artigo acadêmico piaget e vigotsky

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OS LEGADO DE VYGOTSKY E PIAGET NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO Gladis Maia [email protected] FACISA – Coordenação de Pós-graduação – Especialização em Psicopedagogia Institucional 1. SINOPSE O presente artigo, em sua primeira parte, delineia o perfil da escola ideal, explicitando o seu papel ao longo da história e reverenciando como especificidade a sua tonalidade democrática, aberta a todos os segmentos da sociedade, e viva, em constante construção. Sintetiza também a abordagem neopiagetina do processamento de informações, nas suas perspectivas cognitiva e contextual. Na segunda parte, tentamos resumir a vida e a obra de Jean Piaget e de Lev Vygostsky, respectivamente, levantando os principais aspectos de seus estudos, identificando as suas constribuições na construção do sujeito cognoscente. No item três, assinalamos as diversidades mais marcantes, e as convergências dos pressupostos teóricos, nas abordagens destes pesquisadores, apontando algumas saídas pedagógicas para o planejamento de ensino e a práxis no dia a dia na escola. E, por último, abordamos as conclusões a que chegamos através da retomada da bibliografia destes dois autores, com a finalidade de elaborar este estudo. PALAVRAS-CHAVES Sujeito - construção do conhecimento – desenvolvimento - interação social linguagem – pensamento – inteligência 1. O PERFILDA ESCOLA IDEAL “Se sou, na verdade, social e politicamente responsável, não posso me acomodar às estruturas injustas da sociedade. Não posso, traindo a vida, bendizê-la. ” Paulo Freire. Política e Educação. São Paulo, Cortez, 1993. p.88. .

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OS LEGADO DE VYGOTSKY E PIAGET NA CONSTRUÇÃO DO SUJ EITO

Gladis Maia

[email protected]

FACISA – Coordenação de Pós-graduação – Especializa ção em Psicopedagogia Institucional

1. SINOPSE O presente artigo, em sua primeira parte, delineia o perfil da escola ideal, explicitando o seu papel ao longo da história e reverenciando como especificidade a sua tonalidade democrática, aberta a todos os segmentos da sociedade, e viva, em constante construção. Sintetiza também a abordagem neopiagetina do processamento de informações, nas suas perspectivas cognitiva e contextual. Na segunda parte, tentamos resumir a vida e a obra de Jean Piaget e de Lev Vygostsky, respectivamente, levantando os principais aspectos de seus estudos, identificando as suas constribuições na construção do sujeito cognoscente. No item três, assinalamos as diversidades mais marcantes, e as convergências dos pressupostos teóricos, nas abordagens destes pesquisadores, apontando algumas saídas pedagógicas para o planejamento de ensino e a práxis no dia a dia na escola. E, por último, abordamos as conclusões a que chegamos através da retomada da bibliografia destes dois autores, com a finalidade de elaborar este estudo. PALAVRAS-CHAVES Sujeito - construção do conhecimento – desenvolvimento - interação social linguagem – pensamento – inteligência 1. O PERFILDA ESCOLA IDEAL

“Se sou, na verdad e, social e politicamente responsável, não po sso me acomodar às estruturas injustas da sociedade. Não posso, traindo a vida, bendizê -la. ” Paulo Freire. Política e Educação.

São Paulo, Cortez, 1993. p.88. .

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Com a responsabilidade de fazer a mediação entre o indivíduo e a sociedade, a escola apresenta-se, nos dias de hoje, como uma das mais importantes instituições, por ter na sua práxis a responsabilidade de fazer a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Ao transmitir, através da cultura, modelos sociais de comportamento, e valores morais, a escola permite que a criança socialize-se, eduque-se, humanize-se. Convém lembrar que essa instituição nem sempre existiu e também não foi fruto de uma descoberta, mas uma invenção social do homem! Portanto, deve servir a ele, interessar-se por ele, ajudar na sua construção. Há tempos atrás o saber era transmitido de outra forma, cabia aos mais velhos ensinarem aos mais moços o que sabiam fazer, o meio social era o contexto educativo. Foi na Idade Média que a educação tornou-se produto da escola. Com esta finalidade, pessoas especializaram-se na tarefa de transmitir o saber, em espaços específicos, reservados para essa atividade destinada às elites. O ensino serviu aos nobres e depois à burguesia e, com raras exceções, continua, até os dias de hoje, servindo às classes estabelecidas no alto da pirâmide social. Nos seus primórdios, o desempenho principal da escola era o ensino das atividades executadas pelos grupos dominantes da sociedade. Isso fez dela um lugar de aprendizado: da guerra, das atividades cavalheirescas, do saber intelectual, humanístico ou religioso. As revoluções do século XIX trouxeram transformações à escola, sendo a principal delas a tendência à universalização. O estudo deixa de ser privilégio da aristocracia e da igreja. A escola muda para atender a demanda que a Revolução Industrial trouxe no seu bojo, ao sofisticar o trabalho com a implantação de máquinas, exigindo do trabalhador o aprendizado da tecnologia. A escola ganha então importância com suas novas funções no preparo da mão-de-obra. A luta pela democratização da escola empreendida pelas classes trabalhadoras - até então alijadas desta instituição - foi um outro fator gerador de mudanças. A classe trabalhadora organizada passa a exigir o direito de ter seus filhos na escola, o direito à cultura e ao conhecimento dominantes, não deixando à escola outra alternativa a não ser a de abrir suas portas às classes sociais menos privilegiadas. Estes fatores contribuíram para que a escola adquirisse as carac-terísticas que possui atualmente. Tornou-se uma instituição da sociedade, que trabalha a serviço desta mesma sociedade e por ela é sustentada, com a finalidade de preparar as crianças para viver no mundo adulto. Na escola a criança aprende a trabalhar, a assimilar as regras sociais, os conhecimentos básicos, os valores morais coletivos, os modelos de comportamento considerados adequados pela sociedade. A escola é a forma moderna de operar esta transmissão. Na verdade, a escola como instituição social estabelece um vínculo ambíguo com a sociedade. É parte dela e, por isso, trabalha para ela for-mando os indivíduos necessários à sua manutenção. No entanto é também tarefa desta mesma escola zelar pelo desenvolvimento da sociedade. Para

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3 transfomar um novo mundo. Diante deste desafio, ela não pode mais ficar presa ao passado, à tradição. E isto abre um espaço para o surgimento de uma escola crítica e inovadora: transformadora, que, para tanto, precisa conhecer a sociedade, os seus modelos e os seus valores. Ao partirmos das diversidades culturais presentes na sociedade, a escola – a pública, mais especialmente – precisa estar pronta para dar conta de qualquer criança ou jovem, independente de sua condição de classe, etnia, raça, religião. Não há mais como se tolerar a interpretação errônea, dada muitas vezes, nas salas de aula – porque leva facilmente à discriminação – quando o professor trata como deficiência do aluno as suas diferenças culturais. Esta falta de tato implica na despotencialização da criança. É necessário que a escola realize uma proposta pedagógica mais comprometida, que dê vez e voz também às crianças das classes populares, que muitas vezes se entediam com as tarefas que lhe são impostas na sala de aula. A escola precisa estar mais atenta para trabalhar em consonância com os conhecimentos, valores, maneiras de ser e estar no mundo que estas crianças constróem no seu cotidiano. Elas precisam contar a sua história no meio escolar, para poderem acreditar na luta por uma sociedade mais igualitária. A escola tem que ouvir e compartilhar das múltiplas vozes que se cruzam na sala de aula, advindas de uma cultura híbrida, constituída das interações realizadas pelos alunos em diferentes espaços e tempos, onde eles vivem, trabalham, brincam, estudam. Uma escuta sensível para a história das crianças que estão na escola e ao mesmo tempo já enfrentam o trabalho, na luta pela sobrevivência, por exemplo, pode construir um outro olhar para esta realidade que, compreendida, pode ser trazida para a sala de aula enriquecendo o ambiente escolar. Os novos tempos exigem uma escola democrática, voltada para a formação de sujeitos cidadãos. Uma escola competente na construção do conhecimento, enquanto processo que se constrói e reconstrói permanente-mente, fruto da ação individual e interativa dos sujeitos com o outro. Um conhecimento socialmente útil, que respeita as questões culturais, os saberes e as experiências das comunidades, criando condições para a produção e o acesso aos novos saberes, e ao conhecimento socialmente produzido e siste-matizado, contraposto à concepção de conhecimento pronto e acabado, que pode ser guardado, transmitido e acumulado, bancário, no dizer de Paulo Freire. Os tempos escolares atuais recheados de evasão e repetência gritam por uma nova escola. Uma escola que propicie práticas coletivas de discussão, garantindo a participação de toda a comunidade escolar. Uma escola que centralize o poder nas definições do seu projeto escolar. Uma escola que lute pela superação de todo tipo de opressão, discriminação, exploração. Uma escola que expanda os valores éticos de liberdade, respeito à diferença e à pessoa humana, solidariedade e preservação do meio ambiente. Do ponto de vista prático há um consenso, quase que geral, de que a escola não pode mais fechar os olhos diante dos dramas de nossa realidade: a devastação ambiental, o racismo, a intolerância, as drogas, a violência, a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez precoce ...

