balaio de circo e música: artigos do projeto

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O Projeto Balaio de Circo e Música foi criado e desenvolvido pelo Grupo doBalaio e patrocinado pelo Programa VAI, da Prefeitura Municipal de São Paulo no durante o ano de 2014. Foram realizadas entrevistas à artistas circenses e rodas de conversa em bairros da periferia de São Paulo para registro de memórias musicais do circo. Esta publicação reune artigos escritos por artistas-pesquisadores do circo, que discorrem sobre circo, música e território periférico. Foram colaboradores o artista fundador do grupo Pombas Urbanas, Adriano Mauriz, a artista e educadora Lisa Gianetti e os pesquisadores Celso Amâncio e Ermínia Silva. O texto de abertura é de Leandro Hoehne, artista fundador do Grupo doBalaio. Os arquivos de audio, captados em estúdio móvel no veículo Kombi do grupo, foram organizados e são publicados pela plataforma Soundcloud no link https://soundcloud.com/grupo-dobalaio Todos os demais arquivos do projeto são reunidos do site www.balaiodecircoemusica.tumblr.com.br

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Pampamramrampam... Não Existe Música de Circo por Leandro Hoehne 1

“O quê que a gente faz? A gente trabalha com o que a

sociedade nos dá. Muda a cultura, a gente muda junto.”

Chang Baeta

(família Baeta – outrora Circo Teatro Irmãos Baeta, hoje Circo Fênix)

Para acabar, ou quase, com os esteriótipos, pensamentos fáceis, gostos de paladar único, paletas

monocromáticas, deduções simplórias, rasos mergulhos no universo circense... no circo cabe tudo de tudo e

não é, senão, a música uma parcela de expressão artística da totalidade complexa das estéticas circenses.

Não, não penso que seja essa uma grande dedução, ou a afirmação de uma nova tese, um insight inédito ou a

prova dos nove. A pesquisadora da Unicamp Ermínia Silva, em seu livro Benjamim de Oliveira e a teatralidade

circense no Brasil, atira no alvo. Vai desmontando uma ideia hermética e tradicionalista comumente evocada ao

circo, analisando documentos históricos e cruzando pesquisas que tratam da estética circense brasileira como

múltipla e, por assim dizer, miscigenada pela presença do teatro e, sobretudo da música, nos espetáculos. Foi

em contato com este livro, resultado da tese de doutorado de Ermínia, que o Balaio passa a se interessar com

mais profundidade pela temática circense-musical, uma vez que, de forma intuitiva, já vínhamos caminhando

para experimentações onde a música acabava por ser um elemento central de nossa cena circense.

Descontruindo, do nosso jeito, a forma de produção do espetáculo circense baseada no “número de circo”, nos

aventurávamos em construções de cenas cômicas e musicalmente inusitadas, criando instrumentos musicais e

resgatando músicas que o senso comum não identificaria como sendo “música de circo”, garimpadas e que nos

seriam desconhecidas se não fossem pesquisas como a de Ermínia.

                                                            1. Leandro Hoehne é integrante e fundador do Grupo doBalaio. Morador de Ermelino Matarazzo, pesquisa, milita e produz a partir do olhar para os territórios periféricos. É acrobata, músico, arte-educador e gestor de projetos. ��

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Ao mesmo tempo incomodava o grupo, e a mim particularmente, o fato de que não houvesse registros musicais

que trouxessem a tona uma memória musical viva, contada e cantada por quem a apresentou nos palcos e

picadeiros ou ouviu das plateias e arquibancadas - artistas circenses e públicos de circo dos bairros, no caso

periferia de São Paulo. Uma história recente, se comparada aos lundus cantados por Benjamin de Oliveira e

Dudu das Neves, mas que carrega em si certa atemporalidade, como elementos transgeracionais que

atravessam diferentes gerações de artistas e de público. Algumas músicas parecem estar em uma espécie de

inconsciente coletivo. Percebemos que elas são cantadas por pessoas de várias idades em nossos espetáculos.

Dois exemplos muito diferentes, de épocas distintas, surtem o mesmo resultado no público. A cantiga popular “O

Meu Boi Morreu”, gravado por Dudu das Neves e Bahiano pelas Casas Edson no começo do século XX, era

cantada nos circos tanto por Dudu quanto por Benjamin de Oliveira. Atravessou gerações e, em 2013, ouvíamos

ser repetida por crianças em diferentes apresentações em bairros da periferia de São Paulo quando cantada

por nós no espetáculo “Aqui (não) Pode Tocar!”. Muito provavelmente já era uma cantiga com versões

anteriores ao de Dudu das Neves, sendo também cantada por outros “lunduzeiros” nos interiores de São Paulo

e Rio de Janeiro e brincantes da festa do boi no nordeste e outras regiões do Brasil. Cerca de um século depois,

crianças de uma escola pública do bairro de União de Vila Nova, cantavam conosco o refrão em coro, alto e bom

tom. Em outra ocasião, em um bairro da zona-sul de São Paulo na região do Capão Redondo e também em outro

do extremo da zona-leste, na região do Aricanduva, nos surpreendemos com jovens e adultos que conheciam o

refrão e nos relataram ser essa uma música de sua infância.

"O meu boi morreu

O que será de mim?

