aula 1 - dialética hegeliana, dialética marxista, dialética negativa

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Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana Aula 1 Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um rufião ou um marginal. Na verdade: “usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha, e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado. Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades” 1 . Em suma um intelectual, mas um intelectual bem específico, desses que tem nome conhecido. Um intelectual com quem a segunda metade do século XX conviveu de maneira difícil devido à sua consciência crítica, seus livros, artigos em jornais e entrevistas no rádio que jogavam uma sombra incômoda na efetividade: Theodor Adorno. Adorno come diavolo, como disse um dia Jean-François Lyotard. Um diabo que não levará Leverkuhn ao deserto para 1 MANN, Thomas; Doutor Fausto, p. 335

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aula 1 da pós graduação USPVladimir SafatleHegel, Marx e Adorno

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Page 1: Aula 1 - Dialética Hegeliana, Dialética Marxista, Dialética Negativa

Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adornianaAula 1

Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um rufião ou um marginal. Na verdade:

“usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha, e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado. Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades”1.

Em suma um intelectual, mas um intelectual bem específico, desses que tem nome conhecido. Um intelectual com quem a segunda metade do século XX conviveu de maneira difícil devido à sua consciência crítica, seus livros, artigos em jornais e entrevistas no rádio que jogavam uma sombra incômoda na efetividade: Theodor Adorno. Adorno come diavolo, como disse um dia Jean-François Lyotard. Um diabo que não levará Leverkuhn ao deserto para tentá-lo com poder e prazer. Os argumentos diabólicos mudaram depois de certo tempo. Agora, sua tentação passa por discussões sobre o “nível geral da técnica de Beethoven”, a função expressiva do acorde de sétima diminuta no começo do opus 111 e de como “cada som traz em si o todo e também toda a história”. Sim, agora o diabo parece ser a voz mais sensata para aqueles que não suportam o estado atual da linguagem, que sabem como: “a situação é demasiado crítica, para que a ausência de crítica esteja à sua altura”2.

Mas esta não era a primeira vez que as palavras de um filósofo apareciam na boca deste que tem a força retórica de inverter o sentido de todas as palavras, de embaralhar o sim e o não, de tirar o julgamento do solo seguro onde o certo ainda é o certo e o errado ainda errado. Esta cena já se repetira anteriormente. O diabo e aquele que procura se afastar das antigas teorias, que sonha em recuperar os frutos da vida, já se encontraram antes. Naquele momento, e vai-se aí duzentos anos, ele não teve problemas em se apresentar com sua alcunha de origem, a saber, “o espírito que sempre nega”. O mesmo espírito que, se não tinha as feições de outro filósofo, tinha certamente seu indefectível sotaque suábio. Antes de encarnar em Adorno, o diabo já aparecera para Fausto, de Goethe, sob a forma de Hegel.É provavelmente pensando nel que Mefistófoles dirá:

1 MANN, Thomas; Doutor Fausto, p. 3352 Idem, p. 338

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Eu sou o espírito que sempre negaE com razão, tudo o que nasceÉ digno de perecer (zugrunde geht)

Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são à sua maneira bastante aristotélicos. Pois de onde viria esta peculiar tendência de associar a dialética nascente em seu território à uma atividade infernal, se em algum momento eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica, de Aristóteles? Desde Aristóteles, aquele que acredita poder suspender o princípio de não-contradição só pode nos convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética, é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura capaz de responder à exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe. Goethe e Thomas Mann sabiam disso.

Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, a última versão da dialética, esta que conhecemos pela alcunha de dialética negativa, fosse acusada como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação determinada”, como dizia Habermas, a última versão histórica da dialética nunca ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados, como disse Mann, só poderiam expressar o niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que seja a este inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois, se o diabo é um desses fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma generosa. Ele pode ser, por exemplo, este lugar no qual a ruína parece eterna e insuperável, no qual estamos condenados à cantar a cantinela triste da finitude, lugar no qual as condições da praxis transformadora encontram-se, por isto, completamente impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa. Esta pareceria ser a estação final da longa e complexa história da dialética no pensamento ocidental.

Surgir e passar que não surge nem passa

Bem, se propus este curso é porque valia a pena perguntar sobre o que aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no que diz respeito à dialética negativa de Adorno, mas principalmente no que diz respeito à esta tradição dialética que inicia a partir de Hegel. Erro que não seria simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como:

A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada

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membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários, quanto são negativos e evanescentes3.

