bernardo de claraval e o abade suger de saint … · ícone e seu culto foram difundidos nos...
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BERNARDO DE CLARAVAL E O ABADE SUGER DE SAINT-DENIS:
SENSIBILIDADE ESTÉTICA E ARTE RELIGIOSA NOS SÉCULOS XII
E XIII
SANTOS, Selene Candian dos – FFLCH / USP
Introdução
Algumas práticas culturais e funções simbólicas tiveram fundamental importância na
cristandade medieval: a escrita, representada em especial pelas Sagradas Escrituras; a palavra,
associada à pregação e aos cantos litúrgicos; e a imagem. A imagem é fundamento da
antropologia teológica – as criaturas são reflexos do Criador e o homem é apresentado como
imagem e semelhança de Deus. A sociedade medieval ocidental inclusive entende o mundo (a
natureza, a vida moral, a história etc.) como uma imagem refletida por um speculum1.
As imagens podem nos informar muito sobre o ambiente histórico que as produziu. Na
descrição de Burckhardt, elas são como “testemunhas de etapas passadas do desenvolvimento
do espírito humano”, objetos “através dos quais é possível ler as estruturas de pensamento e
representação de uma determinada época”2. Jérôme Baschet afirma, por sua vez, que no
Ocidente medieval, as imagens adquirem uma importância que cresce incessantemente. Essa
importância vem como resultado de um processo histórico tenso, ao termo do qual as práticas
das imagens tornam-se um dos traços distintivos da cristandade medieval. “Não pode haver,
então, compreensão global do Ocidente medieval sem uma análise de suas experiências da
imagem e do campo visual”3.
O objetivo desta pesquisa é discutir a questão da produção das imagens no Ocidente
medieval procurando relacioná-la às concepções e propostas estéticas de dois dos mais
ilustres representantes do monaquismo na Idade Média: Bernardo de Claraval e o abade Suger
de Saint-Denis. As obras desses dois monges foram analisadas na medida em que se
1 MÂLE, Émile, Religious art in France in the thirteenth century, 1. ed. Nova York: Dover, 2000, 415 p., p. 25-26. 2 BURKE, Peter, Testemunha ocular: história e imagem, 1. ed. Bauru, SP: EDUSC, 2004. 264 p., p. 13. 3 BASCHET, Jérôme, A civilização feudal: do ano mil à colonização da América, 1. ed. São Paulo: Globo, 2006. 578 p., p. 481.
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relacionam com a produção artística dos séculos XII e XIII. Não se pretende, porém,
hierarquizar essas duas funções simbólicas – imagem e escrita – ou mesmo tratar uma função
como determinante da outra: objetiva-se compreender se e de que forma elas se articulam.
Referencial Teórico
Houve na sociedade medieval uma vasta reflexão teológica sobre a confecção e os
usos das imagens, já que as Sagradas Escrituras induziam a uma resistência às imagens em
diversas passagens do Antigo Testamento, como em Êxodos 20, 4: “Não farás para ti imagem
de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra,
nem nas águas debaixo da terra”; e em Êxodos 23, 24: “Não te inclinarás diante dos seus
deuses, nem os servirás, nem farás conforme as suas obras; antes os destruirás totalmente, e
quebrarás de todo as suas estátuas.”
Apesar da associação das imagens à adoração de deuses pagãos, aquilo que chamamos
de arte cristã se desenvolveu logo nos primeiros séculos da Era Comum, primeiramente com a
apropriação de símbolos pagãos e, a partir do século IV, com uma simbologia própria. O
ícone e seu culto foram difundidos nos séculos VI e VII e é nesse contexto que surgiu a crise
iconoclasta4. Leão XIII de Bizâncio publicou, em 725, com o apoio de alguns bispos, os
primeiros decretos iconoclastas e disto resultou uma crise que durou até meados do século IX.
A iconoclastia via-se como purificação da Igreja. Sua raiz é um sentimento de transcendência
divina: “O sentimento iconoclasta considera o divino como sendo elevado demais e como
estando longe demais para que a representação possa traduzir, ainda que minimamente, uma
presença ou mesmo uma semelhança”5.
