argonautas do pacífico ocidental

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL 1. INTRODUÇÃO Bronislaw Malinowski, antropólogo britânico de origem polaca, combateu a abordagem evolucionista em antropologia e as interpretações assentes em reconstituições históricas sem fiabilidade, defendendo em vez disso um estudo baseado em estadas prolongadas no terreno no seio das populações a estudar. À importância conferida ao “trabalho de campo” em antropologia – que levou a cabo principalmente na Melanésia – acrescentou uma teorização das culturas, em que estas eram vistas como assentando, em última instância, na satisfação das necessidades biológicas dos indivíduos. Cada cultura constitui, na sua teoria, uma totalidade, em que cada costume, objecto material, ideia ou crença satisfaz uma função vital para a mesma, cabendo ao antropólogo estudar as relações entre o todo e a parte – tal é o postulado básico do funcionalismo de Malinowski. Assim, o conceito de função aparece como o instrumento que permite reconstruir, a partir dos dados aparentemente caóticos que se oferecem à observação de um pesquisador de outra cultura, os sistemas que ordenam e dão sentido aos costumes nos quais se cristaliza o comportamento dos homens. A grande inovação de Malinowski no trabalho de campo consistiu na prática do que é chamado hoje em dia observação participante. Ele alterou radicalmente as práticas seguidas até então, passando a viver permanentemente na aldeia, afastado do convívio de outros homens brancos e aprendendo a língua nativa. Assim, embora não podendo dispensar o uso de informantes, substituiu-o em 1

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Antropologia - Síntese da Monografia "Argonautas do Pacífico Ocidental", de Bronislaw Malinowski

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Page 1: Argonautas do pacífico ocidental

ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

1. INTRODUÇÃO

Bronislaw Malinowski, antropólogo britânico de origem polaca, combateu a abordagem

evolucionista em antropologia e as interpretações assentes em reconstituições históricas

sem fiabilidade, defendendo em vez disso um estudo baseado em estadas prolongadas

no terreno no seio das populações a estudar. À importância conferida ao “trabalho de

campo” em antropologia – que levou a cabo principalmente na Melanésia – acrescentou

uma teorização das culturas, em que estas eram vistas como assentando, em última

instância, na satisfação das necessidades biológicas dos indivíduos. Cada cultura

constitui, na sua teoria, uma totalidade, em que cada costume, objecto material, ideia ou

crença satisfaz uma função vital para a mesma, cabendo ao antropólogo estudar as

relações entre o todo e a parte – tal é o postulado básico do funcionalismo de

Malinowski. Assim, o conceito de função aparece como o instrumento que permite

reconstruir, a partir dos dados aparentemente caóticos que se oferecem à observação de

um pesquisador de outra cultura, os sistemas que ordenam e dão sentido aos costumes

nos quais se cristaliza o comportamento dos homens.

A grande inovação de Malinowski no trabalho de campo consistiu na prática do que é

chamado hoje em dia observação participante. Ele alterou radicalmente as práticas

seguidas até então, passando a viver permanentemente na aldeia, afastado do convívio

de outros homens brancos e aprendendo a língua nativa. Assim, embora não podendo

dispensar o uso de informantes, substituiu-o em grande parte pela observação directa,

que só é possível através da convivência diária, da participação nas conversas e

acontecimentos da vida da aldeia. O fundamento desta técnica passa por um processo de

“aculturação” do observador que consiste na assimilação das categorias inconscientes

que ordenam o universo cultural investigado. Desta forma, a totalidade e a integração da

cultura transformam-se numa realidade que é intuitivamente atingida pelo investigador

através da sua vivência da situação de pesquisa.

Por outro lado, este trabalho de Malinowski difere bastante das monografias

tradicionais. Não é nem uma descrição de toda a cultura trobriandesa, nem uma análise

especializada de um dos aspectos nos quais geralmente os antropólogos decompõem a

cultura: economia, parentesco e organização social, religião, ritual e mitologia, cultura

material. Na realidade, é uma análise de todos esses aspectos vistos da perspectiva de

uma única instituição, o Kula. Esta instituição aparece pois como uma projecção parcial

da totalidade da cultura e não como um dos seus aspectos ou partes. A descrição

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

desenvolve-se sempre no sentido de mostrar, simultaneamente, como a instituição em

apreço permeia toda a cultura e, inversamente, como toda a cultura está presente na

instituição. Podemos assim depreender que a cultura, para Malinowski, não é um todo

indiferenciado, mas uma totalidade integrada que apresenta núcleos de ordenação e

correlação – as instituições. A instituição é uma unidade multidimensional que

compreende: uma constituição ou código, um grupo humano organizado e um

equipamento material manipulado pelo grupo na realização das suas actividades.

