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Bioética Meio ambiente
Saúde pública
Novas tecnologias
Deontologia médica
Direito
Psicologia
Material genético humano
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Dadeus Grings
Reitor:
Ir. Norberto Francisco Rauch
Conselho Editorial:
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Luiz Antônio de Assis Brasil
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano ZilIes (presidente)
Vera Lúcia Strube de Lima
Diretor da EDIPUCRS:
Antoninho Muza Naime
JOAQUIM CLOTET
(organizador)
Bioética Meio ambiente
Saúde pública
Novas tecnologias
Deontologia médica
Direito
Psicologia
Material genético humano
Porto Alegre, 2001
© EDIPUCRS 1ª edição: 2001
Capa: Cristiano Nunes Preparação de originais: Eurico Saldanha de Lemos
Revisão: José Roberto Goldim Editoração e composição: Suliani – Editografia Ltda.
Impressão e acabamento: Gráfica EPECÊ
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B615 Bioética / Joaquim Clotet (organizador). – Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001. 128 p.
ISBN: 85-7430-235-X
Seleção de textos apresentados no III Congresso Brasileiro de Bioética do Cone Sul, Porto Alegre, RS.
Conteúdo: Meio ambiente – Saúde pública – Novas tecnolo- gias – Deontologia médica – Direito – Psicologia – Material ge- nético humano.
1. Bioética 2. Medicina I. Clotet, Joaquim
CDD 174.2
Ficha Catalográfica elaborada pelo
Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra
sem autorização expressa da Editora.
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Brasil
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Sumário
Apresentação
página 5
Discurso de abertura do Congresso de Bioética JOAQUIM CLOTET
página 7
Bioética e meio ambiente ALCIRA B. BONILLA
página 14
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública ELMA L. C. ZOBOLI PAVONI
página 32
O impacto das novas tecnologias na sociedade FRANCISCO DE ARAUJO SANTOS
página 40
Deontologia Médica e Bioética GENIVAL VELOSO DE FRANÇA
página 58
As interfaces entre a Bioética e o Direito JUDITH MARTINS-COSTA
página 67
Psicologia e bioética MARISA CAMPIO MÜLLER
página 85
Patentamiento de material genético humano: implicancias éticas y jurídicas
SALVADOR DARIO BERGEL página 93
Apresentação
Bioética é, por definição, um campo interdisciplinar. Desde a sua origem até
o presente momento ela permanece sendo um elemento facilitador para a troca
entre diferentes disciplinas e áreas de conhecimento. A montagem do temário
do III Congresso Brasileiro de Bioética foi um desafio. Buscar preservar esta
diversidade, esta multiplicidade de abordagens, mantendo a coerência de
sempre discutir os aspectos éticos relativos a cada um dos assuntos abordados
foi o nosso objetivo.
Neste volume estão contidos alguns dos textos apresentados no referido
Congresso. Eles foram escritos por ilustres representantes das áreas da
Medicina, Enfermagem, Direito, Filosofia e Psicologia. Os temas abordados são
de grande atualidade. Nos textos são enfocadas questões relativas ao acesso da
população aos bens e serviços de saúde, as interfaces da Bioética com o Direito
e com a Psicologia, a reflexão ética sobre a questão ambiental, os desafios da
deontologia médica e do patenteamento de material genético humano.
O objetivo da presente publicação é permitir que as reflexões e
propostas feitas no decorrer do III Congresso Brasileiro de Bioética possam ser
retomadas por todos os que participaram deste evento e disponibilizar este rico
material para as demais pessoas interessadas na área da Bioética.
A Comissão Organizadora do III Congresso Brasileiro de Bioética
A
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 7
Discurso de abertura do Congresso de Bioética
JOAQUIM CLOTET∗
igníssimas autoridades presentes na mesa: representando o Governador do
Estado do Rio Grande do Sul, a Secretária Estadual de Saúde, Maria Luíza
Jaeger; o Reitor da PUCRS, Prof. Norberto Francisco Rauch; representando a
Prefeitura de Porto Alegre, Dr. Joaquim Kliemann; Presidente da Sociedade
Brasileira de Bioética, Dr. Marco Segre; Dr. William Saad Hossne, Presidente de
Honra da SBB; Dr. Fernando Lolas Stepke, Diretor do Programa Regional de
Bioética para América Latina e Caribe, da Organização Panamericana da
Saúde e da Organização Mundial da Saúde; Dr. José Roberto Goldim, Vice-
Presidente do Congresso; Prof. Délio José Kipper, Secretário Geral do
Congresso; Membros da Sociedade Brasileira de Bioética; Participantes vindos
do Conesul e de outros países; Representantes do Chile, da Argentina e dos
Estados Unidos; Participantes dos diversos Estados do Brasil; Participantes do
Rio Grande do Sul, que num tempo inferior a nove meses reúnem-se pela
segunda vez num grande fórum sobre Bioética; Senhores Diretores de
Faculdades e Professores de diversas Universidades, estudantes presentes em
número altamente representativo e demais pessoas interessadas em Bioética.
Registradas também, as presenças da Presidente da Associação
Brasileira de Enfermagem, Beatriz Ferreira Valdmari; Presidente da Associação
Brasileira de Odontologia, Dr. Henrique Teitelbaum; Presidente da Associação de
Odontologia Secção Rio Grande do Sul, Dr. Marcos Túlio M. Carvalho; Presidente
do Conselho Regional de Odontologia, Dr. Cizino Riso Rocha; Presidente do
∗ Presidente do Congresso – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
D
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 8
Conselho Regional de Farmácia, Célia Chaves; Presidente do Conselho Regional
de Biologia, Inga Mendes; representando o Conselho Regional de Psicologia,
Rejane de Oliveira Pousadal; representando a Associação Médica do Rio Grande
do Sul, Martinho Alvares Reis Alexandre; representando o Conselho de
Enfermagem, Loraine Braga do Nascimento; representando o Conselho Regional
e Federal de Medicina, Dr. Luiz Augusto Pereira; representando a Ordem dos
Advogados do Brasil, Alaor Veríssimo; representando a Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência Regional, Rita Maria Carnevale.
Meus Senhores e minhas Senhoras,
Temos a grande alegria de nos encontrarmos novamente depois do
Primeiro Congresso Nacional de Bioética, realizado no Instituto Oscar Freire,
USP, em São Paulo, de 26 a 28 de junho de 1996, e do Segundo Congresso
Nacional de Bioética, realizado em Brasília, na sede do Conselho Federal de
Medicina, de 24 a 26 de março de 1998.
Temos a satisfação de realizar este evento em terras gaúchas, no Rio
Grande do Sul, em Porto Alegre, onde surgiu e continua trabalhando um dos
núcleos pioneiros do estudo, do ensino, da pesquisa e da extensão em Bioética
do Brasil. Lugar em que já foram defendidas teses de Doutorado e Mestrado em
Bioética nas Faculdades de Medicina, Direito, Enfermagem e Psicologia das
universidades gaúchas.
O nosso Congresso realiza-se em um período de intensa atividade e
importância da Bioética no mundo. São diversos os eventos desenvolvidos
neste intervalo que precede e segue ao nosso encontro. Só para citar alguns,
gostaria de lembrar: o Congresso da Federação Latino-Americana de
Instituições de Bioética realizado no Panamá de 3 a 6 de maio p.p.; o
Congresso Mundial de Bioética em Gijón, Principado das Asturias, Espanha, de
20 a 24 de junho próximo passado; o Encontro da Sociedade Americana de
Leis, Medicina e Ética dedicado aos Desafios Legais em Genética e Medicina
Reprodutiva, a realizar-se em Cambridge, Massachusetts, de 14 a 16 de
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 9
setembro próximo; o Próximo Congresso da Associação Internacional de
Bioética em Londres de 21 a 24 de setembro próximo (presentes no nosso
Congresso dois membros do seu Board of Directors, a Professora Florencia
Luna e o P. Léo Pessini); a Assembléia da Associação Médica Mundial a
realizar-se em outubro próximo, na qual será discutida a Declaração de
Helsinque; o Próximo Congresso da Sociedade Argentina de Bioética em La
Plata, nos dias 6 e 7 de novembro próximo.
Temos acontecimentos importantes para a Bioética mundial, bem como
para a Bioética da América Latina, assim como: – a criação do Comitê Assessor
Internacional de Bioética da Organização Pan-americana da Saúde em
Washington, presente aqui um dos seus membros, o Prof. Dr. José Alberto
Mainetti, da Escuela Latino-americana de Bioética, Argentina; – a Resolução
196/96 sobre Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo
seres humanos que propiciou, entre outras coisas, o surgimento dos 270
Comitês de Ética em Pesquisa atualmente existentes no país; – as resoluções
do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que pautam os diversos
aspectos éticos da pesquisa em seres humanos. Merecem ser mencionadas: –
a Resolução 251/97 sobre Normas de pesquisa envolvendo seres humanos
para a área temática especial de pesquisa com novos fármacos, medicamentos,
vacinas e testes diagnósticos; – a Resolução 292/99 sobre Normas de pesquisa
em seres humanos, coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e
pesquisas que envolvam remessa de material biológico para o exterior. Esses
documentos são apenas uma amostra da qualidade do trabalho realizado pela
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, sob a coordenação do Dr. William
Saad Hossne e da Secretária Executiva Dra. Corina Bontempo Duca de Freitas,
com o apoio institucional do Conselho Nacional da Saúde, da Secretaria de
Políticas de Saúde e do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da
Saúde; – a proposta de regulamentação dos processos de fertilização in vitro,
entre outras, ainda em tramitação no Congresso Nacional; – a inclusão da
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 10
disciplina de Bioética nos currículos de muitas Faculdades e Programas de
Mestrado e Doutorado de diversas Universidades e Instituições de Ensino
Superior do país, tendo a Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre na
qualidade de pioneira, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre e a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, a Fundação Faculdade Federal de Ciências
Médicas de Porto Alegre, o Centro Universitário São Camilo, a Universidade de
São Paulo, o Instituto Teológico de São Paulo, a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, a Universidade Estadual de São Paulo em Botucatu, a
Universidade Estadual de São Paulo de Araraquara, a Fundação Osvaldo Cruz
do Rio de Janeiro, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade de
Brasília, a Universidade Estadual de Londrina, a Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, a Universidade Federal de Minas Gerais, a
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a Universidade de Campinas, a
Universidade Federal de Pelotas, a Universidade Católica de Pelotas, a
Universidade de Caxias do Sul, a Universidade de Passo Fundo, a Universidade
Federal de Santa Maria, a Universidade Federal da Bahia, a Universidade
Católica de Salvador, a Universidade Estadual de Feira de Santana, a Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, a Universidade Federal da Paraíba, a
Universidade Federal do Piauí, a Universidade Estadual do Piauí;
— A publicação de livros e revistas tem sido também uma grande
contribuição. Gostaria de destacar a primeira publicação sobre o nosso tema no
Brasil, em 1982, pela Gráfica Unisinos, do livro de Andrew C. Varga, Problemas
de Bioética, uma tradução do inglês, realizada por Guido Edgar Wenzel, da
mesma Universidade. Seguiram-se muitos outros. Quero, neste momento,
lembrar as últimas novidades, que serão lançadas neste Congresso e que têm
por autores a Professora Eliane Elisa de Souza e Azevêdo (O direito de vir a ser
após o nascimento), o Prof. José Roberto Goldim (Org.) (Consentimento
informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil), o Prof. Mauro
Godoy Prudente (Bioética. Conceitos fundamentais) o Jornalista Marcelo Leite
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 11
(Alimentos transgênicos). Gostaria, neste momento, de render a nossa
homenagem ao Conselho Federal de Medicina, cuja revista Bioética, publicada
inicialmente em 1993, conquistou um padrão de alta qualidade de repercussão
internacional. Ela tem influenciado enormemente o desenvolvimento da Bioética
em nosso país e na América Latina. Ao Conselho Federal de Medicina e, de
modo especial, ao seu editor durante todos estes anos, o Prof. Dr. Sergio
Ibiapina Ferreira Costa, ausente deste Congresso devido a um compromisso
nos Estados Unidos, a nossa admiração e homenagem.
— A criação de redes on line de informação sobre Bioética, Medicina
Legal, Direito Médico, como as do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, do
Conselho Nacional de Saúde e Ministério da Saúde, da Universidade Federal
de São Paulo, do Professor Genival Veloso de França e da médica Fátima de
Oliveira. Os centros de estudo e pesquisa como ANIS, Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero.
O nosso Congresso é mais um empreendimento da Sociedade Brasileira
de Bioética e de seus membros no Rio Grande do Sul. O nosso objetivo é
apresentar, debater e atualizar as diversas faces da Bioética no seu mais amplo
sentido e aproximar as pessoas que delas se ocupam através do ensino, o estudo,
a pesquisa ou a simples leitura ou informação. A Bioética, dado o seu caráter
multidisciplinar, interessa a todos pela sua vinculação com a nossa qualidade de
vida, com os direitos humanos e com o pleno exercício da cidadania.
Gostaria de salientar as nossas inovações, no que diz respeito aos
congressos anteriores; em primeiro lugar, a criação de um espaço para que os
pesquisadores possam apresentar os resultados das suas pesquisas; em
segundo lugar, a oportunidade de troca informal de experiências das sessões
de almoço com especialistas.
Este grande encontro visa também, conforme a Declaração Universal
do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, no seu artigo 20, a “promoção da
educação em Bioética em todos os níveis”.
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 12
Por fim, registrar e agradecer o expressivo número de congressistas
que tornaram o nosso Congresso o maior Congresso Brasileiro de Bioética até
este momento realizado.
Os nossos sinceros agradecimentos, a todos os participantes; a todos
que apoiaram o Congresso: Associação Brasileira de Odontologia – ABO/RS,
Conselho Federal de Medicina – CFM, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
– CONEP, Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul – CREMERS,
Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq, Conselho Regional de Odontologia –
CRO/RS, Conselho Regional de Medicina do Paraná – CRMPR, Programa de
Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial/Faculdade de Odontologia – CTBMF –
FO/PUCRS, Departamento de Pediatria – Faculdade de Medicina/PUCRS,
Departamento Municipal de Água e Esgoto – DMAE, Escola Profissional
Champagnat – EPECÊ, Agência Experimental de Publicidade e
Propaganda/FAMECOS – PUCRS, Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio
Grande do Sul – FAPERGS, Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA,
Hospital São Lucas da PUCRS – HSL, Organização Pan-Americana de
Saúde/Organização Mundial da Saúde – OPS/OMS, Pró-Reitoria de Assuntos
Comunitários – PRAC/PUCRS, Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica –
SBOC, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
A todos os que apoiaram financeiramente o Congresso, ABBOTT
Laboratórios, BRISTOL-MYERS SQUIBB BRASIL, Centro Universitário São
Camilo, Clínica Baú, COPELMI Mineração S.A., FERTILITAT Centro de
Medicina Reprodutiva, GLAXO WELLCOME S.A., Grupo GERDAU,
JOMHÉDICA Produtos Médicos Hospitalares, Laboratórios B. Braun S.A.,
Laboratórios WEINMANN Ltda., Merck Sharp & Dohme, Nestlé, Panvel
Farmácias, Produtos Diagnósticos Bayer, Schering do Brasil, Química e
Farmacêutica Ltda., TELET S.A., TERRA Networks Brasil S.A., UNIMED –
Federação das Cooperativas Médicas do Rio Grande do Sul.
Discurso de abertura do Congresso de Bioética 13
De modo especial ao comitê executivo, ao comitê de apoio e à
comissão científica do Congresso.
A todos los participantes de los países hermanos del Cono Sur mi más
cordial bienvenida y mi sincero agradecimiento por haber atendido a nuestra
Ilamada e invitación. Es mucho lo que se hace en nuestros países en materia
de Bioética, juntos, sin ninguna duda, podremos hacer mucho más. Son
diversas las colaboraciones ya existentes entre los diversos grupos e
instituciones del Cono Sur. Un mayor conocimiento y colaboración mutuos nos
enriquecerán a todos.
Les deseo unos días muy felices y de gran provecho en Brasil, en Río
Grande do Sul, en Porto Alegre y en esta Universidad. Su presencia,
participación, saber y simpatía prestigian de modo especial este congreso.
To those come from the USA, our best wishes for a friendly stay in
Brazil. Welcome to Porto Alegre and to this University.
There has never been a meeting in Bioethics like this one in our city, in
the disciplines represented, in the countries participating, and in the topics
addressed notwithstanding our pioneership in Brazil, due to the different
courses, symposia and activities developed in our local universities.
More than sixty papers and speeches will be delivered in this forum. It is
marvellous to be learning from so many people, from so many disciplines, the
result of their analysis and research. We believe that multidisciplinary education
is essential to improve our knowledge on Bioethics.
This meeting is another milestone also for the Brazilian Society of Bioethics.
Thank you, once again, for joining us in this international event.
Declaro aberto o III Congresso Brasileiro de Bioética e I Congresso de
Bioética do Cone Sul.
Bioética e meio ambiente 14
Bioética e meio ambiente
ALCIRA B. BONILLA
igníssimas autoridades aqui presentes, dignísimas autoridades de esta Mesa,
queridos amigos y colegas de Ias universidades del Cono Sur, Señoras y Señores:
Previo al desarrollo de esta conferencia, debo manifestar mi gratitud
hacia las autoridades y organizadores de este III Congresso Brasileiro de
Bioética y I Congresso de Bioética do Conesul, y muy especialmente al Prof. Dr.
Joaquim Clotet, Presidente de la Comissão Organizadora y Vice-Reitor de la
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Me parece auspicioso para nuestro trabajo de estos días que éste se
realice al amparo de la PUCRS, universidad pionera en la institucionalización de
la docencia en Ética y Bioética para los estudiantes del postgrado de la carrera
de Medicina y en Ia creación de un Comité de Bioética en su hospital. Con
especial afecto vuelvo a esta casa de altos estudios, porque guardo buen
recuerdo de mi estancia académica aquí, durante el mes de marzo de 1996,
justamente para impartir un curso de postgrado sobre Ética ambiental, y porque
entre esta universidad y la de Buenos Aires, a la cual pertenezco, existe un
convenio de colaboración académica con diversos proyectos en ejecución.
He aceptado con alegría y responsabilidad académica esta conferencia
inaugural, en la conciencia de que tal vez podría plantear en ella temáticas
cruciales que están en el centro de nuestra responsabilidad como ciudadanos y
ciudadanas de estas naciones democráticas del Cono Sur, y que involucran por
completo nuestras prácticas profesionales y académicas, y nuestra vida
cotidiana misma.
Hago propicio este momento para recordar que la PUCRS pone empeño
en cuestiones vinculadas con Ia ecología y el cuidado del ambiente, a través de su
D
Bioética e meio ambiente 15
Instituto do Meio Ambiente y de otros departamentos de Ia Universidad. No puedo
dejar de mencionar, por otra parte, que en Ia ciudad de Porto Alegre surgió el
movimiento ecologista en Brasil, con la creación de AGAPAN (Associação Gaúcha
de Protecção do Meio Ambiente Natural, 1971), cuyo fundador, José Lutzenberger,
redactó en 1976 el Manifesto Ecológico Brasileiro.
Si bien comprendo y leo el portugués, apelo a la generosidad de
Uds., puesto que haré mi conferencia en español para poder expresarme
con fluidez y corrección.
Tras un período durante el cual los estudios éticos parecían haberse
atrincherado en la atmósfera protegida de los círculos académicos, desde hace
unos treinta años se asiste a una ampliación notable del ámbito teórico, de las
prácticas en la investigación, la docencia y la intervención y del alcance social de la
ética. Movimientos sociales, como los diversos feminismos, las luchas antirracistas
y en favor de minorías étnicas y lingüísticas o en defensa de derechos lesionados
por regímenes políticos y discriminaciones de todo tipo y otros, los debates
ocasionados por la crisis ambiental y Ia merma de la biodiversidad, y, sobre todo,
los avances constantes de la biotecnología y de la tecnología médica en materia de
fertilización, control genético, transplantes, alargamiento artificial-tecnológico – de la
vida, clonación, transgénicos, etc., son reconocidos como las causas de esta
renovación esencial en la ética y la filosofía práctica, puesto que, gracias a ellas, los
investigadores han salido de su campo tradicional (los trabajos sobre metaética e
historia de las teorías éticas).
Además, fueron apareciendo nuevos actores, o los mismos con papeles
renovados, como el eticista. Su función es la de proporcionar esclarecimiento
teórico y consejo orientador para la resolución de los conflictos de raíz
axiológica o normativa que la práctica social va presentando a cada paso, sobre
todo cuando la normativa legal y las regulaciones vigentes no contemplan tales
conflictos u ofrecen soluciones fuera de actualidad y de contexto. A esta
preocupación de la ética contemporánea por cuestiones en las cuales están
Bioética e meio ambiente 16
involucradas tomas de decisión importantes por parte de los seres humanos, se
le ha otorgado, desde los países anglosajones, el nombre generalizado de
Applied Ethics (ética aplicada). En su lugar, prefiero la denominación de ética
orientada a la aplicación, que ha sido introducida por Heiner Hastedt (1991).
Con tal rótulo, en mi opinión, se eludirían, al menos en principio, fáciles críticas
de situacionismo que suelen hacerse a las investigaciones en ética aplicada, si
bien no es éste el momento de justificar con razones tal elección teórica.
Orientadas temáticamente hacia ámbitos muy diversos de Ia vida social,
como, por ejemplo, cuestiones acerca de la salud y la enfermedad, acerca de
las innovaciones tecnológicas o la transferencia de tecnología, acerca de Ia
educación, de las empresas, del deporte, del ambiente, de los media, de la
discriminación de las mujeres, etc., tales investigaciones y prácticas que
integran el elenco de la ética aplicada exhiben por lo menos cuatro rasgos
comunes: 1) se dan en un continuum teórico-práctico (el ámbito de la teoría y el
ámbito de la práctica se iluminan mutuamente); 2) tienden a adquirir un carácter
interdisciplinario; 3) como se hacen cargo del esclarecimiento de conflictos que
aparecen en el seno de la sociedad contemporánea – ya sea que afecten a la
sociedad global o a grupos particulares – manifiestan una orientación social; 4)
y, por eso mismo, favorecen las prácticas dialógicas de formación de consenso.
La proliferación creciente de éticas de sectores y de éticas de las
profesiones propiamente dichas, así como la demanda social de estos nuevos
actores, la creación de comités de ética, la asunción de responsabilidades
sociales por parte de científicos y tecnólogos, y las exigencias de
esclarecimiento y de orientación que reclama la sociedad en su conjunto – más
o menos precisas o difusas –, hacen pensar en un verdadero giro ético de la
sociedad contemporánea. Con esta expresión, giro ético, no hago sino señalar
la presentida necesidad de un proyecto de convivencia nuevo y distinto, de
otras costumbres y hábitos (éthos) de pensamiento y de acción. En suma, la
Bioética e meio ambiente 17
búsqueda de un lugar propio, de una morada (êthos) construida por el hombre y
para todos los hombres.
En esta agenda de problemas contemporáneos de la ética se
evidencian con nitidez el âmbito de la bioética, entendida en sentido estricto, y
el de la ética ambiental. El título de la conferencia, de modo implícito, reconoce
lo específico de estos campos, pero apunta igualmente hacia sus relaciones.
Para intentar delimitarlas, me ha parecido conveniente comenzar por el examen
de algunas definiciones vigentes.
Si bien bioética ha sido y es definida en sentidos más o menos estrictos,
respondiéndose con ello a los intereses que la demandan o a tomas de posición
teóricas, como punto de partida citaré una definición amplia de Joaquín Clotet,
representativa de la mayor parte de los estudiosos de la materia:
“El término Bioética pretende centrar la reflexión ética en torno del fenómeno
vida. Como se sabe, existen formas diversas de vida y también modos diferentes de
consideración de los aspectos éticos relacionados con la misma. Las áreas de estudio y
aplicación de la Bioética, por consiguiente, tienen un carácter plural. La ética ecológica,
los deberes para con los animales, la ética del desarrollo y la ética de la vida humana,
serían algunos de sus grandes temas. Según Jean Bernard, la ética de la vida humana
está asociada a la revolución terapéutica y la revolución biológica en sus tres grandes
vertientes: el dominio o poder sobre la reproducción, los caracteres hereditarios y el
sistema nervioso. El significado de bioética vinculado a la vida humana con las
observaciones manifestadas anteriormente es el que ha predominado en la práctica”
(1997, p. 41).
Sin embargo, la lectura somera del programa de esta reunión ofrece un
testimonio fehaciente del predominio de una acepción más restringida de la
Bioética, la cual, en éI, tampoco queda limitada por los marcos temática y
metodológicamente más estrechos de la ética médica.
A los fines de esta conferencia, es oportuno traer a colación un poco de
historia. El neologismo bioethics es acuñado en 1971 por Van Rensselaer
Potter, quien escribe el libro fundacional bajo el título de Bioethics; Bridge to the
Bioética e meio ambiente 18
Future. En este intento de diálogo entre la cultura científica y la humanística, se
estudian problemas relacionados con el hombre y “el futuro de la especie
humana”, los cuales involucran aspectos ambientales o a veces no humanos.
R.G. Frey (1998) se siente proclive a afirmar que, según las propuestas de
Potter, no cabría hablar de una disciplina específica denominada bioética, sino,
más bien, de “conjuntos o series de problemas morales que surgen de las
biotecnologías, Ia medicina y la interacción humana con los animales y el medio
ambiente y que, directa o indirectamente, afectan el bienestar humano”.
Sin embargo – baste por ahora aclararlo –, no todas las éticas que se
ocupan de cuestiones ambientales o ecológicas son antropocéntricas o
consideran el bienestar o calidad de vida de los seres humanos como el valor
más elevado y, de esta forma, hasta pueden entrar en colisión con las posiciones
estándares de la bioética. Así, R. Sylvan y D. Benett, autores de The Greening of
Ethics, plantean objeciones con referencia a los enfoques éticos habituales en su
asunción del imperativo de las exigencias y necesidades humanas. Y, sobre todo,
manifiestan el rechazo, por parte del deep environmentalism que sostienen, a los
intentos, defendidos desde la ética médica, de producir un mayor número de
seres humanos, porque en ellos no se considera el impacto ambiental de esta
población “añadida” o “supernumeraria”, y señalan el carácter “obsoleto” y
“regresivo” de la producción de artículos de índole biogenética que, generados
desde una ideología de mercado, podrían Ilegar a interferir de modo dañino con
los ambientes naturales (cfr., 1994: 168-169).
Si bien los términos de la polémica no son tan extremos en la mayoría
de los autores, quizá otra mirada hacia la historia – esta vez hacia la de las
ideas – ilustre parcialmente esta polémica e indique una vía para proseguir la
reflexión. En su ejemplar e inconcluso libro Huellas en la Playa de Rodas,
Clarence Glacken muestra la aparición y fuerza animadora de tres ideas
mediante las cuales los seres humanos, a lo largo de dos mil trescientos años,
desde el S. V° a.C. hasta fines del S. XVIII, han dado una explicación de las
Bioética e meio ambiente 19
relaciones del hombre con la Tierra (naturaleza o medio): 1 – la idea de una
tierra con designio que, centrada en Dios como artesano, aplicaba a los
procesos naturales la doctrina de las causas finales y dejaba al hombre y la
naturaleza en una posición subordinada (criaturas); 2 – la idea de la influencia
del medio en el hombre y en las culturas, centrada en la fuerza y vigor creativos
de la naturaleza; 3 – la idea del hombre como modificador de la naturaleza,
centrada en éI y Ia autonomía de su acción, que “miraba más al futuro, a la
creatividad y actividad del hombre” (1996, p. 652).
En Ia casi totalidad de sus representantes más conspicuos, la
Modernidad y sus epígonos contemporáneos parecieran celebrar el triunfo de Ia
tercera idea. Despojada de jerarquías y de causas finales, la naturaleza es
reducida a material inerte, axiológicamente neutro, ofrecido a la
experimentación e instrumentalización impuestas por el hombre, el cual, de este
modo, pone fines a la naturaleza. En este mismo sentido, Andrew Pullin pone
en boca de un observador hipotético de comienzos de la Revolución Industrial lo
siguiente: “Nuestro entorno es hostil, puesto que amenaza de modo múltiple
nuestra salud y bienestar; en consecuencia, debe ser sojuzgado, puesto a salvo
y restituido a su buen empleo para Ia creación de mejores estándares de vida y
de salud” (1995, p. 339).