Desde então, diversos argumentos teológicos surgiram – ou foram resgatados - em
defesa ou contra a adoração de ídolos, tanto no Ocidente como no Oriente. No Ocidente, o
papado condenava o iconoclasmo, apoiando-se principalmente na autoridade do argumento de
Gregório Magno. Afirmando a legitimidade da manutenção das imagens em igrejas, desde
que elas não fossem adoradas, Gregório Magno definiu quais seriam as funções das imagens
sacras: instrução, especialmente para os iletrados, memória e compunção.
O que se observa é que nos séculos XII e XIII houve um incontestável florescimento
artístico na Europa ocidental - a história da arte, inclusive, identifica esses dois séculos como
a origem dos estilos românico e gótico, respectivamente. Na época, no entanto, o estatuto da
4 BESANÇON, Alain, A imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia, 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 615p., p. 179-187. 5 Ibidem, p. 206.
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imagem sacra ainda estava sendo debatido, sendo que a reflexão teórica sobre a questão no
Ocidente visava, de forma geral, legitimar a confecção e os usos das imagens. A contestação
herética das imagens religiosas e o debate teológico entre judeus e cristãos contribuíram para
um posicionamento cada vez mais favorável da Igreja às imagens religiosas. Além disso, as
imagens passaram a ser identificadas como instrumentos de mediação com o laicato: assim
como a confissão e a pregação, as imagens aproximavam a Igreja aos leigos e facilitavam o
exercício de poder sobre a congregação. Assim, é nesse período que, além da difusão e
diversificação da arte sacra, surgem novas práticas e usos para as imagens – como a devoção
privada – e que as atitudes perante as imagens começam a se fixar. E dentre os autores que se
envolveram com a questão da imagem nesse período destacam-se São Bernardo e Suger.
Bernardo de Claraval foi o mais influente monge cisterciense e certamente um dos
mais importantes teólogos e escritores místicos da Idade Média. Em 1113 ingressou na Ordem
de Cister, cujo objetivo era restaurar a regra beneditina em sua simplicidade. Cister havia sido
fundada em 1098 dentro de um contexto de questionamento da vida monástica e do próprio
status dos monges. Apesar de no século XII o monaquismo ser identificado como a expressão
de ideal de perfeição cristã devido à renúncia ao mundo e à personalização da vida religiosa, a
ligação entre monaquismo e sociedade secular existente desde o século VII passou a ser
condenada. Os reformadores alegavam que as instituições religiosas já não eram perfeitas
como a igreja primitiva e acreditavam que a aliança entre clero regular e sociedade secular
deveria ser reduzida, se não abolida, para que os monges pudessem melhor seguir os
evangelhos e o exemplo de Cristo e para que pudesse haver maior ênfase em atitudes
interiores. Assim, o monaquismo ainda era visto como um ideal de salvação, porém havia
uma nova demanda espiritual de purificação dessa instituição. Foi esse intuito reformador da
vida espiritual que informou a fundação da Ordem Cisterciense. Embora reformadores, os
cistercienses não pretendiam um novo conjunto de regras para a vida cenobita: seu desejo era
retomar a tradição, ou seja, observar estritamente a regra de São Bento, a qual havia sido,
conforme alegavam, deformada pelos costumes.
Em 1115 São Bernardo estabeleceu uma casa-filha em Claraval e tornou-se seu
primeiro abade. A abadia de Claraval era um modelo entre os mosteiros cistercienses e
gradualmente a influência do abade passou a se estender para além da abadia: Bernardo de
Claraval repreendeu membros do clero secular e até mesmo da realeza, contestou as reflexões
teóricas de Pedro Abelardo e criticou o que considerou os excessos estéticos de Suger.
