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  • 8/10/2019 Caderno CCAP 3-Etica

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    TICA, DEONTOLOGIA EAVALIAO DO DESEMPENHODOCENTE

    Isabel Baptista

    Cadernos do CCAP 3

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    TICA, DEONTOLOGIA EAVALIAO DO DESEMPENHO

    DOCENTE

    Isabel Baptista

  • 8/10/2019 Caderno CCAP 3-Etica

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    FICHA TCNICA

    TTULOtica, Deontologia e Avaliao do Desempenho Docente

    AUTORIA

    Isabel Baptista

    EDIO

    Ministrio da Educao Conselho Cientfico para a Avaliao de Professores

    Avenida 5 de Outubro, 107, Lisboa

    http://www.ccap.min-edu.pt

    COLECOENMERO

    Cadernos do CCAP 3

    REVISOEDITORIAL

    Conselho Cientfico para a Avaliao de Professores

    DATA

    Julho de 2011

    DISPONVELEM

    http://www.ccap.min-edu.pt/pub.htm

    ISBN

    978-989-97312-2-6

    COPYRIGHT

    2011, Ministrio da Educao Conselho Cientfico para a Avaliao de Professores

    Esta obra foi licenciada com uma Licena Creative Commons Atribuio Uso No Comercial Obras Derivadas Proibidas 2.5Portugal(http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/).

    NOTA

    As opinies expressas nesta obra so da exclusiva responsibilidade da autora e no reflectemnecessariamente a opinio do Conselho Cientfico para a Avaliao de Professores.

    http://www.ccap.min-edu.pt/http://www.ccap.min-edu.pt/pub.htmhttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/pt/http://www.ccap.min-edu.pt/pub.htmhttp://www.ccap.min-edu.pt/
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    Introduo 5

    Parte I tica, Moral e Deontologia 7

    1. Enquadramento geral 7

    2. Definio e hierarquizao conceptual 8

    3. Primado da reflexividade tica 10

    4. Dimenso imperativa do dever-ser 11

    5. Carcter prudencial da racionalidade prtica 12

    6. Capacidades e disposies do sujeito tico 13

    7. Questes e tendncias de tica contempornea 13

    Parte II tica e Deontologia Profissional Docente 17

    1. A educao como bem comum 17

    2. tica e profissionalidade docente 18

    3. Padres de profissionalidade e profissionalismo 204. Deontologia e regulao profissional 22

    5. Excelncia tica e sabedoria pedaggica 24

    6. Capacidades e disposies do educador/professor 25

    7. Paradigmas de referncia 27

    Parte III tica, Profissionalidade e Avaliao de Desempenho 29

    1. Avaliao de desempenho e thosprofissional 29

    2. Avaliao de desempenho, equidade e justia 32

    3. Estatuto tico da relao entre avaliadores e avaliados 35

    4. Avaliao de desempenho constrangimentos e interpelaes 38

    5. Dilemas pessoais e profissionais na avaliao 42

    6. Capacidades e disposies dos sujeitos de avaliao 44

    7. Referenciais de deciso tica 46

    Consideraes finais 49

    Referncias bibliogrficas 51

    Nota biogrfica da autora 55

    NDICE

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    1. Deveres do avaliador para com o avaliado 37

    2. Deveres do avaliado para com o avaliador 38

    NDICE DE QUADROS

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    O presente trabalho corresponde a um estudo sobre o estatuto tico-deontolgicoda avaliao do desempenho dos educadores de infncia e dos professores dosensinos bsico e secundrio, tendo sido elaborado por solicitao do ConselhoCientfico para a Avaliao de Professores (CCAP).

    Perspectivando a avaliao do desempenho docente num quadro de sabedoriaprtica que apele participao informada e responsvel dos prprios sujeitosde avaliao, avaliadores e avaliados, o trabalho encontra-se dividido em trspartes fundamentais, antecedidas por esta introduo e estruturadas articulada-mente de modo a sublinhar a ligao prudencial entre as componentes optativase imperativas do dever-ser avaliativo.

    Neste sentido, a primeira parte inteiramente dedicada ao enquadramento dasnoes de tica, moral e deontologia, visando esclarecer a ordem de distinoe hierarquizao conceptual que subjaz relao entre as esferas teleolgica,deontolgica e pragmtica da aco humana.

    Em coerncia com este alinhamento terico, a segunda parte centra-se na expli-citao de princpios de tica e deontologia profissional, procurando evidenciara relevncia e a especificidade do desempenho docente enquanto desempenhopautado por padres de profissionalidade e profissionalismo congruentes comos valores de tica escolar em contexto de sociedade educativa.

    Valorizada como ponto de convergncia das anlises precedentes, a terceira par-te aborda as questes de tica e deontologia directamente relacionadas coma avaliao do desempenho docente, com nfase para as que dizem respeitoaos pressupostos conceptuais e metodolgicos, aos imperativos de justia e

    equidade, relao entre avaliadores e avaliados, aos constrangimentos e inter-pelaes geradas no mbito dos processos avaliativos, bem como aos dilemaspessoais e profissionais protagonizados pelos sujeitos na sua qualidade de acto-res, autores e narradores.

    De acordo com os objectivos que presidiram sua elaborao, no constituiuambio deste trabalho apresentar um quadro pormenorizado e exaustivo sobrecorrentes ticas, nem esgotar argumentos de epistemologia moral ou educa-cional, tendo-se optado por seguir uma matriz de reflexo ancorada em autorescontemporneos, referenciados em registo de dilogo crtico com os textos fun-dadores. Esta opo permitiu fundamentar um discurso pontuado por interroga-

    es deixadas intencionalmente em aberto, em conformidade com a exignciade reflexividade tica intrnseca ao desempenho docente.

    INTRODUO

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    Introduo

    O trabalho termina com consideraes de carcter global, sublinhando as razes de ti-ca avaliativa decorrentes da relao entre tica, deontologia e avaliao do desempenhodocente.

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    1. Enquadramento geral

    As questes de tica e moral so questes antropolgicas por excelncia, per-correndo transversalmente todas as etapas e dimenses da vida humana. De

    uma maneira ou de outra e nas mais diversas circunstncias, todas as pessoasse interrogam sobre razes de ser e de agir, aspirando sempre a ser mais emelhor. Ao contrrio de outros animais, os seres humanos possuem aptidopara consciencializar a sua relao com o mundo e a partir da direccionar o seuprocesso de desenvolvimento. De tal forma que s uma vida examinada considerada digna desse nome, como ensinava Scrates, o filsofo grego intro-dutor da maiutica, ou arte de gerar conhecimento atravs do dilogo reflexivoconsigo prprio.

    A vida em sociedade espelha e fecunda essa exigncia pessoal, projectando-ano horizonte da cidadania, com todas as suas mediaes interpessoais e institu-

    cionais necessrias. Na verdade, essas mediaes consubstanciam uma esp-cie de acordo global tcito em torno de valores considerados essenciais comoliberdade, autonomia, dignidade, integridade, respeito, reconhecimento, lealda-de, responsabilidade, justia ou solidariedade. A linguagem corrente particu-larmente elucidativa a este respeito. usual, por exemplo, dizer-se de algumcujas aces merecem aprovao que se trata de uma pessoa de princpiosou que revela qualidades de carcter. Noutros casos, verbalizam-se sentimen-tos de repulsa e indignao aceites como naturais e legtimos face ao quese apresenta como imprprio e ofensivo da condio humana. O ser huma-no um ser reflexivo e normativo por excelncia e, como tal, um ser que ava-

    lia. Nas mais simples situaes de conversao, as pessoas nunca se limitam atransmitir informaes ou a expressar crenas, exprimindo sempre, implcita ouexplicitamente, juzos de valor sobre as coisas, as pessoas ou os acontecimen-tos (Canto-Sperber e Ogien, 2004).

    precisamente num quadro de vida examinada e socializada que os termostica e moral surgem no discurso comum onde tendem a ser usados deforma indistinta, em consonncia com a sua afinidade etimolgica. Com efeito,a palavra tica provm do grego (th morada) e a palavra moral deriva dolatim (mores costumes), mas ambas remetem para um mesmo universo designificao, referindo-se aos modos de habitar o mundo ou aos modos de

    ser habituais, isto , aos padres de conduta adoptados pelas pessoas, pelasorganizaes, pelas comunidades e pelas sociedades.

    I. TICA, MORAL E DEONTOLOGIA

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    1. tica, moral e deontologia

    Estamos perante contedos nocionais equivalentes ou, pelo contrrio, pertinente assinalaruma distino?

    Esta continua a ser uma interpelao recorrente no seio do debate terico, embora o pensa-mento contemporneo favorea perspectivas de distino e articulao conceptual que serevelam particularmente fecundas no mbito da racionalidade educacional e profissional.

    Tecidas na linha de encontro entre duas tradies matriciais, a tradio teleolgica (do gregotelos meta, fim) herdada de Aristteles (384-322 a.C.) e a tradio deontolgica (do gregodeonta dever) tributria de Immanuel Kant (1724-1804), as concepes contemporneasacentuam o carcter relacional e interactivo da aco humana, permitindo equacionar o es-tatuto tico-deontolgico da avaliao do desempenho docente em funo de trs eixos deanlise fundamentais:

    Primado da reflexividade tica sobre a moral e a deontologia;c

    Passagem obrigatria e completa da tica ao plano de constrangimento moral/c/deontolgico;

    Articulao prudencial entre as dimenses optativas e imperativas do dever-ser,csegundo esquemas de racionalidade prtica.

    2. Denio e hierarquizao conceptual

    tica

    Definida segundo uma concepo teleolgica, a tica diz respeito reflexo sobre os fun-damentos e os fins da aco, tendo por base a utopia do humano consensualizada em cadatempo histrico. Em tica a Nicmaco, uma das obras mais emblemticas da cultura ociden-tal, Aristteles descreve o bem como aquilo para que tudo anseia, argumentando que oser humano alcanar mais facilmente os seus propsitos se, tal como os arqueiros, souberapontar para um alvo claro e bem definido: Entre os fins das aces a serem levadas a caboh um pelo qual ansiamos por causa de si prprio, e os outros fins so fins, mas apenasem vista desse (Aristteles, tica a Nicmaco, Livro I, 1094a18). Neste entendimento, a

    referncia a um fim supremo a um telos no esgota o trabalho de ponderao tica, sen-do necessrio determinar com igual preciso os bens subsequentes, de modo a conseguirdescrever com clareza, e em cada circunstncia, as prioridades da aco.

    A tica corresponde, ento, ao processo de articulao racional do bem, sua especificaonecessria nos diferentes patamares de deciso e aco.