Desde estas bases, la mayor parte del pensamiento moderno
reconstruye la idea de una ética que afirma la autonomía del hombre, las
bondades del progreso técnico y – posteriormente – tecnológico abandonado a
su propio ritmo de crecimiento (el cual, en muchos casos, es el de las guerras y
de los mercados) y carece de normativa para las acciones humanas que se
ejercen sobre la naturaleza. Podemos concluir con Iring Fetscher: “Lo que ha
convertido al Occidente Moderno en una gran amenaza del medio ambiente es,
por una parte, el enorme aumento de los medios de dominación de la
naturaleza y, por otra, la tendencia a la expansión que está ínsita en la
estructura social. Sólo la combinación de estos dos factores fue fatal” (1988, p.
Bioética e meio ambiente 20
106). Como resultado de este proceso, la biosfera ha de habérselas con dos
tipos de tensiones perjudiciales: la polución y degradación de los ecosistemas, y
la destrucción del habitat de numerosas especies vivientes y la crisis de la
biodiversidad. La denominada crisis ecológica y/o ambiental contemporánea,
cuya más evidente expresión está constituida por los desastres y catástrofes
ecotecnológicas, al estilo de Hiroshima, Bhopal, Exxon Valdez, Chernobyl,
Seveso, etc., parece suplir con su carácter trágico a los experimentos
controlados en los laboratorios que sentaron las bases de la ciencia moderna
(cf., Functowicz & Ravetz 1991).
Al decir de C. Larrère, “los mismos éxitos de nuestra empresa sobre la
naturaleza revelan la fragilidad de las condiciones naturales sensibles a nuestra
acción y de las cuales permanecemos dependientes”. En consecuencia: “Ahora
descubrimos nuestra inclusión en la historia de la Tierra, al mismo tiempo que la
singularidad de ésta”. Y extrayendo de tales conclusiones su proyección ética,
esta autora sostiene:
“Como el sistema de las relaciones que mantenemos con la Tierra
parece saturado, se vuelve necesaria su aprehensión global: es en esta
globalización que la naturaleza deja de ser ilimitada y se convierte en una
medida normativa de los límites de nuestra acción” (1996, p. 1029).
Esta comprensión conceptual de la dependencia mutua hombre-
naturaleza, un tanto metaforizada en las expresiones de Larrère que acabo de
traducir, se convirtió en ícono visual cuando comenzaron a circular las
imágenes de la Tierra vista desde el espacio exterior. Observada de este modo,
la naturaleza se determina como lo que debe ser “respetado”, “preservado” o
“conservado”. Por todas partes, científicos, filósofos y activistas, a los cuales se
unen economistas y políticos, reclaman un cambio de actitud. Las sinnúmeras y
variadas respuestas se convierten igualmente en fuente de confusión y
malentendidos, muchos de los cuales residen en la conjunción de una
sensibilidad atenta a los problemas ambientales y ecológicos con mala
Bioética e meio ambiente 21
información científica y supervivencias ideológicas que deforman los hechos por
completo, invalidando teorías y prácticas.
Determinados términos que han adquirido un significado técnico en el
ámbito de la ecología y/o de las ciencias ambientales, pero que igualmente
pertenecen al acervo común de los idiomas hablados, se erigen en víctimas
privilegiadas de tales confusiones. En aras de la brevedad, voy a referirme a dos
casos significativos: la habitual equiparación entre “naturaleza” y “ambiente”, y la
que se hace entre “natural” y “salvaje”, como contrapuesto a “artificial”.
Algunos autores equiparan naturaleza y ambiente, palabra esta última
que en su uso técnico proviene de la ecología y es, en consecuencia,
netamente contemporánea. I.G. Simmons, por ejemplo (1997), indica que
ambos términos se refieren a “todos los elementos y procesos de la Tierra fuera
de la especie humana”. Si bien “ambiente” se reserva para señalar algo ya
modificado por el hombre, “naturaleza”, para este autor, estaría evocando la
idea de una precedencia virgen. C. Reboratti, a quien sigo en este debate,
porque ha logrado una claridad conceptual notable, manifiesta que tal definición
divide el mundo en tres sectores (naturaleza, el hombre y sus artefactos, y el
ambiente como una especie de entremedio entre la naturaleza no mancillada y
el mundo artificial que construimos los seres humanos). Si desde el punto de
vista biológico el hombre es parte integrante del gran ecosistema de la ecosfera,
sin embargo, es común hacer distingos entre los restantes seres de la
naturaleza y el hombre como tal, pensando que en ellos reside, ya no la
diferencia con el “animal”, sino la diferencia con lo “natural”. Pero la naturaleza
bien podría ser considerada como una mera construcción social. En esta
alternativa parecería difícil conceptualizar los elementos concretos que hacen a
nuestra vida de seres humanos, tal el clima, la vegetación, etc. También parece
posible ponerse a investigar acerca de cuál es el papel del hombre con respecto
a la naturaleza; pero, ¿hasta dónde se vuelve posible Ia crítica de la razón
instrumental moderna junto con la indicación de las diferencias?
Bioética e meio ambiente 22
Ante Ia imposibilidad de soluciones tajantes al problema, parece
prudente seguir a Reboratti cuando apunta:
“Para evitar esa enojosa discusión, podemos pensar al hombre como
ubicado en una posición intermedia entre la de dueño absoluto y la de vulgar
componente: el hombre como cuidador de Ia naturaleza, que no tiene el
derecho absoluto sobre ella, sino el deber de preservarla al mismo tiempo que
la utiliza para sobrevivir” (17).
En este sentido, la cita que he acabado de leer, coincide con las ideas
rectoras del filósofo Hans Jonas, quien, alarmado ante el poder de la acción
humana amplificada por la tecnología y de alcances nunca imaginados en el tiempo
y el espacio, reflexionó sobre una ética que considera al hombre como responsable
por la naturaleza y la calidad de vida de las generaciones futuras (1979).
Concluyendo, se podría decir que naturaleza y ambiente se refieren al
mismo sistema, pero a nivel distinto. El primero es un término teórico y
abstracto, que no puede ser objeto de una definición objetiva porque la
diferenciación o integración hombre-naturaleza depende de la mirada del sujeto
la cual está, a su vez, condicionada por su posición cultural particular. En el
caso del “ambiente”, el hombre puede o no estar integrado a ese recorte
territorial que damos el nombre de ambiente y definimos como el conjunto de
elementos y relaciones biológicos y no biológicos que caracterizan una porción
de la Tierra o que rodean o permiten la existencia de un elemento” (17).
En la segunda equiparación entre “naturaleza” y “salvaje”, por oposición
a “artificial”, aparece el concepto problemático de lo “salvaje” o “silvestre”,
concebido como algo vivo no “domesticado” aún por el hombre (incluido en él el
hombre “salvaje”, como opuesto a “civilizado”). En este contexto, puede
hablarse de “naturaleza virgen”, no hollada. Concretamente, tales atribuciones
románticas de belleza y sublimidad a la naturaleza virgen culminan en 1872 en
la creación del Parque Nacional de Yellowstone (y, también hay que decirlo,
tuvieron que ver en las políticas acerca de la naturaleza y de higiene racial del
Bioética e meio ambiente 23
Tercer Reich). La expansión y mantenimiento hasta la década del ’70 de una
política de directivas preservacionistas que consideran al hombre como
destructor de la naturaleza, representaron para los países del sur una renovada
fuente de conflictos. La instalación de Parques Nacionales, si bien intentó
preservar repositorios de especies autóctonas y bellezas naturales, acabó con
grupos humanos asentados en esas áreas y con prácticas tradicionales de las
comunidades autóctonas o con largos años de asentamiento que en modo
alguno eran nocivas para el ambiente (cf., Diegues, 1996, p. 18 ss.).
Si bien me he demorado más de lo aconsejable en la presentación de
este tema, creo que lo merece porque todos los intentos de extrañar al hombre
de la naturaleza no hacen sino reforzar las prácticas de dominio y manipulación
que estamos analizando como características del modo instrumentalista de
pensar esta relación.
Una estrategia para la promoción del cambio de actitud necesario con
respecto al ambiente consiste en percibir los efectos o impactos nocivos de la
actividad humana en él, cuya medición es harto compleja. Hay ejemplos de toda
época para ilustrar las variadas formas de depredación y degradación
impuestas por el hombre al ambiente y la biodiversidad. Así, la denominada
“conquista ecológica de las Américas” (cf. Álvarez Febles, 1996) modificó y
perjudicó de modo sustantivo el ambiente natural americano, afectando,
además, a las poblaciones aborígenes, las cuales fueron diezmadas por
diversas enfermedades importadas por los conquistadores, y, en muchos casos,
se vieron obligadas a cambiar sus modalidades de cultivo y cría de ganado.
En estos últimos años se está manifestando una conciencia creciente
con respecto a los daños posibles para el ambiente y su riesgo para las
personas en la aplicación de cálculos estándares tanto para el análisis de riesgo
para Ia salud (Human Health Risk Assessement) como de los riesgos sobre el
ambiente (Ecological Assessment). La crisis mundial del ambiente afecta
paradójicamente a los seres humanos de los países más industrializados que
Bioética e meio ambiente 24
han intentado la imposición de sus pautas tecnológicas; pero, sobre todo, a los
del mundo en vías de desarrollo o Tercer Mundo. La ecuación de E. Kormondy,
que señala a la vez los problemas cruciales y su imbricación mutua, no debe ser
olvidada en el momento de tratar y reflexionar acerca de estas cuestiones. “De
acuerdo con un dicho común, las tres amenazas de la humanidad son las tres
P: polución, población y pobreza” (1973, p. 209-210).
Casi todos los autores e, incluso, documentos emanados de reuniones
internacionales parecen rubricar este Dictum de Kormondy, así como la
necesidad de mancomunar esfuerzos para evitar la catástrofe. Entre la gran
cantidad de textos significativos, cito tres ejemplos notables:
1. S. Funtowicz y J. Ravetz:
“La tarea colectiva más grande que hoy enfrenta la humanidad
concierne a los problemas de riesgo ambiental global y a los de equidad entre
los pueblos” (1993, p. 11).
2. Iring Fetscher:
“Quizá puedo haber despertado la impresión de que busco reunir
forzadamente en un complejo unitario todas las posibles cuestiones actuales: el
problema ecológico, el de la distribución desigual de los bienes de esta Tierra
entre los pueblos y dentro de las diferentes sociedades, la problematicidad del
individualismo posesivo y del egoísmo, y de la ciencia y la técnica modernas
orientadas exclusivamente al dominio de la naturaleza. Pero no soy yo quien ha
establecido artificialmente una conexión entre estas cuestiones sino que ella
reside en Ia propia naturaleza de las cosas” (1988, p. 99).
3. Agenda 21, cap. 4 de la sección 1:
“La pobreza y la degradación del medio ambiente están estrechamente
interrrelacionadas. Si bien la pobreza provoca ciertos tipos de tensión
ambiental, las principales causas de que continúe deteriorándose el medio
ambiente mundial son las modalidades insostenibles de consumo y de
Bioética e meio ambiente 25
producción, particularmente en los países industrializados, que son motivo de
grave preocupación y que agravan Ia pobreza y los desequilibrios”.
Si regresamos ahora a un concepto más restringido de bioética,
estamos ya en condiciones de darnos cuenta de que también a éste le
pertenece una preocupación seria y responsable con las cuestiones
ambientales y ecológicas. La mayor parte de los daños causados por el hombre
al ambiente redundan en efectos nocivos para el hombre mismo: la pobreza, la
escasez, la guerra, la sobrepoblación, el desarrollo tecnológico controlado sólo
por Ias leyes del mercado, la degradación de los ecosistemas, Ia merma de la
biodiversidad y la polución ambiental resultan ser causas de gravísimos
problemas de salud y deterioro de la calidad de la vida humana así como de Ia
calidad del ambiente mismo. La enumeración de estos problemas podría
resultar, además de tediosa, redundante por conocida de todos los presentes.
La OMS (Organización Mundial de la Salud), en un documento titulado Health
and Environment in Sustainable Development, de 1997, distingue entre diversas
amenazas al ambiente, cualificando unas como “riesgos tradicionales”, ante
todo vinculados con la pobreza, y otras, como “riesgos modernos”, es decir,
debidos al empleo de nuevas tecnologías y al manejo desaprensivo de los
recursos. El documento también señala Ias relaciones de cada uno de estos
tipos de amenazas con la salud y la enfermedad de las personas.
Para concluir, dos reflexiones finales:
La primera se refiere a la obligada transformación contemporánea de
nuestras formas tradicionales de considerar la responsabilidad. La ampliación
del dominio espacio-temporal y las consecuencias imprevisibles, en la mayor
parte de los casos, de la acción humana modificada por la tecnología y
gobernada por los dictados del mercado globalizado, imponen – como pedía
Hans Jonas en su obra de 1979 – um imperativo de “responsabilidad”. Pero su
alcance no se reduce a los límites de la denominada responsabilidad legal, sea
penal o civil. Más allá de la observancia de lo prescrito por las leyes, en este
Bioética e meio ambiente 26
concepto ampliado se implican nuevas obligaciones y deberes en función del
cuidado tenaz del medio y de la biodiversidad, y de un acrecentamiento de la
calidad de vida de los seres humanos actuales y futuros. Responsabilidad,
entonces, también por las “generaciones futuras”.
Esta responsabilidad de nuevo cuño comienza por delinearse en
primera instancia como un “deber de saber”, en el sentido de la necesidad de
conocer, en la medida de lo posible, para actuar responsablemente, las
consecuencias derivables de los cursos de acción humanos modificados por la
tecnología. Por otra parte, esto no significa ni un retorno a planteamientos
meramente consecuencialistas ni, menos aún, una nueva intelectualización de
la moral y de la ética, sino que, hoy por hoy, se muestra un componente
necesario para la realización de los juicios morales y algo que ha de ser tenido
en cuenta en el momento de evaluar, desde el punto de vista de la ética,
problemas de índole ambiental y tecnológica.
Estando todos los seres humanos afectados en mayor o menor medida
por esta ampliación sin precedentes de los alcances de la acción humana
modificada por la tecnología, la conciencia de ello y de los perjuicios acarreados
al ambiente, a los ecosistemas y a la biodiversidad por acciones tecnológicas
antes consideradas neutrales, el deber de saber no cae sólo del lado de los
expertos. Esto trae consigo una notable reforma y democratización de las
prácticas. Más acá de los saberes especializados – cuya necesidad está fuera
de debate, el saber del que se trata es un saber más elemental, pero
compartido y suficiente, acerca de las cuestiones que están en juego en cada
caso y afectan a los ciudadanos, a todos los habitantes de un país o región y al
ambiente. Se impone así, igualmente, la urgencia de promover una divulgación
científica adecuada, que ponga énfasis en la advertencia de los riesgos y que
ejercite una apropiación de los lenguajes y de los saberes no especializados o
técnicos, incluidos los tradicionales y populares. Mi propuesta es la de aceptar,
en la medida de lo posible, como “idea regulativa del cambio necesario”, la idea
Bioética e meio ambiente 27
de la “comunidad de pares ampliada” para la discusión de los cursos de acción
y la toma de decisiones, según el modelo de Funtowicz y Ravetz, de la cual han
de participar todos aquellos que, en alguna forma, se encuentren involucrados
por la adopción de innovaciones tecnológicas y/o de medidas que los puedan
afectar en su salud particular o puedan afectar el medio en el cual viven y
desarrollan diversas actividades.
Mi segunda reflexión, que se vincula con todo lo dicho antes, está
dedicada al desafío contemporáneo de un desarrollo sostenible. Con esta
propuesta, se intenta resolver la tensión compleja entre desarrollo y respeto por
la biodiversidad y la calidad del ambiente.
No me voy a detener en estos minutos finales sobre la evolución de los
conceptos de “desarrollo” y de “sostenibilidad”, este último originado en Ia
ecología y luego ampliado en el contexto de las ciencias sociales, ni tampoco
me referiré a las críticas, polémicas y rectificaciones que se han suscitado al
respecto. La idea de un alcance global de los problemas ambientales estaba ya
implícita en la Declaración de Estocolmo de 1972. En el Brundtland Report,
posterior a aquélla en más de una década, se subrayó el entrelazamiento de las
crisis de población, económica y ecológica, y en dicho informe el desarrollo
sostenible quedó definido como “el desarrollo que satisface las necesidades de
la generación presente sin comprometer la capacidad de Ias generaciones
futuras para satisfacer sus propias necesidades” (CMMAD, Nuestro futuro
común, 1988, 67). Igualmente, en la Declaración de Río de 1992, la idea del
desarrollo sostenible parece alentar en todos y cada uno de los principios
programáticos que allí se postulan. Pero lo que parece obvio en estos
documentos deja de serlo, si se piensa que en las prácticas económicas y de
manejo del ambiente o de innovación tecnológica está instalada una moral de
“bote salvavidas” o de triage, en el mejor de los casos, por obra de la cual las
naciones y grupos poderosos se adjudican la propiedad de los recursos
Bioética e meio ambiente 28
pasando por alto elementales principios de justicia, es decir, sin importar costos
humanos y ambientales.
Quizá no estoy del todo desencaminada si cierro esta conferencia con un
nuevo llamamiento a pensar esta idea del desarrollo sostenible como posible
proyección contemporánea del deseo de un futuro mejor, último refugio de la
utopía, entonces, tal como lo hace Reboratti en Ia conclusión de su libro reciente:
“Tal vez no sea demasiado tarde para retornar el desarrollo sostenible
como una utopía socialmente compartida que piense en un mundo más digno y
equitativo que se desarrolle en un escenario ambiental no depredado,
mantenido en sus cualidades básicas para todos nosotros y los que nos
seguirán” (220).
Rajni Kothari, a la vez que critica la concepción etnocentrista
subyacente en el concepto de desarrollo sostenible del Informe de la World
Commission on Environment and Development, no deja de reconocer que tal
interés contemporáneo es un auténtico interés moral, en tanto este concepto de
desarrollo plantee una alternativa al modelo dominante desde la visión de un
nuevo modo de vivir del cual, en cierto sentido, pueden participar todos los
seres humanos. Si el desarrollo sostenible puede ser considerado desde el
punto de vista de la ética como un ideal válido, a juicio de Kothari, ha de cumplir
cuatro criterios:
“[...] una concepción holística del desarrollo; la equidad basada en la
autonomía y una dependencia mutua de diversas entidades en lugar de una
estructura de dependencia fundada sobre la ayuda y la transferencia de
tecnología con un objetivo de alcanzar un emparejamiento; un énfasis en la
participación; y un acento en la importancia de las condiciones locales y el valor
de Ia diversidad” (1994, p. 236).
Esta utopía del desarrollo sostenible, indudablemente, debería ampliar
el marco dentro del cual se desenvuelven nuestras prácticas profesionales,
nuestra investigación y nuestra docencia universitaria. Es de esperar que ella
Bioética e meio ambiente 29
nos aliente a reencauzarlas con responsabilidad en el contexto de la prudencia
y del respeto por el ambiente y por la diversidad humana y de las otras especies
que una comunidad de pares ampliada hasta los límites de lo posible nos exige.
En lo personal, adhiero a la idea de que podemos intentarlo.
Retomando la alegoría de José Saramago, soñar la isla desconocida y dirigirnos
hacia ella es ya, en algún sentido, haberla alcanzado. Como señalaba Oscar
Wilde: “A map of the World that does not include Utopia is not worth even
glancing at” (1891).
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Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 32
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública
ELMA L. C. ZOBOLI PAVONI∗
e há, na área da saúde, um termo carregado de significados ambíguos, é
“saúde pública”. São diversas as conceituações para esta expressão, algumas
se opondo diametralmente. Um entendimento comum é equiparar o adjetivo
“pública” com a ação governamental, designando, assim, por saúde pública o
conjunto de serviços de saúde governamentais. Este uso encontra-se bastante
difundido nos meios de comunicação, assim como a utilização da expressão
“problemas de saúde pública” para designar agravos de alta freqüência ou risco.
Por essa razão, faz-se necessário explicitar os limites tomados para o
termo “saúde pública” no decorrer desta reflexão, na qual não será utilizado
para significar um conjunto de serviços em particular, nem uma forma de
propriedade, nem um tipo de problema, mas sim, para denotar um nível
específico de análise, o populacional, o da coletividade.
Coletividade que, nos anos setenta, contrariamente às motivações de
Potter, não é o alvo principal da atenção da bioética que cresce mais voltada
para as questões de caráter individual da relação clínica entre os profissionais
de saúde e os pacientes.
A partir dos anos 80, a bioética começa a ampliar seu foco de visão,
situando a relação clínica no contexto de um sistema de saúde e incorporando a
reflexão de questões relativas à estrutura, à gestão e ao financiamento deste
sistema. Neste período, a difusão da bioética em direção aos países do
hemisfério sul, especialmente a América Latina, onde convivem de ilhas de
∗ Escola de Saúde Pública – Universidade de São Paulo – USP.
S
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 33
excelência tecnológica em saúde ao lado da extrema pobreza da maioria das
populações, torna imperativa a inclusão dos problemas da coletividade na
agenda das discussões, com temas como o acesso aos serviços de saúde, a
alocação de recursos em saúde, as questões demográficas e populacionais e a
responsabilidade social e coletiva sobre as condições de saúde. Tanto é assim,
que o Programa Regional de Bioética para a América Latina e Caribe, desde
seu estabelecimento pela Organização Pan-Americana da Saúde, define dentre
as prioridades temáticas em bioética para a região a ética em Saúde Pública.
No final da década de 90, como lembra Wikler (1997), os objetos de
reflexão da bioética aproximam-se ainda mais dos tradicionais problemas da
saúde pública; ela vai lidar com a saúde das populações, entrando em cena as
ciências sociais, as humanidades, os direitos humanos e conferindo maior
destaque às questões da eqüidade e da alocação de recursos na saúde. Os
inaceitáveis aumentos no custo da assistência à saúde, aliados à crise do
estado de bem-estar social, começam a trazer as questões de acesso e
eqüidade em saúde para a agenda da bioética também nos países do
hemisfério norte. De fato, os EUA, a despeito de contarem com o quinto maior
orçamento para a saúde no mundo, têm, depois de 1993, cerca de 41 milhões
de pessoas que não contam com qualquer tipo de assistência médico-sanitária
ou contam com seguros que garantem coberturas limitadíssimas. É o chamado
“paradoxo do excesso e da privação”, ou seja, custos incontroláveis ao lado da
falta de acesso universal.
Portanto, uma questão-chave para a bioética, já presente e que
certamente se acentuará no próximo milênio é a justiça na saúde e nos
cuidados da saúde. O abismo entre os com saúde e os sem saúde acentua-se
dia a dia, basta lembrarmos que a distância entre os 20% mais ricos e os 20%
mais pobres da população do planeta duplicou nos últimos 30 anos. Hoje,
temos mais recursos, vivemos mais e se torna cada vez mais crucial o desafio
ético da distribuição daquilo que a humanidade conquistou.
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 34
Cabe aqui um alerta. Embora as questões principais que o final dos anos
90 trouxeram para a pauta de discussão da bioética no mundo tenha tudo a ver
com o momento ético da América Latina e com as preocupações que marcaram a
bioética desde seu início neste continente, não podemos perder de vista que a
reflexão desses temas desenvolve-se em cenários completamente distintos.
Mesmo reconhecendo que maiores gastos em saúde obrigatoriamente
não refletem um melhor sistema de saúde em termos de eqüidade de acesso
aos serviços e de nível de saúde da população, como nos mostra o último
relatório da Organização Mundial de Saúde, parece-nos muito diferente discutir
alocação de recursos e limitação de gastos em saúde nos países desenvolvidos
que já comprometeram, muitas vezes, cerca de 15% do seu PIB para a área do
que discutir este mesmo tema em países como o nosso, que, além de não
contar com uma fonte definida de financiamento para as ações governamentais
na saúde, tem registrado queda do percentual do PIB gasto neste setor, sendo
que em 1992 não atingiu a cifra de 2%. Os problemas de acesso e custo devem
ser tratados de maneira conjunta, pois, se assim não acontecer, não somente é
de se esperar que muitos continuem tendo o supérfluo antes que haja o
essencial para todos, como muitos dos que têm o essencial podem contar com
a probabilidade de menos no futuro.
Qual a parcela dos gastos sociais que deve ser destinada ao setor saúde?
Que volume dos recursos financeiros deve ser orientado, por uma política pública, à
assistência à saúde? Como distribuir os recursos alocados na saúde entre as
diferentes necessidades e demandas dos cidadãos? Quais devem ser priorizadas e
em quais bases? Quem deve custear os serviços de saúde?
Diante da necessidade de compatibilizar os escassos recursos à saúde e a
totalidade das necessidades e demandas por saúde das pessoas colocam-se
dilemas éticos à sociedade, aos administradores e aos profissionais de saúde.
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 35
Nesse dilema ético, segundo Fortes (2000), as políticas de saúde
pública deveriam orientar-se pela teoria rawlsiana, que propõe que a
distribuição de recursos deva seguir duas etapas:
a primeira exige igualdade na distribuição de deveres e direitos básicos.
Todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e liberdades civis;
a segunda etapa, aceitando o princípio da diferença, afirma que é justo
um tratamento desigual para os envolvidos apenas se resultar em
benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os
membros “menos favorecidos”, “menos afortunados” da sociedade.
Segundo o autor, a interpretação desses preceitos de eqüidade poderia
levar à proposição de que, no processo de alocação de recursos escassos na
assistência à saúde, se mantivesse o princípio da universalidade na distribuição de
recursos, pois isto significaria respeitar a primeira etapa proposta, a da igualdade
entre as pessoas. Em seguida, seria mais adequado destinar o restante dos
recursos para as camadas sociais ou as pessoas menos favorecidas, lembrando
que, no caso brasileiro, estas são a maior parcela da população.
No entanto, na maioria das vezes, a situação é de extrema escassez de
recursos, não havendo o suficiente nem para dar conta da primeira etapa,
sendo necessário priorizar já neste momento. Na tentativa de estabelecer
prioridades nas políticas públicas de saúde, balizamentos diversos têm sido
utilizados pelos gestores, como as bases epidemiológicas e demográficas, os
critérios de morbimortalidade, a vulnerabilidade do agravo, os recursos e a
tecnologia disponíveis, a eficácia e a efetividade dos procedimentos, a força de
trabalho potencialmente afetada e recuperada, a relação custo/benefício e o
impacto social.
A maior parte desses critérios, como sói acontecer na saúde pública,
tem em comum o princípio da utilidade social, proposto pelos filósofos de
origem anglo-saxônica, como Jeremy Bentham. O objetivo perseguido é
propiciar mais benefícios, no caso mais saúde, para o maior número de
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 36
pessoas. Busca-se a maximização dos resultados com minimização de custos,
parecendo injusta toda ação que não consiga o máximo benefício ao mínimo
custo. Assim, entre uma campanha de vacinação e um programa de
transplantes, concede-se prioridade ao primeiro, por mais que esta escolha
resulte em prejuízo e até na morte de pessoas.
A utilização desses critérios, com uma visão obtusa da análise custo-
benefício, pode resultar na restrição de acesso a determinadas tecnologias de
alto custo a fim de se poder prover às necessidades básicas da maioria ou
ainda pode levar à discriminação de grupos minoritários ou considerados pouco
produtivos, como os idosos, os portadores de deficiências ou de patologias
menos prevalentes.
As barreiras de acesso à saúde e à assistência médico-sanitária são ainda
muitas e para os excluídos, um sistema de saúde justo soa como um ideal distante.
Parece aberto um vasto terreno de reflexão bioética, na busca de uma teoria de
justiça na saúde e na alocação de recursos que se mostre capaz de dar conta
desses dilemas, pois cada uma das distintas teorias de justiça consiste numa
reconstrução filosófica de uma perspectiva válida da vida ética, entretanto, é capaz
de captar apenas parcialmente sua extensão e sua diversidade.
O desenvolvimento tecnológico, especialmente a medicina preditiva,
acrescenta novos dilemas a este panorama da Saúde Pública. Ao lado dos
benefícios potenciais pela possibilidade da melhoria na qualidade de vida,
surgem as preocupações éticas. Além das relevantes questões da privacidade e
da não-discriminação com base em predições genéticas, esses dilemas trazem
à tona questões ainda não resolvidas na sociedade e que estão na base de
qualquer prática discriminatória. São as questões relacionadas à dignidade da
pessoa, da vida humana e do valor da diversidade na sociedade. A obsessão
pela informação genética pode obscurecer algumas questões decisivas no
campo da saúde e mais ainda na saúde pública, pois vivemos um momento
especial no qual coexistem os problemas de saúde persistentes, como a falta
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 37
de saneamento básico, a ocorrência de doenças imunopreveníveis, a
deterioração do meio ambiente e a desnutrição com os problemas emergentes,
como o envelhecimento da população e o conseqüente aumento na prevalência
das doenças crônico-degenerativas, o retorno da dengue, da cólera e da febre
amarela, o aparecimento da AIDS, o aumento da violência urbana e os dilemas
resultantes do avanço da biotecnologia.
