três, mas também os
outros atores e personagens começaram a ter esse jogo. Então, em momento
nenhum quase, a gente fica fora desse personagem. Agora, pensando, parece
que, no início, a gente quebrava para ser soldado. Mas, de repente, parece que
é só uma máscara que o monstrinho coloca e vai lá e finge que é soldado. Ele
não quebra para ser o soldado. Eu sinto, mas eu estou confusa.
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Laís: Tem um jogo que a Nádia já passou pra gente, um exercício: pisou no
tablado, é personagem. Fora do tablado, é ator. Só que parece que os
narradores fogem um pouco dessa regra, e, nesse sentido, parece que
confirmam o fato de serem personagens contando a história. Só que aí nos
confundimos quando a gente pensa nas ninfas, por exemplo. Porque, se não é o
monstrinho fazendo a ninfa, é a atriz fazendo a ninfa. Eu fiquei confusa, não
sei responder. Mas é muito mais forte a noção de que é o personagem
contando a história do que a atriz.
Amanda: Eu vejo o personagem que está contando a história. Só que não
fazemos apenas ele: ele também é um personagem. E as ninfas são outros
personagens, assim como os soldados. Só que eu me ligo muito quando são
personagens humanos, como os soldados, as ninfas (que são mulheres bonitas).
Elas têm função de embelezar o espetáculo para o público. Mas, quando é
objeto inanimado, como quando fazemos a torre, é confuso, porque os
personagens estão dentro da cena observando-a para depois contar. E eu vejo
muito como a interpretação foi criada. Com a comédia, abordamos o clown, o
exagero, os monstrinhos. Com o Teatro Infantojuvenil, outra coisa. Quando o
Paulo mostrou o desenho do tablado pra a gente, ele falou que todos eram
monstros, feios, corcundas de “notre dame”. “Quando vocês colocarem os pés
no tablado, vocês são belos, esbeltos, peças de xadrez, monstrinhos fazendo
uma peça de teatro. Vocês são belos em cena.” Aí ele trouxe uma referência do
melodrama. Tanto que os outros personagens foram perdendo seu lado
monstrinho, porque a ideia inicial, que depois foi mudando, era que “estou
dentro do tablado: eu sou uma princesa linda e maravilhosa. Saí: eu sou um
monstro corcunda, com o corpo deformado, mas ,quando eu estou ali dentro,
eu consigo enganar a plateia inteira.” Tinha esse jogo. Só que foi se perdendo.
Como os narradores se utilizavam disso dentro do tablado, e tinham a
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liberdade de manter fora, os outros atores começaram a se comportar como
atores, mesmo do lado de fora do tablado. Isso se intensificou ainda mais com
a mudança de direção, e para o Mário, do lado de fora deveríamos ser atores.
E quando o Paulo retornou, eu questionei, e ele disse que só os narradores
deveriam continuar personagens do lado de fora. Vai muito da direção
também.
De quais recorrências os narradores se utilizam para ajudar a contar a história...
Amanda, Laís e Juliana: Todas.
E gestos imitativos?
Amanda: Eu os não vejo. Eu vejo o sentido de caracterizar um personagem,
não o imitando, mas sim falando de uma forma mais doce sobre a Isabela,
temendo o bispo. São as únicas duas referências que eu vejo.
0 teatro épico...
Amanda: Eu não sei, porque eu me enxergo no personagem o todo tempo, em
nenhum momento sou eu, Amanda, sentada na cadeira observando. Mas sou
eu personagem observando. Apesar de ter alguns elementos épicos presentes
no espetáculo, eu não sei se eu o classificaria dentro desse grupo.
Juliana: E aí eu considero que o fato de, apesar de conter elementos do que se
considera épico, a peça em si não pode se encaixar nesse tipo de linguagem. O
que Brecht coloca como teatro épico e distanciamento é que o ator tenha
ciência do que ele está dizendo ao público, para que, posteriormente, o público
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também tenha ciência e poder crítico. E nós, como atores ou personagens, não
temos esse posicionamento crítico.
Amanda: Para mim, a todo momento, eu estou como personagem, e eu trago
isso muito do clown. Apesar de que, como personagem; eu posso ter minha
visão crítica, naquele momento, eu sou personagem. E, para mim, para ser
classificado como épico, há uma série de características que não são presentes
no espetáculo.
Considerações finais:
Juliana: Obrigada por considerar que nós somos sujeitos da sua pesquisa. E que
nossa opinião sirva e seja válida. E que possamos contribuir de forma válida,
porque todo mundo aqui já passou por isso de pesquisar e correr atrás... E eu
estou com saudade da Academia!
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Entrevista com Mário Ferreira Piragibe Diretor de O Feitiço (Autônomos de Teatro)
Apresentação do entrevistado...
Mário: Meu nome é Mário Ferreira Piragibe. Sou ator e minha formação é
num curso regular de formação de atores da Cal (Casa de Artes das
Laranjeiras), que fica no Rio de Janeiro. A minha graduação é em Teoria do
Teatro pela UNIRIO, onde eu fiz meu mestrado e meu doutorado. Ambos
tratam do Teatro de Animação ou Teatro de Formas Animadas. Eu trabalhei
muito com Teatro Infantojuvenil. Talvez tenha feito mais espetáculos pra
jovens e crianças do que fiz para adultos. Em parte por causa da minha
aproximação com o Teatro de Animação, porque existe uma aproximação,
embora não seja obrigatória, do uso da linguagem de animação em espetáculos
pra jovens e crianças. Então, já estive presente, não apenas como ator, autor e
diretor, mas, também, às vezes, como assessor de manipulação, como co-
diretor em questões de animação em espetáculos para crianças. Nos últimos
espetáculos que eu fiz para crianças, eu entrei, mesmo quando eu era apenas
do elenco, de maneira muito dedicada nas questões da colocação das formas
animadas. Neste momento, sou professor do curso de Teatro da UFU. Fui
chamado, logo no primeiro ano em que eu vim aqui pra Uberlândia, em 2010,
pelo grupo de alunos que estava fazendo trabalho, que na época nem tinha
nome, e que hoje se chama O Feitiço, para participar do projeto. Eles tinham
começado o processo com o Paulo Merísio, mas o Paulo havia se mudado para
o Rio de Janeiro, e eles vieram me chamar pra continuar a acompanhar o
processo deles na ausência do Paulo. Então, foi assim: o trabalho já estava
iniciado de certa maneira e eu continuei o processo. No dia 27 de março de
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2011, o espetáculo fez a primeira apresentação dele no Teatro Rondon
Pacheco.