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4 A realidade das nossas escolas hoje em dia deixa ao século XXI o desafio de colocar a pedagogia a serviço das metas educacionais, visando o equilíbrio entre o sujeito cognoscente e o sujeito social, consciente, equilibrado e responsável. A revisão dos projetos pedagógicos e as reformas curriculares legitimam-se pela busca de uma nova relação entre o homem e o conhecimento, rumo à democratização do saber e sua transformação numa bússola capaz de nortear a formação de posturas críticas e as tomadas de decisão. Seja no plano teórico, seja na dimensão prática. A educação do futuro clama pela aproxima-ção entre o ser e o saber, pelo rompimento dos muros que separam a escola do mundo. O desafio que hoje se coloca, ultrapassa a esfera da simples aquisição de conhecimento para dar sentido e aplicabilidade ao que é aprendido. E para que a escola esteja cumprindo o papel que lhe é destinado, a cada época, é necessário que ela própria se constitua em um espaço permanen- temente aberto à formação, especialização e atualização dos seus educado-res, visando a maior qualificação da ação pedagógica. Os educadores devem sempre estar atentos a tudo que surge de novo nas áreas do desenvolvimento psicológico, do desenvolvimento cognitivo, do desenvolvimento da inteligência e do pensamento. E neste sentido, a mais nova abordagem, que está sendo construída ain-da, é a dos psicólogos do desenvolvimento neopiagetianos , que ampliaram e modificaram a teoria de Piaget integrando-a com a abordagem do proces-samento de informações , que concentra-se nas diferenças individuais quanto ao modo pelo qual os indivíduos usam sua inteligência, buscando descobrir os processos envolvidos na percepção e no manuseio da informação. Analisa os processos mentais subjacentes ao comportamento inteligente: a atenção, a memória e a resolução de problemas. Seu estudo básico refere-se ao processo de aquisição, transformação e uso das informações sensoriais por meio da manipulação ativa de símbolos ou imagens mentais. Segundo Papalia & Olds (2000, pp. 48 –54; 126 -139), os neopiagetianos criticam Piaget por acharem que seus estudos focalizam basicamente a criança mediana, dando pouca importância às diferenças individuais ou as maneiras pelas quais a cultura , a educação e a motivação afetam o seu desempenho. Combatem-no também por considerarem sua abordagem sobre o desenvolvimento emocional e da personalidade superficiais; e suas pesquisas pouco rigorosas, por serem baseadas em observações informais. Embora a abordagem neopiagetinana ainda esteja sendo desenvolvida por psicólogos contemporâneos - que questionam a idéia dos estágios de desenvolvimento cognitivo claramente demarcados, vendo-o como mais gradual e contínuo - o modelo de um renomado neopiagetiano, Robbie Case, mais especialmente, tenta explicar os processos pelos quais as mudanças qualitativas ocorrem na cognição e os limites da aprendizagem em qualquer estágio. Case delineou uma série de estágios semelhantes aos de Piaget, sob a perspectiva cognitiva, mas sua teoria se estende também ao campo emocional e às deficiências de aprendizagem. Sua ênfase na eficiência do pro-

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5 cessamento, ajuda a explicar as diferenças individuais na capacidade cog-nitiva. Já abordagem neopiagetina sob a perspectiva contextual pressupõe que o desenvolvimento humano só pode ser estudado e compreendido em seu contexto social, porque considera que o indivíduo é uma parte inseparável do ambiente com quem interage. O indivíduo em desenvolvimento atua e muda o ambiente e este em constante transformação atua mudando o indivíduo. Esta ênfase no contexto do desenvolvimento contrasta com os teóricos do proces-samento de informações. Os contextualistas enfatizam as diferenças indi-viduais. Segundo eles, os indivíduos estabelecem objetivos dentro de um determinado contexto e da forma como o percebem, e então selecionam novos objetivos dentro de um novo contexto que procuram, ou que se apresenta. Nesta perspectiva, o sucesso depende da apropriação do comportamento para cada contexto selecionado. A perspectiva contextual e a teoria de Vygotsky, em particular, sugere que o desenvolvimento das crianças de uma cultura ou de um grupo dentro de uma cultura pode não ser um norma apropriada para crianças de outras sociedades ou grupos culturais. Considerando-se isso, do ponto de vista teórico, os educadores não podem mais desconsiderar a contribuição de importantes teorias que dão conta da função do ambiente social no desenvolvimento e na aprendizagem, como é o caso do interacionismo construtivista de Piaget, para quem a aprendizagem depende de um processo pessoal e ativo de constante abertura para o novo em um contexto de significados – razão pela qual o ensino não se encerra em si mesmo . Além dele, a abordagem sociointeracionista de Vygotsky, que prestou enorme contribuição às concepções de intervenção escolar, pela ênfase no poder das mediações entre sujeito e o objeto de conhecimento, mecanismo essencial para o descobrimento do mundo e construção de si mesmo. Embora nenhum dos dois pesquisadores tenha pretendido elaborar uma pedagogia propriamente dita, ambos deixaram contribuições incalculáveis para a Educação. Os dois cientistas vem influenciando o fazer pedagógico das salas de aulas no ensino brasileiro, e conseqüentemente, às mudanças peda-gógicas na escolas, tendo em vista a nova Lei de Diretrizes e Bases, em vigor desde 1996. Ao final do prelúdio deste artigo, que pretende analisar as propostas de Piaget e Vygotsky, comparando suas teorias, destacando seus conceitos e os princípios que os determinaram, bem como suas convergências e divergências, fica esta interrogação difícil de ser engolida por nós, que nos dizemos educadores ... Que escola é essa que estamos apresentando às crianças que - em sua essência ativas e curiosas - quando chegam à sala de aula perdem a vontade aprender ? Esperamos que este artigo sirva de inspiração para começarmos a nos questionar com maior freqüência sobre o assunto ... 2. CONTRIBUIÇÕES DE PIAGET E VIGOTKSKY NA CONSTRUÇ ÃO DO SUJEITO COGNOSCENTE