Manda buscar outro, ó maninha

Lá no Piauí"

Outro exemplo musical é o sucesso Diana. Tocar Diana é um caso de comoção coletiva e irrestrita. A música

ficou conhecida na década de 1960 na voz de Carlos Gonzaga, que fez sucesso regravando em português

músicas do cantor e compositor canadense Paul Anka. A canção chegou até nós como uma referência de circo

em uma história contada por moradores de Ermelino Matarazzo, na primeira roda de conversa sobre circo e

música do projeto. Márcia Polato nos contou que Carlos Gonzaga já era um sucesso no rádio quando um circo

de passagem pelo bairro anunciou o seu show. Foi o circo que proporcionou naquela ocasião que moradores de

um bairro muito distante do centro de São Paulo, sobretudo naquela época, pudessem apreciar o show musical

de um cantor de sucesso. O fato marcou os antigos do bairro. Quando colocamos Diana em nosso repertório

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para o espetáculo Balaio de Circo e Música percebemos que ocorria o mesmo fenômeno que O Meu Boi Morreu,

a musica atravessa os anos e é conhecida por diferentes gerações.

Mesmo sendo completamente diferentes em seus estilos, épocas e origens, as músicas “O Meu Boi Morreu” e

“Diana” surtem efeitos parecidos na memória cultural do público que assistiu aos espetáculos do Grupo

doBalaio. Se foi a televisão, o rádio ou a indústria fonográfica o principal difusor dessas canções ao longo dos

anos não sei afirmar, fato é que passaram pelo circo e seus artistas/ espetáculos/ shows como tantos outros

expressivos traços da nossa cultura e produção artística.

O processo de pesquisa do grupo foi intuitivo. Não tínhamos a pretensão de realizar uma pesquisa científica a

cerca da musicalidade circense, mas apenas de registrar e refletir sobre musicalidades que habitam o nosso

redor, a partir de relatos de artistas circenses, músicos e pesquisadores que são parceiros do grupo, bem

como de moradores das periferias de São Paulo, sobretudo bairros cuja trajetória do grupo e a presença de

circos na história estivessem de alguma forma entrelaçados.

Assim começamos de perto para longe. A princípio listamos aqueles artistas e pesquisadores que poderiam

contribuir. Muitos. Depois os bairros que faziam sentido realizar rodas de conversa. Também muitos. Não

daríamos conta em oito meses de projeto. Precisaríamos selecionar e o critério foi o de ligar os pontos, o de

“uma coisa puxa a outra”.

O artista Harley Timóteo foi fundamental nesse processo. Ele teceu a rede de entrevistas dentre os artistas de

família tradicional – Baeta, Wolf e Paracampos. O Balaio complementou o quadro de visitas com a família

Malhone e demais artistas da Trupe Circo Teatro Guaraciaba que, embora estejam sediados fora de São Paulo,

na região de Sorocaba, foram de extrema importância para a pesquisa por guardarem na memória

preciosidades da musicalidade circense.

Os bairros foram pensados como territórios em transformação. Por onde passavam os circos quando a

periferia de São Paulo não estava imersa em um processo de especulação imobiliária que torna, hoje, quase

impossível a sua presença? Quais as características dos circos nos diferentes bairros? E, mais importante de

tudo, qual a memória do público, que circo está presente hoje, de que forma? Foram quatro rodas de conversa,

sendo duas na zona-leste (Ermelino Matarazzo e Cidade Tiradentes), uma na zona-norte (Jaçanã) e uma no

centro (Largo do Paissandú).

Considerando o importante trabalho do Pindorama Circus com A Música no Circo Nerino e também do Grupo

Parlapatões com O Circo no Brasil, que reviveram músicas que datam determinados períodos do circo

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brasileiro, o Grupo doBalaio desejava ir ao encontro de músicas que transitassem por essas identidades mas

que também trouxessem um novo olhar para entender como se dava e, por sua vez, como se dá o pensamento

musical na estética circense. Para tanto, o conjunto de memórias registradas entre artistas, público e

pesquisadores foi fundamental para que tivéssemos ao final um prisma de muitas faces da musicalidade

circense, que vai dos lundus, chulas e dobradas orquestradas, às entradas de palhaço, desafios caipiras,

baladas de sucesso do rádio, música contemporânea autoral, rock experimental internacional, música cigana e

etc.

A princípio nos causou estranheza pois, no fundo, talvez esperássemos encontrar mais do mesmo, referências

de dobradas, rufares de caixas, arranjos instrumentais para sopros. Mas, ao contrário, nos deparamos no meio

do caminho com guitarras e contrabaixos, acordeon, zambumba e triângulo, rumba catalã, música experimental,

rock underground... nos demos conta que, sim, este processo intuitivo de pesquisa artística talvez tenha nos

levado a um caminho inusitado da historicidade circense (como no início de nossas aventuras pelos capítulos de

Benjamin de Oliveira e A Teatralidade Circense no Brasil), de que não há como definir a música de circo se não

como uma musicalidade múltipla própria da arte circense. Portanto o que há de próprio no circo é essa

capacidade de apropriação e tradução de seu tempo. A musica como uma expressão de seu tempo passa a

habitar o circo e, ali, talvez nem seja mais música, pura e simplesmente, é também todo do todo inseparável

circo.