Esses e outros problemas de saúde pública somente podem ser
atacados com eficácia mediante uma ação intersetorial com a participação ativa
da comunidade. É preciso, como propõe a Carta de Ottawa, que se utilize um
novo paradigma para a saúde, voltado, prioritariamente, para a promoção desta
e não somente para cuidar da doença.
Eis aqui um desafio para a bioética e a saúde pública nos albores do
terceiro milênio: fazer com que o entendimento mais amplo de saúde deixe de
ser retórica para ser uma prática. Configura uma compreensão limitante
restringir a saúde aos serviços médico-sanitários e a justiça em saúde à
eqüidade no acesso a estes serviços.
É urgente uma saúde pública que contraponha ao individualismo
predominante na sociedade contemporânea os princípios da solidariedade e da
eqüidade. A lógica contábil não pode prevalecer sobre as exigências da vida,
assim como não se podem manter padrões dignos de sociabilidade a partir de
óticas individualistas.
Como afirma Adela Cortina (1995), a justiça é necessária para a
proteção dos sujeitos autônomos, mas igualmente indispensável é a
solidariedade. Se a justiça postula igual respeito e direitos para cada sujeito
autônomo, a solidariedade exige empatia e preocupação pelo bem-estar do
próximo. Os sujeitos autônomos são insubstituíveis, mas também o é a atitude
solidária de quem se reconhece inserido numa forma de vida compartida. Uma
ética consone à realidade social contemporânea é a que possibilita a
formação de pessoas autônomas e solidárias, distantes tanto do coletivismo
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 38
homogeneizador como do individualismo sem sinais humanos de identidade.
Tornar possível uma sociedade de sujeitos autônomos na solidariedade é
tarefa política de uma época herdeira do liberalismo e do socialismo, que
aposta nos pilares éticos da autonomia e solidariedade.
Mas como construir essa ética da solidariedade? Um caminho pode
estar na racionalidade comunicativa defendida por Habermas (1988). Para ele,
as sociedades modernas estruturam-se com base em dois princípios societários
distintos: a lógica estratégica do sistema, organizadora do mercado e do
Estado, e a lógica da racionalidade comunicativa, que leva à organização da
solidariedade e da identidade no interior do mundo da vida. A disputa do espaço
social nos pontos de encontro entre sistema (mercado, administração pública,
produção cultural, ciência, tecnologia) e mundo da vida permitiria à sociedade
se defender dos processos mercantilistas e da burocratização das relações
sociais, gerando a possibilidade da criação de espaços de solidariedade.
Essa possibilidade nos remete à essencialidade de uma ética dialógica,
defendendo o estabelecimento democrático do consenso no âmbito de uma
comunidade de comunicação e argumentação, no seio de um processo
dialógico inclusivo e permanente de todos os interessados, os agentes sociais,
no qual se busca, através da argumentação, o equilíbrio possível.
No nosso entender, isso implica ir além do debate público, hoje
colocado como panacéia para muitos males e conflitos sociais, inclui
obrigatoriamente fazer coisas juntos uns com os outros sob a ótica da
prioridade do mundo da vida, pois, como nos lembra Rejane Xavier (1997), é
tendo a responsabilidade de agir, de justificar as escolhas feitas ou não, de dar
razões da ação e de arcar com as conseqüências, que se aprende a viver junto.
Pensando na saúde pública, poderíamos afirmar que será esse fazer junto das
políticas públicas de saúde que suscitará o compromisso da sociedade com
seus ideais de saúde.
Desafios do próximo milênio: bioética e saúde pública 39
A sobrevivência da própria humanidade, e poderíamos arriscar dizer do
próprio planeta, dependem das práticas de justiça e solidariedade. Neste
sentido, parece pertinente terminar esta reflexão com uma advertência de
Martin Luther King: “Temos de aprender a viver juntos como irmãos ou
pereceremos juntos como loucos.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ETHICAL challenges in managed care. Kennedy Institute of Ethics Journal, v. 4,
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Mundo da Saúde, n. 24, p. 5-9, 2000.
O impacto das novas tecnologias na sociedade 40
O impacto das novas tecnologias na sociedade
FRANCISCO DE ARAUJO SANTOS∗
credito que, para poder falar do impacto de novas tecnologias na atual
sociedade, é preciso antes não só definir o que se entende por tecnologia, mas
investigar sua história. Começo, pois, apresentando meu conceito de tecnologia
e um pouco de sua história. Tecnologia para mim é um dos elementos do
processo orgânico, comumente chamado de modernidade. Este processo criou
uma ruptura entre dois mundos: o antigo, ligado ao mito ou à metafísica, e o
moderno que, embora não extinga as assim chamadas “aspirações metafísicas”
de muitas pessoas, coloca tais preocupações no âmbito da intimidade pessoal e
não da discussão social.
MODELOS DE RUPTURA
A teoria da ruptura, expressa em inglês pela expressão big ditch theory,
teve em Ernest Gellner (falecido em fins de 1995) um dos seus mais vibrantes
defensores. Não pretendo afirmar que siga literalmente a teoria de Gellner, mas
aceito a existência desse fenômeno, tendo em vista o grande poder explicativo
que tem em relação aos caminhos tomados pela sociedade humana (Gellner,
1979, 1992).1
∗ Escola de Administração – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Assim, pois, sem me preocupar em estar ou não de acordo com
Gellner, apresento a minha versão da ruptura ou da big ditch theory. Para
enquadrá-la no devido contexto, apresento três modelos da evolução da
1 Embora tenda a concordar com Gellner, que distingue a ruptura do processo evolucionário, creio importante a reflexão de Braudel e de outros autores, segundo a qual “houve uma evolução (um movimento lento), depois uma revolução, isto é, uma aceleração. Dois movimentos ligados um ao outro” (Braudel, 1979, p. 326).
A
O impacto das novas tecnologias na sociedade 41
sociedade humana: o de Comte, o de Marx e o inspirado em Max Weber, que
chamo de Modelo Neoweberiano. O primeiro é bem conhecido e simples (ver
Figura 1). Para Comte, a sociedade humana era feita pela cabeça dos homens.
O que lhes predominava na cabeça, e determinava sua visão de mundo, era
básico para a sociedade. Inspirado remotamente em Condorcet, e, mais
proximamente, em Saint-Simon, Comte concebia três idades, ou épocas, para a
humanidade: a mítica, a metafísica e a positiva. Considero este esquema rico,
poderoso e útil.
Figura 1
Para Marx, a sociedade era feita pela cabeça dos homens que a
dominavam, mas esta cabeça, por sua vez, era determinada pelas estruturas
econômicas. Considerava, assim, uma série de degraus, iniciando com a
sociedade primitiva (comunista), continuando com a escravagista, a feudal, a
burguesa (ou capitalista), havendo a expectativa da passagem para a
sociedade socialista (ver Figura 2). Marx também falava em rupturas (que para
ele eram revolucionárias), e aceitava, como Comte aceitara antes dele, o
processo inevitável da modernidade ou “progresso”. Marx, portanto, embora
O impacto das novas tecnologias na sociedade 42
profundamente inspirado por Rousseau em outros temas, discordava dele na
sua aversão à modernidade (Araujo Santos, 1990):
Figura 2
O meu modelo preferido, por estar inspirado em Max Weber, deve
muito a Marx, já que Weber tirou de Marx boa parte de sua temática, embora
com abordagem distinta. O que apresento com o nome de Modelo
Neoweberiano, é diretamente inspirado no sociólogo inglês, radicado nos
Estados Unidos, John HalI (1985; ver Figura 3). No eixo vertical estão as três
eras da sociedade, ao estilo de Comte: a primitiva (animista ou mítica), as
grandes sociedades agrárias ou feudais (impregnadas da mentalidade
teológico-metafísica) e a modernidade (fundamentada no espírito positivo). O
eixo horizontal registra o passar do tempo. Duas forças aparecem no modelo.
De um lado, há a força do movimento e do progresso; do outro lado, há a
inércia cultural: a manutenção, ao longo do tempo, dos patamares atingidos. A
O impacto das novas tecnologias na sociedade 43
modernidade instaura um furacão, que se expande por todas as civilizações. O
furacão é, assim, a primeira metáfora da modernidade.2
Figura 3
A meu ver, vale a pena ainda traçar o paralelo em que Gellner insistira
bastante antes da década de oitenta, mas que posteriormente abandonou.3
2 Braudel (1979, p. 326), com seu estilo pitoresco e suculento, faz um interessante comentário: “Aparece
o vapor, e tudo no Ocidente será acelerado como que por magia.”
Trata-se das semelhanças entre a assim chamada revolução neolítica: a da
pedra polida, que nos deu as primeiras facas, facões, machados, e, por fim, o
grande avanço tecnológico da época, o arado. O arado consolidou a revolução
agropastoril (ver o ponto A na Figura 3). Lá se dera a primeira grande ruptura
cultural após o aparecimento do homo sapiens. (A origem do homo sapiens é
indicada pelo ponto O na Figura 3.) Até este aparecimento houve o
desenvolvimento do hardware humano (através da dinâmica genética). A partir
3 Revelado em conversa com o autor em Cambridge (UK) em 1984.
O impacto das novas tecnologias na sociedade 44
do surgimento do homo sapiens, põe-se em marcha (através da dinâmica
memética), o desenvolvimento do software, da cultura, a qual inclui também a
tecnologia. Por sua vez, a tecnologia – e esse é um dos problemas a serem
discutidos neste Congresso – está hoje possibilitando ao homem, através da
engenharia genética, intervenções importantes no seu próprio hardware.
Mas aqui é preciso corrigir um certo simplismo implícito no que acima
foi dito. A evolução do hominídeo, desde o afarensis, que apareceu cerca de 3,5
milhões de anos atrás, até o homo sapiens, que terá aparecido no máximo há
500 mil anos, provavelmente menos, não foi feita de forma passiva. A tese
fundamental de Jonathan Kingdon, no seu livro Self-made man (1993), é que os
indivíduos, das diversas “espécies” de hominídeos, “colaboraram”
filogenicamente, utilizando sua inteligência embrionária, mas de crescente
complexidade, para a sua sobrevivência e a da sua descendência, ensejando o
surgimento de espécies com massa cerebral cada vez mais complexa,
poderosa e refinada. Esta hipótese de Kingdon, que poderá parecer
demasiadamente especulativa, é complementada pelos estudos do antropólogo
italiano Fausto Massimini (et al., 1996), por longo tempo associado ao projeto
de pesquisa de Mihaly Csikszentmihalyi (1991, 1992). Este psicólogo americano
de origem húngara codificou o conceito de flow como um estado ativo e criativo,
de dinâmico equilíbrio entre desafios e capacidades. Sucessivos estados de
crescentes desafios só puderam ser vivenciados e superados porque se dera
um desenvolvimento de crescentes capacidades. Daí que Massimini
correlacione (pelo menos implicitamente) a vivência de um certo tipo de flow por
parte dos próprios hominídeos, com o sucessivo aparecimento de formas cada
vez mais complexas. Ora, os sinais reveladores da crescente complexidade e
capacidade dos hominídeos foram os instrumentos que criaram e utilizaram;
portanto, o balbuciar da tecnologia.
O impacto das novas tecnologias na sociedade 45
A LARANJA DA MODERNIDADE
A teoria da ruptura, ou do “grande abismo”, focaliza a separação e é
representada por um vazio. A modernidade, no entanto, é um processo rico e
complexo. Prefiro representá-la por uma metáfora orgânica, uma laranja, que
tem oito gomos, quatro ácidos e frios, e outros quatro doces e quentes (ver
Figura 4). Esta segunda metáfora da modernidade me parece ilustrativa. Junto
com a ciência, o empresamento econômico e a crítica epistemológica, a
tecnologia forma o primeiro grupo de gomos da laranja (Araujo Santos, 2000).
Figura 4
Esses gomos, ácidos e frios, são os elementos da modernidade visados
pelos críticos humanistas em seu movimento cultural contra a modernidade.
Minha ênfase é na multiplicidade ou polivalência do processo. Não engloba só
estes elementos. Engloba, também, os outros quatro a serem abaixo discutidos.
Mas, mesmo antes de analisar os gomos doces e quentes, esta visão da
pluralidade e da complexidade do processo ajuda a compreender cada um dos
elementos individualmente. Cada um deles, em si, tem aspectos positivos e
O impacto das novas tecnologias na sociedade 46
negativos, simpáticos e antipáticos, à visão humanista do mundo. Entretanto,
seja qual for nossa atitude perante a ciência e a tecnologia, delas não
escapamos. Isto nos faz pensar em duas outras metáforas da modernidade. A
primeira foi também sugerida por Max Weber no fim do seu conhecido ensaio A
ética protestante e o espírito do capitalismo: a jaula de ferro (1958; ver Figura
5A). De fato, Weber deveria falar em ratoeira, na qual o animal entra, mas não
consegue mais sair. Às vezes, gosto de dizer: “A modernidade é como uma
‘pequena’ gravidez: um processo inexorável que só pode ser interrompido
abrupta e violentamente.”
Figura 5
Em contraponto a essa metáfora de Max Weber (1864-1920), há a
metáfora implícita em Sigmund Freud (1856-1939). O curioso sobre estes dois
contemporâneos, que escreviam na mesma língua alemã, é que jamais se
leram, embora ambos tratassem dos mesmos problemas. Para Freud, a
civilização moderna era a geradora do grande “mal-estar”, semelhante ao
experimentado pelo rebento que deixava o conforto uterino para enfrentar o
cenário do mundo real. Em toda neurose e psicose, de acordo com Freud, há
O impacto das novas tecnologias na sociedade 47
uma saudade do útero materno (ver Figura 5B). O útero materno seria como
uma floresta virgem em que um número imenso de seres vivem (pelo menos em
nossa imaginação), numa “harmoniosa” simbiose, em contrapartida, a vida
extra-uterina pode ser descrita como o “deserto da liberdade”, no qual o
indivíduo, embora inicialmente perplexo, tem que construir, com as próprias
mãos e junto com sua comunidade, um novo hábitat.4
A MALHA TÉCNICO-CIENTÍFICA
Daí a importância central
da tecnologia. Tendo abandonado a selva, ou a “mãe natureza”, ou o “paraíso
terrestre”, o homem penetra simultaneamente no mundo tecnológico e no
mundo do “mal-estar” (Freud, 1986). Este contraste, entre o impulso para o
avanço e o mal-estar do progresso, é denunciado por Freud em todos os
estágios da civilização. Entretanto, embora Freud não tenha falado
explicitamente na modernidade, é legítimo derivar de seu argumento que o mal-
estar se torna mais agudo com a irrupção da modernidade.
O termo “tecnociência”, sugerido por Bruno Latour (1987), amplia o
significado da tecnologia e a conceitua em conexão inquestionável com a ciência.
Ciência é a caixa aberta à interrogação que tenta avançar além da fronteira da
realidade conhecida. Tecnologia é a caixa preta, fechada. É aquilo que dou por
conhecido quando faço minhas interrogações científicas. Algo que é, hoje, a caixa
fechada, pode ser amanhã a caixa aberta, por já não estarmos satisfeitos com
uma certa teoria vigente. Isto leva também a considerar duas faces na tecnologia:
a de hardware e a de software. O hardware tecnológico é o conjunto de aparelhos
e instrumentos utilizados, seja numa rotina de trabalho, seja numa pesquisa
científica. Software é o conjunto dos conhecimentos, aceitos no campo específico,
e “depositados” em revistas e livros, bem como na cabeça dos profissionais que
atuam no mesmo campo. Distinguem-se, assim, 3 campos de atuação do
4 Revela-se aqui a pertinência da reflexão de Jacques Monod (1970, p. 43): “[...] as
concepçõesanimistas têm ainda raízes profundas e vivas na alma do homem moderno.”
O impacto das novas tecnologias na sociedade 48
indivíduo humano: (1) die Lebenswelt, ou o mundo do dia-a-dia; (2) a tecnologia
propriamente dita, que é o campo de exercício profissional; por fim, há (3) a
ciência no sentido estrito. Nesse último campo fazem-se as investigações,
testando os velhos paradigmas, e introduzindo novos. Estes três campos
identificam também três tipos de vivência social (ver Figura 6).
Esses campos de vivência são, ao mesmo tempo, distintos e
profundamente entrelaçados. A mente do físico, que está familiarizada com os
quarks, com a antimatéria, com os buracos negros, ou a mente do homem
especializado nos mais recentes avanços da eletrônica, está muito distante da
cabeça da “dona de casa”, na cozinha com moderníssimos equipamentos, ou
na sala de estar com sua aparelhagem “multimídia”. No entanto, um extremo
alimenta o outro. Entre estes dois mundos, o do avanço científico e o do dia-a-
dia, há o mundo intermediário, que chamei de mundo da tecnologia. É o mundo
em que o estado da arte é aplicado. Este mundo apresenta também situações
paradoxais. Elas nos oferecem chances de melhora material, mas criam de
nossa parte uma dependência, na qual o grande elo é antes uma confiança
cega do que um “consentimento informado”. (E aqui trago para esse fórum um
problema candente).
Figura 6
O impacto das novas tecnologias na sociedade 49
A malha técnico-científica, em si, exige do homem moderno uma adesão.
Esta adesão genérica não é cega. Ao contrário, é muito bem fundamentada. As
estatísticas sobre a expectativa de vida, o nível de qualidade de vida das
populações de classe média em todos os países, o crescimento desta mesma
classe média nos países mais prósperos, bem como o crescimento geral da
qualidade de vida destas populações de classe média, todos são sinais da eficácia
da malha técnico-científica. No entanto, cada caso é um caso, e individualmente
cada um de nós pode se tornar vítima de falhas do sistema. Tem-se aventado a
hipótese de que a disseminação do nível da educação há de aumentar
constantemente o aspecto crítico e informado do paciente diante do médico, ou do
cliente diante do advogado. Esta é a expectativa, por exemplo, que norteia a
pesquisa que o Dr. José Roberto Goldim (1999) fez sobre o consentimento
informado. Pessoalmente, acredito que a adesão genérica à malha é, sim, fruto do
conhecimento geral que o indivíduo tem sobre o mundo técnico-científico. No
entanto, as decisões individuais a respeito de uma orientação médica, ou de uma
orientação legal, para só ficar nestes dois exemplos, vão depender da relação
pessoal entre o profissional e o cliente, e vão depender, também, e muito, do
estado emocional do próprio paciente ou cliente.
Esses são dois aspectos subjetivos ou existenciais, que sempre
existiram, mas que, devido à sua feição paradoxal, se tornam críticos na
modernidade. A sociedade atual, predominantemente científica e positiva, é,
ainda, a seu modo, uma sociedade de fé e de simpatias. Estas simpatias podem
até ser passageiras, como passageiros são os contatos com os profissionais da
saúde e da lei, ou com os vendedores de jóias e imóveis, bens que não são
comprados com muita freqüência.
OS NÍVEIS DA REALIDADE
O que fica óbvio do acima dito e ilustrado é que as diversas vivências
sociais se distinguem por diversos níveis de realidade. Estes são atingidos e
O impacto das novas tecnologias na sociedade 50
manejados pelas pessoas, que formam as diversas comunidades técnico-
científicas. Por sua vez, o “mundo vivido”, die Lebenswelt, tem como cenário o
primeiro nível da realidade, aquilo que os antigos metafísicos chamavam de
aparência, em contraposição à essência escondida das coisas. A contribuição
definitiva da modernidade, a partir de Galileu, foi passar a considerar a assim
chamada aparência como primeiro nível da realidade.
Vejo-me aqui obrigado a fazer uma pequena incursão no campo da
epistemologia, embora a minha preocupação principal seja a tecnologia. Mas,
como já foi mostrado, a malha técnico-científica aponta para uma verdadeira
simbiose do conhecimento científico com a tecnologia, e vice-versa. Por esta
razão, uma discussão sobre o avanço tecnológico e seu impacto na vida
contemporânea não pode prosseguir sem uma referência ao status
epistemológico da própria ciência.
O problema central da epistemologia é a legitimação do conhecimento.
Ou seja, no caso genérico, quais as razões que tenho para dar minha adesão à
malha técnico-científica? Algumas destas razões já foram apontadas acima. Da
mesma forma, a epistemologia nos poderá gerar regras a serem utilizadas em
casos individuais de escolhas de profissionais. Como disse acima, muitas
destas decisões individuais parecem ser frutos antes de pendores subjetivos do
que de juízos objetivos. A epistemologia trata da objetividade de nossos juízos e
asserções. Principalmente, trata da dificuldade que a maioria da população tem
em fazer juízos objetivos sobre os vastos campos abertos pela ciência. A
rapidez com que estes campos vêm se ampliando e influenciando a vida
cotidiana, criou o paradoxo de considerarmos como “era de incertezas” a época
em que o conhecimento da realidade circundante cresce vertiginosamente.
A situação acima descrita nos leva a distinguir dois conceitos básicos
da realidade: um é concreto, e se refere à vida cotidiana de cada ser humano; o
outro é abstrato e genérico, abraçando a primeira concepção, concreta, mas a
ela adicionando muitos outros níveis. A noção básica de realidade fundamenta-
O impacto das novas tecnologias na sociedade 51
se nas vivências elementares das pessoas, descritas pela linguagem comum, e
dando origem às metáforas fundamentais com que mapeamos o mundo.
Podemos considerar, por exemplo, um aborígine levando um filho ao alto da
montanha e indicando no cenário certas “entidades”, ou qualidades das coisas,
que se tornarão básicas não só nas suas vivências futuras, mas também na sua
linguagem: o alto e o baixo, o próximo e o distante, a esquerda e a direita, ou os
pontos cardeais, etc. Da mesma forma, um pai hoje, num mirante no topo de um
arranha-céu, pode ter as mesmas vivências e as expressar a seu filho em
termos bem parecidos. Esta é a realidade universal, expressa de modo mais ou
menos semelhante em todas as línguas. Esta é a realidade da nossa referencial
idade básica. Gosto de falar na velhinha que atravessa a rua com cuidado, para
não ser atropelada pelo entregador de pizza em sua veloz motocicleta. Mas há
uma realidade muito mais genérica, muito mais ampla, que pode ser expressa
por uma matriz nas dimensões m por n, sendo ambos os números, embora
desiguais, aproximadamente infinitos (Figura 7). A primeira coluna desta matriz
reproduz a realidade vivencial básica, de que falávamos, e que expressam os
níveis cada vez mais avançados de conhecimentos nos vários campos
indicados pelas linhas da matriz.
Ora, como nos mostra a história da ciência, desde que Galileu fez uso
do telescópio, esse avanço do conhecimento não se teria feito sem a ajuda da
tecnologia. Em geral, consideramos a tecnologia como meio de intervenção no
mundo externo. No entanto, ela é imprescindível como meio de progresso do
conhecimento científico. É por causa do avanço tecnológico que podemos ter
uma concepção da realidade com uma matriz abstrata. Ou seja, um
conhecimento do mundo que vai além do olho nu.
O impacto das novas tecnologias na sociedade 52
Figura 7
OS GOMOS QUENTES DA LARANJA
Assim como os gomos ácidos e frios têm na ciência o seu carro-chefe,
assim também os gomos doces e quentes têm a sua cabeça de ponte nos
direitos humanos universais (ver Figura 4). Na concepção orgânica do processo
da modernidade todos os outros elementos quentes derivam da universalização
dos direitos, assim como todos os elementos frios seguem o progresso da
ciência. O curioso é que esses dois elementos da modernidade (a ciência, ou
investigação científica, e os direitos humanos universais) nascidos da mesma
raiz, tenham aspectos antagônicos. O caso de Galileu é bastante ilustrativo: o
indivíduo quer ter o direito de fazer uma indagação científica, mas um poder
maior o impede de fazê-lo. Esta foi a intuição básica expressa no Galileu de
Brecht: a universalização, para todo o povo, do direito de pensar. Concordo.
Em vez de insistir nos aspectos antagônicos entre os gomos frios e
quentes, quero insistir na sua raiz comum. Sob este ângulo, desejo analisar o
impacto da tecnologia na sociedade moderna. Há um grande mal-entendido a
O impacto das novas tecnologias na sociedade 53
respeito do ponto de vista inicial, que impede o sereno debate sobre o
problema. A análise das relações entre a tecnologia e a sociedade tem sido
infectada por considerações relacionadas com o poder exercido pelos diversos
atores do processo. Ou seja, a suspeita de que os atores ou ameacem os
poderes existentes ou queiram aumentar o seu domínio sobre os outros,
impede uma análise isenta sobre o benefício que determinado avanço
tecnológico possa trazer para toda a humanidade. Tive a oportunidade de
assistir, cerca de um ano atrás, um interessante debate sobre transgênicos,
entre o Prof. Francisco Salzano e o atual Secretário de Agricultura do Rio
Grande do Sul. O Prof. Salzano insistia nos benefícios que o avanço
tecnológico podia trazer para toda a população. O Secretário Hoffmann insistia
nas desvantagens do aumento do poder econômico da empresa produtora de
sementes transgênicas. O que a platéia ouviu foram dois discursos paralelos,
não convergentes. Uma observação muito lúcida foi, então, feita pelo Prof.
Cordeiro, decano dos biólogos gaúchos, mais ou menos nos seguintes termos:
“Alguma entidade deverá produzir os transgênicos. Seja o Estado, seja uma
organização privada. Não podemos roubar à população a oportunidade de
acesso a esse avanço tecnológico.” Na minha ousadia de leigo no assunto
gostaria de fazer a seguinte conclusão: o homem é um animal transgênico;
através da dinâmica genética o símio se transformou em hominídeo, e o
hominídeo se transformou em homo sapiens. Por sua vez, através da dinâmica
memética, o homem moderno tem sido capaz de fazer progressos técnico-
científicos, até chegar à assim chamada engenharia genética. Como justificar
eticamente o amordaçamento de Galileu?
Consideremos, agora, as objeções das pessoas que pensam como o
Secretário Hoffmann. Não lhes passa pela cabeça amordaçar ninguém.
Desejam é coibir o abuso do poder econômico que possa trazer malefícios à
população. Como o Estado não tem recursos para produzir os transgênicos,
preferem atender o mercado dos que não querem os transgênicos. Mas, mesmo
O impacto das novas tecnologias na sociedade 54
que haja um grande mercado para as sementes não-transgênicas, ou naturais,
quem nos garante que não haja aí um erro coletivo? Afinal, os humanistas
também erram! Para esclarecer o problema, consideremos dois casos. O
primeiro é o da indústria do fumo, ou do cigarro industrializado; o segundo é o
dos refrigerantes, como a Coca-Cola e Pepsi-Cola, que dominam o mundo. Em
países europeus, mesmo não-comunistas como a França, os cigarros foram
produzidos por indústrias estatais, como, aliás, em quase todo o mundo as
loterias são exploradas pelo Estado. Afinal, a indústria do fumo é fonte de
preciosas rendas para o Estado. Onde o Estado não produz, diretamente,
ganha muito (provavelmente mais do que se produzisse diretamente), através
dos altos impostos que incidem sobre o fumo em geral. Hoje se chegou à
conclusão de que as doenças produzidas pelo fumo não só ameaçam a
qualidade de vida da população, mas que o próprio Estado fica muito onerado
com as despesas decorrentes destas doenças, e que devem ser arcadas pelo
sistema oficial de saúde.
Nenhuma das duas indústrias, a de cigarros como a de refrigerantes,
representa um extraordinário avanço na ciência e na tecnologia. No entanto, no
seu processo de produção, seja técnico, seja legal, bem como de distribuição
comercial pelo mundo todo, ambas são sustentadas pelo que há hoje no mundo
de tecnologicamente mais avançado. Podemos mesmo dizer que tanto a Coca-
Cola como o cigarro Malboro são mundialmente comercializados graças aos
avanços da tecnologia. No caso do cigarro, este fruto da tecnologia é
claramente deletério, havendo, hoje, no Brasil um projeto de lei, de iniciativa do
Ministério da Saúde, proibindo todo tipo de propaganda. Eis um exemplo de
impacto deletério da tecnologia, considerada num sentido amplo. Será que
podemos dizer o mesmo da Coca-Cola ou da Pepsi-Cola? Lembro mesmo de
um monge beneditino, criticando a vulgaridade do mundo atual, marcado pela
“geração Coca-Cola”, à qual ele contrapunha a “nobreza” do vinho; o vinho que
tem um papel importante na liturgia católica. A ironia é que o vinho, com sua
O impacto das novas tecnologias na sociedade 55
“nobreza artesanal”, nas regiões onde é produzido, tem gerado hábitos
deletérios, com o seu uso entre crianças.