Esta pesquisa etnográfica desenvolveu-se num período de seis anos (1914-1920).

Malinowski fez três expedições diferentes à região onde desenvolveu os seus trabalhos

e, nos intervalos entre elas, analisou o material obtido e estudou a literatura etnográfica

especializada de que dispunha na época.

2. A METODOLOGIA

Como o próprio autor diz “um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se

nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação directa e das

declarações e interpretações nativas e, do outro, as inferências do autor, baseadas em

seu próprio bom-senso e intuição psicológica” (Malinowski, 1977: 18). As fontes de

informação do etnógrafo não estão incorporadas a documentos materiais fixos, mas sim

ao comportamento e memória de seres humanos que, embora acessíveis se podem

mostrar extremamente enganosas e complexas. Assim, o segredo da pesquisa de campo

eficaz está na aplicação sistemática e paciente de algumas regras de bom-senso e de

princípios científicos conhecidos. Segundo Malinowski, “os princípios metodológicos

podem ser agrupados em três unidades: em primeiro lugar, o pesquisador deve possuir

objectivos genuinamente científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia

moderna. Em segundo lugar, deve assegurar boas condições de trabalho, o que significa,

basicamente, viver mesmo entre os nativos, sem depender de outros brancos.

Finalmente, deve aplicar certos métodos especiais de colecta, manipulação e registro da

evidência” (Idem: 20).

De facto, existe uma enorme diferença entre o relacionamento esporádico com os

nativos e estar efectivamente em contacto com eles. O etnógrafo deve procurar que a

sua vida na aldeia assuma um carácter natural em plena harmonia com o ambiente que o

rodeia. Só dessa forma, tudo o que se passa está plenamente ao seu alcance e não pode,

assim, escapar à sua observação. O etnógrafo tem de aprender a comportar-se como os

nativos e desenvolver uma certa percepção para o que eles consideram como “boas” ou

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

“más” maneiras. Só assim pode entrar realmente em contacto com os nativos o que

constitui, sem dúvida, um dos requisitos preliminares essenciais à realização e ao bom

êxito da pesquisa de campo.

Mas, isso só por si não é suficiente. São ainda necessários métodos mais eficazes na

procura de factos etnográficos. O etnógrafo deve inspirar-se nos resultados mais

recentes do estudo científico, em seus princípios e objectivos, deve conhecer bem a

teoria científica e estar a par das suas últimas descobertas. Mas isso não significa estar

sobrecarregado de ideias preconcebidas. Deve ser capaz de mudar os seus pontos de

vista, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência. “As ideias

preconcebidas são perniciosas a qualquer estudo científico; a capacidade de levantar

problemas, no entanto, constitui uma das maiores virtudes do cientista – esses

problemas são revelados ao observador através de seus estudos teóricos” (Ibidem: 22).

Por outro lado, o objectivo fundamental da pesquisa etnográfica de campo é definir o

contorno da constituição tribal e delinear as leis e os padrões de todos os fenómenos

culturais, isolando-os de factos irrelevantes. O etnógrafo deve, assim, “perscrutar a

cultura nativa na totalidade de seus aspectos. A lei, a ordem e a coerência que

prevalecem em cada um desses aspectos são as mesmas que os unem e fazem deles um

todo coerente” (Ibidem: 24).

O etnógrafo tem então o dever e a responsabilidade de estabelecer todas as leis e

regularidades que regem a vida tribal, de apresentar a anatomia da cultura e descrever a

constituição social. O grande problema com que se debate é que, contrariamente ao que

acontece nas sociedades civilizadas em que cada uma das suas instituições possui, em

seu meio, historiadores, arquivos e documentos, no caso da sociedade nativa, nada disso

existe. A resposta de Malinowski a este problema é o que ele chama de método de

documentação estatística por evidência concreta, ou seja,”cada fenómeno deve ser

estudado a partir do maior número possível de suas manifestações concretas; cada um

deve ser estudado através de um levantamento exaustivo de exemplos detalhados.

Quando possível, os resultados obtidos através dessa análise devem ser dispostos na

forma de um quadro sinóptico, o qual então será utilizado como instrumento de estudos

e apresentado como documento etnológico. Por meio de documentos como esse e

através do estudo de factos concretos, é possível apresentar um esboço claro e

minucioso da estrutura da cultura nativa, em seu sentido mais lato, e da sua constituição

social” (Ibidem: 27).

