birnbaum, pierre & chazel, françois - teoria socilógica

231

Click here to load reader

Upload: sandrosg699982

Post on 03-Jan-2016

132 views

Category:

Documents


17 download

TRANSCRIPT

  • PIERRE BIRNBAUM Supervisor de conferncias na rniversidade de Paris

    FRANorS CHAZEL Mestre de conferncias na uni\'crsidade de I30rdus

    Teoria Sociolgica Traduo de

    GrsELA STOCK DE SOCZA e HLIO DE SOUZA

    ,

    "-",'\ '

    EDITORA DE HUMANISMO, CINCIA E TECKOLOGIA "HUCITEC" LTDA, EDITORA DA UNIVERSIDADE DE so PACLQ

    So Paulo, 1977

    - !

  • I ~ ,,~

    Ttulo do original francs: "Thorie Sociologique". Copyright, 1975, Presses Universitaires de France. Obra publicada na oleo Thmis dirigida por Maurice Duverger. Direitos de publicao reservados para a lngua portuguesa pela Editora de Humanismo, Cincia e Tecnologia HUCITEC Ltda., Alameda Ja, 404. 01420 So Paulo, SP, Brasil. Telefone: (Oli) 287-1825. Capa de Lus Daz. Servios grficos da Empresa Grfica da Revista dos Tribunais S.A., Rua Conde de Sarzedas, 38, 01512 So Paulo, SP.

    T29

    770691

    CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte Cmara Brasileira do Livro, SP

    Teoria sociolgica [por] Pierre Birnbaum [e] Franois Chazel; traduo de GiseIa Stock de Souza e Hlio de Souza. So Paulo, HUCITEC, Ec1. da Universidade de So Paulo, 1977.

    (Cincias sociais. Srie estudos te-ricos)

    1. Sociologia 2. Sociologia - Teoria I. Birnbaum, Pierre. lI. ChazeI, Franois.

    CDD-301 -301.01

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Sociologia 301 2. Sociologia : Teorias 301.01

    Introduo

    Introduo

    SUMARIO

    0.0

    PRIMEIRA PARTE

    DOS SISTEMAS DE INTERAO AOS TIPOS DE ORGANIZAO SOCIAL

    Captulo I - Os fundamentos da interao Que uma sociedade? (Gabriel Tarde) ......................... . O problema da sociologia (Georg Simmel) ..................... . A atividade social e as relaes sociais (Max Weber) ........... . O jogo livre (folguedo), o jogo regulamentado e .. o outro-gene-

    ralizado" (George H. Mead) ............................... .. Os trs tipos de personalidade (William I. Thomas e Florian

    Znaniccki) .................................................. . A sociedade concebida como uma interao simblica (Herbert

    Blumer) .................................................... . A apresentao de si mesmo na vida quotidiana (Erving Goffman) Relaes sociais, quase-equilbrio e conformidade (George Homans) A construo social da realidade e o controle social (Peter Berger

    e Thomas Luckmann) ........................................ . A etnometodologia (Aaron Cicourel) ........................... . O indivduo e a indstria cultural (Max Horkheimer e Theodor

    Adorno) .................................................... . Captulo II - A cultw'a e o intercmbio social

    Cultura e personalidade (Edward Sapir) ........................ . Ensaio sobre o dom (Marcel Mauss) ........................... . Os princpios do parentesco (Claude Lvi-Strauss) ............. . A homenagem do vassalo (Marc Bloch) ......................... .

    Captulo lU - Controle social, desintegrao social e mudana Os costumes (William G. Sumner) ............................ .. Os grupos primrios (Charles H. Cooley) ...................... . Mudana social e desorganizao social (Robert Park) ........... . A sociedade tradicional e a civilizao (Robert Redfield) ......... . A gang (Frdric Thrasher) ................................... . O suicdio anmico (Emile Durkheim) ......................... . A complicao da vida social e o suicdio (Maurice Halbwachs) Mobilidade e ordem social (Pitirim Sorokin) ................... . O controle social (Georges Gurvitch) ........................... .

    1

    9 ,_o : f

    17 18 21

    26

    32

    36 40 48

    56 60

    62

    65 68 73 77

    83 84 87 89 90 91 95 98 99

    IX

  • ,,..-

    ~i ; l :', j

    Captulo IV - As tip%gias clssicas Comunidade e sociedade (Ferdinand Tnnies) ,." ... ,.......... 106 Comunalizao e sociao (lfax \-Veber) ..................... ,.. 114 Comunidade c liga (Herman Schmalenbach) ,..................... 117 Os dois tipos de solidariedade (Emite Durkheim) ............ ,... 119

    SEG"CXOA PARTE

    A CONSTRUO DO SISTEMA SOCIAL COMO OBJETO PRIVILEGIADO D.\ TEORIA SOCIOLGICA

    Introduao

    Ttulo primeiro Sist ema, esfrutura e fllntio

    Captulo I - Os P;,{'fUllc10nalisfas

    135

    Que uma sociedade? (Herh('.rt Spencer) ....................... 14i Organismo e sociedade (Ren \\"or111s) ......................... 149 Causa e funo (Emile Dnrkheim) ............................ 150 A teoria funcional (Bronislaw 1vIalinowski) ..................... 154 A coerncia funcional do sistema social (A. Radc1iffc~Drown) 157

    Captulo H - A claborai'io dr no"'.'oS' i)aradiil1l1a,~ Um paradigma da anlise funcional (Robert Merton) ........... 162 Um esboo do sistrrna social (Ta1cott Parsons) ................. 167 Uma mudana estrllhmd na economia americana: a separao da

    propriedack relativamente direo (Talcott Parsons e Neil Snlelscr) .................................................... 195

    Captulo rrr - Posta ('111 (jllesto a ,'nlidad{' do estrut1/ro-funcionalismo Algumas ohservaucs a propsito de 1'11(' Social System (David

    Lork\vood) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204 Uma formalizao do funcionalismo (Ernest Nagel) ........... ,. 216 A lgica da anlise funcional (Car! G. HempeI) ........... ,..... 232 O princpio de reciprocidade funcional (Alvio Gouldner) ......... 252

    Ttulo II

    Sistema c comunicao

    Captulo I - .1 teoria .r;rrol dos sistemas Teoria geral dos sistemas (Ludwig von Bertalanffy) ............ 275 O conceito de sistema (J ames Miller) .......................... 287 A segunda ciherntica: um processo causal mtuo, amplificador de

    desvio (1lagoroh Maruyama) ..................... , .... , .... ,. 294 Controle social e retroaflO (Walter Buckley) ....... , ... ,., .. ,.. 303

    Captulo rr - O alcance dos modelos cibernticos O funcionalismo e a teoria geral dos sistemas (Paul Lazarsfeld) 309 Comunicao c controle nas organizaes (Karl Deutsch) ........ 312 Os mecanismos do consenso (Amitai Etzioni) , ....... ,........... 315 Processo de violncia poltica (Ted Gurr) ..... , ..... , .... "..... 321

    TERCEIRA PARTE

    o SISTE~[A SOCIAL CONFRONTADO COM A HISTRIA Introduo ... ' ....... ..... .................. ...... . ....... ......... 329

    Captulo I - Classes sociais e desigualdades sociow1tl/ra Classe e conscincia de classe (Karl Marx) ................... . Os tipos de interpretao da estrutura social. Ensaio de classificao

    (Stanislaw Ossowski) ........................................ . O momento da cnscincia de classe (Alain Tourainc) .......... . A autofiliafLO de classe (W. G. Runciman) ............... ", .. . Reproduo cultural c reproduo social (Pierre Bourdieu) A crise universitria francesa: ensaio de diagnstico sociolgico

    (Raymond Boudon) ............. ,.', .... " ....... , ........... . A dclinq('ncia juvenil (Jean-Claudc Chamboredon) ........ , .... .

    Captulo Ir - Ideolo!Jio c conflito Simmel, Marx e o conflito social (Lc\vis Coser) ... , ....... , ... . A tcnica e a cinci.a como" ideologia" (Jrgen Habermas) ",. Ideologias mOItas, idias vivas (Raymond Ara0) ................. . A despolitizao e o engajamento poltico (Ulf Himmelstrand) Os jovens, a contC'stao c a mudana social (Kenneth Kcniston) .,

    Captulo IH - A ,

  • INTRODUO

    o prprio ttulo TEORIA SOCIOLGICA, escolhido para este trabalho e que pode parecer ambicioso, reclama, de sada, algu-mas explicaes e esclarecimentos. Precisemos, imediatamente, que a noo de teoria no tomada, aqui, em sua mais rigorosa acepo, que conduziria a privilegiar a deduo, a partir de um pequeno nmero de proposies primrias, das assertivas postas prova da realidade. Esta limitao mostrou-se excessiva por duas razes com-plementares: de uma parte, os socilogos no tiveram bom xito, seno muito raramente, quanto a satisfazer a to exigentes crit-rios; e, de outra parte - o que constitui, sem dvida, uma resposta s dificuldades da elaborao propriamente terica, nesta disciplina - a noo de teoria, longe de receber uma significao unvoca, foi interpretada de maneira muito lata para englobar as escalas de refe-rncia e a colocao no ponto dos conceitos fundamentais.

    Uma vez que nosso primeiro objetivo consistia em dar um balan-o - atual - dos esforos especficos dos socilogos, referimo-nos aos usos em vigor no universo sociolgico e no significao mais estrita que o termo teoria assume na pena de um filsofo das cin-cias. Assim, ficamos em condies de dissipar uma primeira ambi-gidade: este livro no concede lugar central s consideraes propriamente epistemolgicas, que traduzem, parece-nos, uma outra maneira de circunscrever o assunto e que por isso mereceriam tra-tamento parte. Todavia, elas foram explicitamente introduzidas toda vez que se tratou de discutir e de julgar a validade de tal paradigma, ou, mais geralmente, de tal aproximao terica.

    Em compensao, polissemia da noo de teoria em sociologia correspondem, nos limites deste trabalho, a diversidade e, mesmo, s vezes, a oposio das orientaes e dos estilos. Se nos for permitido recorrer a alguns exemplos salientes, destacaremos, aqui, o con~ traste entre a anlise de Goffman, toda sutileza, que procede por toques e retoques sucessivos, e o mtodo interpretativo de Ossowski, sbrio e sem rodeios, visando a pr em dia a lgica inerente a certos modos de pesquisa. Mediremos a diferena entre autores que, como Adorno e Horkheimer, enfatizam mais o alcance crtico de suas intuies do que sua eventual sistematizao e os que, a exemplo de Miller, se propem elaborar uma linguagem rigorosa, segnndo

    1

    : 'f

  • o modelo das clencias da natureza. Notaremos, por fim, a extenso da divergncia entre os respectivos projetos de um Parsons - con-sagrando todos os seus esforos construo de uma teoria geral, ou pretensamente geral - e de um Habermas, agarrando-se, sobre-tudo, interprtao scio-histrica de um fenmeno particular,

    Julgamos mesmo indispensvel alargar mais este quadro e, simul-taneamente, esta diversidade, indo tomar emprestadas algumas pas-sagens, para l dos limites formais da disciplina, obra de historia-dores e de filsofos. Sem dvida, os presentes textos no foram ditados por preocupaes especificamente sociolgica-s. E, pelo que nos toca, nem havamos pensado em que o fossem. Mas podem eles, pelo menos, servir de objeto de uma leitura propriamente sociolgica, seja porque comportem, como o fragmento tirado de l\larc Bloch, uma anlise de elementos sociologicamente pertinentes, seja porque possam, como algumas pginas de Althusser, e a despeito de suas prprias reservas - esperadas, tratando-se de um filsofo - rela-tivamente ;tS cincias sociais, c()nstituir para o socilogo. as base:; eventuais de uma nm'a pj:oble11ltica, ou de novas pistas de pesquisa.