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Música, circo e memória

Os eternos e novos palhaços excêntricos musicais.

por Celso Amâncio de Melo Filho

Erminia Silva 1

As artes circenses sempre tiveram em características polifônicas e polissêmicas seu modo de se produzirem,

ou seja, historicamente sempre se constituíram a partir da pluralidade de sons, vozes, significados e sentidos.

Os artistas que criaram o que se denomina de espetáculo circense, no final do século XVIII, eram detentores

das multiplicidades de saberes que compunham os campos artísticos chamados: teatro, música, dança,

acrobacias; acrescidos de tudo o que acompanhava essa formação: coreografia, figurino, dramaturgia,

arquitetura e outros conhecimentos que fossem necessários lançar mão para transformar o circo como

espetáculo.

Essa diversidade resultou e resulta em inimagináveis modos de produção circense nos últimos mais de

duzentos anos, nos quais estiveram presentes as misturas artísticas de todas as culturas pelas quais os

homens e mulheres circenses passaram. A heterogeneidade acompanhou e acompanha as artes do circo. Os

corpos circenses sempre foram movidos por uma teatralidade que aliava (e alia) destreza corporal,

musicalidade, dança e representação teatral (drama ou comédia). Por isso usamos dos conceitos de polifonia e

polissemia para analisarmos os fazeres dos artistas de circo como em total sintonia e contemporaneidade com

as diversas expressões culturais de cada época e lugar.

Durante o século XIX até parte do XX, as fronteiras entre as linguagens artísticas não eram tão rígidas ou

fechadas, mas maleáveis e com um trânsito constante entre si. Para dentro do circo, elas estavam presentes,

não porque foram “incorporadas” ao processo de formação artística circense; mas sim porque estes artistas

                                                            1. Erminia Silva – Doutora em História Social pela Unicamp, autora dos livros Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil; e junto com Luís Alberto e Abreu Respeitável público...o circo em cena (ambos disponíveis no site da Funarte). Co-cordenadora do site www.circonteudo.com.br. Celso Amâncio de Melo Filho – Mestre em Artes Cênicas para UNESP, onde realizou pesquisa sobre a música como recurso cênico de palhaços, sob orientação de Mario Bolognesi. É músico e ator, atualmente é integrante da Companhia Ilustrada. Desenvolve trabalho como educador na EMIA – Escola Municipal de Iniciação Artística, em São Paulo. Erminia Silva e Celso Amâncio são autores do livro Palhaços Excêntricos Musicais, produzido pelo Grupo Off-Sina do Rio de Janeiro e que será publicado em formato e-book.�

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eram: acrobatas/atores/músicos/dançarinos/dramaturgos... Eles eram porque era assim que se definia o que

significava ser artista circense.

Como escreveu Luís Alberto de Abreu, na Apresentação do e-book Palhaços Excêntricos Musicais, dos autores

deste artigo: “O circo é um bem imaterial, é um processo de formação artística, um conjunto de técnicas

rigorosas que trazem consigo uma visão artística de mundo” (2014, p.7). Para nós, como também coloca este

autor, trata-se de uma proposta de ser artista com uma “predisposição para a criação de novas formas e

invenção de novos artefatos que possam alçar a arte a níveis sempre mais altos”.

A formação do espetáculo circense, situando historicamente, partiu de apresentações equestres, adesões de

trupes de feira, atores de commedia dell’arte, malabaristas, acrobatas, instrumentistas, equilibristas e outros

talentos populares. Já em seu nascedouro o circo se estrutura como um acontecimento artístico variado e,

como tal, sujeito à influência de múltiplas linguagens, uma mistura de drama moral, habilidades físicas, música,

comédia e festa, bem ao gosto da cultura popular. Aliás, como aponta Mikhail Bakhtin, a cultura popular é por

definição impura no que diz respeito a temas e linguagens, optando pela mescla e fusão de gêneros opostos e

extraindo daí a sua vitalidade.

Desta forma, não se pode analisar nenhum campo ou área da produção artística em seu processo histórico –

teatro, música, dança, circo – em separado. Eles sempre estiveram juntos: se cruzaram, se alimentaram, e os

artistas não eram “especialistas”, mas portadores de polifonias e polissemias artísticas.

Nesse sentido, não cabe pensar em uma forma de analisar a produção das artes do circo, em seu processo

histórico, como se o espetáculo fosse apenas um território de somente incorporação da música, do teatro, da

dança, como se isto não fosse parte constituinte do que significava de ser um artista circense. Nossa proposta

é a possibilidade de oferecer novos olhares sobre as produções artísticas da linguagem das artes do circo.

