artigo 1 adaptaues e resistncias no mundo islmico e a expanso ocidental
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Adaptaes e resistncias no mundo islmico e a expanso ocidental
Edgard Leite1
Resumo: O presente artigo procura analisar alguns aspectos do desenvolvimento
econmico do mundo muulmano. Sustentamos a existncia de obstculos substanciais,
de natureza ideolgica e cultural, que impedem o florescimento do capitalismo entre os
povos islmicos. No entanto, defendemos tambm que movimentos permanentes de
adaptao criaram, ao longo dos sculos, elementos capazes de propiciar uma adaptao
gradual do Isl aos modelos capitalistas ocidentais, permitindo a emergncia de um
mercado financeiro provavelmente eficiente.
Palavras- chave: Isl e capitalismo. Modernizao no mundo islmico. Expanso
econmica ocidental.
Abstract: This article analyzes some aspects of economic development in the Muslim
world. We argue that there are substantial obstacles, cultural and ideological factors,
that impede the flourishing of capitalism between the Islamic peoples. However, they
also hold permanent adjustment movements established over the centuries, capable of
providing a gradual adaptation of Islam to Western capitalism, allowing the emergence
of an efficient financial market
Keywords: Islam and capitalism. Modernization in the Islamic world. Western
economic expansion.
1 Doutor em Histria pela Universidade Federal Fluminense, professor da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Histria e Cultura Judaica.Contato: [email protected]
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I- Adaptaes.O descompasso entre a Europa ocidental e as sociedades islmicas, do ponto de vista
econmico-social, tornou-se evidente nos sculos XV-XVI, no limiar da modernidade.
E esse um ponto importante na avaliao da natureza das relaes entre os dois
mundos e das presses que vem sendo submetidas as sociedades muulmanas desde
ento.
Naquele momento ocorreu a falncia dos milenares caminhos comerciais que uniam a
sia Europa por via da abertura de novas rotas martimas. Ao mesmo tempo,
verificou-se o esvaziamento do papel central que o mar mediterrneo desempenhara
desde tempos remotos, o seu afastamento da grande histria, ao qual se referiu
Fernand Braudel (BRAUDEL, 1987, II, p.717). O Atlntico emergiu como eixo das
atividades econmicas mundiais. Inviabilizou-se assim, do ponto de vista econmico,
uma preeminncia centenria das sociedades islmicas, localizadas entre o mar da China
e ndico e o Mediterrneo. E lanou-as em sculos de perplexa e impotente reao.
O no entendimento do processo que se desenrolava na Europa e que subitamente
destruiu uma dada insero econmica no mundo no foi um fenmeno apenas
muulmano. Outras civilizaes tambm foram pegas de surpresa pela emergncia
mundial dos europeus. Algumas foram total ou quase totalmente aniquiladas sem
condio de reao. Outras esboaram resistncias de longo prazo. Algumas dessas,
dotadas de mecanismos prprios de reflexo institucionalizados, acabaram porestabelecer dinmicas de aproximao e compreenso, aderindo ao processo que foi
posto em movimento no limiar do mundo moderno e reproduzindo-o a partir de suas
prprias bases, como a civilizao hindu, ou a China no sculo XX. E, de forma
notvel, a Rssia. Evidentemente que a modernidade trouxe consigo a essas sociedades
ao longo dos sculos no apenas Vasco da Gama e Adam Smith, mas tambm Karl
Marx. E todas essas idias forneceram caminhos para a formao de estratgias de
continuidade civilizacional e adaptao.
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No podemos dizer, evidentemente, que o Isl no tenha produzido proposies
histricas capazes de encarnar a modernidade europia e torn-la compreensvel e
realizvel- de uma forma ou outra. Proposies que permitiram a construo de
mecanismos de sobrevivncia. Muhammad Ali (1769-1849) Kediva do Egito e Sudo,
foi um dos um pioneiros na tentativa de implementar reformas de natureza econmica e
financeira- capitalistas- no Isl. Estabeleceu o controle do Estado sobre as terras,
introduziu o cultivo do algodo, tentou profissionalizar o quadro de funcionriospblicos, e buscou organizar uma indstria de tecelagem com alguma competitividade
(POLLARD, 2005, p.15+) (WILSON, 2001, loc. 990).
