brt transoeste: conflitos urbanos e contradições · os casos das olimpíadas em beijing (2008) e...
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Revista Direito e Práxis
E-ISSN: 2179-8966
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Brasil
Mendes, Alexandre F.; Legroux, Jean
BRT Transoeste: conflitos urbanos e contradições espaciais na “cidade atrativa”
Revista Direito e Práxis, vol. 7, núm. 4, 2016, pp. 13-42
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350950139002
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RiodeJaneiro,Vol.07,N.4,2016,p.13-42.AlexandreF.Mendes,JeanLegrouxDOI:10.12957/dep.2016.25653|ISSN:2179-8966
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BRT Transoeste: conflitos urbanos e contradiçõesespaciaisna“cidadeatrativa”1BRT Transoeste: urban conflicts and space contradictions within theattractivecityAlexandreF.Mendes
FaculdadedeDireitodaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Brasil.E-mail:[email protected]
LAET (Laboratoire Aménagement, Économie, Transport) na ENTPE/Université deLyon 2, Lyon, França. IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano eRegional)naUFRJ-UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Brasil.E-mail:[email protected].
Artigorecebidoem19/09/2016eaceitoem28/10/2016.1OpresenteartigoéumatraduçãoparaoportuguêsdaversãooriginalmentepublicadanarevistaProblèmesd’AmériqueLatine(ISSN/0765-1333).
RiodeJaneiro,Vol.07,N.4,2016,p.13-42.AlexandreF.Mendes,JeanLegrouxDOI:10.12957/dep.2016.25653|ISSN:2179-8966
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Resumo
OBRT (Bus Rapid Transit) Transoeste,modal que interliga a Barra da Tijuca e a
Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, foi apresentado, em sua inauguração,
comoumdosprincipais legadosolímpicoseda“revoluçãodotransporte”paraa
população carioca – e como o fruto da ação conjunta dos diferentes níveis de
governobrasileiros.Esteartigobuscaproblematizaroprojeto,nãosóatravésdas
contradições observadas a partir do funcionamento do sistema - superlotação,
sobrecargadosistema,máqualidadedaobra,acidentesnaprestaçãodoserviço
etc.-,mastambémpelosimpactosocial-espaciaisprovocadosnomomentodesua
implantação, ocasionados pela remoção forçada de centenas de moradores de
favelas.
Palavras-chave:megaeventos;transporteurbano;habitação;lutasurbanas.
Abstract
The“BRTTransoeste”,aBusRapidTransitmodalsystemlinkingBarradaTijucato
theWestSideofRiodeJaneiro’scity,waspresented,init’sopening,asoneofthe
majors Olympic legacies and as a “transport revolution”, resulting of the joint
actionofdifferentlevelsofBrazilianGovernment.Thisarticleaimstodiscussthis
project.Forthat, itanalysesthedailyconstraintsobservedovertheoperationof
the BRT system - overcrowding, overloading, low quality works, episodes of
preventable accidents – and the social-spatial impacts of it’s implementation,
causedbytheforcedremovalofhundredsofslum’sresidents.
Keywords:megaevents;urbantransport;housing;urbanstruggles.
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Introdução
A estratégia de construção da cidade atrativa no Rio de Janeiro é baseada,
principalmente, na acolhida de megaeventos, que permitem realizar grandes
investimentos em termos de projetos e de infraestruturas urbanas. Além disso,
adquirir o estatuto de “cidade olímpica” transformou-se numa vantagem
disputada pelas cidades na busca de uma melhor inserção na competição
internacionaldascidades,especialmentedesdeo“sucesso”domodelourbanode
Barcelona, ligado à organização das Olimpíadas de 1992. A cidade do Rio de
Janeiro que contratou consultorias catalães, desde os anos 1990, venceu
finalmenteascandidaturasdacopadoMundo2014edasOlimpíadas20162.
Este tipodeestrategianeoliberal de construção, transformaçãoe gestão
do espaço urbano é conjunta ao desenvolvimento domarketing urbano externo
(dirigido ao exterior, turistas, investidores, etc.) e interno (dirigido à população
local). A retórica dos poderes públicos, para justificar a organização de
megaeventos e as transformações do espaço urbano que necessitam, baseia-se
tradicionalmente nos benefícios em termos econômicos e de infraestruturas
urbanas. Porém, os benefícios econômicos, raramente demostrados depois dos
eventos, tem sido contestadoemvasta literatura3.Nos casos dasOlimpíadas de
Atenas (2004), Beijing (2008) e Londres (2012), as despesas reais em termos de
investimentosforamtrêsvezessuperioresaovalorprevistoinicialmente.
Na literaturaespecializadaemmegaeventos,permeadaporoutrasáreas
talcomogeografia,planejamentourbanoedireito,osimpactossocioespaciaisdos
2Cf.MASCARENHAS,G.(2013).LondreseRiodeJaneiro2016:ConceitoeRealidadenaproduçãodaCidade Olímpica. Revista Continentes, UFRRJ, ano 2, nº 3. Disponível em:http://r1.ufrrj.br/revistaconti/pdfs/3/ART3.pdf.Acessoem22dejulhode2014.3Por todos, conferir: HORNE, J., MANZENREITER, W. An introduction to the sociology of sportsmega-events. In: The editorial Board of the Sociological Review, no 24, 2006. HUMPHREYS B.,PROKOPOWICZ,S.Assessingtheimpactofsportmega-eventsintransitioneconomies:EURO2012inPolandandUkraine.In:InternationalJournalofUrbanandRegionalResearch,2(5/6),2007,pp.496-509.OWEN,J.EstimatingtheCostandBenefitofHostingOlympicGames:WhatCanBeijingExpectfrom Its2008Games? In:The IndustrialGeographer,3(1),pp.1-18,2005.LENSKYJ,H. J. Inside theOlympic Industry:power,politics,andactivism.NewYork:NewYork,StateUniversityofNewYorkPress.2000.ParaconferirasituaçãoespecíficadacandidaturadoRiode Janeiro:OLIVEIRA,NelmaGusmãode.Opoderdosjogoseosjogosdepoder:interessesemcamponaproduçãodacidadeparaoespetáculoesportivo.RiodeJaneiro:EdUFRJ,2005.
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megaeventos sobre as populações locais das cidades-sede têm se tornado cada
vezmaisestudados.OscasosdasOlimpíadasemBeijing(2008)eAtenas(2004)e
daCopadoMundonaÁfricadoSul(2010)reforçaramanecessidadedepesquisar
os impactos negativos e sociais dos megaeventos, para além dos discursos
oficiais4. A questão da mobilidade e a questão da moradia são dois elementos
extremadamente importante no estudo das injustiças e violações de direitos
experimentadaspelaspopulações locais,frequentementeasdebaixarenda,com
essetipodeestratégiaurbana.
No Rio de Janeiro, os projetos de transporte representam 55% dos
investimentos oficiais da copa do Mundo (contra os estádios, com 37%, no
segundo lugar) e 55%dos investimentosdasOlimpíadas chamados “o legado”5
(TCU, 2014; APO, 2014). Este contexto permite uma série de investimentos em
obras de transporte coletivo, nunca ocorrida na historia da cidade do Rio de
Janeiro e levou os poderes públicos a falar de uma verdadeira “revolução do
transporte”6. Este artigo, através do estudo de caso do BRT (Bus Rapid Transit)
Transoeste nos contextos desta “revolução do transporte” e da construção da
cidadeatrativa.
