as coletividades anormais

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    Nina Rodrigues. Bico-de-pena de S. M. Lima. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

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    Nina Rodrigues. Bico-de-pena de S. M. Lima. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

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    AS COLETIVIDADES ANORMAIS

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    Senador Renan CalheirosPresidente

    Senador Tio Viana1Vice-Presidente

    Senador Antero Paes de Barros2Vice-Presidente

    Senador Efraim Morais1 Secretrio

    Senador Joo Alberto Souza2 Secretrio

    Senador Paulo Octvio

    3Secretrio

    Senador Eduardo Siqueira Campos

    4 Secretrio

    Suplentes de Secretrio

    Senadora Serys Slhessarenko Senador Papalo Paes

    Senador lvaro Dias Senador Aelton Freitas

    Conselho Editorial

    Senador Jos SarneyPresidente

    Joaquim Campelo MarquesVice-Presidente

    Conselheiros

    Carlos Henrique Cardim Carlyle Coutinho Madruga

    Raimundo Pontes Cunha Neto

    Mesa DiretoraBinio 2005/2006

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    Edies do Senado Federal Vol. 76

    AS COLETIVIDADES ANORMAIS

    Nina Rodrigues

    Prefcio e notas deArtur Ramos

    Braslia 2006

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    EDIES DOSENADO FEDERAL

    Vol. 76O Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em31 de janeiro de 1997, buscar editar, sempre, obras de valor histrico

    e cultural e de importncia relevante para a compreenso da histria poltica,econmica e social do Brasil e reflexo sobre os destinos do Pas.

    Projeto grfico: Achilles Milan Neto Senado Federal, 2006

    Congresso NacionalPraa dos Trs Poderes s/n CEP 70165-900 [email protected]://www.senado.gov.br/web/conselho/conselho.htm

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Rodrigues, Nina.

    As coletividades anormais / Nina Rodrigues. Braslia, Senado Federal, Conselho Editorial, 2006.208 p. (Edies do Senado Federal)

    1. Psicologia social. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 302

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    Sumrio

    Prefcio

    por Artur Ramos

    pg. 9

    A abasia coreiforme epidmicano Norte do Brasil

    pg. 25

    A loucura epidmica de Canudos

    pg. 41

    A loucura das multides

    pg. 57

    Lucas da Feira

    pg. 103

    O regicida Marcelino Bispo

    pg. 111

    Os mestios brasileirospg. 127

    Apndicepg. 139

    NDICE ONOMSTICOpg. 205

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    PrefcioARTURRAMOS

    NINA RODRIGUES no foi apenas o grande professorde Medicina Legal e o fundador de uma Escola Cientfica, a Escola

    Baiana, cujo renome chegou at os nossos dias.Foi muito mais do que isso. O seu esprito, de uma perma-

    nente insatisfao cientfica, dilatou-se em pesquisas e observaesde um enorme raio de ao. Por iniciativa do meu eminente mestree amigo, professor Afrnio Peixoto, foram reeditados vrios traba-

    lhos de Nina Rodrigues, que jaziam em primeiras edies ignoradasou dormiam um sono de muitos anos em pastas intocveis, pelo so-pro da superstio. O pblico ledor no Brasil j travou conhecimen-to com algumas obras fundamentais de Nina Rodrigues, como Os

    Africanos no Brasil, ponto de partida indispensvel aos estudos depsicologia social do negro brasileiro,As raas humanas e a respon-sabilidade penal no Brasil, O alienado no direito civil brasileiro.

    Na Biblioteca de Divulgao Cientfica,

    consegui reeditarO

    Ani-

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    mismo fetichista dos negros baianos. E no entanto, isso apenasuma pequenina parte da enorme bibliografia do mestre baiano*.Toda a sua obra mdico-legal, criminolgica e psiquitrica est aexigir uma reedio definitiva, que ser para breve.

    O nosso esforo de agora consiste em mostrar uma facedas atividades de Nina Rodrigues, ainda desconhecida dos leitoresbrasileiros.

    Nina Rodrigues, j apontado como o iniciador dos estudosde etnografia e psicologia social do negro, no Brasil, j conhecidocomo estudioso de nossos problemas de raa e de cultura, aclama-do como uma das autoridades em criminologia e cincia penal....talvez no fosse lembrado, pela nossa pobre cincia nacional, toesquecida dos precursores, como um dos pioneiros do movimento da

    psicologia coletiva.No entanto o seu nome fora apontado pelos estudiosos eu-

    ropeus, como um dos fundadores da psicologia das multides, umdos criadores da psicologia gregria, normal e patolgica, ao ladodos Rossi, dos Sighele, dos Tarde, dos Le Bon, dos A. Marie... Nahistria das epidemias religiosas, o seu nome citao obrigatria,

    pois foi ele um dos primeiros a realizar observaes e comentrioscientficos sobre fenmenos brasileiros de psicopatologia gregria,trazendo assim contribuies fundamentais nova cincia em ela-

    borao pelos tericos europeus.As pginas dosAnnales mdico-psychologiques, de Pa-ris, dosArchives dAnthropologie Criminelle, de Lio, doArchi-vio de Psichiatria, scienze penali ed antropologia criminale,

    * Equvoco, compreende-se natural, visto ter Nina Rodrigues vivido por muitos anos emSalvador, de mestre Artur Ramos: Raimundo Nina Rodrigues era natural do Mara-nho (Vargem Grande, 1862 - Paris, 1906). Nota desta edio.

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    de Turim, e de outros peridicos cientficos nacionais e estrangei-ros, acolheram os seus estudos sobre vrios aspectos da psicopatolo-

    gia gregria no Brasil. L se encontram as memrias clebres sobreAntnio Conselheiro e o fenmeno de Canudos, sobre as epidemiasde astasia-abasia no Maranho e na Bahia, as loucuras religiosas,domsticas como as de Taubat, ou as mais extensas como as dePedra Bonita, sobre as associaes criminais e o caso histrico deDiocleciano Mrtir e Marcelino Bispo...

    De todos esses estudos, alguns publicados e outros em ela-borao, contava Nina Rodrigues preparar uma obra de conjunto,a que daria o ttulo deAs Coletividades Anormais.

    Em mais de uma oportunidade fez Nina Rodrigues refe-rncia a esse projeto.1 E nas suas pastas do Instituto Nina Rodrigues,

    fui encontrar, em nota manuscrita, o rascunho do plano definitivoda obra que estava assim dividida:

    1 PARTE AS LOUCURAS EPIDMICAS

    Cap. I A loucura das turbas.Cap. II As epidemias de loucura religiosa de Canudos e

    Pedra Bonita.

    2 PARTE AS ASSOCIAES CRIMINAIS NO BRASIL

    Cap. I A anormalidade dos criminosos: o atavismo nadegenerao criminosa. Os assassinos mutiladores.

    Cap. II O crime a dois: Marcelino Bispo e DioclecianoMrtir.

    1 Vide p. ex. Nota 1 do trabalho O Regicida Marcelino Bispo, publicado na RevistaBrasileira, 1889, pg. 21, onde se l: Extrado de um livro em via de preparo, inti-tulado As Coletividade Anormais.

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    Cap. IIIAs quadrilhas brasileiras: sua feio brbara emedieval.

    Cap. IV As associaes criminosas urbanas.No foi possvel encontrar, porm, os manuscritos da obra

    assim planejada. Creio, mesmo, que o mestre no teve tempo deelabor-los de acordo com o plano traado, como aconteceu com osseus trabalhos sobre o negro, que deixou mesmo publicados, emborasem ser em edies definitivas.

    Sabe-se, mesmo, e Homero Pires o declarou no prefcio deOs Africanos no Brasil que havia uma espcie de edio clandesti-na deO Problema da Raa Negra, constituda dos cadernos quasecompletos, impressos por uma livraria da Bahia, faltando apenasalgumas pginas que puderam ser facilmente recompostas. O Ani-mismo fetichista dos Negros Baianos fora tambm publicado nantegra, na antiga Revista Brasileira, e depois editado em francs,na Bahia; meu trabalho consistiu apenas em realizar o cotejo dasduas publicaes, completando assim, o pensamento de Nina Ro-drigues.

    ComAs Coletividades Anormais, porm, a coisa mudade figura. Por mais que pesquisasse, no encontrei nenhuma edioesquecida, nenhum manuscrito sequer esboado.

    Pensei, ento, que pudesse reconstituir o plano do livro,reunindo todas as publicaes de Nina Rodrigues sobre assuntos que

    forosamente estariam includos no objetivo da obra. E a as di-ficuldades foram imensas. Os trabalhos publicados, constando denotas, memrias, artigos, estavam esparsos em vrias publicaesnacionais e estrangeiras, de fins do sculo passado, de datas diferen-tes, e que no puderam ser reunidas no esplio cientfico do mestrebaiano. Este esplio, suas notas e trabalhos, os seus manuscritos, a

    sua biblioteca... se distriburam numa espcie de testamento singu-

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    lar. Grande parte, a maioria deste material, est hoje no InstitutoNina Rodrigues, da Bahia, onde pode ser consultada. Outra parte,

    porm, anda distribuda por vrios amigos e discpulos do mestrebaiano, que a conservam e zelam com carinho de um exclusivismo,

    perfeitamente compreensvel.Tive que percorrer todo esse caminho; consultar as notas

    de Nina Rodrigues, no seu Instituto; folhear velhas revistas, j esgo-tadas e de dificlima consulta, e copiar antigos trabalhos esquecidos;dirigir-me a amigos dedicados e discpulos de Nina Rodrigues busca de material porventura existente... E creio que poderei apre-sentar agora, nesse trabalho de exumao e recomposio,As Cole-tividades Anormais.

    A primeira parte do plano de Nina Rodrigues est comple-ta; l se acham os trabalhos sobre Canudos e Pedra Bonita e aindaacrescentados de sua memria sobre a epidemia de astasia-abasia.Quanto segunda parte, infelizmente s pde ser reconstitudo o ca-

    ptulo sobre o crime a dois; no entanto, o restante de seu plano sobreo atavismo na degenerao criminosa e as quadrilhas brasileiras, seacha implicitamente abordado nos captulos sobre Lucas da Feirae o captulo, infelizmente inaceitvel hoje, sobre a degenerescnciada mestiagem. Nada pde ser encontrado sobre as associaes cri-minosas urbanas.