    O que que, no contexto da nossa sociedade, institui--o ou comunidade profissional pode ser consideradohumanamente desejvel, correcto e susceptvel deconstituir bem comum?

    Qual o ideal de realizao que configura ou deve con--

    figurar a nossa responsabilidade pessoal, cvica eprofissional?

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    1. tica, moral e deontologia

    Moral

    Em concordncia com a definio anterior, considera-se que a moral corresponde ao pla-no de realizao histrica da tica, remetendo para as dimenses normativas e imperati-vas da aco valorizadas pela tradio deontolgica de inspirao kantiana. Ao contrrio deAristteles, Kant considera que a referncia a uma ideia prvia de bem no determinantena configurao moral da vida humana, advogando antes o primado de uma vontade boa,entendida como uma vontade inteiramente racional ou vontade despojada de todas as incli-naes e afeces oriundas do mundo sensvel: Esta vontade no ser na verdade o nicobem ou o bem total, mas ter de ser contudo o bem supremo e a condio de tudo o mais,mesmo de toda a aspirao de felicidade (Kant, 1995).

    Nesta perspectiva, a vontade humana que determina a qualidade moral da aco, justifi-cando que ela seja praticada por respeito ao dever e no apenas em conformidade com odever. E para que tal acontea, necessrio que os imperativos morais assumam uma forma

    categrica e no hipottica. Age apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmotempo querer que ela se transforme em lei universal (Kant, 1995). Esta formulao do im-perativo categrico contm os princpios fundamentais de toda a legislao moral: racionali-dade, universalidade e constrangimento.

    Admitindo o carcter normativo e imperativo das leis-morais, em que termos pode ou deve ser equacionadaa relao entre legalidade e moralidade?

    O que que exactamente obriga na obrigao de ca--rcter moral?

    Deontologia

    O termo deontologia (do gregodeonta dever e logos razo) foi introduzido pelo jurista efilsofo ingls Jeremy Bentham (1748 1832) na obra Deontology or the Science of Morality,publicada em 1834, dois anos aps a sua morte.

    Jeremy Bentham no pretendeu, como Kant seu contemporneo, desenvolver uma teo-ria geral do dever, preferindo centrar-se na anlise das dimenses do dever-ser relativas a

    cada comunidade e a cada situao em concreto. O que, de certo modo, ajuda a explicara evoluo do termo deontologia por associao s morais particulares, como as moraisprofissionais, por exemplo.

    Actualmente designa-se por deontologia o universo moral de uma determinada profisso,considerando que existem comportamentos morais caractersticos e distintivos das activi-dades profissionais.

    Conceptualmente indexadas ao campo da moral, as deontologias obedecem a critrios deracionalidade, universalidade e constrangimento, corporizando as obrigaes decorrentes daadopo de padres de desempenho especficos.

    Considera-se, neste sentido, que a formalizao de uma deontologia corresponde a uma par-te substancial do thos(carcter) de uma profisso, funcionando como vector de orientao

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    1. tica, moral e deontologia

    e coeso identitria e, ao mesmo tempo, como vector de responsabilizao pblica numaperspectiva de salvaguarda dos interesses dos destinatrios da actividade profissional.

    Em que medida se justifica a existncia de deontolo--gias ou morais profissionais?

    Que tipo de relao pode ou deve existir entre as mo--rais profissionais e a moral comum?

    3. Primado da reexividade tica

    Remetendo para as proposies fundadoras e para o sentido orientador da aco humana, atica precede, fundamenta e engloba a moral. A afirmao do primado da reflexividade tica

    explica-se a partir desta premissa. Prolongando o sentido etimolgico, pode dizer-se que atica contempla no apenas os costumes e os modos de ser habituais mas, sobretudo, oscostumes e os modos de ser considerados mais adequados, no pressuposto de que os pro-cessos de definio de critrios de melhoria permanecem sempre em aberto.

    Na medida em que respondem a aspiraes de aperfeioamento contnuo, as definiesteleolgicas nunca so produzidas de forma absoluta. A procura do bem comum representaum compromisso perseverante, desejavelmente partilhado e muito exigente. mais fcilproceder articulao do mal e deteco da falta do que chegar a acordo sobre os bensmobilizadores da aco. Contudo, essa procura do bem ou dos bens mobilizadores da aco o que, na verdade, define a tica enquanto aspirao universal a fazer bem e cada vez

    melhor.

    Assegurando a mediao crtica entre os diferentes patamares de aco, a tica separa-se dareligio, ainda que os modelos de racionalidade tica possam integrar elementos de carcterreligioso. Um dos nomes de referncia da filosofia moral, Emmanuel Lvinas (1992;1994),fez mesmo questo de recorrer linguagem dos profetas e dos rabinos para fundamentarum logoscapaz de traduzir a dimenso de mistrio que, no seu entender, caracteriza todaa relao interpessoal. Trata-se aqui, no entanto, de um desafio especulativo que permane-ce interior razo, reconhecendo-se que a palavra bblica no pode fazer autoridade nestembito.

    Afirmar que as questes ticas e morais so intrnsecas ao ser humano significa admitir quelhe pertencem por natureza? O que que verdadeiramente motiva e impele as pessoas paraa aventura do seu auto-aperfeioamento ao longo da vida?

    Questionando as ideias clssicas sobre a existncia de uma natureza humana, geradorade uma bondade ou de uma maldade originais e a partir da qual seria possvel definir umconceito estvel de bem comum, os autores contemporneos apontam o valor relaocomo trao essencial da condio humana, colocando assim a experincia intersubjectiva nocentro da vida moral.

    Muito antes de nos ensinarem e aprendermos as regras de comportamento adequadosocialmente construdas e promovidas e muito antes de sermos exortados a seguir certosmodelos de preferncia a outros, estamos j numa situao de escolha moral (Bauman,2007a).

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    1. tica, moral e deontologia

    Vinculada a um sentido fundamental de solidariedade humana, mais do que uma metamoraldedicada ao estudo sobre as diferentes esferas da vida prtica ou anlise lingustica dosenunciados morais, a tica representa o Outro da moral, a sua fonte de alteridade e de inter-pelao permanente. A tica distingue-se assim da moral, ao mesmo tempo que a exige e

    que a interpela. O compromisso tico transcende sempre a esfera de obedincia s regras,s prescries e s exortaes morais, ao ponto de muitas vezes justificar a transgressodessas mesmas regras, prescries e exortaes (Imbert, 1993).

    A educao desempenha um papel crucial na promoo dessa espcie de compromisso,cabendo-lhe justamente a tarefa de capacitao subjectiva e cvica das pessoas ao longode toda a sua vida. O ser humano um ser inacabado e consciente desse inacabamento,como sublinha Paulo Freire, acrescentando que [...] seria uma agressiva contradio se, ina-cabado e consciente desse inacabamento, o ser humano no se inserisse num permanenteprocesso de esperanosa busca. Este processo a educao (Freire, 2000).

    Funcionando como antropologia prtica, a educao constitui um lugar humano privilegiadopara o desenvolvimento de novas e melhores formas de ser e conviver, instituindo-se comoactividade intrinsecamente tica.

    4. Dimenso imperativa do dever-ser

    Visar o bem, vivendo com e para os outros em instituies justas. assim que Paul Ricoeur

    (1990; 1995) define a tica, chamando a ateno para a importncia da justia enquanto parteintegrante da aspirao humana a uma vida realizada e feliz.

    Contrariando a ambiguidade semntica caracterstica da linguagem comum, onde tanto apalavra tica como a palavra moral tendem a assumir a dupla conotao do que tidocomo bom e do que se impe como obrigatrio, Ricoeur defende a necessidade dedistino entre as duas noes, ao mesmo tempo que advoga a necessidade de articular osim da tica com o no da moral, de modo a garantir a inscrio histrica do bem visadomas tambm, e forosamente, a prevenir e corrigir as situaes de injustia. A passagem datica pelo crivo da norma e por todas as mediaes relacionais necessrias a uma regulaode carcter deontolgico essencial justia. Convocando o indivduo para a esfera da res-

    ponsabilidade social, a justia eleva a estima de si ao respeito de si.

    O sentido de responsabilidade inter-humana que subjaz ideia de justia desenvolve-se porreferncia s mltiplas figuras de alteridade, ao Outro abordado na relao imediata do facea face, mas tambm ao Outro como terceiro ou qualquer um. Ele refere-se, portanto, aoOutro como o prximo, o familiar, o vizinho, o amigo, o aluno, o colega ou ao Outro como olongnquo e o estranho, implicando formas de relao mediadas pelas instituies e sujeitasao constrangimento moral.

    Como sublinhou Hannah Arendt, o verdadeiro desafio moral no est em saber se um indiv-duo bom em si mesmo mas se a sua bondade serve o mundo em que vive. No entender

    da autora, os caminhos de salvao pessoal so indissociveis de uma poltica do comporta-mento sintonizada com o mundo em geral e com a comunidade de pertena em particular:

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    1. tica, moral e deontologia

    Este o preo que pagamos pelo facto de vivermos as nossas vidas no apenas connosco,mas entre os nossos companheiros de humanidade e pelo facto da aco que, bem vistasas coisas, a capacidade poltica por excelncia, s poder tornar-se efectiva nalguma dasmultmodas formas de comunidade humana (Arendt, 2007).

    Por oposio ao carcter subversivo e desconstrutor da tica, a moral apela ordem e

    disciplina, ela identifica e classifica, segundo lgicas de previsibilidade, de simplificao e

    de controlabilidade (Imbert, 1993). As leis morais so sempre redutoras e incompletas e,

    nessa qualidade, nunca fazem justia ao carcter transcendente e utpico da perspectiva

    teleolgica. Por outro lado, porm, precisamente no plano da sua efectivao histrica

    que o carcter incompleto, corruptvel e perfectvel das leis morais se revela. Assim, no s

    preciso que o optativo d lugar ao imperativo, como absolutamente necessrio que tal

    processo seja cumprido at ao fim, de modo a poder pr prova a eficcia das leis e garantir

    a sua perfectibilidade normativa.

    5. Carcter prudencial da racionalidade prtica

    A passagem da tica pelo crivo da norma essencial numa perspectiva de justia, como foi

    dito. Contudo, a articulao necessria entre o plano teleolgico e o plano deontolgico re-

    quer modalidades de pensamento prtico que, no s no pem em causa a imperatividade

    do dever, como a sustentam.

    Recorde-se que ao identificar a razo prtica com o exerccio de uma vontade racional, Kant,

    o filsofo da moralidade, confrontou-nos com uma concepo paradoxal de dever, baseada

    na relao entre constrangimento e liberdade, entre autonomia e heteronomia. O que obriga

    na obrigao moral a exigncia de universalidade prpria do imperativo categrico, mas a

    interdio assume aqui um papel essencialmente pedaggico, visando acima de tudo pro-

    duzir efeitos ao nvel da conscincia dos actores e na forma de um tumulto reflexivo gerador

    de sabedoria prtica.