OS CINCO MECANISMOS DA SOCIEDADE MODERNA
Esses dois exemplos podem não ser os mais felizes, mas mostram
como numa sociedade complexa leva muito tempo para que se forme um juízo
sobre práticas e hábitos. Entre os gomos quentes e doces da modernidade há o
que chamo de “a emergência das ciências sociais”. Ora, estas ciências
emergiram e cresceram com os mecanismos sociais, marcantemente
modernos, que são por elas estudados. O primeiro mecanismo é a autoridade
ou o governo, é o primeiro elemento formador de qualquer agrupamento de
indivíduos. Na sociedade moderna, porém, a autoridade é escolhida
democraticamente, e separada em poder executivo e legislativo. Há ainda toda
uma estrutura institucional que permite o funcionamento de vários partidos
políticos. Os valores almejados por este mecanismo são a ordem e a liberdade
democrática. O segundo mecanismo é o da justiça, orientado para a justiça
como valor. O terceiro mecanismo é o da ciência e educação, voltado para o
conhecimento como valor. Em parte, a malha técnico-científica retrata a
operação deste mecanismo dentro da sociedade. Temos, ainda, o quarto
mecanismo: a sociedade civil, que se orienta para a liberdade de fruição.5
CONCLUSÃO: O IMPACTO NA SOCIEDADE E O HORIZONTE ÉTICO
Por
fim, há o mecanismo de mercado, que se guia pelo valor econômico das coisas.
As ciências sociais, que emergiram com a modernidade, nada mais são do que
o estudo destes mecanismos. A atuação equilibrada destes mecanismos vai
permitir que, a médio e longo prazo, a sociedade aprenda a usar a tecnologia, e
corrija os erros que possa ter cometido, como fez no caso do cigarro.
5 Em capítulo de livro em preparo, inspirado na laranja da modernidade, discuto as duas liberdades
aqui identificadas, a democrática e a de fruição.
O impacto das novas tecnologias na sociedade 56
Já advoguei em outras oportunidades, e em algumas publicações
(Araujo Santos, 1997), a hipótese de que o nível moral das sociedades tem
melhorado com a modernização. Trata-se de uma idéia controversa, e não é
exigida como premissa pelas conclusões deste trabalho. Se acredito que as
sociedades humanas possam ter melhorado seu comportamento ético ao longo
do processo da modernidade, não acredito que a tendência dos seres humanos
para a autodestruição individual e social (na qual incluo o processo de
decadência moral), tenha diminuído. Ou seja, o que os moralistas identificam
como a misteriosa tentação para fazer o mal, inclusive para si mesmo, no médio
e longo prazo, continua forte como sempre. Ao utilizar a tecnologia, o homem
pode ser vítima destas tentações. Mas a tecnologia não é um mal em si, nem
aumenta por si só a probabilidade de o homem ceder mais às tentações do mal.
No contexto completo da modernidade, tal como a considero, a tecnologia deve
ser considerada como algo de bom e positivo. Não é apenas algo neutro. No
entanto, nada impede que a perversidade humana transforme coisas boas em
sementes do mal.
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O impacto das novas tecnologias na sociedade 57
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WEBER, Max. The protestant ethic and the spirit of capitalism. New York:
Charles Scribner’s Sons, 1958.
Deontologia Médica e Bioética 58
Deontologia Médica e Bioética
GENIVAL VELOSO DE FRANÇA∗
ntes, a Deontologia Médica era um assunto que dizia respeito apenas à
profissão médica, distante de qualquer outro interesse que não fossem
aqueles ditados e protegidos pelos ditames morais e culturais dos que
exerciam a profissão.
Atualmente, isso não se verifica mais. A Deontologia Médica alcança
aspectos significantes a partir do instante em que as grandes inovações no campo
da saúde começam a modificar a vida humana e quando há dúvidas e reclamações
na maneira como tudo isso ocorre. Como diz Martin:1
Desse modo, a Deontologia Médica vai pouco a pouco se
transformando num projeto do interesse de todos, pois a vida e a saúde não são
apenas do interesse dos médicos e de suas corporações, mas também de
todos os segmentos da sociedade. Algumas das posições antes assumidas
pelos médicos foram esquecidas e outras questionadas, sendo certamente
reformuladas com o passar do tempo, pois muitas serão as pressões para isto.
A velha fórmula de entender que o médico sabe sempre o que é bom para o
paciente, sem nenhuma justificativa ou consentimento do paciente ou dos seus
familiares, vai sendo paulatinamente substituída por outra onde as pessoas
exigem o direito de saber as razões e os motivos do que nelas se faz. E, até
mesmo, o direito e a motivação para cobrar do profissional possíveis danos
onde fique manifesto o descumprimento de seus deveres de conduta ética ou
de ofício.
“Além da questão técnica do
que se pode fazer, surge a questão ética do que se deve fazer.”
∗ Universidade Federal da Paraíba. 1 MARTIN,... A ética médica diante do paciente terminal. Aparecida: Santuário, 1993.
A
Deontologia Médica e Bioética 59
Isso quer dizer, portanto, que numa sociedade pluralista não sejam
apenas os médicos a contribuir para a reformulação das regras éticas de suas
atividades. Eles próprios reconhecem hoje a importância e a necessidade da
contribuição que a sociedade como um todo venha a dar às questões cujas
diretrizes e valores estão em jogo na relação cada vez mais trágica entre o
médico e o paciente, principalmente com ênfase ao que se chama de “direitos
dos doentes”. Tal fato está claramente evidenciado dentro de uma concepção
que agora é chamada de “bioética”. Esta concepção fez com que, no atual
Código de Ética Médica, a base dos direitos do paciente não seja mais pelo fato
de ele ser doente, mas pela sua condição de ser humano. Houve, portanto, um
notável avanço na relação entre o médico e a população, ambos como que
assumindo um compromisso mais sério em querer transformar a sociedade.
Por outro lado, a socialização da medicina com a expansão dos
serviços de saúde e a criação das instituições prestadoras da assistência
médica, colocou-se entre o médico e o paciente, inclusive assimilando as
situações novas e suas complexas implicações de ordem éticas e morais. E,
assim, o que antes era apenas da exclusiva responsabilidade do médico,
passou, também, a ser dessas instituições que prestam serviços à saúde, as
quais não poderiam ficar indiferentes às normas que se inclinam em favor das
ordens pública e do interesse social.
Desse modo, há motivos políticos e sociais que começam a reclamar
dos médicos posições mais coerentes com a realidade que se vive. Um modelo
capaz de revelar o melhor papel que essa postura venha desempenhar no
complexo projeto de direitos e deveres, e que possa apontar, com justiça e
conveniência, o caminho ideal na realização do ato médico e nas exigências do
bem comum. Cria-se uma nova conceituação baseada em princípios de uma
bioética, onde se faz uma ponte ou um elo mais ajustado entre as ciências da
vida e o humanismo.
Deontologia Médica e Bioética 60
A Medicina sofreu um extraordinário e excitante progresso, obrigando o
médico a enfrentar situações novas, algumas delas até em conflito com seu
passado hipocrático. Situações jamais imagináveis começam a ser da rotina
comum da prática médica, como os transplantes de órgãos e tecidos, a
fertilização assistida e o próprio uso da cartografia do gene humano e, do
desdobramento disto, a necessidade de se criar limites de regras éticas,
colocando cada coisa no seu devido lugar: de um lado, a necessidade de se
propiciar condições de vida e de saúde cada vez melhor; de outro, a
preocupação de não se descuidar da dignidade humana.
Não é exagero dizer, portanto, que a saúde e a doença, como
fenômenos puramente sociais, exigem soluções políticas. Exigiu-se do médico
uma saída imediata em busca de um processo de conscientização crítica, no
sentido de não perder seu direito de decisão. Ele não pode permanecer na
periferia das doenças. Teve de reduzir seu poder sobre o indivíduo e ampliar
sua capacidade de intervenção sobre o meio. Assim, as regras éticas
contemporâneas, mesmo sem se distanciar das influências hipocráticas, foram
necessariamente incorporadas às novas idéias oriundas de muitos anos de
exercício profissional, de sentidas reflexões e de duros embates.
Tal fato se deve não apenas às questões de ordem econômica, social,
política e jurídica, mas, também, às incursões de ordem filosófica que se
registram na discussão e na avaliação sobre o poder médico. A Deontologia
Médica mais tradicional vai se transformando, queira-se ou não, num ramo da
filosofia moral e particularmente da ética prática, e isto, com certeza, se bem
aproveitado, dará oportunidade para se responder a muitas questões que ainda
continuam desafiando o estudioso desta matéria. Queira-se ou não, somos
obrigados a reconhecer que muita coisa se deve às teorias filosóficas da moral
quando se fala da evidente transformação da ética médica. Dificilmente a
Medicina voltará ao tempo em que a sua ética era uma questão apenas
corporativa. Assim, por exemplo, questões como o suicídio assistido, a cirurgia
Deontologia Médica e Bioética 61
transgenital e o próprio conceito de morte serão assuntos muito mais da
discussão do conjunto da sociedade do que propriamente de uma decisão
interna corporis.
Se a Deontologia Médica é uma harmonia entre a teoria e a prática, não
se pode carregar numa ou noutra coisa, pois se corre o risco de transformar a
Medicina numa atividade eminentemente subjetiva ou reduzi-Ia a simples
executora de regras técnicas.
Ninguém pode esquecer que as teorias dos filósofos da moral têm
influenciado muito a forma de exercer a profissão naquilo que diz respeito a
certas condutas até então inimagináveis, notadamente numa profissão de
regras não-tradicionais. Isto não quer dizer que os médicos vão deixar que o
curso de sua profissão seja ditado por aqueles pensadores. Não. Mas é muito
importante que se aliem algumas propostas no sentido de restabelecer o
humanismo que se perde a cada instante.
A Medicina viveu ao longo de muito tempo no período hipocrático, presa
aos rigores da tradição e das influências religiosas. Pode-se dizer que esta fase
permaneceu por muitos séculos e se estendeu até o final dos nossos anos
cinqüenta. Já no século XVII e XVIII o pensamento ético se afasta da religião
(Hobbes, Locke, Hume, Kant). A obra de Thomas Percival, Medical ethics
(1803), tem muito da filosofia moral de David Hume. Naquela época, tudo
levava o médico a conduzir-se da forma mais virtuosa e sua profissão
equiparava-se a um sacerdócio, inclusive servindo-se como modelo pedagógico
para as regras da vida moral das outras pessoas.
Tal postura respondia a um modelo calcado no corpus hipocraticum,
constituído de um elenco de normas morais imposto pelos mestres de Cós. A
virtude e a prudência eram os pilares dessa escola. Esses postulados, é claro,
colocavam o médico muito mais perto da cortesia que de um profissional que
enfrenta no seu dia-a-dia uma avalanche enorme de situações tão complexas e
tão desafiadoras. Assim, este modelo consistia numa avaliação sobre
Deontologia Médica e Bioética 62
determinada conduta, o que certamente lhe deixava com poucas opções, pois o
médico virtuoso era aquele que sempre acatava os ditames preconizados nas
regras inflexíveis do juramento hipocrático.
Nesse estágio, a vinculação da Medicina com a Filosofia era de tal
ordem que foi preciso reencontrar sua independência, justificando o caráter
experimental e circunstancial do exercício da profissão. Mesmo assim, esta
ética hipocrática permaneceu quase inteira, a ponto de interferir em quase todos
os Códigos de Ética e nas Declarações de Princípios adotados no mundo inteiro
e de que se tem conhecimento até o fim da década de 60, apenas com algumas
atenuações dos rigores morais mais históricos.
O segundo período, a partir dos anos sessenta, foi caracterizado por
uma modificação da ética médica tradicional por teorias emergentes da filosofia
moral, das decisões emanadas dos tribunais, da institucionalização das
especialidades e da despersonalização da relação médico-paciente. Além
disso, verificou-se que, a partir da utilização de uma tecnologia médica mais
sofisticada, muitos foram os conflitos com a ética do médico até então. A Ética
Médica mais tradicional foi sendo deixada de lado quando se tinha de decidir
sobre algo tão complexo e premente, e quando uma maior capacidade técnica
de resolução gerava mais desafios àquela ética convencional. Precisamente
nos anos setenta, começou-se a desenvolver a chamada teoria de princípios,
onde se preconizava a beneficência, a não-maleficência, a autonomia e a
justiça, sempre baseada num raciocínio de que, se um ato tem conseqüência
boa e está ajustado a uma regra, ele é eticamente recomendável.
De início, essa teoria foi amplamente aceita em virtude de não existir, à
primeira vista, algo que se conflitasse com as teses deontológicas da teoria das
virtudes. E mais: ela apresenta a vantagem de reduzir o aspecto mais subjetivo
que permeia as questões da ética tradicional, permitindo algumas posições
mais claras, principalmente diante de certos problemas até então dogmáticos.
No entanto, essa teoria foi demonstrando na prática que não era suficiente para
Deontologia Médica e Bioética 63
responder a certas indagações de ordem mais pragmática, as quais exigiam
respostas mais iminentes, como, por exemplo, o aborto, a eutanásia e a doação
compulsória de órgãos, assuntos estes em que os principialistas divergem
abertamente. E mais: daqueles princípios, apenas o da beneficência e o da não-
maleficência ajustam-se às regras hipocráticas, enquanto o da justiça e o da
autonomia tudo faz crer que colide com aqueles postulados, face ao confronto
com o velho paternalismo da ética tradicional, que não abria espaço para as
decisões do paciente e da sociedade.
O próprio Código de Ética Médica, atualmente em vigor, não elege o
princípio da autonomia como o mais legítimo. Muitos até admitem que a sua
aceitação absoluta pode colocar em segundo plano o melhor juízo do médico e
o bem do paciente, embora reconheçam neste princípio um meio legítimo para
a obtenção do consentimento esclarecido. O princípio da justiça ou da eqüidade
é o que se afasta mais da concepção hipocrática, pois esta sempre esteve mais
ao lado do bem do paciente do que do bem da sociedade. Este princípio só
tomou força a partir do momento em que se flagrou as desigualdades sociais e
a péssima distribuição dos cuidados com a saúde das comunidades flageladas
pela iniqüidade e pela penúria. Esta doutrina hoje tem muitos adeptos face ao
prestígio e à mobilização dos iniciados na Bioética, os quais vêm passando aos
mais jovens tais conceitos como proposta de solução para os problemas éticos
do dia-a-dia. Todavia, seus defensores, conhecendo as limitações dessas
idéias, principalmente pela inexistência de uma base moral mais convincente,
começam a defender a justificativa de que não há princípios morais inflexíveis e
que cada um deve condicionar sua postura de acordo com as nuanças de cada
caso em particular. A maior falha deste sistema é a não-fixação de uma
hierarquia em seus princípios, mesmo entre os chamados “principialistas”. Isto
não quer dizer que a Bioética não seja um caminho para uma grande discussão
em favor da ética do médico.
Deontologia Médica e Bioética 64
O terceiro período, no qual estamos convivendo, pode ser chamado de
antiprincipialista, porque a justificativa moral é de que aqueles princípios se
conflitam entre si, criando-se uma disputa acirrada pela hierarquia deles. Diz-se,
aqui, que aqueles princípios são insuficientes para satisfazer as necessidades
dos dias de hoje e trazer respostas aos desafios do exercício da medicina mais
atual. Outros o chamam de teoria da ética do cuidado. Dizem, ainda, que a
teoria dos princípios é por demais abstrata, não levando em conta certas
particularidades que não poderiam passar sem reparo, como, por exemplo, as
características pessoais de sexo, idade, cultura, história pessoal, gravidade dos
transtornos e circunstâncias do atendimento. Outros afirmam ainda que esses
princípios são por demais abstratos e distantes das situações que se
apresentam. Quando os principialistas discutem, nota-se que os caminhos da
ética são muitos e diferentes.
Esse terceiro período, então, passa a ser o da virtude, do cuidado
solícito e da casuística. A teoria da virtude não se preocupa tanto do tema do
bom e sim na resposta à pergunta: “que tipo de pessoa gostaria de ser?” (A
resposta seria: “competente”, “fiel”, “alegre”..., que corresponde a uma virtude.)
A ética do cuidado solícito estaria sujeita a uma pauta confiável de tomada de
decisões morais específicas. A casuística seria uma posição tomada a partir de
casos concretos e singulares, capazes de serem usados como exemplo de
consenso. Este conjunto, representante deste terceiro período, mas apenas não
aceita a sua absolutização. Por outro lado, deve-se considerar que é difícil
considerar a virtude como base desse sistema, pois não existe um ideário muito
claro para as tomadas de posição. O mesmo pode-se dizer quanto à ética dos
cuidados solícitos e à prática da casuística.
O quarto período, que ainda não começou, está se desenhando como
uma crise entre os conceitos principialistas, as idéias anti-principialistas e o
ceticismo de uma filosofia moral que não vem contribuindo para a verdade a
que se quer chegar. Mesmo assim, esses filósofos e eticistas vão propor uma
Deontologia Médica e Bioética 65
idéia global e normativa, comum e humanitária, capaz de respeitar as opiniões
divergentes e que permita confrontar diferentes crenças e concepções. E mais:
que seja capaz de atenuar os impulsos da ciência e da tecnologia que tudo
parece saber e explicar e quando a vida do homem começa a ser controlada
pelo interesse de uma economia centralizada.
É bom repetir que aqueles princípios isoladamente deixem de existir,
até porque a ética sempre foi mantida por um sistema que se sustenta em
“princípios”. É claro que essa proposta não é tão fácil de ser assimilada quanto
se imagina, pois é difícil admitir-se uma idéia de homogeneização cultural da
moralidade, principalmente quando se quer impor uma ética de padrão ocidental
em confronto com outros costumes tão diferentes. Ainda mais porque a idéia de
uma verdade única é ilusória.
Mesmo que exista a possibilidade real de se entender a doença e a
cura como um fenômeno universalizado, ainda assim não será fácil a
generalização de um sistema de normas que sustente e ampare a ética do
médico. Ou que garanta que aqui ou acolá não se venha privilegiar indivíduos
ou grupos numa verdadeira “ditadura de cuidados”. É preciso que esse ideal
não se transforme num pesadelo.
Por isso, é imprescindível que se mantenham as discussões não
apenas no sentido da aceitação plural de idéias, mas que estas idéias sirvam
para desbastar cada vez mais as divergências sociais que existem em
determinadas concepções políticas e ideológicas, fazendo com que a Medicina
seja um instrumento capaz de promover o bem comum.
Finalmente, é justo dizer que não se pode afirmar com certeza o que
será do futuro da ética dos médicos nos próximos anos, a partir do momento
que não se sabe afinal qual será o resultado do diálogo entre médicos e
filósofos da moral. Esperamos que deste encontro não surja um descompasso
entre estas duas ordens, onde, de um lado, tenha-se um tecnicismo
exageradamente frio, e, de outro, uma ética de situação falsa e extremamente
Deontologia Médica e Bioética 66
subjetiva. O ideal será uma ética capaz de alcançar o homem de agora na sua
integralidade, restabelecendo a dignidade e denunciando os horrores de seus
dramas e de suas iniqüidades.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 67
As interfaces entre a Bioética e o Direito
JUDITH MARTINS-COSTA∗
anúncio, há 5 dias, pela comunidade científica internacional, do “mais
importante mapa feito pela humanidade”, como disse o Presidente Clinton ao
aludir ao seqüenciamento do código genético, faz sair a reflexão bioética das
salas das universidades para situá-la como um tema de interesse do homem
comum, do leitor dos grandes jornais – este mesmo leitor que, em 1997, restou
perplexo, quando noticiados os resultados das experiências realizadas pelo
Doutor lan Willmult que resultaram na criação da célebre ovelha Dolly.
A estupefação do leitor de jornais reflete, em larga medida, a
perplexidade do jurista: ela não é devida, contudo, como a do leigo, apenas aos
inacreditáveis fatos científicos, mas é acrescida por uma dúvida crucial: como
compatibilizar a reflexão ética propiciada pelos novos paradigmas científicos
com a racionalidade “utilitarista” comumente atribuída ao regramento jurídico?
Afinal, o Direito lida com uma aporia fundamental – saber o que é justo, aqui e
agora, e, a cada problema social concreto, uma resposta, também concreta e
imediata, deve ser dada pelos Tribunais, sob pena de denegação de justiça.
A questão de saber como compatibilizar a reflexão ética propiciada
pelos novos paradigmas científicos com a racionalidade do regramento jurídico
– questão que traduz, afinal, a complexidade das interfaces entre a Bioética e o
Direito – subjazem outras questões igualmente complexas. Responder a ela
implica questionar: Para que serve o Direito? Como ele é feito? Como ele é
aplicado? Implica desmentir certas concepções que vêem o Direito como o
∗ Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
O
As interfaces entre a Bioética e o Direito 68
produto de um legislador demiúrgico e autoritário; implica fundamentalmente
falar do Direito como “regulamentação coordenada dos comportamentos
sociais”, regulamentação, contudo, que não se desvincula da experiência social
concreta, e que constitui a síntese de uma tríade – segundo a concepção de
Miguel Reale – entre fato, valor e norma, isto é, o fato social, o valor ético que
lhe é atribuído por cada sociedade, em cada momento da sua história, e,
finalmente a recolha deste fato, valorado eticamente, por uma norma dotada de
poder de coerção, como o é a norma jurídica.1
Responder àquela questão implica, por igual, situar o escopo da
Bioética e o seu estatuto epistemológico, matéria ainda não consensual entre os
estudiosos e aventar a possibilidade da construção de um Biodireito, tema ainda
menos consensual na doutrina.
Na arriscada tentativa de alinhavar algumas respostas a essas
questões, proponho o exame do tema a partir da compreensão dos modelos de
construção das respostas jurídicas. Posteriormente, examino se há princípios
comuns que possam atuar como ponte entre a reflexão bioética e a construção
de soluções jurídicas.
O DIREITO COMO CONSTRUÇÃO DE MODELOS DE RESPOSTAS
Foi o racionalismo iluminista que pensou o fenômeno jurídico como um
sistema de regras, dividindo a experiência social em dois distintos planetas – o
planeta do Direito e o planeta do não-Direito. Foi a assunção pelo Estado, na
Revolução Francesa, da tarefa de criar as regras jurídicas e arrumá-las em
conjuntos de leis – os códigos – que fez o ordenamento jurídico aparecer como
um sistema fechado de regras, postas por ato de autoridade estatal, regras que
traduziriam a totalidade dos comportamentos sociais merecedores de tutela
1 Sobre o tridimensionalismo veja-se em especiaI: Teoria tridimensional do Direito (5. ed. Saraiva, 1994),
Verdade e conjetura (Nova Fronteira, 1983), Fundamentos do Direito (3. ed. Revista dos Tribunais, 1998) e Fontes e modelos do Direito – para um novo paradigma hermenêutico (Saraiva, 1994).
As interfaces entre a Bioética e o Direito 69
jurídica, sendo, por isso, excludentes de outras fontes de normatividade. E foi,
enfim, o cientificismo oitocentista – que perdurou, em larga escala, no século
XX – que tentou perspectivar o Direito numa ciência “pura”, isto é, livre da
“contaminação” de outros setores vitais da experiência humana, como a Ética, a
História, a Economia.2
A concepção que derivou dessas idéias, vigorantes nos últimos 200
anos, foi conhecida como legalismo, termo que indica a pretensão de reduzir o
fenômeno jurídico e uma de suas manifestações – a lei de origem parlamentar –
fazendo crer à sociedade que, a cada novo problema, seria necessária a
intervenção autoritária do legislador para fazer com que a nova realidade,
saindo do obscuro campo do “não-Direito” fosse, assim, jurisdicizada.
Essa concepção foi, contudo, posta em crise no século XX,
principalmente na sua segunda metade.3
Por isso, o acerto da concepção pela qual as normas jurídicas que
resultam das fontes constituem, por certo, expressão de modelos
prescritivos, sendo, porém, dotados de um essencial sentido prospectivo.
Diferentemente do que ocorria no
passado, hoje o Direito não é visto tão só como ciência, mas,
fundamentalmente, como prudência, como arte prudencial que está inter-
relacionada, fundamentalmente, com as demais instâncias componentes do
rodo social, notadamente a Ética. A sociologia aponta ao fenômeno das leis que
“não pegam”, isto é, que não têm verdadeira eficácia social, porque divorciadas
da realidade do seu tempo, dos suportes éticos que as tornaram
consensualmente aceitáveis.
4
2 Sobre o tema, o meu A boa fé no Direito Privado (Revista dos Tribunais, 1999), em especial Parte I.
Presente esta concepção pode-se compreender que o “dever-ser” ínsito à
norma jurídica não é um mero enunciado lógico, mas “um dever-ser que se
3 Para este exame, veja-se, entre tantos: LARENZ, K. Metodologia da ciência do Direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, Parte Histórico-Crítica.
4 REALE, Miguel. Fontes e modelos. Op. cit., p. 30.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 70
concretiza na experiência social, correlacionando-se com conjunturas
factuais e exigências axiológicas”.5
Da alteração da concepção de fonte chegou-se, por igual, à alteração
do modelo pelo qual se expressa a normatividade mesmo na fonte legal: ao
lado dos modelos cerrados, no qual o fato da vida, ou comportamento social
devido, vem perfeitamente caracterizado e conectado a uma determinada
conseqüência – isto é, o chamado modelo da tipicidade, na qual há uma
espécie de pré-figuração, pelo legislador, do comportamento típico – passa-se a
utilizar em certas disciplinas, como o Direito Civil e o Constitucional, também
modelos abertos. Nestes, o legislador não desenha o comportamento típico, ao
contrário, utiliza uma linguagem intencionalmente vaga, aberta, fluída,
caracterizada pela ampla extensão do seu campo semântico.
6
Esses modelos abertos, vazados em linguagem “vaga”, são apropriados
para canalizar, juridicamente, as exigências axiológicas fundamentais, tanto na
Bioética quanto no Direito. Por isso, afirma-se que estas vêm expressas
preferencialmente em princípios. Compreendem, hoje, os juristas, que o
ordenamento é composto por princípios e por regras, ambos espécies
integrantes de um mesmo gênero, o das normas jurídicas.
7
O ordenamento jurídico apresenta-se, assim, não como um sistema
fechado de regras que têm a pretensão da plenitude legislativa e da completude
lógica, mas como um sistema aberto de princípios e regras, constituindo a sua
positivação um processo no qual intervém o legislador, o juiz e a comunidade.
5 Idem, p. 31. 6 Ao invés de descrever a factualidade, emprestando-lhe determinada consequência jurídica, o legislador
reconhece que é impotente para apreender, previamente, a totalidade das situações de vida merecedoras de tutela jurídica. Por isso, em determinadas situações, notadamente aquelas em que os padrões sociais não estão firmemente assentados, ou não podem ser assentados senão de forma provisória, como ocorre com os padrões técnicos e científicos, limita-se o legislador a conferir, mediante o modelo aberto, uma espécie de “mandado” para que o juiz possa, progressivamente, e à vista da alteração nos paradigmas sociais, culturais, científicos, éticos, etc., regular os casos concretos, criando, complementando ou desenvolvendo aquelas normas postas como “programas”, isto é, indicações de fins a perseguir ou de valores a garantir (acerca da linguagem das cláusulas gerais, escrevi em A boa fé no Direito Privado) (op. cit., 273-380).
7 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução (esp.) de Ernesto Garzó Valdés, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 81 e segs.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 71
O que são princípios jurídicos? Inúmeras respostas têm sido dadas a esta
questão, e, entre elas, a resposta de Alexy, segundo o qual princípios são o mesmo
que valores. Porém, como o Direito trata do que deve ser, do que é devido, há entre
ambos os conceitos uma diferença a ser notada. Utilizando a classificação de von
Wright8 entre conceitos deontológicos (v.g. mandato, dever-ser, ordem, proibição,
permissão, direito a), axiológicos (v.g. bom, mau, belo, corajoso, seguro) e
antropológicos (v.g. vontade, interesse, necessidade, decisão), Alexy assenta a
distinção: “Princípios e valores são o mesmo, contemplado em um caso sob um
aspecto deontológico e sob um aspecto axiológico.”9
Observa-se, pois, a razão pela qual, por intermédio dos princípios, o
Direito reaproxima-se da dimensão ética, afastada que fora pelo formalismo
legalista, apresentando-se como um sistema axiologicamente orientado.