    Em definitivo, ficou dividido o atual livro nos seguintescaptulos: Abasia coreiforme epidmica no norte do Brasil, pu-blicado no Brasil Mdico de 1890, nos 42, de 15 de novembro, e43, de 22 de novembro; A loucura epidmica de Canudos, pu-blicado na Revista Brasileira, III Ano, tomo XII, pg. 69, de 1de novembro de 1897 e nosAnnales mdico-psychologiques deParis, 1890, maio-junho; A loucura das multides; nova contri-buio ao estudo das loucuras epidmicas no Brasil, publicado nos

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    Annales mdico-psychologiques, janeiro-agosto de 1901; Lucasda Feira, publicado noArchivio di Psichiatria Scienze Penali ed

    Antropologia criminale, Vol. XVI, fasc. IV-V, 1895, sob o ttuloNgres criminels au Brsil; O Regicida Marcelino Bispo, pu-blicado na Revista Brasileira, 5o ano, T. 17o, 1899; Os mestiosbrasileiros, publicado no Brasil Mdico de 1890, nos 7, de 22 de

    fevereiro, 8, de 1 de maro, e 10, de 13 de maro. Em apndice,vo includos o trabalho Coreomania, parecer de uma comisso

    mdica sobre a epidemia de astasia-abasia, na Bahia, e publicadona Gazeta Mdica da Bahia, srie II, vol. VII, abril de 1883 e amemria do prof. Alfredo Brito, sobre Contribuio para o estudoda astasia-abasia neste Estado, seguido da discusso com o professorNina Rodrigues, no 3o Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgiade 1890, memria e discusses publicadas nos Anais do 3o Congres-so Brasileiro de Medicina e Cirurgia, Bahia, 1894, sumrios das

    3a

    e 4a

    sesses.Os captulos sobre Os mestios brasileiros e os trabalhosdo apndice no fariam certamente parte do plano deAs Coleti-vidades Anormais, mas como h, no livro, referncias a idias e

    fatos neles contidos, ligados ao mesmo ciclo de estudos, no hesiteiem inclu-los no presente volume. Particularmente interessante o trabalho do prof. Alfredo Brito seguido da discusso memorvel

    travada com Nina Rodrigues sobre o problema das corias.Alguns dos captulos aqui includos foram publicados emfrancs. No havendo encontrado os manuscritos originais em por-tugus, ou a publicao simultnea em revistas brasileiras, comoaconteceu com outros trabalhos, tive que traduzi-los respeitando omais possvel o estilo e a construo de Nina Rodrigues.

    ***

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    O interesse de Nina Rodrigues pelos problemas de psico-logia coletiva comeou com a observao e o estudo da epidemiade astasia-abasia que grassou no Maranho, desde 1877, depoisna Bahia, em 1882. Uma crena popular, endossada mesmo pelamaior parte dos mdicos filiava as estranhas manifestaes do beri-bri, pela semelhana do quadro clnico nas manifestaes motorasde ambas as molstias, principalmente na marcha. Nina Rodrigues,em dia com os trabalhos da Escola de Charcot, logo viu naquelascuriosas procisses de indivduos a fazerem gestos singulares pelasruas, um parentesco notrio com as procisses danantes das epide-mias dos sculos XVII e XVIII. Separou a epidemia do Maranhodo quadro do beribri, filiando-a histeria.

    Para o mestre baiano, estava-se assistindo a uma epidemiabrasileira de astasia-abasia histrica, de carter coreiforme. Valen-do-se do trabalho, que naquela poca fez furor, de Lannois sobreo grupo das corias, modifica-lhe a classificao, aventando idiasoriginais. Sustenta uma polmica memorvel com o professor Al-

    fredo Brito, que se insurgia contra a extenso, proposta por NinaRodrigues, do termo coria. Foi uma discusso que encheu grande

    parte dos debates no 3o Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgiareunido em 1894, na Bahia, que os leitores podero acompanharno apndice deste volume.

    Hoje, decorridos tantos anos daqueles acalorados debates,feita a reviso completa do quadro das corias, vemos que a razoestava com o professor de medicina legal. Verificou-se que a coria um quadro sindrmico enxertado numa grande variedade de es-tados mrbidos, que vo de doenas neurorgnicas definidas, comoas decorrentes de leses dos ncleos cinzentos da base do crebro,at as chamadas neuroses como a histeria. Sabemos que a prpria

    histeria est hoje cindida, uma grande parte includa nas sndro-

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    mes extrapiramidais. Sendo assim, os sintomas coricos, a que sejuntam os atetsicos, seriam consecutivos a leses do pednculo ce-rebeloso superior, do corpo de Luys, do tlamo ptico, do putmen,do ncleo caudado... (Bonhofer, Head, Wilson, Vogt, Jakob, Hunt,Lafora...).

    Se a prpria histeria pode apresentar comprometimentodos ncleos cinzentos da base, com aparecimento de sintomas co-ricos, se estes podem ser a conseqncia de leses, s vezes inapre-civeis, daqueles centros, h razo em incluir, como queria NinaRodrigues, no seu tempo, a abasia coreiforme no grupo das corias.

    A sua intuio clnica previu o acordo, que, de futuro, havia defazer-se neste ponto.

    No menosprezou, porm, Nina Rodrigues, o papel domeio ambiente, modelando, por assim dizer, o quadro exterior daepidemia de astasia-abasia. Suas pginas, neste sentido, so decisi-vas. Causas sociais poderosas, como a revoluo poltica da transiorepublicana, e conflitos da catequese, entre a religio oficial e ascrenas de origem africana, causas higinicas e orgnicas, de vrianatureza, intimamente associadas, predispuseram as populaes ao da epidemia famosa.

    Uma nica ressalva podemos fazer aqui, ao trabalho domestre baiano. quando faz intervir o slogan da poca: a degene-rescncia da mestiagem como causa precpua dos desajustamentossociais. Essas idias vo especialmente definidas no trabalho Osmestios brasileiros, que inclu, embora incompleto, no presentevolume, para que os leitores apreendessem bem o pensamento deNina Rodrigues neste particular. Essas idias so inaceitveis paraos nossos dias. O pretenso mal da mestiagem um mal de condi-es higinicas deficitrias, em geral. Mais social do que orgnico.

    Se, nos trabalhos de Nina Rodrigues, substituirmos os termosraa

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    porcultura, emestiagem poraculturao, por exemplo, as suasconcepes adquirem completa e perfeita atualidade.

    curioso observar como Nina Rodrigues, preso emboras concepes de sua poca, da escola francesa da degenerescncia edas teorias italianas sobre o atavismo no crime e na loucura, reagia,s vezes, com certa violncia, contra estas concepes demasiado es-treitas. No ensaio sobre Antnio Conselheiro e a loucura epidmicade Canudos, ele mais uma vez destaca o papel do ambiente socialna ecloso da epidemia mstica, assinalando os fatores sociolgicos,como o advento da repblica, os conflitos de concepo poltica, aslutas feudais nos sertes, etc., no primeiro plano das causas deflagra-doras daquele fenmeno.

    Os dois trabalhos sobre Antnio Conselheiro e sobre a re-viso de conceito das loucuras epidmicas, que foram publicados nos

    Annales mdico-psychologiques, constituem a parte mais notveldos estudos de Nina Rodrigues sobre as coletividades anormais. Aest, em grmen, todo um grandioso plano de conjunto sobre os fen-menos de psicopatologia gregria no Brasil. O Maudsley que Eucli-des da Cunha reclamava em 1902, para as loucuras e os crimes dasnacionalidades, j existia desde 1898. Mas nem sequer Euclides oavistou. No parece, mesmo, ter conhecido o seu trabalho, conduzidocom um critrio cientfico to rgido. Nesses trabalhos, discute NinaRodrigues as vrias concepes do que se chamava, na poca, o cont-

    gio vesnico; estuda as vrias formas deste contgio, desde a loucuraa dois, as loucuras familiares at as loucuras epidmicas, seguindo de

    perto as pegadas de Lasgue e Falret, de Rgis, de Marandon de Mon-tyel, de Sighele, de Tarde...; esclarece as dvidas sobre o conceito da

    palavra multido, em psicologia coletiva; aborda o estudo da figurado meneur e dos laos afetivos que o ligam multido; examina casosbrasileiros demeneurs e de epidemias msticas, domsticas e coletivas;

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    discorda de Sighele, com relao parte desempenhada pela loucurana constituio das multides, etc.

    O interessante que, fazendo o exame antropomtrico dacabea do Conselheiro, como antes o fizera na de Lucas da Feira,

    ficara Nina Rodrigues surpreendido de a no haver encontradonenhum dos sinais de degenerescncia que a escola italiana erigiraem regra, no exame antropolgico dos criminosos. Da, ser levado a

    pesquisar as causas sociais e psicolgicas que provocaram o compor-tamento associal do famoso meneur brasileiro.

    No que concerne aos antecedentes hereditrios de AntnioMaciel escreveu Nina Rodrigues sabe-se que descendia de umafamlia cearense valente e belicosa, que durante muito tempo se empe-nhara numa dessas lutas de extermnio, muito freqentes na histriados nossos sertes, entre famlias poderosas e rivais. No decorrer dessaslutas, deram seus ascendentes provas de uma grande bravura, e mui-tas vezes de requintada crueldade. Mas, como temos verificado, essaslutas so a conseqncia do estado social da populao inculta dointerior do pas, no sendo necessrio, para explic-las, recorrer auma interveno vesnica (o grifo meu).

    Ora, o prprio Nina Rodrigues, quem naqueles tempos dergido lombrosianismo, se encarregou de nos dar a chave do problemados msticos, beatos e fanticos dos sertes brasileiros. No h necessi-dade de invocar a interveno de degenerescncia de mestiagem eao nefasta de raas inferiores e outros prejulgados desta natureza,

    para o diagnstico dosmeneurs e das epidemias msticas do Brasil.Nina Rodrigues diagnosticou o Conselheiro, como indivduo degene-rado, portador do delrio crnico de Magnan, ou de psicose siste-mtica progressiva, o que vale dizer de parania sistematizada.

    Hoje d-lo-amos, de preferncia, como um dbil mental

    paranide, havendo urdido o seu delrio com a frmula social do

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    meio inculto onde vivia. o mesmo caso, ainda hoje, dos beatose fanticos do Nordeste,2 portadores de delrios arcaicos (Wahl),desenvolvendo um comportamento que a conseqncia do atrasocultural onde vivem. o que a moderna psiquiatria cultural prova,quando estuda as relaes entre o contedo mental do indivduo

    psictico e o seu grupo de cultura (Schilder, Storch, Dolard, Sa-pir...).

    No trabalho sobre Lucas da Feira, ento a crtica de NinaRodrigues s concepes da escola italiana vai ainda mais longe.