Na Turquia igualmente, no mesmo perodo, o Sulto Mahmud II (1785 1839) deu
incio a uma srie de reformas administrativas, sociais e econmicas, o tanzimat,
reorganizao cujo esprito se estendeu pelo sculo XIX- ainda que de forma
tumultuada e contraditria. A tentativa turca de tornar sua economia competitiva
encontrou momento importante na criao, em 1851, da primeira empresa de aes
predominantemente muulmana, a Sirket-i Hayriye, a companhia auspiciosa. A
adoo do cdigo comercial francs forneceu o suporte legal necessrio para a
estabilidade das atividades econmico-financeiras (KURAN, 2011, loc.1726-31).
Essas aes abriram caminho, na Turquia, para a constituio de 1876 (baseada, entre
outros textos legais europeus, na constituio belga) e, do ponto de vista econmico,
para a definitiva anulao das capitulaes, acordos especiais de comrcio quepreservavam interesses estrangeiros margem do direito islmico, no incio da I Guerra
Mundial (KURAN, loc. 3622-41). Esse clima, claro, propiciou a emergncia dos
jovens turcos e as reformas republicanas e laicas de Mustaf Kemal , que culminaram
no s com a extino do sultanado, mas tambm do califado (WEISMANN, 2005)
(INALCIK, 1996) (QUATAERT, 2000).
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De certo que essas medidas todas partiam do princpio que a salvao das estabilidades
institucional, social, econmica ou financeira passava pela adequao, ou aceitao, de
certos princpios emanados do pensamento poltico europeu, notadamente o iluminista e
o liberal. Isso foi possvel porque a fase inicial de expanso europia, essencialmente
religiosa, j cedera s suas impossibilidades no contato entre civilizaes e utilidade no
estabelecimento de relaes econmicas de longa durao (LEITE, 1997). E as
sociedades do Atlntico norte tinham j produzido um grande arcabouo de propostas
jurdicas e polticas capazes de dar conta das demandas econmicas, financeiras e
existenciais de seus povose outros, tambm - numa perspectiva laica. As permanentes
derrotas militares do Isl diante do Ocidente apontavam a necessidade de se adequar a
essa ameaa externa. Considerando que os Estados europeus possuam instrumentos
tcnicos e laicos que constituam a chave de seu desenvolvimento, era necessrio
conhec-los, no sentido de abrir caminho para possibilidades novas. No sculo XIX
muitas foras polticas muulmanas se aproximaram do liberalismo e do Iluminismo,
entendendo que no havia maiores incompatibilidades entre o Isl e o pensamento
Ocidental (MOADEL, 2005).
II- ResistnciasAs dimenses conservadoras do Isl, no entanto, exerceram sobre esse processo uma
presso significativa, que inviabilizou muitas das possibilidades de adaptao.
Fukuyama entendeu o Isl como uma ideologia poderosa, sistemtica e coerente que
do ponto de vista histrico ofereceu barreiras substanciais aos processos de
modernizao (FUKUYAMA, 1992, p.45). O carter universal dasharia, a lei islmica,
que cobre todas as esferas da atividade humana, colocou realmente diversos obstculos
aceitao de inmeros pressupostos fundamentais dos modelos ocidentais
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desenvolvidos nos sculos XIX e XX. Tais limitaes se tornam claras quando
dimensionamos suas dimenses objetivas, econmicas. As dificuldades crnicas de
capitalizao no mundo muulmano sempre estiveram, aparentemente, relacionadas a
pendncias jurdicas e dimenses culturais de fundo islmico. Os primeiros bancos do
Isl, o Banco do Egito (Alexandria, 1855) e o Banco Otomano (Istanbul, 1856), por
exemplo, contavam quase que exclusivamente com capitais externos e eram
basicamente operados por europeus (KURAN, loc. 2868-72). Ao longo do sculo XIX
emergentes banqueiros cristos e judeus nativos do mundo islmico operaram
basicamente tambm com capitais externos (KURAN, loc. 2532). Entesourados
muulmanos usualmente relutavam em dispor de recursos no sistema bancrio
construdo aos moldes ocidentais.
claro que no devemos desprezar o fato de que existia uma ao interessada doCapital estrangeiro no sentido de impedir o desenvolvimento dos mecanismos
autctones de acumulao de capital, ou o amadurecimento de uma burguesia local, e
isso continuou pelo sculo XX (LANGMAN, 2006, p. 295). No entanto, esse
movimento se apoiou em realidades existentes e, numa contradio prpria, tendeu a
administr-las em seu prprio beneficio. Os agentes econmicos externos estimularam
as resistncias quando interessantes ao controle do sistema financeiro ou a polticas
econmicas de submisso- em funo da impotncia econmica que geravam-, ecombateu-as quando impediam a realizao ou ampliao de negcios e outros eventos
acumulativos de Capital.