10
Ilustrativa deste novo modelo é a Constituição Federal. Diferentemente
do que ocorria no passado, quando às Constituições era emprestada a missão
de tão-somente definir as normas de organização e competência do Estado,
hoje em dia tem-se a “Constituição principiológica”, que transforma em direito
positivo, direito legal, certos princípios que tradicionalmente eram tidos como
pré-positivos, como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana,
entre nós expressamente reconhecido como princípio estruturante ou fundante
do Estado Democrático de Direito.
Ao
modelo da incomunicabilidade entre o Direito e as demais instâncias do todo
social, notadamente a Ética, substitui-se o modelo da conexão, comunicabilidade
e complementaridade.
11
Inscritos comumente em cláusulas gerais, caracterizando o que se
convencionou chamar de “conceitos jurídicos indeterminados”, os princípios
ensejam uma nova maneira de aplicar o Direito: ao juiz hoje é reconhecida a
8 In: The logic of preference, apud Alexy, op. cit., p. 139-140. 9 Alexy, op. cit., p. 147. 10 CANARIS, CIaus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito.
Tradução de Menezes Cordeiro, Fundação Gulbenkian, 1989, p. 66 e segs. 11 CF, art. 1º, inciso III.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 72
competência de não apenas subsumir certos fatos às regras que os descrevem,
mas, igualmente, o poder de concretizar, isto é, tornar concretos, atuantes e
operativos – os princípios que traduzem valores.
Essas transformações metodológicas possibilitam a crítica e a
reconstrução de certos conceitos fundamentais do Direito, abrindo espaço, por
igual, à construção do Biodireito, termo que indica a disciplina, ainda nascente,
que visa a determinar os limites de licitude do progresso científico, notadamente
da biomedicina,12 não do ponto de vista das “exigências máximas” da fundação
e da aplicação dos valores morais na práxis biomédica – isto é, a busca do que
se “deve” fazer para atuar o “bem” – mas do ponto de vista da exigência ética
“mínima” de estabelecer normas para a convivência social.13
Para o estabelecimento dessas “exigências mínimas” interessará
basicamente o conceito de pessoa humana, hoje em plena reelaboração teórica.
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO COMUM
AO DIREITO E À BIOÉTlCA
Sob o seu estatuto epistemológico particular, o Direito também se
ocupa da vida – do nascer e do morrer, de quem é pessoa, de sua filiação, de
seus valores existenciais e de suas relações patrimoniais, de seus direitos (isto
é, dos direitos que concernem à pessoa) e de seus deveres e
responsabilidades. Portanto, falar em Direito é falar fundamentalmente em
pessoa e em relação – o modo como se estabelecem as relações entre as
pessoas (individual ou coletivamente consideradas), e a relação das pessoas
com as coisas, bens materiais e imateriais.
Se em nosso horizonte axiológico o mais relevante for a relação entre as
pessoas e os bens, economicamente avaliáveis, cresce em importância a idéia de
12 PALAZANNI, Laura. Il concetto di persona tra bioetica e diritto. Turim: Giappichelli, 1996, p. 9. 13 Idem, p. 9-10.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 73
pessoa como sujeito titular de um patrimônio. Então, os princípios e as regras se
ocuparão primordialmente da tutela patrimonial dos indivíduos, e ter-se-á – como
ocorreu na época das grandes Codificações que correspondem à ascensão do
individualismo burguês e do capitalismo – a instauração de uma “lógica
proprietária”14 a envolver a própria idéia de pessoa humana. A frase “eu sou dono
de meu corpo” expressa lapidarmente esta lógica. O corpo humano, reificado, é
visto como objeto de um direito de propriedade, integrante de um patrimônio
individual, e, como os demais bens patrimoniais, pode ser objeto de mercancia.15
Mas se, em primeiro plano, está a pessoa humana valorada por si só,
pelo exclusivo fato de ser “humana” – isto é, a pessoa em sua irredutível
subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular – passa o Direito a
construir princípios e regras que visam a tutelar essa dimensão existencial.
16
O individualismo burguês acolheu a idéia de pessoa como “indivíduo” e
como “sujeito” das relações jurídicas. “Sujeito” como “elemento” da relação
jurídica, como quem pode (é capaz de) atuar na ordem jurídica. E “indivíduo”
porque não mais definido pela pertença a um grupo, casta, classe, a família,
status, porque apartado (dividido) de um todo.
Essas conotações tiveram por conseqüência obscurecer a idéia de
“pessoa” (substituída pela de “indivíduo”, ao senso mesmo “egoístico” do termo) e
de “personalidade”, a qual viu-se escamoteada pelo conceito técnico de
“capacidade”, tramas semânticas que acabaram por fundir o “ser pessoa” com o
“ser capaz de adquirir direitos e contrair obrigações”. Em outras palavras,
14 A expressão é de Davide Messinetti: verbete Personalità (Diritti della), Enciclopedia Giuridica Giuffrè,
Milão, 1984, p. 356. 15 Veja-se o instigante texto de Marie-Angèle Hermite, “Le corps hors du commerce, hors du marché”
(Archives de philosophie du Droit, t. 33, 323 e segs.), no qual propõe a categorização das “coisas de origem humana” como escapatória à lógica do mercado para a apreciação daquilo que, no corpo, pode ser objeto de relação jurídica (sangue, órgãos, etc.).
16 Por esta razão, e, aliás, como tudo no Direito, o conceito de pessoa não é “dado”, mas um “construído”. Expressou com rara felicidade esta idéia François Miterrand, em mensagem dirigida em 1985 aos participantes de colóquio sobre genética, procriação e direito, ao afirmar: “a história dos direitos do homem é a história da própria noção de pessoa humana, da sua dignidade, da sua inviolabilidade” (Atas do Colóquio Genétique, Procréation et Droit, Actes Sud, P.U.F., 1985, p. 14, cit. por RAPOSO, Mario. Procriação assistida – aspectos éticos e jurídicos, p. 91).
As interfaces entre a Bioética e o Direito 74
instrumentalizou-se a personalidade humana, reproduziu-se, na sua conceituação,
a lógica do mercado, o que conduziu à desvalorização existencial da idéia jurídica
de pessoa, para torná-la mero instrumento da técnica do Direito.17
A barbárie do século XX, a ameaça totalitarista, estatal, econômica ou
científica,
18 teve como contrapartida a afirmação do valor da pessoa como titular da
sua própria esfera de personalidade, a qual, antes de ser vista como mero suposto
do conceito técnico de capacidade, fundamenta-se no reconhecimento da
dignidade própria à pessoa humana. Esta é a “novidade” que tem, para o Direito, o
princípio da dignidade da pessoa. Como explica Bernard Edelman,19
A dignidade da pessoa, como princípio jurídico, designa, pois, não
apenas o “ser da pessoa”, mas a “humanidade da pessoa”.
embora a
palavra “dignidade” fosse há muito conhecida, e a idéia de uma dignidade própria
ao homem remonte à filosofia de Kant, a idéia da existência de uma proteção
jurídica que é devida em razão da dignidade liga-se fundamentalmente a um duplo
fenômeno, à barbárie nazista (que fez alcançar a idéia de crimes contra a
humanidade, no Tribunal de Nuremberg) e à biomedicina.
20
17 Veja-se as instigantes observações de Hans Hattenhauer (Conceptos fundamentales del Derecho
Civil. Tradução espanhola de Pablo Salvador Coderch), demonstrando as razões pelas quais desde Kant ter assentado na Metafísica dos costumes que “pessoa é o sujeito cujos atos podem ser a si próprios imputados” operou-se a transmutação da idéia de “pessoa” para a de “sujeito”, abrindo caminho para a consideração da pessoa como “mero material para a construção de relações jurídicas”, reduzindo-se a idéia de personalidade à noção de “capacidade de direito”. Para o exame da expansão da idéia de um direito geral da personalidade como fundamento do Direito Civil e como base de um “humanismo exigente”, consulte-se o ensaio de Orlando de Carvalho, “Les droits de l’homme dans le Code Civil Portugais” (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. XLIX9(1973), p. 1-24. Na doutrina brasileira veja-se Alexandre dos Santos Cunha, “Dignidade da Pessoa Humana: conceito fundamental do Direito Civil”, ensaio integrante de, reconstrução o do Direito Privado – reflexos dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais no Direito Privado (org. por Judith Martins-Costa, no prelo).
Esta é vista de
uma perspectiva que não a confunde conceitualmente com o “sujeito capaz
juridicamente”, nem com o indivíduo, atomisticamente considerado.
Diversamente, a humanidade “apresenta-se como a reunião simbólica de todos
18 Acerca do totalitarismo da ciência veja-se: EDELMAN, Bernard. “Sujet de droit et technoscience”, in La personne en danger. P.U.F., 1999, p. 397
19 “La dignité de la personne humaine, un concept nouveau”, in La personne en danger. Op. cit., p. 505. 20 Idem, p. 507.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 75
os homens naquilo que eles têm em comum, a saber, a sua qualidade de seres
humanos. Em outras palavras, é ela que permite o reconhecimento de uma
pertença (appartenance) a um mesmo ‘gênero’: o gênero humano,”21
constituindo a dignidade o atributo, ou qualidade desta pertença: “se todos os
seres humanos compõem a humanidade é porque todos eles têm esta mesma
qualidade de dignidade no ‘plano’ da humanidade; dizemos que eles são todos
humanos e dignos de ser.”22
Por isso é que, mais do que uma “vazia expressão”, como poderiam
pensar os que estão ainda aferrados à concepção legalista estrita do
ordenamento jurídico, a afirmação do princípio, que nos mais diferentes países
tem sido visto como um princípio estruturante da ordem constitucional –
apontando-se-lhe inclusive um valor “refundante” da inteira disciplina privada
23
É o que assinala o civilista argentino Jorge Mosset Iturraspe em termos
candentes ao aludir à construção da categoria dos danos à pessoa: “Afirmamos
desde ya que se trata de un cambio revolucionario. De una modificación que
dice del humanismo del enfoque actual y de la deshumanización del Derecho
anterior.”
–
significa que a personalidade humana não é redutível, nem mesmo por ficção
jurídica, apenas à sua esfera patrimonial, possuindo dimensão existencial
valorada juridicamente na medida em que a pessoa, considerada em si e em
(por) sua humanidade, constitui o “valor fonte” que anima e justifica a própria
existência de um ordenamento jurídico.
24
21 Idem, p. 509, traduzi.
É, por igual, a perspectiva adotada pelo peruano Carlos Fernandez
Sessarego, pioneiro na América Latina no destacar a proteção jurídica à pessoa
humana: “Referirse a la protección de Ia persona humana supone, como
22 ld., ibid., traduzi. 23 Na literatura italiana, PERLINGIERE, Pietro. Il Diritto Civile nella Legalità Costituzionale na literatura
brasileira, o artigo pioneiro de TEPENDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. “A caminho de um Direito Civil Constitucional”, e a monografia de NEGREIRO, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa fé. Renovar, 1998.
24 “El daño fundado en Ia dimensión del hombre en su concreta realidad”, in “Daños a Ia persona”, Revista de Derecho Privado y Comunitário, t. 1, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni, 1995, p. 11.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 76
cuestión previa, determinar que tipo de ente es ella, considerada en si misma,
per se. Es decir, indagar por la naturaleza misma del ser sometido a protección
jurídica”, pois é “la necesaria aproximación a la calidad ontológica del bien a
tutelar (que) nos permitira precisar tanto los criterios como la técnica jurídica
susceptibles de utilizar para lograr este primordial objetivo.”25 Ou, como entre
nós afirmou recentemente Josaphat Marinho ao aludir à disciplina dos direitos
da personalidade, “o homem, por suas qualidades essenciais, e não
propriamente o dado econômico, torna-se o centro da ordem jurídica.”26
A compreensão da dimensão e da operatividade deste princípio permite
o enfrentamento jurídico de alguns aspectos que têm sido apontados pela
Bioética como suas questões centrais. Por exemplo, em matéria de reprodução
humana assistida, principalmente aquelas relativas à fecundação in vitro, é a
tutela jurídica da pessoa que tem provocado verdadeira revolução em matéria
de responsabilidade extrapatrimonial, por forma a permitir a solução de
questões ligadas a falhas na segurança do material genético doado, seja devido
à transmissão de defeitos genéticos, de doenças infecciosas, seja à guarda do
material doado (possibilidade de furto, de destruição não-intencional, de
manipulação criminosa, de troca, por negligência, do material de um doador por
outro, etc.).
Também as tormentosas questões relativas à relação entre médico e
paciente, seja na ponderação entre o princípio (bioético e jurídico) da
autonomia, de um lado, e o dever médico de beneficência, de outro, podem ser
melhor equacionadas pela concreção do princípio da dignidade da pessoa. Este
desdobra-se, além do mais, em outros princípios constitucionais, como o da
tutela à vida privada e à intimidade,27
25 “Protección a la persona humana”, in Revista Ajuris, n. 56, Porto Alegre, 1992, p. 87-88.
o que tem ensejado aos Tribunais
reequacionar casos de responsabilidade médica, por exemplo, pela indevida
26 “Os direitos de personalidade no Projeto do Novo Código Civil Brasileiro”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, col. Studia Iuridica, 40, in Portugal-Brasil ano 2000, Coimbra, 2000.
27 CF, art. 5°, inciso X.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 77
divulgação de dados relativos ao paciente, ou pela ausência de cuidados
relativos ao bom resguardo do sigilo médico.
Será o princípio infringido – devendo a sua violação, ou a ameaça de
violação receber resguardo jurídico, seja através de tutelas preventivas, seja
mediante conseqüências indenizatórias, seja por cominações de nulidade – nos
casos de mercantilização de semens e embriões e do próprio ser humano
(“mães de aluguel”), ou, ainda em matéria de RHA, diante da possibilidade de
eugenia, que também infringe o princípio constitucional da igualdade,28
A concreção do princípio da dignidade da pessoa pode solucionar, ainda,
algumas questões ligadas ao direito de família, resultantes, por exemplo, da
exigência de consentimento do marido ou companheiro e à irrevocabilidade deste
consentimento. Assim como ninguém pode ser compelido a ser doador de sêmen,
ou a aceitar a paternidade de criança que é biologicamente descendente de outra
pessoa, pois a autonomia é conseqüência do reconhecimento da dignidade, assim
também o é a auto-responsabilidade. Por isso, nos casos em que houve
inseminação heteróloga, com o consentimento do companheiro, gerado o novo ser,
este tem a sua dignidade reconhecida. Nesta perspectiva, o princípio da dignidade
da pessoa conduz a uma interpretação conforme à Constituição das demais regras
do sistema acaso não perfeitamente compatíveis e dos demais princípios, inclusive
os bioéticos, tais quais os constantes do Código de Ética Médica,
o qual
proíbe qualquer discriminação, por raça, sexo ou gênero.
29
O princípio tem fundamental importância também no que concerne ao
tema da clonagem em seres humanos.
de modo a
poder-se concluir pela preclusão do direito do homem que consentiu com a
inseminação artificial heteróloga em sua mulher a impugnar posteriormente a
paternidade, que é presumida.
28 CF, art. 5°, caput. 29 Que integram o ordenamento jurídico, na medida em que atuam como tópicos hermenêuticos no
momento da aplicação do Direito.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 78
Em 1997, quando criou-se a célebre ovelha Dolly a partir da clonagem
de uma célula diferenciada, um jornal inglês expressou, numa manchete um
tanto alarmista, a perplexidade, que ainda nos domina: “Hoje a ovelha, amanhã
o pastor.”30 A clonagem, em si mesma considerada, pode trazer benefícios, um
dos quais é o progresso da ciência, sabendo-se que a pesquisa básica é um
dos horizontes axiológicos da humanidade e o conhecimento científico um dos
grandes interesses humanos.31
A questão ética em torno dos clones humanos, um dos temas
recorrentes do imaginário humano, como lembra Marciano Vidal,
Contudo, sem esquecer os benefícios que a
clonagem efetivamente traz, resta a questão ética que se reflete
necessariamente no Direito.
32
É do jusfilósofo Vicente Barretto a sagaz percepção da idéia kantiana
de um “direito cosmopolita” como fundamento de uma disciplina ora nascente,
o Biodireito. Numa época em que o Direito e a Filosofia não estavam
perfeitamente distinguidos, Kant investigou a possibilidade de uma ordem
jurídica fundada em valores universais e, à diferença dos filósofos que o
recoloca no
centro do debate bioético e biojurídico, e em plena era da Pós-Modernidade, um
dos eixos centrais da Modernidade, qual seja, a idéia de um Direito com valor
universal, centrado na ética kantiana acerca da dignidade da pessoa humana:
em todas as discussões que têm sido levadas a efeito nos meios científicos e
nos comitês de bioética, o questionamento ético básico é o de utilizar um ser
humano como meio e não como fim.
30 VIDAL, Marciano. “Clonagen: Realidade Técnica e Avaliação Ética”, in Ética e Engenharia Genética,
Concilium/275 – 1998-2, Rio de Janeiro, 1998, p. 125-137. 31 Idem, p. 129. 32 E, por isto mesmo, expressando-se seja por meio da literatura (o desejo fáustico de perpetuar-se
idêntica e indefinidamente, ou o dublê de Dorian Gray para Oscar Wilde), do cinema de ficção científica (“Meninos do Brasil”), da revanche feminista da procriação sem a presença masculina, dos mitos acerca da procriação virginal ou assexuada, ou dos “duplos” Castor e Pólux de que fala a mitologia grega (ver VIDAL, Marciano. Op. cit., p. 130-131).
As interfaces entre a Bioética e o Direito 79
antecederam, abandona a tradição jusnaturalista fundada na existência de
princípios inatos ou naturais e lança a idéia de um “direito cosmopolita”.33
Em rapidíssima síntese, consiste o direito cosmopolita no tipo de norma
que ultrapassa as comunidades nacionais e identifica-se como sendo a norma de
uma comunidade planetária. Assentou Kant no “Projeto para uma Paz Perpétua”,
de 1790, que “em todos os lugares da terra rege-se de uma forma idêntica a
violação do direito cosmopolita, sendo este direito um complemento necessário do
código não escrito, tanto no direito civil como no direito das gentes, em vista do
direito público dos homens em geral.”
34
Por isso propõe, com integral pertinência, a utilização dessa categoria
para determinar até que ponto os valores éticos podem constituir-se em
categorias racionalizadoras e legitimadoras de uma nova ordem jurídica, a que
se defronta e enfrenta os problemas trazidos pelo progresso científico, na
medida em que “essa categoria do direito cosmopolita permite que se tenha
uma leitura propriamente moral dos direitos humanos, podendo-se mesmo
entender essa categoria de direitos como uma manifestação dos valores éticos
no sistema jurídico.”
Como explica Barretto, a idéia kantiana de
direito cosmopolita refere-se, principalmente, ao entendimento de que a evolução
histórica, e com ela as luzes da razão, iriam encontrar normas com fundamentação
ética, que poderiam ser consideradas como uma forma de direito, que se imporiam
com a força de sua própria racionalidade.
35
Ora, se a maioria das Constituições dos países ocidentais reconhece,
de forma implícita ou explícita, o princípio da dignidade da pessoa humana
como o valor-fonte do ordenamento, é preciso reconhecer que a proposição
kantiana retomada por Barretto concilia-se à perfeição não só com o comum
topos constitucional mas, igualmente, com a série crescente de documentos e
33 BARRETTO, Vicente de Paulo. “Bioética, biodireito e direitos humanos”. In: TORRES, Ricardo
Lobo. (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Renovar, 1999, p. 378. 34 Idem, p. 381. A criação refere-se ao texto de Kant, transcrito por Barretto. 35 Idem, p. 379.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 80
regulações, éticos e jurídicos, que pretendem ter validade universal, e do qual é
o maior exemplo a recente Declaração Universal do Genoma Humano e dos
Direitos Humanos, adotada pelo consenso de mais de oitenta Estados
representados na reunião do Comitê de Especialistas Governamentais do
Comitê de Biética da UNESCO, e apresentada para adição na 29ª Sessão da
Conferência-Geral da UNESCO, realizada entre 21 de outubro e 12 de
novembro de 1997.36
Também refletindo o “direito cosmopolita” e igualmente assentada
sobre o mesmo fundamento está a Convenção sobre Direitos Humanos e
Biomedicina adotada em 1996 pelo Conselho de Ministros do Conselho da
Europa. Entre os consideranda constantes no seu Preâmbulo está a
advertência de que o uso desviado da Biologia e da Medicina pode conduzir à
prática de atos que ponham em risco a dignidade humana.
O seu art. 2° determina que os interesses e o bem-estar do ser humano
devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou ciência –
escalonando, assim, os valores da dignidade e do progresso científico, com
preeminência do primeiro.
Contudo, não só aos juízes, na tarefa de aplicar o Direito, e à
comunidade científica, como destinatária das regras e princípios do
ordenamento que se dirige o princípio da dignidade da pessoa. Este também
está endereçado ao legislador infraconstitucional, que tem a seu encargo o
regramento de alguns casos problemáticos. A lei tem, muitas vezes, um valor
36 A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos de 1997, após afirmar que “o
genoma humano subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e também ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes”, constituindo, num sentido simbólico, “a herança da humanidade” (art. 1º) veda a possibilidade de o genoma humano em seu estado natural “dar lugar a ganhos financeiros” (art. 4º) e proíbe, taxativamente, “práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem reprodutiva de seres humanos” (art. 11). Toda a Declaração é fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, “direito de todos” (art. 2º, primeira parte) a qual resta especificada, neste campo, pela vedação de reduzir-se os indivíduos “a suas características genéticas”, impondo o respeito a “sua singularidade e diversidade” (idem, segunda parte).
As interfaces entre a Bioética e o Direito 81
simbólico, impondo com mais facilidade os limites que poderiam ser, em tese,
deduzidos dos princípios constitucionais.37
Fato de o princípio dirigir-se ao legislador significa, fundamentalmente,
que este está adstrito à sua observância por ocasião da elaboração legislativa.
Em outras palavras, o legislador não é livre para elaborar o conteúdo da lei,
pois, na forma do sistema constitucional vigente, deve observar os valores
postos na Constituição, auxiliando a sua concreção, sob pena de
inconstitucionalidade da lei.
Várias questões estão a merecer regulamentação punctual, como a
questão do incesto: a proibição jurídica do incesto pode ser infringida na técnica
da RHA heteróloga em razão da exigência de anonimato dos doadores. Dois
valores, então, entrarão em choque, de um lado, a proteção da privacidade do
doador, de outro o direito de a criança assim gerada conhecer a sua
ascendência biológica.
Também está a merecer urgente regulamentação a candente questão da
apropriação e mercantilização do material genético, que poderia ser objeto de
registro e patenteamento, recaindo, assim sob as regras da propriedade
intelectual. Anúncio da descoberta da cartografia genética colocou este tema na
ordem do dia. O governo francês assegurou, pelo seu Ministro da Pesquisa da
França, Roger Gérard Schwartzenberg, que os dados do Projeto Genoma “foram
colocados à disposição do domínio público desde sua obtenção, sem restrição de
utilização”, entendendo que as seqüências brutas do genoma humano não
podem ser patenteadas porque “o saber genético não pode ser confiscado”.
Contudo, esta não é uma posição consensual. No mesmo dia, o Diretor Adjunto 37 Na questão da clonagem vigora a Lei 8974/95, estabeleceu as normas para uso das técnicas de
engenharia genética. O item IV do artigo 8º veda a “produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível”. Da mesma forma, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNNBio), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, talvez extrapolando a sua competência legal, baixou uma Instrução Normativa 08/97, de 9 de julho de 1997, proibindo a manipulação genética de células germinativas ou totipotentes humanas, assim como os experimentos de clonagem em seres humanos. Vale ressaltar que atualmente existem quatro projetos de lei tramitando no Congresso Nacional sobre a questão da clonagem de seres humanos.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 82
do Centro Nacional de Seqüenciamento, o Genoscope, órgão que representa o
país no Projeto Genoma Humano, Francis Quetier, afirmou à imprensa não haver
“harmonização entre países parceiros no projeto, principalmente entre EUA e
Europa”, no que se refere ao patenteamento de genes.38
No Brasil vem de ser editada a Medida Provisória nº 2052
39 pela qual as
instituições nacionais da área biológica podem se associar a instituições
estrangeiras para pesquisar amostras de componentes do patrimônio genético
do país, podendo inclusive o material ser remetido para o exterior.40
Para além dos danos que pode trazer à humanidade (por exemplo, ao
restringir o acesso aos dados por barreiras econômicas) a mercantilização do
material genético implica também em atentado à vida privada: empresas de
seguros poderão, com base nesses dados, recusar seguro, ou aumentar o valor
do prêmio, em face da potencialidade do organismo para certas doenças e
empregadores poderão recusar trabalho.
Empresas
privadas, como a norte-americana Celera, realizam o seqüenciamento do
código genético e, com certeza, utilizarão seus dados segundo a lógica do
mercado, como objeto suscetível de apropriação e de lucro, produzindo
conhecimento para ser vendido.
41
Todas essas são angustiantes questões que animam e justificam a
reflexão bioética, encontrando, porém, possível via de enfrentamento jurídico
com base no princípio da dignidade e nas regras legais que para a sua
concreção concorram.
38 Folha de São Paulo, Caderno Ciência, 27 jun. 2000. 39 Publicada no D.O., 30 jun. 2000. 40 Desde que assinado Termo de Transferência ou Contrato. 41 “Nos EUA, a lei regula esses casos, proibindo a discriminação com base em ‘handicap’ (Reabilitation
Act, de 1973 e o Americans with disabilities act, de 1990).
As interfaces entre a Bioética e o Direito 83
Resta, contudo, a questão fundamental do Biodireito, para a qual o
mencionado princípio não aponta de imediato uma solução: esta reside na
própria idéia de “pessoa” que está na sua base.42
Se já há um relativo consenso na comunidade internacional acerca da
valência do princípio da dignidade da pessoa humana como cânone hermenêutico
e integrativo para o juiz, como fonte de criação de deveres ao legislador e como
imposição de limites aos cientistas, havendo concordância em fixar os limites da
ação manipulativa não-terapêutica lícita e ilícita no reconhecimento da pessoa, não
se sabe, porém, quem deve ser considerado pessoa.
O conhecimento científico fez com que houvesse uma verdadeira
“décalage” entre o conceito jurídico de “pessoa” e o conceito científico de “ser
humano vivo”. É bem verdade que, na história, nem sempre houve a
coincidência (basta pensar no estatuto do escravo e na personificação das
coisas e animais, própria ao pensamento arcaico), havendo, contudo,
indicações da coincidência já no Direito Romano e no Direito Medieval,43 muito
embora certos textos romanos vissem no embrião mera parte das vísceras
maternas, “portio mulieros vel viscerum”.44
A Modernidade, ao construir os conceitos gerais-abstratos, assentou
duas máximas que até hoje fazem fortuna, qual seja, “todo homem é pessoa” e
“só o homem é pessoa”, qualificando, porém, como “homem” (ou como
“pessoa”) o ser humano nascido com vida. A qualificação de pessoa restou
assim condicionada a um determinado momento (o do nascimento), então tido
como o do início da vida. Para o Direito vigente a “pessoa” à qual é reconhecido
42 Para uma análise da “aventura semântica” que recobre o termo “pessoa” em perspectiva histórico-
filosófica, e da sua atual recuperação com categoria prática, veja-se PALAZANNI, L. Op. cit. 43 Demonstrando a existência de regras que asseguravam a paridade, no plano normativo, entre os
conceitos de nascituro e nascido, CATALANO, Pierangelo. “Os nascituros entre o Direito Romano e o Direito Latino-Americano”, Revista Dir. Civ., v. 45, 1988, p. 5.
44 Esta é a indicação que é difundida nos manuais. Assim, PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 14. ed., v. 1, Forense, 1993, p. 158, sem indicação da fonte romana.