Um conceito para Teatro Infantojuvenil...
Mário: Um professor da USP, crítico, que fez um tempo crítica de teatro para
crianças, um cara que eu não tive oportunidade de acompanhar
profissionalmente, mas que eu conheci, Clóvis Garcia, certa vez resolveu
conversar comigo e com um grupo do qual eu fazia parte de alunos da UNIRIO
e tal. Ele deixava muito claro, na conversa, que havia, pelo menos na
concepção dele, duas maneiras fundamentais de se aproximar do teatro para
crianças. Uma delas é aquela que acreditava que teatro é teatro, independente
do público para o qual se destinava, e há uma corrente de prática e
pensamento muito intensa nesse sentido de companhias que apresentavam um
repertório clássico sem adaptações, que mostravam situações bastante variadas
e tal, para públicos de crianças, sem querer controlar o espetáculo a partir de
uma percepção do entendimento de uma faixa etária. E que havia outra
corrente que defendia que havia, sim, uma qualidade específica na escolha da
temática e no modo de apresentação do espetáculo, dependendo da faixa
etária para qual o espetáculo é voltado. Parece-me que no Brasil, pelo menos
neste momento, essa segunda corrente é vitoriosa. Não cabe a mim questionar
isso. Eu tenho um lado, é claro. Mas eu acho que o fato dessa corrente ser
vitoriosa não encerra uma discussão: ela apresenta uma série de outras. Ok. Há
temas e formas que são específicas pra jovens e crianças. Há temas e formas
que são detectados em quadros até para faixas etárias específicas, com
recortes mais evidentes, não apenas crianças e adultos, ou crianças,
adolescentes e adultos. O que me parece é que há muito equívoco em relação
em saber que temas e que formas são adequadas para as faixas etárias. Eu
31
acho que a gente, apesar de ter caminhado muito nessa discussão, ainda
depara com lugares comuns, ainda depara com certas aproximações um pouco
preguiçosas de quais seriam as temáticas mais apropriadas, quais seriam as
melhores formas de apresentar. Mas por outro lado, eu reconheço que, eu
pelo menos acompanho isso há mais de dez anos, desde a intensificação das
atividades do CBTIJ, essas discussões têm se intensificado, com os encontros,
com os seminários, com as publicações...
Pra mim, Teatro Infantojuvenil é aquele teatro cujos temas e formas de
apresentação reconhecem que há temas e formas que são caras para
determinadas faixas etárias, e que pelo menos se propõe trabalhar dentro de
uma faixa temática e de qualidade de apresentação de um modo que está
voltado para esse público específico. Eu sei que eu fui genérico, mas eu preciso
ser!
Sobre as crianças e os jovens do presente...
Mário: Bom, vou tentar responder por um determinado lado. Eu acho muita
coisa sobre isso. Crianças e jovens do tempo presente são, antes de qualquer
coisa, indivíduos que estão em determinado momento do processo de
formação, de amadurecimento e de constituição pessoal. Ou seja, ao mesmo
tempo em que se tem ainda uma necessidade de construir e amadurecer as
relações que eles estabelecem com eles mesmos e com o mundo, eles, no tempo
presente, são resultado de uma combinação muito peculiar de fatores e
elementos, que é, por um lado, uma predisposição muito grande à absorção e
à integração de novas informações. Eles estão num outro olho de furacão, que
tende a ficar cada vez mais agudo, mais avassalador de fluxo de intensidade
de informação. No momento que eles estão mais física e psiquicamente prontos
para receber e processar essas informações, estão tendo que conviver com uma
32
riqueza e com uma quantidade dessas informações que são inacreditavelmente
impossíveis de administrar. Então, o que eu reconheço no jovem do momento
presente é que, ao mesmo tempo em que há uma capacidade prodigiosa de
incorporar informações, elementos e estímulos, há a existência de uma
capacidade que ainda esteja por se desenvolver em questão de julgamento, de
combinação, até de estabelecimento de uma relação pessoal com esse material.
Eu não sei se isso é capaz ou não de gerar mal-entendidos. Não sei se isso é
capaz, ou não, de provocar desvios de compreensão, mas, para empregar um
termo bem da década de 60, eu tenho certeza, neste momento, que excesso
de informação não é antônimo de alienação. Eu acho o jovem do momento
presente muito parecido com o jovem que, em outros momentos, não era
capaz de perceber ações coletivas. As pessoas dizem que os jovens estão cada
vez mais “emsimesmados” e individualistas. Eu, sinceramente, não sei dizer se
isso é bom ou ruim. Não me parece que seja juízo de valor. Mas acho que a
gente está, na avaliação dessa geração, com a absorção de informação. E aí,
não só o jovem, mas também os mais velhos, precisa lidar com o equívoco, ou
com o perigo do equívoco, que é não confundir o excesso de informação com
qualidade, com capacidade de discernimento.
Um conceito para linguagem...
Mário: Eu trabalho com o conceito de linguagem na perspectiva de
comparação com o conceito de técnica. Eu tento estabelecer, localizar uma
diferença, que seja clara, entre técnica e linguagem. Aí, eu preciso falar uma
frase da minha pesquisa, se não, eu não vou conseguir contextualizar essa
situação. No Teatro de Animação, muitas situações, muitos procedimentos são
tratados como se fossem técnica, quando são, na verdade, linguagem...