Timur Kuran levantou algumas grandes questes de fundo que se constituram, do ponto
de vista histrico, em impedimentos estruturais ao pleno desenvolvimento da
concentrao de capital no Isl. A presena desses fatores inibiu, portanto, o
desenvolvimento de um processo anlogo ao verificado no Ocidente e em outros povos
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do Oriente - que terminaram por conduzir diversas sociedades a regimes plenamente
laicos, pelo menos, como na China, e tambm liberais, em alguns casos, como na ndia.
Inicialmente, o direito islmico dedicado a uma discusso centenria em torno da
proibio ou no da usura. O Coro, de fato, proibiu-a: Allah permite o comrcio e
probe a usura (QURAN, II: 275, 3:130). No entanto, ao longo dos sculos, diferentestipos de prticas usurrias foram autorizadas pelos intrpretes da Lei, atravs de
artifcios legais. Um deles, por exemplo, o de emprestar o dinheiro com um desconto
correspondente aos juros, recebendo o valor de forma integral no prazo oralmente
estipulado. E embora um jurista como Sarakhsi tenha, no sculo XI, afirmado que
emprestar com juros era um pecado mais grave do que trinta e trs adultrios, ele nunca
deixou de ser praticado. Principalmente porque no existe, no Coro, qualquer punio
prevista para a usura (KURAN, loc. 2637). Mas independente disso, a utilizao polticada proibio foi constante aps os sculos XVI-XVI. Voltava-se normalmente, de forma
interessada, contra a ao de setores financeiros que poderiam fortalecer grupos internos
ou externos capazes de ameaar a estrutura de poder tradicional, centrada na
interpretao jurdica subjetiva e no poder poltico daqueles que a realizavam. E
normalmente se percebia que a capitalizao introduzia uma nova realidade e fortalecia
novos grupos sociais.
Isso remete a um outro ponto bastante complexo da cultura muulmana, que a fora
religiosamente inspirada da economia do bazar ou da suqqa. Do ponto de vista da
lgica econmica ocidental, uma economia irracional, porque pessoal, no
repousando em avaliaes objetivas concretas, mas sim em subjetividades. A busca de
relaes comerciais de cunho afetivo e singular em princpio inibe a concorrncia e cria,
nos dizeres de Clifford Geertz uma clientelizao das atividades econmicas (apud
Wilson: 611, 645). Essa dimenso familiar e patrimonial impediu a formao de
organizaes complexas e impessoais (KURAN, loc. 466).
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Qualquer corporao maior, regida pelo imprio da contabilidade era e, em algumas
vezes, ainda , tida como uma ameaa existncia no apenas das atividades comercias,
mas tambm das famlias que gravitam em torno delas. Nesse sentido o predomnio da
oralidade no comrcio foi entendido como parte essencial da experincia religiosa
islmica, o que conduziu uma substancial rejeio dos contratos escritos, nos quais o
personalismo do negcio pudesse se desfazer em funo da observncia do registrado.
O carter rarefeito de uma tradio contbil no Isl , assim, uma das conseqncias
dessas atitudes culturais (LANGMAN, 2006, p.305). Como sabemos, o grau de
desenvolvimento das cincias contbeis na Europa do Renascimento prova sua grande
importncia no desenvolvimento do Capital e um termmetro importante para o
sucesso do empreendimento capitalista. A desconfiana muulmana naquilo que no
pudesse ser materialmente acessado atravs do comerciante se expressa, por exemplo,
na reticncia histrica introduo do papel-moeda, que, na Arbia Saudita, s se
tornou realidade dos anos quarenta do sculo passado (WILSON, 2001, loc. 1829).
Esses elementos tradicionais ofereceram um obstculo considervel penetrao da
racionalizao capitalista ocidental.
Uma outra particularidade da sharia, que criou diversos complicadores estruturais ao
processo de acumulao, foi a sua concepo extremamente generosa no que diz
respeito aos direitos de herana. A caracterstica bsica das proposies islmicas sobreo assunto foi a de buscar garantir a todos os herdeiros uma parte do patrimnio do
falecido. Considerando a prtica da poligamia, principalmente nos setores sociais mais
opulentos, podemos dizer que a tendncia histrica do Isl foi a da lenta e gradual
dissipao de riquezas (KURAN, loc. 1502). Ao contrrio, como claro, da monogamia
e dos direitos de primogenitura que estavam presentes no direito medieval europeu, e
que estimulavam a concentrao.