Um tema que Abreu escreveu trata também de outro assunto igualmente caro à nossa contemporaneidade:

a fusão ou trânsito de múltiplas linguagens num espetáculo. Já se teorizou bastante e muito ainda há que se teorizar sobre a característica da arte contemporânea de extrapolar os limites das linguagens. O modelo que determinava o alcance e os limites de cada uma delas remonta ao Renascimento. Estabeleceu-se como norma e pensamento artístico a partir do século XVIII, foi questionado pelas vanguardas do início do século xx, e teve sua solidez esboroada nas décadas seguintes. Fusões e misturas de música, vídeo, teatro, dança e literatura, deram origem à criação de novas linguagens – ou, pelo menos, redefiniram e deram novos nomes a essas associações. No entanto, se essas ideias de fusão ou mistura de linguagens conseguem inserção e se solidificam no pensamento artístico dominante no final do século XX, elas já estavam presentes, na prática e no cotidiano do fazer artístico do circo, ainda na primeira metade do século. (ABREU, In: SILVA, 2007, p. 15)

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O que analisamos é que não se pode estudar a história do teatro, da música, da indústria do disco, do cinema e

das festas populares no Brasil sem considerar que o circo foi um dos importantes veículos de produção,

divulgação e difusão dos empreendimentos culturais. Os circenses atuavam num campo ousado de originalidade

e experimentação. Divulgavam e mesclavam os vários ritmos musicais e os textos teatrais, estabelecendo um

trânsito cultural contínuo das capitais para o interior e vice versa. (SILVA, 2007, p. 20)

As produções artísticas em geral, e circense em particular, até pelo menos a metade do século XX, eram, na

sua maioria, musicais. Ao tratarmos particularmente da relação circo/música, se observarmos as pesquisas

(AVANZI e TAMAOKI, 2004; CASTRO, 2005; BOLOGNESI, 2003; SILVA, 2007 e 2009; MELO FILHO, 2013) sobre a

construção do artista circense e o circo como espetáculo, o que se observa é que a linguagem musical, seja

cantada, dançada e tocada, não se restringia ao papel de acompanhante dos números, ao contrário: a música

era um elemento na dramaturgia da teatralidade circense.

Dentro desse contexto plural do circo, os palhaços trabalham com toda a polifonia artística intrínseca aos

picadeiros e sempre foram personagens centrais nas criações musicais circenses, adequando a arte musical

às suas expressões cênicas e cômicas. Em fontes de períodos e localidades diversas, como propagandas de

jornais ou relatos de memorialistas a música aparece como ferramenta e chamariz para o trabalho de

palhaços. Entre historiadores circenses europeus, como Tristan Rémy (2002) e Pierre Levy (1991), os palhaços

músicos são um tipo de artista muito citado, sendo que a ferramenta musical também faz parte dos palhaços

que não se definem como musicais. Segundo esses autores citados e também de acordo com alguns artistas

brasileiros que trabalharam em circos por décadas, como Roger Avanzi e Teófanes Silveira, é comum que os

palhaços de tradição europeia executem ao menos um instrumento musical e tenham seus próprios números

musicais. No Brasil, os palhaços também herdaram essas características, fazendo ainda o papel de

divulgadores de gêneros musicais que estivessem em voga nos principais centros urbanos, como o Rio de

Janeiro, para regiões mais remotas do país. Prova da popularidade dos palhaços brasileiros e sua forte relação

com a música está no fato de que eles foram os primeiros a realizar gravações pela gravadora Casa Edison, no

Rio de Janeiro, a primeira empresa do gênero no país. Dentre esses artistas destacam-se Benjamim de Oliveira

e Eduardo das Neves, ambos foram amplamente conhecidos e populares no Rio de Janeiro durante a primeira

metade do século XX.

Mas, além da música compreendida como convencional, os palhaços também desenvolveram uma música

peculiar, que alguns circenses hoje chamam de inusitada, especialmente por causa das maneiras inesperadas

de produção do som. Essa música não tem somente a função de ser uma apresentação musical, mas também

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um número cômico no qual a música encontra-se combinada com os elementos visuais e com a interpretação

cômica. É uma música criada em função do riso e das características próprias dos palhaços. Esse tipo de

palhaço foi chamado, no século XIX, de clown musical, ou excêntrico musical, tornando-se um tipo de artista

muito popular em circos e teatros de variedade. O palhaço excêntrico musical, independente de suas origens

tão múltiplas como a própria máscara do palhaço, tem na música a centralidade de seus números e

encenações. Pianos que explodem, melodias que inesperadamente são emitidas por objetos corriqueiros como

pratos, penicos e taças, ou ainda por fontes sonoras esdrúxulas, como bombas de bicicletas e serrotes, dentre

outros recursos, são um pouco do universo musical inusitado dos palhaços excêntricos musicais, que aliam tal

experiência diante do inusitado com a execução de proezas variadas, como tocar vários instrumentos ao

mesmo tempo ou conjugar a música com acrobacia e malabarismo.

Com as modificações pelas quais as artes circenses passaram nas últimas décadas, os excêntricos musicais,

bem como o trabalho musical de palhaços que não necessariamente se definem assim, passaram a ser cada vez

mais raros nos circos brasileiros. No entanto, as escolas de circo e as pesquisas cada vez mais numerosas

acerca das artes circenses têm aumentado o interesse pelo trabalho desses artistas e a recuperação de

memórias relacionadas a essas práticas. Nas pesquisas que têm sido realizadas pelos autores deste artigo foi

possível compreender e analisar alguns casos de artistas do século XX e da atualidade que trabalharam ou

trabalham a poética dos excêntricos, herdando e compartilhando procedimentos que se tornaram clássicos,

mas também criando seus próprios instrumentos e números musicais cômicos. Dentre esses procedimentos e

esquetes que se tornaram clássicos, podemos citar especialmente os instrumentos musicais inusitados, como o

“piano de garrafas” instrumento criado com garrafas preenchidas de diferentes quantidades de água no

interior e percutidas com baquetas; a utilização de sinos e buzinas afinados em notas musicais; o uso de bomba

de bicicletas e serrotes para execução de melodias. No Brasil, a execução de técnicas e construção de

aparelhos para tais procedimentos são transmitidas principalmente de maneira oral e através de observação.