33
Uma linguagem seria, nesse sentido, um conjunto de códigos e ações, com
vistas a estabelecer uma determinada capacidade, ou uma determinada
qualidade de comunicação. Quando eu digo, por exemplo, que certa forma de
apresentação, ou certa maneira de trabalhar com bonecos, ou com qualquer
outro elemento de cena, se constitui numa linguagem, e não em uma técnica,
é porque eu estou levando em consideração que essa determinada forma de
apresentação é composta, feita de diversos elementos que não são elementos
que dizem respeito a determinada maneira como o boneco vai ser
movimentado, ou determinado elemento de cena vai ser tratado. Não! Existem
diversos elementos que são concorrentes, como o boneco, o tema, a qualidade
do gesto, a vocalidade, o direcionamento para o público, e todas essas
informações, em conjunto, vão criar uma qualidade de comunicação que vai
produzir um certo conjunto de convenções, que vai permitir que artista e
plateia estabeleçam uma relação, não de entendimento, porque a gente já sabe
que a gente não precisa mais entender nada, mas de encontro. Aí, posso até
usar o termo entendimento; não entendimento nessa acepção mais careta de
que “ele falou, eu compreendi.” Não: é entendimento no sentido de que abre a
possibilidade de um encontro.
Sobre a utilização da narrativa como texto teatral...
Mário: A narrativa já estava dada quando eu cheguei. Mas, talvez, eu possa
falar um pouco disso. Eu acho que há duas maneiras de responder a essa
pergunta. A primeira delas é um pouco mais pessoal. Tanto eu, quanto o Paulo
Merísio, que foi o primeiro diretor dessa montagem, que foi professor aqui
durante nove anos, temos um momento compartilhado da nossa formação
enquanto atores. Nós, na primeira metade da década de 90, fizemos parte de
uma mesma companhia teatral, fazendo alguns espetáculos juntos. Depois,
trabalhamos também separadamente com pessoas que fizeram parte daquele
34
mesmo grupo, explorando uma linguagem que havia sido iniciada lá. A gente
fazia parte de uma iniciativa quelo Aderbal Freire Filho havia começado, na
virada da década de 80 para a de 90 no Rio de Janeiro. É quando o Aderbal,
o Luiz Arthur Nunes e alguns outros diretores da cidade vão começar a criar
alguns espetáculos com o foco no traço de narratividade muito pronunciado.
Nesse momento, em que o Aderbal estreia A mulher carioca com vinte dois
anos, inaugurando o ciclo de peças que ele vai chamar de romances em cena.
Junto com isso, no mesmo ano, o Luiz Arthur Nunes ia estrear o espetáculo A
vida como ela é, sobre os contos do Nélson Rodrigues, e que tem uma maneira
de tratar o narrativo de uma maneira muito semelhante ao do Aderbal, pois é
um momento em que ambos estão em diálogo. Nós somos filhos daquele
momento. Momento em que o teatro carioca sofre uma espécie de surto de
narratividade, no qual os narradores vão para a cena, em que se constrói
uma noção do ator-rapsodo. Uma coisa que se perguntava muito era: “Você
vai montar a peça, ou vai montar o livro?” E, a gente, na maior parte das
vezes, optava por montar o livro. A gente escolhia a narratividade. Nós dois
viemos de um momento em que éramos muito influenciados por esse
movimento de por a narração em cena, e aproveitar toda a riqueza que o
espaço do palco dá pra gente, uma vez que a história está sendo contada. Ou
seja, se a gente já transforma a ação, se a gente já dá visibilidade a uma ação
da narração, por meio da apresentação direta dessa narração, eu posso usar
todos os outros recursos que eu posso por no paco, eu posso cruzar as
informações da maneira mais livre e aberta que eu quiser. Eu não preciso,
para que o público entenda o que aconteceu na história, por os atores para
fazer exatamente aquilo que aconteceu na história. Eu posso brincar de
diversas maneiras, uma vez que a dimensão da ação está posta na forma de
narração. Esse é um motivo.
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A segunda maneira de responder a essa pergunta é que, naquele momento, a
gente pegou O Feitiço de Áquila, que é um filme. E o cinema tem uma
linguagem muito específica, que trabalha com a grandiosidade das imagens,
das sequências de lutas, dos planos abertos, com as paisagens... E a gente tinha
um tablado pequenininho pra mostrar tudo aquilo. Então, tínhamos que lançar
mão de outros recursos pra que a gente pudesse brincar de ter uma qualidade
de comunicação que pudesse flertar um pouco com essa linguagem
cinematográfica. Daí a combinação desses elementos todos em cena, como a
narração e a sombra.
A ideia da utilização de sombras...
Mário: Naquela época, eu tinha sido procurado por dois alunos daqui, Welerson
e Victor, que estavam também no elenco d’O Feitiço e que estavam
interessados em trabalhar com sombras. Ao mesmo tempo, eu tinha assistido
a um dos espetáculos infantojuvenis da Trupe de Truões, Simbá, que já estava
trabalhando com a linguagem da sombra. Mas eu não me lembro se havia uma
vontade de trabalhar com sombra, ou se achei que havia uma vontade de
trabalhar com sombra, e não havia. Só sei que acabei me empolgando com
essa ideia. Nunca foi intencional tentar cruzar o infantil/infantojuvenil como o
Teatro de Animação. A sombra entrou muito mais pela referência
cinematográfica do que pela linguagem infantojuvenil.
Narradores: atores-narradores ou personagens-narradores?
Mário: Eu não sei se, ao responder a essa pergunta, eu vou me adequar a
tipologia do Luiz Arthur... Olha: personagens eles sempre serão. O que acontece
é o seguinte: quando você estabelece, quando você coloca um narrador em
cena, a gente está criando um tipo de desdobramento temporal simultâneo
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em cena, ou um desdobramento ficcional, que pode ser bacana, pois uma das
principais características da narração é o tempo passado. Ou seja, se o
narrador se reporta às ações como acontecidas no passado, ele certamente
está em um tempo diferente daquele da ação que acontece. Então, a gente não
sabe se aqueles atores, se aqueles narradores são testemunhas oculares do caso,
porque a gente não vê, eles... Tá, eles não seriam personagens-narradores
porque não são personagens envolvidos na ação direta da trama. Apesar de
eles serem personagens, de eles habitarem o espaço, que é o espaço ficcional,
eles não estão envolvidos, não se recordam com aquela qualidade da memória
da pessoa que participou da ação, e está se lembrando de como a ação foi.