Assim,opresenteartigoestádividoemdoiseixosprincipais:a)oprimeiro,
buscarealizarumacontextualizaçãodosistemaBRTnoquadrogeralda“revolução
do transporte”anunciadapelaPrefeituradoRiode Janeiro.Nesse tópico,oBRT
Transoeste será analisadopara revelar as contradições existentes, emespecial a
situaçãorelacionadaàsegurança,aoconfortoeàreproduçãodeuma“hierarquia
modal” que mantém o privilégio do transporte automobilístico; b) o segundo,
traça uma relação entre as formas de implantação do novo sistema e a
4CHARLES, P. «Les enjeux socio-économiques duMondial 2010. Les Cahiers d'outre-mer. no 250,2010, pp. 211-234. BROUDEHOUX, A.-M.Pékin, ville spectacle: la construction controversée d’unemétropoleOlympique. In:Transtext(e)sTranscultures跨文本跨文化 [En ligne],3|2007,publicadoem15deoutubrode2009.Disponívelem:http://transtexts.revues.org/1325OsinvestimentosparaasOlimpíadas2016sãoclassificadosemtrêscategorias:osinvestimentosdocomitêolímpicolocalorganizador(7bilhõesdeR$),a“matrizdosjogosolímpicos”(6,50bilhõesdeR$)eoplanodepoliticaspublicasmunicipais(o“legado”)com24bilhõesdeR$,dosquais13,3%sãoinvestimentosemtransporte.6Cf.GUIMARÃES,V.C.Renato.BarradaTijucaeoprojetoolímpico.Acidadedocapital.Dissertaçãoapresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano eRegionaldaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:UFRJ,2015.
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reintroduçãodeumapolíticaoficialderemoçãodefavelas,iniciadaapartirdoano
de2009.OBRTTransoestevoltaaseranalisado,apartirdoestudodedoiscasos
específicos de remoção integral de duas favelas da Zona Oeste: Restinga e Vila
Harmonia.
Paraoprimeiroeixo(pontos1e2),utilizamosumatriangulaçãodedados
einformaçõesrecolhidasatravésdametodologiaqualitativausadanotrabalhode
tesedeLegroux(2016),istoéa)aaplicaçãodeentrevistasrealizadas,porumlado,
com os setores públicos e privados ligados à “revolução do transporte” e, por
outro lado, com famílias removidas (ou em risco de remoções) por conta dos
projetosde transporte,dentreelas, trêscomunidades (Restinga,Recreio2eVila
Harmonia) removidas pela implantação do BRT Transoeste, b) repetidas idas ao
campo,paraaobservaçãodastransformaçõesemcurso,e,c)utilizaçãodedados
oficiais.
No segundo momento do artigo (pontos 3 e 4), o retorno das políticas
remocionistasédescritoatravésde(i)dadosorganizadospeloComitêPopularda
Copa e Olímpiadas do Rio de Janeiro7, através de uma série de informações
prestadas por órgãos públicos e instituições de defesa do direito à moradia
adequada; (ii) pesquisas publicadas recentemente através de livros e artigos; c)
notícias publicadas em jornal local (todas de 2009). Com relação ao ponto 4, o
estudodecasofoirealizadoprincipalmenteatravésdoacervodoNúcleodeTerras
eHabitaçãodaDefensoriaPúblicadoEstadodoRiodeJaneiro8,ondeconstam:(i)
termos de depoimentos de moradores removidos; (ii) cartas enviadas para
autoridades públicas; (iii) documentos públicos relacionados às propostas de
negociação e aos valores de indenização; (iv) petições jurídicas assinadas pela
DefensoriaPúblicaepeloMunicípiodoRiode Janeiro; (v) decisões judiciais; (vi)
atas de reunião ocorridas no Núcleo de Terras e Habitação e em comunidades
7O Comitê da Copa eOlimpíadas do Rio de Janeiro é um âmbito, criado em 2010, de ativismo eprodução de informações sobre os megaeventos e seus impactos no Rio de Janeiro. Cf.http://rio.portalpopulardacopa.org.br/.Acessoem31demarçode2016.8O Núcleo de Terras e Habitação é um órgão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiroresponsável pela defesa jurídica de comunidades ameaçadas de remoção e outras atividades deproteçãododireitoàmoradiaadequada.Cf.http://www.portaldpge.rj.gov.br/Portal/Acessoem31demarçode2016.
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atingidas. O material foi complementado através de relatório de pesquisa do
sociólogo AlexandreMagalhães, realizado através de entrevistas aosmoradores
removidos.
1)Ocontextoda“revoluçãodotransporte”noRiodeJaneiro.
A“revoluçãodotransporte”,cujosprincipaisprojetossãoapresentadosnatabela
1, não compreendem apenas os investimentos oficiais dos megaeventos, mas
tambémváriosoutrosprojetosquebeneficiamdaconstruçãodacidadeatrativa.É
o caso do teleférico domorro da Providência, que se integra totalmente com a
lógica do Porto Maravilha, investimento ligado as Olimpíadas9. Estes projetos
seriam,nodiscursooficial, capazesde reverteroquadrodacrisedamobilidade,
istoé,deproporcionaràpopulaçãoumsistemadetransportecoletivoeficientee
dequalidade.
Tabela 1 – Investimentos em transportes no Rio de Janeiro apresentados como
legadoolímpico
ProjetosOrigemdofinancia-mento
Custos(emmilhõesde
reais)
Localizaçãoetrajeto
PROJETOSDETRANSPORTECOLETIVO
BRTTranscarioca CDM2014 1866,60
BarradaTijuca-aeroporto
internacional(ZonaNorte)
Transolímpica JO2016 2280,99 Deodoro–Recreiodos
9SobreosdiversosimpactosdoprojetoPortoMaravilha,conferir:CAVALLAZI,R.L.AYRES,M.J.[Org].ConstruçõesnormativasecódigosdacidadenaZonaPortuária.RiodeJaneiro:PROURB,2012.Sobreoprojetodeteleféricosnasfavelascariocas,emespecialnoComplexodoAlemão,conferir:SANTOS,B.D.Lídia.Impactosdaimplantaçãodoteleféricocomosistemadetransportenasfavelas:ocasodoComplexodoAlemão.DissertaçãodeMestrado.DepartamentodeEngenhariaCivildaPUC-Rio.RiodeJaneiro,2015.
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Bandeirantes
Transoeste JO2016 992,00 BarradaTijuca-ZonaOeste
Transbrasil 1400,00
Deodoro–Centro
(AeroportoSantos
Dumond)VLT(VeiculoLeveSobre
Trilhos) JO2016 1188,75 ZonaPortuária
Linha4dometrô JO2016 8790,88
Sistemadetremsuburbano 2400,00 Todarede(RMRJ)
Teleféricos
MorrodaProvidência
GovernoFederal/Es-tado/Muni-cípio(Prog.«Morarcarioca»)
75,00ZonaPortuária(morrodaProvidência)
ComplexodoAlemão
GovernoFederal(PAC-1)
210,00ZonaNorte
(ComplexodoAlemão)
RocinhaGovernoFederal(PAC-2)
700,00 ZonaSul(Rocinha)
Fonte:TCU(2014);GFB(2014);SMTR(2013);Rocinha(2013). A “rede estruturante de BRT” constitui, segundo o discurso oficial, o
alicerce da “revolução do transporte” no Rio de Janeiro, com quatro linhas BRT
totalizandomaisde150km,queinterligamos“clustersolímpicos”,istoéocentro
e a zona portuária, Deodoro, Maracanã e Barra da Tijuca. Assim, o BRT
TranscariocaligaoaeroportointernacionalcomaBarradaTijuca,oTransolímpica
ligaDeodoroaBarradaTijuca,oTransoesteconectaBarradaTijucacomazona
oeste(CampoGrandeeSantaCruz),eoTransbrasilligaDeodoroaoCentrodoRio.