Assim foi verificado no caso de artistas como Doracy Campos, palhaço Treme-Treme, por meio da pesquisas em

entrevistas diversas e notícias de jornal foi possível constatar que ele aprendeu no próprio circo, com os

artistas com o qual conviveu, a realização de números como homem-banda, sinos, guizos e moedas

especialmente confeccionadas para produzirem sons. Teófanes Silveira, palhaço Biribinha, também revelou que

os números que ainda hoje realiza em parceria com seus familiares foram ensinados e aprendidos por seu pai

durante sua trajetória como artistas circense. Somente nos últimos anos que seu irmão, Hiran Silveira, o

principal músico excêntrico da família, passou a ensinar suas técnicas a um artista fora de seu círculo familiar.

Por outro lado, artistas como Marcelo Lujan e Pablo Nórdio, do Circo Amarillo, e Richard Riguetti e Lilian

Moraes, do Grupo Off-Sina, passaram a realizar pesquisas e trabalhos voltados à recuperação e criação de

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números cômico-musicais. No caso do Grupo Off-Sina, que teve um forte relacionamento com Doracy e Alvina

Campos, conhecidos artisticamente como Treme-Treme e Corrupita, o desejo de homenagear seus mestres

levou a uma intensa pesquisa por materiais e maneiras de viabilizar a realização de números que somente

conheciam por descrição, mas cujas lacunas de execução só puderam ser preenchidas com muita inventividade,

na qual os saberes foram reconstruídos e também modificados, criando-se soluções próprias.

Nessa função múltipla de criador e pesquisador também se situa o Grupo do Balaio, que além de seu trabalho

artístico também busca recuperar e reconstruir memórias que, ao serem registradas, podem se tornar

estímulo e fonte para novas gerações de artistas e pesquisadores. Nesse sentido, cada vez mais as artes

circenses têm espaços de divulgação e debate e cada vez mais nítida se tornam presentes suas histórias. Os

artistas que se aventuram pela poética musical cômica podem trilhar sua própria história enquanto os

excêntricos musicais de hoje, mas sem perder um olhar para os artistas do passado e seu legado.

Bibliografia

AVANZI, Roger e TAMAOKI, Verônica. Circo Nerino. São Paulo: Pindorama Circus. Códex, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogia da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.

LEVY, Pierre Robert Levy. Les clowns et la tradition clownesque. Sorvilier: Editions de la Gardine, 1991.

MELO FILHO, Celso Amâncio. A música como recurso cênico de palhaços: Cia. Teatral Turma do Biribinha e Circo Amarillo. São Paulo: Dissertação de Mestrado, UNESP, Instituto de Artes, área de concentração em Artes Cênicas, linha de pesquisa Estética e Poéticas Cênicas, 2013.

RÉMY, Tristan. Les clowns. Paris: Bernard Grasset, 2002.

SILVA, Erminia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Editora Altana, 2007. Editora Funarte: disponível online – www.funarte.gov.br – Edições Online.

SILVA, Erminia, ABREU, Luís Alberto de. Respeitável Público... o circo em cena. Rio de Janeiro: Funarte, 2009. Editora Funarte: disponível online – www.funarte.gov.br – Edições Online.

SILVA, Erminia e MELO FILHO, Celso Amâncio. Palhaços Excêntricos Musicais. Rio de Janeiro: GRUPO OFF-SINA, 2014.

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Qual é o lugar do Circo? por Adriano Paes Mauriz

Começo esse texto agradecendo ao Grupo do Balaio pela confiança e crença de que a partir de nossa

experiência podemos aportar algo para a sua pesquisa. Acredito que não sou a figura mais indicada para falar

sobre o Circo na Periferia, pois embora vivencie cotidianamente a pesquisa e estudo prático do circo em um

bairro periférico, seguramente muitos estudiosos se dedicaram ao tema e tem um conhecimento muito mais

aprofundado sobre esse assunto.

Diante desse desafio me questiono se existe mesmo um circo com uma linguagem da periferia, que traduz essa

especificidade em sua temática, estética, ética e forma de produção. Como diz o Poeta Sérgio Vaz:

- Teatro Grego não nasceu na Grécia? Então poeta periférico é o que vive na periferia!

Se for assim, é algo que ainda não tem uma expressão forte na cidade de São Paulo, prova disso são os poucos

projetos de circo aprovados em editais públicos, provenientes de artistas e grupos com essa origem.

Por tudo isso, eu tomo a liberdade de focar apenas em nossa própria prática e não ampliar para outros

contextos como o circo social ou o circo itinerante que circula nas periferias das cidades, pois tenho certeza

que ambos merecem uma longa reflexão. Penso inclusive que na contemporaneidade, essas duas experiências

tem provocado desdobramentos permanentes nos territórios periféricos por onde passam, como os artistas

que deixaram o circo itinerante para viver no bairro ou as escolas de circo social que formam jovens artistas

que vivem nos bairros. O que acontece com eles depois que o circo vai embora?