Nesse sentido, talvez eles não sejam personagens-narradores. Mas tem um
sentido mais complicado nessa história toda, porque a peça não se propõe
recriar essa ação com um grau de ilusionismo que faça o espectador ver com
muita clareza quando acaba a distância da narração e começa a ação direta.
Na verdade, é uma brincadeira, na qual não apenas os narradores, mas todos
os atores que fazem parte daquela ação estão brincando de contar a história.
Todos aqueles atores ali envolvidos são, num grau, narradores porque
transitam para dentro e para fora das suas personagens com certa liberdade e
têm uma reafirmação constante do momento presente. Está todo mundo
voltando para o momento presente, que é o momento no qual “estamos todos
aqui sentados nesse teatro assistindo essa peça”. Tem muito pouco durante a
peça de evocação daquele tempo passado, onde, “quem sabe”, aquela ação
aconteceu. Está todo mundo “quebrando tudo o tempo todo”. É quase como se
a gente pensasse assim: “O Feitiço não é a representação da história. Ele é a
brincadeira da representação. É a representação da representação!”. E aí,
nesse sentido mais complexo, mais difícil de colocar em palavras, talvez elas
(as meninas, atrizes) sejam até personagens-narradores.
Sobre a figura do contador de histórias...
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Mário: Sim e não. Pode ser controverso. Como eu disse na resposta anterior,
me parece que tem um sentido na peça inteira de engajamento coletivo nessa
história que é contada... Eu vou dizer uma coisa que é controvertida: eu acho
que o contador de histórias exerce uma função que é social, de resgate de
memória... Mas eu tenho muita resistência, eu tenho muita dificuldade, a
verdade é essa, de reconhecer o contador de histórias, pelo menos “aquele
contador de histórias”, oficialmente, no teatro, dizendo um texto que é
narrativo. Mas eu não acho que o contador de histórias seja algo diferente de
um ator. Eu repudio essa terminologia. Pra começar, eu acho “contação”
horrível, horroroso, feio. “Contação” de história nada mais é do que uma
apresentação verbal em primeira ou terceira pessoa que tem um grau de
espetacularidade de uma apresentação solo de um ator. Então, esta aí. Eles
não são contadores de história. Não nessa acepção. Eles são atores que estão
empenhados, encarregados de uma parte mais narrativa, mais épica da
apresentação teatral. Eu acho que é isso.
As recorrências verificadas em 0 Feitiço...
Mário: As formas animadas, brincadeiras, canções (não aquelas canções de
roda e tal, mas um lado pop brega, uma outra referência), imitação de outros
personagens por personagens através de gestos... Falando sobre gestos ou
gestus, eu insistia muito pra que o Lucas, ao fazer o bispo, assumisse uma
postura de benevolência, de placidez, que ele contrariasse o interior do
personagem. Mas nesse sentido, ele assume pra si o estereótipo social do
pároco. E a gente trabalha também nessa inversão de expectativas, se ele é um
grande vilão... Não sei se isso é um exemplo de gestus, mas acho que isso é
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certamente uma tentativa de trabalho, usando como ponto de partida a ideia
do gestus!
Podemos chamar 0 Feitiço de Teatro Épico Infantojuvenil?
Mário: Poxa Lucas, eu não sei, cara. Eu vou dizer o que eu penso agora: talvez
eu mude de ideia daqui a dois dias. Você estava falando das recorrências. Em
minha opinião, por exemplo, quando Brecht vai trabalhar esse conceito do
teatro épico, ele não está sendo ingênuo, e não estou dizendo que você está
sendo, a ponto de achar que, pela primeira vez na história, o teatro incorpora
elementos épicos. O épico do Brecht está muito embebido daquele sentimento
de movimento coletivo de compreensão do todo pela parte, da capacidade de
entendimento de comportamentos sociais, e não apenas, vamos dizer assim,
do aspecto de qualidade literária, de componentes literários dentro do teatro.
Tendo dito isso, preciso falar também de uma coisa: o teatro que é feito para
crianças, nas suas raízes mais felizes e menos felizes, se encontra muito com
essa ação de contar histórias. Essa é uma atividade que é de quarto de dormir,
de sala de aula, na qual alguém chega e conta algo pra você. E essa
interferência da narratividade sobre a cena infantojuvenil é muito mais
intensa do que, vamos dizer assim, do teatro para adultos. Ela está quase
ausente no teatro para adultos, e esteve quase sempre presente no teatro para
crianças, pelo menos a partir de um determinado momento. O que eu acho
perigoso, ou melhor, o que eu acho difícil de pensar nesse sentido é: se a gente
pensa na existência de um teatro épico para crianças, a gente pensa em
contrapartida na existência de um teatro não-épico para crianças. E que essas
duas correntes seriam suficientemente claras, a ponto de você reconhecer essas
manifestações . E, na minha opinião eu acho que isso não ocorre. Eu acho que
não.
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Sem considerações finais.
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Entrevista com a Trupe de Truões Entrevistados: Paulo Ricardo Marísio, Maria de Maria Quialheiro, Ricardo Augusto Santos de
Oliveira, Ronan Carlos de Freitas Vaz Rodrigues, Welerson Freitas Filho, Amanda Aloysa Alves,
Amanda Barbosa Vieira, e Laís Batista Costa.
Diretor e atores de Simbá, o marujo (Trupe de Truões)
Apresentação dos entrevistados...
Ricardo: Eu sou Ricardo. Terminei o curso de Teatro em 2008. Comecei a
trabalhar com Teatro Infantojuvenil em Ituiutaba, quando morava lá, em
2000 mais ou menos. O pensamento reflexivo e a pesquisa, mesmo, só vieram
quando eu comecei a trabalhar com a Trupe em 2006. Resumidamente é isso.