    Do ponto de vista antropolgico, no h anomalias notveis; a ca-pacidade craniana de Lucas excelente e possui caracteres per-tencentes aos crnios superiores, medidas excelentes, iguais s dasraas brancas... E interroga-se, admirado, o professor de medicinalegal: Ser que os estudos sobre os criminosos se achem em falhaaqui? Acha ento indispensvel completar os estudos puramenteantropolgicos dos criminosos com o seu perfil psicolgico, ou melhor

    psicossocial.Mas no caso de Lucas, novas surpresas o esperavam. Ele

    era realmente um negro superior: tinha qualidades de chefe; nafrica talvez tivesse sido um monarca. Revelava no seu cartertraos de alta generosidade. Preso, no denunciou nem compro-meteu seus companheiros. Os seus crimes jamais tiveram aspectosrepugnantes; s assassinava aqueles que o traam. Lucas foi um

    escravo fugitivo, fora da lei, que roubava e atacava, impelidopor motivos sociais. Considerado sob o aspecto tnico e social, oseu comportamento no era absolutamente o de um criminoso, nosentido clssico. Na frica diz Nina Rodrigues ele teria sidoum valente guerreiro, um rei afamado. Era um selvagem domes-

    2 Vide Artur Ramos, Loucura e Crime, Porto Alegre, 1937, pgs. 78-122.

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    ticado que retomou entre ns toda a liberdade de suas atitudes...E conclui o mestre baiano no ser Lucas da Feira um criminosonato; no mximo, um criminoso de hbito, cujas causas psicol-

    gicas no seria difcil traar.A histria de Lucas da Feira histria da maior parte dos

    negros criminosos no Brasil; dos negros escravos fugitivos, que seorganizavam em bando, e furtavam e reagiam polcia como umanecessidade inelutvel. Temos aqui um esboo da histria psicos-social dos quilombos e insurreies negras no Brasil. De um modomais geral, esta tambm a histria dos cangaceiros do Nordeste.Nada de mais antilombrosiano. E vemos, por esse rpido ensaiosobre Lucas da Feira, qual teria sido a posio definitiva de NinaRodrigues, se tivesse levado adiante seu plano de estudo sobre osbandos criminosos rurais e urbanos, no Brasil. Verificamos nos seustrabalhos, como, preso embora, s teorias cientficas do seu tempo, oseu pensamento dificilmente se conciliava com certos postulados daescola italiana, obrigando-o a verdadeiros malabarismos de racioc-nio, para chegar a uma conciliao de vistas. A leitura dos ensaioscontidos neste volume atesta-o bem.

    ***

    Decorridos tantos anos dos primeiros trabalhos de NinaRodrigues sobre a psicologia das multides, o tema tomou um desen-volvimento vertiginoso. Sado do movimento da Vlkerpsycholo-gie de Lazarus, Steintal e Wundt, de um lado, e das escolas francesae italiana da psicologia coletiva (Sighele, Rossi, Le Bon, Tarde...)do outro lado, foi-se criando uma cincia mais vasta, paralela sociologia e psicologia, que tomou o nome de Psicologia Social.Vindos diretamente de Gabriel Tarde, ingleses e norte-americanosderam um corpo de doutrina nova disciplina. Ross e Baldwin,

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    na Amrica do Norte, William McDougall, na Inglaterra, foramos pioneiros dessa cincia da psicologia social, que hoje conta no seuativo um nmero aprecivel de cultores.3

    Dentro em pouco, a psicologia coletiva seria apenas umaparte, uma diviso da psicologia social, disciplina esta ltima, bemmais vasta e mais complexa, que estudaria: a) as bases psicolgicasdo comportamento humano; b) a interao mental dos indivduosna vida social; c) os grupos socioculturais, a personalidade dentro doseu grupo de sociedade e de cultura.

    A psicologia coletiva, ou das multides, estudaria apenas amultido considerada nos seus caracteres irredutveis, isto , os indi-vduos reunidos em contato face a face, e guiados por um meneur.No curso que professei no perodo 1935-1937, na Universidadedo Distrito Federal, inaugurando entre ns a cadeira de PsicologiaSocial, iniciei os alunos a fazer a distino indispensvel entre psi-cologia coletiva e psicologia social, aquela se incluindo nesta, entremultides e pblicos, meneur e lder, etc. Do material de estudoque constitui o objeto da psicologia social publiquei um volume,resultado das aulas do ano letivo de 1935. A psicologia coletiva,estudando o comportamento das multides, indagando dos fen-menos de psicopatologia gregria, analisando a personalidade domeneur, classificando as formas das multides e estudando-lhe asmanifestaes clnicas... comportaria todo um curso, paralelo ao da

    psicologia social, que realizei no ano de 1937, at quando a ltimareforma da Universidade do Distrito resolveu suprimir a cadeira dePsicologia Social, dos currculos daquela Universidade. O progra-ma de psicologia coletiva tinha ficado assim organizado:

    3 Vide, para uma exposio do assunto: Artur Ramos, Introduo Psicologia Social,Rio, 1936.

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    I A psicologia coletiva ou das multides, parte da Psico-logia Social. Objeto, relaes.

    II A psicologia tnica, a psicologia racial, a demopsi-cologia.

    III Conceito de multido. Multido e pblico.IV A psicologia coletiva e a escola italiana: Sighele, Ros-

    si, etc.V A escola francesa: Tarde e a interpsicologia. Le Bon e

    a psicologia das multides.VI Teorias do comportamento coletivo: organicistas, an-tropologistas e psiclogos.

    VII Os processos psicolgicos da multido.VIII Classificao das multides.IX Multides msticas, polticas, guerreiras, etc.

    X Greves e revolues. A multido revolucionria.

    XI A multido delinqente.XII A multido mrbida: as epidemias psquicas.XIII A loucura induzida; o contgio mental; as loucuras

    familiares.XIV Convulsionrios e demonopatas medievais.XV Crazes e fads.XVI Lderes emeneurs. Classificao dosmeneurs.

    XVII A psicologia das multides no Brasil.XVIII Multides criminosas. O banditismo no Nordes-

    te. Jagunos e cangaceiros.XIX Psicologia dosmeneurs criminosos: Antnio Silvi-

    no, Lampio, etc.XX Multides msticas no Brasil: Canudos, Juazeiro,

    Pedra Bonita, Contestado...

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    XXI Beatos e fanticos: Antnio Conselheiro, Santa dosCoqueiros, Beato Loureno, etc.

    XXII Estudos de Nina Rodrigues e Euclides da Cunha.XXIII Curandeiros e msticos urbanos no Brasil. O pa-

    pel da imprensa. Crazes e fads contemporneos no Brasil.XXIV Multides revolucionrias. Psicologia das revolu-

    es no Brasil.XXV A psicologia das multides no romance brasileiro.

    Transcrevo aqui este programa, que foi desenvolvido noano de 1937, para mostrar o desenvolvimento que tomou em nossosdias o estudo da psicologia coletiva. A tarefa que teramos de empre-ender hoje ser muito maior do que no tempo de Nina Rodrigues.No s na exposio terica como nas aplicaes prticas. Comoestamos distanciados das teorias e polmicas dos tempos de Sighelee Le Bon! Novos mtodos de pesquisa, novas hipteses de trabalho

    vieram enriquecer a psicologia coletiva. Teorias psicossociolgicascontemporneas, desde o comportamentismo at a psicanlise e aGestalt (principalmente a topopsicologia de Kurt Lewin) vieramtrazer luzes inesperadas compreenso do fenmeno da multido edo meneur.

    De outro lado, temos um campo imenso de observaopara a psicologia coletiva, na histria social brasileira. Impe-se

    um trabalho de conjunto sobre os fenmenos nacionais de psicopa-tologia gregria, desde os fatos histricos de psicoses epidmicas atos atuais de psicologia das multides criminosas e msticas dos ser-tes brasileiros, dos fenmenos, de flagrante recenticidade, de sec-tarismo poltico com seusmeneurs predestinados, os seus messiascopiados de modelos contemporneos, novos Dioclecianos Mrtire Marcelinos Bispo, material opulento de observao e registrocientfico.

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    O que Nina Rodrigues apenas iniciou comporta hoje lar-gos volumes de observao e exegese. A nossa modesta tentativa naUniversidade do Distrito Federal no foi infelizmente compreen-dida, sendo supressa uma possibilidade de reconhecimento oficialde estudos desta natureza. Restam as iniciativas privadas. E umadestas que intentamos com a publicao de velhas pginas esqueci-das de Nina Rodrigues, reunidas neste volume.

    ***

    Quero expressar todos os meus agradecimentos a todosaqueles que me auxiliaram na organizao deste volume: ao pro-

    fessor Afrnio Peixoto e Exma. viva Nina Rodrigues, que meproporcionaram todas as facilidades na preparao dos originais;ao Dr. Lus Sodr, que gentilmente me forneceu cpias datilografa-das dos trabalhos de Nina Rodrigues publicados em velhos nmerosesgotados do Brasil Mdico; ao Prof. Aristides Novis, da Bahia,

    que me facilitou a consulta s colees da sua, por muitos ttulos,renomada Gazeta Mdica da Bahia; ao Dr. Homero Pires, que meconfiou, ao estudo, traduo e cotejo, alguns trabalhos que perten-ceram ao esplio de Nina Rodrigues; a outros dedicados amigos daBahia e do Rio, intermedirios nos entendimentos havidos, e nasconsultas s colees bibliogrficas do Instituto Nina Rodrigues e daFaculdade de Medicina da Bahia.

    Um registo de especial agradecimento, a minha mulher,que prestou auxlios inestimveis, na organizao dos originais, nostrabalhos de tradues e cpias datilografadas, na reviso das provasdeste volume.

    Rio, janeiro de 1939.

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    A abasia coreiforme epidmica no Norte do Brasil1

    SE DVIDAS ainda podem subsistir hoje sobre a natureza das

    afeces coreomnicas e convulsionrias que assolaram a Europa para aIdade Mdia, compreendendo como que em um s e mesmo convulsionargigantescos pases inteiros e vastas regies, no h atualmente a menordiscrepncia entre os autores em considerar de todo ponto aplicvel smanifestaes nervosas epidmicas dos tempos modernos a interpretaoproposta pelo professor Charcot e entrevista nos quadros e documentos,frutos que daquelas pocas chegaram at os nossos dias.

    a histeria que, operando em um meio favoravelmente predis-

    posto, se irradia e espraia com o auxlio eficaz da imitao em torno de umfoco acidental em que muitas vezes circunstncias inteiramente fortuitascongregaram e reuniram alguns casos isolados de uma qualquer das mani-festaes mais inslitas da grande nevrose. Para este destino esto admira-velmente aparelhadas as manifestaes monossintomticas.

    IHISTRIA

    1 Comunicao ao 3o Congresso Mdico Brasileiro reunido na Bahia a 15 de outubrodeste ano [1890].

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    Estes fatos e dedues que a escola da Salptrire tornou de co-

    nhecimento vulgar, to verdadeiros das pequenas epidemias circunscritas,quais as observadas por Davi em 1880 nos Estados Unidos e por Bougal em1882 em Ardeche, como das epidemias coreiformes de propores maiores,a do Brasil por exemplo, que, posto em esboo de linhas mal seguras, bempodia rememorar pela sua extenso as coreomanias dos tempos idos.

    A histria da epidemia coreiforme do Brasil, que do lugar poronde se iniciou nesta cidade, recebeu na Bahia o nome de molstia de Ita-pagipe, acha-se ainda hoje reduzida ao captulo que dela escreveu a comis-

    so mdica, nomeada em 1883 pela cmara municipal para estud-la aqui.Entretanto muito mais dilatados foram os limites da sua rea

    geogrfica real, pois compreendeu diversas provncias do norte do ex-im-prio, atingindo o mximo de intensidade na Bahia e no Maranho. Amanifestao epidmica deste ltimo Estado precedeu mesmo a da Bahia,que s teve lugar em 1882, quando desde 1877 reinava j a molstia comforma epidmica na cidade de S. Lus.