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2.1.O LEGADO PIAGETIANO Jean Piaget nasceu em uma família rica e culta, em 1896, na Suíça, on-de morreu aos 80 anos de idade, deixando publicada uma vasta obra. Ainda adolescente, iniciou suas leituras nas áreas de Filosofia, Lógica e Religião. Bió-logo de formação, estudou filosofia e doutorou-se em Ciências Naturais aos 22 anos. Estudou Filosofia com Breuler e trabalhou nos laboratórios da G. E. Lipps e Wreschner com Psicologia Experimental, em Zurich. Permaneceu dois anos na Sorbone, em Paris, onde estudou com Lalande e mais tarde veio a lecionar Psicologia da Criança. Lá também trabalhou na padronização de testes de inteligência, com Binet e Simon. Insatisfeito com este tipo de mensuração, criou o Método Clínico, inspirado em dois outros métodos, o Experimental e o de Interrogação Clínica, largamente utilizados à época, especialmente por Freud e Jung. Piaget foi professor titular de Filosofia na Universidade de Neuchâtel, na Suíça, onde lecionou também Psicologia e Sociologia. Na Universidade de Genebra – onde foi diretor do Departamento Internacional da Educação e do Laboratório de Psicologia Experimental - foi professor de História do Pensamento Científico e de Sociologia. Em 1936, Piaget foi condecorado, pela Universidade de Harvard, com o título de Doutor Honoris Causa. Ainda foi presidente da Sociedade Suíça de Psicologia e professor catedrático de Psicologia e Sociologia da universidade de Lausane. A obra de Piaget explicita o processo de desenvolvimento do pensamento atribuindo uma importância capital à estruturação do pensamento, à linguagem e à interação entre as pessoas. Constrói o modelo psicogenético de estruturação do pensamento, focalizando o trabalho na ação e manipulação dos objetos que passam a constituir, juntamente com a maturação biológica, os fatores essenciais na estruturação do pensamento. Piaget ao teorizar sobre as estruturas cognitivas para a dimensão lógico-formal, desenvolve uma visão original através do estudo do desenvolvimento cognitivo da criança, para explicar a gênese do conhecimento. O trabalho de Piaget se desenvolve numa época em que a Psicologia se dividia basicamente em três correntes: o behaviorismo, a Gestalt e a Psicanálise. A ciência psicológica tinha como objeto de estudo um sujeito cindido em material e espiritual - e, conseqüentemente - uma comunidade científica dividida, quando ele realiza suas primeiras pesquisas em psicologia. Jean Piaget deixa transparecer, nos princípios básicos que orientam seus estudos, a influência de sua formação como biólogo. Na sua teoria está implícita a idéia de uma espécie de estrutura, semelhante às estruturas específicas para cada função do organismo, que seria responsável pelo ato de conhecer. Piaget acredita ainda que estas estruturas não aparecem prontas, possuindo uma gênese que justificaria as diferenças entre a lógica infantil e a adulta. Ele postula que a ação da criança, a partir dos reflexos biológicos que se transformam em esquemas motores, constrói, paulatinamente, suas estruturas cognitivas através dos estágios seqüenciais do desenvolvimento cognitivo.

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7 Piaget descreve quatro fatores como sendo os responsáveis pela psicogênese do intelecto infantil: o fator biológico, particularmente o cres- cimento orgânico e a maturação do sistema nervoso; o exercício e a experiência física, adquiridos na ação empreendida sobre os objetos; as intera- ções e transmissões sociais, que se dão basicamente pela linguagem e pela educação; e o fator de equilibração das ações. Ao trabalhar por mais de 50 anos com o psiquismo infantil, Piaget descobriu que cada indivíduo constrói o seu próprio modelo de mundo, através do processo de desenvolvimento, que se concretiza pela ação do sujeito e pela formação de uma estrutura interna, em contínua expansão. Para ele, a criança, desde o nascimento, exerce o controle sobre a obtenção e organiza-ção de sua experiência do mundo exterior, mesmo que inicialmente apenas em forma de exploração do mundo; só mais tarde estas ações passarão - aos poucos - a integrar os esquemas psíquicos ou modelos elaborados por ela. Estes esquemas simples – tais como o reflexo de sucção – vão se organi-zando e integrando-se a outros, e formando esquemas complexos, resultando numa série de esquemas integrados, que através da interação com o ambiente promovem o desenvolvimento das estruturas psicológicas. Baseado na biologia, Piaget explica esta interação do homem com o meio ambiente através dos conceitos de assimilação, acomodação e adapta-ção. Entendendo : assimilação, como a incorporação de um novo objeto ou idéia ao esquema que a criança já possui a respeito de algo; acomodação , como a modificação necessária dos esquemas adquiridos anteriormente pelo indivíduo, no caso a criança, para que ela possa lidar com o ambiente, adaptando-se à nova situação; e , por último, do equilíbrio entre estes dois processos, surge uma organização mental e uma adequação ao mundo , ou seja, a adaptação. Quando a assimilação e a acomodação estão em harmonia, ocorrendo simultaneamente, o sujeito está adaptado, ou seja, em equilíbrio . O desenvolvimento cognitivo processa-se através de todas as atividades infantis, controlado por esses fatores. Desde o início da vida portanto, construímos em nossa mente uma espécie de modelo interior do mundo que nos rodeia, que vamos construindo, completando, organizando à medida que amadurecemos. Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo constitui-se num pro-cesso social. A cooperação , como ele mesmo grafa, separadamente, através da interação com outras pessoas, no convívio social, durante o processo de desenvolvimento, tem um papel relevante, que influencia significativamente a visão do mundo do sujeito, permitindo-lhe evoluir de uma perspectiva subjetivista para a objetividade. A teoria do desenvolvimento da inteligência humana de Piaget - baseada na epistemologia genética - postula que todas as crianças passam por quatro estágios de estruturação do pensamento, que vai se tornando, a medida que o tempo passa, cada vez mais complexo: sensório-motor ( de 0 a 2 anos aproximadamente); pré-operatório ( de 2 a 7 anos aproximadamente); estágio das operações concretas ( de 7 a 9/12 anos aproximadamente) ; e lógico-formal (a partir de 12 anos aproximadamente).

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8 Entre um estágio e outro existe um intermediário, onde convivem - em estado de desequilíbrio - as concepções do nível anterior ou do posterior. Du-rante o desenrolar dos estágios, apesar do caráter global do desenvolvimento, distingue-se certas funções diferenciadas. A primeira, designada como: funções de conhecimento - responsável pelo pensamento lógico - que vai dos reflexos ao pensamento operatório - e pela organização da realidade , estendendo-se da fase de indiferenciação entre o eu e o mundo até a construção de conceitos. A segunda denominada : funções de representação, que serve para representar objetos, acontecimentos, pessoas, através de um significante (palavra, gesto, desenho, etc.). E por último, as funções afetivas, analisadas do ponto de vista da relação com o outro, distinguindo etapas que vão desde a anomia (ausência de regras morais) , passam pela heteronomia (regras impostas pelo outro) e atingem a autonomia moral. O primeiro estágio denomina-se sensório-motor porque “... à falta de função simbólica o bebê ainda não apresenta pensame nto nem afetividade ligados a representações, que permitam evocar pessoas ou objetos na ausência deles.”(Piaget e Inhleder, 1986 , p. 11). Por isto mesmo, no início do desenvolvimento, a inteligência se desenvolve de uma forma prática. A criança, através da percepção e dos movimentos, conquista todo o universo que a cerca. Nessa fase o conhecimento se dá pelo contato físico dela com o objeto. Centrada em si mesma vê o mundo a partir de sua própria perspectiva e não imagina que haja outros pontos de vista possíveis. No final do estágio, ou início do seguinte, ela já começa a voltar-se para a realidade exterior, indo do subjetivo para o objetivo, sendo capaz de usar um instrumento como meio para atingir um objeto. A principal característica do nível sensório-motor é o desenvolvimento de permanência do objeto . É nele que a criança elabora o conjunto das subestruturas cognitivas que deverão orientar as construções perceptivas e intelectuais posteriores. Ao final do período anterior - ou início do pré-operatório - a criança começa a falar, a usar jogos de faz-de-conta, a imitar, e então surge o simbólico, os primeiros ensaios de operações abstratas. Instalam-se simultaneamente: a função simbólica e a cognição representacional. Como decorrência do aparecimento da linguagem, o desenvolvimento do pensamento se acelera. Num intercâmbio mais ativo com o meio ambiente, inicia-se a interiorização dos esquemas de ação em representações, através do contato que a criança tem com o conhecimento produzido pelas pessoas que circulam em torno dela, em atividades de representações como o jogo simbólico, o desenho e a linguagem. Neste período a criança é capaz de reconstituir as ações por meio de imagens e de experiências mentais. No estágio das operações concretas a criança supera o egocentrismo intelectual e social da fase anterior e dá-se o início da construção lógica, ela já consegue realizar operações, isto é, é torna-se capaz de executar uma ação física ou mental dirigida para um fim e revertê-la para o seu início. Começa também a desenvolver os níveis operatórios de classificação, seriação e conservação passa a dominar as relações de causa e efeito; e a trabalhar com idéias de dois pontos de vistas simultaneamente.