    Nem por isso gostaramos que o leitor se apegasse a esta impres-so ele diversidade, at mesmo de miscelnea. O quadro que mon-tamos corresponde a uma ordenao, ou, antes, tentativa de pr em ordem os nossos conhecimentos sociolgicos, incidindo. essencialmente, sobre dois planos. O primeiro tange idia, que possvel formular, da teoria em sociologia, ou, pelo menos, daquilo qi.le se alinha debaixo desse nome. Efetivamente, reagrupamos, aqui, teorias parciais, relativas a tal ou qual aspecto particular da vida social, assim como paradigmas de diferentes tipos, notadamente de carier formal, ou, ao contrrio, cle natureza conceptuai. :Mas acre-ditamos dever igualmente levar em lin.ha de conta programas de pesquisa a que no correspondia uma verdadeira estrutura formal, escaias de referncia no assentadas num aparelho conceptual bem desenvolvido, ou "sistemas" interpretativos que s um uso muito generoso desse termo nas cincias sociais permitiu qualificar de modelos. Parece-nos, no obstante, que, apesar de semelhante plu-ralidade de significaes e de nveis de aplicao, os textos aqui apresentados oferecem certos traos comuns. Na maioria deles, temos pela frente, primeiramente, um conjunto de proposies ligadas umas s outras. Sem dvida, esta ligao, nem sempre tem as mesmas bases. Sem dvida, o grau de coerncia varia profundamente, con-forme nos aproximamos de um verdadeiro corpo de proposies, ou dele nos afastamos. Mas, pelo menos, essa -caracterstica est geral-mente presente. Da mesma forma, tais proposies so confrontadas, por intermdio de algumas dentre elas, com a realidade emprica, ou permitem um semelhante confronto, graas s regras -que enunciam

    2

    ou aos conceitos que estabelecem, ou ainda o preparam pela defini~ o de escalas de referncia apropriadas ou pela formulao de vias de pesquisa. A fim de enfeixar estas poucas observaes numa frmula, a maioria das passagens aqui reunidas comportam um con-junto de proposies ligadas entre si e confrontadas, quer direta-mente, quer indiretamente, quer, afinal, com a realidade emprica. Trata-se a de uma forma atenuada ou, antes, ele uma aproximao de teoria, no sentido integral da palavra, o que constitui, a nosso ver, um elemento a um tempo benfico e crucial para o desenvol-vimento da disciplina.

    O segundo dos planos previamente discriminados relativo organizao deste trabalho. Tnhamos de incio procurado ir alm de uma simples apresentao cronolgica de alguns textos funda-mentais em teoria sociolgica, para pr nfase nas correntes maio-res de pensamento e em suas expresses, ou, antes, em seus pro-longamentos at o perodo contemporneo. Para passar de um para outro plano, tnhamos necessidade, entretanto, de um fio condutor: acreditamos encontr-lo na nDo de sistema. Sublinhemos, de sada, a fim de dissipar qualquer ambigidade, que nosso propsito est nutto longe de ser apologtico e que o exame a que vamos proceder pretende ser crtico: nosso interesse vai essencialmente ao debate que se travou a respeito e, por conseguinte, tanto s aproximaes que partem da impugnao de uma tal base quanto s construes tericas fundadas sohrc o primado daquela noo. 'Precisemos, tam-bm, como a escolha e o prprio ordenamento dos textos so sufi-cientes, parece-nos, para mostr-Io, que a noo de sistema n'J eleve ser relacionaeb CDm uma s escola de pensamento, por mais importante que seja, e que no se deve encerr-la numa interpre-tao nica, nem mUl1 tipo de utilizao privilegiado: ao contrrio, insistimos no fato de que ela suscetvel de se aplicar em diferentes nveis da realidade social, desdr.:: a anlise da interao at ao estudo propria.mcnte macrossciolgico de complexos conjuntos sociais. Acrescentemos, afinal, que. por no vir sempre formulada expli-citamente, nem por isso a referncia idia de sistema est menos presente em certas passagens aqui fixadas e que toda leitura que no levasse em conta esta dimenso correria o risco de no ser plenamente esclarecedora. Definitivamente, no apresentamos argu-mentos em favor de uma sociologia sistmica, mas reconhecemos, simplesmente, o lugar ocupado, seja de modo negativo, ou, pelo menos, decididamente polmico para numerosos autores, pela noo de sistema na formao do pensamento sociolgico.

    A constatao de que os socilogos s raramente escapam a certas preocupaes nem por isso deve conduzir o leitor a minimizar a importncia das diferenas e, mesmo, freqentemente, das diver-

    3

    . ~.

    .'

  • gncias entre as principais tendncias. da teoria sociolgica e os seus mais autorizados representantes. Desse ponto de vista, esforamo-nos por focalizar a originalidade de cada aproximao encarada como ensaio de organizao, seno de construo, da realidade social. Pro-vindo referida originalidade, em grande parte, da determinao de uma problemtica e do modo de arranjo dos conceitos, procuramos fazer ressair a especificidade das opes efetuadas em cada uma dessas duas dimenses. De maneir", a demarcar melhor o tipo de problemtica adotado, fomos assim levados a assinalar o contraste entre as orientaes tericas que conferem o primado esfera dos valores e as que assentam sobre a preeminncia do substrato. Entre as sociologias da integrao e as sociologias do conflito. Entre as lgicas de pesquisa definidas a partir das classes sociais e as que so formuladas em termos de estratificao. Entre as anlises que privilegiam o poder e as que tm por objeto a comunicao. E lem-brando, de modo a prevenir qualquer interpretao simplista, que o socilogo da integrao no poderia, s por isso, dispensar-se de todo exame do conflito e que um especialista nos estudos de estra-tificao estaria errado se se privasse dos materiais reunidos por aqueles que concedem privilgio ao papel das classes sociais: o esta-belecimento de prioridades consiste, com efeito, em propor um eixo de pesquisa e no em excluir, a priori, do campo de anlise outros aspectos da realidade social suscetveis de manter interessantes rela-es com o principal objeto de estudo. No mesmo esprito, subli-nhamos que os modos de arranjo dos conceitos tm variado, consi-deravelmente, com as pocas e as tradies de pensamento. Citemos, simplesmente, aqui, a ttulo de exemplo, as tipologias dicotmicas, to caractersticas da sociologia clssica, as categorias funcionais, que estiveram em grande voga nos anos 50, as categorias 'estruturais, enfim, que podem revestir formas muito diferentes, conforme este-jam ligadas a uma perspectiva marxista, a certas modalidades de funcionalismo ou a uma pesquisa das homologias de estrutura, que pertence, como propriedade particular, teoria geral dos sistemas.

    Talvez nos objetem que a especificidade das diversas aproximaes se reconhece, igualmente, pelo seu domnio de aplicao, e que deva-mos, em conseqncia, enfatizar mais esta terceira dimenso. A res-peito, gostaramos de apresentar, guisa de defesa, duas observaes. Antes do mais, no desconhecemos, de maneira alguma, o liame (estreito e essencial) que une a problemtica ao campo de aplica-o: este ltimo, com efeito, serve de substrato trama terica e no pode, absolutamente, dela ser dissociado, nomeadamente nas 'especialidades em que, como na sociologia, as teorias so, quando muito, parciais. Em seguida, tentamos, em nossa seleo, levar em linha de conta centros de interesse mais recentes da disciplina, como

    4

    as desigualdades em face da escola, a contestao dos movimentos estudantis ou .. ainda, as representaes 'e a ideologia da -classe oper-ria. Ko deixa de ser menos verdade que, nos limites deste livro, nossa ateno se fixou, sobretudo, nas problemticas; nas conceptua-lizaes e nas propores de pretenso terica, formuladas soure tais bases. O principal objetivo nosso, a saber, exame da teoria socio-lgica, ou, pelo menos, daquilo que se alinha, geralmente, sob essa denominao, impunha-nos semelhante mtodo interpretativo. Ao mesmo tempo, permanecamos fiis, assim, nossa firme convico de que os socilogos devem ir alm de uma simples delimitao de seu campo, ainda marcado de esprito sociogrfico, a fim de propor para si mesmos, como propriedade sua, certos tipos de problemas a que teriam a tarefa de responder. Mas, devido mesmo a essa insis-tncia, que nos parecia indispensvel, a respeito da elaborao das teorias sociolgicas, foi-nos preciso- renunciar a examinar os campos de aplicao por si mesmos.

    Semelhante lacuna, propomo-nos preench-la em prximo trabalho, consagrado a uma anlise das mltiplas formas da vida social; anlise a se.r conduzida a partir dos elementos tericos e conceptuais aqui agrupados. O presente livro- ter, portanto, um prolongamento, de carter emprico mais acentuado, ainda que, em nosso entender, cc.nstitua, por si mesmo, um todo, que permite apreciar as virtudes heursticas de escalas de referncia, a fecundidade de diferentes instrumentos conceptuais, assim como grau de coerncia atingido, em sociologia, por certas teorias parciais.

    5

    2 ~ T.S,

    .-

    . "

  • ai

    ., .

  • INTRODUO Nesta Primeira Parte, gostaramos de mostrar como possvel

    ver- destacar-se, a pouco e pouco, na grande tradio sociolgica, a noo de sistema. uma noo, essa, que permite, com efeito, levar em considerao o modo de arranjo de todos os nveis da realidade _social. Nesse estdio da anlise, todavia, ela permanece, ainda, impressionista e carece de rigor~ chegando certos autores a identi .. ficar . o sistema com uina realidade histrica precisa e concreta, tirando-lhe, assim, aquele seu carter verdadeiramente terico. Mas, a despeito de tais limites, a. riqueza da citada noo nem por isso Se manifesta menos atravs destes poucos textos de sociologia cls-sica. E, como acabamos de o sugerir, encontramo-la, j, em estado mais ou menos latente, no centro da teoria sociolgica. Serve ela, como se vai ver nesta Primeira Parte, para acentuar, assim em nvel internacional como no da prpria sociedade global, de um lado 03 mecanismos de elaborao do todo, de outro lado as tenses e os conflitos que nascem nesse todo e levam, s vezes, sua completa desintegrao. '

    Num primeiro captulo, intitulado Os Fundamentos da Interao, comea-se mostrando como a sociologia, para pr termo ao indivi-dualismo e analisar em profundidade o fato social, precisou recorrer

    ~ noo de 'sistema interacional. No seio desse sistema, pode o indi-vdo, uma vez adquirida a sua formao, apesar 'de tudo, recon-quistar uma certa autonomia, aumentar sua latitude de ao" at introduzir um forte potencial de desvio no sistema, que ento obrigado a criar mecanismos de controle, a fim de limitar os desvios e manter o todo. Os trabalhos de Gabriel Tarde ilustram com cla-rez os ltimos momentos de uma viso exclusivamente individua-lista, contra a qual autores to diferentes, como Durkheim, Simmel ou \\T eber no deixaram de se insurgir. Em Les tais de rimitation, Tarde- sustenta, com efeito, que os indivduos, tais quais "sonm-bulos", imitam-se uns aos outros, incessantemente, de modo "mec-nico". Seus crticos evidenciaram, ao contrrio, o carter social da imitao, que pressupe, segundo eles, uma socializao anterior dos atores, adquirida dentro do prprio sistema social. Mesmo quando conservam uma perspectiva atomstica, Simmel e Weber sublinham, ambos, que os indivduos so ligados uns aos outros ,por uma trama

    9

    1"

  • de relaes sociais e que a interao, subestendida pela orienta0 do comportamento para COm outrem, toma lugar, por conseguinte, dentro de um conjunto. Com George H. Mead, v-se quanto o inter-cmbio que se realiza no curso da interao indispensvel for-mao da personalidade dos atores que participam dela: o self (*) no pode desenvolver-se seno em relao aos outros. Assim, a comunidade organiza, segundo Mead, seu controle, com a ajuda de mecanismos de interiorizao das nonnas a que o indivduo adere plenamente. Os smbolos. a linguagem ou os gestos contribuem, assim, para dar ao sistema interacional sua coerncia e sua estabilidade, ao mesmo tempo.