Laís: Meu nome é Laís. Eu comecei a trabalhar com Teatro Infantojuvenil com
o Paulo (Merísio) n’O Feitiço, embora não saibamos se O Feitiço é comédia ou
Teatro Infantojuvenil, mesmo. A minha pesquisa se intensificou a partir do
momento que passei a integrar a Trupe de Truões e fazer o Simbá, o Aladim,
o Ali babá, e também o Rapunzel. E assim vou experimentando um pouco
dessa linguagem.
Maria: Meu nome é Maria. A minha formação vem do curso de Artes Cênicas
da UFU. Eu fui trabalhar com o Paulo (Merísio), quando ele era professor
substituto, em uma disciplina, montando Um herói fanfarrão e sua mãe bem
valente. Ali, se deu meu primeiro contato com o Teatro Infantojuvenil, com
essa outra linguagem que possui a ressignificação de objetos, a brincadeira
levada pra cena como características. Uma parte do processo era levar objetos
para contar essa história. Depois, tínhamos que juntar as cenas apresentadas e
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tirar um objeto. Tudo até ver o que funcionou e deu certo. aliás, todos os
nossos processos foram construídos assim: tudo no mesmo caminho, com
brincadeiras e objetos. Então, é esse o meu percurso. Ah! Desde Um herói
fanfarrão, só tive duas experiências fora da Trupe: o Era uma vez um rio e o
Veludinho. No entanto, a maioria do elenco era o pessoal da UFU. Eu, Ana
Carla, Jorge, Rodrigo, Cássio... A gente já vinha de uma formação muito
parecida. Por isso, levamos elementos e começamos a ressignificar em um
outro processo, pois já tínhamos uma forma de trabalhar.
Amanda B: Eu sou Amanda. Meu primeiro trabalho com Teatro Infantojuvenil
foi com O Feitiço. Antes disso, eu não havia trabalhado com nada relacionado
a essa temática. Depois d’O Feitiço veio o Simbá (quando eu entrei para
substituir a Juliana Nazar), o Ali babá, o Aladim e o Rapunzel. Eu não fui
atrás de trabalhar com o Teatro Infantojuvenil. Tudo começou com a disciplina
de Interpretação V e o meu trabalho com o Paulo (Merísio).
Welerson: Eu sou Welerson. Sou estudante de Teatro da UFU. Comecei a
trabalhar com Teatro Infantojuvenil no Simbá, quando fui substituir o Ricardo
(Augusto) em um determinado momento. Ao mesmo tempo, eu já estava
fazendo O Feitiço. Então, comecei com dois espetáculos simultaneamente.
Depois, vieram os outros espetáculos: Aladim e Ali babá.
Ronan: Meu nome é Ronan Vaz. Eu me formei no curso de Artes Cênicas em
Julho de 2008. Minha formação inicial foi na linguagem musical, mas foi
voltada para o público infantojuvenil. O primeiro trabalho Infantojuvenil que
eu tive oportunidade de fazer foi o Ali babá e os 40 ladrões. Posteriormente,
eu tive outras experiências com Maria Borralheira, com direção do Narciso
Telles; também participei do processo de uma disciplina ministrada pelo Jorge
Farjala, que na época era professor da UFU. Mas esse processo não chegou a
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ser um espetáculo. A minha pesquisa com Teatro Infantojuvenil se deu a partir
do momento em que eu passei a integrar a Trupe de Truões, e assim, a ter
contato com a linguagem que já vinha se desenvolvendo através dos atores que
já integravam o grupo e a orientação do Paulo (Merísio).
Paulo: Eu sou o Paulo. Eu comecei a trabalhar com o Teatro Infantil desde o
início da minha carreira. Eu já era arquiteto e fui fazer a faculdade de
Cenografia na UNIRIO. Nessa época, eu entrei para um grupo de Niterói, na
década de 90, que trabalhava muito com o universo infantil. Eu participei de
montagens, como Ou Isto, ou Aquilo e O mistério de Feiurinha. Depois que eu
fiz Cenografia, fiz a Escola de Teatro Martins Pena, onde me formei ator, e
trabalhei com o universo juvenil, como os contos de Machado de Assis. Eu e
duas atrizes, que fizeram a escola de teatro comigo, fizemos um grupo de
teatro chamado Atores da Truanesca, do qual a Trupe de Truões é uma
espécie de homenagem. Na Truanesca, a gente fez três montagens: João sem
medo, Rapunzel e Aladim (com uma montagem completamente diferente da
nossa, da Trupe). A rigor, foi essa minha trajetória que me fez parar na UFU.
Em um determinado momento, em que eu estava com vontade de sair do Rio,
recebi um e-mail do Narciso, que era meu colega de mestrado, dizendo que ia
ter um concurso de professor substituto na UFU na área de Teatro
Infantojuvenil. Como eu tinha uma trajetória muito articulada com o Teatro
Infantojuvenil resolvi fazer o concurso. Passei. Vim, e, nos dois anos como
substituto nunca dei a disciplina de Teatro Infantojuvenil Fui sete anos
professor efetivo, e também não ministrei a disciplina. Mas eu trabalhei em
uma disciplina chamada Técnicas Paralelas, na qual a gente montou Um herói
fanfarrão e sua mãe bem valente. Esse espetáculo tinha o patrocínio da Casa
do Livro, uma livraria daqui, e por isso tínhamos um figurino e um cenário
com acabamento. Por conta disso, a gente começou a viajar, e então, a Trupe
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começou a discutir essa linguagem do Teatro Infantil. Esse espetáculo é um
marco, pois influencia algumas pessoas, como a Ana Carla (Machado). Ainda
ligado às disciplinas, a gente fez o Ali babá, que passa a ser a retomada da
Trupe, após meu afastamento. Além disso, ele é o embrião da trilogia Mil e
uma Noites, da qual acabou de estrear ontem o terceiro espetáculo. Minha
trajetória está intimamente imbricada com o Teatro Infantil ou Infantojuvenil.
Acho que isso tem a ver com o meu humor. Também me instiga trabalhar
com as crianças, propondo cena para elas. Atualmente, eu faço parte da
chapa de diretoria do CBTIJ, e tenho representado o centro em alguns eventos
na associação internacional, principalmente em um núcleo que estuda temas
tabus no Teatro Infantojuvenil. Acho que é isso.