    Deve-se a Aristteles uma primeira chamada de ateno para a especificidade da racionalida-

    de prtica, distinta de outros campos especulativos pelo seu carcter estruturalmente vari-vel, interactivo e deliberativo. Na sua perspectiva, a excelncia do pensamento prtico reside

    na frnesis(do grego phronesis sensatez), uma noo equivalente ao que na tradio latina

    se designa por prudncia e que serve para referir as virtudes de uma boa deliberao.

    Deliberar com prudncia significa atender especificidade de cada situao e s finalidades

    que a configuram de modo a analisar integradamente todos os aspectos envolvidos. O pen-

    samento prtico um pensamento complexo e estratgico, ponderadamente cauteloso e

    audacioso.

    A sabedoria tica identifica-se com este tipo de sabedoria prtica, correspondendo aptido

    para ponderar, em permanncia, a articulao entre as trs esferas da aco humana teleo-lgica, deontolgica e pragmtica.

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    1. tica, moral e deontologia

    6. Capacidades e disposies do sujeito tico

    Remeter os desafios de reflexividade tica e de consolidao deontolgica para o plano da

    racionalidade prtica, isto , para o territrio complexo e dilemtico da deliberao moral, sig-

    nifica valorizar o papel dos prprios sujeitos e o exerccio pleno da sua soberania racional. Asaces concretas so realizadas por pessoas concretas que, nessa condio, devem assu-

    mir responsabilidade por elas (Cortina, 1993). preciso, pois, ligar a aco ao seu agente:

    Quem fala? Quem responde? Quem relata? Quem realizou a aco?c

    Quem o sujeito de predicao avaliativa e de imputao moral?c

    Quem profere juzo? Quem tem responsabilidade?c

    A resposta a uma rede de interrogaes deste tipo representa para Paul Ricoeur (1990;

    1997) o referente ltimo das capacidades do sujeito autor, actor, narrador e avaliador da

    aco. A noo de capacidade assume assim uma importncia crucial na passagem do ser

    em potncia para o ser em acto. Porm, a capacidade para praticar o bem no garante, porsi s, que o bem seja efectivamente praticado. Por outro lado, possuir uma capacidade no

    autoriza que essa capacidade seja accionada em qualquer circunstncia, a qualquer custo.

    As capacidades funcionam como condies de possibilidade activadas em situao e por

    fora das disposies ticas, recorrendo deste modo, e mais uma vez, a uma designao

    aristotlica (tica a Nicmaco, Livro II, 1105b19).

    Nem dons da natureza, nem afeces sensveis, as disposies ticas correspondem a qua-

    lidades de carcter que motivam o sujeito a agir correcta ou incorrectamente. Na passagem

    do poder-fazer ao fazer, no basta ser-se dotado de competncias morais, preciso revelar--se disposto a agir em consequncia, ponderando razes para l dos interesses egostas e

    imediatos.

    Neste sentido, pode dizer-se que a capacidade para o questionamento requer disposio

    para o questionamento, a capacidade de dilogo requer disposio para o dilogo, a capa-cidade de justia requer disposio para a justia, tal como a capacidade de avaliao e de

    auto-avaliao requer disposio para a avaliao e para a auto-avaliao.

    7. Questes e tendncias de tica contempornea

    A aco equilibrada e justa depende, em boa medida, do perfil tico-moral dos sujeitos,

    conforme foi afirmado no ponto 6. Essa postura axiolgica pessoal resulta de um processo

    de apropriao crtica em relao ao conhecimento recebido, reflectido e discutido com

    outros.

    em sociedade que o sujeito expressa e desenvolve as suas capacidades e as suas dis-

    posies ticas, contribuindo desse modo para a actualizao de um patrimnio axiolgico

    comum. Desenvolvidos numa perspectiva de reavaliao e reinveno constantes, os pro-

    cessos de desocultao e explicitao desse patrimnio marcam mesmo o esprito de umapoca.

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    1. tica, moral e deontologia

    Quais os valores ou os bens que marcam o esprito do nosso tempo e do nosso mundo?Constatando a crise das grandes narrativas, onde poderemos ancorar hoje as concepes dehumano e de humanismo que nos possam servir de referncia? Em que medida possvelconciliar o interesse pessoal com as virtudes de bem comum em sociedades marcadamente

    hedonistas, onde os bens materiais parecem conquistar primazia? Num mundo que tende afavorecer escolhas privadas e narcsicas, ainda existir lugar para o sentido kantiano de devermoral?

    Caracterizado por cenrios de grande inquietude, complexidade e incerteza, o mundo con-temporneo parece assistir ao que Lipovetsky (1994) designou crepsculo do dever, re-ferindo-se assim tendencial preponderncia dos direitos individuais sobre as obrigaescolectivas e generalizao de atitudes de averso a regras e de resistncia celebrao decompromissos formais.

    Testemunhando o mesmo tipo de preocupaes, Jos Gil (2009) alerta para a necessidade

    de combater o individualismo enquanto doena de hiperidentidade, uma doena resultanteprecisamente do facto de se pretender fazer da identidade o territrio exclusivo da subjecti-vidade. Demasiado preocupadas consigo mesmas, as subjectividades acabam por menos-prezar a experincia de relao com a alteridade humana, onde, afinal de contas, reside asua fonte de renovao vital.

    Afectando a conscincia individual, essa perda de sentido de alteridade acaba por conduzirao obscurecimento da referncia a um bem comum, contaminando assim toda a dinmicasocial.

    Torna-se, assim, necessrio promover uma cultura de responsabilidade social sintonizada

    com os valores morais e cvicos consagrados na Declarao Universal dos Direitos Humanos(ONU, 1948) e que, para todos os efeitos, funciona como o grande cdigo tico do nossotempo.

    Trata-se, em suma, de perceber como os conhecimentos novos sobre o homem e a so-ciedade permitem compreender em que medida a existncia de cada pessoa depende dobem primeiro que a coexistncia. E por consequncia que a vida de cada um dependetambm dos bens comuns que a sustentam (Flahault, 2011, traduo da autora).

    Paralelamente a esse aparente triunfo de fenmenos de individualismo e de relativismo mo-ral, assistimos hoje ao aparecimento de novas questes ticas, derivadas nomeadamente

    da revoluo tecnolgica, do progresso cientfico, da biotica e das alteraes ambientais,e que, em conjunto, justificam a apologia de um desenvolvimento humano equilibrado, soli-drio e sustentvel.

    Todavia, em termos de teorizao tica, as razes substanciais que explicam os actuaisprocessos de mudana paradigmtica prendem-se sobretudo com as transformaes ope-radas ao nvel da prpria concepo de racionalidade. Os efeitos de ruptura que, segundoEdgar Morin (1994; 1999) atingem a relao trinitria indivduo/sociedade/espcie, requerema mobilizao de competncias ticas ao nvel do prprio pensamento. S um pensamentocomplexo, problematizador e hospitaleiro poder gerar conhecimento cientfico pertinente eprudente. Um pensamento hospitaleiro um pensamento sensvel, um pensamento capaz

    de acolher a incerteza no seio da prpria coerncia sistmica, assegurando assim a perma-nente abertura do sistema, a sua vitalidade. Derrida (1997) designa terceiro lugar esse

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    1. tica, moral e deontologia

    lugar do pensamento onde o sistema no se fecha, recusando-se a reprimir as foras dedeslocamento que o interpelam e o tornam possvel.

    este, pois, o tipo de pensamento que convm racionalidade prtica, um pensamentocomplexo, produtor de terceiros lugares, entendidos como lugares de desconstruo cria-

    tiva. Em termos de sabedoria prudencial, preciso aprender a calcular por referncia ao in-calculvel e a decidir por referncia ao indecidvel.

    Tomando a alteridade humana como referncia primeira dessa complexidade, imprevisibili-dade e indecidibilidade, o pensamento tico um pensamento utpico justamente na me-dida em que se institui como um pensamento historicamente enraizado e comprometido. Omundo desejado um mundo possvel, implicando como tal a participao livre e respons-vel das pessoas, de todos e de cada um.

    Tendo estes aspectos em considerao e visando fundamentar o estatuto tico-deontolgicoda avaliao do desempenho docente, entre os vectores de racionalidade que fecundam a

    teorizao tica contempornea, acentuam-se os seguintes:

    Reabilitao da mensagem humanista num quadro de humanismo relacional su-cbordinado a valores de alteridade, superando os limites gerados pelas chamadasfilosofias do sujeito e, simultaneamente, as fragilidades resultantes do estilhaa-mento do cogitocartesiano;

    Opo por modelos de racionalidade dialgica, sensvel e hospitaleira, sustentadoscna articulao dinmica entre universalidade normativa e o universal que brilha naunicidade de cada rosto humano;

    Recusa do pensamento dicotmico e de sistemas explicativos doutrinrios e uni-ctrios, ancorados em ideais supra-sensveis ou no primado das estruturas e dos

    sistemas;

    Compromisso, individual e colectivo, com a procura do bem comum, segundo lgi-ccas de construo de sentido democrticas e amplamente partilhadas;

    Emergncia dos valores relao e comunicao num quadro de aco prota-cgonizada pelas prprias pessoas, reconhecidas na plenitude das suas capacidadessubjectivas e cvicas.

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    II. TICA E DEONTOLOGIA PROFISSIONALDOCENTE

    1. A educao como bem comum

    Enquadradas pelos ideais de desenvolvimento humano consagrados naDeclarao Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), as ticas e as deonto-

    logias profissionais desenvolvem-se por referncia a um bem comum especficoe em funo do qual so assumidos padres de desempenho qualificantes edistintivos. No caso dos professores, considera-se que esse bem a educao,tal como para os magistrados a justia ou para os mdicos a sade.

    Mas bastar formular a questo nestes termos? De que educao se est exac-tamente a falar? Considerando os desgnios de humanidade que presidem utopia de uma sociedade educativa, no estaremos perante um bem comumde referncia global?

    As sociedades democrticas do sculo XXI elegem a educao como prioridade

    civilizacional e num sentido que transcende largamente a esfera de responsabi-lidade dos sistemas escolares e dos professores, conforme surge evidenciadono Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre Educao para osculo XXI (Delors, 1996). Reconhecendo que nada pode substituir os sistemasformais de educao e apostando na revalorizao do estatuto social da profis-so docente, o relatrio apela construo progressiva de uma sociedade ondetodas as pessoas, sem excepo, possam encontrar oportunidades de forma-o que ajudem a potenciar as suas condies de realizao e socializao, naescola e fora da escola. Um desgnio desta dimenso e desta natureza implicauma mobilizao alargada e concertada de diferentes saberes e de diferentesautoridades profissionais e sociais.