    O sistema interacional corre o risco, todavia, de se ver pertur-bado pela evoluo da personalidade dos membros que o constituem. Assim, a partir de seu clebre estudo comparativo e diacrnico dos imigrantes poloneses (1918-1921), Thomase Znaiiiecki puderam distinguir trs grandes tipos de personalidade que reagem diferen-temente em face da evoluo do sistema social a que pertencem. Se o "filisteu" se revela incapaz de adaptar-se a um novo tipo de sis-tema, o "bomio" o faz com incoerncia, ao passo que s o indivduo "criador" poder agir de maneira estruturada e autnoma. Reaes to diferentes diante de uma mudaha de sistema expem-se ao ris-co, simultaneamente, de introduzir naquele um certo nmero de disfunes. Fixemos aqui, particularmente, que, segundo Thomas e Znaniecki, esses atores conseguem melhor que outros modificar, deliberadamente, os seus comportamentos. Concedendo, sem dvida, uma muito extensa margem aos indivduos, Blumer tambm chega a focalizar a forte autonomia dos prprios atores. Ao revs das interpretaes reifantes do sistema social, sublinha ele, assim, a importante margem de manobra que o ator social possui no seio do sistema. Goffman descreve, do mesma. modo, as mltiplas maneiras pelas quais um ator H se apresenta" a outrem: para ele, toda pessoa detm a possibilidade de modificar as relaes internas no sistema

    (*) A partcula pronominal soi~ na forma sob que aparece no texto, prati camente intraduzvel. Optamos, assim, pelo emprego do ingls self3 entre outros motivos porque se trata do termo empregado pelo prprio Mead e que, na defi nio de Donald Pierson, significa o "processo desenvolvido pelo individuo humano em interao com seus semelhap.tes e atravs do qual se torna capaz de tratar a si mesmo C011l0 objeto, isto , de "afastar-se", por assim dizer, do seu prprio comportamento, de consider-lo do ponto de vista alheio, assumindo os papis e atitudes das outras pessoas e de julg-lo deste ponto de vista; e, assim, de controllo de acordo com as "expectativas de comportamento" dos membros dos grupos de que faz parte" (N. do T.).

    10

    interacional, tomando "distncia" em face do papel que lhe atri-budo e mudando, por conseguinte, a percepo que os outros podem ter dle prprio. Sem dvida, Blumer ou Goffman propendem a exagerar a autonomia do ator e no Se mostram suficientemente conscientes do fato de que eSSa liberdade varia segundo os papis e os estatutos sociais; de que, relativa quanto a certos papis, , quanto a outros, inexistente. Mas, adotando uma viso individualista do sistema social, tm eles, apesar de tudo, o mrito de contrapor-se, conscientemente, a teorias funcionalistas absolutas, ligando muito estreitamente o indivduo sua funo.

    Para evitar, entretanto, que essa autonomia do ator seja excessiva e assim ponha de novo em causa a sua prpria cO'erncia, o sistema faz surgir m'ecanismos de controle, que se revelam, quase sempre, muito eficazes. Examinando os comportamentos de um grupo de operrios em face do problema das cadncias e das remuneraes, Homan5 por seu turno consegue demonstrar a maneira por que a conformidade com as normas benfica para todos e assegura um como quase-equilbrio do prprio sistema, isto , da fbrica, na espcie. Berger e Luckmann tambm se negam a ver, exatamente como o clebre autor de The Human GrlOup, numa lgica funcional de qualquer tipo, a causa da permanncia do sistema: igualmente, em sua perspectiva o controle social exercido pelos prprios ato-res, que de sua prpria vontade impuguariam os desvios de com-portamento. A socializao daria, assim, um carter objetivo ao "conhecimento" que os indivduos podem ter do real. A linguagem a que este vai chegar constitui, por conseguinte, a seus olhos, o instrumento privilegiado da interao social. Alis, quaisquer que sejam as suas diferenas, esses autores parecem, assim, prximos da corrente que se desenvolve, atualmente, no mundo anglo-saxo, a saber, a etnometodologia. Esta aproximao fenomenolgica, que se inspira nos trabalhos de Alfred Schtz, tem tendncia para acen-tuar o carter social da linguagem, instrumento de compreenso entre os atores. Distanciando-se do interacionismo simblico (de Mead a Goffman), Cicourel e Garfinkel no consideram mais como est-vel o sistema de smbolos sobre O qual repousaria a linguagem. Esta agora se acha modelada pelas interpretaes dos atores no mbito de uma situao social.

    Para Horkheimer e Adorno, ao contrrio, os mecanismos de controle destroem a personalidade e tornam vo todo esforo de originalidade por parte dos atores sociais tomados como indivduos. O desvio no se acha mais, por conseqncia, limitado pelo "conhe-cimento", que, para os fundadores da Escola de Francforte, no

    11

    1

    I I d 1

    1

    li .1

    ;11

  • pode ter seno carter factcio num sistema fundado sobre 'a alie-nao e a interiorizao das normas da cultura. O "jogo" do ator, a distncia em relao ao papel aparecem, em conseqncia, -ao mesmo tempo, como irrisrios e determinados por uma estrutura social cristalizada, de que depende, verdadeiramente, o controle social. A autonomia dos atores se v, assim, atingida e quebrada por um controle exercido; .no mais' unicamente em nome do sis-tema no seu conjunto, mas, sim, em favor de, grupos sociais domi-nantes. Segundo Horkheimer e Adorno, o sistema interacional deve, por conseguinte, ser reposto no quadro da sociedade global: ele no pode escapar aos conflitos que a surgem.

    Numa segunda subparte, gostaramos de examinar o liame exis-tente entre a cultura e o intercmbio social, porque ele permite, j, estqar a formao do sistema global a partir dos liames interacio-nsis. Para, a maioria dos_ etnlogos, o .intercmbio social que d nas-cimento ,ao _sistema funda-se,. efetivamente, numa cultura autntica. Sem querer abordar, aqui, o problema (mais geral) das relaes entre _cultura e natureza, afigllra-se-nos necessrio sublinhar, desde j, o estreito liam_e que une intercmbio social e a cultura, a partir de um processo interacional. Segundo Sapir, o lugar da cultura no a prpria ~qciedade global, mas, antes, o das interaes individuais. Cultura parcial e intercmbio social especfico se encontram, assim, inevitavelmente ligados: os traos culturais asseguram, desta ma-n~ira, e graas interao, a formao da personalidade. Impug-nando uma. tal concepo atomstica do corpo social, Marcel Mauss inostra como o intercmbi relaciona sobretudo grupos sociais que, no quadro de um ilfenmeno social total", obedecem s diferentes obrigaes impostas pela cultura e aos liames materiais estabeleci-dos entre s grupos. A cultura e as normas parecem, assim, ine-rentes ao -intercmbio estrutural, constitutivo do sistema social. Semelhante constatao tambm encontrada no texto de Claude Lv-Strauss: par ele, as regras do casamento exprimem a forma-'o de uma cultura, repousam igualmente sobre o princpio de reci-procidade. O "sistema de intercmbio" assegura, portanto, a permannia do grupo. Tdos os sistemas sociais parece, conseqen-temente, dependerelTI do intercmbi mais ou menos estruturado que se instaura entre os homens e' os grupos: assim, para Marc Bloch, na sociedade feudal, a homenagem do vassalo unia, de incio, dois homens que aceitavam, deliberadamente, esse liame e as obriga-es decorrentes. Um conjunto de ritos e de smbolos ilustrava o aspecto contratual de semelhante intercmbio. Com O tempo, essas ligaes de homem para homem vo perdendo, segundo Bloch, a sua fora, e a posse das terras. diminui, a pouco e pouco, a importncia

    12

    'do fato cultural que a vassalagem constitua. Os prprios juramen-tos so, freqentemente, quebrados: ,como se v, os problemas eco-nmicos e sociais parece tambm determinarem, nesse nvel do sistema social como no da simples interao, a natureza do inter-cmbio suscetvel ao mesmo tempo de implantar um novo tipo socie-tal, ou de levar, ao contrrio, desintegrao do conjunto existente.

    Em nvel interacional, j se constatou a existncia de mecanismos cle ,controle social. Em nvel de todo o sistema, tais processos adqui-rem i!mportncia ainda maior, j que asseguram a coerncia da sociedade global. Como o havia notado Tocqueville, a exemplo de outros socilogos clssicos, os costumes permitem regular os modos

    d~. pensar e facilitam o bom funcionamento do sistema. No mesmo sentidv, os costumes, segundo Sumner, chegam a penetrar at i10 if).consciente e servem de justificativa para as estruturas sociais exis-tentes: so, pois, indispensveis estabilidade do sistema. Os grupos primrios, tambm eles preenchem uma funo de controle, uma vez que em seu seio que se desenvolve a personalidade dos indivduos. Se nos reportarmos a um clebre texto de Cooley, veremos que eles exerceriam, em toda sociedade, um papel ess'encial de auto-regulao. Estariam, contudo, como o prprio Cooley o havia pressentido, amea-ados, nas sociedades industriais, por um processo de atomiza0, que poria a sua coeso a perder: suas funes de controle social ficam ao mesmo tempo sob o risco de no poderem mais ser assegura-das. Esta desintegrao dos liames sociais foi descrita igualmente pOr Robert Park, ou, ainda, mais tarde, por Robert Redfield. Refe-rindo-se ambos, de maneira explcita, aoS trabalhos de Cooley e de

    S~mn-er, mostram, um e outro, como o crescimento das grande. cidades e a diviso do trabalho que o acompanha conduzem, no mais da.s vezes, a uma desorganizao social atentatria da funo de' controle social exercida pelos grupos primrios ou, mais geral-me'nte, pela sociedade tradicional. Segundo todos esses autores, a passagem para a sociedade industrial pe em perigo a coerncia do sistema social. No mesmo sentido, Frederic Thrasher estuda as con-seqncias dessa desorganizao sobre o equilbrio da comunidade urbana. Mas, embora pertencendo, tambm, Escola de Chicago, da qual Park foi um dos fundadores, sublinha ele, em seu livro, que ficou clssico, The Gang, como o grupo primrio consegue, apesar de tudo, subsistir sob formas diversas e ainda preencher, em conse-qncia, suas funes (1). O trabalho de Thrsher tenderia, por-

    (1) Na mesma perspectiva, ver William Foote Whyte, Street COrnef SdCiety, Chicago, University of Chicago Press, 1943.