As interfaces entre a Bioética e o Direito 84
o atributo da “personalidade” é o ser que nasce com vida,45
Essa é a qualificação que agora vem posta em xeque, pois enquanto o
Direito situa o início da vida no nascimento, a Biociência o situa anteriormente,
na fertilização (fecundação ou concepção), inclusive a Psicologia percebendo já
no embrião as características de individualidade e singularidade próprias de
cada ser humano.
findando-se a
personalidade com a morte.
Como assinala Laura Palazzani, “a originária e intuitiva coincidência entre
‘pessoa’ e ‘ser humano’ está posta em dúvida no debate bioético e biojurídico, com
a conseqüente exclusão de alguns seres humanos do reconhecimento do estatuto
de pessoa”.46 A décalage entre Direito e a Biociência, fundando-se na separação
entre vida biológica do ser humano e vida da pessoa, decorre da “teorização da
post-cipação do início da pessoa ao início da vida do ser humano e da ante-cipação
do fim da pessoa ao fim da vida do ser humano”.47
Essa é, por conseqüência, a questão fundamental, o horizonte
problemático da Bioética e do Biodireito.
Contudo, se como procurei demonstrar, não mais sobrevive a ficção de
que o Direito é uma “ciência pura”, separada da Ética – se pelo contrário, os
grandes temas éticos são também os grandes temas jurídicos – será tarefa da
reflexão bioética fornecer ao Direito os parâmetros que permitirão a reconstrução
da idéia de pessoa fundada na coincidência entre pessoa e ser humano. Poder-se-
á pensar, assim, na extensão da idéia de “dignidade da pessoa” de um quadro de
singularidade, que a caracterizou no século XX, para a apreensão daquilo que, no
conceito, relaciona-se com o gênero humano, preenchendo-se o conteúdo do
princípio com a noção de uma “dignidade da humanidade” que atue como guia,
critério e limite aos dilemas trazidos pela Revolução Biotecnológica.
45 Código Civil, art. 4º, assegurando-se ao nascituro não o atributo da personalidade, mas certos direitos
se chegar a nascer. 46 Op. cit., p. 3, traduzi. 47 Idem, p. 34, tradução minha.
Psicologia e bioética 85
Psicologia e bioética
MARISA CAMPIO MÜLLER∗
alar em bioética é falar em relação: relação com o outro, com o ambiente,
consigo mesmo, e é falar em cidadania.
A psicologia se insere totalmente nesse contexto, pois também sua
ação se dá a partir do outro, e, porque toda psicologia é social; no sentido de
que não há como em qualquer área específica da psicologia desconsiderar a
natureza histórico-social do ser humano.
E, o que é a vida, senão também uma grande e complexa rede de relações
que se apresenta antes mesmo de se nascer e que vai nos acompanhando.
Nosso viver se inclui necessariamente na relação com o outro, é através do
outro que nos reconhecemos, que identificamos nossas qualidades e nossa
sombra, e com o outro, nos construímos como seres conscientes e responsáveis.
Portanto, a psicologia se insere no cotidiano, somos seres vinculados.
Ao reconhecermos essa condição humana, ela nos remete a uma
qualidade de comportamento, qual seja, de respeito à dignidade e integridade
do outro, que podemos traduzir também como autonomia, beneficência e
justiça, pilares básicos do viver humano.
E é com essa historicidade que o sujeito se torna psicólogo. Logo, a
psicologia vem como acréscimo. Ou seja, a profissão não nos torna o que
somos, nós é que nos desvelamos a partir dela. Ela só adquire sentido a partir
de nossa ação, quem eu sou como pessoa, que valores me movem, vai ser
refletido na minha práxis e vai dar significado e qualidade à minha profissão.
Logo, só um profissional com consciência crítica é capaz de, ao
transformar-se, transformar o que o cerca.
∗ Faculdade de Psicologia – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
F
Psicologia e bioética 86
E este é o ponto inicial desta apresentação: o trabalho da psicologia
origina-se a partir das condições pessoais de quem o executa. Condições
pessoais entendidas aqui não como ranço individualista que por muito tempo
permeou a psicologia, mas a condição básica de reflexão e reconhecimento da
realidade interna e externa.
Mas, para falar da intervenção psicológica e sua estreita relação com os
princípios da bioética, é necessário que se revele aqui o entendimento de
homem. Assim, para nós o homem é um ser biopsicossocial espiritual.
A partir da compreensão de um homem total, inteiro, que abarque as
várias dimensões humanas, é possível falar de psicologia.
A psicologia perpassa todas as áreas das relações humanas, mas
citaremos aqui, no entanto, as áreas mais representativas na sociedade.
A consciência social do psicólogo deve orientá-lo a lutar por uma
sociedade mais justa e igualitária, a lutar pelo resgate dos valores humanos.
Neste sentido, algumas atividades, organizações, movimentos sociais podem
ser citados:
o trabalho infantil – de exploração ao sofrimento e desconsideração
às crianças;
a violência sexual – sobretudo com crianças;
a violência dirigida à mulher – seja de forma física, psicológica
ou simbólica;
a luta antimanicomial – lutando pelo resgate da cidadania dos
portadores de sofrimento psíquico;
o preconceito – exemplo: de escolha sexual, racial ou outra.
O psicólogo necessita, através de ações claras, coerentes e
responsáveis, contribuir na transformação de nossa sociedade, buscando elevar
o nível de respeito e dignidade humana. Entendo como o trabalho básico do
psicólogo, independente de onde esteja colocado, a emancipação da pessoa. E
Psicologia e bioética 87
isto ocorre quando as ajudamos a entender o mundo interno e externo em que
vivem e o lugar que nele ocupam.
Afinal, a psicologia é a ciência básica do social, o que significa trabalhar
com as diferenças, com as fronteiras, com a complexidade, com a melhoria de vida.
Esses são alguns exemplos. Teria outras áreas onde o psicólogo não
pode se tornar ausente e de ser uma voz a apontar e clamar por justiça, junto
às estruturas acumpliciadas que defloram o respeito e a liberdade, em nome de
interesses, preconceitos e estigmas.
Nesse sentido, a psicologia comunitária tem representado um
importante campo de intervenção na realidade daqueles que se encontram
discriminados, excluídos de forma física, geográfica, cultural, de mercado e até
de gênero humano. Este trabalho não se caracteriza como assistencialista, mas
busca resgatar a condição humana, a auto-estima, contribuir para que a
comunidade possa realizar suas demandas através da melhora da qualidade de
vida e de ações conjuntas e multiprofissionais. É um trabalho de resgate dos
princípios elementares da ética da vida.
O psicólogo, no entanto, deve estar atento aos limites de sua
intervenção, ao respeito aos valores culturais, sociais, morais, religiosos e
éticos, aos hábitos e costumes da comunidade, lembrando a liberdade da
comunidade de eleger e funcionar autonomamente.
No aspecto da pesquisa, que esta, sempre que possível, possa traduzir-
se em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão.
Na área da pesquisa, a necessidade de encaminhar o projeto de
pesquisa a um Comitê de Ética credenciado.
a) pesquisa com seres humanos: a necessidade de o pesquisador
informar os objetivos da pesquisa, os procedimentos, a informação quando da
utilização de gravação em áudio ou vídeo, a condição de participação
voluntária, o esclarecimento do não-prejuízo do sujeito frente a outro serviço
vinculado e o consentimento informado.
Psicologia e bioética 88
Quando realizada pesquisa junto a menores, a necessidade de buscar
além do consentimento dos responsáveis, o consentimento da criança/adolescente
e respeitar sua decisão, seja ela positiva ou não. Assim como junto a presidiários,
militares e internos de hospitais, buscar a aceitação voluntária, e, quando
impossível, explicação e parecer do Comitê de Ética em Pesquisa.
Quando na publicação de trabalhos científicos, garantir o sigilo de forma
a não identificar a pessoa. É fundamental que todo psicólogo tenha conhecimento
da resolução 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos.
Utilizar testes validados na cultura brasileira. A pesquisa adquire
sentido quando vem ampliar o conhecimento e minimizar o sofrimento humano.
b) pesquisa com animais: evitar qualquer pesquisa que envolva
sofrimento desnecessário aos animais e prestar todos os cuidados necessários.
Psicologia Clínica – na relação psicoterápica que se refere a uma
situação singular, extremamente íntima, avaliar a terapia mais adequada a
determinada pessoa e situação, em vista do bem deste sujeito e em respeito a
sua dignidade, entendendo que a ciência é meio e não fim.
necessidade de competência técnica;
experiência na problemática apresentada pelo paciente, do
contrário a clareza em encaminhar a outro profissional;
esclarecer o método de trabalho, a linha teórica utilizada;
a condição básica do sigilo (familiares) (autoridades) – não é bom
favorecer a interferência oculta dos parentes no processo da terapia;
capacidade de empatia e real empenho em ajudar os pacientes;
auxiliar o paciente a se autocompreender e a se autodesenvolver
sem manipular sua autonomia; impor os próprios valores sociais
(pessoas fragilizadas);
atento à contratransferência – diz respeito às questões inconscientes
do terapeuta com relação ao seu paciente, que podem levá-lo a reagir
Psicologia e bioética 89
de forma não adequada. Estar atento aos aspectos que o paciente
desperta, para que se possa agir de forma profissional;
frente a uma situação de risco de vida;
intervir – pois a vida é um bem maior e prioritário em relação ao
próprio bem da liberdade;
terapia grupal – escolha por métodos, não por razões de melhor
resposta terapêutica, mas por interesses econômicos
A questão do Psicodiagnóstico – quando o psicólogo é chamado a
dar seu parecer técnico, através de métodos e técnicas psicológicas.
O cuidado de, ao elaborar o laudo, ele contempla tão somente os dados
solicitados ou os dados necessários à compreensão do caso.
Em situações, por exemplo, de separação litigiosa envolvendo a guarda
dos filhos, que sejam ouvidas todas as partes envolvidas e enviar o parecer que
melhor represente a necessidade justa do menor. E que a pessoa ou pessoas
envolvidas tenham o direito às informações.
Psicologia do Trabalho – área que abrange as intervenções do
psicólogo nas empresas.
uma proposta de humanização das relações do trabalho;
a busca pelos trabalhos grupais como forma de reforçar relações
solidárias e enriquecedoras, rompendo com ações individualizadas;
auxiliar na criação de sistemas de trabalho mais democráticos, não-
discriminatórios, onde a divisão freqüente de um lado – dos que
pensam e planejam, e, de outro – dos que obedecem e executam,
possam ser reavaliados e que se possa criar momentos mais coletivos
de construção e participação;
garantia do sigilo;
questionamento dos objetivos na aplicação de testes e seu devido uso
– como forma de intimidar e discriminar;
Psicologia e bioética 90
atenção na elaboração de pareceres – informar aspectos profissionais e
que os aspectos mais pessoais sejam resguardados.
Psicologia da Educação – o trabalho do psicólogo desenvolvido nas
escolas. É importante:
contribuir na não-estigmatização das crianças com dificuldades
escolares (sendo normalmente ela o alvo, o depositário), mas deslocar
também para a escola e para as condições de ensino o problema da
baixa produtividade (auxiliar o aluno para que volte a acreditar que é
capaz de aprender);
oportunizar momentos que promovam a participação, a tomada de
consciência através da reflexão conjunta, da responsabilidade de todos
os implicados no processo educacional (o aluno, a família, o professor,
a escola, o contexto social);
a consciência de que uma avaliação psicométrica/projetiva está
traduzindo uma situação específica, um momento, e que envolve
multifatores que necessitam ser compreendidos e não quantificados,
evitando, assim, atitudes discriminatórias;
através de uma perspectiva multiprofissional, promover a qualidade das
práticas pedagógicas, através do conhecimento do ser humano de que
dispõe o psicólogo, caminhando, assim, na direção de uma psicologia
para todos.
É necessário também considerar o aspecto espiritual do ser humano.
A ciência tem refutado esse aspecto, talvez porque, dentro dos padrões
estabelecidos, esse tema “escape” do enquadre.
Não podemos negar todo o processo, desenvolvimento e tecnologia
advindos da ciência. Mas, por outro lado, a realidade humana continua um
grande mistério. Fomos no mínimo ingênuos ao acreditar que a ciência
responderia a todos os nossos questionamentos. Algumas questões pelo
Psicologia e bioética 91
menos permanecem abertas: quem somos? a que viemos? o que é a vida?
como compreendê-la? o que significa a morte?
Frente a essas questões, percebemos que não temos posse de nós, de
nosso destino, não sabemos se estaremos vivos amanhã. Vivemos uma grande
incerteza. E, ainda, nos achamos muito senhores de si...
Jung, reconhecido psicólogo que faleceu na década de 60, afirmou que
jamais havia tratado alguém na segunda metade da vida (45-40 anos) que não
tivesse um problema religioso – entendido como busca pelo entendimento da vida.
Tanto Jung como outros psicólogos, como Maslow, Assagioli, Frankl
Wilber, referem ser a espiritualidade, enquanto busca pelo transcendente, um
aspecto da psique.
É preciso, pois, que a psicologia repense seu posicionamento e rompa
com este silêncio.
Por respeito aos nossos pacientes/clientes, necessita o psicólogo estar
aberto a essas questões e não afirmar não ser tema da psicologia.
É importante também que se ressalte aqui a diferença entre
espiritualidade e religião.
ESPIRITUALIDADE RELIGIÃO
referente a temas fundamentais e
princípios da vida
essência do que significa ser
humano
interesses mais profundos
– questionamentos
– valores humanos
– relacionamentos íntimos consigo, com
os outros, com o transcendente
há significado na vida?
expressão do espiritual de forma
estruturada
sistema de crença e discrição do
espiritual
onde o espiritual se torna concreto,
se realiza.
Psicologia e bioética 92
Logo, falar de espiritualidade é falar da realidade e das
interrogações humanas.
E isso não é tema para a psicologia?
Bem, finalizando, é importante que se tenha claro que nós, psicólogos, não
temos a verdade a respeito do ser humano. A psicologia é apenas um braço deste
grande bloco que é o conhecimento. Logo, uma pessoa só pode ser totalmente
compreendida quando vista nas suas múltiplas possibilidades. Temos que ter claro,
também, que a contribuição teórica, a necessidade de atualização é fundamental
para um exercício profissional sério e que venha a contribuir para a sociedade, mas
que, se não houver troca afetiva, de nada adianta. Sensibilidade e ternura são
fundamentais no nosso trabalho. Sensibilidade para perceber que aquela pessoa à
nossa frente é muito mais do que podemos captar e que qualquer teoria tenha
descrito; ternura, para acolhermos o sofrimento do outro e que na caminhada em
conjunto possamos auxiliá-lo a se olhar e a se reconhecer como um ser único, mas
solidário com o que o cerca.
Alguém já disse que “a razão torna-se não-razão quando separada do
sentimento”. É no que acreditamos também.
Patentamiento de material genético humano 93
Patentamiento de material genético humano: implicancias
éticas y jurídicas
SALVADOR DARIO BERGEL∗
INTRODUCCIÓN:
DOS INTERROGANTES A DESENTRAÑAR COMO CUESTIÓN PREVIA
Introducir en un Congreso de Bioética el tema de patentes de invención
referidas a material genético humano, importa como cuestión previa que
contestemos estos dos interrogantes:
a) Si es possible universalizar el debate, tomando en consideración
el carácter nacional de las normativas vinculadas con los derechos de
propiedad industrial;
b) Si existen vínculos entre el derecho de patentes y la ética.
Vamos al encuentro del primer interrogante.
No podemos dejar de considerar que nos movemos dentro de un orden
normativo concreto (el derecho de patentes). Este orden normativo – tanto en el
plano descriptivo como conceptual – es particular para cada país, en razón de
que existe el derecho de propiedad industrial como derecho interno.
Esto, en principio, imposibilitaría continuar con nuestro cometido, en
tanto tendríamos un escenario para cada país, lo que impediría obtener
conclusiones generales que orienten la búsqueda de soluciones a los múltiples
problemas éticos que trae el patenta miento en las nuevas biotecnologías – en
general – y la investigación sobre el Genoma Humano en particular.
∗ Cátedra UNESCO de Bioética – Universidad de Buenos Aires.
Patentamiento de material genético humano 94
Pero el caso es que los datos de la realidad nos conducen a otros
senderos. En primer lugar porque – por feliz coincidencia – el núcleo central de
Ia disciplina normativa conformado por los denominados en doctrina requisitos
objetivos de patentabilidad, así como las exclusiones de patentabilidad, se
reiteran a través de los diversos sistemas jurídicos, adquiriendo de esta forma
caracteres de universabilidad.
Así, en lo tocante a requisitos objetivos de patentabilidad, la novedad de
la invención, la necesaria utilidad industrial y el mérito inventivo – traducido en
el real aporte al estado de la técnica – constituyen con mínimas diferencias
presupuestos generales para la concesión de patentes.
A esta inportante base conceptual se adicionan las tentativas parciales
o generales de armonización de la materia en el orden internacional que
reafirman la primacía de dichos principios básicos. Así en Europa el Convenio
de la Patente Europea (CPE) y una reciente Directiva sobre la protección de las
innovaciones biotecnológicas.
Por si ello no constituyera suficiente argumento, traigo a colación el
acuerdo TRIPs del GATT. Este acuerdo por primera vez en la historia, incorpora
en un tratado referido a Comercio Internacional, un capítulo sobre observancia
de derechos intelectuales, uno de cuyos componentes es precisamente el de
Propiedad Industrial.
Sobre este particular establece:
“Ias patentes podrán obtenerse por todas las invenciones, sean de productos o
de procedimientos en todos los campos de la tecnologia siempre que sean
nuevas, entrañen una actividad inventiva y sean susceptibles de aplicación
industrial” (Art. 27, I).
Todo esto da sustento a la idea de tratar el sistema de patentes como
un sistema universal permitiendo que se puedan emitir a su respecto juicios
comunes, sin perjuicio de entrar a considerar los detalles particulares que
matizan los regímenes nacionales o comunitarios.
Patentamiento de material genético humano 95
El outro aspecto que debemos tratar de desentrañar es el vínculo que
relaciona los derechos de patentes con la ética.
Desde un punto de vista general, toda ley, toda norma jurídica puede y
debe estar vinculada con la ética. El derecho, en definitiva, como sistema normativo
que ordena una sociedad, debe expresar o fundarse en principios morales. La
adhesión a los valores de la ley – enseña Moufang – significa que por lo general las
justificaciones de las normas y las decisiones legales están pensadas, o al menos
relacionadas, en principios y argumentos basados en la moral.
Esta comprensión amplia es aplicable a los sistemas normativos
particulares, tal como el que concita nuestra atención. Las consideraciones
basadas en factores éticos – legales, inundan toda la estructura normativa del
sistema de patentes y juegan un papel decisivo en su ulterior desarrollo previsto
por Ia legislación y la jurisprudencia.
Habida cuenta que la moral y las reglas legales pertenecen a círculos
que se cruzan no existe una antinomia general entre ellas. Por esta razón, la
interrelación entre ética y ley de patentes no puede ser reducida a la aplicación
de una previsión específica y muy exclusionista.
Junto a estas consideraciones también cabe remarcar que los
argumentos bioéticos específicos también tienen un lugar dentro del sistema de
patentes. Estos influyen en las limitaciones sobre patentabilidad y en el alcance
de la protección; constituyen el transfondo para la aplicación de medidas
especiales para salvaguardar intereses públicos (v.gr. licencias obligatorias) y
pueden determinar de muchas maneras, la interpretación de las categorías
generales en la ley de patentes.
En esta dirección podemos destacar algunas circunstancias
complemantarias que avalan nuestro punto de vista. Así:
a) Existen diversas teorias dirigidas a justificar el sistema de patentes
(creación legislativa por principio), con enfoques ecnómicos, sociales y políticos
todos los cuales se relacionan com juicios éticos.
Patentamiento de material genético humano 96
Así, se há sostenido que el inventor es dueño de su invento, sobre el
que tiene un derecho de propiedad natural, el que debe ser reconocido por la
sociedad. Al otorgar el derecho de exclusiva – que en último análisis implica la
patente – el estado no hace más que ejercer un acto de justicia respecto de
quien es propietario del invento por derecho natural.
Desde outro enfoque se ha pretendido dar un fundamento al derecho
del inventor a través de la justicia contractual: el inventor revela el contenido de
su invención, beneficiando a la sociedad con el aporte de un progreso técnico y
ésta – como contrapartida – le otorga el derecho de explotario en exclusiva por
un tiempo limitado.
También se ha querido hallar la fuente de estos derechos en la teoría
del incentivo. La sociedad tiene interés en el desarrollo de las técnicas y como
incentivo para estimularia premia con un derecho de patente a quien lo logra.
De esta forma la actividad científico-tecnológica es incentivada por el Estado a
través del contenido económico del derecho del inventor.
Junto a cada una de las construcciones teóricas elaboradas para
justificar estos derechos monopólicos – en definitiva el derecho de exclusiva del
que goza el titular de una patente, es un monopolio restringido – existe un
componente moral.
Así Moufang luego de analizar los diversos fundamentos pensados en
torno a los derechos del inventor, señala que es manifiesto que todos estos
argumentos entremezclados poseen un componente moral o al menos se
apoyan en un peso de intereses influido por juicios éticos.
b) Junto a estas teorías que pretenden justificar el derecho de los
inventores tenemos que los llamados requisitos objetivos de patentabilidad, de
universal aceptación en el derecho de patentes, también se encuentran influidos
por sólidos fundamentos morales.
Así la existencia misma de una invención concebida como una regia
técnica para solucionar una necesidad humana por oposición a un
Patentamiento de material genético humano 97
descubrimiento, como presupuesto para la concesión de patentes obedece a
indiscutibles razones éticas.
De igual forma los requisitos de novedad, mérito inventivo y aplicación
industrial no sólo consagran principios técnicos, sino también éticos, en tanto
que quien pretende a su respecto la quiebra del principio general de libre
competencia debe comenzar por invocar una invención novedosa, que
demuestre un esfuerzo intelectual capaz de permitir el progreso en un campo
determinado de conocimiento y que sea directamente aplicable a la industria.
Todos estos requisitos nos muestran la conexión del derecho de
patentes con Ia ética. Las leyes de patentes no son como alguna vez pudo
sostenerse éticamente neutrales.
c) Al hilo de estas consideraciones tenemos normativas generales,
tanto en el orden internacional como en los derechos nacionales que excluyen
del objeto de patentes a invenciones contrarias a la moral, al orden público o a
las buenas costumbres. Así, en el plano jerárquico del actual derecho de la
propiedad industrial tenemos la norma del Art. 27 b) del Acuerdo TRIPs del
GATT que autoriza a los países miembros a excluir de la patentabilidad las
invenciones cuya exploración comercial en su territorio deba impedirse
necesariamente para proteger el orden público o la moralidad, inclusive para
proteger la salud o la vida de Ias personas o de los animales o para preservar
los vegetables, o para evitar graves daños al medio ambiente.
Europa posee un sistema complejo que relaciona las innovaciones
biotecnológicas con la ética.
En primer lugar tenemos una regla de amplio espectro contenida en el
Art. 53 a) del CPE, que a nuestro juicio habilita a las oficinas de patentes o en
su caso los tribunales de justicia al examen de cualquier patente a la luz de los
principios referidos.
Patentamiento de material genético humano 98
Junto a este dispositivo general existen en materia de innovaciones
biotecnológicas, exclusiones particulares fundadas en iguales principios, lo que
refuerza el imperio del principio general al brindar supuestos ejemplificativos.
El citado Art. 53 a) del CPE establece que no se concederán patentes
europeas para las invenciones cuya publicación o explotación sea contraria al
orden público o las buenas costumbres.
El orden público en materia de patentes, según lo señala Iglesias
Prada, puede ser entendido como el conjunto de valores admitido por Ia
generalidad de un cuerpo social que resultarían transgredidos de un modo
irreparable si se concediera una patente sobre una invención determinada. Las
buenas costumbres – lo mismo que en otros planos generales del derecho –
son una categoría flexible y lo suficientemente indeterminada y difusa, para
permitir al juzgador apreciar a su arbitrio Ia moralidad de Ia invención de que se
trate. En este orden de ideas – lo recuerda Botana Agra – no debe perderse de
vista, que los pueblos van creando valores, acumulando caracteres y forjando
estilos y convicciones que, depuradas por el tiempo, sedimentan en una
tradición de gran contenido ético.
Es más, los argumentos éticos sociales están en la raiz de la exclusión
de tratamientos médico quirúrgicos respecto a humanos o animales, que
consagra el Art. 52.4 del CPE.
Todo esto no motivó demasiados cuestionamientos en tiempos
anteriores al surgimiento de la nueva biotecnología, ya que casi era
inconcebible que un inventor no advirtiera la contradicción de su solicitud de
patentes con normas éticas, o con principios liminares que rigen a una sociedad
en un momento y lugar determinados.
El tema adquiere toda su fuerza y dimensión cuando surgen las
primeras patentes sobre seres vivos o material perteneciente a seres vivos.
A este respecto, resulta muy ilustrativo el proceso de formación de la
nueva Directiva europea sobre protección de innovaciones biotecnológicas.
Patentamiento de material genético humano 99
La propuesta originaria del 21-10-88, no contenía referencias concretas
al orden público y a las buenas costumbres por estimarse que esta causal de
exclusión debía dejarse al dominio de cada derecho nacional.
Recién en la propuesta modificada del 16-12-92 aparece por primera
vez en el texto la exclusión de patentamiento por razones vinculadas con el
orden público y las buenas costumbres. Esto se fundamentó en razón de que
ciertas invenciones biotecnológicas, podían desconocer estas pautas por cuya
razón era realmente importante mencionar en la parte dispositiva un listado de
invenciones excluidas de patentabilidad “a fin de guiar a los jueces y a las
oficinas nacionales de patentes, ilustrando la referencia al orden público y a las
buenas costumbres por líneas directrices esenciales”.
Consecuente con ello, en el Art. 3 ap. 3 se agregó esta lista de
invenciones no patentables en función de la referida contrariedad:
a) El cuerpo humano y los elementos del cuerpo humano en tanto
que tales.
b) Los procedimientos de identificación de la identidad genética del
cuerpo humano con un fin no terapéutico y contrario a la dignidad de la
persona humana.
c) Los procedimientos de modificación de la identidad genética de los
animales, capaces de causar sufrimientos o handicaps sin utilidad para el
hombre o el animal.
En fecha 13-12-95, la Comisión proyectó una nueva propuesta de
Directiva. Aquí en su parte dispositiva puede observarse una modificación
relevante: el tema del patentamiento del cuerpo humano y sus elementos en su
estado natural, deja de integrar la nómina ejemplificativa de invenciones
excluidas por razones de orden público y buenas costumbres y lo considera por
separado. Esto importa admitir que esta exclusión no es una cuestion ética, sino
una cuestion técnica que descansa sobre la diferencia entre invento y
Patentamiento de material genético humano 100
descubrimiento, lo cual se dirige a llevar este tema fuera del debate ético con
una clara intencionalidad.
La directiva vigente – tal como es sabido – introduce varias exclusiones
de patentamiento basadas en razones éticas (los procedimientos de clonación
de seres humanos, los procedimientos de modificación de la identidad genética
germinal del ser humano, las utilizaciones de embriones humanos con fines
industriales o comerciales y los procedimientos de modificación de la identidad
genética de los animales que supongan para éstos sufrimientos sin utilidad
médica sustancial para el hombre o el animal y los animales resultantes de tales
procedimientos). Pero más allá de estas normas cabe señalar que eI Art. 7 da
una prueba acabada de la íntima relación de las Ieyes de patente con la ética.
En una disposición sin precedentes en textos de esta naturaleza
dispone que el Grupo Europeo de Etica de las Ciencias y de las Nuevas
Tecnologías, evaluará todos los aspectos éticos vinculados a la biotecnología;
lo que se ve reforzado por el Art. 16 que en su primer apartado dispone que la
Comisión transmitirá al parlamento y al Consejo, cada 5 años un informe sobre
posibles problemas que la Directiva haya planteado en relación con los
acuerdos internacionales de protección de los derechos humanos a los que
hayan adherido los estados miembro.
Es que, en definitiva, la introducción de la dimensión ética en el derecho
europeo de patentes era una necesidad política.
Tanto los fundamentos en que se asienta el derecho de patentes, como los
Ilamados requisitos objetivos de patentabilidad y las normativas internacionales y
nacionales dan suficiente sustento a la vinculación del derecho de Ia propiedad
industrial con principios éticos, lo que nos autoriza a examinar normas específicas
relacionadas con material genético humano a la luz de tales principios.