    Valorizada como bem comum de referncia global como o grande tesouroda Humanidade , a educao passa a ser perspectivada em toda a sua am-plitude socio-antropolgica. De certa maneira, a prpria noo de aprendiza-gem que emerge como valor de tica social e educacional, colocando em evi-dncia uma concepo lata de educao assente nos seguintes pressupostosfundamentais:

    A educao corresponde a uma interveno intencional nos processoscde realizao humana, constituindo um campo de antropologia prticade importncia vital na autonomizao subjectiva e cvica dos sujeitos;

    A educao constitui um direito humano fundamental, devendo tornar-c-se acessvel a todas as pessoas e ao longo de toda a sua vida, segun-

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    2. tica e deontologia profissional docente

    do lgicas diferenciadas de promoo de aprendizagem formais, no formais einformais;

    A educao constitui um direito humano potenciador do acesso a outros direitos,cfuncionando como um elemento propulsor do desenvolvimento das pessoas, das

    organizaes e das comunidades.

    Neste contexto, os imperativos de configurao teleolgica da educao escolar passam a re-meter para um plano de compromisso social mais abrangente e comparticipado, investindo osentido de ser escola e de ser professor de novas responsabilidades. Designadamente,espera-se que as escolas reforcem os seus laos de cooperao com as famlias e as co-munidades, multiplicando os acordos e os contratos de partenariado com a pluralidade deactores sociais, instituies, redes e servios.

    Este movimento de insero socio-comunitria da escola representa, na verdade, uma opor-tunidade privilegiada para o reencontro da escola consigo mesma, permitindo evidenciar asua identidade institucional e reforar a sua credibilidade junto dos actores locais (Nvoa,2005). Pela mesma ordem de razes, esse movimento representa tambm, consequente-mente, uma oportunidade de reafirmao e reinveno da docncia, enquanto actividadeprofissional especfica, socialmente relevante e publicamente reconhecida.

    2. tica e prossionalidade docente

    Caracterizado nos seus traos essenciais, em conformidade com os princpios de tica edu-cacional que presidem sociedade educativa, o telos da profissionalidade docente prende--se com uma forma particular de educao a educao escolar.

    Existe um modo de ensinar e de aprender prprio da cultura escolar e que irredutvel aoutras formas de educao e formao ao longo da vida. Enquanto instituio social, a escolaresponde por um sistema pblico de educao, concebido para dar consistncia, durao ecarcter ao projecto educativo da sociedade. A responsabilidade profissional dos professo-res, de cada professor, desenvolve-se por referncia a esse mandato social, cabendo-lhe de-sempenhar funes pedaggicas especificamente vocacionadas para o sucesso escolar dosalunos. Os professores cumprem a sua misso educativa enquanto profissionais de ensino.

    Institucionalmente ligadas entre si e, ao mesmo tempo, enraizadas num determinado con-texto socio-comunitrio, as escolas funcionam como organizaes particulares, reguladaspor pactos ticos mais ou menos explcitos, expressivos de uma identidade, de uma histriae de uma cultura organizacional singular (Costa, 1996). Tratando-se de organizaes centra-das na misso pedaggica, as escolas produzem culturas relacionais especialmente densasdo ponto de vista humano e que acabam por funcionar como currculo oculto, com efeitossignificativos no sucesso das aprendizagens. No h educao neutra, como no h escolasneutras, professores neutros ou aulas neutras (Azevedo, 2003). Subordinadas, elas mesmas,a imperativos de qualidade de desempenho, as organizaes escolares funcionam comounidades sociais reflexivas e aprendentes (Guerra, 2000).

    O esforo de articulao racional da educao enquanto bem comum passa assim forosa-mente pela explicitao dos valores de cada escola, comeando pelas crenas e atitudes

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    2. tica e deontologia profissional docente

    de cada actor. Neste sentido, os processos de avaliao de desocultao, explicitao e

    valorizao do patrimnio axiolgico de cada organizao escolar revelam-se decisivos ao

    nvel da afirmao de princpios de tica educacional partilhados por todos os profissionais

    de educao escolar, professores, inspectores, auxiliares da aco educativa, psiclogos,

    educadores sociais e outros tcnicos chamados a intervir profissionalmente no seio da vidaescolar.

    Porm, partilhando valores comuns, cada um desses grupos profissionais assume uma deon-

    tologia prpria, em conformidade com os saberes e as funes que suportam a sua profis-

    sionalidade a sua autoridade profissional. De notar, por exemplo, que um dos documentos

    de referncia no plano da tica profissional docente subscrito por federaes de sindicatos

    de professores de todo o mundo, inclusive Portugal, a Declarao sobre tica Profissional

    da Internacional da Educao, cuja primeira verso data de 2001, associa os padres de pro-

    fissionalidade docente aos de outros profissionais de apoio educao. Conforme consta

    do texto de apresentao que encabea o referido documento, esta Declarao assume-seoficialmente como

    [...] instrumento que tem como objectivo ajudar os professores e o pessoal de apoio edu-cao a responder s questes de relativas sua conduta profissional e, em simultneo,aos problemas que surgem no relacionamento entre os diferentes parceiros educativos (IE,2004).

    At que ponto ser pertinente postular uma tica profissional comum a todos aqueles que

    colaboram na misso escolar? Quem so ou quem devem ser os profissionais de educao

    escolar? Dentro da educao escolar, existe ou no um espao de autoridade profissional

    prprio da docncia?

    Entramos assim num novo patamar de articulao racional em torno dos bens constitutivos

    da profissionalidade docente. Tendo por referncia o universo da cultura escolar, a profisso

    docente distingue-se pela funo de ensino que lhe atribuda e tendo por base o domnio

    de um saber muito particular a pedagogia. A pedagogia corresponde ao saber profissional

    dos professores, de todos os professores, sustentando a relevncia da docncia enquanto

    elemento estruturante da prpria cultura escolar (Baptista, 2005). Os professores so profis-

    sionais da relao pedaggica, actuando como agentes de condio humana ou agentes de

    alteridade por excelncia.

    A relao pedaggica destina-se a estimular e a orientar o processo de autonomizao dossujeitos a cargo. O que, primeira vista, aproxima a misso docente da misso de outros

    profissionais da relao humana, como os mdicos, os enfermeiros ou os tcnicos de ser-

    vio social, por exemplo. Todos estes profissionais assumem o valor autonomia como

    princpio regulador das suas prticas, visando melhorar os nveis de independncia dos seus

    beneficirios, seja no plano da sade fsica, psicolgica, financeira ou cvica. Contudo, estes

    profissionais actuam em funo de referenciais de autonomia mais ou menos conhecidos.

    O que no acontece na docncia, onde o desafio profissional passa pela promoo de uma

    autonomia totalmente por-vir, o que faz toda a diferena, conforme notou Philippe Meirieu

    (1996). A actividade pedaggica toca o lugar mais essencial e misterioso da humanidade de

    cada ser humano, a sua liberdade de ser outramente. Um poder pedaggico desta naturezacarece de ponderao e regulao.

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    2. tica e deontologia profissional docente

    No seguimento destas preocupaes e tendo em referncia os valores de desenvolvimentohumano priorizados pelas sociedades democrticas do sculo XXI, elegem-se como princ-pios basilares da relao pedaggica os seguintes:

    Crena incondicional na perfectibilidade de todos os educandos, na sua aptidoc

    intrnseca de aperfeioamento ao longo da vida;

    Aposta perseverante na educabilidade, subordinando este desgnio ao primado ti-cco da alteridade, ao respeito do Outro como fim em si mesmo;

    Humildade de compromisso ou pacincia da vontade, aceitando o negativo daceducabilidade e evitando cobrar junto dos educandos direitos sobre o exercciodos deveres profissionais.

    Aceites como postulados da razo pedaggica, estes princpios devem funcionar comoideias reguladoras de uma sabedoria tica extensiva a todas as dimenses do desempenhoprofissional, sem que tal represente a reduo dos desafios pedaggicos dos professores e

    da escola a desafios de natureza estritamente relacional (Trindade, 2009).Advogar a centralidade da relao pedaggica no seio da dinmica escolar significa reco-nhecer o primado da pedagogia enquanto saber prudencial vinculado a valores de alteridadehumana.

    3. Padres de prossionalidade e prossionalismo

    Falar de profissionalidade e de profissionalismo a propsito do desempenho dos profes-sores pressupe o reconhecimento prvio do estatuto profissional da funo docente. EmPortugal, como noutros pases, esse reconhecimento historicamente recente, o que con-tribui para explicar a inexistncia de uma tica profissional sistematizada e explcita quecontemple padres de desempenho deontologicamente definidos.

    A docncia foi durante muito tempo considerada mais como uma misso do que como umaprofisso, com reflexos negativos tanto ao nvel da qualificao docente como da afirmaodos professores enquanto corpo profissional (Nvoa, 2005). A entrada numa profisso re-presenta sempre essa dupla insero, a incorporao num determinado sistema de servio

    pblico e, ao mesmo tempo, o ingresso numa comunidade humana especfica, integrada poroutros companheiros de ofcio. De tal modo que a forma como a profissionalidade exercidaqualifica e distingue tanto a profisso como os profissionais.

    Por sua vez, todas as profisses devem procurar desenvolver a sua profissionalidade comprofissionalismo, isto , com competncia e sentido de rigor. Estruturado por referncia auma profissionalidade particular e distintiva, o dever de profissionalismo comum a todasas actividades profissionais, marcando um desempenho pautado por critrios de qualidadee excelncia.

    No basta visar o bem, importante assegurar a sua concretizao, procurando actuar sem-pre da melhor maneira possvel. Sem sentido de profissionalismo, a profissionalidade corre

    o risco de desqualificao e de obscurecimento. Divorciado do sentido de profissionalidade,o dever de profissionalismo deriva em rigorismo abstracto ou em simples moralismo.

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    2. tica e deontologia profissional docente

    Tendo esta relao de reciprocidade por referncia, quais os padres de profissionalida-de e profissionalismo que balizam ou devem balizar o exerccio da autoridade profissionaldocente?

    Certamente que no ser possvel, nem desejvel, encontrar uma resposta definitiva parauma interrogao deste tipo. No que diz respeito ao desenvolvimento da identidade profissio-nal docente, os processos de reflexo e deciso permanecem, necessariamente, em aberto.O que, por outro lado, no significa que possam ser encarados como processos aleatriose contingentes. A definio teleolgica e deontolgica de padres de desempenho capazesde transcender as condicionantes relativas a cada escola e a cada contexto socioprofissionalao mesmo tempo que lhes confere estrutura, vitalidade e sentido, revela-se essencial emtermos de identidade profissional.