    13

    3 -T.S. -I I

  • tanto\ a demonstrar que os receios manifestados por Cooley no eram fundados, uma vez que a atomizao no atinge as relaes prim-rias tidas como indispensveis sobrevivncia do sistema. Em con-dies particulares, observadas por Durkheim, a desintegrao do sistema pode, todavia, traduzir-se por um completo desregramento dos comportamentos individuais: desta ausncia, ou desta deficincia das normas que precisamente resultaria o suicdio anmico. Numa socie:dade que conhece uma forte diviso do trabalho, a anomia atinge particnlarmente as profisses' industriais e comerciais

    1 em que

    reina exacerbada concorrncia. Porque o poder moral da sociedade no conserva mais seu carter "superior" que o indivduo, ahan-donado a si mesm'O, Ise suicida. Maurice Halhvvachs observa, no mesm-o sentido, que quanto mais a sociedade se complica tanto mais os homens ficam inclinados a suicidar-se: posto diante de tenses acrescidas pela complexidade da vida social e muitas vezes entregue a si mesmo, indivduo corre o risco de suicidar-se, quando experi-menta "contrariedades". A ordem social pode, assim, ser abalada. Sorokin, por seu turno, frisa o carter desmoralizador dos fenme-DOS de mobilidade, sem nem por isso negar-lhes os aspectos positi-vo:,: distribuio mais funcional dos empregos, ascenso social de no 'lOS dirigentes etc. Segundo ele, com efeito, a mobilidade social das sociedades modernas destri os liames sociais e ope os indivI-duos uns aos outros, colocando em perigo, dessa forma, o prprio sistema social. Toda sociedade, por conseguinte, para limitar os efeitos desses diversos processos, que atingem a coerncia do sis-tema, se acha na obrigao de criar mecanismos de controle social. cuja importncia, em nvel interacional, j foi vista. Georges Gur-vitch prope-se estudar, sem contar os a pror tradicionais, oS dife-rentes meios a que recorrem os sistemas sociais, em todos os nveis, a fim de favorecer a interiorizao das normas ou dos ideais pr-prios do sistema e limitar, por contragolpe, a amplitude dos desre-gramentos. A sociologia do controle social no , segundo Gurvitch, de inspirao conservadora, porque diz respeito a todas as sociedades. Ainda ser preciso confrontar estas ltimas com a histria e com a mudana social.

    Certas tipologias clssicas dos sistemas sociais j lvavam em conta a histria, mas freqentemente refletiam concepes evolucio-nistas e lineares, segundo as quais a mudana social procede, de algum modo, da prpria natureza das coisas. Se a clebre oposio entre comunidade e sociedade parece prxima, ela tambm, dos tipos sociais descritos por Cooley, Park ou Redfield, deles, todavia, se distingue. porque se inspira, parcialmente, no que lhe diz respeito,

    14

    numa aproximao marxista e conflitual. 'Publicada em 1887, isto , anteriormente aos trabalhos dos autores que acabamos de evocar, a obra de Tonnies confere, efetivamente, um lugar mais importante aos fenmenos histricos de ordem conflitual. Se, por seu carter orgnico e natural, a "comunidade" parece comparvel sociedade tradicional de Park ou de Redfield, ou, ainda, em outro nvel. ao grupo primrio de Cooley, respousa, tambm, no que lhe toca, sobre uma organizao coletiva da produo. Esta organizao, ao con-trria, desaparece, numa "sociedade" que veio a ser totalmente anta-gnica e onde se defrontam as classes sociais. Por detrs elo aspect') atomstico da "sociedade", sobre o qual muito se debruaram os socilogos da sociedade de massa, Tnnies focaliza, assim, a exis-tncia de fenmenos de ordem simultaneamente coletiva e conflitual. O sistema no est mais somente ameaado pela desorganizao: enfrenta o perigo de sucumbir aos conflitos internos.

    Max Weber retoma igualmente essa oposio entre a comunida-de e a sociedade, mas d-lhe um carter mais analtico, no consti-tuindo ainda, a seus olhos, tais relaes sociais, determinadas pelos tipos de ao expostos precedentemente, reais sistemas sociais. As relaes de comunalizao e de sociao no esto mais ligadas, ago-ra, mudana social e histria: em graus diversos, parecem carac-terizar, doravante, todos os tipos de sociedade. No mesmo sentido, o texto de Schmalenbach tem por objeto, sobretudo, distinguir da comunidade um tipo especfico de relaes sociais, que seria o nico, segundo ele, e diferentemente de Tonnies ou de Weber, a ser fun-dado sobre os sentimentos e a afetividade e que ele denomina a liga. Esta distino suplementar nem por iSS'O altera a natureza dos conceitos que apresentam, corno em Weber, um carter puramente analtit.:o e no se referem, absolutamente, a um todo social estrutu-rado. Com Durkheim, ao contrrio, encontramos, de novo, esta viso dos conjuntos e, atravs dela, a histria. Sua oposio entre a soli-dariedade mecnica e a solidariedade orgnica se constri, parcial-mente, em relao dicotomia elaborada por Tnnies. No mbito da solidariedade mecnica, como no da comunidade, os homens formam um todo (funcional e orgnico em Tnnies) provocado pela seme-lhana e mantido pela coero, segundo Durkheim. O modelo de T6nnies, portanto, j se transformou consideravelmente, tomando Durkheim, no que se lhe refere, como varivel mais ou menos inde-pendente, o ~stado da diviso do trabalho e no a natureza coletiva da organizao social. A comunidade repousa sobre a comunho, num caso (Tnnies), e, no outro caso (Durkheim), sobre a coero. Numa perspectiva relativamente evolucionista, a diviso do trabalho devia criar, segundo Durkheim, uma solidariedade orgnica fundada na complementaridade, no intercmbio recproco e na coeso do gru-

    15

    .. !

  • po. Todavia, ele o primeiro a mostrar como a diviso do trabalho constrangida e a diviso do trabalho anmica vo contrariar o nas-cimento dessa solidariedade orgnica entre os homens. Com o pro-blema da herana, que torna desiguais as oportunidades das classes sociais e impede a adequao entre funo e competncia de Se esta-belecer, chega-se a uma diviso patolgica do trabalho e a uma sociedade conflitual, que no deixa de lembrar a "sociedade" de Tnnies. Assim que os modelos clssicos da mudana social e da organizao das sociedades encontram, novamen te, a histria.

    16

    CAPTULO I

    OS FUNDAMENTOS DA INTERAO

    QUE UMA SOCIEDADE?

    GABRIEL TARDE

    Estamos, repito-o, em relao de soci-edade bem mais estreita com as IJessoas com que mais nos parecemos por identidade de ocupao e de educao, sejam embora noSSas rivais, do que com aquelas de quem muito precisamos. isto patente entre advogados, entre jor nalistas, entre magistrados, em todas as profisses. Tem-se muita razo, por isso, de chamar sociedade, na linguagem ordinria, a wn grupo de pessoas semelhantemente educadas, de idias 'e de senti-mentos em desacordo, talvez, mas possuindo um mesmo fundo comum e que se vem e entreinfluenciam por prazer. Quanto aos emprega-dos de uma mesma fbrica, de uma mesma loja, que se renem para a~sistncia mtua, ou colaborao, formam eles uma sociedade comercial, industrial, no uma sociedade sem epteto, no uma socie-dade pura e simples.

    Ach0-me em relao social COm os outros homens, na medida em que eles tm o mesmo tipo fsico, os mesmos rgos e os mes-mos sentidos que eu? Acho-me em relao social com um surdo-mudo no instrudo, que muito se parece comigo de corpo e de rosto? No. Ao contrrio, os animais de La Fontaine - a raposa, a cegonha, o gato, o co apesar da distncia especfica que os sepa-ra, vivem em sociedade, porque falam a mesma linguagem. Come-se, bebe.-se, digere-se, anda-se, grita-se, sem que tudo isso tenha sido aprendido. Por conseqncia, isso tudo puramente vital. Mas, para falar, necessrio ter ouvido falar. Prova-o exemplo dos surdos-n1L1.clos, que so mudos por serem surdos. Portanto, comeo a sen-

    17

  • tir-me em relao social, muito fraca, verdade, e insuficiente, com todo homem que fala, mesmo em lngua estrangeira, sob a condio de que nossas duas lnguas me paream ter uma fonte comum. O liame social vai-se estreitando, medida que outros traos comuns se juntam queles, todos de origem imitativa.

    Da a seguinte definio de grupo social: uma coleo de seres, na medida em que esto a imitar-se entre si Ou em que, sem atual-mente se imitarem, se parecem uns com os outros, sendo seus traos connlllS cpias antigas de um mesmo modelo (Excerto de GABRIEL TARDE, Les [ois de l'imitation, Paris, A1can, 1900, pg. 70, pg. 73).

    o PROBLEMA DA SOCIOLOGIA

    GEORG SIMMEL

    o mais importante e o mais fecundo dos progressos que a hist-ria e a cincia do homem em geral realizaram em nosso tempo con-siste, segundo a opinio mais generalizada, na derrota das concepes individualistas. Os destinos individuais ocupavam, outrora, na his-tria, o primeiro plano do quadro. .olhamos agora como sendo a potncia verdadeiramente ativa e decisiva as foras sociais, os movi-mentos coletivos, dos quais a parte que cabe ao indivduo se deixa raramente destacar com nitidez: a cincia do homem tornou-se a cincia da sociedade humana. Nenhum objeto das cincias do esprito pode subtrair-se a esta converso. Mesmo onde a personalidade parece estar em seu apogeu, como na atividade artstica, procuramos na evoluo da raa as causas que tiveram que conduzir ~ impres-ses do belo, e, na situao particular da sociedade contempornea, as ocasies que deviam fazer nascer tal ou qual forma da produo artstica. Na religio como na vida cientfica, na moral como na cultura tcnica, na poltica como no estudo, quer da sade, quer das enfermidades da alma e do corpo, por toda parte se estende a ten dnci&. para reduzir todo acontecimento individual ao estado hist rico, s necessidades e s atividades do conjunto.

    Mas, se essa tendncia do conhecimento to geral e penetra por toda parte, bem poder servir de princpio regulador a todas as cincias do esprito; no poder fundar, no meio delas, conceden-do-lhe um lugar particular, uma cincia especial independente. Se a

    18

    sociologia devesse, realmente, como se pretende, abarcar o conjunto de tudo quanto acontece na sociedade e executar a reduo de todo o jnd~ vi dual ao social. nada seria. ento, seno um nome geral para a totalidade das modernas cincias do esprito. Do mesmo passo, abriria a porta s generalizaes vazias e s abstraes, apangio da filosofia. Como esta ela gostaria, reunindo as coisas mais dispa-ratadas numa unidade toda ideal ou toda formal, constituir um s imprio do mundo cientfico, chamado a dividir-se, como o imprio do mundo poltico, em governos particulares ...