Esse delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio, só pode aparecer para um certo senso comum como palavreado de quem quer criar movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas desaparecimentos mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No coração desta dialética delirante encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os pensamento determinados.

Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a filosofia, ao menos esta que a dialética defende, não seria exatamente o discurso daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disto que nos permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-estável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte regulador da crítica. Talvez isto explique porque as paradas finais da dialética sempre foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isto se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do conceito.

Neste sentido, a dialética nunca poderia ser diagnosticada, como muitos os fizeram, como a perpetuação da eterna melancolia dos que só veem possibilidades que nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo impede toda reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século XX exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu uma ontologia da inadequação. Há um equivoco fundamental de setores importantes da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa. Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade é forma de não esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Neste sentido, a negatividade dialética não é nem poderia ser expressão de alguma espécie de falta ou privação, como vemos, por exemplo, na tradição da crítica deleuzeana à dialética hegeliana. Ela é manifestação do excesso do processo do conceito em relação às possibilidades das determinações postas.

Por isto, se tal latência do existente deve ser compreendida como negatividade é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se

3 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,

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sedimentar como presença. Esta é uma ideia fundamental da dialética: começa-se pensando contra representações naturais que se sedimentaram principalmente em uma estética transcendental, em um conceito representativo de espaço e tempo, e não será por acaso que daremos atenção especial, em nosso curso, às discussões sobre a compreensão dialética do tempo.

A dialética e suas mistificações

Mas vocês poderiam logo se perguntar sobre o sentido de falar em “dialética” desta forma, a saber, como se estivéssemos a analisar um processo semelhante de pensamento em Hegel, em Adorno e também em Marx. No que podemos colocar uma questão simples apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos no começo do século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX participam de uma partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de pensamento? Em que tais dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do distanciamento? Lembremos, a este respeito, desta conhecida passagem do posfácio da segunda edição de O Capital:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (...) A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen). Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um escândalo, um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, o entendimento positivo do existente/permanente (Bestehenden), inclui, ao mesmo tempo, o entendimento de sua negação, de sua necessária passagem (Untergangs). Além disso, apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária4.

As colocações de Marx fornecem um topos clássico para o julgamento da dialética hegeliana. No entanto, elas são mais ambíguas do que podem inicialmente parecer. Primeiro porque, como gostaria de mostrar em nossas próximas aulas, a descrição fornecida sobre a relação entre Ideia e efetividade em Hegel não é de todo correta. Em Hegel, a Ideia não é, como Marx parece no limite nos fazer acreditar, uma determinação transcendental que produz o processo efetivo, como quem subsume o diverso da experiência sensível à generalidade de uma normatividade previamente assegurada. O processo efetivo não é uma simples manifestação exterior da Ideia, como se estivéssemos diante de uma totalidade como movimento sem acontecimento. Leitura que encontrará, no século XX, um modelo paradigmático de interpretação na

4 MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91

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crítica heideggeriana a Hegel. O mesmo Heidegger que dirá: “o progresso na marcha histórica da história da formação da consciência não é impulsionado, em direção ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência, mas ele é impulsionado pelo alvo já pro-posto”5. Em outra chave, mas com a mesma leitura, Habermas, falará: “de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto-referência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade” 6

No entanto, é possível mostrar como a Ideia em Hegel é, antes, uma rememoração do processo efetivo, ou seja, sua relação à efetividade é necessariamente retroativa, daí sua posteridade tão bem descrita quando Hegel afirma que a filosofia opera como a coruja de Minerva. Pois a Ideia produz uma totalização que não é mera recontagem, redescrição do que ocorreu, mas é construção performativa do que, até então, não existia. De fato, a Ideia produz, mas integrando as contingências que se desdobraram no campo da efetividade em uma construção retroativa da necessidade. A filosofia hegeliana não é, por isto, um necessitarismo spinozista para o qual a efetividade é a expressão imanente de uma substância que aparece como: “totalidade infinita imóvel de coisas singulares em movimento”7. Ela o seria se aceitássemos que a rememoração operada pela ideia nada acrescenta, ou seja, que a passagem à existência, que a posição, nada acrescentaria à determinação categorial8; como se da determinação à existência não houvesse processo.