Nestes 25 anos, o Grupo Pombas Urbanas, na sua pesquisa de formação de atores, linguagem cênica e

dramaturgia, bebeu também da fonte do Circo Teatro em seu processo artístico. Posteriormente encontra o

eco dessa busca entre participantes dos processos de formação de jovens artistas resultam na existência do

Grupo de Circo Teatro Palombar. Esses jovens periféricos identificados com a linguagem do Circo partem de

dois pontos principais para criação de seu espetáculo “Uma Arriscada Trama de Picadeiro e Asfalto”: o primeiro

é o fato de muitas crianças que participam dos cursos de Circo no Centro Cultural Arte em Construção serem

filhos ou netos de artistas circenses que por conta das dificuldades da vida itinerante decidem abandonar a

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arte e viver na periferia de São Paulo. O segundo ponto é o estudo da História do Circo para criar a

dramaturgia da peça.

No início, quando chegamos ao bairro Cidade Tiradentes em 2004, iniciamos uma série de atividades de

formação, entre elas, as aulas de circo para crianças que posteriormente transformaram-se no projeto

“Somos do Circo”, com o objetivo de promover o ato do brincar por meio de atividades circenses. Era claro

para nós que as crianças do bairro não tinham um lugar para brincar, que tinham responsabilidades

domésticas e familiares. Algumas, vagavam pelas ruas como pipas soltas no vento. Ao mesmo tempo a oficina

de circo os seduzia e criava condições para trabalhar conteúdos da vida e não só a técnica artística. Muitos

desses alunos não queriam ser artistas, apenas queriam um espaço para brincar, expressar-se e comunicar-

se. Também havia entre essas crianças, filhos e netos de artistas e que, para eles nós representávamos um Elo

com sua própria Tradição. Compartilho uma música criada coletivamente por esses pequenos alunos, que

acredito, expressa um pouco do que a linguagem representava a eles naquele momento:

“Somos do Circo! Voei com as Pombas e aprendi. Somos do circo! Um lugar especial. Estar no circo é muito

melhor! Tá no circo é muito bom, liberdade você vai achar aqui. Vem com a gente não fique a toa temos tudo pra

fazer você feliz. Quero amizade e respeito também, quer ser feliz e crescer, brincar também, brincar também!”

Com o passar dos anos, foi-se constituindo um núcleo artístico, composto destas mesmas crianças que já

estavam tornando-se adolescentes e viam na arte a possibilidade de um projeto de vida. Nasce aí o Circo Teatro

Palombar.

O Grupo, então composto de jovens entre 15 e 29 anos, inicia uma pesquisa sobre a história do circo,

transformando todo o aprendizado em um roteiro que dialoga com a realidade de sua comunidade, estreando o

espetáculo “Uma Arriscada Trama de Picadeiro e Asfalto” em 14 de dezembro de 2012. O desejo do grupo era

criar um espetáculo de circo com uma linguagem especifica para as ruas do seu bairro, levando essa história

para as praças e tornando-se referência de juventude em sua própria comunidade, onde muitos amigos, dos

próprios integrantes não tem um projeto ou uma perspectiva para suas ansiedades enquanto jovens.

Com o espetáculo, o grupo inicia a busca pela ocupação de outros espaços e vai a Parques da Cidade com o

projeto “Nós da Lona: Uma Arriscada Trama de Picadeiro e Asfalto” contemplado pelo programa VAI em 2013,

buscando uma linguagem de Circo e Teatro para espaços abertos que reverencia a tradição mas busca novos

caminhos como expressa uma das musicas do espetáculo:

“E o Circo de onde vem ? Vem de longe além do mar. Vem da festa Popular. Vem da lona,vem da tribo e do

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terreiro! É a Trupe Palombar. Nessa praça a apresentar. A história dos nossos ancestrais. Vem, vamos juntos

costurar, essa Trama entre o palco e o picadeiro. Viva o Circo! Viva o Circo! Cruzando os tempos, encantando os

corações”

Diante da experiência com o projeto anterior, o Grupo decide arriscar ainda mais, e fazendo circo numa

linguagem arrojada, apenas com o que couber na mochila, cria intervenções que podem se adaptar aos mais

variados locais. Este é “O Rolê dos Saltimbancos” projeto realizado em 2014 que além das intervenções contou

também com o “2º Intercâmbio de Circo Social do Estado de São Paulo”, promovendo o encontro de grupos

jovens que fazem circo em espaços como Fábricas de Cultura, Centro de Formação e em escolas de circo social

como ICA, ICC e Lona das Artes estimulando a troca de conhecimentos sobre seu fazer artístico.

Na pesquisa para “Rolê dos Saltimbancos” além dos figurinos e intervenções que buscavam dialogar

diretamente com a Cidade, o Palombar utiliza sua arte também para abordar acontecimentos com o

“Rolezinho”, passeios a shoppings organizados por jovens da periferia que chamaram a atenção dos jornais em

meados do ano. Como dialogar com este jovem, e mais como expressá-lo em circo, teatro, música? Foram as

perguntas que nortearam este processo criativo. E aqui, mais uma vez, o Grupo cria canções que dialogam com

sua produção cênica:

“Aê Cidade Tiradentes, Vamos falar pra vocês. Essa é a nossa hora, Essa é a nossa vez. "Tamu" chegando na

boa, Convidando a quebrada. É a Trupe Palombar, Recriando essa parada: De rolê, de rolezinho, Que os homi

tava barrando. Vamos lhes apresentar, O Rolê dos Saltimbancos! Com muita educação. Cultura é nosso direito.