    Dos fatos que se passaram ento no Maranho no ficou do-

    cumento algum cientfico. Mas vive ainda grande nmero daqueles que ostestemunharam e embora muito atenuados e quase de todo reduzidos dasua grandeza primitiva, prolongam-se ainda at hoje, de modo a permitirque se reconstrua e complete a sua histria. No era eu ainda mdico,quando os presenciei; mas o espetculo estranho que oferecia por aquelapoca a pequena cidade de S. Lus, com as ruas diariamente percorridaspor grande nmero de mulheres principalmente, amparadas por duas pes-soas e em um andar rtmico interrompido a cada passo de saltos repetidos,

    genuflexes e movimentos desordenados, me deixou uma impresso pro-funda e duradoura que, ainda por cima mais se devia revigorar e fortalecercom a observao, poucos anos depois, das mesmas cenas aqui na Bahia.

    Deixando de parte por enquanto as restries que exigem e oscomentrios que farei s interpretaes cientficas dadas aos fatos nesse do-cumento, cedo espao a uma carta do distinto prtico e respeitvel colegado Maranho, Sr. Dr. Afonso Saulnier de Pierreleve, a quem um largotirocnio clnico de mais de 30 anos confere sobeja competncia em mat-ria da patologia maranhense. Nessa carta, o Dr. Afonso Saulnier distingueperfeitamente a coria epidmica da coria minor, coria de Sydenham.

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    Prezado colega e amigo Dr. Nina Rodrigues.

    Pede-me o colega alguns esclarecimentos sobre a endoepide-mia corica que apareceu nesta cidade em 1878 e tambm pergunta-me seantes daquela poca observei casos espordicos dessa molstia. Vou fazer opossvel para satisfazer o seu pedido.

    Desde 1856, poca em que principiei a clinicar nesta cidadeat hoje, tenho sempre observado vrios casos de coria, molstia que alisno freqente aqui.

    A respeito, porm, da endoepidemia de 1878, devo dizer-lhe

    que h mais de 20 anos, tenho observado nesta cidade uma molstia quepor vezes toma as propores de uma verdadeira epidemia apresentandoacidentes coricos. Esta singular molstia costuma desenvolver-se no prin-cpio do inverno, poca em que tambm recrudesce o beribri entre ns. bom notar a coincidncia.

    freqente nessa poca encontrarem-se transitando pelas ruasdesta cidade muitos doentes que prendem a ateno pela singularidadedo andar. Uns arrastam os ps e progridem como se estivessem sofrendo

    de paralisia incompleta dos membros inferiores; outros atiram as pernasno podendo coordenar o movimento dos msculos, como acontece aosque sofrem de ataxia muscular progressiva; outros, enfim, apresentam umamarcha incerta, irregular, saltitante, como se fossem verdadeiros coricos;todos, porm, a cada passo fazem grandes genuflexes por lhes faltar afora precisa para sustentar o peso do corpo. Os movimentos coreiformess se manifestam nos membros superiores, raras vezes estendem-se pelotronco, nunca os encontrei nos msculos do pescoo e da face. Esses movi-mentos dos membros inferiores cessam quando os doentes esto deitadosou dormindo.

    Quase todos esses doentes so mulheres. Nunca observei essa do-ena em velhos. A raa de cor sem dvida muito mais atacada que a branca.

    A anemia constante em todos eles.A molstia aparece muitas vezes de repente, outras vezes pre-

    cedida de incmodos disppticos bem salientes. Nunca observei febre. Arespirao, normal nos primeiros dias, torna-se pouco a pouco dispnicae na regio precordial observam-se palpitaes fortes do corao e soprosanmicos bem pronunciados.

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    Nota-se a dormncia pelo corpo e formigamentos nas extremi-

    dades inferiores, onde freqentemente observa-se a princpio um ligeiro ede-ma que propaga-se medida que a molstia vai aumentando. A compressodos msculos e das apfises espinhosas das vrtebras determina dores maisou menos profundas. A fora muscular diminui consideravelmente.

    Este estado pode durar muitos dias at que o beribri se ma-nifeste com o cortejo dos seus sintomas. Destes doentes, os que se retiramlogo no comeo da molstia curam-se sempre; dos que permanecem nofoco do mal raros so os que se curam, quase todos falecem com beribri

    confirmado de forma mista. Com o desenvolvimento do edema cessamos tremores, O povo, pela experincia adquirida, denomina esse mal deberibri de tremeliques.

    , pois, minha opinio que a endoepidemia, sobre a qual ocolega me consulta, no passa de uma forma do mal que flagela este Estadoh tanto tempo, e para dar um nome apropriado a essa singular forma, achamaria de coria beribrica.

    Escrevo estas ligeiras consideraes ao correr da pena e peo-

    lhe portanto que faa as correes precisas na forma, caso esses reparospossam ser-lhe de alguma utilidade.Vosso, etc.,Dr. Afonso Saulnier de Pierreleve.S. Lus do Maranho, 1890.

    Esta descrio, ligeira e superficial, mas suficientemente clara,inspirou-se com certeza na observao dos fatos. Somente o ilustrado cl-

    nico confundiu em uma entidade mrbida duas molstias distintas, o be-ribri e a coria epidmica, que de ordinrio se oferecem sua observaointimamente associadas.

    Os prticos que esto habituados a observar as duas molstiasisoladas, facilmente faro a parte que na descrio cabe a cada uma delas.

    Posto que tivesse referido ao ano de 1878 na carta a que combondosa aquiescncia prontamente respondeu o Sr. Dr. Saulnier Pierrele-ve, verifiquei posteriormente em jornais noticiosos e polticos de S. Lus,daquela poca, que j em 1877 a molstia era francamente epidmica, jconfundida e provavelmente associada ao beribri.

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    A histria da manifestao epidmica na Bahia, observada 4 ou 5

    anos depois, repousa em documentos circunstanciados que desde ento es-to dados publicidade. Se neles a contribuio para o estudo clnico pou-co considervel, a parte puramente histrica ficou desde logo concluda.

    No nmero de outubro de 1882, da Gazeta Mdica da Bahia,l-se no noticirio, sob o ttulo de molstias reinantes: Uma molstia sin-gulartem sido observada h alguns meses no subrbio de Itapagipe, maisraramente na cidade. Os sintomas principais, ou pelo menos os mais apa-rentes so movimentos coreiformes primeira vista, mas que parecem an-

    tes depender de sbita fraqueza de certos grupos de msculos de um ou deambos os membros inferiores, ou do tronco.

    As pessoas afetadas depois de caminharem naturalmente emaparncia por algum tempo, dobram de repente uma ou ambas as pernas,ou o tronco para um dos lados por alguns minutos, como se fossem co-xos, paralticos ou cambaleassem, continuando depois a marcha regular.Entretanto no caem e podem subir e descer ladeiras e escadas sem grandedificuldade.

    Algumas sofrem h meses com mais ou menos intensidade;mas alm destas perturbaes freqentes dos movimentos durante a mar-cha, no acusam alterao notvel nas demais funes.

    Contam-se j, segundo ouvimos, para mais de 40 casos destasingular molstia, originada em um dos mais saudveis subrbios e mani-festando-se em pessoas de um e outro sexo e pouco adiantadas em idade.

    Em maro do ano seguinte (1883) foi publicado no no 10 daGazeta Mdica da Bahia, sob o ttulo de coreomania, o relatrio de uma

    comisso mdica nomeada pela Cmara municipal para estudar a molstiade Itapagipe, j ento generalizada por toda a cidade.2

    Esta comisso, composta de distintos clnicos desta cidade, de-pois de minucioso exame, concluiu que a molstia reinante em Itapagipeera a coria epidmica sob suas mais benignas formas.

    O carter epidmico, atribudo principalmente ao contgio porimitao, teve por motivos as circunstncias enumeradas no seguinte tpi-

    2 Publicado em apndice no presente volume (A. R.).

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    co do relatrio: As primeiras manifestaes conservaram-se durante algum

    tempo limitadas, circunscritas; logo porm, que a afluncia de moradorese visitantes quele bairro foi crescendo com a aproximao da festa, logoque a molstia foi chamando a ateno sobre si, os casos foram se multi-plicando e o mal estendeu-se como atualmente o conhecemos. O trnsitode pessoas atacadas pelas ruas daquele arrabalde e mais tarde pelas ruas dacidade, o ajuntamento delas, quer na fbrica de fiao onde trabalhavammuitos dos enfermos, quer nas ruas contguas capela do Rosrio onde re-sidia o maior nmero, alm disso a circunstncia de se acharem em Itapa-

    gipe pessoas convalescentes de diversas molstias e conseguintemente emestado de maior impressionabilidade, e de mais convergindo para aquelalocalidade em uma srie de festas, a maioria da populao da cidade, queem tais dias sempre se entrega a toda a sorte de fadigas de corpo e impres-ses de esprito, tudo isso concorreu para a disseminao da molstia e paradar-lhe o carter epidmico.

    A comisso dispe, por ordem de freqncia, as formas clnicasobservadas na seriao seguinte: maleatria, saltatria, vibratria, rotat-

    ria, procursiva, e nega qualquer influncia etiolgica intoxicao ou in-feces possveis.Nos conselhos dados populao preconiza o isolamento, pros-

    crevendo a visita e freqncia das pessoas atacadas, assim como probea estas longos passeios que bem podiam levar a molstia aos lugares poronde passassem. Sobriedade nos exerccios corpreos para evitar a fadigamuscular, e distraes moderadas que dissipassem o estado apreensivo tofavorvel ecloso da molstia, eram os outros conselhos a que mandavaassociar uma alimentao tnica e regulada.

    Manifestaes epidmicas, muito menos importantes, se deramtambm em outros Estados do Norte, na cidade de Belm no Par, porexemplo, segundo me informam alguns colegas. Ali como no Maranhoandou a coria epidmica associada ao beribri.

    Em todos estes pontos, por via de regra a abasia coreiforme cir-cunscreveu-se s capitais e subrbios e, segundo creio, s como casos espor-dicos foi observada em algumas pequenas cidades do interior das provncias.

    Atualmente o carter epidmico geral desapareceu de todo. Ca-sos espordicos, pequenas epidemias circunscritas, familiares s vezes, so

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    ainda observadas uma vez por outra. A carta do Dr. Afonso Saulnier re-

    fere-se a manifestaes anuais da molstia no Maranho com um cunhode endemicidade. Na Bahia, em certas festas populares, principalmentereligiosas, no raro ver-se a presena de um corico provocar a molstiaem um certo nmero de pessoas. Uma vez por outra coricos vo ainda emromaria ermida de Santo Antnio da Barra Mansa buscar na sugesto daf religiosa a cura dos seus sofrimentos. Em todos estes casos so as mani-festaes de extrema benignidade e de todo transitrias.