Mas é fato que várias questões se derivam daí, Pois, sua posição de coruja de Minerva não lhe daria necessariamente uma indelével função de “glorificar o existente”, de “deificar aquilo que é”9? Como quem vai posteriormente aos campos de batalha para servir-se de uma teoria do fato consumado a fim de justificar o curso atual do mundo como expressão ontológica da necessidade. Devido à aceitação de uma leitura desta natureza, vários comentadores como, por exemplo, Vittorio Hösle, insistirão no que alguns chamarão de “passadismo” de Hegel. Passadismo que mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao passado, não prolepse e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E, na medida em que o que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à filosofia; ela apenas deve compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que devo fazer?” não tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma resposta a ela poderia no melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na realidade”10. Ao que parece, a crítica de Marx fez escola mesmo entre autores que dificilmente chamaríamos de marxistas.

Discutir a correção ou não de tal leitura nos exigirá entrarmos de maneira sistemática em questão como a performatividade do conceito, a relação da dialética à contingência e as relações de negação determinada entre conceito e objeto, o que faremos em outras aulas. Por enquanto, há de se insistir como, mesmo fazendo tal crítica, Marx se vê obrigado a reconhecer uma relação profunda de filiação e transmissão. Ele dirá: devemos virar a dialética hegeliana de cabeça para baixo, mas

5 HEIDEGGER, Holzwege, p. 1966 HABERMAS, Jürgen; O discurso filosófico da modernidade¸Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 607 BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 1358 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que cem táleres reais não contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, op cit.9 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 25210 HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade, Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468

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há de se reconhecer que as formas gerais do movimento responsáveis pela compreensão correta da processualidade do existente já estão todas configuradas em Hegel. Proposição aparentemente surpreendente pois como é possível separar a estrutura lógica de um pensamento do movimento e da transformação, sua maneira de apreender a gênese processual das formas e das normatividades que se querem ontologicamente asseguradas, e sua impotência em funcionar de forma “crítica e revolucionária”? Como retirar o cerne racional de seu invólucro místico, ou seja, liberar a dialética da natureza apressada de suas sínteses, como se tal pressa não estivesse, de certa forma, inscrita no interior da estrutura lógico-formal da dialética? Pois, se não se trata de criticá-lo no plano lógico, nem, por consequência, de criticá-lo no plano ontológico, então como seria possível organizar uma auto-crítica da dialética? Aparentemente, melhor seria criticar a dialética em sua integralidade, com seus modelos de síntese, com sua maneira de pensar o movimento a partir de contradições, com sua forma de encaminhar as diferenças a estruturas gerais de oposição, tal qual várias correntes hegemônicas do pensamento filosófico do século XX farão.

Ontologia em situação

Coloquemos uma hipótese fundamental de trabalho que orientará nosso curso. Se é possível explorar linhas de continuidade entre dialética hegeliana, dialética marxista e dialética negativa é porque a dialética hegeliana é a dialética necessária para as possibilidades históricas da experiência no início do século XIX, assim como a dialética marxista o é para o final do século XIX e a dialética adorniana o é para meados do século XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e pressuposições modifica-se a partir de configurações históricas determinadas, sem com isto modificar sua compreensão estrutural da processualidade contínua do existente, ou seja, como “ontologia em situação”, a dialética reorienta-se periodicamente em um movimento que leva em conta as transformações de suas situações históricas. O que não poderia ser diferente para um pensamento que mesmo nunca aceitando distinções estritas entre ontológico e ôntico, nunca abriu mão da potencialidade crítica da verdade em relação ao campo de experiências entificado pelo senso comum. A crítica se mede a partir das configurações historicamente determinadas de bloqueio.

Isto significa que devemos compreender melhor o que pode ser este conceito vago de uma “ontologia em situação”. Pois a princípio, tal sintagma soa como a forma mesma de um paradoxo. A ontologia como discurso do ser enquanto ser é modalidade de reflexão filosófica caracterizada pela aparente estaticidade da definição nocional de suas categorias, assim como de suas modalidades de força normativa. Podemos dizer que a ontologia caracteriza-se por ser um discurso sobre aquilo que permite a outros discursos definirem sua consistência lógica e, por consequência, sua validade. Mas uma ontologia em situação seria aquela que deixaria evidente como situações sócio-históricas engendram sistemas de ideias que se procuram passar por dotados de necessidade atemporal. Neste sentido, ela seria apenas uma maneira de mostrar como particularidades, impasses e tensões de dinâmicas em situação são, de certa forma, sublimados em sistemas de ideias com aspirações universalizantes. A força normativa de tais sistemas daria então lugar a uma reflexão crítica sobre a gênese material das normas. Neste sentido, uma ontologia em situação seria, necessariamente, uma reflexão crítica sobre a ontologia. Algo não muito longe do que faz Marx, em A Ideologia alemã, quando afirma, por exemplo:

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As ideias da classe dominante são as ideais dominantes de cada época, quer dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante (...) As ideias dominantes não são outra coisa a não ser a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas com ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação11.