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A fragmentao do patrimnio parece assim ser uma constante no mundo muulmano.
Um dos principais mecanismos para evitar essa dissipao foi a instituio do waqf, um
tipo de associao cujos bens foram a ela doados em carter eterno por um benfeitor em
vida, para ser administrado por algum de sua escolha, e que no podiam assim ser
repartidos entre herdeiros. O waqf cumpria servios especificados pelo seu fundador,
em benefcio da sociedade. Grande parte da impossibilidade do desenvolvimento de
governos autnomos no mundo islmico advinha do grande poder que o waqftinha no
meio comunitrio. A utilizao dos bens ficava perpetuamente submetida s
determinaes do doador. Foi permanente obstculo ao processo de modernizao, pois
era propriedade imobilizada e sagrada e no podia ser confiscada ou vendida e,
principalmente, seus servios eram inalterveis (KURAN, loc. 1994).
Uma outra questo importante, que foi enfrentada nos sculos XIX- XX pelosreformadores islmicos, a do pluralismo legal caracterstico do direito muulmano.
Em primeiro lugar ele no reconhece nenhuma fronteira poltica que no seja aquela que
separa a esfera do Isl (dar al-Islam) da esfera da guerra (dar al-harb), ou seja, as reas
controladas por no-muulmanos. Em segundo lugar ele emerge de um pacto quase
mtico, o pacto de Omar, segundo qual judeus e cristos estariam submetidos lei
islmica em todas as atividades comerciais e financeiras que envolvessem
muulmanos. Mas quando interagissem entre eles ou com no-muulmanos, eram livrespara escolher outras jurisdies (KURAN, loc. 3022). Esses dois elementos
estabeleciam a crena na superioridade da identidade religiosa sobre as lealdades locais
e a afirmao de que diferentes crentes tinham diferentes condies jurdicas.
Algo semelhante existia na Europa do Antigo Regime, onde os judeus tinham
autonomia jurdica em algumas questes internas. Sabe-se que a eliminao dessa
pluralidade foi um dos primeiros atos da modernizao liberal triunfante e o pilar da
construo das noes contemporneas. No caso do Isl, a tese de que existiria uma
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igualdade jurdica entre pessoas s podia dar-se, como na Europa, implodindo o imprio
da esfera da vida religiosa sobre as noes identitrias. Por muito tempo no houve, em
funo das limitaes econmicas reais, foras suficientes para faz-lo no grau realizado
pelas sociedades atlnticas.
No caso especfico da Turquia do sculo XIX, premida pela urgncia de reformas, atanzinatfoi violentamente combatida, nesse aspecto da questo, que, como no caso da
Europa ou dos Estados Unidos, envolvia o tema da igualdade essencial entre os seres
humanos. A imposio autocrtica turca de reformas nessa direo apenas deixava
patente a falta de compromissos econmicos gerais com a emergncia de uma
concepo mais avanada de humanidade. Nisso pode-se portanto entender as
gigantescas dificuldades para a emergncia das mulheres. No apenas isso no
encontrava, como no Ocidente, uma base econmica que desse mulher condies dereivindicao, como tambm esse movimento foi entendido pelos conservadores, ou
pelos poderes ameaados pela modernizao, como um ato destruidor da famlia
patriarcal tradicional, um dos pilares do Isl (LANGMAN, 2006, p. 314).
Evidentemente que a cincia e o sistema educacional ocidentais usualmente foram
considerados por esse setores como hostis lgica religiosa do mundo e ao Isl. O que
potencializou, muitas vezes, uma situao de estagnao econmica duradoura e
imobilizante.
III- Novas adaptaesNo sculo XX o mundo muulmano continuou a movimentar-se, mesmo que de forma
lenta, no sentido da modernizao, isto , adaptao e adequao. Ao lado da grande
experincia turca, mais profunda em termos do enfrentamento da tradio e
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relativamente bem sucedida, no final das contas, outros pases, principalmente os
rabes, buscaram suas alternativas possveis. No contexto da Guerra Fria, muitos cls
rabes e muulmanos viram na adoo do modelo sovitico uma sada vivel.
Principalmente porque esse modelo parecia compatibilizar formas no-capitalistas com
industrializao e comunidades pouco desenvolvidas em suas experincias de direitos
civis com a construo de sociedades nacionais modernas.