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9 No aspecto afetivo a criança adquire uma autonomia crescente em relação ao adulto, passando a organizar seus próprios valores morais, tais como: o respeito mútuo, a honestidade, o companheirismo e a justiça. Ao longo deste estágio a criança torna-se capaz de cooperar com os outros, de trabalhar em grupo e, ao mesmo tempo, ter autonomia pessoal. Seu sentimento de per- tencimento ao grupo torna-se cada vez mais forte, possibilitando o enfrenta-mento das idéias e opiniões dos adultos, quando julgar-se certa. As crianças passam a elaborar formas próprias de organização grupal, em que as regras e as normas são concebidas como válidas e verdadeiras, desde que todos as adotem e sejam a expressão da vontade de todos. Portanto, novas regras podem surgir sempre que o educador achar necessário e criá-las junto com o grupo. No final deste período a criança típica alcança um nível de desenvolvimento em que já pode pensar em termos abstratos e dar explica-ções lógicas. As habilidades de abstração, reversibilidade e uso da lógica, dão a criança de onze, doze anos, a capacidade de pensar como um adulto. No estágio das operações formais, a última fase de construção da inteligência, o adolescente realiza as operações no plano das idéias, sem necessitar de manipulação ou referências concretas, é capaz de raciocinar so- bre simples hipóteses e, progressivamente, vai aumentando sua capacidade de abstrair e generalizar. É quando cria teorias sobre o mundo, tentando refor- mular o que acha de errado. Socialmente é a fase de afastamento da família e de integração ao grupo, que determina seu modo de agir, de vestir, seu vocabulário, etc. Não raras vezes o adolescente torna-se um revoltado, mas o alvo da sua contes-tação/reflexão é a sociedade. Ao final deste período, em torno dos 14, 15 anos, o adolescente apresenta sua estrutura mental pronta para o trabalho abstrato. Ao tomar em consideração um problema, é capaz de prever todas as relações que poderiam ser válidas; e determinar, por experimentação e análise, qual dessas relações possíveis tem validez real. A estratégia que trata de determinar a realidade, no contexto da possibilidade, tem caráter fundamentalmente hipotético-dedutivo. Diversamente do que ocorria no estágio anterior, os dados manipulados pelo adolescente em seu raciocínio já não são dados concretos, mas enunciados ou proposições. Todos os traços do pensamento apresentados neste estágio unem-se para se transformar em instrumento do raciocínio científico. O adolescente que já os tiver desenvolvido, torna-se capaz de achar a solução correta para um genuíno problema de descoberta científica. O domínio das operações lógicas, unido ao desenvolvimento da linguagem, são os responsá-veis pela formação espontânea de um espírito experimental Em síntese, na teoria de Piaget sobre o desenvolvimento da inteli-gência fica evidente que as relações lógicas não são dadas no sentido crono-lógico, trata-se de uma conquista do homem. A teoria piagetiana realça a interação com o ambiente e, quanto mais rica ela for, do ponto de vista das trocas verbais e outras formas de comunicação, mais probabilidade tem o indivíduo de desenvolver sua autonomia e seu raciocínio lógico. Uma vez atingida a inteligência lógica-formal não significa que, a partir daí, o sujeito só

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10 vá reajustar estruturas. Cognição não quer dizer acúmulo de estruturas prontas, a natureza última do conhecimento é estar permanentemente em construção. É plenamente aceito o caráter indissociável e paralelo dos desenvolvi-mentos cognitivo, afetivo e social. Assim a afetividade, a princípio centrada nos complexos familiais, amplia sua escala na medida em que se multiplicam as relações sociais. Os sentimentos morais ligados, no início, a uma autoridade sagrada, evoluem no sentido de um respeito mútuo e de uma reciprocidade. As trocas sociais estruturam uma gradual socialização, embora na concepção de Piaget as experiências vividas não desempenhem o principal papel na construção das estruturas cognitivas, dado que essas experiências não existem na consciência do sujeito, mas sim no seu comportamento operatório, ele não está preocupado com o conteúdo das experiências. Embora Piaget tenha se proposto a estudar o processo de desenvolvi-mento do pensamento - e não a aprendizagem em si – ele observa aprendizagem infantil para descobrir como se constrói o conhecimento. Seu modelo teórico pode ser qualificado em princípio de interacionista. Ele acredita que o conhecimento não é imanente nem ao sujeito nem ao objeto, mas construído na interação entre estes dois pólos. É preciso que se destaque que o sujeito estudado por ele não é um indivíduo particular qualquer, mas um sujeito ideal, universal, atemporal, epistêmico. O outro pólo desta relação, o objeto do conhecimento, refere-se a um meio genérico, que engloba tanto os aspectos físicos como os sociais. O conhecimento é sempre produto da ação do sujeito sobre o objeto. A obra de Piaget nos dá a idéia de que o conhecimento não se origina na percepção, mas sim na ação: “Nossos conhecimentos não provém nem da s ensação nem da percepção isoladamente, mas da ação global, de que a percepção participa apenas como função de sinalização. Própri o da inteligência, não é contemplar, mas “transformar”, e seu mecanismo é essencialmente operatório . Ora, as operações consistem em ações i nteriorizadas e coordenadas em estruturas de conjunto (reversíveis, etc.) ; se desejarmos explicar esse aspecto operatório da inteligência hu mana, convirá partir da ação – e não apenas da percepção. “ (Piaget in: Chi arottino, 1984, p. 104) Para Piaget o problema do conhecimento está estreitamente vinculado ao problema da aprendizagem. Aprender é saber fazer (realizar) e, conhecer é compreender, atribuindo significados às coisas, considerando não apenas os aspectos explícitos do fenômeno, mas principalmente os implícitos. Piaget distingue aprendizagem de maturação. Para ele maturação é fruto apenas de processos fisiológicos. Da mesma forma distingue aprendizagem de conheci-mento, definindo este último como a soma de coordenações que encontram-se disponíveis para o organismo, num determinado estágio do desenvolvimento. E aprendizagem é conceituada por ele como a soma das aquisições das contribuições provenientes do meio externo, através da utilização de um sistema de equilibração lógico (ou pré-lógico), capaz de organizar informa-ções. O sistema de equilibração, servindo como elo de ligação entre o desen-volvimento e a aprendizagem, combinando os fatores de ação externa com os fatores de organização interna, inerentes à estrutura cognitiva. Piaget identifica

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11 dois tipos de aprendizagem. No sentido estrito, refere-se aos conteúdos adquiridos em função da experiência; e no sentido amplo, compreende as aquisições que não são devidas diretamente à experiência, mas construídas por processos dedutivos, porque segundo ele, uma vez que o mecanismo foi constituído, dá lugar a aquisições novas, que, como tais, não se devem mais à experiência. Quando Piaget fala em aprendizagem, no sentido geral, ele está se reportando ao processo de desenvolvimento e quando se refere a apren-dizagem, propriamente dita, equivale somente à aquisição de novos conteúdos. Como todo conteúdo só pode ser atingido pela mediação de uma forma, não é difícil perceber que , na sua concepção, o processo de aprendizagem é subju-gado ao processo de desenvolvimento, sendo por este subjugado. Na sua opinião, a aprendizagem tem mais chance de dar certo, quando refere-se às necessidades da criança. Primeiro porque o interesse parte da própria criança, revelando que seu nível de organização mental está apto a realizar tal aquisição, já que a necessidade traz implícitas as formas ou estruturas cognitivas das quais a criança dispõe. Segundo, porque a aprendizagem passa a ser o meio através do qual a necessidade pode ser satisfeita, e a aprendi-zagem passa a ser necessária. 2.2. O LEGADO DE VYGOTSKY Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896, em Orsha, na extinta União Soviética, crescendo entre livros da biblioteca do pai, que compartilhava com amigos. Sua família possuía uma situação econômica bastante satisfatória. Vygotsky formou-se em direito pela Universidade de Moscou. Freqüentou cursos de história e de filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii, aprofundou seus estudos em psicologia e estudou também medicina. Foi professor e pesquisador nas áreas de psicologia, pedagogia, filosofia, literatura, deficiência física e mental, atuando em diversas instituições de ensino e pesquisa, ao mesmo tempo em que estudava, escrevia e dava conferências. Ao lado da sua vida profissional, propriamente dita, mantinha uma intensa vida intelectual, integrando vários grupos de estudos, fundando uma editora, e uma revista literária, coordenando o setor de teatro do Departamento de Educação de Gomel e editando a secção de teatro local. Ao longo de seus textos, Vygotsky recorre freqüentemente a situações extraídas de obras literárias. O Psicólogo Russo morreu em 1934, aos 38 anos, deixando uma produção escrita vastíssima, para uma vida tão curta: 200 trabalhos científicos, cujos temas vão desde a neuropsicologia até a crítica literária, passando por deficiência, linguagem, psicologia, educação e questões teóricas e metodo-lógicas relativas às ciências humanas. Juntamente com Luria e Leontiev, Vygotsky formava um grupo de jovens intelectuais na Rússia pós-Revolução, que trabalhava com grande idealismo pelo emergir de uma nova sociedade. Buscava uma nova psico-logia, uma síntese, que conseguisse superar a crise entre as abordagens reinantes à época. De um lado a Psicologia Experimental, tomando o homem