AzonadaBarradaTijucaéparticularmentebeneficiadaporqueédestino
detrêsdosquatrosBRTsereceberátambémalinha4dometrô.Paraaregião,a
escolha do Rio de Janeiro como cidade-sede dos Jogos Olímpicos inaugura um
novo ciclo que retoma a relação entre a multiplicação de empreendimentos
imobiliários/comerciaiseumanovaondaderemoçõesdefavelas(jávivenciadana
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década de 1990). O pesquisador Renato Cosentino esclarece os dados
relacionadosaosinvestimentos:
Dos investimentos listadosnaMatriz deResponsabilidades, a regiãovaireceber85%,ouR$5.5bilhões,dototal.DomontantedeR$632,4milhões investido pela Prefeitura neste orçamento em 11 projetos,95% dos recursos (nove projetos) tem o bairro como destino, emobrasrelacionadasaoParqueOlímpicoeaoParquedosAtletas10.
Poroutrolado,avalorizaçãoecriaçãodacentralidadedaBarradaTijucae
adjacências é acompanhadadeummovimento reversode apropriação fundiária
pelospobresdacidade,produzindoumazonadepotencialconflitoqueconstituio
pano de fundo para as remoções ocorridas em razão da implantação do BRT.
Conforme demonstra o mapa abaixo, entre 2000 e 2010, o crescimento de
habitantesemfavelasfoide53%contra28%parahabitantesdeoutrasáreas.
2.OsimpactosdoBRTTransoeste:revoluçãonapolíticadetransporteoureflexo
dascontradiçõesdacidadeatrativa?
Tanto em termos de avanços reais na mobilidade dos habitantes no que diz
respeitoaqualidadeeacapacidadedosistema,queemtermosdeimpactossobre
a justiçasocioespacialdoRiode Janeiro,ocasodoBRTTransoestepermiteuma
reflexãoampla sobre as contradiçõesda cidadeatrativa.OBRTTransoeste foi o
primeiroBRTa entrar emoperaçãoe foi inauguradonodia6de junhode2012
com a presença de Eduardo Paes (prefeito da cidade do Rio de Janeiro), Sérgio
Cabral (o ex-governador do Estado do Rio) e Lula (ex-Presidente do Brasil) –
representando simbolicamente a união dos três governos entorno do projeto
olímpico.LigandoBarradaTijucaàszonasdepopulaçãodebaixarendadeCampo
Grande e Santa Cruz, conta comumpercurso de 56 quilômetros e um custo de
R$900 milhões (SMTR, 2013). Além disso, realizada uma extensão de seis
10Idem,p.98.
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quilômetros(R$92milhões)entreoterminalAlvoradaeoterminaldanovalinha4
dometrô,aestaçãoJardimOceânico
Nos discursos oficiais o BRT é claramente reservado as classes de baixa
renda das zonas de Santa Cruz e Campo Grande, que podem se deslocar
economizando,oficialmente,40%dotempoqueantesgastavam.Numaentrevista
comAlexandreCastro,diretordoCCO(CentrodeControleedeOperaçõesdoBRT
Transoeste): «Sem qualquer dúvida, o usuário principal do sistema BRT são as
populaçõesdebaixa renda...A ideiadoprefeito émelhorar aqualidadede vida
dessaspessoas”(Legroux,2016).
Com relação aos resultados em termos de mobilidade, o sistema
transportava, em abril de 2015, 180.000 pessoas em péssimas condições de
conforto11.Asuperlotaçãonoshoráriospicosaconteceuantesdeatingirametade
220.000passageirospordia,eoproblemaécentraldadoqueumaboapartedos
trajetossãopendulares(casa/trabalho).
O BRT Transoeste também apresentou problemas de segurança: foi
envolvidoem20acidentes,dosquais07 letais12.Emjaneirode2015,emapenas
umdiaforamregistradosdoisacidentescom150pessoasferidas.Em2014e2015,
quatro grandes protestos foram realizados para denunciar a situação de
superlotaçãoeinsegurançaquepassaramafazerpartedocotidianodosusuários
dosistemadetransporte.Emumdosprotestos,houveconflitoentreosusuáriose
apolíciadoRiodeJaneiro13.
OBRTTransoestenãorepresentaumaverdadeirarevoluçãonosistemade
transportepúblicoporquereproduzumaespécie“hierarquiamodal”queéreflexo
11 Cf. VICTOR, M., RIBEIRO, G. No BRT Transoeste, O DIA flagra superlotação e passageirodesmaiando:doscercade180milpassageirostransportadosdiariamente,80%viajamnoshoráriospico,segundoconsórcio”,jornalODia,RiodeJaneiro,ediçãododia09deabrilde2015.Disponívelem: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-04-09/no-brt-transoeste-o-dia-flagra-superlotacao-e-passageiro-desmaiando.htmlAcessoem08dejaneirode2016.12Cf.MovimentoPasseLivre–MPL.Do ladodecá:daZonaOesteàZonaNorte,o transportedosconsórciosvaiparar.Artigopublicadoem:https://mplrio.wordpress.com/2015/03/Acessoem17dejaneirode201613Osprotestosaconteceramnosdias27defevereiroe02desetembrode2014esetedeabrile17de outubro de 2015. Cf. Jornal do Brasil. Protesto contra BRT aponta precariedade do transportepúblico no Rio. Edição online do dia 02 de setembro de 2014.http://www.jb.com.br/rio/noticias/2014/09/02/protesto-contra-brt-aponta-precariedade-do-transporte-publico-no-rio/Acessoem18dejaneirode2016.
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deumadistanciação social (DiazOlvera, Plat e Pochet, 1998).O sistemadeBRT
oferece um novo sistema de transporte coletivo para as populações de baixa
rendamasnãoédestinadoaousodasclassesmédiasealtasdazonadeBarrada
Tijuca. Ao contrário, numa boa parte da Avenida das Américas, onde transita o
Transoeste,umaviaparaoBRT(coladosaocanteirocentraldaavenida)justificou
a construção de duas a até três vias para o trânsito de carros (além das que já
existiam).
Segundouminterlocutorespecialistaemtransporteurbano:
“Osprojetosde transporteemcursonoRiode janeiro seguemumalógica elitista como todas as politicas de transporte no Brasil (...) ABarradaTijucaéaMiamiBrasileira,ondeanovaclassemédia fezasua cidade. O que aconteceu foi um processo de concentração derenda,deformaçãodeumaclassemédianova,edeexclusãopolítica.Essanovaclassemédia,queformou-senofinaldadécadade1970ena década de 1970, tem recursos para comprar automóveis e tempostos na burocracia, na tecnocracia do Estado. Então, na minhaopinião, o que nos vimos acontecer no Brasil, é a formação dascidadesdaclassemédia”(EntrevistacomEduardoA.Vasconcellos,do25/09/2012,Legroux,2016).