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Reconhecido por sua atuação diplomática e tendo sido conselheiro de Luis VI e Luis
VII de França, Suger é descrito por Panofsky como o pai da monarquia francesa: seus
objetivos eram fortalecer os poderes da Coroa de França e engrandecer a Abadia de Sant-
Denis6. A abadia havia sido fundada no século VII pelo rei franco Dagoberto I e no século XII
suas instalações se encontravam em más condições. Suger tornou-se abade em 1122 e
empreendeu um programa de reforma da abadia, o qual era muito diferente daquilo que
Bernardo de Claraval concebia como ideais estéticos. São Bernardo concebia o monaquismo
como uma vida de renúncia ao conforto pessoal, ao passo que Suger era contrário ao
asceticismo. Bernardo de Claraval condenava a decoração nas igrejas com pinturas figurativas
e esculturas. Suger, por outro lado, acreditava que essas imagens eram símbolos daquilo que é
imperceptível e que, a partir de um método anagógico, o homem poderia elevar-se através da
contemplação desses símbolos. A experiência religiosa, para Suger, passava por uma reação
estética a uma rica ornamentação e às figuras decorativas. Essas duas concepções estéticas tão
distintas deram origem a uma querela entre esses dois monges no que concerne o estatuto da
imagem sacra e seu lugar na sociedade medieval.
Embora o conceito de estética medieval seja questionado, pois não se observou na
época a constituição de uma teoria da arte, o que se pretende é analisar os textos de Bernardo
de Claraval e de Suger que abordam a questão das imagens como documentos que podem nos
auxiliar na compreensão de uma sensibilidade estética medieval, e a forma como ela se
articula com a produção artística da época.
Objetivos
Levantam-se, assim, algumas hipóteses de trabalho, orientadas pelo objetivo central do
projeto, que foram assim agrupadas:
- Arte e sensibilidade estética medieval
Se é possível falar em uma arte medieval, é porque esse estilo se contrapõe em um ou
mais aspectos fundamentais a outros estilos artísticos. Cabe-nos indagar, então, em que
sentido a arte medieval difere da produção artística em outros períodos. A especulação
estética medieval é inovadora? O que é considerado belo e qual é o papel desse conceito? É
importante também que compreendamos o que se entende por arte na Idade Média: quais são
seus objetivos; como o ofício do artífice é visto etc.
6 PANOFSKY, Erwin, O Abade Suger de S. Denis, IN Significado nas artes visuais, 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. 439 p., p. 150.
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- Representação artística na Baixa Idade Média
Outras hipóteses também a serem pesquisadas são aquelas em torno da questão da
representatividade artística. Como os artistas medievais representam seus objetos? Havia uma
norma para a produção iconográfica? A arte medieval conhecia as leis das proporções e da
perspectiva? Em que medida fazia uso delas e com qual objetivo?
Também é de extrema relevância para o projeto indagar a respeito do simbolismo
medieval. Qual é sua origem? Para quem era dirigida essa arte simbólica? Toda arte medieval
é simbólica? Quais eram os símbolos mais recorrentes e o que se acredita que significavam?
- Bernardo de Claraval e Suger
Analisando a documentação, é imperativo que se questione sobre a querela entre os
dois monges. Como teve início? Os textos eram dirigidos ou apenas dialogavam? Quais os
argumentos utilizados por São Bernardo e por Suger? Em quais autoridades eram
fundamentados tais argumentos? De que forma a querela se relaciona com a nova demanda
espiritual da época? Como se deu seu fim?
- Articulação do debate teórico com a produção artística
Por fim, para que se possa alcançar o objetivo central da pesquisa proposta, se faz
mister que compreendamos qual foi a articulação entre o debate teórico e a produção artística
na Europa ocidental dos séculos XII e XIII. Como se desenvolveram as especulações
artísticas durante e após o debate? Houve aproximação das propostas defendidas por Bernardo
de Claraval ou pelas de Suger? De que maneira os estilos românico e gótico refletem esse
debate? Como os novos desenvolvimentos artísticos após o debate se relacionam com a nova
demanda espiritual e, de forma mais geral, com a crescente importância da Igreja Católica nos
séculos XII e XIII?
Metodologia
As hipóteses de trabalho foram desenvolvidas à luz de uma bibliografia de apoio e
com base nas obras de Bernardo de Claraval e de Suger que abordam a questão da imagem. A
obra de Claraval foi publicada em Obras completas de San Bernardo7. Já os textos de Suger
7 CLARAVAL, Bernardo de, Obras completas de San Bernardo: edición bilingüe / edición preparada por los monjes cistercienses de España; promovida por la Conferencia Regional Espanõla de Abades Cistercienses, 2. ed. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1983-1993. 8 v; 20 cm.