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

Isto deve ser complementado ainda com o que o autor chama de factos imponderáveis

da vida real e do comportamento típico, que devem ser recolhidos através de

observações detalhadas e minuciosas que só são possíveis através do contacto íntimo

com a vida nativa e que devem ser registradas nalgum tipo de diário etnográfico. Por

último, o corpus inscriptionum – uma colecção de asserções, narrativas típicas, palavras

características, elementos folclóricos e fórmulas mágicas – deve também ser

apresentado como documento da mentalidade nativa. Só assim será possível atingir o

objectivo final da pesquisa, “o de apreender o ponto de vista dos nativos, seu

relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo” (Ibidem: 33-34).

3. DESCRIÇÃO DO CENÁRIO E DOS ACTORES

Ao longo de toda esta monografia encontramos estas regras gerais que Malinowski

definiu e aplicou no seu trabalho. Tendo como finalidade a análise do Kula, ele acaba

por nos fazer uma descrição da cultura trobriandesa, analisando os seus vários aspectos:

organização social, religião, rituais e mitologia, etc.

Malinowski começa por nos fazer uma descrição dos nativos das ilhas Trobriand.

Descreve-nos as relações de “poder” e a posição social das mulheres. Realça os hábitos

sexuais dos nativos, que se iniciam numa idade bastante precoce e sem

constrangimentos de qualquer ordem, pelo menos numa primeira fase. Gradualmente,

porém, vão-se envolvendo em casos mais sérios e duradouros, um dos quais termina em

casamento, o qual não está associado a nenhum acto cerimonial. O casamento tem

implicações “económicas”, pois a família da esposa tem por obrigação contribuir

substancialmente para a economia do novo lar e prestar vários serviços ao marido.

Sociologicamente a aldeia é uma unidade importante nas ilhas Trobriand. Os chefes

exercem autoridade primariamente sobre a sua própria aldeia, e apenas secundariamente

sobre o distrito. A comunidade da aldeia explora colectivamente suas próprias terras de

cultivo, realiza cerimónias, faz a guerra, empreende expedições comerciais e navega na

mesma canoa ou na mesma frota como um grupo.

Ao debruçar-se sobre a organização do trabalho agrícola, Malinowski acaba por destruir

a noção do “Homem Económico Primitivo”. O nativo de Trobriand trabalha movido por

razões de natureza social e tradicional altamente complexas. Os seus objectivos não se

restringem ao simples atendimento de necessidades imediatas nem a propósitos

utilitaristas. Ele é guiado por um complexo sistema de deveres e obrigações, de forças

tradicionais, de crenças mágicas, ambições sociais e vaidade.

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

Malinowski faz também uma descrição mais ou menos detalhada sobre a chefia e

divisões políticas a fim de que seja possível entender bem as principais instituições

políticas nativas, que são, por sua vez, essenciais ao entendimento do Kula. Todos os

aspectos da vida nativa, a religião, a magia, a economia estão inter-relacionadas. Mas é

a organização social que as fundamenta a todas.

No que diz respeito ao parentesco, é uma sociedade matrilinear. Tanto a sucessão na

hierarquia como a participação nos grupos sociais e a herança dos bens materiais são

transmitidos em linha materna. O tio materno de um menino é considerado seu

verdadeiro guardião. Por outro lado, embora a paternidade fisiológica seja desconhecida

pois não se supõe existir nenhum tipo de parentesco entre pai e filho, a não ser aquele

entre o marido da mãe e o filho da esposa, apesar disso, o pai é o amigo mais próximo e

afectuoso de seus filhos.

O autor enfatiza ainda o papel importante das crenças mágico-religiosas dos nativos de

Trobriand. Todas as coisas que vitalmente afectam o nativo estão de um modo ou de

outro associadas à magia. Por um lado os nativos canalizam todos os seus temores e

apreensões à magia negra, às bruxas voadoras, aos seres malévolos causadores de

doenças mas, acima de tudo, aos feiticeiros e bruxas. Por outro lado, a magia, tentativa

de controlo directo sobre as forças da natureza através de conhecimentos especiais, é um

factor fundamental nas suas vidas.

4. O KULA

O Kula é uma forma de troca com um carácter inter-tribal bastante amplo. É praticado

por comunidades localizadas num círculo de ilhas que formam um circuito fechado.