O BRT Transoeste constitui de fato um exemplo das contradições deste
tipodeestratégiaurbananeoliberal.Defato,comajustificativadeinfraestrutura
detransportepúblico,seconstruiuinfraestruturasviáriasparaousodascamadas
sociaisquenãousarãooBRTesejustificouaremoçãocompletadascomunidades
Vila Harmonia, Restinga e Vila Recreio 2, em parte para as novas pistas
automobilística, e deixando grande quantidade do terreno das ex-comunidades
sem qualquer utilização. O BRT Transoeste, assim como os outros BRTs,
participamdareproduçãodoprocessohistóricode“causaçãocircular”,segundoo
qual uma aliança urbana dominante consegue acumular os benefícios dos
investimentos públicos, em termos de infraestrutura urbana e de serviços
públicos.Esteprocessoseguevigentenestecontextodecidadeatrativa14,eéem
14VETTER,D.,MASSENA,R.(1981).“QuemseapropriadosbenefícioslíquidosdosinvestimentosdoEstadoem infraestrutura? –uma teoriada causação circular”, inSilva, L.,Machadoda (org), Solourbano–Tópicossobreousodaterra.SérieDebatesUrbanos.RiodeJaneiro:ZaharEd,1981.
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funçãodelequeanovacentralidadeevalorizaçãodaBarradaTijucatendeaser
excludente(veremosemoutroponto).
Os megaeventos produzem a flexibilização necessária à estratégia
neoliberaldeproduçãodoespaçoatrativo,masque,paradoxalmente,nãodeixa
de utilizar as ferramentas tradicionais de afirmação do poder estatal. Desta
maneira, os projetos de renovação e de infraestruturas urbanas, tanto como a
atitudedospoderespúblicosnaquestãohabitacional,respondemaumalógicade
exclusãoesegregaçãosocioespacialdasclassesdebaixarenda-queseinsereno
contexto de uma das maiores ondas de remoções da historia da cidade,
contrastandocomosdiscursosdebenefíciosgeneralizadosparatodaapopulação
carioca.
Naverdade,odinamismoeconômicodacidadedoRionãose traduzpor
umaevoluçãodaestruturaedomododefuncionamentodaacumulaçãourbana.
Ocircuitodaacumulaçãourbana seperpetuanamedidaemqueaproduçãodo
espaço construído (ligado ao setor imobiliário, empresas de obras, de serviços
coletivos, as camadas favorecidas da sociedade) segue sendo próprio objeto da
acumulaçãourbana.Atrásdodiscursooficialde“revoluçãodotransporte”,oBRT
Transoeste–juntocomosoutrosmodaisdetransporteimplantados–participam
fortemente do novo ciclo de remoções acontecendo no Rio de Janeiro neste
contexto de cidade atrativa. Isto revela a permanência de ummodo de gestão
políticaespecíficaparaasfavelas.
3.OBRTTransoesteeoretornodepolíticasdeerradicaçãodefavelasnoRiode
Janeiro
Acidadeatrativarepeteosmecanismoshistóricosdesegregaçãosocioespacialdas
classespopulares,atravésdosprocessosde“periferização”15eprodução(política)
15Oprocessodeperiferizaçãonãose refereapenasaoafastamentoespacialdasclassespopularesnasperiferias,mas tambémaograude infraestruturaseserviçospúblicosnasáreasurbanas.Umafavela central do Rio de Janeiro que não recebe nenhuma infraestrutura e serviço urbano é
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da própria precariedade16. O processo de urbanização brasileiro, por sua vez, é
marcado por uma forte irrupção de grandes metrópoles ocorrida num relativo
curto espaço de tempo (1920-1980). Com os processos de modernização
econômica,industrializaçãoeampliaçãodosetordeserviços,milhõesdepessoas
se deslocaram para os grandes centros urbanos, em sua maioria fugindo da
exploração e damiséria das áreas rurais,marcadas por uma forte concentração
fundiáriaepolítica17.
Durante décadas, uma sempre crescente população passou a habitar e
autoconstruirsuasprópriascasasque,emseuconjunto,deramorigemaotermo
“favela”18.Ahistóriadasfavelas,nocasodoRiodeJaneiro,étambémahistóriade
uma luta contínua, por seus moradores, pelo direito de permanecer nas áreas
construídasepeloacessoaosserviçospúblicosoferecidosparaorestodacidade.
Segundo o historiador do direito Rafael Gonçalves19, como resposta ao
longo fio traçado por essa resistência, um padrão de gestão politica desses
territórios é contínuo: trata-se damáxima de “tolerar sem consolidar”, ou seja,
lança-se permanentemente as favelas num jogo político ambivalente de
reconhecimento (sempre frágil e instável), por um lado, e de possibilidade de
remoçãoedespejoforçado,deoutro.
Assim,apolíticadeerradicaçãodefavelasacabavoltandoperiodicamente
na história do Rio de Janeiro. De 1962 a 1965, 27 favelas são destruídas,
representando6875moradiaseaexpulsãodemaisde40000pessoas.Entre1968
e1973,duranteoperíododeexistênciadaCHISAM(CoordenaçãodeHabitaçãode
consideradaperiferizada.ConferirsobreotemaadefiniçãodeperiferiadogeógrafoMiltonSantos.SANTOS,M.Economiaespacial:críticasealternativas.2.Ed.SãoPaulo:Edusp,2007.16Cf.ABREU(deALMEIDA),M.(1996).EvoluçãoUrbanadoRiodeJaneiro,IPLANRIO,RiodeJaneiro;SILVA,Gerardo.ReFavela: notas sobre a definação da favela. In Revista Lugar Comum, no 39, jun.2013,pp.37-43.17SANTOS,M.Op.cit.18SobreahistóriadasfavelasnoRiodeJaneiro,conferir:VALLADARES,Licia.Ainvençãodafavela:domitodeorigemàfavela.com.RiodeJaneiro:EditoraFGV,2005.NaRMRJ(RegiãoMetropolitanadoRiodeJaneiro)ataxadehabitantesemfavelaspassoude12%a15%entre2000e2010(de1235796a1711172habitantes).Nesseperíodoapopulaçãoemfavelascresceude28%contra7%parapopulaçõesquenãomoramemfavelas.MaséomunicípiodoRiode Janeiro,segundoocensode2010(IBGE,2010),contacom868“loteamentossubnormais”,totalizando1,4milhõesdehabitantesemfavelas,ouseja23%dapopulaçãototaldomunicípio.19GONÇALVES,S.Rafael.FavelasdoRiodeJaneiro.HistóriaeDireito.RiodeJaneiro:PUC,2013.
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InteresseSocialdaÁreaMetropolitanadoGrandeRio),175000habitantesde62
favelasforamexpulsasetransferidasparaconjuntoshabitacionaisnaszonasnorte
eoestedacidade20.
O contexto atual de megaeventos constitui uma das maiores fases de
remoção da história do Rio de Janeiro – junto com o período Pereira Passos
(20.000remoçõesde1902à1906)eCarlosLacerda(30.000remoçõesde1961a
1967). Segundo a prefeitura, entre janeiro de 2009 e dezembro 2013, mais de
20.000 famílias (aproximadamente 70.000 pessoas) foram removidas, dentre as
quaisquaseametadeforamrealojadasatravésdoprogramafederalMinhaCasa
Minha Vida (PMCMV)21e dentro das quais aproximadamente um quarto, 6 000
famílias,deslocadosporprojetosligadosacopadoMundoeOlimpíadas22.
OdossiêMegaeventoseviolaçõesdosdireitoshumanosnoRiodeJaneiro,
organizadopelocomitêpopulardacopadoMundo2014edasOlimpíadas2016do
RiodeJaneiro(versãode2014)23,mostraqueumagrandepartedasexpropriações
são ligadas a projetos de transporte, e especialmente pela rede de BRT (Tabela
02).