    H sociedade, no sentido lato da palavra, onde quer que haja ao recproca dos indivduos. Desde a efmera reunio de pessoas que saem juntas a passear at unidade ntima de uma famlia ou de rima guilda da Idade Mdia, podem-se constatar oS graus e os gneros mais diferentes de associao. As causas particulares e os fins, sem os quais no existe associao, naturalmente, so como o corpo, a matria do processo social. O resultado de tais causas, a procura de tais fins acarreta, necessariamente, uma ao recproca, uma associao entre os indivduos, e a est a forma que revestem os contedos. Separar essa forma destes contedos, por meio da abstrao cientfica, tal a condio sobre que assenta toda a exis-tncia de uma cincia especial da sociedade. Porque se torna claro, imediatamente, que a mesma forma, a mesma espcie de associa-o pode adaptar-se s matrias, aos mais diferentes fins. No apenas a associao de um modo geral que se acha tanto numa comu-nidade religiosa como numa conjurao, numa aliana econmica como numa escola de arte, numa assemblia do povo como numa famlia, mas semelhanas formais estendem-se ainda at s confi-guraes e s evolues especiais dessas sociedades. Nos grupos sociais, que seus objetivos e seus caracteres morais tornam to dife-rentes quanto possvel imaginar, encontramos, por exemplo, as mesmas formas da dominao e da subordinao, da concorrncia, da imitao, da oposio, da diviso do trabalho. Encontramos a formao de uma hierarquia, a encarnao dos princpios diretivos dos grupos em smbolos, a diviso em partidos. Encontramos todos 05 estdios da liberdade ou da dependncia do indivduo em relao ao grupo, o entrecruzamento e a superposio dos prprios grupos e certas formas determinadas de sua reao contra as influncias exteriores. Esta semelhana das formas e das evolues, que se pro-duz, com freqncia, no meio da maior heterogeneidade das deter-minaes materiais dos grupos, revela, a, afora tais determinaes, a existncia de foras prprias, de um domnio cuja abstrao 1egtima. o da associao como tal e de suas formas. So formas que se desenvolvem ao contacto dos indivduos, de maneira relativa-

    19

    ./

    I i

    I! : f

  • mente independente das causas matenalS (atuais, singulares) de. tal contacto, e sua soma constitui esse conjunto concreto chamado, por abstrao, sociedade.

    Para falar com verdade, nos fenmenos histricos particulares, ,o contedo e a forma social constituem, de fato, uma combinao indissolvel. No h constituio ou evoluo sochl que seja pura-mente social e que no seja, ao mesmo tempo, constituio ou evo-luo de um contedo. Contedo que pode ser de espcie objetiva: a produo de uma obra, o progresso da tcnica, o reinado de uma idia, a prosperidade ou a runa de um grupo poltico, o desenvolvi-mento da linguagem ou dos costumes. Ele tambm pode ser de natureza subjetiva, isto , dizer respeito s inumerveis partes da pessoa, as quais a socializao refora, satisfaz, desenvolve na dire-o da moralidade ou da imoralidade. Mas esta penetrao absoluta do contedo e da forma, tal como se apresenta na realidade histrica .. no impede que a cincia, por abstrao, os dissocie. Assim que ~ geometria no considera seno a forma espacial do corpo, a qu'a1, todavia, no existe por si s, mas sempre em e com uma matria, que objeto de outras cincias. Mesmo o historiador, no sentido estreito da palavra, no estuda seno uma abstrao dos aconteci-mentos reais. At ele destaca da infinidade das aes e das palavras reais, da soma de todas as particularidades interiores e exteriores, os processos que cabem em determiI1:.ados conceitos. Nem tudo o que Lus XIV ou Maria Teresa fizeram da manh noite, nem todas, as palavras ocasionais de que revestiram suas resolues polticas, nem todos os inumerveis acontecimentos psquicos que as precederam, a ela anexados por uma necessria ligao de fato, mas no por Ulna relao objetiva~ nem tudo isso entrar na "histria"; mas o con-ceito da importncia poltica ser aplicado aos acontecimentos reais, e no se procurar nem se relatar seno o que lhe pertence, o que, em verdade, efetivamente no foi assim real, isto , no aconteceu segundo essa pura coerncia interior e em conformidade coni essa abstrao. Do mesmo modo, a histria econmica isola de certa for~ ma tudo quanto concerne s necessidades corporais do homem e ,aos meios de satisfaz-las da totalidade dos acontecimentos, ainda que, talvez, no haja um s acontecimento que no tenha, realmente, certa relao com aquelas necessidades. A sociologia, como cincia parti-cular, no proceder diferentemente. Abstrai, para disso fazer objeto de uma observao especial, os elementos, o lado puramente social da totalidade da histria humana, isto , do que acontece na socie-dade. Em outros termos, e para exprimi-lo COm uma conciso um tanto paradoxal, estuda ela, na sociedade, o que no seno fi socie-

    20

    dade" (2) (GEORG SIM MEL, "Le probleme de la sociologie", Revue de MtaPhysique et 1f.2 Morale, 1894 (II), pgs. 497-502).

    A ATIVIDADE SOCIAL E AS RELAES SOCIAIS

    MAX WEBER

    I. Determinantes da atividade social

    Como qualquer outra atividade, a atividade social pode ser deter-' minada: a) de forma racional em finalidade (zweckrational) , por:

    (2) Se, como eu o creio, o estudo das foras, formas e desenvolvimentos da associao, justaposio, colaborao ou subordinao dos indivduos s pode ser objeto de uma sociologia como cincia particular, deve-se tambm fazer caber a, naturalmente, o estudo das determinaes tomadas pela forma de associa~ sob a influncia da matria particular em que ela se realiza. Estuda-se, por exemplo, a formao da aristocracia. Alm da diviso das massas primiti'iamente homogneas, da solidariedade daqueles que adquiriram realce e Que formam uma unidade de classe, de sua repulsa regular em relao s personalidades que lhes so superiores e, bem assim, em relao s massas que lhes so inferiores,' ainda preciso, de um lado, pesquisar os interesses materiais que, de- modo geral, provocaram esses processos e, de outro lado, determinar as modificaes que a diferena dos modos de produo, assim como a diferena das idias dominantes, lhes impem. Mesmo certas determinaes, que parecem de natu-reza individual e que tm o efeito, antes de rpais nada, de juntar-se aos processos sociais, logo se reduzem a estes, desde que se faa das formas da sociedade uma idia suficientemente ampla. As sociedades secretas, por exemplo, levantam um problema sociolgico particular: Como o sigilo age sobre a associao e (jue forma~ particulares esta assume sob a condio daquele, de tal sorte que reunies que, a cu aberto, ofereceriam a maior diversidade adquirem certos traos comuns s pelo fato do sigilo? Parece, de incio, aqui, que a associao especificada por um princpio todo exterior aos princpios sociais. Mas afigu-ra-se, olhando melhor a, que o sigilo por si mesmo j pertence s formas da vida social. Ele no pode existir seno onde vivem indivduos conjuntamente; constitui uma forma determinad:3. de suas relaes recprocas, a qual, longe de ser de natureza puramente negativa, traz consigo hbitos sociais positivos, todos. De um modo geral, importa fazer entrar na sociologia todas as formas de relaes dos homens entre si, no somente as associaes e as unie::; no sen-tido limitado, isto , no sentido de uma cooperao ou de uma unificao harmoniosa em um nico crculo: a luta e a concorrncia tambm fundam relaes ou, antes, so relaes de ,reaes recprocas e mostram, apesar da diferena dos casos, uma similitude de formas e de evolues. Elas tambm

    21

    I !

    I I I.i; I

  • expectaes do comportamento dos objetos do mundo exterior ou do de outros homens, explorando-se tais expectaes como "condi~ es " 011 corno "meios" para se chegar racionalmente aos fins pr-prios, maduramente refletidos, que se deseja. atingir; b) de forma racional em valor (wertrational) , pela crena no valor intrnseco incondicional - de ordem tica, esttica, religiosa ou outra qualquer - de um comportamento determinado que vale por si mesmo e inde-pendentemente de seu resultado; c) de forma afetual (affektuel) e, particularmente, emocional, por paixes e sentimentos atuais; d) de forma tradicional (traditional) , por costume inveterado.

    1. O comportamento estritamente tradicional - exatamente como a imita-o por simples reao (ver pargrafo precedente) - situa-se absolutamente nos limites, e muitas vezes alm, do que se pode chamar, em gerd, uma atividade orientada "significativamente". Com efeito, ele no , quase sempre, seno um modo morno de reagir a excitaes habituais, o qual se obstina na direo de uma atitude adquirida em outros tempos. A massa de todas as atividades dirias familiares se aproxima desse tipo que entra na sistr:mtica, no somente como caso limite, mas tambm porque (ver-se- isso mais adiante) (> apego aos costumes pode ser mantido conscientemente em propores e num sentido variveis: neste caso, o tipo em questo se aproxima, j, do tipo discutido sob o nmero 2.

    2. O comportamento estritamente afetual se situa igualmente no limite e muitas vezes alm daquilo que orientado de maneira significatiz:amente consciente; pode no ser seno uma reao sem f reios a uma excitao ins-lita. Temos pela frente uma sublitnao, quando a atividade condicionada pelos afetos aparece como um esforo consciente para aliviar um sentimento; neste caso, ela se aproxima. na maior parte do tempo (nt porm, sempre), de vma "racionalizao em valor", ou de uma atividade em finalidade. ou de ambas as coisas ao mesmo tempo.

    3. A orientao afetual e a orientao racional em valor da atividade se diferenciam uma de outra pelo fato de que a segunda elabora, conscientemente, 0,

  • I

    I I

    bilidade de que se agir socialmente de maneira (significativamente) expressvel, sem que seja necessrio precisar, antes do mais, sopre que se funda esta probabilidade.

    1. Um mtnlmo de re1ao na ao recproca de uns sobre os outros consti-tui. pois, a caracterstica conceptual. O contedo pode ser extremamente diver-50: luta, hostilidade, amor sexual, amizade, piedade, intercmbio comercial, " execuo", .. esquivana" ou .. ruptura" de um acordo, li concorrncia" eco-nmica, ertica ou outra qualquer, comunidade feudal. nacional ou de classe (No caso em que estas ltimas engendrem uma "atividade social" que ultra-passe o simples fato de viver em comum: Gemeinsamkeit. A respeito volta-remos a falar mais adiante). O conceito no se pronuncia sobre a existncia de uma "solidariedade" entre os agentes ou sobre o contrrio.

    2. Trata-se, sempre, do "contedo significativo" emprico visado pelos' participantes, quer efetivamente, no caso partiCular, quer em mdia, quer 'em um tipo "puro" construdo e nunca num sentido normativamente "justo" ou metafisicamente 11 verdadeiro". Mesmo quando se trata de pretensas "estru-turas sociais ", como o "Estado ", a "Igreja ", a .. confraria ", o .. casamento'" etc., a relao social consiste, exclusiva, pura e simplesmente, na probabilidade de que, segundo seu contedo significativo, existiu, existe ou existir uma atividade recproca de uns sobre outros de certa maneira expressvel. preciso apegar-se sempre a isso, a fim de evitar uma concepo "substanciali5ta" 'de 3emelhantes conceitos. Do ponto de vista sociol(.gico, um "Estado" cessa; por exemplo, de "existir", desde que desaparea a /lrobabilidad(' de (Jt1

  • o JOGO LIVRE (FOLGUEDO), O JOGO REGULAMENTADO E "O OUTRO-GENERALIZADO"

    GEORGE H. MEAD

    Pode-se chamar comunidade organizada ou ao grupo social que do ao indivduo a unidade do self fi o outro-generalizado". A ati-tude do outro-generalizado a de toda a comunidade (3). Assim, no caso de um grupo social tal como a equipe, a equipe que o outro-generalizado, na medida em que entra (como processo organi-zado ou atividade social) na experincia de qualquer um de seus membros.