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foram traduzidos para o inglês e comentados por Erwin Panofsky em Abbot Suger on the
Abbey Church of Saint-Denis8.
No que diz respeito à bibliografia fundamental, algumas das obras foram selecionadas
por tratar mais amplamente da formação e do desenvolvimento da sociedade cristã na Idade
Média, como A civilização feudal – Do ano mil à colonização da América, de Jerôme
Baschet, e A civilização do ocidente medieval, de Jacques Le Goff.
A relação entre arte e sociedade medieval a partir das obras O tempo das catedrais: a
arte e a sociedade 980 – 1420 e História artística da Europa, ambas de Georges Duby; A arte
medieval, de Elie Faure; Seeing medieval art, de Herbert L. Kessler; e Arte religioso: del
siglo XII al siglo XIII e Religious art in France of the thirteenth century, ambos de Émile
Male. Mais especificamente sobre a forma da arte medieval, tem destaque o artigo A história
da teoria das proporções humanas como reflexo da história dos estilos, escrito por Erwin
Panofsky e publicado em Significado nas artes visuais. Ainda no intuito de compreender a
arte medieval, e em particular os estilos artísticos denominados românico e gótico, foi de
fundamental importância a obra The story of art, de E. H. Gombrich.
A discussão sobre estética medieval tem como base as obras: La estética de la Edad
Media, de Edgar de Bruyne ; Arte e beleza na estética medieval, de Umberto Eco; e,
finalmente, Idea: a evolução do conceito de belo, de Erwin Panofsky. O caráter da arte
cisterciense foi analisado a partir da obra de Georges Duby, São Bernardo e a arte
cisterciense, e da de Jean-François Leroux-Dhuys, Cistercian abbeys history and
architecture.
No tocante à discussão sobre o estatuto da imagem na Idade Média, O corpo das
imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média, de Jean-Claude Schmitt é de suma
importância, além da obra A imagem proibida, de Alain Besançon.
As relações entre arte e filosofia também estão dentro do escopo do projeto proposto,
daí a importância do Arquitetura gótica e escolástica: sobre a analogia entre arte, filosofia e
teologia na Idade Média, de Erwin Panofsky e do A filosofia na Idade Média de Etienne
Gilson.
8 PANOFSKY, Erwin, Abbot Suger on the Abbey Church of Saint-Denis, 2. ed. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1946. 285 p.
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Por fim, arrolamos duas obras específicas sobre os dois monges em questão no
projeto: O Abade Suger de S. Denis, escrito e publicado por Erwin Panofsky em Significado
nas artes visuais e Um monge que se impôs a seu tempo: pequena introdução com antologia à
vida e obra de São Bernardo de Claraval, de Luis Alberto Santos Ruas.
Desenvolvimento
É importante salientar que, durante a realização da pesquisa, foi constatada uma
grande ressalva entre os autores de obras publicadas mais recentemente, como Jérôme
Baschet e Jean-Claude Schmitt, com relação ao uso do termo “arte” para fazer referência ao
objeto de estudo desse projeto. Isso porque não é possível pensar nessas imagens em termos
puramente estéticos, como a arte é pensada atualmente: é preciso estudá-las tendo em mente
que sua função e o local para o qual foram confeccionadas não podem ser separados de
qualquer apreciação estética.
Conclusões
É possível observar a partir da querela entre os dois monges que o estatuto da imagem
ainda estava sendo debatido e sujeito a elaborações teológicas no século XII. Apesar da
emergência de uma nova espiritualidade no século XI, a qual buscava a pureza do ideal da
Igreja primitiva e a qual a Ordem de Cister e Bernardo de Claraval representavam, a reflexão
teórica no Ocidente visava, de forma geral, assim como Suger, legitimar a confecção e os usos
das imagens. Ao fim desse período, fixam-se as atitudes perante as imagens religiosas para a
cristandade medieval, pois apesar de haver outro ciclo iconoclasta no XVI, este tem cunho
absolutamente diverso.