A denúncia é evidente: as ideias que compõem o espaço de um domínio no qual nada pode aparece que não esteja anteriormente assegurado por condições prévias e não-problematizadas são a “expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas como ideias”. No entanto, poderíamos compreender a noção de “ontologia em situação” de outra forma, a saber, uma ontologia que seja o campo de exposição do processo de crítica das categorias ontológicas produzidas por uma situação sócio-histórica, como ser, essência, identidade, diferença, entre tantas outras. Por isto que podemos dizer, por exemplo, sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia metódica, que se fundamenta, da unidade entre crítica e apresentação da metafísica”12. Ou seja, ela é ao mesmo tempo a apresentação de categorias da metafísica e a crítica de sua insuficiência. Uma metafísica paradoxal que se realiza como crítica das categorias metafísicas ou, ainda, como explicitação de significações em seu ponto de esgotamento13.

Mas esta crítica que organiza as categorias ontológicas a partir de seu esgotamento, de suas contradições internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o campo das experiências a respeito das quais ela se propunha abarcar, não nos leva necessariamente a uma crítica geral da ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a uma certa ontologização da negatividade da crítica, isto no sentido de compreender o movimento contínuo de dissolução da estabilidade formal do sistema de ideias próprio a situações sócio-histórica determinadas como sendo a própria manifestação das “formas gerais de movimento” a respeito das quais fala Marx e seu reconhecimento de filiação a Hegel. Tal movimento é, de certa forma, ontologizado, o que dá à dialética sua peculiar pulsação entre ceticismo desenfreado e compreensão de suas dissoluções como processos racionalmente orientados não em direção a um telos finalista, como muitas vezes se afirmou, mas, como gostaria de defender, em direção a um modelo anti-predicativo de determinação. Ou seja, a positividade da dialética nunca esteve ligado à orientações normativas teleologicamente asseguradas.

A este respeito, vale a pena lembrar como a etimologia de “predicar” é bastante clara. Vinda do latin praedicare, que significa “proclamar, anunciar”, a

11 ENGELS, Friedrich e MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 7112 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Frankfurt: Surhkamp, 1994, p. 1613 Lembremos, por exemplo, das colocações de Paulo Arantes a respeito da leitura sugerida por Gérard Lebrun a respeito da dialética: “Numa palavra, erradicando-lhe todo e qualquer resíduo afirmativo, Lebrun reduzia o hegelianismo ao que lhe parecia ser o essencial, a Dialética, e esta, a uma espécie de revolução discursiva sem precedentes, uma ‘máquina de linguagem’ especializada em pulverizar as categorias petrificadas, as fixações arcaicas do pensamento dito ‘representativo’, encarnado pelo famigerado (depois do Idealismo Alemão) Entendimento. Comprimidas por tal engrenagem, as significações correntes se punham a flutuar para finalmente confessar que no fundo não eram nada mesmo, a não ser um ninho de contradições cujo resultado se desmanchava no ar, Não havia doutrina portanto, nada a ensinar ou informar. A Dialética, no final das contas, nada mais era do que uma maneira de falar” (ARANTES, Paulo; Hegel: frente e verso)

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predicação é aquilo que pode ser proclamado, aquilo que se submete às condições gerais de anunciação. Predicados de um sujeito são aquilo que ele, de direito, pode anunciar de si no interior de um campo no qual a universalidade genérica da pessoa saberia como ver e escutar o que lá se apresenta. No entanto, há aquilo que não se proclama, há aquilo que faz a língua tremer, há aquilo que não se dá a ver para uma pessoa. Expressão do que destitui tanto a gramática da proclamação, com seu espaço pré-determinado de visibilidade, quanto o lugar do sujeito da enunciação, que pretensamente saberia o que tem diante de si e como falar do que se dispõe diante de si. Isto que faz a língua tremer e se chocar contra os limites de sua gramática é o embrião de outra forma de existência. Neste sentido, tal horizonte anti-predicativo de determinação não será capaz de se encarnar nas condições de determinação do que pode ser proclamado. Veremos melhor o sentido desta discussões no interior do nosso curso mas, por enquanto, gostaria de dizer que esta é minha maneira de trabalhar uma importante elaboração de Ruy Fausto a respeito das determinações dialéticas. Encontramo-la em afirmações como :