20Cf.VALLADARES,LíciadoPrado. (1980).Passa-seumacasa.AnálisedoprogramaderemoçãodefavelasdoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Zahar.21Lançado em 2009, o programa federal MCMV tem como objetivo incentivar a produção e aaquisição de novas unidades habitacionais para famílias cuja renda se situa entre 0 e 10 saláriosmínimos. O PMCMV é um exemplo do que tem sido chamado “a habitação social de mercado”,porquedefato,saoosconstrutoresquedecidemdalocalizaçãodasunidadeshabitacionais,dotipodeconstruçãoedossegmentosbeneficiários(Cardoso,RodriguesNunes,2013).NoRiodeJaneiro,oPMCMV foi totalmente apropriado pela prefeitura para reassentar, principalmente na periferia nazonaoestedacidade,oshabitantesremovidosemfunçãodastransformaçõesdacidadeatrativa.22Cf.FAULHABER:L.AZEVEDO,L.SMH:RemoçõesnoRiodeJaneiroOlímpico.RiodeJaneiro:MóruloEditorial,2015.23Cf. COMITE POPULAR DA COPA DOMUNDO 2014 e DAS OLIMPIADAS 2016. (2014). «Dossiê:megaeventos e violaçoes de direitos humanos no Rio de Janeiro». Disponível em:https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomiterio2014_web.pdf Acesso em 18dejaneirode2016
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Tabela02–Númerodefamíliasexpropriadasemfunçãodasintervençõesurbanasdacidadeatrativa
Intervençõesurbanas Númerodefamíliasexpropriadas
Total(nºdefamíliasexpropriadas+nºdefamíliasameaçadas)
BRTs 2458 7181PortoMaravilha 925 1135
OutrasinfraestruturasligadasaosMegaeventos 2295 2389
Sub-totalCopa2014/JO2016 5678 10705
Outrasrazões 2737 3492TOTAL 8415 14197
Fonte:ComitêPopulardaCopadoMundode2014edosJogosOlímpicosde2016(2014).Notas: Alguns números apresentados nesta tabela são diferentes da tabela original, pordivergênciasdeinterpretaçãoouporaspectosconjunturais.
O ciclo de remoções relacionado aos megaeventos foi publicamente
defendido por uma campanha na imprensa local e por atos públicos da própria
PrefeituradoRio.Comefeito,em12deabrilde2009,oprincipaljornaldacidade
publicaaposiçãodonovoprefeitodoRiodeJaneiro:“aremoção[defavelas]não
é amelhor opção no caso de comunidades já consolidadas.Mas o assunto não
pode ser tratado como tabu, nem descartado completamente. Por isso, deve e
merece ser discutido pela sociedade”. A matéria ocupou a primeira página do
jornal:“Paesdizqueremoçãodefavelasnãopodesertabu”24.
Masaideiade“quebrarotabudasremoções”,ganhatambém,nomesmo
período, contornos oficiais. No relatório de acompanhamento das ações da
SecretariaMunicipaldeHabitação,realizado,em2009,peloTribunaldeContasdo
Município,encontramosaseguinteafirmação:“apolíticadenãoremoçãocomeça
adeixardeserumtabu,sendorepensadaembenefíciodaCidadecomoumtodo,
24Para uma reconstituição das reportagens de jornal que, em 2009, formularam uma verdadeiracampanhaafavordasremoções,conferir:MENDES.F.Alexandre.ExperimentaçõesdopodernoRiodeJaneiro:entreremoçãoe integraçãodafavelaàcidade. In:MULLER,C.etal. [Org.]OsConflitosFundiáriosUrbanosnoBrasil:EstratégiasdeLutacontraosDespejoseEmpoderamentosapartirdaTeoriaCríticadosDireitosHumanos.PortoAlegre:CDES,2014.pp.109-119.
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hajavistaasaçõesprevistasnosprojetosrelacionadosàCopadoMundode2014e
àsOlimpíadasde2016”25.
Porsuavez,oPlanoPlurianual,apresentadoem31deagostopeloChefe
do Poder Executivo como principal instrumento de planejamento para a cidade,
estipulouumametagenéricadereduçãode05%daáreaocupadapelasfavelasda
cidadeaté2013,posteriormentemodificadapara3,5%até2012.Nodiaseguinte,
os jornais noticiam a existência de lista de 119 favelas que deveriam ser
removidasnoperíodoindicadopeloPlano.Aremoçãodefavelas,emsuma,
retorna comopolítica oficial adotada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, a
partir de 2009, potencializada pelo discurso da preparação da cidade para os
eventosesportivos26.
4.OsimpactosdoBRTTransoestenodireitoàcidadeeàmoradiaadequada:os
casosRestingaeVilaHarmonia
Aqui, trataremos do caso específico da construção do BRT Transoeste e seus
impactosnodireitoàcidadeeàmoradiaadequadademoradorespobresdaárea
afetada.Estima-seque16comunidadesforamafetadaspelaconstruçãodetodas
asviasdosistemaBRT,sendoquetrêsdelas(Restinga,VilaHarmonia,VilaRecreio
II) foram integralmente removidas para a implantação do corredor Transoeste,
numdosprocessosmaisviolentosdahistóriarecentedoRiodeJaneiro27.
Emboraoscasospossuamsemelhançasentresi,demonstrandoumpadrão
de atuação do poder público, iremos tratar das comunidades Restinga e Vila
Harmonia 28 , especialmente através de documentos acessados no arquivo da
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (depoimentos, atas de reunião,
25Cf.BRUM,M.S.Favelaseremocionismoontemehoje:daditadurade1964aosgrandeseventos.Osocialemquestão,RevistadaEscoladeServiçoSocialdaPUCRJ,RiodeJaneiro,a.XVI,n.29,2013.26Cf.MENDES,F.Alexandre.Op.cit.27Cf.COMITÊPOPULARDACOPA...Idem.28Embora relacionado ao BRT Transoeste, não trataremos da Vila Recreio 2 por dificuldade emacessaroarquivodedocumentosdocaso.
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decisões judiciais,documentosoficiaisdaPrefeituradoRio,cartasdemoradores
etc.) e um relatório de pesquisa elaborado e cedido pelo sociólogo Alexandre
Magalhães,combaseementrevistasrealizadascomosmoradoresremovidos29.
Ambas comunidades foram removidas integralmente em razão da
justificativaapresentadapelaPrefeituradoRiodeconstruçãodeumaduplicação
da Avenida das Américas (Barra da Tijuca). Calcula-se que cerca de 500 famílias
foram afetadas sem que os terrenos tenham sido, de fato, utilizados para a
implantação da via. Para umamelhor compreensão dos casos, subdividiremos a
análiseemdiversospontos.
4.1.Remoçõesbiopoliticas:arupturacomo“espaçopoético”dacasa
Em pesquisa recente, Clarissa Naback denominou de “remoções biopolíticas” o
processocaracterizadopelomodoatualdeexpulsãodospobresdeseusterritórios
noRiode Janeiro (NABACK,C.2014).Ousodoconceitose justificaemrazãoda
busca de uma ferramenta teórica que dê conta dos complexos jogos de poder
envolvidos nos processos que resultam nos despejos forçados. A pesquisa
demonstraque,apesardoextensoroldedireitoconquistadospelosmoradoresde
favelas nos últimos anos, as remoções ainda são possíveis porque colocam em
atuação um poder sobre a vida (urbana) que, embora atravessado por
mecanismosjurídicos,adquirevariadasformasdeautonomia30.