Circo e informação. Com máximo respeito. Monociclo, acrobacia. Teatro e alegria. Um diálogo com arte Pra

tecer cidadania. Trazendo muita coragem. E cultura de verdade. Pra não ter mais violência. Fortalecer amizade.

De rolê, de rolezinho Que os homi tava barrando, Vamos lhes apresentar, o role dos Saltimbancos"

O Palombar é um grupo jovem, que nasce a partir de um processo de formação de circo social e busca uma

linguagem própria a partir das inquietações que os movem enquanto jovens da periferia. Nesse sentido, buscam

formas de expressar suas ideias em cenas, músicas, números de circo e agora em pequenos vídeos de circo

em praça pública. Uma arte pública integrada com a cidadania e o direito do jovem a cidade.

Compreendemos que existe hoje, não uma vertente periférica do circo, senão uma nova geração de artistas

advindos das escolas, do circo social, dos projetos, e que estão reinventando uma linguagem, ocupando a

cidade, expressando seu território urbano e periférico e também seu tempo, buscando seu lugar no mundo.

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Trabalho em processo

por Lisadora C. S. Gianetti 1

Que tal pensar a construção de um novo roteiro?

Já, já

Sábado, 20h56, plateia de um teatro na zona sul de São Paulo, um fade in e fade out da luz de plateia indica o

primeiro sinal. Uma criança, frequentadora assídua, diz: “Agora é o primeiro sinal, né? Depois vai ter mais um e

mais um, né?” Alguns minutos depois vêm o segundo sinal. A criança diz: “Agora só falta mais um pra começar,

né”?

Vai logo

Sábado, 15h58, plateia de um teatro na zona oeste de São Paulo, um burburinho na plateia, segundo sinal. Nas

cadeiras do centro um menino de aproximadamente seis anos canta: “co-me-ça, co-me-ça”. Logo ele é

acompanhado pelo amigo ao lado: “come-ça, co-me-ça”. Eles pulam, batem palmas e falam cada vez mais alto.

As crianças e adultos ao redor observam, mas não se juntam ao coro. O silêncio diz “você não sabe que ainda

tem o terceiro sinal e por isso o espetáculo ainda não começou”?

Que-qu’eu tô fazendo aqui

Quinta-feira, 14h44, plateia de um teatro em um projeto social na periferia da zona leste de São Paulo. A

proporção é de aproximadamente dezessete crianças para cada adulto. Há um ruído alto de crianças e

adolescentes que conversam: “que horas vai começar?”, “vai ter aula hoje?”. Os professores em pé nas laterais

da plateia dizem que o espetáculo começa às 15 horas. 14h51, o ruído continua. 14h59, o ruído continua. 15h03, os

professores nas laterais pedem silêncio para que o espetáculo possa começar. Não há sinais sonoros ou

luminosos.

                                                            1. Curadora de Circo do Projeto Casa de Cultura e Cidadania do Instituto Agires e Educadora Cultural do Programa Fábricas de Cultura. Quando adolescente morava em Carapicuíba, cidade da Grande São Paulo, gostava de frequentar a Biblioteca Francisco Pati, hoje Biblioteca Pública Mario Schenberg, na Lapa, a uma hora e cinquenta minutos de distância. ��

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Apesar de

7h05, viagem de sete minutos até a Estação Lapa da CPTM. Espera de oito minutos para embarcar no trem até a

Estação Barra Funda. Transferência para a plataforma do metrô e uma viagem de 27 minutos até a Estação

Brás. Cinco minutos de caminhada para a transferência até a plataforma da CPTM, durante a qual ouve-se um

apito de trem. Pensamento entre passos: “Desde quando ainda circulam trens com apitos que lembram as

montanhas de Minas”? Espera de nove minutos até o embarque na linha 12 da CPTM e viagem de 52 minutos,

com velocidade lenta no trecho entre a estação SP Leste e a estação Itaim Paulista e um ar condicionado gélido.

Um menino brinca e aponta a paisagem que varia entre galpões, áreas verdes, bairros com muitas casas em

construção e outras tantas com muitas cores, conjuntos habitacionais e empreendimentos imobiliários de 50m²

sem janela na cozinha. Ao sair da estação há um bicicletário gratuito tão abarrotado que gerou a criação de um

bicicletário/guardavolumes num galpão pago logo adiante. Há outras pessoas pedalando em direção à estação.

Espera de 12 minutos para embarcar na lotação que viajará 22 minutos até o destino final. Duas horas e vinte e

dois minutos de viagem.

Se eu soubesse

Bate-papo com um adolescente que frequenta cursos de arte-educação. O último espetáculo que viu foi aquele

“que não começava nunca”, no teatro do projeto social. Costuma ir a espetáculos se alguém disser que tem,

mas não procura saber da programação. Se sabia de um espetáculo de circo-teatro na Oficina Cultural em

Itaquera, não. Se sabia de um espetáculo de circo-teatro no Centro Cultural da Penha, não. Mas se soubesse,

iria. Só não foi na Praça Roosevelt porque não conseguiria voltar para casa antes do último ônibus. Quer ser

artista um dia.