    No seio da prpria profisso convivem mltiplas identidades, ao ponto de podermos dizerque a heterogeneidade representa uma das marcas principais da profissionalidade docente.

    No entanto, respondendo por domnios de docncia diversos, separados por exigncias par-ticulares de carcter cientfico e curricular, os professores partilham a referncia a um saberprofissional comum. A pedagogia corresponde ao conhecimento profissional de refernciados docentes, definindo-se como um saber terico-prtico assente no contributo de dife-rentes saberes disciplinares, mas transcendendo-os. A sua verticalidade epistemolgica irredutvel a todos os saberes que a enquadram cientificamente, que a observam, controlame verificam (Meirieu, 1996).

    Nesse sentido, a reflexo sobre os bens caractersticos da profissionalidade e consequentedefinio de padres de desempenho dever fazer justia a essa heterogeneidade consti-tutiva e distintiva, projectando-a no horizonte do saber pedaggico enquanto saber estrutu-

    rante da identidade profissional. Tal como argumenta Alasdair MacIntyre (2008), s a apostaem padres de excelncia, ancorados nos bens imanentes profissionalidade, permiteassegurar a vitalidade interna da actividade profissional e impulsionar o seu processo demelhoria contnua.

    Recordando a lio aristotlica, por mais incertos e imprevisveis que os cenrios de acose apresentem, importa definir com clareza em que direco se deseja caminhar, determi-nando com rigor os passos subsequentes. Justifica-se, nesse sentido, a existncia de umreferente comum ao nvel de padres de desempenho constitutivos da profissionalidade naacepo defendida por MacIntyre e que, nessa medida, possa servir de base para as dinmi-cas de especificao contnua e criativa dos bens profissionais.

    Sem poder contar com esse referente comum, no possvel falar em verdadeira comuni-dade profissional, nem possvel considerar processos de regulao e de desenvolvimentode autoridade pedaggica qualificantes e credveis.

    Os padres de desempenho definem a essncia da profisso e as tarefas profissionais quedela decorrem, caracterizando a natureza, os saberes e os requisitos da profisso. Podemser considerados, por um lado, como um modelo de referncia que permite (re)orientar aprtica docente num quadro de crescente complexidade e permanente mutao social,em que as escolas e os profissionais de ensino so confrontados com a necessidade deresponderem s exigncias colocadas por essas transformaes e, em muitas situaes,anteverem e gerirem com qualidade e eficcia as respostas necessrias; por outro lado,a definio dos padres de desempenho permite a criao de linhas orientadoras para aconstruo de dispositivos de avaliao que contribuam para o desenvolvimento profissio-

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    nal dos docentes, para a qualificao das prticas educativas e para a melhoria das escolas(CCAP, 2010).

    Conforme se sublinha no documento orientador produzido pelo CCAP, agora citado, esse

    referente nacional deve ser lido em contexto, de modo a que possa ser devidamente apro-priado pelos sujeitos de aco, num quadro de valorizao dos espaos de autonomia profis-sional e das singularidades organizacionais.

    Uma deciso profissional como a que diz respeito adopo de padres comuns de desem-penho no pode representar um mergulho solitrio e imprudente no desconhecido. Semesquecer que a remisso para padres de referncia deontolgica se justifica tambm, eforosamente, por imperativos de resposta s quebras de profissionalidade e profissiona-lismo que afectam a dignidade da funo docente. O comportamento inadequado de umprofissional, devendo ser imputado ao seu agente, repercute-se sempre na imagem de todaa comunidade profissional. Certamente que o processo de afirmao profissional no re-

    dutvel forma como cada docente personifica os padres comuns, mas o modo como cadaprofissional estima e assume os valores profissionais reflecte-se nesse processo.

    Equacionado nesta perspectiva, o esforo de padronizao de comportamentos profissio-nais transcende as lgicas administrativas e burocratizantes, inscrevendo-se num quadrode articulao racional amplamente partilhado, eticamente exigente e que, antes de mais,obriga a reflectir sobre o patrimnio comum. Com efeito, a aposta em padres de excelnciapressupe a valorizao do capital de conhecimento j existente e que, corporizando a me-mria social dos professores (Bento, 1978), alimenta a sua inteligncia histrica (Meirieu,1996), potenciando processos lcidos de reflexo e deciso. A experincia profissional sse converte em verdadeira sabedoria quando partilhada, sistematizada e reflectida.

    apreciando as nossas aces que nos apreciamos a ns mesmos como seu autor (Ricoeur,1990, traduo da autora).

    O processo de especificao deontolgica refora a definio de padres de desempenho,contribui para o desenvolvimento de espaos de autoria profissional e para a consistnciados laos de coeso identitria, sem que tal represente um acto de corporativismo ou denarcisismo profissional. A reflexo sobre a docncia remete para uma actividade de enormerelevncia pblica. Nessa medida, ela comea, mas no acaba, no contexto de discussoentre pares, devendo prolongar-se no dilogo com outros actores sociais, no mbito de din-micas organizacionais e comunitrias de alteridade que, no s no pem em causa, comopotenciam os processos identitrios de consolidao da profissionalidade.

    4. Deontologia e regulao prossional

    No seguimento do que foi sustentado na primeira parte, considera-se que a referncia apadres de profissionalidade e profissionalismo no pode permanecer no plano optativo, elacarece de passagem ao plano da regulao deontolgica.

    Em Portugal, apesar do que vem sendo produzido no mbito da investigao e do debate so-cioprofissional, bem como do que se encontra expresso nas diferentes verses do chamado

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    2. tica e deontologia profissional docente

    Estatuto da Carreira Docente1e noutros documentos mais amplos, como a Declarao so-

    bre tica Profissional da Internacional da Educao (EI, 2004), os processos de reflexo em

    curso no permitem ainda validar uma deontologia profissional clara e consistente. Recorde-

    -se que o primeiro estatuto profissional pblico dos professores portugueses, denominado

    Estatuto da Carreira dos Educadores de Infncia e dos Professores dos Ensinos Bsicoe Secundrio e publicado j no final do sculo XX, contemplava um conjunto de deveres

    deontolgicos, equacionados em articulao com os direitos e no quadro poltico-adminis-

    trativo respeitante aos regimes de relao dos docentes com o Estado enquanto entidade

    empregadora. Visando consagrar normas de conduta profissional reiteradas pela prtica e

    coerentes com a profissionalizao dos docentes, este documento representa um marco

    decisivo no processo de definio deontolgica da profisso.

    Todavia, o pensamento tico-deontolgico dos professores portugueses, globalmente carac-

    terizado por uma vinculao estreita ao quotidiano profissional e reconhecidamente apoiado

    em convices de carcter axiolgico, encontra-se ainda muito disperso, desordenado e frag-mentado, carecendo de maior fundamentao, sistematizao e explicitao (Cunha, 1996;

    Estrela e Caetano, 2010). Necessariamente resultante de processos colegiais participados e

    podendo ser feita atravs de declaraes, cartas ou cdigos de conduta, a formalizao de

    uma deontologia permite conferir racionalidade e universalidade aos valores profissionais e

    aos padres de desempenho.

    De acordo com a definio de deontologia assumida, esses factores de universalidade e

    racionalidade so inevitavelmente acompanhados de um certo grau de constrangimento.

    O objecto da deontologia no o de fundar filosoficamente a noo de obrigao, nem de

    compreender em que que o dever um dever, mas sim de inventariar muito concreta-mente as obrigaes que incumbem ao profissional no cumprimento da sua tarefa (Prairat,2005, traduo da autora).

    Quanto maiores forem os nveis de clareza e preciso atingidos no processo de inventaria-

    o dos deveres profissionais, maior eficcia se poder obter nos processos de reflexo-

    -aco, em particular nas situaes de avaliao de desempenho onde a responsabilidade de

    produo de juzos morais assume especial relevncia.

    Conforme foi dito, o trnsito entre os planos teleolgico e deontolgico, com todas as suas

    mediaes interpessoais e institucionais, revela-se fundamental para garantir a materializa-

    o do poder instituinte da tica, para que a liberdade engrene efectivamente no real e otransforme, conforme lembrou Lvinas, justamente o filsofo do face a face. Porque, com

    efeito, em nome desse sentido de responsabilidade essencial, desperto na relao de pro-

    ximidade humana, que se torna necessrio criar leis morais e mecanismos reguladores.

    A liberdade grava-se nas tbuas onde se inscrevem as leis, existe pela incrustao de umaexistncia institucional. A liberdade est ligada a um texto escrito, destrutvel, por certo,mas durvel, em que fora do homem se conserva a liberdade para o homem (Lvinas,1992, traduo da autora).

    1 Decreto-Lei n. 139-A/90, de 28 de Abril, alterado pelos Decretos-Lei n.os 105/97, de 29 de Abril, 1/98,

    de 2 de Janeiro, 35/2003, de 17 de Fevereiro, 121/2005, de 26 de Julho, 229/2005, de 29 de Dezembro,224/2006, de 13 de Novembro, 15/2007, de 19 de Janeiro, 35/2007, de 15 de Fevereiro, 270/2009, de 30de Setembro, e 75/2010, de 23 de Junho.

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    2. tica e deontologia profissional docente

    Ao assegurar a concretizao dos ideais de servio que configuram a profissionalidade do-cente, a inscrio normativa funciona como condio de desenvolvimento desses mesmosideais.

    Importa, contudo, recordar que o sentido de limites formais associado s leis morais nose confunde com o sentido de formalizao que sustenta as leis jurdicas, dependentes daesfera do direito. Neste caso, a lgica da adeso livre e racional prevalece sobre a lgica dacoero. Certamente que, tomadas em sentido imperativo e categrico, as leis profissionaiscomportam efeitos de universalidade e constrangimento, tal como as leis jurdicas. Todavia,indexados esfera da tica e no esfera do direito, os esquemas de regulao deontol-gica reenviam para um determinado universo identitrio. Traduzindo deveres de profissio-nalidade de identidade profissional , as obrigaes deontolgicas reportam-se apenas comunidade profissional a que dizem respeito, neste caso comunidade docente. Como tal,o cumprimento das regras deontolgicas no passvel de jurisdio pblica. A interdiomoral assume neste contexto uma funo essencialmente formativa, decorrente de um sen-

    tido de responsabilidade retrospectiva mas tambm, ou sobretudo, de uma responsabilidadeprospectiva.