Este poder sobre a vida, segundo Naback, atua diretamente sobre o
“espaçopoéticodacasa”edoespaçourbano,significandoqueopoderexercido
numprocesso de remoção utiliza de umamiríade de estratégias que colaboram
para desconstituir a dimensão social e afetiva do território. Assim, para se
29Aentrevista,quecontoucomacolaboraçãodeClarissaNaback,foirealizadacomtrêsmoradorasremovidasdaVilaHarmonia, jáemseusnovos locaisdemoradia,gerandoumrelatórioelaboradopelopesquisador.30NABACK,ClarissaPiresdeA.Remoçõesbiopolíticas:ohabitarea resistênciadaVilaAutódromo.Dissertação de Mestrado (Direito). PUC-Rio, 2014. Argumento semelhante em: MAGALHÃES,Alexandre Almeida de.Transformações do problema favela e reatualização da remoção no Rio deJaneiro.Tese(DoutoradoemSociologia).InstitutodeEstudosSociaisePolíticos–IESP/UERJ,2013.
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concretizarodeslocamento forçadonãobastariaumato formal fundandonuma
supostasoberaniapolítica,masumatramadepoderqueatuadiretamentesobrea
dimensãovivaeprodutivadoespaçourbano.
Partirmos do mesmo aporte teórico para caracterizar as remoções
ocorridasemrazãodaimplantaçãodoBRTTransoeste.Seriaimpossívelanalisa-las
apartirapenasdosmecanismosjurídicos(decisões,acordos,ordensjudiciaisetc.),
embora estes façamparte do processo comoum todo. Veremos que, nos casos
analisados, a ordem judicial foi fundamental para concluir a remoção, mas o
processo, digamos, político já estava desencadeadodesdeo primeiromomento.
Assim,osdepoimentoseorelatóriodepesquisademonstramqueoprocedimento
de remoção forçada se iniciou,nãoapenas semqualquer formalidade legal,mas
com funcionários que “trapaceavam”, dizendo que fariam um cadastramento
destinadoaum“cadastramentosocioeconômico”paraoprograma federalBolsa
Família:
Umamoradora,queconheciaoprocedimentodesseprograma[BolsaFamília],questionouaumafuncionáriadoMunicípioqueapráticadocadastramentoerafazê-loemescolasouemumpostodeAssistênciaSocial,masaassistentesocialquestionadapersistianaafirmativaqueaquelaaçãosedestinavaaoBolsaFamília31.
Por outro lado, depoimentos prestados na Defensoria Pública32 pelos
moradores revelam a ausência de informações sobre o projeto BRT e a
necessidadedasremoções,alémdeameaçasrealizadaspelopoderpúblico:
(...) que a intimação foi feita apenas verbalmente, sem entregarqualquer documento comprobatório ao morador; que o depoenteouviu de outros moradores que a Prefeitura pretende demolir ascasasnasegundafeiradasemanaseguinte.
(...)queaproximadamenteuns20PoliciaisMilitaresdo31ºBatalhãodoRecreio/Barra,todosarmadosdefuzis,pistolas,10policiaiscivisdo42º delegacia do recreio e 40 Guardas municipais estiveram na
31RelatóriodepesquisadeAlexandreMagalhães.Acervopessoal.32Acervo doNúcleo de Terras eHabitação daDefensoria Pública do Estado doRio de Janeiro.Osnomesdosdepoentesforamomitidos.
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comunidadedaRestinga”;quechegaramnestehorárioavisandoqueas demolições iam ocorrer pelo fato de ser um local onde a viatransoesteiriapassar;quenãohouvenegociaçãoprévia.(...) foram constantes as visitas da prefeitura que fazia ameaças dequeelesteriamquesairde“qualquerjeito”,queaprefeitura“quandoquer faz”; que não podiam lutar contra o poder público; que sequisessem passar com o trator eles “iam passarmesmo e ninguémpodiaimpedir”.
Alémdos depoimentos, emuma carta coletiva enviada pelosmoradores
daVilaHarmoniaàsautoridadespúblicas33,pode-seteracessoaoseguinterelato:
(...) vieramcommentirasepressãopsicológica sobreosmoradores,usandoassistentessociaisparacadastros, invadindoonosso larcomcriançasesemumtermolegalqueospermitisseisso,burlandoaleieaté se munindo da política militar e pressionando-nos a sair comameaçasdederrubaracasacompessoasdentro.
Por sua vez, os métodos de abordagem da Prefeitura do Rio aos
moradores foram também registrados em Ação Civil Pública ajuizada pela
Defensoria Pública do EstadodoRio de Janeiro, emagosto de 2010.Na petição
apresentada ao Poder Judiciário, o órgão público afirma que os moradores
sofreram ameaças da Prefeitura que, inclusive, tentou impedi-los do acesso à
justiçaeàsreuniõesqueseriamrealizadascomosdefensorespúblicos:
Nesteviés,moradoresecomerciantesprocuraraminformaçõescomoSubPrefeito que comentou a área estava destinada para fins dedesapropriaçãoe,segundoosmoradores,emtomdeameaçaafirmouque:“seentrassemnajustiçaperderiamtudoequalquerliminarseriaderrubadaemsegundos,assimcomoseusimóveis”.
Outro procedimento comum consiste na exploração de contradições
familiares e a própria estigmatização domorador como um “favelado” que não
possuidireitosequedevealcançarumasupostacidadaniaatravésdesuaretirada
33RelatóriodaComunidadeVilaHarmonia.AcervodoNúcleodeTerraseHabitaçãodaDefensoriaPúblicadoEstadodoRiodeJaneiro.
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da comunidade 34 . Esse conjunto de estratégias busca reduzir as resistências
produzidas contra as remoções e produzir uma subjetividade subordinada à
condição de “invasor” que é até agraciado pela Prefeitura com uma pequena
indenização.
Éaproduçãodaprecariedadedafavela(“tolerarsemconsolidar”)queno
caso da Vila Harmonia e Restinga se traduz na relação estabelecida pelo poder
público através do confronto entre os agentes e os moradores. A falta de
informaçãoquantoaoprojetoeaosdireitosdecadapessoaafetadaéarticulada
comaideiadequeela“teráquesairdequalquerjeito”,abrindoespaçoparauma
sériedeconflitosquesedesenvolvemnocotidianodosmoradoresque resistem
contraaremoção.
4.2.Conflitosemtornodas“alternativas”oferecidas
NocasosRestingaeVilaHarmonia,afaltadereconhecimentopolítico-jurídicoda
posseexercidahá30anospelosmoradores levouopoderpúblico a sustentar a
tese de que as alternativas habitacionais oferecidas constituíam simples “favor”
realizadopelaPrefeituradoRio.Aspropostasresumiam-seaduaspossibilidades:
a) reassentamento no ProgramaMinha CasaMinha Vida, com aquisição de um
apartamento; b) indenização com base no decreto 20.454 de 24.08.2001,
calculadacombaseunicamentenametragemdaedificação.Porsuavez,paraos
comerciantesnãofoioferecidaqualquercompensação.
A proposta de reassentamento para o conjunto habitacional (PMCMV)
sofreuumaforteresistênciapelosmoradoresporumasériedemotivos:primeiro,
não trata-se de uma doação sem ônus para o beneficiário, mas de um
financiamentohabitacionalatravésdoqualocontratantesecomprometeapagar
parcelas mensais para a aquisição final; segundo, a metragem do apartamento
(42m2)erabastanteinferioràscasasconstruídaspelosmoradoresemdécadasde
34Fatos registrados em: MAGALHÃES, Alexandre Almeida de. Idem; NABACK, Clarissa Pires deAlmeida.Idem;DOSSIÊDOCOMITÊDACOPA...Idem.