    Lento foi o decrescimento da epidemia para chegar ao estado

    normal. Na Bahia, o mximo de intensidade correspondeu a fins de 1882e aos dois anos seguintes, 1883 e 1884.Esta epidemia, apesar da sua extenso, parece ter-se circunscrito

    ao Norte do pas. No me consta que no Sul se tenha observado a molstiaou coisa que lhe fosse equivalente. Do Rio de Janeiro, a afirmao podeser categrica, pois o conhecimento do passado epidemiolgico daquelacidade sobe dos nossos dias a mais de sculo. Por a se pode tambm in-ferir que a epidemia que historio no teve predecessora nos nossos anais

    patolgicos.Se foram epidemias isoladas e inteiramente independentes, asdos diversos Estados, ou se se subordinam umas s outras, cousa essa queatualmente se torna impossvel responder com bons fundamentos.

    II

    NATUREZA

    Foi seguramente o Dr. Sousa Leite, quem pela primeira vez em

    1888 capitulou de astasia-abasia casos da molstia epidmica da Bahia.Desconhecendo, entretanto, o relatrio da comisso mdica pu-blicado desde 1883, este autor avanou com manifesta injustia que osmdicos desta cidade haviam desconhecido a natureza histrica da afeco,tomando-a pela coria de Sydenham.

    A leitura do relatrio suficiente para desfazer o engano. Nopodia ser mais positiva a filiao da molstia de Itapagipe, ao grande grupodas corias epidmicas, coria maior.

    Impossvel seria, porm, exigir dos mdicos da Bahia que j em1883 classificassem de astasia-abasia a manifestao histrica observada

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    nesta cidade, quando, como diz o professor Charcot, s nesse ano publi-

    cou ele em colaborao com Richer naMedicina Contempornea, dirigidapelo professor Semola, o primeiro ensaio de uma descrio regular daquelaafeco, ainda sob o ttulo Sur une forme speciale dimpuissance motricedes membres inferieurs par dfaut de coordination relative la station et la marche, e s alguns anos depois, em 1888, foram empregados pelo Dr.Blocq no seu esplndido trabalho os termos astasia e abasia que lhe sugeriraGirard, do Instituto.

    Tomando a denominao de abasia coreiforme, j hoje clssica,

    para designar a molstia epidmica, s tive em mira consagrar a preponde-rncia que na epidemia assumiu esta forma sobre todas as outras manifes-taes histricas.

    Todos os que tiveram ocasio de observ-la, reconheceramcertamente primeira vista, na seguinte descrio magistral do professorCharcot, a nossa coria epidmica,

    Em uma doente, astsica e absica ao mesmo tempo, que ob-servei em 1886, e este fato se tem reproduzido em muitos outros indiv-

    duos da mesma espcie que encontrei depois, a posio ereta era a cadainstante perturbada por flexes bruscas da bacia sobre as coxas e das coxassobre as pernas, muito semelhantes s que se produzem quando, estandouma pessoa de p e firme, recebe sem esperar uma pancada brusca nascurvas; este fenmeno recorda tambm os effondrements (giving way of thelegs), to freqentes no perodo pr-atxico do tabes.

    No andar tais desordens atingem o mximo. De fato, a cadapasso que a doente d, diz a observao, ela se abaixa e se ergue alternati-

    vamente por movimentos bruscos e rpidos e medida que progride, essesmovimentos (secousses) se mostram mais e mais violentos, de mais a maisprecipitados. Momentos h em que, vista da intensidade deles, pareceque a doente vai cair por terra; v-se- ento dar alguns passos para trs amodo de pessoa que tendo esbarrado de encontro a um obstculo buscarecobrar o equilbrio. Os movimentos (secousses) de que se trata, rtmicoscomo a marcha normal cuja caricatura, por assim dizer, eles so, no con-sistem somente em movimentos de abaixamento e elevao do tronco.

    Procurando analis-los, verifica-se desde logo o que se segue: nomomento em que a doente se abaixa, as coxas dobram sobre as pernas e o

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    tronco sobre a bacia; a cabea experimenta em relao ao tronco um movi-

    mento de flexo e de rotao e os antebraos dobram-se por seu turno sobreos braos. Parece claro que so esses movimentos de flexo, exagerados ebruscos, dos membros inferiores, que substituindo-se aos da marcha normal,ameaam a cada passo o equilbrio, ocasionam os movimentos do tronco, dacabea, dos membros superiores e tambm esses movimentos de recuo, queat certo ponto podem ser considerados como atos de compensao.

    A doente em questo, como todas as representantes do grupo,podiam sem a menor dificuldade saltar de p juntos, sobre um p s, andar

    de quatro patas, etc.Nesta forma, os movimentos anormais dos membros inferiores

    quando o indivduo est de p, ou quando anda, lembram perfeitamen-te, em razo da amplitude, as grandes gesticulaes de certas corias; masimediatamente se distinguiriam logo que a doente deixasse de se conservarem p, ou de andar.

    Em caso algum, se manifestam eles, estando a doente sentadaou deitada. Na realidade em tais casos, esto eles exclusivamente ligados ao

    mecanismo da posio em p e da marcha, de conformidade com a defini-o da astasia e abasia.Para caracterizar os casos deste grupo, eu proporei que se adote

    a denominao de abasia coreiforme (tipo de flexo).Como era fcil prever, as manifestaes histricas nesta epide-

    mia no se limitavam abasia coreiforme pura. A comisso mdica referecasos de verdadeira coria rtmica e tive ocasio de observar diversos casosda forma aleatria. Porm, sobretudo com grande freqncia viam-se asso-

    ciados abasia coreiforme fenmenos estranhos e de todo ponto anlogosaos espasmos saltatrios. O Dr. Sousa Leite os menciona; mas em pocaanterior sua observao, e principalmente no Maranho, foram muitofreqentes.

    Doentes que amparados por duas pessoas progrediam lenta-mente no seu andar rtmico, estancavam de repente e punham-se a saltarsucessivamente no mesmo lugar, at que no fim de algum tempo aqueleestado cedia e prosseguiam a marcha por momentos interrompida.

    Assim devia ser. A astasia e a abasia so apenas manifestaesde uma nevrose complexa, e embora freqentemente monossintomticas,

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    podia se prever que a nitidez e a pureza dos primeiros casos muito se viriam

    a apagar com os estudos subseqentes. As novas classificaes principiam aconfirmar essa previso racional.

    Como era natural, a epidemia tornou entre ns esses fatos de ob-servao diria, sendo muito freqentes, na Bahia como no Maranho, encon-trar ao lado de sintomas ordinrios da pequena histeria, ataques convulsivosou outros acidentes, episdios mais ou menos francos da abasia coreiforme.

    Deve-se considerar a abasia coreiforme uma coria histrica?Sustentei esta opinio nas discusses que o estudo da afeco provocou no

    terceiro congresso mdico brasileiro a que foi apresentado esse trabalho. exato que o carter por excelncia da astasia-abasia, desapa-

    recimento completo de todo o movimento no estado de repouso, pareceexcluir a abasia coreiforme do nmero das corias, porquanto contrariaele um dos trs elementos exigidos at aqui para a constituio do gruponosogrfico das afeces coreiformes, a saber: movimentos de grande raio,movimentos involuntrios embora conscientes, e persistncia dos movimentosainda em estado de repouso.

    Mas, se se atender por um lado a que, afora esse fato nico, aabasia coreiforme uma verdadeira coria rtmica, como o indica o qua-lificativo empregado pelo professor Charcot para designar a espcie, e sese atender por outro lado a que o carter da persistncia dos movimentoscoreiformes, no s tem oferecido modificaes como faltado mesmo emmuitas outras afeces tidas por verdadeiras corias; no me parece que sejalcito separar a abasia coreiforme do grupo das corias rtmicas histricas.

    Efetivamente, o Dr. Lannois j havia feito notar que um certo

    nmero de casos de coria rtmica, observados por Charcot e outros, exigiaa admisso de um grupo parte, pois que esta variedade se manifesta poracessos, espontneos ou provocados, no intervalo dos quais a tranqilida-de pode ser absoluta, ao passo que no primeiro caso (verdadeiras coriasrtmicas), a coria rtmica regularmente contnua, cortada somente porexacerbaes passageiras.

    Alm disso, Lannois coloca no grupo das corias rtmicas propria-mente ditas, ao lado da coria rtmica histrica, ou grande coria, os espasmosreflexos, saltatrios em que os saltos involuntrios s se manifestam quandoos ps tocam o cho e no existem em qualquer outra circunstncia.

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    Mais que tudo, porm, o Dr. Lannois transcreve uma observao

    de Paget, de coria rtmica saltatria em que os movimentos desapareciamdesde que a doente se sentava, embora fosse ento presa de um sentimentode angstia que a obrigava a levantar-se logo.

    Creio, portanto, que conviria subdividir o grupo da grande co-ria rtmica por acessos e coria descontnua, ou abasia coreiforme.

    Teramos, assim, a concepo geral do grupo ou das corias deLannois, modificado por este modo:

    Corias, rtmicas e arrtmicas.

    A. Corias arrtmicas:

    I. Coria de Sydenham, coria mole, coria da gravidez, coriados velhos, coria hereditria.

    II. Hemicoria e hemiatetose sintomticas, atetose dupla.

    B. Corias rtmicas:

    I. Corias epidmicas; dana de S. Guido, Farentismo, tigrtico,

    jumpers, revivals, etc.II. Corias rtmicas propriamente ditas:a. Coria rtmica histrica, ou grande coria compreendendo:

    a coria rtmica contnua, a coria rtmica por acessos e a coria rtmicadescontnua, ou abasia coreiforme.

    b. Espasmos reflexos saltatrios.

    III

    CAUSAS

    No fcil enumerar com plena certeza todas as causas queatuaram com eficcia no sentido de conferir um carter epidmico a estasmanifestaes histricas.

    O papel salientssimo que teve nela o contgio por imitao foisuficientemente apreciado quer pela comisso mdica da Bahia, quer peloDr. Sousa Leite.

    Parece-me, porm, que ficou de aplicao muito restrita e locala apreciao das causas que prepararam o terreno, sem o qual de nenhumefeito teria sido a imitao, o que naturalmente foi devido a que o Dr.

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    Sousa Leite observara casos isolados e a comisso mdica s se podia referir

    quela parte da epidemia cujo estudo lhe havia sido cometido.Presente-se, entretanto, que para estabelecer um lao comum

    entre essas epidemias esparsas pelas diversas provncias, necessrio re-montar a causas mais gerais e admitir que pairava no ambiente brasileiroalguma coisa de anormal que, atuando sobre a populao do pas de modoa enfraquecer o organismo e exaltar as faculdades psquicas, a predisps aponto de casos isolados de abasia coreiforme poderem tomar de um mo-mento para outro as propores de uma epidemia to extensa, embora

    muito benigna.Em outro trabalho e a propsito de outra molstia, eu avancei

    que na minha opinio essa epidemia devia buscar a sua origem em influn-cias mesolgicas de ordem fsica e nos fenmenos sociais complexos que seprendem fase histrica porque passa o nosso pas.