    5. Excelncia tica e sabedoria pedaggica

    A deontologia funciona como uma elemento estruturante do conhecimento prtico dos pro-fessores, o que desde logo implica considerar as modalidades de trnsito entre os planosoptativo e imperativo, conforme foi j evidenciado. Estando em causa realidades educacio-

    nais complexas e de natureza eminentemente relacional, no indiferente saber se se optapor uma lgica de aplicao, segundo o modelo meio-fim que caracteriza a racionalidadeinstrumental ou se, pelo contrrio, se privilegiam procedimentos de racionalidade prtica.

    Abordada em sentido aristotlico, a excelncia corresponde qualidade de carcter que,conciliando temperana e coragem, permite encontrar a justa medida, o meio-termo ouponto de equilbrio entre o excesso e a falta. aqui precisamente que o chamado sensopedaggico surge em evidncia.

    Na verdade, a prpria pedagogia que pode ser considerada como sabedoria da passa-gem ou arte da relao, conforme nota Michel Serres (1993):

    O jogo da pedagogia nunca se efectua a dois, viajante e destino, mas a trs. O terceiro lugarintervm a tanto como o limiar da passagem. Ora, nem o iniciado, nem o iniciador, sabemmuitas vezes qual o lugar ou o uso dessa porta. Um dia, em qualquer momento, cada umdeles passa pelo meio desse rio lmpido, numa situao estranha de mudana de fase, quese pode chamar sensibilidade, palavra que significa a possibilidade ou a capacidade emtodos os sentidos.

    As virtudes de sabedoria pedaggica prendem-se com essa espcie de sensibilidade queobriga a procurar o terceiro lugar ou o ponto de equilbrio entre o dever de influncia e orespeito pela autonomizao do Outro. Sendo relao de influncia, a relao pedaggicano pode derivar em submisso. Sendo relao de ensino, a relao pedaggica no pode

    resultar em endoutrinamento. O aluno no uma obra ou um produto. O aluno outrapessoa, ou seja, outra liberdade.

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    2. tica e deontologia profissional docente

    A pedagogia uma disciplina normativa, mas uma disciplina que se define tambm por ser

    abertura e projecto (Meirieu, 1996), inscrevendo-se, como tal, no seio dos saberes com-

    plexos e hospitaleiros privilegiados pela nossa contemporaneidade. S um conhecimento

    desse tipo poder servir de suporte racionalizao de uma prtica to complexa e, em boa

    medida, paradoxal como a prtica educativa.

    Quanto mais consistente, qualificada e bem-sucedida for a presena do educador, mais de-

    pressa ela se torna desnecessria. medida que vai emergindo a desejada autonomia do

    Outro, a presena do professor vai desaparecendo.

    O docente ilumina o objectivo e pe-se detrs, apoiando o educando que se move por sie se dirige quilo que o atrai, quilo de que gosta. Assim, o educador vai desaparecendo medida que a realidade vai emergindo. E os alunos, como principais reais, avanam com oentusiasmo e a dignidade de quem se determinou e escolheu (Cunha, 1996).

    A excelncia do desempenho docente reside na aptido para a gesto prudente dessa mis-teriosa relao entre autonomia e heteronomia vivida na relao pedaggica ou relao de

    ensino. O Outro desta heteronomia outra pessoa e no uma entidade abstracta ou uma

    inclinao sensvel, o que faz toda a diferena.

    Tendo na relao entre educador e educando o seu lugar privilegiado, a experincia de rela-

    o com a alteridade humana est presente em todos os planos do desempenho docente,

    desde aqueles que dizem directamente respeito aos processos de ensino e aprendizagem,

    at aos que se referem relao entre pares, participao na escola ou relao com a

    comunidade.

    6. Capacidades e disposies do educador/professor

    Os professores partilham das capacidades e disposies que estruturam o carcter moral do

    sujeito em geral. Todavia, num contexto de docncia e pelas razes anteriormente aponta-

    das, essas capacidades e disposies adquirem uma dimenso tica reforada.

    Os professores so agentes privilegiados da condio humana o que, desde logo, implica

    que sejam chamados a dar testemunho pessoal sobre as virtudes que ensinam. Mais umavez ao contrrio do que acontece com outras profisses igualmente vocacionadas para a

    relao humana, como a profisso dos mdicos, por exemplo, no caso dos professores no

    s no desejvel, como no possvel reduzir a profissionalidade a um desempenho me-

    ramente tcnico.

    O doente espera do mdico que ele faa o diagnstico correcto, que administre a terapiacientificamente mais adequada e tudo isso, certo, no mbito de uma relao respeitosada vida e dos valores do doente. Mas no se pede ao mdico necessariamente que sejaum exemplo de sade, nem mesmo um exemplo de hbitos de manuteno da sade e dapreveno da doena. Se, por exemplo, o mdico fuma, no faz exerccio, abusa dos doces,gorduras e salgados, talvez se possa dizer que faz uma asneira e que dentro em pouco, eleprprio precisar de mdico, mas ningum o acusar de quebrar a deontologia por essefacto (Cunha, 1996).

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    2. tica e deontologia profissional docente

    Neste entendimento, o professor deve ensinar a verdade, a dignidade e o bem, mas devetambm, pela sua prtica e exemplo, dar testemunho de verdade, de dignidade e de bem.

    Quais so ento as capacidades e as disposies de carcter que permitem evidenciar aexcelncia do desempenho docente? Reconhecendo que o desempenho dos docentes

    indissocivel da qualidade da sua prpria postura tica, onde comea e acaba a sua dvidaprofissional? Em que medida possvel e desejvel desenhar linhas de fronteira exactasentre a esfera pessoal e a esfera profissional? At que ponto legtimo pedir ao professorque personifique as qualidades que ensina?

    Associadas a dilemas prticos de enorme complexidade, estas interrogaes atravessamtoda a vida profissional docente, gerando inquietude reflexiva e apelando a aptides de pon-derao prudente e equilibrada. Mas justamente no plano das relaes pedaggicas con-cretas e face a situaes que exigem respostas difceis que as virtudes de carcter ganhamsentido.

    Em coerncia com o alinhamento terico que vem sendo explicitado, as capacidades e asdisposies ticas dos professores podem ser sistematizadas a partir de trs qualidadesfundamentais: sensibilidade relacional, sentido de justia e integridade pessoal. O ponto deancoragem e de ligao entre estas qualidades reside na experincia de afeco intersub-jectiva vivida, de modo privilegiado, no plano da relao pedaggica, notando que estamosaqui perante um tipo de afeco radicalmente distinto daquele que nos apresentado nocontexto da filosofia aristotlica. Ao separar as disposies das afeces, Aristteles referia--se a sentimentos como raiva, repulsa, medo, cime, inveja, ternura, confiana ou benque-rena, reportando-se assim a uma afeco de carcter emocional.

    Conceptualizada num quadro de humanismo relacional contemporneo, a noo de afeco

    intersubjectiva assume um sentido eminentemente moral. Emmanuel Lvinas (1992; 1994)constitui uma referncia paradigmtica a este respeito, situando a origem da racionalidade eda moralidade no encontro rosto a rosto onde, no seu entender, tem lugar uma experinciade afeco absolutamente excepcional. Atestando a presena de um outro mundo interior,habitado por outras memrias, outros pensamentos e outros desejos, o rosto humano pos-sui significao por si mesmo. O rosto fala, o rosto contesta, o rosto liberdade. E comotestemunho de liberdade, o rosto interpela e apela ao mesmo tempo, tocando a conscinciaa um nvel fundamental. Assim separada de qualquer comoo circunstancial, a lei do ros-to funciona como um imperativo categrico de tipo kantiano, convocando o sujeito para asexigncias de comparabilidade, de equidade e de justia.

    Revelado no rosto, o Outro, o aluno, o colega, o encarregado de educao ou o responsvelinstitucional algum que conta connosco. Ao mesmo tempo, essa interpelao e essainjuno moral funcionam como um convite irrecusvel para o auto-questionamento, des-pertando o sentido de integridade pessoal. No h capacidades ou qualidades morais queresistam perda de sentido de integridade que se perde quando se abdica da capacidadede sujeitar os seus prprios actos ao exame crtico prprio da conscincia moral (Arendt,2007).

    Admitir que a postura humana do professor produz diferena pedaggica, significa admitirque as componentes de tica e moral constituem parte integrante do conhecimento profis-sional dos professores. Independentemente do modo como as qualidades de carcter se

    revelam na esfera da vida pessoal, onde a jurisdio deontolgica no pode produzir efeitos,os professores so profissionalmente chamados a dar testemunho sobre as qualidades ti-

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    2. tica e deontologia profissional docente

    cas e cvicas que ensinam. Justifica-se, assim, a pertinncia de insero de componentestico-deontolgicas na formao profissional dos professores.

    Do ponto de vista profissional, os professores so protagonistas conscientes e preparadospara desenvolver uma aco marcada pela afeco intersubjectiva, o que o mesmo dizer,

    pela relao de compromisso com a alteridade, pelo sentido de justia e pelo dever deintegridade.

    7. Paradigmas de referncia

    Os modelos tericos que servem de referncia s ticas profissionais docentes inscrevem--se nas tendncias paradigmticas que, de um modo geral, marcam o pensamento tico

    contemporneo.Em consonncia com o que foi afirmado, as obrigaes deontolgicas dizem respeito a pa-pis e a comportamentos estritamente profissionais. Mas esses papis e comportamentosespecficos, indexados a universos teleolgicos prprios, no so dissociveis dos princpiosuniversais que regulam a moral social. Essa relao de compatibilidade entre bens profissio-nais e bens sociais comuns o que, por outro lado, permite tambm assegurar a harmoniadas diferentes deontologias entre si (Canto-Sperber e Ogien, 2004).

    Em Portugal e pelas razes que explicam o reconhecimento tardio do estatuto profissionalda docncia, as referncias principais tendem a oscilar entre o paradigma deontolgico dodireito, de cunho reivindicativo e prximo das ticas da justia e o paradigma deontolgico

    defendido pelas ticas da responsabilidade e mais centrado nos deveres para com os desti-natrios da actividade profissional, conforme sugerido por Pedro D Orey da Cunha (1996).Num primeiro caso prevalecer a autoridade da administrao, enquanto no paradigma daresponsabilidade a definio de deveres resultar de processos de regulao interiores profisso.

    Este quadro de anlise tem vindo, no entanto, a ser posto em causa em favor de concepesmais amplas e integradas. Enunciados em termos genricos, os paradigmas contempor-neos convidam a superar as tradicionais lgicas de dicotomizao, como vimos. Justificadasno mbito de uma racionalidade aberta, sensvel, hospitaleira e dialgica, as ticas da proxi-midade ou ticas da alteridade, de inspirao levinasiana, bem como as ticas do cuidado,

    apoiadas num olhar feminino (Moliner, Laugier e Paperman, 2009), situam-se nessa ordemde preocupaes.