O que separa esse adolescente de um espetáculo a uma hora e vinte e seis minutos de periferia a periferia é a

passividade?

Do lado de cá

Saguão de teatro na zona oeste de São Paulo. Conversa entre colegas, se havia ido ao espetáculo “x”, no Centro

Cultural da Penha, ao que responde: “Imagina, naquela lonjura”!

Uma hora e catorze minutos de distância da possibilidade de prestigiar um colega de profissão.

Logo ali

Jovem de 18 anos, periferia da zona sul, récem-saído de um projeto social que oferece atividades de arte-

educação. “Pô, tem um espetáculo lá em Pinheiros, nem tenho dinheiro pro busão”!

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A distância de nove reais e trinta centavos é maior do que a de uma hora e quarenta e sete minutos.

Proposta de encenação: Encontros

Perspectiva

Ele em pé, ela sentada. Ele observa que ela lê um programa de espetáculo. O metrô fecha as portas.

- Moça, desculpa perguntar, mas é um espetáculo de que?

- É de teatro, de uma mulher palhaça.

- Pô, legal! Onde é?

- Tem que ter folego, viu, é lá na Penha!

- Ah, tô acostumado! Se pra ir pro trabalho a gente se aperta na lotação, pra ver coisa legal, ah, é sussa!

Assim

Plateia cheia.

Coro: “Começa, começa, que demora é essa”!

Sinal sonoro.

Professora: - Esse é o segundo sinal.

Criança: - Pra que professora, só faz barulho chato e demora pra começar.

Mãe: - Chato é você, fica quieto menino.

Professora: Ó, é assim: o som serve avisar as pessoas que elas tem só mais alguns minutos pra ir ao banheiro,

pra sentar, procurar seu lugar, desligar os celulares porque daqui a pouco o espetáculo vai começar. Daqui a

pouco tem mais um e pronto, o espetáculo começa. É pra ajudar a concentrar a gente e os artistas.

Mãe: - Tá ouvindo? Vê se aprende!

Criança: Vai dizer que cê sabia, sabia nada, mãe.

Mãe: - Fica quieto, menino. Pronto. Pelo menos da próxima vez a gente já sabe.  

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Deixa

- Ô mãe, vi que vai ter um monte de espetáculos ali em Cidade Tiradentes. Cê deix’eu ir?

- Vai com quem?

- Ah, com uns amigos do circo.

- Volta que horas?

- Ah, depois que terminar. - Que horas?

- Ah, peraí. (...) Diz no site que de ônibus demora uma hora e vinte. (...) Posso?

- Tem dinheiro?

Curiar

Saindo do bicicletário:

- Alô?

- Fala.

- Alô?

- Fala, criatura!

- Calma! Tô só me recuperando do susto. Um fulano me fechou com um desses carros todo com o som

turbinado e ainda por cima me molhou de água da poça.

- Fala logo.

- Ó, peguei um papel aqui na estação que diz que vai ter um pessoal de teatro apresentando mais tarde. É uma

coisa do rio, da enchente.

- Eu lá quero saber da enchente, quero enchente longe.

- Eu sei, eu sei. Mas vai que é pra falar com os políticos pra pedir pra dar um jeito nisso. (...) Cê pode pegar os

menino na creche hoje? Eu vou lá ver que é isso.

Deslocar-se é habitar diferentes perspectivas

Quem vive em São Paulo, habita a cidade a partir da perspectiva de sua necessidade de circulação. Quem habita

a periferia conhece o tempo e a falta de espaço entre corpos no trajeto. Quem habita a periferia enfrenta essas

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condições para trabalhar, mas pondera para apropriar-se da vida artística do centro. Poucos que habitam o

centro enfrentam o arrastado do tempo e o apertado do ar para apropriar-se da vida artística da periferia.

Há parte do público que busca a programação cultural inscrita num raio da cidade, num raio de conforto de

tempo. Há espaços culturais na periferia que oferecem espetáculos que circulam no centro apenas durante a

semana, quando as famílias não podem compartilhar tempo. Há coletivos discutindo a estética da periferia,

criando a partir das experiências e memórias da periferia e circulando pela periferia. Numa tentativa de

apropriação poética da cidade, vem a provocação a todos estes protagonistas:

Que tal seria uma ideia de hoje descobrir algo que se passa há mais de uma hora de você?

Referências

GONÇALVES, Teresinha Maria. PSICOLOGIA AMBIENTAL - A EXPRESSÃO ESTÉTICA DAS PERIFERIAS URBANAS.

Belém: Unesc, 2007. 9 f.

HERCULANO, Mônica. A cidade como espaço cultural. 2014. Disponível em:

<http://www.culturaemercado.com.br/destaque/cidade-como-espaco-cultural/>. Acesso em: 27 nov. 2014.

REVISTA CONTINUUM: No centro da cultura. São Paulo: Itaú Cultural, n. 26, 2010. Bimestral.

LEIVA, João. Cultura SP: Hábitos culturais dos paulistas. São Paulo: Tuva Editora, 2014. 191 p.