Amada A: Amanda Aloysa. Me formei em Artes Cênicas em 2007. Comecei a
trabalhar com Teatro Infantojuvenil na disciplina com o Paulo (Merísio) na
montagem de Um herói fanfarrão e sua mãe bem valente. Depois disso, eu
estive no Ali babá e os 40 ladrões, no Simbá e no Aladim. Fora da Trupe, eu
só fiz um espetáculo, que durou pouco tempo e que foi dirigido pela Irley
(Machado). Esse espetáculo era uma contação de história e se utilizava de um
baú. Toda a minha trajetória de pesquisa e estudo de Teatro Infantojuvenil é
dentro da Trupe de Truões.
A tentativa de se formular um conceito para Teatro Infantojuvenil...
Maria: O Teatro pensado para a infância e a juventude: a gente tem discutido
que não é o universo da criança. Não é pensar que a criança vive em um
universo distante da gente. Não. Ela vive no mesmo universo. Então é a gente
descobrir, ter a sensibilidade (que vamos perdendo, ou que a gente tem
espontânea, das brincadeiras) e trazer a criança para o nosso discurso, para a
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nossa brincadeira. Não imaginar que ela está em outro universo. É entrar no
estado da brincadeira. Acho que é por aí.
Paulo: O conceito de Teatro Infantojuvenil tem de antemão uma questão: “É
para crianças e para jovens!” A Tendência é que seja Teatro Infantil, pois é
muito difícil delimitar o que seria o teatro para jovens. A adolescência é uma
fase que é difícil de se perceber que foco é esse. Eu acho que é muito comum
pensar-se no Teatro Infantil, e aí dividindo, como um teatro que possui
necessariamente uma temática. Eu acho que tem mais a ver a forma com que
você trata as questões. Podem-se tratar questões delicadíssimas, mas o foco da
criança vai para a forma como essas questões são levadas à cena. Acho que a
gente se cerca de muitos chavões com relação ao senso comum do que é ou
não é para criança. Na realidade, a questão é: “Como você faz?”. Eu acho que
o Teatro Infantojuvenil é muito mais próximo da metodologia, da poética, do
que necessariamente da temática. Como você vai contar essa história? Talvez
existam determinadas questões que não sejam interessantes de serem trazidas
à cena. Tudo depende da forma. Eu vou também lançar mão de um chavão:
antes de ser Teatro Infantojuvenil, Teatro Infantil, é Teatro!”. A questão se dá
na qualidade do que se faz. Na pesquisa, na qualidade dos elementos da cena
que você coloca, no acabamento estético, no acabamento de construção de
personagem, a qualidade técnica dos atores em cena contando a história...
Tudo tem que ter uma qualidade. O chavão é esse: “É teatro, antes de
qualquer coisa!”. É um teatro que tem pesquisa poética, estética e que pensa
que vai ter, na maioria de sua plateia, esse público: crianças e jovens. O que
não significa que não vai ser tão interessante, ou tão poeticamente
interessante para qualquer outra idade.
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Ricardo: Eu acho que, quando o Paulo fala da forma, não é pensar que essa
forma seja simplista; muito pelo contrário: e um espetáculo para crianças, mas
que pode apresentar cenas complexas e que exige desse público infantil um
exercício para se ter uma interpretação daquilo que está posto.
Paulo: A pedagogia vira cena. Quando você instiga questões na própria cena.
Durante muito tempo, a gente participava em festivais, em debates, e ficava
pensando que em um festival adulto algumas questões jamais seriam colocadas.
Nesse momento, depois do Peter Szondi, do drama moderno, algumas
perguntas pareciam inacreditáveis. Era como se os festivais infantis fossem
anacrônicos. Como se as discussões do teatro não estivessem permeando os
espetáculos para crianças. Questões ligadas à polissemia, à leitura da criança,
ou se era teatro ou contação de história... Questões, que, no teatro “adulto”,
ninguém teria coragem de colocar vinham à tona. Isso sempre me incomodou.
Eu lembro que quando o Flávio Desgranges assistiu o Ali babá, ele disse que
uma das questões mais legais era que cada porta abria de um jeito diferente, a
cada vez que a gruta se abria. E aí, nessa opção, a gente colocava para a
criança a possibilidade de ela pensar como ela abriria sua própria porta. A
gente não colocava como se fosse por apenas daquela maneira que funcionava
a porta. Então, com o próprio jogo de ressignificação de objetos, a gente cria a
possibilidade de trazer a criança para um jogo, um jogo de construção, numa
perspectiva crítica em relação à cena. É uma capacidade de construção de um
pensamento cênico a partir da cena. Não só aprender na sala de aula, pois,
quando eu assisto a um espetáculo, aprendo um pouco dos elementos da cena.
Ricardo: Assim que a gente estreou o Simbá, o Emilliano (Freitas), que hoje é
cenógrafo da UFU, escreveu uma crítica sobre o espetáculo. Na época ele dizia
que o Simbá trazia temas, como caçar elefantes e a presença da morte, que as
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pedagogas da cidade de Uberlândia ficariam chocadas com aquilo posto em
cena para crianças. Só que as crianças e as pedagogas, ao assistirem, não se
incomodavam em nada. Pelo contrário: elas falavam da possibilidade de se
colocar em cena essas questões de uma forma que as crianças interagiam com
aquilo a que estavam assistindo.
Maria: Não é o tema que é o problema. A questão é como você aborda. E a
gente aborda de uma forma muito livre, sem...
Paulo: Você trata da morte em cena - e daí? O cachorro da criança morreu, o
avô morreu! Essas crianças estão no mundo. Elas não estão em uma redoma.
As crianças estão vivendo. É o que a Maria (de Maria) falou. Não existe um
muro separando o mundo da criança. Se você vem para o teatro e faz um
universo paralelo, talvez exista algo de errado com o seu pensamento. Talvez a
poesia seja um bom momento para estimular essas questões.