    A revoluo poltica a que hoje assistimos teve necessariamenteo seu perodo de preparo e elaborao. Ela, que se assinalou pela aceitaotcita e sem protesto, com que foram recebidas todas as grandes reformas

    bruscamente realizadas, demonstra forosamente que a nao no tinhavida calma e regular. E, quer se interpretem os fatos no sentido de umacondenao e surda revolta de longa data preparada contra os erros e de-feitos das instituies anteriores, quer no sentido de um indiferentismo edescrena necessariamente mrbidos, porque partiam de um povo aindano bero, do ponto de vista mdico em que me coloco tm eles um valorsensivelmente igual. Ainda mais, ningum poder apartar da explicao detodos os acontecimentos da poca, a perniciosa influncia do escravismo

    que, depois de ter concorrido para corromper os costumes e entibiar osnimos, devia trazer com a vitria do abolicionismo as suas desastradasconseqncias econmicas.

    O terreno no estava menos bem preparado pelo lado religioso.Sabem os que estudam a nossa sociedade com observao imparcial quea populao brasileira no prima pela pureza e segurana das crenas reli-giosas. O fato tem a sua explicao racional e cientfica no mestiamento,ainda em via de se completar, de um povo que conta como fatores compo-nentes raas em graus diversos de civilizao por que se achavam ao tempode fuso em perodos muito desiguais da evoluo sociolgica. Da resul-

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    tou que no Brasil o monotesmo europeu teve de entrar em conflito com

    o fetichismo africano e a astrolatria do aborgine. Por isso diz com razoo Dr. Slvio Romero que ainda na psicologia estamos longe de uniformi-dade. Para mostrar como entre ns a irreligio acotovela-se a cada passocom o fanatismo fetichista, no precisa mais do que recordar as prticassupersticiosas que mesmo nesta cidade lavram com intensidade nas classesinferiores e a influncia mais ou menos direta nos costumes do nosso povo,de usanas africanas, ainda mal dissimuladas na diferena do meio.

    Nas classes superiores, estamos habituados a ouvir profligar dia-

    riamente as conseqncias desastradas dos mtodos de educao seguidosno pas.Se agora, destas influncias que so de carter e aplicao geral

    a todo o Brasil, se aproximar o fato de se ter circunscrito a epidemia aoNorte, involuntariamente se ter invocado todos os fatores da decadncianotria em que se acha esta poro da Repblica.

    Em primeiro lugar o clima abrasador que, com a mesma libera-lidade, prodigaliza s populaes do Norte a indolncia e a anemia.

    Em segundo lugar, a repercusso muito mais forte das revolu-es poltico-sociais, por isso mesmo que estavam menos aparelhadas parareceb-las e ofereciam menor resistncia. E entre elas figuram o pauperis-mo, a falta de iniciativa, a emigrao, o desalento, a descrena, a decadn-cia enfim.

    Em terceiro lugar, as condies sanitrias pouco lisonjeiras dasduas cidades em que a epidemia atingiu maiores propores. A comissomdica no esqueceu a influncia de convalescentes para Itapagipe como

    causa da extenso da epidemia na Bahia.No foi debalde que, no Maranho como na Bahia, se confun-diu a coria com o beribri. Como o Dr. Afonso Saulnier, ainda o ano pas-sado o Conselheiro Rodrigues Seixas afirmava na Academia Nacional deMedicina do Rio de Janeiro, que o treme-tremeda Bahia, que no mais doque coria epidmica, era uma forma apenas do beribri, o beri-beride.Esta opinio teve realmente curso aqui na Bahia.

    O erro de apreciao que, partindo da grosseira semelhana entrea marcha em steppagedo beribri e as desordens motoras rtmicas da co-ria epidmica, confundiu e unificou os dois estados mrbidos, tornou-se

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    no Maranho uma crena geral para o povo, como mais tarde a coincidn-

    cia das duas molstias em um mesmo indivduo devia induzir aos prpriosmdicos.

    Ora, prtica corrente entre ns aconselhar passeios higinicosaos beribricos e freqente portanto nas recrudescncias da epidemia en-contr-los pelas ruas. Em virtude deste hbito, os absicos supostos berib-ricos foram conduzidos em exibio pela cidade, tornando-se uma ocasiofreqente de contgio por imitao e concorrendo por conseguinte paraincrementar consideravelmente a epidemia.

    Por fora exclusivamente desta sugesto enraizada, creio eu, seexplicam as coincidncias das manifestaes da coria com a poca habitualdo ano em que regularmente aparece o beribri, pois no foi sem razo quea comisso mdica da Bahia, a propsito da influncia que exerceram nasepidemias da Idade Mdia os vagabundos que exploravam a caridade p-blica simulando a coria, julgou oportuno citar o seguinte judicioso con-ceito: Para os indivduos predispostos molstia, to facilmente exerce asua influncia, a realidade como a aparncia do mal.

    Por outro lado, os beribricos debilitados pela doena e tra-balhados pela sugesto que lhes vem da crena na identidade das duasafeces e da vista freqente de coricos, copiam naturalmente nestesa forma que devem dar sua molstia enquanto ainda o permitem osprogressos pouco adiantados do mal. Da nasceram sem dvida esses ca-sos mistos que tanto impressionaram o Dr. Afonso Saulnier e o levarama acreditar que os fenmenos coreiformes eram simples manifestaesberibricas.

    Invocando, para a explicao desta epidemia, as influncias que,em epidemias de outra gravidade e importncia, todos os autores tm tidopor eficazes, no procuro copiar para o meu pas o quadro das calamidadesque afligiram a Europa na Idade Mdia.

    A pouca intensidade da epidemia marcou a proporo que guar-dam entre si as coisas daqueles tempos e as que enumero, e bem avisadaandou a comisso mdica quando disse que muitas das causas que influ-ram naqueles tempos para dar a estas afeces (coreomanias) muito maisgravidade do que tem a epidemia de Itapagipe no existem felizmente maishoje, oupelo menos so entre ns atenuadas.

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    Como estas causas e circunstncias puderam exercer a sua ao

    indireta sobre a populao de modo a ter na nevrose coreiforme a suaconseqncia, o que explicam as observaes e o ensino da Salptrire:J vimos, escreve Paul Richer, a influncia que exercem na etiologia dahisteria maior as emoes vivas, que em certos casos bastam para deter-minar a forma dos principais acidentes. O que pois para admirar que aexcitao religiosa tenha provocado em certos perodos de exaltao, essesefeitos sobre o sistema nervoso, que em ltima anlise do nascimento grande histeria.

    O contgio por imitao de uma sndrome nervosa estranha,que as propores crescentes da epidemia ainda tornaram mais inslito,operando num meio que circunstncias mltiplas, meteorolgicas, tnicas,poltico-sociais e patolgicas, tinham grandemente preparado, tais foramem suma as causas da epidemia coreiforme que percorreu nestes ltimosquinze anos o Norte do Brasil e nele reina ainda hoje sob forma de umaendemia muito benigna.

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    A loucura epidmica de Canudos

    PARAa narrao fiel dos sucessos de Canudos forosamente estar

    obrigado o historiador a aguardar o termo das lutas que ali se pelejamatualmente.1

    Os antecedentes daquela situao, a estratificao social e tnicaem que a loucura de Antnio Maciel cavou os fundos alicerces do seu po-

    ANTNIO CONSELHEIROE OSJAGUNOS

    1 No altera de uma linha as consideraes deste estudo a notcia que nos acaba detransmitir o telgrafo de que a 5 de outubro o general Artur Oscar, que desde junhose achava em Canudos frente de mais de doze mil homens apoderou-se finalmentedaquele reduto, batendo completamente o bando de fanticos que ali se achavamentrincheirados.Foi encontrado o cadver de Antnio Conselheiro, j sepultado no santurio de umaigreja que ali estava construdo, com propores tais que se havia transformado emuma fortaleza inexpugnvel. A conduta de Antnio Conselheiro mantendo-se at morte no seu posto, quando lhe teria sido faclimo retirar-se de Canudos para pontomais estratgico, a confirmao final da sua loucura na execuo integral do papeldo Bom Jesus Conselheiro que lhe havia imposto a transformao de personalidadedo seu delrio crnico. (Este trabalho foi publicado a 1 de novembro de 1897 naRevista Brasileira, Ano III, tomo XII, fasc. 69. A. R.)

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    derio material e espiritual quase indestrutvel, desde j abrem-se ao contr-

    rio de par em par em franco acesso a todas as investigaes cientficas.No quadro a traar daquela situao no ser por certo a figura

    anacrnica de Antnio Conselheiro, o louco de Canudos, que h de ocuparo primeiro plano. Bem conhecida em seus menores detalhes est a vesniaque o aflige, sempre perfeitamente diagnosticvel ainda mesmo com dadostruncados e deficientes como so os que possumos sobre a histria pessoaldeste alienado.

    Na fase sociolgica que atravessam as populaes nmades e

    guerreiras dos nossos sertes, na crise social e religiosa por que elas passamse h de escavacar o segredo dessa crena inabalvel, dessa f de eras priscasem que a preocupao mstica da salvao da alma torna suportveis todasas privaes, deleitveis todos os sacrifcios, gloriosos todos os sofrimentos,ambicionveis todos os martrios. Ainda a ela h de vir pedir o futuro osegredo desse prestgio moral que desbanca, a ligeiro aceno, toda a influ-ncia espiritual do clero catlico, assim como dessa bravura espartana quefaz quebrarem-se de encontro resistncia de algumas centenas de rsticos

    campnios a ttica, o valor, e os esforos de um exrcito regular e experi-mentado.Antnio Conselheiro seguramente um simples louco. Mas a

    sua loucura daquelas em que a fatalidade inconsciente da molstia registracom preciso instrumental o reflexo seno de uma poca pelo menos domeio em que elas se geraram. Le facteur sociologique, souvent nglig enpathologie mentale (escrevem mui judiciosamente dois conhecidos psiquia-tras),2 nous semble avoir une inportance non moindre on ce qui concernelalin quen ce qui concerne le criminel. Les progrs de lanthropologieont dmontr son importance majeure. Cette influence des milieux sur lespsychoses nous parait nettement demonstr en particulier par les psychosesmystiques; les caractres differentiels que le dlire emprunte aux temps, auxlieux et aux croyances ambiantes loin dtre superfitiels et de pure forme,apparaissent dautant plus profonds quon les etudie de plus prs.

    2 A. Marie et Ch. Vallon, Des psychoses volution progressive et systmatisationdite primitive (Arch. de Neurologie, 1897, p. 419).

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    examinada por este prisma que a cristalizao do delrio de

    Antnio Conselheiro no terceiro perodo da sua psicose progressiva refleteas condies sociolgicas do meio em que se organizou.

    No caso de Antnio Maciel, o diagnstico de delrio crnico(Magnan), de psicose sistemtica progressiva (Garnier), de parania pri-mria dos italianos, etc., em rigor mais no requer para se firmar do que alonga sistematizao de quase trinta anos e a transformao contempor-nea do simples enviado divino no prprio filho de Deus.

    No entanto as trs fases que tem atravessado a histria de Ant-

    nio Conselheiro coincidem rigorosamente com os trs perodos admitidosna marcha da psicose primitiva.