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investimento;terceiro,otipodecontratoquedeveriaserrealizadoimpõeseveras
limitaçõespeloperíododofinanciamento(10anos),comoimpedimentodevenda,
locação,empréstimoetc.;quarto,osconjuntoshabitacionaiseramdistantescerca
de 30 km das casas originais, construídos em uma área pouquíssimo dotada de
infraestrutura;quinto,oreassentamentosignificaofimdoslaçossociais,culturais
eambientais construídosnaquele território, importandonumamudançadrástica
na forma à qual osmoradores vivem a cidade; sexto, o reassentamento é uma
negaçãodotrabalhoedoempenhodosmoradoresnaconstruçãonãosódesuas
casas,masdetodooespaçourbanoproduzidonolocal35.
VejamosacartademoradoresdaVilaHarmonia:
As condições oferecidas por eles são no mínimo injustas, pois oprojeto“MinhaCasa,MinhaVida,daCaixaEconômicaFederal,quefoioferecida como primeira escolha de indenização é pago, sendo quenossas casas sãopróprias e não temos a intençãode sair denossascasas,queforamconstruídascomonossosuor,paraum local longede nossa realidade de vida, sendo que a maioria não possui rendapara pagar, o que ameaça a torná-los sem teto, sendo que aindenização que eles impuseram são segundo eles pelo que foi pornósconstruídos,semse importaremcomavidaqueconstruímosnolocal,nossosempregos,escolas,cursos,lazerouqualqueroutroitemcontidonoestatutodosDireitosHumanos36.
Além das críticas à proposta de reassentamento, a carta rejeita a
possibilidade de indenização aos moradores. Nesse segundo caso, a oferta era
recusada pelos seguintesmotivos: primeiro, a indenização era calculada apenas
combase na construção física da casa, desconsiderando o valor demercado do
terreno;segundo,queoparâmetrodeavaliaçãoestavadefasadodesde2001,ano
depublicaçãododecretomunicipalqueregulaas indenizações;terceiro,háuma
percepçãodequeoconjuntohistóricoerelacionalproduzidonaqueleespaçonão
está sujeito a qualquer indenização, devendo ser apenas respeitado pelo poder
35Ascríticassãoextraídasdoconjuntodeatasdereuniãorealizadasentrejulhoedezembrode2010.AcervodoNúcleodeTerraseHabitação.36RelatóriodaComunidadeVilaHarmonia.AcervodoNúcleodeTerraseHabitaçãodaDefensoriaPúblicadoEstadodoRiodeJaneiro.
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público37.
Apesardoenfrentamentorealizado,asduaspropostasse impuserampor
em razão das pressões realizadas sobre osmoradores, da impossibilidade de se
questionar as propostas noPoder Judiciário (veremosnopróximoponto), ouda
percepção de algumas pessoas de que o reassentamento em conjunto
habitacional poderiaoferecermais segurança jurídica àposse.Assim,umaparte
das pessoas foi deslocada para o conjunto habitacional situado na Estrada dos
Caboclos,emCosmos,queéobairromaisafastadodocentrodacidade(limítrofe
comoutromunicípio).Outraparterecebeuindenizaçõesquevariavamentrecinco
milesessentamilreais,quantiamuitíssimoabaixodovalorrealdemercado.
A situação dos moradores reassentados no conjunto habitacional em
CosmosfoitratadaemreuniãodaComissãodeAtingidosdaTransoeste,criadaem
2012paraenfrentarasviolaçõessofridas.UmaadvogadadaPastoraldeFavelas,
grupo ligado à Arquidiocese da Igreja Católica do Rio de Janeiro, afirmou que
recebeu uma série de reclamações daqueles moradores relacionadas às dívidas
contraídasemfavordaCaixaEconômicaedecobrançasquenãoeramrevertidas
para amanutenção do condomínio. Ummorador da Restinga que foi removido
relatou que as paredes dos apartamentos estavam rachando em razão da baixa
qualidadedaobrarealidade.Umchurrascofoimarcadonolocale,atravésdeuma
rodadeconversa,seconfirmouaexistênciasdasdívidasedeproblemasligadosà
distânciacomrelaçãoàscentralidadesdacidade38.
Comrelaçãoàsindenizações,asentrevistasindicamqueobaixovalorfez
comqueosmoradorescontraíssemdívidasouseabrigassemprovisoriamenteem
casasdeparentes:
“(...) houve quem recorresse a parentes e familiares, pedindo-lhesempréstimos.Noentanto,ninguémconseguiucomprarnadapertode onde morava. A maioria se deslocou para Pedra de Guaratiba[bairroafastadodolocaloriginal”.
37Ascríticassãoextraídasdoconjuntodeatasdereuniãorealizadasentrejulhoedezembrode2010.AcervodoNúcleodeTerraseHabitação.38ReuniãodaComissãodaAtingidosdaTransoeste.Atadodia12desetembrode2014.
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OutranotíciaquechegouàComissãodeAtingidosfoiautilizaçãodovalor
de indenização para o alguém de outra casa, já que a quantia não permitiu a
compra de outro imóvel. Além disso, após as demolições ocorridas com
autorizaçãodoPoderJudiciário(próximoponto)algunsmoradoresecomerciantes
que decidiram resistir ao processo de remoção não receberam as respectivas
indenizaçõesprometidaspelopoderpúblico39.
4.3.AposiçãodoPoderJudiciárioearetiradadosmoradoresresistentes
Com o apoio de uma considerável rede de ativistas e através da atuação dos
defensores públicos, osmoradores da Vila Harmonia e Restinga empreenderam
uma luta pela permanência que durou cerca de seis meses, indo de agosto de
2010 até fevereiro de 2011. Durante esse período, uma série de vídeos e
reportagens foram realizadas a partir do trabalho voluntário de dezenas de
midiativistas40;moradoresdeoutras favelasameaçadasderemoçãoorganizaram
reuniões para troca de experiências, a ONGAnistia Internacional, após visita ao
local,emitiuuma“urgentaction”enviandomilharesdecartasparaasautoridades
locais41, grupos ecumênicos semovimentarampara defender os terreiros (Casas
de Santo) atingidos por ameaças de demolição, advogados voluntários e
pesquisadoreselaboraramumamedidaurgenteparaaComissão Interamericana
de Direitos Humanos e defensores públicos ajuizaram medidas judiciais com o
objetodeobterinformaçõessobreoprojetoegarantirorespeitoaosdireitosdos
moradoresatingidos42.
Comovimos,durante todooprocessoaPrefeituradoRioofereceuduas
39Idem.40BoapartedoacervodevídeossobreremoçõesnoRiodeJaneirofoireunidapelaONGWitnesseestá disponível em: https://blog.witness.org/2013/10/can-114-videos-tell-one-story-about-forced-evictions-in-rio/Acessoem17dejaneirode2016.41 Informação disponível em: https://anistia.org.br/entre-em-acao/peticao/basta-de-remocoes-forcadasAcessoem17dejaneirode2016.42Adinâmicadaresistênciarealizadaestádescritaemdetalhesem:MAGALHÃES,AlexandreAlmeidade.Idem,pp.270-300.
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propostas de compensaçãopara a perda damoradia quenão foramaceitas por
parte dos moradores, e não ofereceu qualquer indenização aos pequenos
comerciantes,quena totalidadedoscasos tambémhabitavamnos locais.Diante
doimpasse,açõesjudiciaisforamajuizadasnoPoderJudiciáriodoRiodeJaneiro,
tanto para a defesa damoradia, como para a defesa e proteção das atividades
produtivas.