Patentamiento de material genético humano 101
LOS TEMAS EN DEBATE
La sola circunstancia de considerar el patentamiento de materia
biológica impacta en nuestras sociedades, que más allá del conocimiento
técnico jurídico expresan su preocupación en el plano de lo ético.
Cuando el debate desciende al terreno más específico del material
genético humano la preocupación de la opinión pública es justificada, no
obstante lo cual, la fuente de dicha preocupación deve ser explorada y
claramente expuesta.
Diversos interrogantes esperan una respuesta sensata y adulta que
más allá de los intereses sectoriales pueda satisfacer dicha preocupación.
En esta dirección cabe perguntarse si la materia genética puede ser
tratada como una molécula química, sin más aditamentos; si puede quedar en
el dominio de particulares – aún por tiempo limitado – información genética
obrante en genes y secuencias de genes humanos, si puede parificarse
invento a descubrimiento a los fines de otorgar el privilegio patentario, si es
razonable que se otorguen patentes de amplio espectro sobre contribuciones
mínimas al estado de la técnica, si ha desaparecido la distinción entre
investigacióon básica y aplicada.
Es comprensible el temor que el genoma humano o componentes
importantes del mismo pasen al dominio de grandes empresas o que las
investigaciones que se emprendan en el futuro en esta área tan sensible del
conocimiento se vean dificultadas, o neutralizadas, por quienes accedieron a
patentes sobre material genético humano otorgadas sin mayor cuidado.
También es comprensible, que las sociedades se alarmen cuando
diariamente se informan, que centenares o miles de secuencias parciales de
ADN humano forman parte de solicitudes de patentes de la industria privada o
cuando se lee que determinadas empresas niegan el libre acceso a información
genética contenida en sus bases de genes.
Patentamiento de material genético humano 102
Estos interrogantes justifican ampliamente incluir el tema del
patentamiento de genes y secuencia de genes en un congreso de bioética.
Para tratar de dar respuesta a ello pasaremos a analizar tres
temas gravitantes:
a) La relación invento-descubrimiento en este escenario.
b) El principio de no comercialización del cuerpo humano y sus partes.
c) El libre acceso al conocimiento del material genético humano y la
vocación de compartir Ia información científica derivada.
a) Descubrimiento e invención
Si bien en materia de patentes en general, Ia distinción entre
descubrimiento e invención tuvo una relevancia relativa, el tema adquiere con el
advenimiento de las nuevas biotecnologías un protagonismo esencial.
Así en el dictamen del GAEIB, de la Comisión Europea del 25-9-96,
relativo a los aspectos éticos en el patentamiento de invenciones que involucran
elementos de origen humano, se señala:
“que la distinción tradicional entre descubrimiento (no patentable) e
invención (patentable), revelan en el dominio de la biotecnología una
dimensión ética particular.
Resultado de esa distinción es que los conocimientos referentes al cuerpo
humano o a sus elementos pertenecen al dominio de los descubrimientos científicos e no
pueden ser patentados. A este respecto debe precisarse que el simple conocimiento de
la estructura total o parcial de un gen no puede ser objeto de una patente.”
La diferencia conceptual entre ambas categorías parece no ofrecer
mayores complicaciones.
El descubrimiento científico (al que por sí mismo le faltaría incluso eI
carácter de la materialidad), – señala Ascarelli – puede constituir la premisa del
posterior invento, pero la tutela concierne a éste y no a aquél; concierne al
invento como tal, no importando que implique o no, (como es lo normal), un
nuevo descubrimiento y esto no ya por la mayor “importancia”, del invento
Patentamiento de material genético humano 103
respecto al descubrimiento, (pues la verdad es justamente la contraria) sino
precisamente porque, dados los innumerables inventos que pueden tener como
premisa común un descubrimiento científico, una exclusiva que tuviese
directamente por objeto la utilización del descubrimiento científico se convertiría
en una carga para el progreso cultural y para el mismo progreso técnico que la
tutela del invento trata de promover.
La claridad de este esquema, parece hoy desdibujada por la necesidad
de lograr una mayor protección en el área de investigaciones biotecnológicas,
so pretexto de un mayor nivel de inversiones económicas, por parte de las
empresas comerciales.
Asistimos, de esta forma, a la creación de una zona gris entre estas dos
categorías conceptuales que en definitiva se orienta a facilitar Ia tendencia cada
vez más difundida de adquirir derechos de propiedad intelectual sobre simples
descubrimientos, para reservar grandes áreas de mercados futuros.
No se trata de adaptar conceptos a los nuevos retos de la tecnología,
ya que tanto en electrónica, en química o en biotecnología es posible diferenciar
lo que es un descubrimiento de lo que es una invención. Simplemente se trata
de adaptar conceptos ya decantados a nuevas exigencias económicas para
poder justificar lo que no admite justificación alguna.
So pretexto de existir dificultades en la caracterización, las oficinas de
patentes acuerdan derechos sobre simples descubrimientos, con lo cual no sólo
se premia a quien no es “inventor”, sino que se permite el otorgamiento de
derechos monopólicos sobre materia no comprendida en la descripción. Si a
esto agregamos la creciente tendencia a admitir descripciones en términos
amplios y abarcativos que apuntan a crear una mayor confusión en beneficio del
titular, podremos advertir que el panorama de la propiedad industrial en
biotecnología no es alentador.
Las prácticas de las oficinas nacionales de patentes se encuentran
distorsionadas desde hace tiempo. Tras el misterio de un derecho complejo solo
Patentamiento de material genético humano 104
reservado a iniciados – al que se agrega una materia igualmente compleja — se
van conformando doctrinas, decisiones administrativas y judiciales, solo
encaminhadas a alimentar los apetitos desmedidos de la industria cimentada en
la apropiación de la información genética (la industria genómica).
Así, se patentan microorganismos, células, líneas celulares, genes,
secuencias de genes y genomas, los que se revindican con patente de producto.
Sobre este particular, el Comité Consultivo Nacional de Etica para las
Ciencias de la Vida y de la Salud de Francia, en su dictamen del 8 de junio
próximo pasado especificó con toda claridad
“que el conocimiento de la información genética, sea elIa portada por un gen,
una secuencia genética o la totalidad de un gen, no es evidentemente
patentable, sino que importa un descubrimiento, en tanto que es información
sobre el mundo natural. Así, la sangre no puede ser objeto de patente. Pero los
anticuerpos innovativos pueden ser patentables. El mismo régimen puede ser
aplicado a la utilización de un gen clonado, bien caracterizado para producir una
proteína recombinante de eficacia biológica demostrada.”
Esta ruptura de la línea divisoria entre invento y descubrimiento causa
considerables perjuicios a la investigación científica, al negarse que el
conocimiento debe ser libre y accesible a todos los hombres.
b) El principio de no comercialización del cuerpo humano y
sus partes
Casi pareciera una cuestión trivial que no puede generar contradicción
alguna la prohibición de comercialización del cuerpo humano. Desde siempre y
aún al margen del derecho de la propiedad industrial, se ha sostenido como
cuestión de principio la no comercialidad del cuerpo humano, siendo la
exclusión de patentamiento un derivado natural de esta consideración.
El cuerpo humano, lo señaló el Grupo Asesor para la Ética de la
Biotecnología de la Comunidad Europea, en las diferentes etapas de su
constitución y desarrollo, así como sus elementos, no constituye invención
Patentamiento de material genético humano 105
patentable. Esta exclusión no se origina sobre las usuales condiciones de
patentabilidad, sino que se inspira en el principio ético de no comercialidad del
cuerpo humano.
Esta prohibición – por otra parte – puede considerarse incluida dentro
de la prohibición genérica de patentar objetos contrarios a la moral, al orden
público y a las buenas costumbres.
Cuando descendemos al gen, a la secuencia de un gen, pareciera que
el tema de los “elementos” del cuerpo humano se complica y que es posible
escindir – a los fines del derecho de la propiedad industrial – un gen, una
secuencia parcial o un polimorfismo de la estructura total.
Este tema – tal como puede observarse – es de relevante importancia
no sólo en el plano jurídico sino en el ético.
El Comité Consultivo francés en el mencionado dictamen há dicho que
“con el gen estamos a un nivel molecular donde el calificar de humana la
realidad que nos ocupa no tiene ningún sentido. Sin embargo, el gen lleva
inscripto en su secuencia elementos determinantes que son fundamentales en
el ser humano; su relación con el cuerpo tiene, en efecto, un significado
totalmente diferente que para otras moléculas. Descifrar la información que
contiene el gen es abrir Ia comprensión del ser vivo y si se trata de un ser
humano esta comprensión es fundamental para los seres humanos que somos”.
“Cómo imaginar si se ha decidido tratar al gen como un producto banal que esta
concepción no se extenderá a una célula, a un órgano, a transaciones
concernientes a la reproducción? El Comité insiste en pensar que lo que se diga
del gen, a propósito de la propiedad intelectual, podría – si no se tiene cuidado
– fragilizar la regla que pone al ser humano ‘fuera del comercio’, punto al que
no hay que tratar de llegar.”
La extensión de los derechos de propiedad industrial al material
genético humano – en efecto – abre una vía muy perocupante en el plano ético
que amenaza instrumentalizar al ser humano desintegrándolo de sus elementos
componentes conforme a las necesidades del mercado.
Patentamiento de material genético humano 106
¿Cuál es el limite? No lo podemos predecir, pero cuando una normativa
– tal el caso de la directiva europea sobre innovaciones biotecnológicas –
autoriza a otorgar patentes sobre “elementos aislados del cuerpo humano”, es
justo que nuestra preocupación se manifieste.
c) El libre acceso al conocimiento del genoma humano y la
vocación de compartir la información científica derivada
Por tratarse de conocimientos relativos a la persona humana
estrechamente relacionados con su salud y bienestar, constituye un imperativo
el asegurar el libre acceso a los avances de la investigación sobre el genoma.
Toda ocultación o reserva de tal conocimiento es contraria al espíritu de
colaboración que animó desde el comienzo la ventura del genoma humano. El
libre acceso no sólo implica la posibilidad de acceder sin trabas a la
información, sino también el de no tener que reconocer derecho económico
alguno para su utilización.
De nada vale que sea publicado y difundido el mapa del genoma, si la
posterior utilización por la comunidad científica de información de él derivada
puede verse interferida por el otorgamiento de derechos de propiedad
intelectual sobre genes o secuencias de genes.
El conocimiento sobre el genoma humano, lo ha señalado el CCNE,
está ligado a la naturaleza del ser humano; en este punto fundamental es
necesario que para su bienestar futuro no pueda ser apropiado de forma
alguna. El debe estar abierto a la comunidad de investigadores, debe quedar
disponible para la humanidad en su conjunto, recordando que para la
Declaración Universal de la Unesco sobre el genoma humano, éste es en un
sentido simbólico “patrimonio de la humanidad”.
Tal como podremos observar más adelante, toda política del
ocultamiento o retaceo de información sólo puede contribuir a bloquear el curso
de investigaciones prioritarias para el ser humano.
Patentamiento de material genético humano 107
La importancia misma de los horizontes abiertos por el conocimiento de
la genética humana fortalece la necesidad de compartir conocimientos. El
conocimiento del gen – reitera el CCNE – no puede ser preservado
celosamente por los países ricos, tanto más que él se pudo asentar sobre un
pilaje de material genético obtenido de los países más pobres.
EI conocimiento pertenece a todos, desde Ias perspectivas revolucionarias
que abre sobre la comprensión de la vida y de las enfermedades.
La necesidad de compartir los beneficios derivados de Ia investigación
del genoma como un imperativo moral ha sido claramente destacada por la
Declaración de la Unesco, que recibiera la ratificación unánime de la comunidad
internacional. En este sentido el Art. 19 establece que en el marco de
cooperación internacional con los países en desarrollo, los estados deberán
esforzarse por tomar medidas destinadas a fomentar el libre intercambio de
conocimientos e información científicos en los campos de la biología, la
genética y la medicina.
EL PATENTAMIENTO DE GENES Y SECUENCIAS DE GENES
EN EUROPA Y LOS ESTADOS UNIDOS
La Oficina Europea de Patentes (EPO) considera que con respecto a
los genes debe considerarse que son secuencias ordenadas de nucleótides, a
saber: DNA ubicadas en un lugar particular de un cromosoma particular.
Codifican un producto funcional específico como una proteína o una molécula
de ARN y por lo tanto constituye una sustancia bioquímica generada
naturalmente. Conforme a las pautas de examen de la Oficina, una sustancia
encontrada en Ia naturaleza, tal una secuencia de ADN, es patenable si se la
aisla de su entorno y puede caracterizarse por su estructura a través del método
por el cual se la obtuvo o por otros parámetros.
Estas secuencias carecen de novedad para dicha Oficina si su
existencia ha sido dada a conocer públicamente de forma reconocida antes de
Patentamiento de material genético humano 108
su registración o fecha de prioridad. Esto no ocurre automáticamente aunque
integren un banco genético accesible al público.
Conforme a estos criterios la EPO ha otorgado un número considerable
de patentes sobre secuencias de ADN de distinto origen, entre otras
aproximadamente quinientas referidas a secuencias de ADN humano.
El tema ha sido objeto de especial consideración en la Directiva
Europea 98/44 relativa a la protección de las invenciones biotecnológicas, que
obliga a los estados miembros a dictar sobre esa matriz disposiciones legales,
reglamentarias y administrativas armónicas.
Lo primero que cabe destacar es que la Directiva a estar de su texto y
de las consideraciones que lo preceden se dirige a regular invenciones
biotecnológicas y no menos descubrimientos (Art. 1 y 3 y consid. 8, 13 y 16).
AI entrar en el tema el Art. 5 dispone que el cuerpo humano en los
diferentes estadios de su constitución y su desarrollo, así como el simple
descubrimiento de uno de sus elementos incluida la secuencia o secuencia
parcial de un gen no podrán constituir invenciones patentables.
Enfáticamente el considerando 16, dispone
“que el derecho de patentes se ha de ejercer respetando los principios
fundamentales que garantizan la dignidad y la integridad de las personas, que
es preciso reafirmar en princípio según el cual, el cuerpo humano en todos los
estadios de su constitución y desarrollo, incluida Ias células germinales, así
como eI simple descubrimiento de uno de sus elementos o de uno de sus
productos; incluida la secuencia o la secuencia parcial de un gen humano no
son patentables; que estos principios concuerdan con los criterios de
patentabilidad previstos por el derecho de patentes, en virtud de los cuales un
simple descubrimiento no puede ser objeto de una patente”.
A tenor de este texto pareciera que el Art. 5 expone un principio general
relativo a Ia materia de patentes de material genético humano, que se cimenta
Patentamiento de material genético humano 109
en innegables principios éticos. Pero a poco que avancemos en el examen tal
principio general se desvanece.
Dejando fuera del análisis al cuerpo humano considerado en su
integridad, cuyo patentamiento suena a ridículo o absurdo, la posibilidad de
patentar sus elementos componentes mientras integran funcionalmente el todo,
no resulta posible ni atendible.
En efecto no resulta explicable que un elemento funcional de un
organismo vivo pueda sortear los requisitos objetivos de patentabilidad.
Surge de ello que el primer apartado del Art. 5, carece de mayor relevancia.
La regla general a nuestro entender, es la contenida en el 2º ap. del Art. 5:
“un elemento aislado del cuerpo humano u obtenido de outro modo mediante un
procedimento técnico, incluida la secuencia o la secuencia parcial de un gen,
podrá considerarse como una invención patentable aún en el caso de que la
estructura de dicho elemento sea idéntica a la de un elemento natural.”
Vamos al examen de esta norma.
En primer lugar admite el patentamiento de un elemento aislado del
cuerpo humano. ¿,Qué significa elemento? Conforme al diccionario de la lengua
tomamos una acepción: fundamento móvil o parte integrante de una cosa.
En este caso un elemento podría ser un gen, un cromosoma, una célula,
un órgano, una extremidad aislada del cuerpo humano. Bercovitz anota que un
elemento aislado del cuerpo humano puede ser una parte significativa del ser
humano y podría dar lugar a un cierto tráfico de órganos; aparte habría que ser muy
exigente en el carácter beneficioso para la humanidad de la invención que se
pretende proteger con utilización de elementos del cuerpo humano.
Una vez más – agrega el autor – las cuestiones éticas, de orden público
deberían ser tenidas muy en cuenta por las autoridades encargadas de la
concesión de patentes.
La norma agrega “un elemento obtenido de outro modo mediante un
procedimiento técnico, incluida la secuencia o secuencia parcial de un gen”.
Patentamiento de material genético humano 110
Mientras el aislamiento compreende la utilización de técnicas
tradicionales, la “obtención mediante un procedimiento técnico”, implica la
aplicación de técnicas biotecnológicas.
Vamos al gen o a la secuencia parcial de un gen.
¿Qué es un gen? Sin duda nos encontramos ante un concepto difícil de
definir. Diferentes biólogos según su campo de actuación lo definirian de
diversas maneras.
Para la biología molecular un gen es un fragmento de ADN que
especifica la composición de una proteína y determina si se puede sintetizar.
Para Oliva, si alguna utilidad puede tener la definición del gen es la de
facilitar la comunicación y para este fin basta en muchos casos la definición del
gen como unidad transcripcional.
Si apuntamos a su composición podremos – como reiteradamente se lo
ha hecho – parificarlo a una molécula química y aplicarle los principios que
consagra el derecho de propiedad industrial respecto a estas composiciones.
Pero existe una diferencia que deviene en fundamental a fin de no
generar confusiones basadas en una simplificación: esta molécula (o fracción
de una molécula) contiene o es portadora de información genética y lo que
realmente gravita es dicha información y no su soporte.
Un gen – anota Kahn – puede ser sintetizado químicamente sin dificultades
a partir de sus constituyentes de base, es decir nucleótidos. Comparando con otras
moléculas del mundo biológico, v.gr. azúcares, ácido úrico o una proteína, los
genes tienen una propiedad complementaria que hace a su especificidad: ellos
constituyen el soporte de un programa genético. Esto significa que en un ambiente
apropiado con la ayuda de la máquina de una célula viva el programa impreso en el
gen podrá ser leído y ejecutado. En este sentido eI gen se compara a un soporte de
información cualquiera: bandas magnéticas, discos informáticos, o videocasetes. La
naturaleza de estos soportes debe ser considerada independientemente de la
información que ellos contienen.
Patentamiento de material genético humano 111
Así de lo que se trata en materia de patentes de genes es en realidad
sobre Ia información genética que presenta. La secuencia de un gen puede ser
considerada como un componente del mundo natural, ajeno a los criterios
objetivos de patentabilidad.
Si la estructura de dicha información (conjunto de órdenes que integran
la secuencia total o parcial) es idéntica a la de un elemento natural, nos
hallamos ante un descubrimiento y no ante una invención.
En oportunidad del dictamen requerido por la Comisión Europea sobre
los aspectos éticos del patentamiento de invenciones que contengan elementos
de origen humano, el Grupo de Consejeros para la Ética de la Biotecnología de
dicha Comisión sostuvo que
“en lo que concierne a invenciones realizadas a partir del conocimiento de un
gen o de una secuencia parcial de un gen humano, la concesión de una patente
no es aceptable sin que, por uma parte conste la identificación de la función
vinculada al gen o a la secuencia parcial del gen que abra la vía a nuevas
posibilidades (por ej, la fabricación de un nuevo medicamiento) y si por otra
parte la aplicación a que da lugar Ia patente no está suficientemente precisada
e identificada”.
A estos términos, que revelan un criterio abierto a la patentabilidad, el
Dr. Dietmark Mieth (correlator del informe) le hizo un agregado fundamental,
que encuadra correctamente a nuestro entender el tema en debate.
Reza el agregado propuesto por Mieth que
“una patente puede ser otorgada sobre una invención susceptible de aplicación
industrial respecto a un elemento de origen humano como un gen aislado, si
este ha sido esencialmente modificado. Este elemento no está esencialmente
modificado si su estructura es identificable como aquella de un elemento (gen)
que se encuentra en el cuerpo humano o si la información genética es idéntica
a aquella de un gen presente en el cuerpo humano.
De todos modos – agrega – el otorgamiento de una patente es justificable para
una innovación que muestre una nueva aplicación terapéutica o el uso de un
Patentamiento de material genético humano 112
gen o de una secuencia parcial, aun sin alterarla. En este caso, – patente de
producto y patente de procedimiento – la necesidad de estimular la
investigación europea y la utilización de sus resultados puede primar sobre
otros aspectos. La patente no debe cubrir el gen en sí mismo sino la utilización
específica determinada.”
Que la determinación de la secuencia natural importe un conjunto de
pasos más o menos complicados en el orden técnico no cambia la calificación
de la actividad humana. La complejidad mayor o menor de un proceso que Ileva
al conocimiento de la secuencia no le quita el carácter de descubrimiento para
transformarlo en invención.
En todo caso, atendiendo a Ia diferenciación clásica del derecho de
patentes entre invento de producto o invento de proceso, lo que eventualmente
podría reivindicarse como actividad inventiva es el procedimiento que llevó a
describir la secuencia, pero no en forma alguna la secuencia como tal.
Es lo que preconiza Bercovitz:
“El problema que se plantea aquí como se plantea en todas las tecnologías
nuevas y que se planteó en su dia a la química es si la secuencia de
nucleótidos debe ser protegida en sí misma por patente de producto o si por el
contrario, debe ser protegida simplemente como una patente de procedimiento,
lo cual sería muchísimo más razonable porque no se sabe si el gen que se
protege hoy para producir una proteína, pasada mañana no va a servir para otra
función totalmente distinta. Naturalmente, si se protege el gen en sí mismo, esa
segunda función sólo podría dar lugar a una patente dependiente con los
inconvenientes que elIo significa. Nadie estará interessado en investigar sobre
un gen ya patentado porque sabrá que la patente que obtenga será una patente
dependiente y no podrá ser explotada sin el consentimiento del titular de una
patente anterior.”
La secuencia de un gen aislado puede ser idéntica a la de un gen en su
estado natural o diferir. En este último caso la modificación podría atender a un
Patentamiento de material genético humano 113
mejor funcionamiento del gen en el medio en que actúa (bacteria, célula, etc.)
v.gr. mediante la técnica de optimización de codones.
Estas técnicas son ampliamente conocidas y se encuentran en el
dominio público.
En ambos casos nos encontramos ante situaciones que no podrían
justificar de forma alguna el otorgamiento de patentes.
De igual forma la optimización mediante el cambio de promotores o
terminadores con técnicas de ingeniería genética básica, no entraña
procedimiento inventivo alguno.
Si leemos atentamente la norma, lo que consagra es la posibilidad de
otorgar una patente de producto al “elemento aislado”, con lo cual llegamos a la
conclusión que contradice los principios éticos considerados fundamentales en
la Directiva y que expressa el mencionado considerando 16.
En síntesis, lo que se está patenteando con patente de producto es
simplemente un descubrimiento. La secuencia total o parcial del “elemento” es
la secuencia natural. El inventor que resulta premiado con un título de exclusiva
no modificó tramo alguno de tal secuencia.
Ulrich Schatz, Director de Asuntos Internacionales de la EPO,
explicando la posición favorable al patentamiento de secuencias de genes,
señala que si bien es correcto que el mero secuenciamiento del genoma es más
una materia de descubrimiento (no patentable), debe diferenciarse del caso en
que la secuencia de ADN que codifica para una proteína particular es aislada de
su medio natural por medios técnicos y puesta a disposición de la industria.
Esto – a su criterio – completa el paso del conocimiento a la práctica
idónea el cual es central en toda invención. Así – concluye – un gen es “nuevo”
en el sentido que le asigna la Ley de Patentes, en tanto que previamente no
estuvo disponible para el público, i.e. para uso técnico.
Esta posición es la que recepta en general para toda materia biológica
la Directiva Europea de 1998 en sus artículos 5.2 y 3.2 en cuanto establecen
Patentamiento de material genético humano 114
que la materia biológica aislada de su entorno natural o producida por medio de
un procedimiento técnico, puede ser objeto de una invención aún cuando ya
exista anteriormente en estado natural.
Poste – en esta misma orientación – sostuvo que las dificultades del
trabajo de descubrir genes y las técnicas necesarias para Ilevarlo a cabo
convierten a un hallazgo en una invención. Este análisis, para Davidson
contiene una falacia lógica ya que por mucho trabajo que se añada no se puede
dar el salto epistemológico que existe entre descubrimiento e invención. Es
obvio que las leyes de patentes no pueden llegar a distorsionar conceptos
suficientemente decantados en el lenguaje natural, transformando en invento un
simple descubrimiento.
En esta línea de razonamiento el aludido dictamen del CCNE critica la
posición que entiende que el aislamiento por clonación de un gen en particular
que permita su caracterización pone a disposición de los investigadores un
material portador de una invención.
Señala sobre el particular que este razonamiento puede ser discutido
en tanto la conación automatizada de um fragmento de ADN no implica ninguna
actividad inventiva, los procedimientos se convierten por outra parte en
perfectamente corrientes y si fuera suficiente el hecho de aislar el gen para salir
del dominio del descubrimiento y hablar de invención patentable, no habría más
lugar hoy en día para descubrimientos en el dominio de la genética.
Habíamos señalado en anterior oportunidad que la simple asimilación
entre los criterios empleados para la protección de una molécula química – en
especial las utilizadas con fines terapéuticos – y un gen humano es cuanto
menos inconsistente.
En el hallazgo de um medicamento con actividad terapéutica sobre una
enfermedad existe una doble invención: la molécula considerada en sí misma y
su utilización terapéutica.
Patentamiento de material genético humano 115
En el campo del genoma es de imposible aplicación este razonamiento
en tanto el aislamiento del gen (lo que equivale a la concepción de la molécula
química) no importa una actividad inventiva. Esta sola circunstancia nos debe
mover a considerar que esa pretendida asimilación parte de una base falsa.
En anteriores etapas de la investigación genómica el aislamiento de un
gen era el resultado de una concreta labor de investigación que se desarrolIaba
en torno a una hormona, una enzima o un receptor, para concluir en un gen.
Hoy asistimos a un cambio sustancial ya que el gen puede ser
secuenciado en forma automática utilizando métodos usuales pertenecientes al
dominio público. La actividad inventiva – conforme lo enseña Kahn – no puede
residir en esa molécula de ADN que es el gen.
Es possible – lo señala el CCNE – a partir de un análisis informático de
una secuencia genómica reivindicar un campo de utilización muy grande, que
permanece virtual. Es frecuente que esta utilización industrial se deduzca de
comparaciones informáticas entre los elementos de secuencia del gen enfocado
en la patente y la secuencia de otros genes o de genes de organismos modelo
cuya función es conocida. Las sociedades de secuenciación de ADN tienen hoy
programas informáticos que les permiten hacer automáticamente ciertas
comparaciones de secuencias gracias a Ia totalidad de las bases de datos
accesibles y de inferir en ellas los campos de aplicación industrial que son en tal
caso “concretamente expuestos”. Esta práctica confiere una protección
industrial que cubre toda secuencia de genes total o parcial.
Lo que debe quedar en claro es que la patente a concederse en ningún
caso puede reivindicar la secuencia del gen, la que debe ser puesta a
disposición de la comunidad científica.
Otorgar patente de productos por el descubrimiento de la secuencia del
gen paraliza a quien va a encarar la investigación más trascendente que
desemboque en el conocimiento de la verdadera actividad biológica de la
Patentamiento de material genético humano 116
proteína codificada por ese gen y en consecuencia en su utilización por él
publico sí se trata de un medicamento.
Un principio fundamental en el derecho de patentes es que Ia
protección otorgada no puede superar la contribución efectiva hecha por el
inventor al estado de la técnica.
Aún cuando hipotéticamente consideremos a tal descubrimiento como
una invención, resulta totalmente desproporcionado que quien haya revelado la
secuencia total o parcial empleando procedimientos rutinarios que están en el
dominio público, se aduñe de la misma con un derecho tan extenso e intenso
como el que otorga una patente de invención de producto.
Bajo la aparencia de respeto a principios morales y a la dignidad
humana, lo que consagra la Directiva es un derecho de apropiación sobre
información genérica brindado por la naturaleza. Lo demás es mera dialéctica
para posibilitar una sauda política a una Directiva que generó grandes
resistencias en la sociedad europea.
En los Estados Unidos la protección patentaria para secuencias de
genes es tan sólo una extensión lógica de la bien arraigada práctica de otorgar
protección por genes completos. Esto refleja el enfoque tradicional de comenzar
con una actividad conocida y obtener el gen que codifica la proteína que
demuestra esa actividad.