No Egito, as reformas de Gamal Nasser (1918-1970) foram nessa direo. Ele realizou
uma reforma agrria no muito extensa, mas substancial, agiu no sentido de
potencializar as condies energticas, atravs da represa de Assu, implementou um
programa de siderurgia pesada, ampliou o sistema de educao bsico e combateu a
Irmandade Muulmana e o domnio absoluto dos doutores muulmanos sobre a
legislao civil. Outros governos de inclinao dita socialista no mundo rabecaminharam de forma parecida, no sentido de estabelecer alguma distncia, maior ou
menor, entre Estado e religio, enfrentando os grupos tradicionais muulmanos e
ensaiando outras medidas consideradas modernizadoras que quebrassem as tradies
jurdicas islmicas.
O carter patrimonial do Estado e as presses culturais acabaram por inviabilizar a
generalizao das reformas pretendidas, o que fica claro, por exemplo, na reforma
agrria sria e iraquiana, onde os gestores estatais acabaram agindo como novos
proprietrios e nem sempre bem inspirados (WILSON, 2001, loc. 507) (GABBAY,
1978). Alm do mais, a utilizao do modelo sovitico acabou sendo uma escolha ruim,
como os acontecimentos da prpria Unio Sovitica demonstraram. No apenas pelas
suas limitaes em termos de capitalizao (e mesmo do ponto de vista de know how e
gesto, notadamente ecolgica (KINOSHITA)), mas tambm pelo seu esgotamento em
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escala global aps 1991. Assim, Anwar Sadat (1918-1981), por exemplo, bem antes do
colapso sovitico, acabou por abandonar o modelo nasseriano, em 1974, atravs da
poltica de portas abertas, tentando resgatar o movimento capitalizador do setor
privado. A bolsa do Cairo voltou a ser valorizada nos anos 80 e o nmero de
companhias nela atuantes atingiu o pico de 582 em 1991- muito embora o volume de
capital correspondesse a apenas 0,1 por cento do da bolsa de Londres. Isso significava,
entre outras coisas, que o setor pblico continuou a ser o principal ncleo de
capitalizao e, claro, o principal empregador, com todos as dificuldades que isso traz
para o desenvolvimento financeiro das sociedades (WILSON, loc. 2108) (BENT, 1991).
As aes dos governos rabes e muulmanos ao longo dos anos 60-80 conseguiram, no
entanto, melhorar indicadores sociais em diversas reas, notadamente na rea da
educao. Especialmente no caso do Egito, cujos professores passaro a dominar osistema educacional da Lbia ao Golfo (WILSON, loc. 1330). Melhorias nos nveis de
escolarizao foram consolidados, alm do Egito, na Jordnia e nos estados do Golfo,
seguidos de perto pela Turquia e pela Arbia Saudita. Nesta, em 1970 apenas 29% da
populao feminina em idade escolar estava na escola. Em 1991, no entanto, esse ndice
crescera para 72% (WILSON, loc. 1341). Embora ainda limitados, ainda mais se
considerarmos o caso do vizinho Israel, o pas com maior nmero de doutores por mil
habitantes do mundo, esses nmeros apontam uma tendncia de fortalecimento dosistema educacional que pode se constituir em uma fora de mudana. O aprimoramento
poltico, mais limitado, pelo menos at s revoltas de 2011, tornou-se no entanto visvel
no caso da Jordnia, onde, depois das reformas eleitorais de 1986, ampliaram-se os
mecanismos de representatividade parlamentar (ROBBINS, 1991). A experincia de
reconstruo poltica do Iraque pelos EUA, apesar da natureza de sua implementao
a interveno e ocupao militar - e das resistncias diversas, tem seguido um caminho
de consolidao.
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Wafik Grais e Zeynep Kantur, em 2003, elaboraram, para o Banco Mundial, uma
anlise aprofundada e precisa sobre a realidade econmica e social do oriente mdio e
do norte da frica, no limiar do sculo XXI. Os mercados financeiros locais foram
ento caracterizados em quatro categorias: emergentes, Egito, Jordnia, Lbano,
Marrocos, Tunisia e Turquia, de transio, Arglia, Sria e Ir, de baixo
desenvolvimento, Iemem e Djibouti, e mercados fechados, Lbia e Iraque. Naquele
mesmo ano a derrubada de Saddam Hussein eliminou o fechamento do mercado
financeiro iraquiano e tentativas diversas, inclusive pela prpria populao, tem sido
feitas para mudar a situao poltica na Lbia, que pode conduzir a uma liberao do
mercado.