Este adotou, em ambas comunidades, uma postura extremamente
tradicionalista, protegendo a propriedade pública sem qualquer consideração
sobre o abandono realizado pelo município e a posterior destinação para o
exercício do direito àmoradia. O direito à concessão de uso em terras públicas
parafinsdemoradiaestáreguladonoBrasildesde2001,masprevaleceualógica
doEstado-proprietário,quetutelariaosseusbensdeformacegaaosmodosreais
deutilizaçãodoterritório.Nasdecisõesaseguir,aJustiçachegouaafirmarquea
administração municipal teria a prerrogativa da autoexecutoriedade, podendo
demolir imediatamente as casas construídas há décadas, sem garantir aos
moradoresqualquerprocessolegal.
Vejamos:
[Restinga] (...) Sequer haveria necessidade de o réu ingressar comdemandajudicialpararecuperaráreapública,sendocompletamentedescabido que o réu seja compelido a se abster de realizar asdemoliçõesnecessáriasparaaconsecuçãodasobrasdaTRANSOESTEou ser condenado aindenizaros autores, eis que, nesse aspecto,nenhumarremedodeprovaveioaosautosquantoaautorizaçãoparaas devidas construções. Assim, ao exame do caso concreto ondeinicialmente poderia se supor a existência de colidência entre odireito do particular (demoradia) e o da coletividade, representadopelo Poder Publico (de retomada de área para fins de interessepublico),deveprevaleceresteúltimo.
[Vila Harmonia] (...) In casu, têm-se a princípio, que as construçõeserguidaspelosmoradoressãoclandestinas, jáqueestãoemcimadeumlogradouropúblico, inexistindopossedoespaçopúblico,equeodireito de indenização somente é admitido ao possuidor de boa-fé,sendo certo que, na hipótese, diante do poder de auto-executoriedade da Administração Pública, sequer o Municípionecessitadeordemjudicial.
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Ao invocar a “clandestinidade” das ocupações, a despeito da sua
permanência por cerca de 30 anos, o Poder Judiciário põe em funcionamento o
histórico dispositivo político de gestão das favelas cariocas (ver ponto anterior)
que produz continuamente uma precariedade jurídica que garante a oscilação
entre tolerância e possibilidade de remoção forçada. Por outro lado, a decisão
demonstra como formas contemporâneas de governança neoliberal (flexível e
market friendly), convivem com as posturasmais tradicionalmente estatistas no
querefereàaplicaçãododireitopúblico(Estado/Mercado).
OsefeitosparaosmoradoresecomerciantesdaRestingaeVilaHarmonia
foram drásticos. No mesmo dia em que as decisões foram publicadas, o poder
públicorealizoudezenasdedemolições,avançando,inclusive,noperíodonoturno.
Ospossuidoresnãotiveramtempohábilpararetirarosseusmóveisepertencese,
em razão do corte no fornecimento de energia elétrica, foram despejados em
meioàescuridão.EmentrevistarealizadacomtrêsmoradorasdaVilaHarmonia,é
narradaadinâmicadosacontecimentos:
Foimuito traumatizantea remoçãodaVilaHarmonia,eumesma fuiuma daquelas vítimas pesadas. (...) Eu falei: olha só eu não estoucontra a juiz; se o juiz determinou que minha casa tem que serdemolida, agente vai respeitar a ordem do juiz. Ninguém aqui écontra!Masque se faça, pelo amordeDeus, comdignidade!Vocêsacendamessa luzquenãotemcomofazerumamudançanoescuro.Comovoupegar roupa, copo, sabe...eu falei pelo amordeDeus, euimplorava...43
Por fim, quando as obras de implantação do BRT foram concluídas,
descobriu-se que a Prefeitura do Rio utilizou apenas 10% dos terrenos
originalmenteocupadospelascomunidadesRestinga,VilaHarmoniaeVilaRecreio
2. Demostrou-se que era possível a realização das obras sem a retirada dos
moradores,oquemotivouumarepresentaçãoaoMinistérioPúblicodoEstadodo
Rio de Janeiro e uma visita realizada pela Câmara dos Vereadores e as ONGs
43EntrevistacedidaerealizadaporAlexandreMagalhãesamoradorasremovidasdaVilaHarmonia.
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JustiçaGlobaleAnistiaInternacional44.
Conclusão
A implantação de uma chamada “revolução dos transportes” da cidade atrativa,
masespecificamenteoprojetodoBRTTransoeste,podeseranalisadaapartirdos
impactos socioespaciais relacionados à realização das transformações urbanas.
Alémdosproblemas estruturais relacionados aoBRT Transoeste (superlotaçãoe
insegurança)eaoprópriomodelorodoviarista,sobressai-seoimpactonamoradia
populaçãopobresdoRiodeJaneiro.Ambasasdimensõesforamquestionadaspor
visíveisprocessosderesistênciaelutasocialmencionadosnoartigo.
Pode-seconcluirqueasfavelasdaRestinga,VilaHarmoniaeVilaRecreio2
representavam um obstáculo à valorização imobiliária da Barra da Tijuca, que
concentraumaboapartedosinvestimentosdaCopadoMundo2014edosJogos
Olímpicosde2016.Aremoçãoviolentadestascomunidadesfoijustificadaporum
projeto de transporte coletivo, mas ocorreu de fato para o alargamento da
AvenidadasAméricasparaaconstruçãodenovaspistasparausoautomobilístico,
ousejaparaobeneficiodemoradoresdealtarenda.E,mesmonessecaso,utilizou
uma parcela reduzidíssima do terreno retirado das favelas que o ocupavam
(apenas10%).
O caso representa mais um episódio de utilização de projetos que,
supostamente, se fundariamem interessepúblicoparaproduzirdesigualdadena
apropriaçãodoespaçourbano.Alémdisso,apontaparaumadimensãobiopolítica
das remoções contemporâneas, operadas por uma trama de poder que não se
reduzaosmarcos jurídicosexistentesequeseestabelece,nãosemuma intensa
resistência,noespaçorelacionaleafetivodasfavelas.
44Sobreo caso, conferir anotíciaUOL– “DesapropriaçãodeBRTnoRiodeixa terrenos vazios e éinvestigada pelo MP”, edição online do dia 17 de setembro de 2013. Disponível em:http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/09/17/desapropriacao-de-brt-no-rio-deixa-terrenos-vazios-e-e-investigada-pelo-mp.htmAcessoem17dejaneirode2016.
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(consultadono08/01/2016).
Sobreosautores:
AlexandreF.MendesProfessor da Faculdade deDireito daUniversidade do EstadodoRio de Janeiro,ondeconcluiuodoutoradoemDireitodaCidade(2012).FoidefensorpúblicodoEstado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, atuando na defesa jurídica dedezenasdefavelasameaçadasderemoção,incluindoRestingaeVilaHarmonia.E-mail:[email protected]
Doctorando do LAET (Laboratoire Aménagement, Économie, Transport) naENTPE/Université de Lyon 2, e do IPPUR (Instituto de Pesquisa e PlanejamentoUrbanoeRegional)naUFRJ-UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.Pesquisadorsobremobilidadeurbananoprojeto“Metropolizaçãoemegaeventos:osimpactosda copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016 no Rio de Janeiro”. E-mail:[email protected]ãoosúnicosresponsáveispelaredaçãodoartigo.