    Tendo presente o que foi dito sobre a especificidade especulativa da racionalidade prtica,sobressai ainda neste contexto a tendncia para valorizar a tica profissional docente comotica aplicada. Ao contrrio do que a expresso possa sugerir, as ticas aplicadas partem deum conceito de aplicao que transcende a tradicional diviso entre campo emprico e cam-po terico, postulando esquemas conceptuais e metodolgicos sustentados no pensamentoreflexivo dos actores e na anlise de problemas e dilemas emergentes do quotidiano pro-fissional. No fundamental, as ticas aplicadas pretendem enquadrar um duplo movimento,ligado, por um lado, aos processos indutivos que se configuram a partir dos valores surgidos

    nas diferentes actividades e, por outro, aos processos dedutivos relativos aplicao contex-tualizada dos princpios e valores comuns a uma sociedade democrtica (Cortina, 1993).

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    2. tica e deontologia profissional docente

    Na verdade, mais do que a preferncia por um ou outro modelo, sobretudo o valor de convi-vialidade paradigmtica que surge actualmente em evidncia. As correntes tericas no somutuamente exclusivas. Ainda que por vezes paream opor-se, na prtica elas acabam porconfluir harmonicamente. Pode recorrer-se a valores privilegiados num certo sistema tico e,

    ao mesmo tempo, adoptar procedimentos de deciso prprios de outro quadro conceptual.Sublinha-se assim, e uma vez mais, o carcter intrinsecamente reflexivo da profissionalidadedocente, justificando no mesmo sentido a impossibilidade de entregar as decises de ticaprofissional a entidades ou a organismos supra-individuais. O contributo dos especialistas oudos consultores de tica importante mas no substitui a responsabilidade dos actores, oseu poder e o seu dever de dilogo reflexivo com as singularidades humanas e contextuais.

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    1. Avaliao de desempenho e thosprossional

    As preocupaes de tica e de moralidade esto presentes em todas as esferasexistenciais, qualificando a vida digna desse nome, a vida examinada e socializa-

    da. Enquanto expresso da disposio humana para o aperfeioamento contnuoe para a realizao solidria, estas preocupaes ganham especial pertinnciaquando no centro desse exame crtico est uma actividade profissional como adocncia.

    Neste entendimento, todas as anlises precedentes convergem para esta ter-ceira parte, permitindo evidenciar o estatuto tico-deontolgico da avaliao dedesempenho num quadro de reflexividade docente subordinado a imperativosde profissionalidade e de racionalidade pedaggica.

    Contudo, importa ter em conta que afirmar o carcter profissional da avaliaodo desempenho docente no o mesmo que considerar que essa qualidadedepende apenas das competncias profissionais dos professores.

    O thosprofissional dos professores indissocivel da configurao teleolgi-ca que marca a cultura escolar nas sociedades educativas, justificando visesamplas e integradas de educao, de aprendizagem escolar e de desempenho.Os processos de avaliao do desempenho docente so processos complexose multidimensionais que, nessa condio, obrigam a considerar uma pluralidadede exigncias relativas a um ecossistema relacional muito especfico e muitodelicado.

    Desde logo, a qualidade do desempenho profissional est intimamente ligada

    qualidade do desempenho organizacional das escolas, enquanto unidades so-ciais elas mesmas comprometidas com processos de regulao e melhoria, emconsonncia com os valores da sociedade:

    A avaliao no tem em conta, apenas, os valores da actividade que est aser desenvolvida na escola mas d, ainda, voz queles que nem sequer po-dem emitir opinio, por no terem acesso a esses servios sociais, ou porqueacabam por ser prejudicados pela forma como se organiza e se desenvolve aactividade educativa num sentido mais amplo e social (Guerra, 2002).

    Sejam quais forem as finalidades em causa, avaliar eticamente o desempenhodocente significa procurar fazer-lhe justia, ponderando em cada momento os

    fins visados, as normas, as vontades e as singularidades humanas e contextuais.Ponderando tambm, necessariamente, os efeitos perversos gerados por vises

    III. TICA, PROFISSIONALIDADE EAVALIAO DE DESEMPENHO

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    3. tica, profissionalidade e avaliao de desempenho

    restritivas do desempenho e pela procura obsessiva de avaliao (Perrenoud, 2009). Quandoconfigurada por objectivos extrnsecos racionalidade educativa e cumprida a qualquer cus-to, a avaliao corre o risco de derivar em formas de presso e de controlo excessivamenteburocrticas que, ao interferirem nos espaos de liberdade organizacional e profissional,

    comprometem os processos de regulao e melhoria: Avaliao, prestao de contas eresponsabilizao nem sempre constituem pilares integrados ou que se potenciam mutua-mente, e nem sempre decorrem de orientaes e relaes guiadas por uma intencionalida-de democrtica e de empowermentdos cidados (Afonso, 2010).

    Uma avaliao tica do desempenho uma avaliao teleologicamente fundamentada edeontologicamente consequente. No se podem evitar, ignorar ou iludir as dificuldades deanlise inerentes a uma realidade difcil de categorizar e qualificar. Um dos efeitos perver-sos da avaliao refere-se precisamente tentao de considerar apenas desempenhosfacilmente inteligveis, condenando ao obscurecimento o essencial da actividade profissio-nal. Avaliar eticamente o desempenho docente avaliar com sentido de profissionalidade e

    profissionalismo e na conscincia de que nem todo o desempenho pode ser traduzido emperfis numricos de desempenho (Gil, 2009). A interaco produzida na relao interpessoalcontm o segredo da conexo entre aco e histria, como notou Hannah Arendt (1994).No caso dos professores, esse poder interactivo estrutura o desempenho profissional a umnvel essencial, como foi dito. Os professores so pessoas que trabalham com e para outraspessoas, sendo essa interaco o meio e parte significativa do prprio contedo do seu de-sempenho (Formosinho, Machado e Oliveira-Formosinho, 2010).

    Um desempenho deste tipo, desejavelmente interactivo e cooperativo, resiste a ser trans-formado em produto observvel e mensurvel, requerendo esquemas de avaliao educa-cional particulares, propositadamente concebidos para o estudo de realidades interpessoaiscomplexas e dinmicas.

    Tal como acontece com a noo de desempenho docente, a noo de avaliao profissio-nal presta-se a mltiplas interpretaes. De tal modo que a explicitao sobre as matrizesconceptuais e metodolgicas privilegiadas constitui, desde logo, um dos imperativos detica avaliativa. Como alerta Domingos Fernandes (2008), em qualquer modelo de avaliaoencontramos pelo menos duas lgicas que parecem incontornveis. Uma delas, claramenteassociada ao desenvolvimento pessoal e profissional e que remete para uma avaliao denatureza mais contextualizada, contratualizada e formativa; e outra lgica, mais centrada naresponsabilizao pblica e na prestao de contas, remetendo neste caso para uma avalia-

    o mais sumativa e orientada por objectivos de mensurabilidade e quantificao. Visandoassegurar a qualidade tica dos processos avaliativos, interessa determinar com exactidoos fins em referncia e as modalidades de avaliao mais adequadas. No indiferentesaber se esto prioritariamente em causa objectivos de desenvolvimento profissional, deprestao de contas, de gesto de carreiras, de reconhecimento de mrito ou de regulaodo sistema educativo.

    Em suma, estamos perante uma prtica social que tende a reflectir as tenses e os conflitosde natureza ideolgica e axiolgica que atravessam a sociedade em geral e as comunidadeseducativas em particular. No prprio seio da cultura profissional docente convivem mltiplasconcepes pedaggicas e mltiplas convices sobre o que se entende por bom profes-

    sor. Da mesma forma que no existem escolas neutras, aulas neutras ou professores neu-tros, tambm no existem modelos de avaliao de desempenho neutros.

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    3. tica, profissionalidade e avaliao de desempenho

    Neste contexto, a inexistncia de uma deontologia da docncia sistematizada constitui umfactor acrescido de complexidade, explicando muitas das questes em aberto e muitos dosdilemas pessoais e profissionais gerados em situao de avaliao, conforme ser reforadomais adiante.

    Por outro lado, porm, colocando em evidncia as dinmicas de exame crtico sobre a do-cncia, a avaliao de desempenho constitui uma preciosa oportunidade de desocultao ede discusso dos valores profissionais.

    Neste sentido, fundamentamos o estatuto tico-deontolgico da avaliao de desempenhoa partir dos seguintes pressupostos:

    1. A avaliao do desempenho docente representa uma oportunidade privilegiada dereflexo sobre as prticas educativas, de explicitao deontolgica e de estmulo aodesenvolvimento profissional;

    2. A avaliao do desempenho docente responde a objectivos de profissionalidade

    decorrentes da sua responsabilidade pblica, permitindo atestar a qualidade dosprocessos escolares, sustentar os esforos de melhoria e alimentar as dinmicasde reconhecimento social;

    3. A avaliao do desempenho docente corresponde a uma prtica relacional comple-xa, multidimensional e contextualizada, apelando participao motivada e qualifi-cada dos prprios actores;

    4. A avaliao do desempenho docente remete para um referencial teleolgico eprolonga-se sempre para l do acto de avaliar, produzindo consequncias na vidadas pessoas, das instituies e das comunidades;

    5. A avaliao do desempenho docente reflecte a maturidade tica e deontolgica

    da profisso, obrigando a que o acto avaliativo seja vivido pelos professores comsentido de profissionalismo;

    6. A avaliao do desempenho docente remete para prticas profissionais de inte-resse colectivo, implicando autoridades diversas e uma multiplicidade de actores,requerendo a adopo de princpios de tica avaliativa comum.

    Por maior que possa ser o grau de preparao e especializao expectvel neste mbito, aavaliao do desempenho docente nunca pode ser encarada como uma actividade mera-mente tcnica, apoiada em regimes processuais rgidos ou em procedimentos abstractos eimpessoais. Representando um momento de reflexividade tica por excelncia, ela inscreve--se num quadro de racionalidade prudencial, regulado por valores de equidade e justia.

    Quais os valores, as finalidades e os critrios que configuram ou devem configurar a avalia-o do desempenho profissional docente? Quais as suas potencialidades e limites? Em quemedida possvel articular as aspiraes de desenvolvimento profissional e de melhoria deprticas com os imperativos de classificao e de gesto das carreiras profissionais? Qualdeve ser a relao de prioridade entre uma avaliao de desempenho e uma avaliao domrito? Que actores devem ser chamados a participar na avaliao do desempenho docen-te? Em que medida, em que contextos e de que forma os resultados da avaliao de desem-penho podem ser publicitados e utilizados?