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12 como basicamente um corpo e, de outro, a psicologia como ciência mental, tomando-o como mente, consciência e espírito. Enquanto uma deixava de abordar as funções psicológicas mais complexas, a outra não chegava a produ- zir descrições convincentes para a ciência. Assim, a abordagem que busca a síntese integra, numa mesma perspectiva, o homem enquanto: corpo e mente; membro da espécie humana; e um ser biológico e social, participante de um processo histórico. Três idéias centrais norteiam esta nova psicologia: a relação homem-mundo é mediada por sistemas simbólicos; as funções psicológicas têm um suporte biológico (cérebro); a integração homem-mundo é uma relação media-da por sistemas simbólicos; e o funcionamento psicológico) fundamenta-se nas relações sociais (que se desenvolvem em um processo histórico) entre o indi-víduo e o mundo exterior. Um conceito central para a compreensão das concepções vygotskyanas sobre o funcionamento psicológico é o de mediação. Para o autor, o homem não se relaciona com o mundo diretamente, essa relação é fundamen-talmente mediada por ferramentas auxiliares da atividade humana. As funções psicológicas superiores apresentam uma estrutura tal que Vygotsky (1984, p.59) distinguiu dois tipos de elementos mediadores: os instrumentos e os signos. “A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, c omprar coisas, relatar, escolher, etc.), é análoga à invenção e us o de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel d e um instrumento de trabalho.” Os signos aparecem como marcas externas, que fornecem um suporte concreto para a ação do homem no mundo. Ao longo do processo de desenvolvimento o indivíduo deixa de necessitar de marcas externas e passa a utilizar signos internos, representações mentais que substituem os objetos do mundo real. Os signos internalizados representam objetos, eventos, situações. Quando o indivíduo trabalha com os processos superiores de funcionamento psicológico , as representações mentais da realidade exterior obtidas por ele são, na verdade, os principais mediadores a serem considerados na relação dele com o mundo. Os sistemas de representação da realidade são socialmente fornecidos. O indivíduo portanto adquire suas formas de perceber e organizar o real , de acordo com o grupo cultural onde se desenvolve. É no - e com o - grupo que acorre então a constituição dos instrumentos psicológicos que farão a media-ção entre o indivíduo e o mundo. Fica plácido que os grupos culturais constituídos operam psicologicamente de uma maneira particular, de acordo com os modos culturalmente construídos. Vygotsky pensa a cultura como algo em constante ebulição, caldeirão em que seus membros estão em movimento permanente de recriação e re-interpretação de informações, conceitos e significados. Para ele, a vida social reúne sujeitos ativos e se constitui num local de interação entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um.

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13 O autor postula a interação entre vários planos históricos: a história da espécie (filogênese);a história do grupo cultural; a história do organismo individual da espécie (ontogênese); e a seqüência singular de processos e experiências vividas por cada indivíduo. Uma espécie de antropofagia cultural faz o indivíduo tomar posse dos comportamentos impingidos pela cultura na qual está inserido, de alguma forma. Para Vygotsky, o funcionamento tipicamente humano é social e, por-tanto, histórico. Ele entende que os sistemas simbólicos, e particularmente a linguagem – sistema simbólico básico de todos os grupos humanos – exercem um papel capital na comunicação entre os indivíduos, estabelecendo o compartilhamento de significados que implica em interpretações, similares de alguma forma, de eventos, dos objetos e de situações do mundo real. O desen-volvimento da linguagem e suas relações com o pensamento ocupam lugar de destaque na obra de Vygotsky. Ele explica que os dois fenômenos têm origem e trajetórias diferentes e independentes, durante seu desenvolvimento, antes que venha a ocorrer a ligação estreita entre eles. Quando essas duas trajetórias se unem, o pensamento se torna verbal e a linguagem racional. O surgimento do pensamento verbal e da linguagem como sistema de signos é um momento crucial no desenvolvimento da espécie humana, é quando o biológico transforma-se no sócio-histórico. Na análise que Vygotsky faz das relações entre pensamento e linguagem, a questão do significado das palavras ocupa lugar central, porque é na significação da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal, criando as duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. São os significados que vão criar a mediação sim-bólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo a leitura através da qual o indivíduo torna-se capaz de compreender o mundo e de agir sobre ele. Ao se apropriar dos significados expressos pela linguagem, a criança passa a aplicá-los ao seu universo de conhecimentos a respeito do mundo, na sua forma particular de recortar a experiência que vive. Ao longo de seu desenvolvimento, através de interações verbais com crianças mais velhas e adultos, a criança passa a ajustar seus significados de modo a aproximá-los dos conceitos predominantes no grupo cultural e lingüístico no qual se insere. Durante todo o desenvolvimento do indivíduo, no entanto, quando se inicia o processo de aprendizagem escolar. É então que se realiza a intervenção deliberada do educador na formação da estrutura conceitual das crianças e adolescentes, quando passam a ocorrer, a partir de definições, referências e ordenações, de diferentes sistemas conceituais, mediadas pelo conhecimento já consolidado na cultura. Vygotsky distingue dois componentes do significado da palavra: o significado propriamente dito, que refere-se ao uso corrente, compartilhado por todas as pessoas que a utilizam, e o sentido, que trata-se da significação da palavra para cada um, relacionado com o contexto utilizado e as vivências afetivas do indivíduo. O desenvolvimento da linguagem e suas relações com o pensamento são questões centrais na obra do pesquisador, para ele:

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14 “a relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do pensa mento e a palavra passa por transformações que, em si mesma, podem se r consideradas um desenvolvimento no sentido funcional. O pensamen to não é simples- mente expresso em palavras; é por meio delas que el e passa a existir.” (Vygotsky, 1989, p. 9.) Para Vygotsky, a linguagem age decisivamente na estrutura do pensamento e é a ferramenta básica para a construção dos conhecimentos, por ser a principal mediadora entre o sujeito e o objeto do conhecimento. A linguagem é vista por ele como um instrumento, por atuar no desenvolvimento e na estrutura das funções psicológicas superiores, tanto quanto qualquer instrumento criado pelo homem modifica as formas humanas de vida. Vygotsky não chegou a formular uma teoria estruturada do desenvol-vimento humano, ainda que o desenvolvimento da espécie, dos grupos cultu-rais e do indivíduo seja objeto privilegiado em suas investigações e concep-ções. Mas a par disto, nos oferece reflexões e dados de pesquisa sobre vários aspectos do desenvolvimento. Ao lado desta preocupação com o desenvolvi-mento, Vygotsky enfatiza em sua obra a importância dos processos de apren-dizagem. Para ele, os dois temas se inter-relacionam estreitamente, sendo a aprendizagem “um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalme nte organizadas e especificamente humanas.” (Vygotsky, 1984, p.101) Essa concepção de que a aprendizagem possibilita o despertar de processos internos do indivíduo, liga o desenvolvimento do aluno à sua relação com o ambiente sócio-cultural em que vive e, a sua situação de organismo que não se desenvolve plenamente sem o suporte de outros indivíduos de sua espécie. Esse enfoque que Vygotsky dá ao outro social, no desenvolvimento da pessoa, está formulado num conceito seu, o de zona de desenvolvimento proximal. “A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo d e maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemen te em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de frutos do desenvolvimento.” Vygotsky, 1984, p. 97) Vygotsky denomina a capacidade de realização de tarefas de forma independente, sem o auxílio de ninguém, de nível de desenvolvimento real. Es-ta capacidade é resultado de processos de desenvolvimento já concluídos, consolidados. Ele chama a atenção ao fato de que para termos a noção adequada do nível de desenvolvimento de um indivíduo, precisamos consi-derar, além do seu nível de desenvolvimento real , também o seu nível de desenvolvimento potencial, isto é, a sua capacidade de desempenhar tarefas com a ajuda de outro. Todos temos noção de que há tarefas que uma criança não é capaz de realizar sozinha, mas que com uma explicação, demonstração, que indique se ela está certa ou errada, conseguirá fazê-las adequadamente ou - no mínimo - obterá um resultado mais avançado do que se fizesse sozinha ou deixasse de fazê-lo.