Uma das características da concepção dialética das significações – e, se poderia dizer, em geral, da dialética – é a ideia de um espaço de significações em que estão presentes zonas de sombras. Este espaço contém um halo escuro , e não somente regiões claras, como supõem em geral as descrições não dialéticas. Longe de representar o limite, em sentido negativo, das significações, as zonas de sombras lhes são essenciais (...) Expresso à maneira das filosofias não dialéticas de significação, esse halo obscuro poderia ser pensado como contendo intenções não preenchidas. Para a dialética, trata-se entretanto de intenções que não podem nem devem ser preenchidas. Há assim um campo de intenções que deve se conservar como campo de intenções. O preenchimento não ilumina as significações, mas as destrói14. Uma zona de sombra que, como veremos, pode ser expressa sob a forma de

possíveis que não são postos na determinação do objeto, como “desatualização” do objeto posto, como pura indeterminação, entre outras figuras.

Para finalizar, gostaria ainda de voltar ao conceito de “ontologia em situação” a fim de insistir como a dialética é sensível à modificação histórica dos sistemas de ideias, ou se quisermos, ao que aparece ao pensamento com “representação natural”. Ela é sensível à maneira com que o “campo das experiências possíveis” modifica-se historicamente a partir de um sistema de causalidades múltiplas. Mas isto significa, principalmente, que ela também modifica sua forma de construir a “unidade entre crítica e apresentação da metafísica”. O sistema de posições e pressuposições da dialética, aquilo que ela deve apenas pressupor e aquilo que se ela se vê em condições de anunciar deverá necessariamente se modificar de acordo com as condições históricas. Isto é o que devemos compreender, em última instância, como “ontologia em situação”.

Estado e totalidade verdadeira

Podemos fornecer um exemplo sobre esta modificação do sistema de posições e pressuposições da dialética a partir do problema da relação entre Estado e totalidade em Hegel e Adorno. Sobre a teoria hegeliana do Estado, Adorno afirmará que Hegel sabe muito bem como a sociedade civil é uma totalidade antagônica. Da mesma

14 FAUSTO, Ruy; Marx – lógica e política, op. cit., pp. 149-150

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forma, ele sabe que as contradições da sociedade civil não podem ser resolvidas através de seu movimento próprio. Sabemos como, ao insistir que a distinção entre sociedade civil e Estado é uma característica maior do mundo moderno, Hegel se contrapõe a certas teorias liberais que compreendem o Estado apenas como a estrutura institucional cuja função seria garantir e assegurar o bom funcionamento da sociedade civil a partir de princípios de defesa dos indivíduos com seus interesses econômicos particulares. Hegel não teria problemas em admitir que: “a sociedade civil é o fundamento objetivo da emancipação dos cidadãos modernos e da subjetividade moderna”15. Mas ele insistiria que, levando em conta apenas seu movimento próprio, a sociedade civil, como expressão dos princípios do livre-mercado, tende fundamentalmente à atomização social, à clivagem e à pauperização de largas camadas da população. Lembremos deste famoso trecho dos Princípios da filosofia do direito:

Quando a sociedade civil não se encontra impedida em sua eficácia, então em si mesma ela realiza uma progressão de sua população e indústria. Através da universalização das conexões entre os homens devido a suas necessidades e ao crescimento dos meios de elaboração e transporte destinados a satisfazê-las, cresce, de um lado, a acumulação de fortunas – porque se tira o maior proveito desta dupla universalidade. Da mesma forma, do outro lado, cresce o isolamento e a limitação do trabalho particular e, com isto, a dependência e a extrema necessidade (Not) da classe (Klasse) ligada a este trabalho, a qual se vincula a incapacidade ao sentimento e ao gozo de outras faculdades da sociedade civil, em especial dos proveitos espirituais16.

O modo de inserção no universo do trabalho depende, segundo Hegel, de uma relação entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de desenvolver. Isto implica não apenas entrada desigual no universo do trabalho, mas também tendência à concentração da circulação de riquezas nas mãos dos que já dispõem de riquezas, assim como o consequente aumento da fratura social e da desvalorização cada vez maior do trabalho submetido à divisão do trabalho. Desta forma, na aurora do século XIX, Hegel é um dos poucos filósofos a se mostrar claramente consciente tanto dos problemas que organizarão o campo da questão social nas sociedades ocidentais a partir de então quanto da real extensão destes problemas. Para ele, esta tendência de aumento das desigualdades e da pauperização, tendência que o leva a afirmar que por mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente rica para eliminar a pobreza, é um problema que exigiria o recurso a um conceito de Estado justo. Adorno sabe disto. Tanto que afirmará:

O livre jogo de forças da sociedade capitalista, cuja teoria econômica liberal Hegel aceitara, não possui nenhum antídoto para o fato de a pobreza, do “pauperismo”, segundo a terminologia de Hegel atualmente em desuso, aumentar com a riqueza social; menos ainda poderia Hegel imaginar uma elevação da produção que faria troça da afirmação de que a sociedade não seria suficientemente rica em mercadorias. O Estado é solicitado desesperadamente como uma instância para além desse jogo de forças17.