Maria: Essa criança, vai ser um adulto e que vai lidar com esses temas de
forma tranquila. Ela já não começa, desde cedo, se traumatizando, ou se
bloqueando com determinadas questões. Ela já vai crescendo com uma outra
perspectiva.
Um possível conceito para linguagem...
Paulo: A questão está em como você apresenta determinadas questões em
cena. É diferente a nudez tratada no Calle! da que apresentamos na sombra
no Aladim. Acho que o como contar já é a premissa dessa linguagem. Isso
passa a ser uma tomada de decisão. Acho que isso vai se construindo, e, aqui
no grupo, é dentro de uma trajetória, na qual o Simbá é um marco para o
grupo. Próximo da montagem do Simbá, nós lemos juntos o texto da Malu
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Pupo, Entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Nele ela fala sobre a riqueza que foi
trabalhar em uma sociedade muito diferente da dela, muito difícil,
corporalmente falando. No entanto, coisas interessantíssimas vieram para cena
através de jogos de improvisação. Eu ficava pensando: “Se ela trabalhou em
uma dinâmica tão difícil, e eu tenho seis atores formados em uma escola de
teatro, que foram meus alunos e que entendem o que eu falo...”. Eu parti do
pressuposto que nós conseguiríamos, juntos, construir algo. E aí todo o
processo do Simbá vem de jogos de improvisação e divisão das cenas. E o
Aladim vem muito próximo disso também. É uma espécie de metodologia que
a gente vem construindo, sempre a partir de dois elementos: a narrativa, no
sentido da transposição para a cena de texto de literatura. e uma busca de
aprimoramento técnico dos atores, aliada à ressignificação dos objetos. Essa
última é algo que toca muito no universo da criança, da forma de a criança de
construir o pensamento. Essa busca da ressignificação dos objetos nos ajuda a
tocar a criança. Nesse sentido, eu acho que o Ali babá é muito feliz, pois é o
mais limpo de todos, no sentido de que tudo se constrói a partir de bastões.
Em relação à narrativa, vou falar uma coisa que eu acho que é importante
para você, e pra isso vou voltar o herói fanfarrão: o meu primeiro estímulo a
trabalhar com o texto narrativo em cena foi porque era uma montagem
dentro de uma disciplina; eu sempre achava que trazer um texto pronto de
dramaturgia não contemplava de forma igualitária os atores, sempre há o
protagonista, sempre tem o coro. E, pra mim, era fundamental que todos os
atores participassem daquele processo em uma mesma medida, pois estavam
todos em formação. Eu queria que os meus alunos tivessem o mesmo desafio.
E, ao trabalhar com a literatura em cena, eu tinha esta possibilidade: todos
vão ser personagens, todos vão narrar um pouco. Era a possibilidade de uma
melhor divisão de trabalho entre os atores. Isso se reverbera nos espetáculos
em que a gente tem personagens-título. A princípio, pode parecer que há um
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protagonista, mas, na verdade, tem um equilíbrio. O conjunto dos atores é que
é interessante. É isso que as pessoas falam ao sair do espetáculo. É um trabalho
coletivo. Esse foi meu primeiro grande estímulo para a escolha da literatura
em cena.
Ronan: Em relação a questão da linguagem, eu vejo, como componente que
chegou ao grupo tempo depois de ele já existir e eu ter me formado professor
de Teatro, nosso trabalho como uma metodologia que se constitui também
uma linguagem. Eu levo nosso trabalho metodológico para a sala de aula, e,
consequentemente, nossa linguagem. Prova disso é que, hoje, meus alunos
comentaram que, ao assistirem o Aladim, eles viram no espetáculo aquilo que
eles estavam aprendendo nas minhas aulas. Então, nesse sentido, nosso
trabalho possui, sim, uma linguagem. Uma linguagem formada pela literatura
em cena, pela ressignificação dos objetos, pelo próprio humor... A criança está
em um período de querer brincar, de querer se divertir. E, se o teatro, para
ela, passa pelo lugar de descoberta do mundo, tudo é muito mais divertido.
Maria: Acho que dificilmente alguém vai ver a Trupe fazendo outro tipo de
trabalho. Isso começa a fazer parte de nossa trajetória. Nossos espetáculos
passam pelo coletivo, pela narrativa... Acho difícil falar que vamos abandonar
tudo. Isso é um crescimento, é um aprofundamento em uma pesquisa. A gente
vai experimentando formas de contar histórias, de trabalhar com essa
linguagem. Que é a nossa cara, e que nos identifica.
Ricardo: Acho que essa linguagem é resultado de uma trajetória, e não a
receita. Agora com Aladim a gente fecha um ciclo de investigações, conforme o
Paulo (Merísio) disse. Isso é uma bagagem que a gente não vai abandonar, mas
o que vai vir a partir de agora não sabemos ainda. A gente quer ousar mais, e
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descobrir novas possibilidades que possam nos alimentar enquanto
pesquisadores.
Narradores: Atores-narradores ou personagens-narradores?
Amanda A: Tem momentos que é o personagem-narrador contando essa
história, e tem momentos que é o ator-narrador contando a história. É
engraçado que para mim o que importa é o como contar essa história,
independente se é ator ou personagem. É claro que se é personagem, você não
pode desmanchá-lo. Já o ator-narrador tem uma liberdade maior...
Amanda B: Quando você me perguntou sobre O Feitiço, era muito mais clara
a resposta pra mim. Lá, eu participei do processo, eu criei o personagem. No
Simbá, eu ainda fico nessa dúvida. No entanto, eu ainda considero mais como
personagem-narrador do que ator-narrador. Ele não só narra: ele está junto,
fazendo movimentação, tem a ressignificação do corpo. Uma vez eu questionei
o Ricardo (Augusto) por que todos narravam com sotaque, com expressão
corporal diferente. Por isso, pra mim, não é o ator. Também acho que não é
um personagem que perdura o espetáculo inteiro, mas, sim, está presente em
alguns momentos. Eu comecei a entender que não é só o ator que está
contando a história, mas também alguém que está dentro dessa história. Não
sei se foi isso o pensado no momento da criação. Além disso, como eu já tinha
assistido ao espetáculo antes de fazê-lo, eu trouxe a ideia de que eram
personagens, espécie de marinheiros, que, em determinado momento,
contavam a história do Simbá.