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15 Essa possibilidade de alteração do desempenho de um estudante pela interferência de outra pessoa é fundamental na teoria de Vygotsky, porque não é qualquer aluno que se sai bem com esta ajuda; o auxílio apenas será rele- vante para aquele que estiver num certo nível de desenvolvimento, nunca antes. A partir da postulação da existência desses dois níveis de desen-volvimento – o real e o potencial – Vygotsky define a zona de desenvolvimento proximal, entendo-a como: “ a distância entre o nível de desenvolvi mento real, que se costuma determinar através da solução independente de probl emas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da s olução de proble- mas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com com-panheiros mais capazes.”(Vygotsky, 1984, p. 97) É como se o processo de desenvolvimento progredisse mais lentamente que o processo de aprendizado. O aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar-se parte das funções psicológicas consolidadas . A implicação dessa concepção de Vygotsky para o ensino escolar é imediata. Se o processo de ensino aprendizagem desencadeia o desenvolvimento, a escola certamente participa ativamente na construção do ser psicológico maduro nas sociedades escolarizadas. Conclui-se então que a função principal do professor, é interferir junto a zona de desenvolvimento proximal dos alunos, provocando avanços que não ocor-reriam espontaneamente. Um colega mais adiantado da mesma forma pode interferir positivamente no processo, auxiliando o/a colega. Os pais também, quando ajudam os filhos na resolução de uma tarefa escolar estão auxiliando-os no seu desenvolvimento e não burlando as normas escolares, consideração no mínimo rançosa. As pesquisas de Vygotsky não se voltaram somente para o desenvol-vimento e a aprendizagem dos alunos tidos como normais. Desenvolveu um trabalho com crianças e adolescentes portadores de deficiências (física, visual, mental, auditiva e múltipla), no Instituto Experimental de Defectologia, na Rússia, no início do século passado. Ele aconselha a não reduzirmos as possibilidades do aluno portador de deficiência, imaginando de antemão que ele não alcançará determinado objetivo e sim que juntamente com ele, através de um constante processo de interação lhe abramos as vias de acesso ao conhecimento. Como ele mesmo afirma: “A educação para estas crianças deveria se basear na organização especial de suas funções e em suas características mais positivas, ao invés de se basear em seus aspectos mais deficitári os.” (Vygotsky, 1989, p.28) Portanto, segundo o autor, não podemos nos restringir ao que a pessoa portadora de deficiência não pode alcançar de antemão, ao contrário, precisa-mos nos abrir para as possibilidades dela de acesso ao conhecimento e aos valores, auxiliando-a, através de um processo de interação constante, para que ela caminhe até aonde conseguir. Mesmo porque a hereditariedade , o cresci-mento orgânico, o aspecto intelectual e a maturação neurofisiológica são alguns dos fatores que influenciam no desenvolvimento humano, mas há outros

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16 aspectos que são também bastante importantes, tais como o aspecto social e o afetivo que ajudam no desabrochar do indivíduo. Vygotsky trabalha ainda com uma outra área de atividade infantil que está relacionada com o desenvolvimento: o brinquedo. Comparada com as atividades escolares mais comuns a situação de brincadeira parece pouco estruturada, no entanto possui uma função explícita na promoção de processos de desenvolvimento. O brinquedo também cria uma zona de desenvolvimento proximal. Quando o autor discute o papel do brinquedo, refere-se a uma espécie de brincadeira específica: a brincadeira de faz-de-conta, que corresponde ao jogo simbólico estudado por Piaget. Esse gênero de brincadeira, promove uma situação de transição entre a ação da criança com objetos concretos e suas ações com significados. Essas brincadeiras, além de trabalharem com uma situação imaginária, que faz a criança separar o objeto do significado, contém regras que têm que ser seguidas, e, ao segui-las, a criança se comporta num nível de desenvolvimento mais avançado do que o habitual para a sua idade. Isto posto, conclui-se que atividades que favoreçam o envolvimento das crianças com brincadeiras, especialmente as que promovam a criação de situações imaginárias, possuem uma clara função pedagógica para atuar no processo de desenvolvimento, principalmente entre a crianças da pré-escola. Há uma concepção sobre a aprendizagem cuja primazia é fragrante nas nossas escolas: a idéia de que a aprendizagem se faz em torno de conceitos, enunciados e definições. Daí, a utilização desses elementos como ponto de partida para o que se quer ensinar. Outra decorrência de tal enfoque é a forma de apresentar um dado conteúdo: a um conceito segue-se outro, que se articula com um terceiro, e assim por diante. Os professores interessados no desenvolvimento dos seus alunos, deveriam atentar para os estudos de Vigotsky e seus seguidores sobre o processo de educação escolar, que nos fornecem vigorosas bases teóricas para o entendimento de como se dá a aprendizagem por compreensão . Ele afirma que: “A formação de conceitos é o resultado de uma ativid ade complexa, em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser reduzido à atenção, à associa ção, à formação de imagens, à interferência, ou às tendências determin antes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o uso do si gno ou palavra, como meio pelo qual conduzimos as nossas operações me ntais, controlamos o seu curso e as canalizamos em direção à solução d o problema que enfrentamos.” (Vygotsky, 1989, p. 50) Através das palavras nomeamos e representamos objetos; fazemos abstrações e generalizações, que garantem nossa comunicação com as pessoas, nos libertando do domínio da experiência concreta. Se, inicialmente a criança formula conceitos, a partir de uma relação direta, que estabelece com a realidade concreta, aos poucos, vai conseguindo isolar determinados atributos do objeto, rumo às abstrações e generalizações, cada vez mais complexas. Assim o desenvolvimento conceitual não se dá de forma definitiva, mas gradual

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17 da mesma forma que a evolução da palavra, como o próprio Vygotsky explica mais adiante: “Um conceito se forma não pela interação de associações, mas mediante uma operação intelectual em que todas as f unções mentais ele-mentares participam de uma combinação específica. (...) Quando se examina o processo de formação em toda a sua comple xidade, este surge como um movimento do pensamento, dentro da pirâmide de conceitos, constantemente oscilando entre duas direções, do pa rticular para o geral e do geral para o particular. ( Vygotsky 1989, p.7 0) Ou seja, dominar um conceito vai muito além das simples cadeias de asso-ciações. Estas, quando muito, podem levar à elaboração de pseudoconceitos. O fato do aluno repetir o que foi ensinado, sem conseguir generalizar, sem aplicar o conceito a outras situações e não conseguir perceber casos particulares que exemplifiquem o que foi trabalhado, na realidade aponta uma crua situação: o aluno não chegou a elaborar nenhum conceito. E isto não aconteceu, porque estava provavelmente no estágio anterior, chamado por Vygotsky de pseudoconceito. Os estudos de Vigotsky (1989) apontam que a tarefa de ser mediador, entre o objeto e o sujeito do conhecimento, exige do professor o desenvol-vimento de certas atitudes. Destacam-se, dentre essas:a de descobrir o que o aluno já sabe; a de organizar de forma coerente e articulada o conteúdo a ser transmitindo; a de criar condições para que ele possa passar do particular para o geral, e deste para aquele, de tal forma que ele próprio reconstrua o conheci-mento. Nisto reside, provavelmente, um dos aspectos mais importantes do pro-cesso de aprendizagem. Do ponto de vista da semântica, deve-se ter a preocupação de levar o aluno a compreender o sentido do conteúdo, qual a relação que ele tem com sua vida , com seu mundo e com a sociedade na qual está inserido. Posto isto, o professor deve sempre tentar relacionar os conteúdos programáticos com as experiências diárias da vida dos alunos e da sociedade em geral. É importante assinalar que esse processo não pode prescindir da atitude de querer aprender, por parte do aluno. O movimento neste sentido é pois condição imposta para que a aprendizagem ocorra. Ao aluno porém não basta querer aprender. A aquisição e/ou construção de novos conhecimentos, especialmente os de caráter mais abstrato, não se dá pela interação de associações do tipo estímulo-resposta. Ao contrário, é algo mais complexo. Dirigida pelo uso da palavra, é uma operação mental que exige que se centre ativamente a atenção sobre o assunto, dele subtraindo os aspectos que são fundamentais, e que se chegue a generalizações mais amplas mediante uma síntese, segundo o autor. (Vygotsky, 1989) Nesse particular, assume papel de destaque o conhecimento científico. Ao contrário do espontâneo, ele só se elabora em função de uma intencionalidade, isto é, pressupõe uma relação consciente e consentida entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Isto porque os conceitos espontâneos existem sem que se tenha consciência deles ou que sobre eles se exerça qualquer controle, enquanto que os científicos, por sua própria natureza, exigem uma sistemati-zação para que sua apreensão se dê plenamente.