Apesar disso, o relatrio do banco Mundial apontava a excessiva presena do Estado no
sistema bancrio do Egito, onde quatro bancos estatais controlavam 70% dos depsitos,e, na Tunsia, onde 50% dos fundos eram estatais. Bancos estrangeiros foram
autorizados a atuar nesses dois pases em 1992 e 1997, respectivamente (GRAIS e
KANTUR, p. 9). Em ambos existiam ento programas de privatizao em curso, para
aproveitar a demanda latente por servios financeiros diversificados (GRAIS e
KANTUR, p. 9). Um relatrio do mesmo banco Mundial, de 2001, j reconhecera, no
caso do Egito, os esforos do governo Mubarak e recomendara o aprofundamento de
reformas econmicas a fim de diminuir os custos de negcios no pas(S.E.D.G.M.E.N.A.R., 2001, p. ii). Talvez no por acaso esses dois pases apresentam
demandas sociais fortes no sentido de maior transparncia de gesto dos recursos, que
claramente se tornaram mais abundantes embora parcamente distribudos. A crise de
2008 afetou muito os pases rabes, especialmente os produtores de hidrocarbonetos,
tendo a regio enfrentado uma de suas piores recesses j registradas (HAKURA e
GRIGOLI, 2010).
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Assim, as demandas sociais crescentes pela modernizao dos mecanismos de
financiamento interno capazes de superar de forma gil a crise, a exemplo do que foi
feito nos BRICS provavelmente se uniram com as demandas de setores financeiros
internacionais. curioso que o relatrio de 2003 tenha chamado a ateno para a
crescente abertura do setor de telecomunicaes, notadamente na telefonia mvel,
particularmente em Tunsia e Egito, onde no por acaso a internet desempenhou um
papel importante nos recentes levantes sociais (GRAIS e KANTUR, p.12).
Grais e Kantur concluram seu acurado relatrio, com a afirmao de que quatro
movimentos eram necessrios para realizar a abertura dessas economias:
desintermediao, isto , liberalizao e modernizao tcnica do sistema financeiro,
o que propicia a ampliao do mercado de capitais e a exploso dos movimentos de
securitizao dos ttulos, principalmente no setor imobilirio. Adaptao institucional,ou seja, reformas que permitam que recursos retidos no setor estatal possam irrigar o
mercado financeiro. Por exemplo, propiciando a participao dos fundos de penso,
abundantes no oriente mdio, ou estimulando o desenvolvimento do micro-crdito.
Modernizao, que significa tanto a adoo de novas tecnologias no sistema
financeiro quanto reformas que garantam atravs de novas regras sua estabilidade e
harmonia com os padres internacionais. E, por fim, globalizao, que se traduz a
flexibilizao das fronteiras de investimento a fim de permitir o livre curso dos fluxosde Capital (GRAIS e KANTUR, p.15-31).
Assim, depois de sculos de resistncias e tentativas nem sempre bem-sucedidas de
inovao, novos movimentos de adaptao esto em movimento no mundo muulmano.
Os interesses em incorporar o mundo muulmano e a frica, ao mundo globalizado,
ltimas fronteiras de expanso (KINOSHITA, 2011), provavelmente objetivam aliviar
presses constantes que j se fazem sentir em outros mercados globalizados e
emergentes, em vias de saturao, como o da China.
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A crena dos organismos internacionais de que existem condies objetivas suficientes
para isso no mundo muulmano, parece ter alguma razo, quando consideramos que os
recentes levantes do mundo rabe buscam a ruptura com as autocracias e os modelos
centralizadores ento existentes e no, em princpio, um retorno ao fundamentalismo
islmico. A tragdia da experincia iraniana e sudanesa impede, de fato, que a lei
islmica se torne uma alternativa vivel para povos premidos pela necessidade de lanar
mos de recursos previamente acumulados e irracionalmente retidos. Se a grandeza da
revoluo capitalista no mundo rabe ser correspondente s expectativas do mercado
financeiro internacional s o tempo dir. No entanto, a histria do mundo muulmano e
de sua insero cada vez mais dolorosa em uma humanidade crescentemente
industrializada, urbana e capitalista, onde o fetichismo das mercadorias domina os
coraes e as mentes, parece, ao longo do ltimos sculos, indicar a tendncia de
derrota do bazare dasuqa. E o triunfo das bolsas de valores. A depreciao da uaqf- e
a emergncia dos bancos.
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