    A vida de Antnio Maciel at a sua internao na Bahia, talcomo a conta o Sr. Joo Brgido, do Cear, constitui o primeiro perodo.Antnio Conselheiro natural de Quixeramobim no Estado do Cear echama-se Antnio Vicente Mendes Maciel. Seu pai, que havia sido pro-prietrio e negociante abastado, legou-lhe, com o encargo de trs irmssolteiras, a direo de uma casa comercial pouco consolidada. Casadas as

    irms, por sua vez Antnio Maciel toma estado, desposando uma prima.O casamento de Antnio Maciel, diz um informante, foi um desastre.Pouco tempo depois vivia na mais infrene desinteligncia com a sogra, porisso que aulava a filha para maltrat-lo. Nesta situao, Antnio Macielfez ponto no seu comrcio, liquidando os seus negcios. Em 1859 mudou-se de Quixeramobim para Sobral onde foi caixeiro de um negociante, dapassou-se a Campo Grande onde por algum tempo exerceu o cargo de es-crivo de juiz de paz. Mudou-se ainda para a vila do Ipu, onde um sargento

    de polcia raptou-lhe a mulher. Retirou-se imediatamente para a cidadedo Crato e da para os sertes da Bahia. Contam que em caminho para oCrato, ao passar em Paus Brancos, foi acometido de um acesso de loucuraem que feriu um seu cunhado, em cuja casa se achava hospedado.

    Dissenses contnuas com a mulher e com a sogra, mudanassucessivas de emprego e de lugar, revolta agressiva com vias de fato e feri-mento de um parente que o hospeda, no preciso mais para reconhecer osprimeiros esboos da organizao do delrio crnico sob a forma do delriode perseguio. A fase inicial da sua loucura, o perodo de inquietao,de anlise subjetiva, ou de loucura hipocondraca, em rigor nos escapa na

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    histria de Antnio Maciel e mngua de um conhecimento mais ntimo de

    sua vida no lar. , porm, fcil perceber a influncia das alucinaes, e aprocura dafrmula do seu delrio no que sabemos das suas lutas conjugais esobretudo nessas mudanas repetidas. Por tal forma caracterstico dos deli-rantes crnicos este modo de reao que Favila crismou de alienados mi-gradores, aqueles que a repetidas e sucessivas mudanas pedem debalde umrefgio, uma proteo contra a implacvel perseguio que lhes movem asprprias alucinaes e das quais nada os poder libertar seno libertando-os da msera mente enferma.

    Penetrando nos sertes da Bahia para o ano de 1876, j AntnioMaciel levava finalmente descoberta a frmula do seu delrio. E o batismode Antnio Conselheiro sob que o ministro ou enviado de Deus inicia asua carreira de missionrio e propagandista da f era o trio apenas de ondea loucura religiosa o havia de elevar ao Bom Jesus Conselheiro da fase me-galomanaca da sua psicose.

    Antnio Conselheiro, revestido, a modo dos monges, de longatnica azul cingida de grossa corda, descalo, arrimado a tosco bordo, em-preende misses ou

    desobrigascopiadas das que nos nossos sertes realizam

    todos os anos religiosos de todas as ordens sacras e que diferem tanto doque devia ser uma verdadeira prtica crist quando achava Alimena3 queun vecchio volume ascetico pieno di figure di diavoli e di dannati differis-ce del profumato e ricco libro di preghiere di una bella signora, quanto leprediche melodrammatiche di un missionario differiscono delle conferenzespirituali del padre Agostino de Montefeltro.

    Pregando contra o luxo, contra os maons, fazendo queimar nasestradas todos os objetos que no pudessem convir a uma vida rigoro-

    samente asctica, Antnio Conselheiro anormaliza extraordinariamente avida pacfica das populaes agrcola e criadora da provncia, distraindo-asdas suas ocupaes habituais para uma vida errante e de comunismo emque os mais abastados cediam dos seus recursos em favor dos menos pro-tegidos da fortuna.

    Bem aceito, por alguns vigrios, em luta aberta com outros, nofim de alguns meses de propaganda, Antnio Conselheiro preso e enviado

    3 Alimena: I limiti e i modificatori della imputabilit. Vol. primo, 1894, pg. 23.

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    para o Cear sob a suspeita de ter sido criminoso na sua provncia natal. J

    por essa ocasio, em pleno segundo perodo bem se revelava a coerncia l-gica do delrio na transformao da personalidade do alienado. A turba queseguia Antnio Conselheiro quis opor-se sua priso, mas semelhana deCristo ordena-lhes Conselheiro que no se movam e entrega-se guarda,afirmando aos discpulos que iria mas havia de voltar um dia. Imperturb-vel a serenidade com que se comportou ento. Fatos bastante significativosso referidos por testemunhas do interrogatrio que aqui sofreu.

    autoridade que inqueria dele para faz-los punir, quais dos

    guardas o haviam maltratado fisicamente em viagem, limitou-se AntnioConselheiro a responder que mais do que ele havia sofrido o Cristo. E pornica resposta s mltiplas perguntas sobre a sua conduta, sobre seus atosretorquiu com uma espcie de sentena evanglica que apenas se ocupavaem apanhar pedras pelas estradas para edificar igrejas.

    Verificado no Cear que Antnio Conselheiro no era crimi-noso e posto em liberdade imediatamente, regressou ao seio das suas ove-lhas, coincidindo precisamente, segundo foi crena geral, o dia em que de

    repente a surgiu com aquele que havia marcado para a sua reapario. Ecada vez mais encarnado no papel de enviado de Deus, desde ento Ant-nio Conselheiro prosseguiu imperturbvel nas suas misses, at o adventoda Repblica em 1889.

    Este acontecimento poltico devia influir poderosamente paraincrementar o prestgio de Antnio Conselheiro, levando-o ao terceiroperodo da psicose progressiva. Veio ele desdobrar o delrio religioso doalienado, salientando o fundo de perseguio que, o tendo acompanhado

    sempre, como de regra na sua psicose, como reao contra os maonse outros inimigos da religio, por essa ocasio melhor se concretizou nareao contra a nova forma de governo em que no podia ver seno umfeito dos seus naturais adversrios. As grandes reformas promulgadas pelarepblica nascente, tais como separao da Igreja do Estado, secularizaodos cemitrios, casamento civil, etc., estavam talhadas de molde a justificaressa identificao.

    Personificado no governo republicano o adversrio a combater,Antnio Conselheiro declarou-se monarquista. Nas regies onde ele pre-dominava continuaram a prevalecer as leis e os atos do tempo da mo-

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    narquia. Recusou-se a receber moeda que tivesse dizeres da Repblica, s

    tendo curso como valiosa a que trazia a efgie do monarca deposto; acon-selhou francamente que no se pagasse impostos ao governo republicano enem consentia que se tivessem por vlidos os atos do estado civil que nofossem realizados de acordo com as leis religiosas. Secundado pela luta queabriu o clero catlico do pas contra essas reformas, amparado pelas crenasmonrquicas e religiosas da populao sertaneja, o prestgio de AntnioConselheiro atingiu o apogeu. O atestado da sua atividade nesse prazo eda fora da convico religiosa que despertava est escrito ao vivo pelas pa-

    rquias do interior deste Estado nos inmeros cemitrios, capelas e igrejasque nelas edificou. O rebanho de fiis que o acompanhava, e para o quala f cega na sua santidade j era dogma incontrovertvel, contou-se entopor milhares e milhares de pessoas.

    E derramada a fama dos seus milagres pelos infindos sertes dosEstados do norte e do centro do pas acorreram flux, dos pontos maisremotos, em contnuas e interminveis caravanas, crentes e devotos, a ou-vir a palavra inspirada do profeta, a buscar a desobriga dos seus pecados, a

    receber na fase tormentosa e agitada porque est passando o pas a senha daconduta e dos flagcios que melhor abrandem e desarmem a clera divinaprovocada pela ingratido usada com o velho monarca decado, e que lheshaja de granjear pelo menos a felicidade celeste j que na terra vai perdidaa esperana de reav-la.

    A coerncia do seu delrio se demonstra na correo com quedesempenha o papel de enviado de Deus. A sua vida em que o desprezodas preocupaes mundanas o levam a prescindir de todos os cuidados hi-

    ginicos do corpo, se prende o menos possvel contingncia dos mortais.Antnio Conselheiro no dorme, no come ou no come quase. O seuviver uma orao contnua e contnuo o seu convvio com Deus, prova-velmente de origem alucinatria.

    So todos acordes em confessar que na populao que o seguiajamais consentiu ou patrocinou desmandos ou atentados contra a proprie-dade ou contra pessoas.

    insubordinao contra o governo civil seguiu-se a revolta con-tra os poderes eclesisticos. Foi ainda o reconhecimento do governo peloclero, que mais acentuou as desinteligncias em que Antnio Conselheiro

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    se tinha visto envolvido com alguns vigrios no comeo das suas misses.

    Depois disso, Antnio.Conselheiro tinha chegado a viver de perfeita har-monia com os procos de algumas freguesias. Mas, em seguida ao reconhe-cimento da Repblica foi-se estabelecendo de novo profundo desacordoentre eles. Conta-se que, lhe tendo algum objetado que tanto no eramanico o governo republicano que o Papa tinha aconselhado o clerofrancs a reconhec-lo, declarou Antnio Conselheiro que se o Papa tinha,de fato, dado semelhante conselho, o Papa tinha andado mal. Por ltimoo cisma tornou-se franco e no pde mais haver acordo possvel entre ele e

    as autoridades eclesisticas.Tentou-se nestes ltimos anos uma misso de catequese entre os

    adeptos de Antnio Conselheiro. Mas os frades capuchinhos a que fora co-metida essa misso, apesar da recepo seno de todo hostil pelo menos re-servada do Conselheiro, tiveram de fugir diante da atitude ameaadora dosdiscpulos e da turba do profeta e declararam formalmente ao regressar ques a interveno armada dos poderes civis poderia por bom termo quelaanomalia. Parece que aquilo que a catequese de tempos idos obteve do ndio

    feroz e canibal, no recesso das matas virgens do novo mundo, na ignornciacompleta dos costumes, da lngua do aborgine a quem mais irritavam e tor-navam ferozes as perseguies cruis do conquistador, a catequese dos temposque correm no pode conseguir de uma populao naturalmente inclinada generosidade e religio. E tarefa mais fcil e expedita destruir os recalci-trantes bala do que convert-los pela lenta persuaso religiosa. No entantoa necessidade de chamar a grande massa de povo que o seguia obedinciadas leis da Repblica que nem ele nem os seus sequazes queriam admitir, fezprever desde logo a todo o mundo que a luta havia de passar forosamente dasimples propaganda pela palavra para o terreno da ao pelas armas.

    Em seguida a diversos insucessos de pequenas expedies poli-ciais, Antnio Conselheiro deixou a vila de Bom Jesus quase por ele edifi-cada e internando-se pelo serto foi estabelecer o quartel general da propa-ganda em Canudos, reduto de difcil acesso e que em curto prazo AntnioConselheiro havia transformado de estncia deserta e abandonada em umavila florescente e rica.