15 KORTIAN, Garbis ; Subjectivity and civil society, In: PELCZUNSKI; The state and civil society : studies in Hegel’s political philosophy, Cambridge University Press, 1984, p. 20316 HEGEL, Filosofia do direito, par. 24317 ADORNO, Tres estudos sobre Hegel,

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Tal recurso ao Estado como expressão do desespero mostra a verdadeira potência crítica da dialética hegeliana. Adorno chega a dizer que o recurso hegeliano ao Estado é um ato necessário de violência contra a própria dialética porque, de outra forma, a sociedade se dissolveria em antagonismos insuperáveis. Ou seja, ele sabe o que está em jogo na aposta hegeliana pelo Estado. Adorno só não está seguro de que tal aposta poderá ser paga com a moeda que Hegel tem em mãos. Colabora para tal desconfiança a compreensão adorniana da natureza da imbricação atual entre estado e capitalismo. Imbricação na qual: “o intervencionismo econômico não é enxertado de um modo estranho ao sistema, mas de modo imanente a ele, como a quintessência da autodefesa do sistema capitalista”18. Na esteira das discussões de Friedrich Pollock a respeito do “capitalismo de estado”, mas com um diagnóstico relativamente distinto, Adorno acaba por apontar a mesma impossibilidade de pôr a possibilidade de um Estado justo em nossa situação sócio-histórica. Sua articulação orgânica com as dinâmicas monopolistas do capitalismo tardio lhe retiraria toda possibilidade de ser um veículo de justiça social. Isto não implica, em absoluto, que a dialética negativa se contentará em denunciar falsas totalidades lá onde a dialética hegeliana acreditava que uma totalidade verdadeira poderia ser posta. Antes, ela criticará as figuras atualmente postas da totalidade verdadeira, isto a fim de deixá-las em pressuposição devido à situação sócio-histórica na qual o pensamento atualmente se move. A questão importante será se perguntar onde estão os modelos de totalidade verdadeira, para onde eles foram deslocados, já que não podem mais aparecer sob a forma do estado. Isto significa modificar o sistema de posições e pressuposições da dialética.

Note-se ainda como, de acordo com o momento histórico, a dialética não teme em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige uma certa plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se produz através da definição normativa do dever-ser, e ninguém mais do que Hegel recusou tal ideia. Ela se produz através do reconhecimento do desconforto em relação aos limites da situação na qual os sujeitos da enunciação se encontram. Por isto, ela nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte normativo que a legitima.

Dialética como auto-crítica da razão

Neste ponto, podemos fornecer uma definição operacional de dialética com a qual trabalharemos neste curso. Ela vem de Adorno:

Dialética não significa nem um mero procedimento do Espírito, por meio do qual ele se furta da obrigatoriedade do seu objeto – em Hegel ela produz literalmente o contrário, o confronto permanente do objeto com seu próprio conceito – nem uma visão de mundo [Weltanschauung] em cujo esquema se pudesse colocar à força a realidade. Do mesmo modo que a dialética não se presta a uma definição isolada, ela também não fornece nenhuma. Ela é o esforço imperturbável para conjugar a consciência crítica que a razão tem de si mesma com a experiência crítica dos objetos19.

18 ADORNO, Spätkapitalismus oder Industriegesellschaft?, pp. 363-36419 ADORNO, Três estudos sobre Hegel

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Nem método, nem visão de mundo. Desta forma, o filósofo de Frankfurt procurava fornecer o último capítulo de um longo périplo no qual a dialética deixara para trás sua acepção inicial de diálogo baseado na oposição de opiniões contrárias, tão evidente na maiêutica socrática e que justificará sua presença no trivium medieval. A este respeito, lembremos como “dialética” vem de “dialegesthai” que significa algo como a arte da discussão por meio do diálogo e nos remete ao verbo “dialegein”, no qual encontramos “legein”, a saber, “falar”/”juntar”, e o prefixo “dia”, que nos remete a relação ou troca. “Legein” estará também na base de “logos”. Pensando no interior deste horizonte, Platão definirá o praticante da dialética como: “este que sabe interrogar e responder”20 até alcançar o esclarecimento dos princípios gerais. A dialética de Platão, tão claramente presente na maiêutica socrática é assim uma espécie de ascese crítica em direção à intelecção do caráter gerador da Ideia. Lembremos desta definição canônica de A República:

Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias uma às outras, e terminando em ideias21.