    Inserindo-se numa rede de responsabilidades partilhadas e remetendo para a participaoqualificada de diversos actores, estas interrogaes permanecem, no entanto, interiores

    razo docente, desafiando e interpelando a identidade tico-deontolgica da profisso emgeral e de cada professor em particular.

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    3. tica, profissionalidade e avaliao de desempenho

    2. Avaliao de desempenho, equidade e justia

    A justia constitui uma virtude tica por excelncia, remetendo para o lugar institucional, olugar do pacto, do contrato e da mediao, onde o Outro o qualquer um. Dizendo res-

    peito a aces praticadas por referncia s mltiplas figuras de alteridade, a justia requera adopo de procedimentos justos, isto , de procedimentos alinhados com o sentidoorientador dessa justia, aqui valorizado numa lgica de tenso prudencial entre a obedincia lei formal e a obedincia lei do rosto.

    Perspectivada num quadro de equidade e justia, a avaliao do desempenho docente pres-supe o exerccio da comparabilidade, sem que, todavia, deixe de ter-se presente que o ob-jecto dessa avaliao reenvia para realidades humanas nicas e incomparveis. Na verdade, por estar em causa o respeito pelo incomparvel, pela dignidade de cada ser humano epela irredutibilidade da relao pedaggica, que se torna necessrio promover condies decomparabilidade.

    Neste sentido, pode dizer-se que a avaliao de desempenho representa, em si mesma, umprocesso de construo social de justia. A relao entre as noes de avaliao de desem-penho e de justia assenta, com efeito, numa mtua implicao. Para que a avaliao possaajudar a fazer justia preciso que ela se processe de modo justo. Tanto mais que as prticasavaliativas produzem pareceres e juzos de valor significativos e com efeitos a longo prazo,penalizando ou incentivando processos de estima pessoal e institucional.

    A afirmao injusto! recorrente na linguagem comum, aparecendo com frequnciaem situaes humanas relacionalmente densas como as que caracterizam os processosavaliativos. Mas de onde vem exactamente o sentido de justia que serve de base a essaafirmao?

    Plato definia a justia a partir de uma essncia da justia, no pressuposto de que todas ascoisas encontram o seu arqutipo no mundo das ideias. Contudo, o pensamento contempo-rneo tende a rejeitar definies de tipo essencialista, favorecendo esquemas de racionali-dade comunicacional e dialgica, desenvolvidos em contextos de proximidade contextual erelacional. Assim, em vez de uma definio ideal e absoluta de justia, opta-se por uma no-o de justia ponderada maneira aristotlica, ou seja, ponderada por referncia ao meio--termo.

    Se, por um lado, a justia implica distanciamento crtico, de modo a evitar as distores dediscernimento geradas pela afeco contextual e emocional, por outro, ela carece de inteli-

    gncia intersubjectiva. O prprio Aristteles admitia que, embora a amizade constitua umavirtude das relaes imediatas, separando-se como tal da justia, ela no deixa de a servir:Se entre amigos no necessria a justia, entre os justos necessria a amizade (ticaa Nicmaco, Livro VIII 1155a1). A mais poderosa e completa das excelncias, segundo aviso aristotlica, s atinge o seu poder efectivo e a sua completude na relao com outreme em comunidade, revelando-se como tal na forma de equidade.

    Aceitando estes pressupostos, como determinar esse ponto de equilbrio entre o singular eo universal ou entre proximidade e justia? Em que medida possvel conciliar o plano hori-zontal das relaes interpessoais com o plano vertical da aplicao normativa? O que quenos permite dizer que estamos perante uma avaliao justa? Em que situaes de avaliao

    do desempenho docente pode o termo justo funcionar como sinnimo de correcto, le-gal, imparcial ou equitativo?

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    3. tica, profissionalidade e avaliao de desempenho

    Somos assim, e mais uma vez, confrontados com questes que reenviam para o plano da

    sabedoria prtica, convocando a trplice estrutura da tica j explicitada e evidenciada de

    modo muito especial por Paul Ricoeur. Parafraseando este autor, pode dizer-se que, em

    situaes de avaliao do desempenho docente, ser justo equivale simultaneamente a ser

    bom, legal e equitativo. No plano teleolgico da aspirao a viver bem ser justo correspondeao ser bom, no plano deontolgico da obrigao ser justo identifica-se com o ser legal e no

    plano da sabedoria prtica ser justo equivale a ser equitativo. Ser equitativo a figura que

    reveste a ideia de justia nas situaes de incerteza e de conflito ou, para dizer tudo, sob o

    regime vulgar ou extraordinrio da aco (Paul Ricoeur, 1995, traduo da autora).

    Abordada neste alinhamento terico, a noo de equidade assume uma importncia central

    numa perspectiva de avaliao justa, o que o mesmo dizer, de uma avaliao fundamenta-

    da, contextualizada e centrada no poder decisional dos actores. Enquanto virtude de sabedo-

    ria prtica, a equidade representa a qualidade da justia que impede que os princpios que

    norteiam a avaliao sejam pervertidos ou distorcidos, seja por defeito, seja por excesso.A justia como equidade inscreve-se numa concepo construtivista da justia (Rawls, 1997)

    que se revela consonante com os imperativos de racionalidade pedaggica, mas tal no

    significa que se possa reduzir a avaliao da docncia a uma dimenso meramente proces-

    sual, segundo lgicas de justia distributiva. Neste caso, no possvel associar a noo de

    equitativo ideia de um bolo partido em partes iguais. Indexada a uma antropologia do agir

    sintonizada com os princpios de humanismo relacional valorizados pelas sociedades demo-

    crticas contemporneas, a concepo ricoeuriana de justia que temos tido em referncia

    serve melhor as exigncias de enquadramento das realidades educacionais.

    Vivida como permanente procura de equidade, a justia visa o ponto de equilbrio entre justoe no justo. Ora, esse ponto de equilbrio nunca est definido partida, resultando do mo-

    vimento pendular entre universal e singular assegurado em cada situao e tendo por base

    a aptido decisional dos sujeitos. Ela est no meio e definida relativamente a ns pelo

    sentido orientador, princpio segundo o qual o sensato tambm a definir para si prprio

    (Aristteles, tica a Nicmaco Livro VI 1107a1).

    Nesta medida, a equidade representa uma virtude pedaggica por excelncia, coroando a

    arte da ponderao justa ou sabedoria da passagem. E como tal, como procura incessante

    de equidade, que a justia se revela indissocivel do desejo de justia, enunciando-se no

    plano ideal e optativo antes de adquirir forma imperativa e legal.

    Uma avaliao justa do desempenho docente aquela que, apoiada em princpios educacio-

    nais e em padres de desempenho profissional claros e bem definidos, adopta e leva at ao

    fim procedimentos de comparabilidade e equidade, sujeitando-os prova da sua realizao

    prtica, onde se impe a exigncia de discernimento prudencial.

    A literatura cientfica fornece orientaes relevantes a este propsito, permitindo sustentar

    procedimentos adequados a uma avaliao justa e que, no essencial, obedecem aos seguin-

    tes princpios:

    Rigor na explicitao necessria sobre o enquadramento normativo e sobre prin-c

    cpios, objectivos, critrios, opes metodolgicas, resultados esperados e suautilizao;

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    3. tica, profissionalidade e avaliao de desempenho

    Esclarecimento prvio sobre o papel de cada actor e respectivo estatuto de partici-cpao, comeando pelos sujeitos directamente envolvidos na relao de avaliao,os avaliadores e os avaliados;

    Diversificao de estratgias ao nvel da observao e da recolha de informao,c

    adoptando uma viso ampla e complexa de evidncia, capaz de traduzir o carcterespecfico, multidimensional e interactivo do desempenho docente;

    Transparncia na apresentao e na utilizao da informao recolhida, em coern-ccia com o que foi assumido e explicitado e tendo por base esquemas de inteligibi-lidade prprios do conhecimento prtico.

    A adopo de procedimentos adequados ou justos permite regular as prticas de avaliao,evitando distores geradas no plano da proximidade relacional, como foi sublinhado. Maslembrando, igualmente, que nenhum procedimento vlido em si mesmo:

    Formular juzos acerca do valor e do mrito de um dado ente tem que resultar de um com-

    plexo, difcil, rigoroso e diversificado processo de recolha de informao e no de merasopinies impressionistas, convices ou percepes que podero ser necessrias e atbem vindas, mas que, em si mesmas, sero sempre insuficientes (Fernandes, 2010).

    Produz-se injustia na avaliao de desempenho quando se perde a referncia ao telospro-fissional, esquecendo o que est realmente a ser avaliado; quando se desrespeitam os crit-rios e os procedimentos acordados; quando se procede a uma aplicao descontextualizadae mecnica das normas; quando, por excesso de zelo formal, se ignora a lei do rosto; quan-do se fica refm de afeces emocionais ou de preconceitos; quando se formulam juzosde valor sem qualquer fundamento de facto; quando se negligencia a utilizao e publicaode resultados, violando princpios de discrio e de solidariedade institucional e profissional.

    Em suma, produz-se injustia na avaliao de desempenho quando se ignora a exigncia detriangulao tica necessria produo de equidade.

    Por outro lado, o sentido de justia indissocivel da conscincia da injustia, o que o mes-mo dizer da necessidade de prevenir e reparar os danos causados por essa injustia. Aconscincia de solidariedade humana, gerada no plano da afeco intersubjectiva, produzum sentido de proximidade tica irredutvel proximidade fsica ou emocional, precisamenteo tipo de proximidade que interessa justia enquanto permanente procura de justia, ouseja, enquanto compromisso perseverante com as condies que tornam possvel a justia.Nesta lgica de compromisso, uma avaliao de desempenho que possa ser consideradajusta pressupe, desde logo, que os prprios sujeitos dessa avaliao se disponham a agirjustamente, ponderando os bens profissionais em referncia num quadro de legalidade e deequidade.

    A disposio justa implica simultaneamente a observncia da lei e o respeito pela igualdadenum quadro de aco orientada para outrem. a que a justia se constitui como a maiscompleta das excelncias, ajudando a revelar o carcter de quem a detm (Aristteles,tica a Nicmaco Livro V 1129b1).

    Prolongando a afirmao aristotlica, pode dizer-se que a justia representa a mais poderosadas excelncias profissionais, funcionando como uma qualidade de carcter que, ao mesmotempo que produz efeitos relevantes nos diferentes nveis de deciso e de ponderao,

    potencia o desenvolvimento pessoal daquele que a detm, neste caso dos sujeitos de ava-