Ya se han concedido 700 patentes en este campo, incluyendo genes
tan importantes para Ia actividad comercial y farmacéutica como el activador
tisular del plasminógeno (TPA), la eritropoyetina, el factor estimulante de
colonias granulocíticas (G-CSF y GM-CSF), el factor VIII de coagulación y eI
antígeno de superfície de la hepatitis B.
El valor de la información inherente contenido en Ia secuencia de
nucleótidos de estos genes ha sido reconocido repetidamente por los
Tribunales norteamericanos.
Patentamiento de material genético humano 117
Dentro del patentamiento de secuencias, cobra particular relevancia en
este análisis el relativo a las etiquetas de secuencias expresadas (Expressed
Secuence Tags – ESTs).
Una ESTs, es simplemente una secuencia de un segmento corto de
ADN que ha sido clonado, que es elegido al azar de un set de clones de ADN
obtenidos por procedimientos esencialmente standars que ya estaban en el
dominio público. La idea de escoger un gran numero de ADN clones y usar la
secuencia de una pequeña porción de cada uno como marcadores genéticos ó
etiquetas es un procedimiento obvio que ha sido extensamente discutido en la
comunidad científica.
Está constituido por pequeños fragmentos de material genético
obtenido mediante transcripción inversa del ARN mensajero (ARNm) de
genes expresados respecto de los cuales no existe información alguna sobre
su función.
Ya desde hace tiempo que se venía insinuando el interés de las
empresas genómicas por patentar este tipo de secuencias lo que motivó el
rechazo de numerosas instituciones científicas.
En este sentido la Sociedad Americana de Genética sostuvo que la
concesión de patentes para ESTs, es probable que redunde más en daños que
beneficios y que antes de otorgarse alguna patente en este campo debería
examinarse cuidadosamente el impacto que ocacionaría al Proyecto Genoma
Humano y al campo de la medicina.
En un informe sobre patentamiento de secuencias de ADN la HUGO
analizó el tema de las ESTs. Destacó sobre el particular:
a) que la generación de ESTs se basa en la tecnología de
secuenciamiento automática que está en uso desde mediados del 80.
b) que la actitud estratégica de secuenciamiento de ESTs en gran
escala representa la extension útil pero simple de una técnica que se utilizó en
menor escala durante largos años.
Patentamiento de material genético humano 118
c) que el proceso que va de una ESTs a una secuencia completa de
ADN o de genoma, no es simple y que la obtención de una ESTs no garantiza
implementar una estrategia práctica o simple para superar los obstáculos que
se presenten.
d) que la tarea de identificar la función biológica de un gen es el paso
más importante, en términos de dificulad y beneficio social. Por lo tanto merece
el mayor incentivo y la mayor protección. Determinar la función de uma
secuencia, es un asunto sumamente complejo que requiere experimentos
biológicos de la máxima creatividad posible.
e) el uso de fragmentos de genes para categorización, mapeo,
tipificación de tejidos, identificación de individuos, utilización forense, producción
anticuerpos, aplicaciones antisense, de triple hélice y de ribosoma o localización
de regiones genéticas asociadas a: enfermedades genéticas, para el desarrolo
de una herramienta verdaderamente útil requerirá la inversión de una
creatividad y un esfuerzo considerablemente mayores e mucho más intensivos
que el descubrimiento del fragmento inicial.
No obstante, la Oficina de Patentes de los EE.UU. consideró en su
momento que es materia patentable, sosteniendo que
“divuIgar el uso específico de las ESTs en identificación forense, identificación
del origen o tipo de tejido, en el mapeo de cromosomas, en Ia identificación de
cromosomas o para etiquetar un gen de función útil y conocido, puede
patentarse si se respalda con una divulgación suficiente”.
Basada en este criterio, la Oficina de Patentes norteamericana otorgó el
6/10/98 a Incyt Pharmaceutical la patente n° 5.817.479 para “Homólogos de
Quinasa Humana”; la primera patente referida a ESTs.
La utilidad de las ESTs no ha sido demostrada, su valor simplemente
radica en ser una herramienta de investigación para identificar el resto de la
región codificada del gen.
Patentamiento de material genético humano 119
Es necesaria una investigación adicional considerable para determinar la
total secuencia de ADN, para llegar a deducir la secuencia de aminoácidos de la
proteína codificante y para determinar la estructura y función de la proteína. Se
requiere una investigación complementaria para determinar si la proteína es
defectuosa y está ligada a una enfermedad, en cuyo caso su producto puede
tener utilidad para el diagnóstico o aplicaciones terapéuticas de esa enfermedad.
De forma tal que la utilidad no sería conocida hasta que la investigación adicional
esté completa y su utilidad descansará seguramente en los productos de la
investigación más adelantados y no como ESTs en sí misma.
La ESTs es, en el mejor de los casos, una punta de iniciación para
investigaciones futuras y tal investigación constituye un empleo de tiempo,
esfuerzo y gastos que supera por mucho margen a la inversión involucrada en
la identificación de la ESTs original.
Coincidiendo con esta posición, el Comité de Ética de la HUGO,
representativo de la comunidad científica comprometida en la investigación del
genoma humano, en una declaración de 1997 reclamó que los derechos de
propiedad intelectual se distribuyan equilibradamente de una manera que
sopese adecuadamente los aportes de las diferentes partes al esfuerzo total de
la investigación y cree los estímulos necesarios para el actual desarrollo de
productos sul interferir en la investigación científica.
Señaló en tal oportunidad que sería irónico y desafortunado si el
sistema de patentes tuviera que premiar la rutina y desanimar la innovación. Sin
embargo ese podría ser el resultado de conceder amplias derechos de patentes
a aquellos que comprometen esfuerzos masivos pero rutinarios – como eI
secuenciamiento – ya sea para ESTs o para genes enteros a la vez que se
conceden derechos más limitados o ningún derecho a aquellos que realizan los
descubrimientos más dificiles y significativos de las funciones biológicas ocultas.
Una segunda consecuencia igualmente desafortunada ocurriría – a
juicio de la HUGO – si la publicación o eI ingreso de una secuencia parcial a
Patentamiento de material genético humano 120
una base de datos impidiera el patentamiento de descubrimientos innovadores
sobre genes de enfermedades que conduzcan a mejores diagnósticos y
terapéuticas médicas. Esto podría derivar en la inhibición de contribuciones a
las bases de datos y la falta de protección de la invención para innovaciones.
Otro tema interesante vinculado a las patentes sobre ESTs es el relativo
al carácter de “comprensivo” que le asigna la Oficina de Patentes de los EE.UU. a las patentes sobre secuencias de genes. Una práctica común cuando no hay
antecedentes en la técnica es permitir al solicitante de la patente utilizar
expresiones “comprensivas” en un área particular.
Aunque parezca un asunto trivial, en la jerga de patentes el término
“comprensivo” es abierto, comprendiendo no sólo lo que dice la solicitud sino
también elementos adicionales que pudieran no ser previsibles al momento de
patentar; es decir, se les reserva una amplia cobertura.
En este campo, se señaIó que tales expresiones “comprensivas” podrían
llegar a abarcar un gen completo identificado posteriormente al ser secuenciado.
Es decir que conforme a este criterio es posible que un sujeto obtenga
una patente sobre una secuencia parcial de un gen sin conocer su función ni
invocar una utilidad – en los limites con que se interpretó tradicionalmente este
requisito – y adueñarse de la totalidad de un gen.
Un tema novedoso respecto al cual pareciera insinuarse la idea de
protegerlo con patente es el descubrimiento de la importancia para los
diagnósticos de los denominados “polimorfismos simples de nucleótidos
aislados (SNPs)”.
En función de los problemas ya planteados por Ias ESTs y de los que
amenaza plantear los SNPs, la HUGO en una reciente declaración enfatiza que
el criterio básico de que la molécula de ADN y sus secuencias, ya sean
secuencias completas genómicas o ADNC, ESTS, SNPs o cualquier genoma
completo de organismos patógenos, aun con funciones o utilidades
desconocidas, deben ser vistas como parte de una información precompetitiva y
Patentamiento de material genético humano 121
al mismo tiempo, expresó su seria preocupación acerca del impacto negativo
respecto a mayores progresos en la investigación del genoma y la consecuente
explotación de sus resultados puedan dar lugar las reivindicaciones en términos
“posesivos y comprensivos” otorgados para las ESTs.
En el mismo documento, reitera la necesidad de que las oficinas de
patentes y los tribunales cuando examinen los requisitos de aplicación industrial
de las moléculas de ADN y sus secuencias requieran una indicación no
ambigua que favorezca Ia divulgación de la función; y examinen rigurosamente
la indicación de funciones o las funciones designadas.
Esta preocupación coincide con numerosos pronunciamientos
anteriores de entidades científicas en torno al rumbo que estaban tomando Ias
políticas de patentamiento en este campo.
EFECTOS DE LAS POLÍTICAS DE PATENTAMIENTO SOBRE LA INVESTIGACIÓN CIENTÍFICA
Uno de los fundamentos más sólidos de los Derechos de Propiedad
Industrial, sobre los inventos es el que apunta a premiar el esfuerzo innovativo
de modo tal que se vuelque en el progreso de las técnicas, que en definitiva
deviene en un benefício general para la humanidad. Ya desde antiguo, la
Constitución norteamericana haciéndose eco de estos postulados dio jerarquía
constitucional al derecho del inventor para promover – según reza el art. 1 de la
secc. 8º – “el progreso de las artes útiles”.
Hasta tiempos relativamente recientes, esto no fue materia de discusión
alguna. A nadie se le hubiera ocurrido que las políticas legislativas en patentes
pudieran interferir o neutralizar el progreso de las ciencias o de las técnicas.
Hoy asistimos a un cuadro complejo que presenta características
singulares y que nos aparta de líneas de pensamiento sostenidas durante largos
años. Una serie de factores han coadyuvado para articular este nuevo escenario.
Por una parte estamos asistiendo a un espectacular avance de las
ciencias y la tecnología. Este avance tiene profundas consecuencias
Patentamiento de material genético humano 122
económicas: ciencia y tecnología han devenido en factores estratégicos
fundamentales para el desarrollo económico de los países. Hoy la riqueza de
los países no estriba tanto en la posesión de bienes materiales sino el dominio
de la ciencia y la tecnología aplicado a la producción.
La toma de conciencia de esto lleva a que los estados prioricen su
posición estratégica en este campo. Quien domine una o varias ramas de la
tecnología tendrá ventajas competitivas extraordinarias con relación a los
demás países, lo cual lleva a una sórdida lucha por alcanzar el liderazgo y por
convertir a los demás países en tributarios del grado relativo de desarrollo
alcanzado en el campo del cual se trate.
Esta lucha centrada en lo económico llevó a cambiar las reglas de juego
en la interección estado, empresa privada, sector científico y sociedad.
Fruto de este cambio, se implementaron políticas generales favorables
al patentamiento en los más diversos campos del conocimiento, junto al
endurecimento en la defensa de los derechos de propiedad industrial.
Ya no se trata de un tema que competa al sector indutrial – destinatario
natural de los derechos de patentes – sino que su manejo compromete a los
estados como parte relevante de sus políticas económicas. Por ello no puede
extrañarmos que estos derechos hayan adquirido una dimensión universal,
estando colocados en una posición central en los acuerdos TRIP-S DEL GATT.
La necesidad de tutela efectiva e hipertrofiada de tales derechos hace que
su defensa se traduzca en la aplicación de sanciones a los estados que los violen.
Particularmente dentro de las tecnologías de punta, la biotecnología
hizo concebir desde un primer momento la necesidad de dominarlas para poder
gozar de los beneficios de un monopolio sobre un mercado que se avizoró
como muy relevante en lo económico.
Cuando nació el Proyecto Genoma Humano y se desarrollaron las
investigaciones que apuntaban al lofro de nuevos campos en la terapéutica y
diagnóstico de enfermedades se generó una batalla por el domínio de las patentes.
Patentamiento de material genético humano 123
El Proyecto Genoma Humano nació y se concibió como una gran tarea
de colaboración científica. Laboratorios de diversos países con la actuación de
un gran número de científicos abordaron la aventura de secuenciar el genoma
humano, para poder llegar a conformar un mapa de gran precisión, como primer
paso para continuar con una tarea ciclópea – que sin duda beneficiaría a la
humanidad – al abrir caminos para el diagnóstico y la terapia de enfermedades
de diversa etiologia.
Es obvio que una empresa de semejante dimensión y alcances
necesitaba de un fluido intercambio de información, y de la colaboración de
diversos países.
Este panorama incentivó inicialmente el progreso en esta área de
investigación, la que imbricada con tecnologías informáticas llegó a superar
los cálculos iniciales al incorporar métodos de secuenciación cada vez más
rápidos y efectivos.
Estos logros despertaron el espíritu de codicia que llevó al retaceo de
información fundamental considerada relevante para continuar avanzando por
los caminos abiertos. Parecieran ser incompatibles la libertad amplia de
investigación y de información con los designios cada vez más ostensibles, de
apropiación de los resultados obtenidos. Ya en 1993 se señalaba que muchos
investigadores estaban soportando serios problemas surgidos de la compleja
interacción de la ciencia, con las empresas privadas y la ley.
El material genético humano se convirtió en materia prima esencial para
esta nueva “industria genómica”, que se incorporó como nueva rama de la
biotecnología. Axel Kahn, agudamente destaca que para poder producir energia
hace falta carbón, petróleo, gas o uranio: la industria metalúrgica reposa sobre
la disponibilidad de minerales y las biotecnologías, basadas en ingeniería
genética reposan sobre la disponibilidad de genes: para poner a punto tests
diagnósticos, producir proteinas recombinantes de interés terapéutico o
Patentamiento de material genético humano 124
encontrar los puntos que serán utilizados para la investigación de nuevos
medicamentos hacen falta genes.
Consciente de ello tempranamente una institución oficial, el NIH de los
Estados Unidos, al solicitar patentes sobre secuencias de genes de función
desconocida generó un gran debate en el seno de la comunidad de los
investigadores, poniendo de relieve al mismo tiempo, una política científica
dirigida a la búsqueda de reservas del mercado a cualquier costo y con
cualquier fundamento.
Ya no se trataba de esperar los resultados de una investigación madura
y completa, sino simplemente apropiarse en forma temprana de herramientas o
instrumentos que permitirian bloquear futuras investigaciones en amplios
campos del conocimiento.
El acceso a las patentes sobre materiales genéticos – que constituyen
esencialmente herramientas de investigación – há incitado a insistir en estas
políticas. Una cantidad de empresas y de individuos han establecido programas
de licenciamiento sobre métodos de ensayo y receptores necesarios para la
selección de drogas que son objeto de investigación.
Esto, en un momento posterior, creó una fuerte preocupación que llevó
al propio NIH a establecer un comité a fin de formular una politica reguladora del
patentamiento y del acceso a las herramientas de investigación desarrolladas
con fondos provistos por la entidad. La preocupación se fundaba en que el
costo de la investigación llegaria a ser prohibitivo debido a que la investigación
en gran escala requiere una multiplicidad de herramientas de investigación y
que la acumulación de regalías a pagar por esta causa aumentara
considerablemente los costos de la investigación.
El tema ya no pasaba por la interpretación más o menos amplia de
normas legales involucradas en el tema, sino en analizar el efecto negativo que
tales políticas pudieran tener sobre el curso de las investigaciones futuras.
Patentamiento de material genético humano 125
AI permitir patentar secuencias de genes sin siquiera conocer su
función o utilidad, lo que se está permitiendo es inferir un golpe mortal a la
investigación, ya que en el futuro la posibilidad de investigar u obtener alguna
invención sobre el material patentado y sus extensiones – conforme a los
criterios amplios con que se manejan las oficinas de patentes – estará
totalmente vedado para otros investigadores, los que se verán expuestos a
litigios sobre patentes o en el mejor de los casos a obtener patentes
dependientes que reconocerán derechos patrimoniales a quienes obtuvieron
esa “reserva de mercado” al margen y por encima de los principios con los que
tradicionalmente se manejó la propiedad industrial.
Si el sistema de propiedad industrial funcionara correctamente el
equilibrio entre los innovadores y los que asentándose sobre Ia labor de éstos,
producen nuevos resultados estaria asegurado. Pero si se premia al primer
patentado con derechos incorrectamente atribuidos en detrimento de los futuros
investigadores, la investigación cientifica corre el serio peligro de verse
paralizada por falta de incentivo.
Paradójicamente un sistema que nació para el estimulo de la innovación
se ve amenazado como fruto de su incorrecto funcionamiento.
En esta desaforada carrera, se patenta para evitar que otros patenten
(como si alguien tuviera derecho a hacerlo, sin observar los limites legales), o
para realizar reservas de mercado. Suena ridículo que compañias genómicas
soliciten patentes, sobre miles de secuencias pero he aqui expresada la razón.
En el camino de la ciencia, los descubrimientos y los inventos se
consolidaron sobre inventos o descubrimienos anteriores. Hay un continuum en
esta evolución que nos puede ser arbitrariamente cercenado o cortado, sin
causar un considerable perjuicio a investigaciones futuras. Esto es mucho más
evidente en el campo de la investigación biológica.
Hasta no hace mucho tiempo, el limite entre lo que era un instrumento para
la investigación y una invención patentable estaba claramente demarcado. Mientras
Patentamiento de material genético humano 126
que un instrumento para la investigación debía ser incorporado libremente al acervo
científico de la humanidad para servir a futuras investigaciones, una invención
patentable partía de presupuestos indiscutibles: ser útil en forma directa e inmediata
para satisfacer una concreta necesidad humana.
Hoy la inclusión de verdaderos instrumentos de investigación a la
nómina de invenciones patentables nos enfrenta a un tema sumamente
delicado: el científico que quiere utilizar dichos instrumentos o herramientas de
investigación para avanzar más allá de las fronteras de la ciencia o de la
técnica, se ve impedido de hacerlo o constreñido en la necesidad, de reconocer
derechos patrimoniales sobre su utilización, so pena de ver limitados los
derechos que puede otorgarle un auténtica invención en este campo.
Además, – tal como lo destaca Eisemberg – um proyecto de
investigación importante requeitrá el acceso a muchas herramientas de
investigación. Si cada una de esas herramientas requiere una licencia y un pago
de regalías en forma individual, los costos administrativos y de trâmites
aumentarón rápidamente.
El acceso a Ias patentes sobre materias y métodos que constituyen
esencialmente herramientas de investigación ha despertado preocupación. Una
cantidad importante de empresas ha establecido programas de licenciamiento
sobre métodos de ensayos y receptores necesarios para la selección de drogas
que son objeto de investigación. Esta preocupación se centra en la
circunstancia de que la investigación en gran escala requiere una multiplicidad
de tales herramientas de investigación, cuyo costo se verá grandemente
incrementado por la acumulación de regalías exigidas.
Es que existe una práctica extendida en la biología contemporánea que
es la búsqueda de controlar no los descubrimientos, sino los medios de efectuar
esos descubrimientos. Diariamente se persiguen patentes sobre avances
industriales a una gran distancia del mercado. Los titulares de las patentes asi
conseguidas descansan esperando impedir la acción de otros cuya labor más
Patentamiento de material genético humano 127
importante ofrece la posibilidad de enriquecer sustancialmente el dominio
público. El CCNE francés destaca sobre el particular que hoy asistimos a un
aumento de solicitudes de patentes sin que la comunidad científica haya hecho
una clara elección entre esta competencia y el riesgo de ver el acceso al
conocimiento fundamental encerrado en una red de exclusividades pasajeras o
de dependencia de patentes concedidas.
En esta linea crítica, la organización HUGO sostuvo que los continuos
desarrollos de la investigación prometen brindar aún mayor cantidad de
información sobre secuencias, finalizando con la información genética completa,
de organismos superiores; no obstante lo cual otros pasos en el desarrollo
biológicos, tales como el conocimiento de la función biológica, y el uso de los
genes y los productos genéticos, en el diagnóstico y tratamiento de la
enfermedad humana continúa siendo terriblemente desafiantes, incertos y
necesitados de mayor creatividad.
El otorgamiento de patentes de amplio espectro sobre herramientas de
investigación, se suma a reiteradas políticas de ocultamiento de información, lo
que nos sitúa en un momento en que la prevalencia de los intereses del
mercado sobre la investigación científica nos sume en un verdadero
desconcierto. Esta evolución reciente – a juicio de KANH, – revela un peligro
mortal de destrucción de un sistema que había permitido eI progreso de la
sociedad occidental después de dos siglos, aquel fundado sobre la utilización
libre de los conocimientos con el fin de realizar las investigaciones.
En esta misma dirección el referido dictamen del CCNE denuncia que la
competencia actual por patentar estas investigaciones fuera de toda reflexión en
conjunto y en desorden es peligrosa. Para preservar todas las posibilidades
frente a una patentabilidad cuyas reglas no son claras, los investigadores son
invitados por sus financistas a no ser demasiados pródigos en cuanto a
información y esta situación genera malestar entre ellos, quienes advierten que
el campo del descubrimiento, ya sometido aI secreto por las razones habituales
Patentamiento de material genético humano 128
vinculadas a la competencia, se irá limitando más. Con lo que puede llegar a
suceder que la privatización de la actividad del conocimiento sin mayor
regulación amenace con bloquear la innovación.
Bajo el manto de defensa de Derecho de la Propiedad Intelectual, se
está desactivando paralelamente la investigación sobre el Genoma Humano,
retardando la via que conduce a la curación de enfermedades.
El rescatar del espíritu inicial del Proyecto Genoma Humano demandará
un esfuerzo coordinado de las naciones para concluir con un estado de cosas
que en nada ayuda en el desarrollo de las sociedades.
Jugar el futuro de la investigación científica a manos de los intereses
del mercado no importa una política de estado sana, ni inteligente.
Durante los últimos veinte años la investigación sobre materia genética
ha dado origen a una gran cantidad de “propiedad intelectual”, sometida a
protección patentaria. Contar con dicha protección le ha brindado al titular de la
patente la oportunidad de influir significativamente, tanto en el progreso de la
investigación como en el mercado. Y esta influencia por parte del titular de la
patente es lo que resulta realmente preocupante.
CONCLUSIONES
La materia de patentes es compleja en tanto convergen en ella
intereses y fundamentos provenientes de diversos campos, a veces difíciles de
conciliar: económicos, éticos, políticos, sociales, científicos.
EI desbalance de alguno de ellos puede alterar un esforzado equilibrio
perturbando a los demás. Hoy el mundo asiste a un proceso de crecimiento
desmedido en todo el espectro de los denominados derechos de propiedad
intelectual (patentes, derechos de autor, programas de computación, etc.). De
sistema de protección del valor intelectual añadido se transforma en instrumento
de valoración del capital invertido.
Patentamiento de material genético humano 129
Tal crecimiento, no solo se verifica con la incorporación de nuevos objetos
de protección sino con el ensanche de campos ya existentes y con una protección
más intensa y extensa, detrás de la cual se mueven lobbies muy poderosos.
Las empresas no se limitan a patentar las cosas que producen; utilizan
las patentes para colonizar áreas de la tecnología. A esto se lo denomina
“patentamiento estratégico”.
Estas patentes son demasiado amplias y eliminan la competencia en
grandes áreas potenciales o en el caso que su titular ofrezca licencia para el
uso de las tecnologías, se elevan los precios al consumidor.
En el campo legal tal desarrollo no solo se integra con nuevas normas
legislativas, sino también con decisiones administrativas y judiciales que van
cimentando – a veces sobre bases muy discutibles – un nuevo derecho a la
medida de los intereses económicos comprometidos. El incremento exagerado
de los monopolios probados en perjuicio del dominio público parece amenazar
los principios fundamentales de la propiedad intelectual.
En este “nuevo derecho”, no han sido excepción los seres vivos, sus
elementos componentes y sus productos. Visualizadas las biotecnologías como
un importante nicho del mercado surgieron presiones económicas dirigidas a
distorsionar el derecho de propiedad industrial con la finalidad e posibilitar el
acceso a derechos monopólicos sin mayor orden ni cuidado.
En esta dirección se modificaron y sancionaron nuevas normas legales
(asi la nueva Directiva Europea sobre protección de innovaciones tecnológicas),
se elaboraron decisiones administrativas en las oficinas nacionales, que
estrangularon el derecho de patentes, al barrer con la distinción básica entre
invento y descubrimiento y paralelamente al vaciar de contenido a los
tradicionales requisitos objetivos de patentabilidad.
Como pane de esta corriente se permiten amplias reivindicaciones que
no guardan relación con el aporte realmente efectuado a la sociedad por el
supuesto “inventor”, utilizando lenguajes abiertos y abarcativos mediante los
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cuales el titular adquiere derechos de exclusiva sobre aspectos no contemplados
o revelados en la patente.
Todo esto ha Ilevado el tema del patentamiento en biotecnología y
particularmente en materia genética humana a una situación limite que es
necesario revertir.
Frente a quienes con una visión pesimista admiten la imposibilidad de
revertir doctrinas judiciales y administrativas equivocadas, cabe sostener con
fuerza que los precedentes no tienen por qué servir necesariamente de base a
decisiones posteriores. Los precedentes son valiosos y atendibles, para futuras
decisiones posteriores en tanto se asientan sobre bases racionales y no por el
sólo hecho de constituir un precedente.
Este estado de cosas es totalmente negativo para el futuro de la
investigación cientifica en un campo que deviene prioritario para la salud
humana en tanto que la investigación sobre el genoma tiene directa relación,
con el diagnóstico y tratamiento de enfermedades.
Si las políticas en materia de patentes manifestadas en decisiones
administrativas y judiciales tiende a premiar aportes menores obtenidos por
métodos rutinarios, desprovistos de mérito inventivo alguno, en detrimento de la
verdadera creación inventiva, el futuro de la investigación científica se
encuentra seriamente comprometido.
Particularmente en el Proyecto Genoma Humano, Caskey, senãló
“que el nuestro es un emprendimiento internacional que necesita de la cooperación
abierta, de bases de datos y materiales abiertos y libres de trabas.
Es auspicioso para la tecnología y para el objetivo de la iniciativa Genoma
Humano que la inversión privada se haya unido al esfuerzo público. No obstante,
remarca el investigador – este esfuerzo encomiable podría ser contraproducente
si se concedieran amplias patentes fáciles e injustificadas al sector privado por
genes cuya utilidad no estuviera definida con precisión –.”
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Existe en la comunidad científica el temor fundado de que el costo del
cuidado de la salud alcance proporciones desmedidas en relación con los
descubrimientos que se generen sobre el genoma. Si esto ocurriera sólo una
minoria privilegiada de la sociedad se veria beneficiada por los descubrimientos
de la Iniciativa Genoma. Esto es referible a medicamentos, tests diagnósticos,
vacunas, etc.
Un reciente caso nos ilustra sobre este particular. En enero próximo
pasado el Servicio Nacional de Salud del Reino Unido fue demandado por una
empresa biotecnológica que reclamaba el cobro de royalties sobre tests genéticos
usados para identificar una particular predisposición al cáncer de mama.
Dicha empresa habia patentado genes usados en dichos tests. Las
regalías son tan elevadas que su pago va a conducir al dilema del recorte del
uso de este test en particular ó en el supuesto de querer priorizar el estudio de
cáncer de mama, a recortar tests vinculados a otras áreas.
Ya se han lanzado algunas voces que proclaman un cambio radical en
las leyes de propiedad industrial para cuestionar patentes erróneamente
concedidas que amenazan con bloquear áreas de futuras investigaciones.
Las academias nacionales de los Estados Unidos, hacindose eco de las
críticas de numerosos académicos y sectores de la industria, han expresado su
preocupación de que haya ocurrido una disminución en los standars
especialmente de no obviedad y utilidad en el examen y concesión de patentes
con el resultado de que están otorgando muchas patentes de baja calidad y
amplia cobertura.
En un trabajo anterior señalamos que el tema de la concesión de
patentes sobre el material genético humano comprometía a áreas muy
sensibles, cuya articulación se vuelve cada dia más compleja y que constituia
un tema fundamentalmente político decidir a la luz de la evolución de la
sociedad, tal como lo recordara el Consejo de Europa, las medidas que deben
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tomarse para conciliarse las normas morales de general aceptación, la
investigación científica y la exploración comercial.
Hasta que ello no ocurra – señalábamos – seguirá imperando un gran
desorden que será crecientemente aprovechado para extender el patentamiento
de material genético humano a limites nunca imaginados.
EI tiempo pasó y la falta de adopción de medidas adecuadas en esa
dirección sólo contribuyó a aumentar el clima de incertidumbre.