Através da dialética, o que é hipótese é destruído até alcançarmos a Ideia como princípio que nos permite construir silogismos sem se servir em nada de qualquer dado sensível. Algo que, como vimos, Marx tende a encontrar em Hegel ao falar da Ideia como o demiurgo do processo efetivo. Notemos ainda que este diálogo de ascese crítica tem, como característica diferencial, apelar aos pressupostos já presentes nas proposições dos envolvidos (o que permitia à Sócrates, por exemplo, mostrar que Ménon não sabia o que sabia). Daí porque: “no debate oratório, semelhante a um processo, são terceiros que dirimem; na discussão dialética, pode-se eximir-se de recorrer aos terceiros graças a um acordo sobre uma verdade revelada aos interlocutores pela razão comum deles”22. Por ter como pressuposto a razão comum, a dialética confunde-se neste momento com a própria definição essencial da argumentação filosófica.

Por sua natureza de técnica de diálogo, baseada principalmente na explicitação de paralogismos, contradições e na redução ao absurdo de teses adversárias (método inicialmente utilizado, ao que tudo indica, por Zenão), o destino da dialética será mais ligado à retórica do que propriamente à lógica23, mesmo que ela tenha sido: “o

20 PLATÃO, Crátilo, 390c21 PLATÃO; A República, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 511 bc22 PERELMAN, Chaim; Retóricas, São Paulo: Martins Fontes, p. 823 “Deste modo, a dialética, sob os seus diversos aspectos, prepara a lógica. Para se tornar, verdadeiramente, uma arte, ela supõe um estado das articulações lógicas do discurso, das relações de consecução ou de incompatibilidade entre as proposições; é preciso reconhecer e analisar os diversos modos de argumentaão, saber distinguir entre os encadeamentos legítimos e encadeamentos incorretos. Falta-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica. Primeiro e sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É uma arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular sistematicamente as leis que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico tem como efeito, não apenas impdir-lhe o acesso à independência científica, mas concentrar seu interesse na argumentação de caráter erístico ou refutativo” (BLANCHË, Robert; História da lógica, Lisboa: Edições 70, p. 21)

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primeiro termo técnico a ser usado para o assunto que hoje chamamos de lógica” 24. É desta forma que ela entrará no trivium medieval, juntamente com a gramática e a retórica.

O declínio da filosofia medieval parece levar junto consigo o prestígio da dialética. Lembremos como Descartes, por exemplo, associa a dialética à retórica para, em um mesmo movimento, separar os campos da filosofia e da retórica. A dialética é, para Descartes, uma “arte da raciocinação” meramente formal, pois ligada à análise das qualidades formais do discurso. Daí sua crítica contra os dialéticos que creem governar a razão:

prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio tão necessariamente concludentes que a razão neles confiantes, embora de certa maneira dispense a evidência e a atenção da própria inferência pode, todavia, em virtude da forma, concluir por vezes algo de acertado. Efetivamente, observamos que a verdade se subtrai muitas vezes a esses laços, enquanto aqueles que deles se servem neles permanecem enredados25.

Esta desqualificação da dialética como raciocínio meramente formal, incapaz de integrar o que é da ordem da contingência da empiria será uma das figuras clássicas da crítica e chegará até Kant. Vem de Kant sua definição como “lógica da aparência” que expressava as ilusões produzidas quando as ideias da razão procuram se tomar por determinações objetivas da coisa em si, produzindo contradições insuperáveis. Neste sentido, tal lógica da aparência não será apenas uma dialética lógica que visa descobrir a falsa aparência na forma dos raciocínios. Ela será uma dialética transcendental que visa denunciar a “aparência transcendental”. Uma aparência diferente da aparência empírica própria, por exemplo, à ilusão de ótica, ou da aparência lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão e da desatenção à regra lógica. Tal aparência transcendental se refere ao fato de nossa razão ter:

“regras fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por completo o aspecto de princípios objetivos, pelo que sucede a necessidade subjetiva de uma certa ligação dos nossos conceitos, em favor do entendimento, passar por uma necessidade objetiva da determinação das coisas em si26.