    Quando a necessidade obrigou a tornar efetiva a obedincia lei, Antnio Conselheiro achava-se admiravelmente aparelhado para a re-

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    sistncia pela natureza do local ocupado. As conseqncias dessa luta so

    conhecidas.Sucessivamente trs expedies militares, cada qual mais pode-

    rosa tm naufragado em Canudos, infringindo ao exrcito brasileiro do-lorosas perdas e lamentveis revezes. Cem praas comandadas pelo alferesPires Ferreira foram destroadas em Uau; cerca de quinhentos soldados daexpedio do major Febrnio de Brito foram batidos na serra do Cambaioe tiveram de efetuar uma retirada perigosssima. Cerca de mil e quinhentoshomens da expedio comandada pelo coronel Moreira Csar foram des-

    troados em Canudos, sucumbindo o chefe da expedio. Hoje o exrcitobrasileiro em peso bate-se h j trs meses em Canudos, os hospitais regur-gitam de feridos, elevado o nmero de oficiais mortos, e no se sabe aocerto quando terminar a luta.

    Alguma coisa mais do que a simples loucura de um homem eranecessria para este resultado e essa alguma coisa a psicologia da pocae do meio em que a loucura de Antnio Conselheiro achou combustvelpara atear o incndio de uma verdadeira epidemia vesnica.

    As leis que regem a manifestao epidmica da loucura so pre-cisamente as mesmas que Lasgue e Falret formularam desde 1877 parao caso mais simples do contgio vesnico, o caso do delrio a dois. Trsmomentos bsicos reconhecem essas leis.

    Em primeiro lugar, a existncia de um elemento ativo que criao delrio e o impe multido que passa a representar o elemento passivodo contgio.4 Aceitando embora as idias delirantes, a multido reage porseu turno sobre o elemento ativo, retificando, emendando, coordenando odelrio que s ento se torna comum.

    Em segundo lugar, indispensvel uma convivncia prolongadadas duas ordens de espritos, vivendo de uma vida comum, no mesmomeio, partilhando o mesmo modo de existncia, os mesmos sentimentos,os mesmos interesses, os mesmos temores, as mesmas esperanas e estra-nhos a qualquer outra influncia exterior.

    4 Em rigor no elemento passivo do contgio vesnico a loucura toda superficial esem razes. Para faz-la desaparecer de todo basta retirar os indivduos do ambientesugestivo em que se achavam.

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    Em terceiro e ltimo lugar o contgio do delrio requer nele

    um carter de verossimilhana sua manuteno nos limites do possvel,repousando em fatos ocorridos no passado ou em temores e esperanasconcebidas para o futuro.

    Em Canudos representa de elemento passivo o jaguno que cor-rigindo a loucura mstica de Antnio Conselheiro e dando-lhe umas tin-turas das questes polticas e sociais do momento, criou, tornou plausvele deu objeto ao contedo do delrio, tornando-o capaz de fazer vibrar anota tnica dos instintos guerreiros, atvicos, mal extintos ou apenas so-

    freados no meio social hbrido dos nossos sertes, de que o louco como oscontagiados so fiis e legtimas criaes. Ali se achavam de fato, admira-velmente realizadas, todas as condies para uma constituio epidmicade loucura.

    O jaguno um produto to mestio no fsico que reproduz oscaracteres antropolgicos combinados das raas de que provm, quanto h-brido nas suas manifestaes sociais que representam a fuso quase invivelde civilizaes muito desiguais.

    Pelo lado etnolgico no jaguno todo e qualquer mestiobrasileiro. Representa-o em rigor o mestio do serto que soube acomo-dar as qualidades viris dos seus ascendentes selvagens, ndios ou negros,s condies sociais da vida livre e da civilizao rudimentar dos centrosque habita. Muito diferente o mestio do litoral que a aguardente, oambiente das cidades, a luta pela vida mais intelectual do que fsica, umacivilizao superior s exigncias da sua organizao fsica e mental, enfra-queceram, abastardaram, acentuando a nota degenerativa que j resulta

    do simples cruzamento de raas antropologicamente muito diferentes, ecriando, numa regra geral que conhece muitas excees, esses tipos impres-tveis e sem virilidade que vo desde os degenerados inferiores, verdadeirosprodutos patolgicos, at esses talentos to fceis, superficiais e palavrososquanto ablicos e improdutivos, nos quais os lampejos de uma intelignciavivaz e de curto vo, correm parelhas com a falta de energia e at de per-feito equilbrio moral.

    No jaguno ao contrrio revelam-se inteirios o carter indomveldo ndio selvagem, o gosto pela vida errante e nmade, a resistncia aos sofri-mentos fsicos, fome, sede, s intempries, decidido pendor pelas aventu-

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    ras da guerra cuja improvisao eles descobrem no menor pretexto, sempre

    prontos e decididos para as razias das vilas e povoados, para as depredaes mo armada, para as correrias de todo o gnero que os interesses do mando,as exigncias da politicagem e as ambies de aventureiros fazem suceder-sede contnuo por toda a vasta extenso das zonas pouco habitadas do pas.

    Seria desconhecer o nosso prprio pas acreditar que nessas vas-tas regies seja mais do que nominal a existncia da civilizao europia. Oque ali impera um compromisso entre as tendncias para uma organiza-o feudal por parte da burguesia abastada e a luta das represlias de tribos

    brbaras ou selvagens por parte da massa popular.Todas as grandes instituies que na civilizao deste fim de

    sculo garantem a liberdade individual e do o cunho da igualdade doscidados perante a lei, sejam polticos como o direito do voto, o governomunicipal autnomo, etc., sejam judicirios como o funcionamento re-gular dos tribunais, tudo isso mal compreendido, sofismado e anuladonessas longnquas paragens. O que predomina soberana a vontade, soos sentimentos ou os interesses pessoais dos chefes, rgulos ou mandes,

    diante dos quais as maiores garantias da liberdade individual, todas as for-mas regulares de processo, ou se transformam em recurso de perseguiocontra inocentes, se desafetos, ou se anulam em benefcio de criminososquando amigos. E a mais das vezes a execuo dessa vontade soberana sumarssima, e em nada diferem os processos escolhidos do que eram osadotados pelo selvagem que antes do Europeu possuiu este pas.

    Antigamente eram estes senhores feudais os grandes estanciei-ros, os criadores abastados, os proprietrios de engenho; atualmente so

    principalmente os chefes polticos locais, os amigos do governo, os fabri-cantes de eleitores fantsticos.A luta entre os que esto de posse do poder e os que disputam

    essa posse, admiravelmente favorecida nos tempos monrquicos pelo re-vezamento no governo dos dois partidos constitucionais, mas ento comoainda hoje melhor favorecida ainda pelas intrigas e arranjos das camari-lhas que cercam os governos centrais, sempre trouxe dividida a popula-o sertaneja em dois grupos opostos e rivais, em dois campos inimigos eirreconciliveis, capitaneados, por verdadeiros rgulos de que os jagunosrepresentavam apenas o exrcito, a fora material.

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    Esta situao que o jaguno no chega mesmo a compreender

    mas de que acaba sempre sendo o responsvel legal, oferece-lhes todavia omelhor ensejo para satisfao dos seus instintos guerreiros.

    Foi sempre nessas lutas, polticas ou pessoais, que se revelaramtodas as qualidades atvicas do mestio. Dedicado at a morte, matandoou deixando-se matar sem mesmo saber porque, foi sempre inexcedvel ovalor com que se batiam, consumada a ttica, a habilidade de guerrilheirosque punham em prtica, relembrando as lutas hericas do aborgine contrao invasor europeu.

    Essas qualidades que to grande realce do hoje s guerras quese pelejam em Canudos, no so, pois, peculiares s tropas de AntnioConselheiro; so caractersticos do jaguno.

    Como Vila-Nova, como Joo Abade, era jaguno GumercindoSaraiva, o terrvel cabo de guerra que dos pampas do Rio Grande, frentedas suas hostes veio bater s portas de S. Paulo; jaguno Montalvo, odestemido general das guerrilhas de Andara e o foram os Arajos e Maciis,do Cear, os Ledos e Lees, do Graja, no Maranho, e um pouco por

    toda parte, todos os guerrilheiros dos sertes do Brasil inteiro.Belicamente, Canudos , pois, um caso apenas, e mais nada, dosataques de Xique-Xique, Andara, Cox, Brejo Grande, Lenis, Belmon-te, Canavieiras, etc., neste Estado; de Carolina, Graja, no Maranho, demil outras localidades de Gois, Pernambuco, Minas Gerais, etc.

    Mas para que bem se possa compreender a importncia que nes-te elemento belicoso devia tornar o caso de Canudos, preciso atender aque era Canudos a primeira luta pelejada no Brasil em nome das convic-

    es monrquicas que so as convices do sertanejo.Para acreditar que pudesse ser outro o sentimento poltico dosertanejo, era preciso negar a evoluo poltica e admitir que os povos maisatrasados e incultos podem, sem maior preparo, compreender, aceitar epraticar as formas de governo mais liberais e complicadas.

    A populao sertaneja e ser monarquista por muito tempo,porque no estdio inferior da evoluo social em que se acha, falece-lhe aprecisa capacidade mental para compreender e aceitar a substituio dorepresentante concreto do poder pela abstrao que ele encarna pelalei. Ela carece instintivamente de um rei, de um chefe, de um homem que

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    a dirija, que a conduza, e por muito tempo ainda o presidente da Rep-

    blica, os presidentes dos Estados, os chefes polticos locais sero o seu rei,como, na sua inferioridade religiosa, o sacerdote e as imagens continuama ser os seus deuses. Sero monarquistas como so fetichistas, menos porignorncia, do que por um desenvolvimento intelectual, tico e religioso,insuficiente ou incompleto.

    O que pueril exigir que essas populaes compreendam quea federao republicana a condio, a garantia da futura unidade polticade um vasto pas em que forosamente ho de concorrer povos, muito

    diferentes de ndole, de costumes e de necessidade, o que requer uma elas-ticidade de ao que no poderia oferecer a centralizao governamentalda monarquia.

    O que no se pode exigir delas que reconheam que as di-ficuldades do momento so a conseqncia lgica e natural dos ensaios,tentativas e experincias de adaptao do povo que procura a orientaotoda pessoal que mais lhe h de convir na nova organizao poltica. Paraessa populao o raciocnio no pode ir alm da comparao da situao

    material do pas antes e depois da Repblica. A monarquia eram os vveresbaratos, a vida fcil; a repblica a vida difcil, a carestia dos gneros ali-mentcios, o cmbio a 0.

    Por seu turno no peculiar a Canudos, a tendncia a se consti-tuir em uma epidemia vesnica de carter religioso.

    Se os estudos que tenho publicado sobre a religiosidade feti-chista da populao baiana5 no ministrassem j documentos suficientespara se julgar da crise em que se encontra o seu sentimento religioso no

    conflito entre a imposio pela educao que recebe a populao, de umensinamento religioso superior sua capacidade mental, e a tendncia paraas concepes religiosas inferiores que requer a sua real capacidade efetiva,ns poderamos corrobor-las com a prova do que neste momento se passanesta cidade com relao interna epidemia de varola que desapiedada-

    5 Veja O animismo fetichista dos negros baianosna Revista de 15 de abril,