    Se o dado individuo humano deve adquirir um self no sentido mais amplo, no lhe basta assumir simplesmente as atitudes dos outros para consigo e para com eles mesmos, ou introduzir esse processo social em sua experincia particular: -lhe tambm preciso assumir. da mesma maneira por que ele adota suas atitudes para consigo e para com eles mesmos, suas atitudes respeitantes s diversas fases ou aspectos da atividade social comum ou aos conjuntos de empreen-dimentos sociais, em que esto todos engajados como membros de uma sociedade organizada. -lhe ento preciso agir relativamente aos diversos projetos sociais realizados em dado momento, ou relativa-mente s vrias fases maiores do processo social geral, que constitui a vida dessa sociedade e de que tais projetos so manifestaes especficas. Em outros termos, semelhante importao das atividades mais gerais de uma dada totalidade social (ou sociedade organizada como tal) no campo de experincia de qualquer indivduo engajado ou compreendido nesse todo constitui a base essencial, a condio necessria do mais amplo desenvolvimento do seIf. Somente na nl:-

    (3) possvel, para objetos inanimados, no menos do que para os orga-nismos humanos, constituir partes do outro-generalizado e organizarIo - o Gutro completamente socializado - para qualquer indivduo humano dado. na medida em que ele reage a tais obj ctos de maneira social (por meio do meca-nismo do pensamento, da conversao por gestos interiorizada). Uma coisa Qualquer - um objeto, ou um conjunto de objetos, animado ou no, humano, animal, ou simplesmente fsico - qual ele reage socialmente constitui um

  • suas partes) a que pertence; atitudes que concernem aos diferentes problemas sociais que se apresentam a esse grupo ou a essa comu-riidade num determinado momento. Tais problemas se apresentam em relao aos projetos sociais respectivamente diferentes, ou em .relao s empresas cooperativas organizadas, de que se ocupa o grupo, ou a comunidade. Como participante individual desses proje-tos sociais ou empresas cooperativas, dirige ele sua prpria conduta, em conseqncia. Em poltica, por exemplo, o indivduo se identifica com todo um partido e toma as atitudes organizadas desse partido para com o resto da comunidade social dada e para com os proble-mas que se oferecem ao partido, na situao social dada. Por con-seguinte, reage ou responde por atitudes organizadas do partido for-mando um todo. Entra, assim, num conjunto especial de relaes sociais com todos os outros indivduos do mesmo partido poltico. De igual maneira, entra ele nos diversos outros conjuntos especiais de relaes sociais com vrias outras classes de indivduos, que so membros de um desses subgrupos particulares assim organizados e de :que ele prprio um membro na sociedade global dada, ou na comu-nidade social. Esses subgrupos so determinados por sua funo "Social. Nas sociedades globais mais fortemente organizadas, desenvol-vidas e complicadas (as do homem civilizado), h duas espcies de dasses socialmente funcionais, duas espcies de subgrupos a que se pode pertencer e cujos membros entram com o indivduo num con-j unto especial de relaes sociais. So primeiramente as classes sociais ,ou subgrupos concretos, tais como os partidos polticos, os clubes, as corporaes (que so, todos, verdadeiras unidades socialmente funcionais), pelos quais os membros individuais esto ligados dire-tamente uns aos outros. Os outros so subgrupos abstratos, como as categorias de devedor ou de credor, cujos membros no esto ligados uns aos outros seno mais ou menos indiretamente e: que no funcionam como unidades sociais seno mais ou menos indire-tamente, mas representam ilimitadas possibilidades de alargar, rami-ficar e enriquecer as relaes sociais entre todos oS membros da" sociedade dada, como todo organizado e unificado. A filiao de um dado indivduo a diversos desses subgrupos abstratos permite-lhe entrar em relaes sociais definidas (todavia, indiretas) com um numero quase infinito de outros indivduos, pertencentes, tambm, 'a um dos citados subgrupos abstratos, que transpem as linhas, de demarcao funcional separadoras das diferentes comunidades sociais humanas. Essas relaes compreendem os membros de vrias comu-,nidades que tais e, em alguns casos, de todas. De todas as indica-,das classes sociais abstratas (ou subgrupos), a mais compreensiva, a mais extensa , naturalmente, a definida pelo universo do discurso

    28

    lgico (ou sistema de smbolos universalmente significativos) deter-minado pela participao e interao comunicativa dos indivduos. Com efeito, de todas essas classes (ou subgrupos), a definida pel unidade de linguagem tambm aquela que compreende o maior nmero de membros possvel, que permite a uma ilimitada coleo de indivduos entrar numa como relao social, to indireta' ou abstrata quanto possa ser. Tal a relao que se produz, graas ao funcionamento universal dos gestos como smbolos significativos, no interior do processo social humano geral de comunicao.

    Ora, mostrei que existem duas fases gerais no pleflo desenvolvi-mento do self: na primeira, o self constitui-se, simplesmente, pela organizao das atitudes particulares que os outros tomam para com ele e para com eles mesmvs nos atos sociais especficos de que aquele participa com estes. Mas, na segunda fase do completo desenvolvi.,. menta do self, este no se constitui somente por uma organizao de tais atitudes individuais particulares, mas tambm por aquela das atitudes sociais do outro-generali.zado, ou do grupo social como um todo a que ele pertence. Estas atitudes sociais se introduzem no campo da experincia direta do indivduo e esto compreendidas, como elementos, na estrutura ou constituio do self, da mesma for-ma que as simples atitudes de outrem. .o indivduo as realiza, ou c'onsegue adot-las, organizando mais e generalizando essas atitudes dos outros indivduos particulares no quadro de suas relaes sociais e de suas implicaes tambm sociais. Assim, o self chega ao seu desenvolvimento completo, organizando as atitudes individuais de outrem nas do grupo social organizado e tornando-se, ento, uma reflexo individual do modelo sistemtico geral de comportamento scial ou grupal em que est comprometido com outrem. um mo-delo que entra como um todo na experincia do indivduo, por meio dessas atitudes do grupo organizado que ele toma para consigo mes-mo (atravs do mecanismo de seu sistema nervoso central), da mesma maneira que adota as atitudes individuais de outrem.

    O jogo regulamentado possui uma lgica que permite a orga-nizao do self: h um alvo definido a atingir, e as aes dos dife-rentes indivduos esto ligadas umas s outras em relao a es:,e fim, de sorte que no entram em conflito. No se est em oposio c'onsigo mesmo, tomando-se a atitude de um outro companheiro de equipe: se algum toma a atitude de lanar a bola, pode tambm ter a reao de peg-Ia. As duas atitudes esto ligadas de tal sorte que servem ao prprio objetivo do jogo. Esto ligadas umas s outras de maneira unificadora e orgnica. Uma unidade definida , pois, introduzida na organizao de outros self, quando chegamos fase do jogo regulamentado como distinto da situao do jogo livre, em que no h seno uma simples sucesso de papis. Esta

    29

    4 -T.S.

    : f

    J

    I 1

    -

  • ltima situao, naturalmente, caracteriza a personalidade da criana, que um certo ser num momento, e um outro ser mais tarde. Sua atual identidade no determina o que ser dentro de alguns instan-.tes. isto ao mesmo tempo o encanto e a insuficincia da criana ... O jogo regulamentado ilustra, portanto, a situao que d nascimen-to a uma personalidade organizada. Na medida em que a criana adota, efetivamente, a atitude de outrem, a qual lhe permite deter-minar aquilo que vai fazer em relao a um fim comum, torna-se um membro orgnico da sociedade. Adota os costumes dessa sociedade, permitindo que a atitude de outrem controle sua prpria expresso imediata. Isso implica um certo processo organizado ...

    Tal o processo a partir do qual nasce a personalidade. Esse processo, eu o disse, o em que a criana assume o papel de outrem, e a linguagem desempenha, a, uma funo essencial. Funda-se a linguagem, sobretudo, no gesto vocal, veculo das atividades coope-rativas de uma comunidade. A linguagem, no seu sentido significa-tivo, o gesto vocal tendente a provocar no indivduo a atitude que ele provoca em outrem. este aperfeioamento do self pelo gesto que produz as atividades sociais conducentes, por seu turno, a assumir o papel de outrem. "Assumir um papel" locuo um pouco infeliz, porque evoca a atitude de um ator, atitude mais elaborada, na realidade, que a que est implicada em nossa prpria experin-cia. Por essa razo, no corresponde exatamente quilo que quero dizer. Vemos COm o mximo de clareza esse processo, sob uma forma elementar, nas situaes em que a criana, jogando, assume diferen-tes papis. Aqui, o fato de que ela est pronta a pagar, pcr exem-plo, provoca a atitude daquele que recebe o dinheiro. Esse mesmo processo desperta nela as atividades correspondentes daqueles que a esto implicados. O indivduo Se estimula com a reao que pro-VOca em outrem. Ele age, numa certa medida, para reagir a essa situao. No jogo, a criana desempenha nitidamente o papel que ela mesma provocou. o que d, disse-o eu, um carter definido ao indivduo, carter que corresponde ao estmulo que o afeta a ele prprio, como ele afeta os outros. Esse carter do outro, que entra numa personalidade, , no indivduo, a reao que o seu gesto pro-voca nesse outro.

    Podemos ilustrar nosso conceito-chave, referindo-nos noo de propriedade. Se dissermos: " meu, o dono disso sou eu", seme-lhante afirmao provocar um certo conjunto de reaes que deve ser o mesmo em qualquer comunidade onde a propriedade existe. Ela implica uma atitude organizada em relao propriedade, ati-tude comum a todos os membros do grupo. Tem-se necessariamente uma atitude possessiva definida em face dos prprios bens pessoais e de respeito para com os de outrem. Essas atitudes, como conjun-

    .30

    tos organizados de reaes, devem existir em todos, de sorte que um indivduo, falando assim, provoca em si mesmo a reao de outrem. Provoca a reao daquilo que chamei o outro-generalizado . O que torna possvel a sociedade so tais reaes comuns, tais ati-tudes organizadas em relao propriedade, religio, educao da famlia. Naturalmente, quanto mais a sociedade extensa, tanto mais universais devem ser esses objetos. Em todos os casos, deve haver um conjunto definido de reaes que podemos considerar 'Como abstratas e que podem pertencer a um grupo muito extenso. A pro-priedade , em si mesma, um conceito grandemente abstrato: aquilo que o indivduo pode controlar, com excluso do mais. Tra-ta-se de uma atitude diferente da do co para com um osso. Um co lutar contra qualquer outro co que tente arrebatar-lhe o osso. Ele no toma a atitude do outro co, ao passo que o homem que diz "Isto meu" toma a atitude de outrem. Ele apela para os seus direitos, porque pode assumir a atitude que tm todos os outros membros do grupo para com a propriedade: assim, provoca em si mesmo a atitude deles.