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18 Wygotsky ( 1989) ressalta ainda o papel da escola e do professor em particular, na aquisição desse tipo de conceito. Destaca que se um aluno conseguir dar explicações convincentes sobre questões relacionadas a um assunto x, mesmo usando palavras cujo significado lhe era, até pouco tempo atrás, desconhecido, deve-se sobretudo à ação do professor. Ao contrário do conhecimento espontâneo, o que se aprende na escola é hierarquicamente sis-tematizado e exige, para ser compreendido, que seja intencionalmente trabalhado num processo de interação professor/aluno. Evidentemente que tal aprendizagem só irá ocorrer se quem ensina souber conduzir o processo na direção desejada, o que implica em reconstrução do saber. Vygotsky (1989, p.92) é bem claro ao determinar o papel de mediador do professor na relação sujeito/objeto de conhecimento. Diz ele: “(...) o professor trabalhando com o aluno, explicou, deu informações, questionou, corrigiu o aluno e o fez explicar”. O professor pode estar certo de que se o aluno conseguir expressar com suas próprias palavras o assunto tratado, naquele momento o que se construiu foi uma aprendizagem. É importante também chamar a atenção para a relação que Vygotsky estabelece entre o conceito espontâneo e conceito científico . Através de experimentos científicos ele chegou à conclusão de que o alcance e o controle de conceitos científicos implicam a reconstrução, seguindo os mesmos moldes, dos conceitos espontâneos. O domínio de um nível mais elevado na esfera dos conceitos científicos eleva, por sua vez, o nível dos conceitos espontâneos. Há como um movimento, no qual os científicos descem na direção da realidade concreta e os espontâneos sobem buscando a sistematização, a abstração, e a generalização mais ampla. Visto por este prisma, ressalta com força absoluta o papel que a escola pode desempenhar na luta dos setores populares pela apropriação do saber culturalmente sistematizado. A forma metódica e intencional como os conceitos científicos nela são trabalhados, abre caminho para a revisão e melhor com-preensão dos conceitos espontâneos que cada aluno traz dentro de si . Assim refletindo o cotidiano de sua classe social, o aluno leva para a escola, na forma de conceitos espontâneos, certos conhecimentos e valores, dos quais vai adquirindo progressiva consciência através desse movimento . Dependendo como isto é trabalhado, pode resultar daí uma maior lucidez por parte do aluno, das relações de força presentes na sociedade, mas que não con-seguiam atingir sua compreensão. A abordagem cognitivista da aprendizagem, nos moldes preconizados por Vygotsky, pode se transformar em uma forte aliada dos setores mais oprimidos da população, no sentido de atingir e ampliar suas conquistas no campo do saber, de transformá-los em sujeitos sociais conscientes e atuantes. Nem sempre os alunos das classes populares estão em condições de atribuir um significado imediato a determinados conteúdos distantes de seu saber coti-diano. Não percebendo o significado algum naquilo que está sendo ensinado, o aluno simplesmente tenta decorar a informação. Não havendo a prevalência do significado, ocorre então um outro tipo de aprendizagem: a automática ou mecânica. E mesmo neste tipo de aprendizagem são os alunos privilegiados socialmente que se saem melhor, até porque os conteúdos programáticos que

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19 fazem parte dos currículos aproximam-se muito mais da cultura da classe alta. Para eles, atribuir sentido, ver o significado de um conteúdo que lhe foi passa- do nos moldes do estímulo –resposta torna-se fácil, na medida que possuem muito mais informações relacionadas com as viagens que fazem, os filmes que vêem, as conversas que ouvem, as revistas às quais tem acesso, os lugares por onde passam, que acabam fatalmente lhes enriquecendo a experiência. É fácil para um destes alunos encaixar certos conhecimentos trabalhados na escola numa rede de significados ampla e complexa, mais clara, por isso mesmo. A memória não se sobrecarrega. Os conteúdos têm mais chances de serem compreendidos. Se o professor procurar se acercar do saber espontâneo de seus alunos, de sua cultura, de suas vivências e de suas experiências anteriores, por certo conseguirá trabalhar no sentido da compreensão, com muitos dos conhecimentos que são transmitidos, geralmente, de forma a privilegiar a aprendizagem automática. Vygotsky afirma que o professor tem de manter uma estreita interação com os alunos. Formular questões, pedir exemplos, apresentar problemas de uma maneira nova, evitar rotina, a cópia de modelos, enfim, usar recursos que levem os alunos a pensar e a trabalhar mentalmente o conhecimento são e-xemplos de como deveria se dar essa interação. Diante destas esperanças da educação dar certo no nosso país, que se avolumam na medida que adentramos a obra de pensadores como Vigotsky e Piaget , a fim de formular este artigo, chocante é constatar que a grande parte do conhecimento veiculado em sala de aula não se afasta dos pseudoconceitos ou da simples memorização. Se a escola pretende ser um espaço de construção do conhecimento, de apropriação do saber culturalmente valorizado e sistematizado, de instrumen-talização de técnicas; espaço de criação, expressão e acesso aos bens cultu-rais, precisa estar aberta à realidade social de seus alunos, capacitando-os, auxiliando-os a desenvolverem uma compreensão da realidade vivida. Seus professores precisam para tanto, perceberem-se como agentes de mudança, comprometidos politicamente com a tarefa de ajudar a construir sujeitos sociais críticos e bem-informados. Professores preocupados em preparar o educando para o exercício da cidadania. 3. ENCONTROS E DIVERSIDADES ENTRE PIAGET E VYGOTSK Y Embora haja uma diferença marcante no ponto de partida que definiu a obra de Piaget e a de Vygotsky – o primeiro tentando desvendar as estruturas e mecanismos universais do funcionamento psicológico do homem, e o último tomando o ser humano como essencialmente histórico, e portanto sujeito às especificidades de seu contexto cultural – há diversos pontos nos quais o pensamento dos dois convergem. As diferenças mais gerais decorrem da diferença de foco dos estudos de cada um. O principal interesse de Piaget era estudar o desenvolvimento das estruturas lógicas, enquanto que Vygootsky pretendia entender a relação do pensamento com a linguagem e suas implica-