Enquanto faculdade dos princípios, a razão conhece o particular no universal mediante conceitos que Kant chama de “ideias transcendentais”. Tais conceitos tem “o aspecto de princípios objetivos”, o que acaba por nos induzir a pensar que eles tem a normatividade suficiente para determinar objetivamente as coisas em si. No entanto, os conceitos da razão nunca permitem o conhecimento imediato das coisas, apenas um conhecimento por inferência a partir de premissas não imediatamente derivadas da premissa maior. Por exemplo, “todos os homens são mortais” já tem relação analítica com a proposição “alguns homens são mortais”, mas não “todos os sábios são mortais”, já que o conceito de sábio não está posto. Sua articulação é possível através daquilo que Kant chama de “inferências da razão” que visam unificar em princípios gerais a diversidade das regras do entendimento. Tais princípios, dirá Kant:

24 KNEALE e KNEALE; The development of logic, Oxford University Press, 1962, p. 725 DESCARTES, René; Regras para a direção do espírito26 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, A 297

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Não prescrevem aos objetos nenhum lei e não contém o fundamento da possibilidade de os conhecer e de os determinar como tais em geral; é simplesmente, pelo contrário, uma lei subjetiva da economia no uso das riquezas do nosso entendimento, a qual consiste em reduzir o uso geral dos conceito do entendimento ao mínimo número possível27.

Assim, o conhecimento caminha do caráter condicionado do entendimento ao caráter incondicionado da razão, na medida que este incondicionado contem um fundamento da síntese do condicionado. Kant não faz, desta forma, uma negação simples da Ideia em sua matriz platônica. Antes, lembra como seu caráter transcendente pode funcionar como horizonte regulador, como no caso da liberdade moral como Ideia da razão28. No entanto, a Ideia como totalidade absoluta dos fenômenos é “apenas uma ideia, pois como não podemos nunca realizar numa imagem algo semelhante, permanece um problema sem solução”29. Isto significa, é possível ascender das condições ao incondicionado, mas não é possível descer do incondicionado ao condicionado.

Tal totalidade pode dizer respeito ao sujeito, ao mundo (como série de condições do fenômeno) ou a Deus (como condição de todos os objetos do pensamento em geral). Ao tentar legislar sobre o entendimento, ultrapassando seu caráter meramente regulador, tais Ideias só podem produzir paralogismos e antinomias nas quais tese e antítese entram em conflito sem possibilidade de resolução. Exemplos de tais antinomias são: O mundo tem um começo no tempo e é limitado no espaço/O mundo não nem começo nem limites no espaço, é infinito tanto no tempo quanto no espaço; Toda substância composta é constituída por partes simples/Nenhuma coisa composta é constituída por partes simples; Há uma causalidade pela liberdade/ Tudo ocorre em virtude das leis da natureza; Ao mundo pertence um ser absolutamente necessário/Não há um ser absolutamente necessário que seja a causa do mundo.

É neste contexto de desqualificação que Hegel recupera a dialética ao vincular a experiência crítica dos objetos à consciência crítica que a razão tem de si mesma. Mas tal consciência crítica da razão não está, como em Kant, vinculada a consciência dos limites da legislação da razão. Trata-se, antes, de transformar a experiência crítica dos objetos, ou seja, a consciência do descompasso entre a experiência e os modelos de representação de objeto, em motor de crítica da razão. Essa experiência crítica dos objetos não deve, por sua vez, nos levar a alguma forma de pensamento do imediato. No fundo, vale para Adorno a definição canônica da dialética em Hegel: “espírito de contradição organizado”30, regime de pensar que afirma só ser possível superar as dicotomias produzidas pela razão ao reconhecê-las e levá-las ao extremo, ao invés de fazer apelo a alguma forma de “empirismo feliz” ou de legislação sobre a determinação dos limites intransponíveis da razão. Pois se trata de levar tal tensão até o extremo da contradição, isto para que, neste extremo, o pensar aprenda a não reduzir as contradições à condição de simples manifestação do que não pode ser pensado. Neste sentido, “organizar a contradição” consiste, no fundo, em reconhecer o caráter

27 Idem, A 30628 “Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a grandeza do intervalo que necessariamente separa a ideia da sua realização, é o que ninguém pode nem deve determinar, precisamente porque se trata de liberdade e esta pode exceder todo o limite que se queira atribuir” (KANT; idem, B 374)29 Idem, A 32830 Ver a este respeito ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996

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produtivo da contradição enquanto modo de experiência do mundo. Veremos no decorrer de nosso curso o que isto pode significar.

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