    O que constitui o self completo a organizao das atitudes co-muns ao grupo. Um homem possui uma personalidade pcrque per-tence a uma comunidade, porque "assume" as instituies dessa comunidade na sua prpria conduta. Utiliza a linguagem como meio de receber sua personalidade. Depois, atravs do processo de adoo dos diversos papis que todos DS outros fornecem, chega a adotar a atitude dos membros da comunidade. Tal , em certo sentido, a estru-tura da personalidade do homem. Existem certas reaes idnticas~ que cada indivduo possui para com determinadas coisas comuns. E, na medida em que essas reaes comuns so despertadas no indiv-duo, quando ele copia outro, realiza seu prprio self. A estrutura sobre Que se constri o seIf essa reao comum a todos, porque preciso ser membro de uma comunidade para ser um self. Tais reaes so atitudes abstratas, mas constituem, exatamente, o que chamamos o carter de um homem. Do-lhe o que chamamos seus princpios, isto , as atitudes admitidas por todos os membros da comunidade em relao aos valores desse grupo. Ele se substitui ao outro-generalizado, que representa as reaes organizadas de todos os membros do grupo. o que guia a conduta controlada por princ-pios. Aquele que possui um tal conjunto organizado de reaes um homem que, dizemos, tem um carter, na acepo moral do termo.

    Por conseguinte, a estrutura das atitudes que constitui um self, distinto de um conjunto de hbitos, tais como aS entonaes parti-culares de que nos servimos, ao falar: cada um possui, sem disso

    31

    ; ~ li " !

  • se dar conta, um conjunto de hbitos concernentes expresso vocal. Tais hbitos nada significam para ns; no ouvimos as entonaes de nossa e1ocl1o como as ouvem os outros, a menos que lhes pres-temos I1ma ateno especial. Os hbitos de expresso emocional per-tencentes ao nosso falar so semelhantes. Podemos saber que nos exprimimos de maneira jovial, mas o processo, com todos os por-menores, no torna nossa conscincia. Existe todo um feixe de tais hbitos que no entram no self consciente, mas que ajudam a construir o que se chama o self inconsciente.

    Em suma, entendemos por conscincia de self o fenmeno que consiste em despertar em ns prprios o conjunto de atitudes que provocamos em outrem, particularmente quando tais atitudes repre-sentam aquelas importantes reaes que caracterizam os membros da comunidade (Excerto de GEORGE H. MEAD, L'esprit, le soi et la .5wit, Paris, P.U.F., pgs. 131-138).

    OS TR~S TIPOS DE PERSONALIDADE

    WILLJAM L TROMAS e

    FLORIAN ZN ANIECKI

    A situao, tal como se apresenta ao indivduo, no nunca seme-lhante, exatamente, a uma situao passada. Deve ele redefinir, conscientemente, cada situao e assimil-la a certas situaes ante-riores, se quiser dar-lhe a mesma soluo. o que a sociedade espera dele, quando exige que organize sua vida de maneira estvel. No lhe pede que reaja instintivamente, do mesmo modo, na presena das mesmas condies materiais, mas que elabore, refletidamente, situa-es sociais similares, mesmo que as condies materiais sejam dife-rentes. A uniformidade do comportamento que ela tende a impor ao indivduo no um conjunto uniforme de hbitos inatos, mas um conjunto de regras conscientemente aplicadas. A fim de tornar a realidade social harmnica com as suas necessidades, deve o indi-vduo fornecer, no uma srie uniforme de reaes, mas, sim, estru-turas gerais de situaes. A organizao de sua vida composta de um conjunto de regras, que se aplicam a determinadas situaes e que podem ser traduzidas por frmulas abstratas. Princpios morais,

    32

    prescrIes legais, frmulas econmicas, ritos religiosos, costumes sociais so outros tantos exemplos de estruturas.

    A nitidez das atitudes que compem 11111 carter e a correspondente esquematizao dos dados sociais no modo pejo qual um indivduo organiza sua vida deixam lugar, entretanto, a um leque muito amplo no que concerne a uma questo fundamental: a extenso das pos-sibilidades de evoluo ulterior, que lhe restam, aps sua estabili-zao. Isto depende da natureza das atitudes que o carter apresenta, das estruturas de organizao e, tambm, da maneira como as duas coisas so aproximadas e sistematizadas. Trs casos tpicos podem aqui ser definidos.

    O conjunto das atitudes que constituem o carter pode ser tal que quase impea a formao de uma nova atitude em dadas condi-es de vida, porque as atitudes refletidas do indivduo atingiram tal fixidez que ele j no sensvel seno a uma s categoria de influncias, as que formam a parte mais permanente de seu meio social. As nicas possibilidades de evoluo que, portanto, restam ao in:divduo so, ou as mudanas lentas que experimentar com a idade e que o tempo trar ao seu meio social, ou um transtorno de condies de tal forma radical que destruir, ao mesmo tempo, os valores a que ele se havia adaptado e, muito provavelmente, sua prpria personalidade. O "filisteu" a encarnao literria desse tipo de persDnalidade. Ope-se ao tipo "bomio", cujas possibili-dades de evoluo no esto fechadas pela simples razo de que seu carter permaneceu num estdio inacabado de formao. Certos aspectos de seu carter se acham, ainda, no estdio primrio e, se outros talvez se intelectualizaram, continuam sell1 nenhuma relao entre si e no formam um conjunto estvel e sistematizado. Isto no exclui, entretanto, a formao de novas atitudes, o que deixa o indivduo aberto a todas as influncias. Em oposio, a estes dois tipos, encontra-se uma terceira categoria de indivduos, cujo carter se estabilizou e estruturou, mas que oferece a possibilidade e, mes-

    l110~ a necessidade de uma evoluo, porque as prprias atitudes refletidas que o compem apresentam uma tendncia para a mu-dana, regulad, por projetos de atividade produtiva: o indivduo permanecer aberto a todas as influncias que estiverem de acordo com sua evoluo preconcebida. Este tipo o representante do indi-vduo criativo.

    Distino anloga deve ser feita quanto s estruturas das situa-es sociais que compem o sistema segundo o qual o indivduo organizou a sua vida. A aptido para definir cada situao que se apresenta sua experincia no necessariamepte uma prova de superioridade intelectual. Pode, simplesmente, traduzir um limite s

    33

  • pretenses e aos interesses manifestados e refletir uma estabilidde nas condies externas, que no permite perceber as situaes radi-calmente novas, de sorte que um pequeno nmero de estruturas estreitas suficiente para guiar o indivduo, pela simples razo de que ele no v os problemas que necessitariam de novas estruturas. Tal tipo d~ estrutura forma o tronco comum das tradies sociais, em que cada categoria de situao se acha definitivamente classifi-cada. Semelhantes estruturas se harmonizam, perfeitamente, com o carter do "filisteu", que , por conseguinte, sempre, um conformista, aceitando geralmente a tradio social no que ~la tem de mais per-manente. Evidente que cada mudana imprevista e importante em suas condies de vida acarreta uma desorganizao de sua atividade. Ele continua, enquanto pode, pondo em prtica as antigas estruturas, e, numa certa medida, a sua definio caduca de novas situaes talvez baste para as suas necessidades, se modestas, embora ele no possa .. por conseqncia, rivalizar com aqueles que tm necessidades mais exigentes e estruturas mais eficazes. Mas, assim que v sua atividade consumir-se por malogros, acha-se completamente perdido. A situao torna-se-Ihe totalmente vaga e incerta. Ele est pronto a aceitar no importa que definio que se lhe proponha e se mos tra incapaz de conservar uma linha permanente de atividade. o caso de qualquer membro conservador e intelectualmente limitado de uma comunidade estvel, seja qual for a sua classe social, quando se v transferido para uma outra comunidade, ou quando seu prprio meio sofre uma mudana rpida e inesperada.

    Em oposio a este tipo, encontra-se uma infinita variedade de estruturas na vida das inmeras categorias de "bomios". A estru-tura que o "bomio" escolhe depende de sua posio no momento, a qual ser o resultado, quer de uma atitude instvel primria, quer de uma. atitude caracterial isolada, que lhe far aceitar cegamente no importa que influncia. Nos dois casos, a inconseqncia o trao dominante de sua conduta. Todavia, ele d provas de uma faculdade de adaptao s novas situaes, faculdade que no existe no "filisteu", embora Sua facilidade de adaptao no seja seno provisria e no ponha de novo em questo o sistema segundo o qual ele organiza sua vida. Mas a faculdade de adaptao a novas situaes e a diversidade dos interesses so, entretanto, compatveis com uma conduta ainda mais uniforme do que a ditada pela tradi-o, se o indivduo organiza sua vida, no segundo a crena na inalterabilidade de sua e'scala de valores sociais, mas procurando modificar e alargar seu campo em funo de objetivos bem defini-dos. Podem estes ser puramente intelectuais {)u estticos, e, neste caso, procurar o indivduo definir novas situaes, a fim de ampliar e de aperfeioar seus conhecimentos ou sua interpretao e apreciao

    34

    estticas. Ou estes objetivos sero "prticos" em todos os sentidos do termo - hedonistas, econmicos, polticos, morais, religiosos - e o individuo ento bucar novas situaes, para aumentar a prpria influncia sobre o seu meio e adaptar a seus desgnios uma parte constantemente crescente da realidade social. Tal o homem criativo.

    O "filistell", o "bomio" e o homem criativo so as trs categorias fundamentais da determinao pessoal para as quais propendem as personalidades sociais, no decurso de sua 'evoluo. Nenhuma dessas trs formas de pers{)nalidade se acha encarnada completa e inteira-mente;> num ser humano, em todos os aspectos de seu comportamento. Nenhum "filisteu" literalmente desprovido de tendncias bomias, do mesmo modo que todo "bomio" , tambm, "filisteu", sob certos aspectos. De resto, um indivduo nunca total e exclusivamente cria-tivo, se no recorrer a uma certa rotina prpria do "filisteu", a fim de tornar possvel a criao em ()utros domnios e se no utilizar determinadas tendncias bomias para poder rejeitar, de vez em quando, as atitudes cristalizadas e as regras sociais que obstam sua evoluo, mesmo quando incapaz de substitu-las por uma con-duta adequada. Mas enquanto o "filisteu", o "bomio" e () homem c:i.ativo em estado puro no so sen{) tipos extremos da evoluo da personalidade, o prprio processo dessa evoluo vem a ser cada vez mais ntido, na medida de sua progresso. De sorte que, embora no sendo a forma da personalidade humana determinada com ante-cipao, nem pelo temperamento de um indivduo .. nem pel{) seu meio social, o futuro do imaginado indivduo ficar cada vez mais sujeito natureza mesma de sua prpria evoluo. Cada vez mais ele se aproxima do "filisteu", do "bomio" ou do tipo criativo, reduzindo, com isso mesmo, suas possibilidades de se tornar outra pessoa.