Ricardo: O que eu tenho a impressão é de que são atores-narradores. Nunca
tinha parado para pensar nisso. Nas minhas narrações no Simbá, antes eu
achava que eu era um ator-narrador. Mas, pelo fato de ter um ambiente e
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um figurino, isso faz com que esses personagens sejam quase que marujos do
Simbá o tempo todo. Talvez esses narradores tenham essa atmosfera de
contar essa história, de contar a história junto do Simbá. Tem um jogo, que
vem se estabelecendo desde o Ali babá, no qual os narradores são os donos da
história. Eles estão contando e conduzem toda a história. Eu tenho a sensação
de que são atores-narradores, mas como nós estamos com essa vestimenta e
dentro de uma atmosfera, eles têm um fio condutor entre eles, que os
aproxima de personagens. Nas minhas narrações, em nenhum momento, eu
sou um personagem narrando. Eu narro, e, em alguns momentos, faço
personagens. Mas acredito que isso varia entre nós.
Amanda A: Eu me sinto os dois. Tem horas que eu me sinto ator-narrador e
tem horas que sou personagem-narrador. Acho que tem personagens
diferentes que surgem, e existe um personagem mais neutro que apenas narra.
É isso um pouco.
Laís: Eu fico confusa também. Mas eu tenho a impressão que, se a gente
pensar como um ator conta uma história, a gente percebe que é vestindo
máscaras. Eu tenho essa ideia de poder brincar com máscaras. Mas, pensando
por esse lado, eu me sinto mais atriz contando uma história do que
personagem. Isso me lembra muito máscara, mesmo. O ator brincando de
representar personagens. Eu fico confusa.
Paulo: E aproveitando os “personagens”... Acho que a primeira discussão é:
defina personagem! Hoje em dia, em 2012, personagem, no sentido clássico,
não é mesmo. Eu acho que para esses atores, pela minha experiência, o mais
difícil é pedir para eles serem “atores”, porque eles tendem à representação.
Todo esse universo faz com que eles se coloquem em outro lugar, o que é
inevitável. Eu não acredito no ator puro. Eu sou o Paulo em cena! Não! Eu sou
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o Paulo em cena, mas com outra voz, com outra postura, e outra gestualidade
quando estou em cena. Eu tenho um corpo, eu tenho uma voz. Agora, eu acho
que têm modulações desses personagens, porque, em determinados momentos,
é necessário que se identifiquem determinados “personagens”; se não, eu não
vou entender essa história.
O Aderbal fala que é uma espécie de régua: você vai se aproximando mais do
personagem ou do narrador, mas, em nenhum momento, você é ator, puro e
simplesmente. Você está em cena e, em cena, você está revestido de uma
situação. Às vezes, pedir para ser você, puro e simplesmente, é a maior cilada
em que um diretor pode colocar um ator. Às vezes, é melhor deixar isso meio
que na dúvida, porque ser o ator às vezes distancia mais ainda. Então, com
uma toca branca, com uma maquiagem branca, eu estou em outro universo.
Não sou eu. Eu estou em um universo de contar uma história. Por exemplo, eu,
pra te contar o que eu comi ontem no café da manhã, não vou pegar um
bastão. Não sou eu; é uma poesia. É uma régua dentro de uma poética, de
uma história.
Ronan: E essa é uma questão que a gente discute entre nós, e que as pessoas
querem saber. Eu me lembro bem dos primeiros festivais de que eu participei
com o Ali babá e os 40 ladrões. Neles, as questões que nós ouvíamos dos
debatedores, a respeito do espetáculo, eram diretamente ligados à questão da
narração. No Ali babá, eu estou mais para um ator-narrador, se eu compará-
lo com o Simbá. Isso tudo dentro dessa régua, dessa balança que o Paulo fala.
Até porque o Simbá é uma história que contém várias histórias, e com isso os
ambientes e personagens se modificam...
Paulo: O próprio Simbá não narra.
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Amanda A: Narra o boneco!
Ronan: Quando o Simbá chega no lugar habitado por japoneses, eu sou um
personagem japonês contando aquela história. Já em outros momentos, essa
narração caminha para uma neutralidade.
Ricardo: Acho que no Simbá é onde temos isso menos definido. No Ali babá é
mais claro que são atores-narradores. No Simbá isso se mistura muito, porque
acontecem vários jogos colaborando para que a narração se dê de várias
formas, e no Aladim a gente vai para os personagens-narradores. Os
narradores são personagens. Acho que o Simbá está mesmo ali, no meio. O que
precisar, para que o jogo seja instaurado, acontece!
Maria: Vem também do modo como o espetáculo foi construído. No Ali babá, o
Paulo falava para um narrar e os outros fazerem a cena. No Aladim, o Paulo
falou que Laís e Ricardo eram os narradores.
Ronan: E no Ali babá, são narrativas longas. Quando eu entro para narrar, eu
narro em um espaço de tempo relativamente grande. No Simbá, as narrações
são mais “ping-pong”. Uma hora tá comigo, aí joga para o outro, e vai para o
outro...
É um processo de amadurecimento. Quanto ao Aladim, as narrações não são
muito longas, se intercalando com os diálogos, mas se centralizam em um
determinado personagem.
Paulo: O legal de ver a trilogia está em ver como são parecidos e diferentes os
espetáculos, ao mesmo tempo.
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Considerações finais:
Amanda A: Agora me caiu a ficha: n'Um Herói fanfarrão tinha gêmeas, e
agora tem gêmeos no Aladim. Elas andavam juntas e tal...
Paulo: Influência melodramática!
Amanda A: A ficha caiu agora, aqui!
Paulo: O que eu acho legal de falar, para fechar, é que eu acho bacana que
cada vez tenha mais pesquisas nesse universo. Pesquisas científicas, publicações,
etc. Porque isso gera debate.