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20 ções no processo de desenvolvimento intelectual. Tanto Piaget como Vygotsky são interacionistas, postulam a importância da relação entre indivíduo e ambiente na construção dos processos psicológicos. Nas duas abordagens o indivíduo é ativo em seu próprio processo de desenvolvimento: nem está sujeito apenas a mecanismos de maturação, nem submetido passivamente a imposições do ambiente. Mas enquanto sob a perspectiva piagetiana o conhecimento de dá a partir da ação do sujeito sobre a realidade, para Vygotsky, esse mesmo sujeito não só age sobre a realidade, mas interage com ela, construindo seus conhecimentos a partir das relações intra e interpessoais. O estudioso russo defende que é na troca com outros sujeitos e consigo mesmo que o sujeito internaliza conhecimentos, papéis e funções sociais. Embora para Piaget a construção do conhecimento esteja determinada, fundamentalmente, pela ação da criança, através dos mecanismos de adaptação e organização e do nível de maturação requerido pela experiência, a criança interage com o meio , construindo estruturas de pensamento cada vez mais complexas. Neste sentido, o que interessa à concepção piagetiana são as contribuições do sujeito no processo de desenvolvimento, que refere-se de forma genérica e tangencial ao contexto social no qual o sujeito está inserido. É claro que apesar de não privilegiar o social sobre o individual, Piaget acredita que somos também produto do nosso meio, somos co-estruturados pelas estruturas macrossociais, pelas estruturas micro ( da famí-lia, escola, da classe social em que vivemos), mas não somos meros reflexos dessas estruturas. Há um espaço de autonomia e liberdade em cada ser individual, cada ser humano é singular, o que é um conceito filosófico introduzido pela dialética hegeliana, que nos permite responder a este mundo. Também o construtivismo pós-piagetiano, apesar de uma certa aversão à fundamentação sociológica, acaba incluindo a dimensão social, a dimensão do outro, a dimensão dialógica , na própria construção do pensamento. Já em Vygotsky a possibilidade do indivíduo constituir-se enquanto sujeito e de se apropriar das conquistas da espécie, está condicionada ao desenvolvimento do sistema nervoso e à qualidade das trocas que ocorrem com os outros indivíduos, maturação e interação social estão na balança. Para ele não é possível admitir um esquema universal que represente adequada-mente as relações dinâmicas entre os aspectos endógenos e exógenos no processo de desenvolvimento, porque temos que considerar também as pecu-liaridades históricas e sociais de cada momento. Até porque, se considerar-mos os sistemas funcionais de aprendizagem de uma criança, ainda que semelhante ao de outra, os dois não podem ser tomados como idênticos, pois dependendo dos instrumentos de pensamento disponíveis a cada uma delas, suas mentes terão , por conseqüência , estruturas diferentes. Na concepção Vygotskyana o ambiente social em que a criança se encontra inserida constitui, de fato, uma zona de desenvolvimento, na medida que as pessoas mais experientes colocam-se como uma forma de consciência indireta que ajuda a criança a discernir melhor sua experiência. Por isso Vygotsky não pode ser classificado somente como interacionista e sim sócio-interacionista, na medida que ele entende por objeto não um meio genérico,

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21 abstrato e atemporal, mas, sobretudo, um ambiente social, historicamente determinado. Vygotsky deixa transparecer o peso das interações sociais em sua proposta teórica, especialmente quando analisa a função da linguagem no processo do desenvolvimento. Enquanto Piaget acredita que a fala deve passar por um processo de evolução para tornar-se socializada – quando então poderá ser um mecanismo verdadeiramente útil (comunicativo) nas relações de cooperação – Vygotsky considera que a função primordial da fala, tanto nas crianças quanto nos adultos, é a comunicação, o contato social. Para ele a fala é socializada desde o estágio mais primitivo e a linguagem age decisivamente na organização do raciocínio, especialmente a partir do momento em que ela assume a função planejadora, reestruturando diversas funções psicológicas, como a memória, a atenção e a formação de conceitos. A linguagem abre caminhos para a zona de desenvolvimento proximal, ajudando a criança a avançar de um nível de desenvolvimento real para uma área de potenciali-dades, através da mediação realizada pelo outro. A questão da fala egocêntrica constitui-se também em um dos pontos divergentes entre os dois estudiosos. Vygotsky destaca a fala egocêntrica (discurso interior) como um fenômeno relevante para a compreensão da transição entre o discurso interior e o socializado. Para Piaget, a fala egocên-trica seria uma transição entre estados mentais individuais não-verbais, de um lado, e, do outro, o discurso socializado e o pensamento lógico, numa trajetória de “ dentro para fora”, enquanto que para Vygotsky o percurso seria de “fora para dentro”. Esses dois teóricos também divergem quanto às relações entre o desenvolvimento e a aprendizagem humana. Enquanto a teoria genética do desenvolvimento de Piaget é bastante articulada e complexa, tratando de toda a trajetória do processo, os estudos de Vygotsky não nos permitem interpretar a construção psicológica do indivíduo, do seu nascimento à idade adulta, entretanto ele aborda vários aspectos do desenvolvimento dentro de uma abordagem também genética. Piaget afirma que o desenvolvimento progres-sivo das estruturas intelectuais (estágios do pensamento) é que nos torna capazes de aprender. E Vygotsky postula que só o processo de aprendiza-gem, desencadeado num determinado ambiente sociocultural, é que poderia despertar os processos de desenvolvimento interno do indivíduo, ou seja, das suas funções psicológicas superiores. Enquanto para Piaget a aprendizagem depende do estágio de desenvolvimento atingido pelo sujeito, para Vygostsky, a aprendizagem favorece o desenvolvimento das funções mentais. Muito em-bora a aprendizagem que ocorre antes da chegada da criança à escola seja importante para o seu desenvolvimento, Vygotsky atribui um valor significativo ao processo de ensino- aprendizagem por produzir algo de novo , sistematiza-do e organizado. Para Piaget – que postula que o sujeito epistêmico se constrói ao construir sua inteligência mediante a construção do conhecimento – o eixo da interven-ção psicopedagógica é o sujeito em seu movimento de construção do conhe-cimento. Ou seja, a função principal do professor é a de servir de mediador em-tre o sujeito e o objeto, nas construções do conhecimento e da inteligência. Já

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22 Vygotsky, demostra através do conceito de zona de desenvolvimento proximal, o quanto a aprendizagem influencia o desenvolvi mento cabendo ao professor criar sucessivas situações em que as recém surgidas zonas de desenvolvimen-to proximal se consolidem e surjam sempre novas para se processar o desenvolvimento à medida que a apreensão do conhecimento vá se construindo. A intervenção deliberada do professor, no sentido de ser o mediador entre o conhecimento e o aluno – num processo de aprendizagem interativa – representa um papel central na trajetória dos indivíduos que passam pela escola, e essencial ao seu processo de desenvolvimento. Outro ponto de convergência entre as teorias de ambos os autores encontra-se no estudo do brinquedo e do jogo simbólico (faz-de-conta) – que além de propiciar à criança a ludicidade - auxiliam na impulsão : do intercâmbio entre o cognitivo e o afetivo; no avanço das relações interpessoais; no conheci-mento lógico-matemático; na representação do mundo; no desenvolvimento da linguagem, e no da leitura e escrita. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Piaget e Vygotsky nos legaram uma produção vasta e densa com inegáveis contribuições para a área da educação. E, embora as suas obras pareçam, à primeira vista, contraditórias, divergentes, na realidade podem até ser consideradas complementares, servindo de base para um construtivismo sócio-interacionista . As concepções piagetianas já vem há duas, quase três décadas, ser-vindo para nortear as intervenções psicopedagógicas em muitas escolas brasileiras. Já o estudo da abordagem de Vygotsky é mais recente e nos impulsiona a encarar o processo ensino-aprendizagem com outros olhos e com mais esperança de conter a repetência e a evasão escolar. A partir dele, algumas coisas mudam radicalmente. A idéia de uma classe homogênea cai por terra, por exemplo. A construção do conhecimento deixa de ser considera-da como um ato solitário, mas de interação com o outro. O processo de constituição do conhecimento é tão importante quanto o produto, o curso interno do desenvolvimento do aluno deve ser constantemente observado para que o professor intervenha na zona de desenvolvimento proximal . A reorga-nização das experiências pedagógicas devem considerar o quanto de cola-boração o aluno ainda necessita para chegar a produzir determinadas ati-vidades de forma independente. O professor que ensina e os alunos que ab-sorvem conhecimento como esponjas, passa a ser um mito. Agora o professor é o agente mediador do processo de aprendizado, propondo desafios na sala de aula e ajudando às crianças a resolvê-los.

ALEI Julho / 2003

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