    Essas trs categorias gerais, que exprimem os limites da evoluo da personalidade, compreendem, indubitavelmente, um nmero infi-nito de variantes, segundo a natureza das atitudes que constituem o c.arter e as estruturas que compem o sistema pelo qual os indiv-duos organizaram sua vida na sociedade. Se quisssemos, portanto,

    c1as~i ficar as pers{)nalidades humanas pelas formas extremas para as quais se inclinam, nossa tarefa seria muito difcil, seno impossvel, porque teramos que levar em conta todas as variedades de carter e todos os sistemas de organizao de vida. Em cada um dos trs tipos fundamentais, caracteres semelhantes podem corresponder a um nmero infinito de organizaes diferentes, e, inversamente, orga-nizaes semelhantes podem revestir caracteres muito diferentes. Mas, como vimos, importa estudar os caracteres e os sistemas de organizao, no sob sua forma abstrata e esttica, mas sob o ngu-lo de seu desenvolvimento dinmico e concreto. Alm disso, o car-ter e o sistema de organizao - aspectos subjetivo e objetivo da

    35

  • personalidade - evoluem conjuntamente. Porque uma atitude no se pode estabilizar como parte integrante do carter refletido seno sob a influncia de uma estrutura de comportamento. E, inversamen-te, a elaborao ou a aceitao de uma estrutura exige atitude esta-bilizada. Cada processo da evoluo da personalidade compe-se, portanto, de um conjunto complexo e evolutivo, no qual as estrutu-ras sociais, agindo sobre as atitudes preexistentes, produzem, por isso mesmo, novas a.titudes, de tal forma que estas ltimas vm a determinar as tendncias do carter em relao sociedade, realiza-o consciente das possibilidades do carter que o indivduo traz em si. E tais atitudes novas, na sua continuidade intelectual, agem sobre conjuntos preexistentes de valores sociais no domnio da experiri-cia individual e produzem novoS valores, de sorte que cada criao de um valor novo , ao mesmo tempo, a definio de uma situao incerta, o que representa um passo para a elaborao de uma estru-tura de comportamento coerente. No exato dizer, quando da con-tnua interao entre o indivduo e as pessoas sua volta, que ele constitui o ,produto de seu meio, ou que o meio dele o prod'll;to. Antes, os dois raciocnios so exatos. Com efeito, o indivduo no pode somente evoluir seno sob a influncia de seu meio-ambietlte. Mas, em compensao, durante a evoluo que realiza, ele modifica o seu meio-ambiente, definindo novas situaes e trazendo-lhes a soluo que corresponde aos seus desejos e s suas tendncias (Tra-duzido de WILLIAM L THoMAs e FLORIAN ZNANIECKI, The Polish Peasa,nt in Eu,y,ope and America) Nova York, Dover Publications, 1958, t. 2, pgs. 1850-1859, L' ed., 1918-1921).

    A SOCIEDADE CONCEBIDA COMO UMA INTERAO SIMBLICA

    HERBERT BLUMER

    Fao inicialmente questo de sublinhar que as teorias sodolgcas esto, geralmente, em desacordo com os seguintes princpios da inte~ rao simblica: em nossa opinio, a sociedade humana acha-se composta de indivduos que desenvoleram o seu "Eu"; a ao individual uma construo e no uma ao espontnea, sendo cons-truda pelo indivduo merc das caractersticas das situaes que, ele interpreta e a partir das quais ele age. Alm disso, a ao de grupos

    36

    Oll a ao coletiva composta da soma das aes individuais reali-zadas pelos indivduos que interpretam cada ao de outrem. A maioria das teorias sociolgicas no aceita esses diferentes princpios.

    O pensamento sociolgico, com efeito, trata raramente as sodeda" des humanas COmo sendo compostas de indivduos que tm perso" nalidades prprias. Ao invs disso, as teorias sociolgicas supem que os seres humanos so, pura e simplesmente, organismos possuidores de uma certa organizao e que respondem a foras sobre eles se exercendo. Geralmente essas foras se encontram situadas na pr-pria sociedade, como se d no caso do "sistema social", da U estrutura social", da "cultura", da "posio social", do "papel social", da "instituio", da "representao coletiva", da "situao social", da Hnorma social", dos Hvalores". Nessa perspectiva, o comportamen-to dos indivduos como membros de Utna sociedade no seno a resultante de todos aqueles fatores ou foras. Isto seguramente a posio lgica, necessariamente adotada quando o pesquisador explica o comportamento ou as fases do comportamento com ajuda de tal ou de qual daqueles fatores sociais. Os indivduos componentes de uma sociedade humana so considerados como o meio merc do qual tais fatores operam, e a ao social dos mesmos indivduos encarada como a expresso dos mencionados fatores. Esta aproxi-mao nega, ou, pelo menos, ignora, que os seres humanos tm personalidades e que agem depois de se haverem informado. Diga-se de passagem, o "Eu" no levado em conta, quando o agente se pe a examinar as conclutas orgnicas, os mveis, as atitudes, os sentimentos, ou os comportamentos psicolgicos. Tais fatores psico-lgicos tm o mesmo papel que os fatores sociais atrs mencionados: so considerados como fatores atuantes sobre o indivduo, quando ele age. No se referem ao processo de deciso, a que o indivduo recorre. O processo indicado Se ergue contra aqueles fatores psico':' lgicos, como tambm se ergue contra os fatores sociais que exerceni uma influncia sobre o ser humano. :Praticamente, todas as concep,;, es sociolgicas da sociedade humana S'e recusam, assim, a reconhe-cer que os indivduos que a compem possuem o "Eu" desenvolvido:

    Por conseguinte, tais concepes sociolgicas no consideram as aes sociais dos indivduos na sociedade humana como sendo sua prpria construo, graas a um processo interpretativo. A ao ~ assim encarada como o produto dos fatores que atuam sobre os e atravs dos indivduos. A conduta social dos indivduos no con-siderada como prpria de sua construo, merc da interpreta~ que eles dariam de objetivos, de situaes, 011 das aes dos outros indivduos. Se se concede um lugar "interpretao", esta no ~

    si~plesmente olhada seno como a expresso de outros fatores (por

    37

    . ~-.

    . ,

  • exemplo, os motivos) que precedem o ato; ela desaparece, por con-seqncia, como elemento especfico. Por causa disso, a ao social dos indivduos antes tratada como um resultado do meio-ambiente do que como o resultado dos atos construdos pelos indivduos. em virtude da interpretao das situaes em que eles esto colocados.

    Estas observaes sugerem uma outra srie de diferenas signifi-cativas entre as teorias sociolgicas em geral e a teoria da integra-o simblica. Elas no situ~m a ao social no mesmo lugar. Do ponto de vista da interao simblica, a ao social reside nas atua-es dos indivduos que ajustam suas linhas de ao umas relativa-mente s outras, por fora do processo da interpretao. A ao do grupo ento a ao coletiva de tais indivduos. Ao contrrio, as concepes sociolgicas colocam geralmente a ao social na ao da sociedade Ou em alguma frao da sociedade. Os exemplos, com efeito, so muito sumerosos. Podem-se citar alguns. Certas concep-es, que tratam as sociedades ou os grupos de indivduos como 41 sistemas sociais", consideram a ao do grupo como a expresso de um sistema que se acha em estado de equilbrio, ou que procura atingi-lo. Ou, ento .. a ao do grupo considerada como a expres-so das "funes" de uma sociedade ou de um grupo. Ou, ento, ainda .. ela encarada como a expresso exterior de elementos conti-dos na sociedade ou no grupo, tais como as exigncias culturais, as vontades da sociedade, os valores sociais, ou as coeres institucio-nais. Estas concepes ignoram ou maScaram a vida do grupo OU a ao do grupo como sendo composta de aes concertadas 'Ou cole~ tivas de indivduos que procuram confrontar suas situaes dirias ...

    Ao contrrio, do ponto de vista da interao simblica, a sociedade humana deve ser olhada como composta de atores, e a vida da socie-dade como o resultado de suas aes. Os atores podem sler distint'Os do.s indivduos, das coletividades, cujos membros agem conjunta-meste com um mesmo objetivo, ou, ainda, das organizaes que agem em avr de uma clientela. Citemos os seguintes exemplos: compra-dore.s individuais num mercado, um conjunto musical, uma grande empresa industrial, ou uma associao nacional profissional. No existe atividade na sociedade humana, empiricamente observvel, que no provenha de alguns atores. preciso dar nfase a essa afinna-o banal, levand'O em conta a prtica comum dos socilogos, que reduzem a sociedade humana a unidades sociais no atuantes. Exem-pIos: na sociedade moderna, as classes sociais. Evidentemente, pode-se conceber a sociedade humana de outr'O modo que no em termos de atores. Quero simplesmente acentuar que, considerada a atividade concreta ou emprica, a socidade humana deve, necessaria~ inente, ser olhada em termos de atores. Eu gostaria de acrescentar que

    38

    todo estudo realista de semelhante sociedade precisa aceitar a consi-derao, observvel empiricamente, segundo a qual uma sociedade desse tipo composta de atores. Devem-se tambm observar as con-dies em que atuam tais atores. A primeira condio a preencher que a ao se desdobre em funo da situao. Qualquer que seja {) ator - um indivduo, uma famlia, uma escola, uma igreja, uma empresa, um sindicato, um parlamento etc. - toda ao particular formada em funo da situao em qt!e se situa. Isto leva a tomar em considerao a segunda condio importante, a saber, que a ao concebida ou construda, interpretando a situao. O ator deve necessariamente identificar os elementos que precisa levar em conta: as obrigaes, as boas ocasies, os obstculos, os meios, os pedidos, os inconvenientes, os perigos etc. Deve avali-los de uma certa ma-neira e tomar decises a partir da avaliao. Uma tal conduta pre: cisa ser respeitada, assim pelo indivduo que dirige sua prpria ao como por uma coletividade de indivduos que agem de concerto, ou por delegados que atuam em nome de um grupo ou de uma organi-zao. A vida do grupo composta de arores que desenvolvem suas aes em funo das situaes em que se encontram. Habitualmente, a maioria das situaes diante das quais se vem os indivduos, numa sociedade dada, so definidas ou "estruturadas" de igual maneira. Merc de uma prvia interao, eles desenvolvem ou adquirem uma compreenso semelhante da meSma situao. Essas compreenses comuns permitem que os indivduos aiam de forma idntica. O comportamento comum dos indivduos em tais situaes nem por isso deve fazer crer ao observador que nenhum processo de interpretao est em jogo. Ao contrrio, posto que fixadas, as aes dos partici-pantes so construdas por eles prprios, devido a um processo de interpretao. A partir do instante em que as definies, todas assentes e comumente admitidas, ficam SUa disposio, devem os indivduos empregar poucos esforos na conduta e na organizao de seus atos. Todavia, muitas outras situaes no podem ser defi-nidas de uma s maneira pelos participantes. Neste caso, as linhas de conduta no se harmonizam facilmente umas com as outras, e a ao coletiva se v bloqueada. Interpretaes devem-se desenvolver, e necessrio que venham a ajustar-se. Em tais situaes indeter-minadas, importa estudar o processo de definio que se desenvolve entre os atores.

    Na medida em que os socilogos se interessam pelo comportamento d'OS atores, a teoria da interao simblica torna necessrio o estudo do processo de construo da ao. Esse processo no deve ser apreendido como se referindo simplesmente s condies que lhe so anteriores. Estas ajudam a compreend-lo, na medida em que exer-cem alguma influncia. Mas, como foi indicado atrs, no constituem

    39

    L

  • o processo. Do mesmo modo, no se pode simplesmente compreend-lo, deduzindo-lhe a natureza da ao manifesta que da resulta. Para conceber o processo, aquele que estuda a sociedade deve desempe-nhar o papel do ator cujo comportamento est estudando. Desde o momento em que a interpretao pelo ator se faz a partir de objetos designados e apreciados, de significaes adquiridas e de decises tomadas, o processo deve ser considerado do pont de vista do ator. Tais concluses pem ainda mais em evidncia o fecundo carter dos. trabalhos notveis de R. E. Park e W. L Thomas. Tentar conhecer o processo interpretativo, limitando-se ao exterior, como o faz o obser-vador dito "objetivo", e recusando-se a tomar sobre si mesmo. ,o papel do ator, arriscar-se pior sorte de subjetivismo: assim. o observador "objetivo" est pronto para construir o processo de interpretao com suas prprias supos