Dois tipos de artigos, e só esses dois, viajam constantemente em direcções opostas

sendo que, no sentido horário se movimentam os soulava, longos colares feitos de

conchas vermelhas, enquanto no sentido oposto se movem os mwali, braceletes feitos de

conchas brancas. Estes artigos viajam sempre no seu próprio sentido, cruzando-se com

os artigos da classe oposta e sendo constantemente trocados por eles. Cada um dos

participantes do Kula recebe periodicamente um ou vários braceletes, ou colares, que

deve entregar a um dos seus parceiros, do qual recebe em troca o artigo oposto.

Ninguém conserva consigo nenhum artigo por muito tempo. A parceria entre dois

indivíduos do Kula é permanente, para toda a vida. Esses artigos encontram-se sempre

em movimento, nunca ficam retidos com um só dono.

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

Embora a troca cerimonial dos dois artigos um pelo outro seja o aspecto fundamental e

central do Kula, associados a ela encontramos numerosas características e actividades

secundárias. O Kula é, portanto, uma instituição enorme e extraordinariamente

complexa, não apenas na sua extensão geográfica como também na multiplicidade de

seus objectivos. Ele engloba um grande número de tribos e abarca um enorme conjunto

de actividades inter-relacionadas e interdependentes que formam um todo orgânico.

Como diz Malinowski, “ o etnógrafo deve procurar descobrir as leis e regras de todas as

transacções. A ele cabe construir o quadro ou esquema total da grande instituição, da

mesma forma que o cientista formula toda a sua teoria baseado em dados experimentais

que, embora sempre ao alcance de todos, precisam de interpretação coerente e

organizada” (Ibidem: 72).

Assim, o Kula está sustentado pelas leis da tradição e cingido por rituais mágicos. As

transacções nele processadas são cerimoniais e levadas a efeito segundo regras bem

definidas. O Kula realiza-se periodicamente, ao longo de rotas comerciais definidas,

conduzindo a locais fixos de encontro. Baseia-se num status fixo e numa parceria

permanentes, que unem em pares alguns milhares de indivíduos. Constitui, assim, um

tipo de relacionamento inter-tribal feito em grande escala. Por outro lado, o Kula não se

realiza sob a pressão de quaisquer necessidades, visto que o seu principal objectivo é o

de permuta de artigos sem nenhuma utilidade prática.

Muitas actividades preliminares estão intimamente relacionadas ao Kula: a construção

de canoas, a preparação do equipamento, o aprovisionamento da expedição, o

estabelecimento das datas e a organização social do empreendimento, assim como o

comércio secundário, são actividades subsidiárias ao kula e executadas para atender às

suas finalidades. É óbvio que se observarmos essas actividades avaliando apenas a sua

verdadeira utilidade, o comércio e a construção de canoas surgirão como as realizações

verdadeiramente importantes, e seremos levados a considerar o Kula apenas como um

estímulo indirecto que impele os nativos a navegar e a efectuar o comércio. Ao definir o

Kula como a actividade primária e as demais como secundárias Malinowski quer fazer

ver que essa prioridade está implícita nas próprias instituições. “As datas são fixadas, as

actividades preliminares estabelecidas, as expedições organizadas, a organização social

determinada, não em função do comércio, mas sim em função do Kula. A grande festa

cerimonial realizada ao iniciar-se uma expedição, refere-se ao Kula; a cerimónia final

da avaliação e contagem dos espólios refere-se ao Kula e não aos objectos obtidos pelo

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comércio. Finalmente, a magia, que constitui um dos principais elementos de todo esse

processo, refere-se exclusivamente ao Kula, e isto se aplica até mesmo ao conjunto de

mágicas com que se encantam as canoas” (ibidem: 84).

5. AS CANOAS

Para nos dar a compreender tudo aquilo que a canoa representa para o nativo, para além

de o autor se debruçar sobre as suas finalidades económicas e os diversos usos a que é

submetida, analisa também dados sociológicos suplementares, referentes à sua posse, a

especificação das pessoas que a usam e a descrição de como o fazem, as informações

referentes às cerimónias e costumes de sua construção. Para o nativo, a sua pesada e

desajeitada canoa representa uma conquista admirável e quase miraculosa, que lhe

permite tornar-se senhor da natureza. Como diz o autor:”quando abordamos o assunto

cientificamente devemos, por um lado, abster-nos de distorcer os factos e, por outro,

procurar analisar as nuances mais subtis do pensamento e sentimento nativos quanto às

suas próprias criações” (ibidem: 87).

Malinowski analisa, em primeiro lugar, a impressão geral produzida pela canoa e a sua

importância psicológica, em segundo lugar as características fundamentais da sua

tecnologia e, por último, as implicações sociais da canoa marítima. Dá-nos uma

perspectiva da organização do trabalho na construção de uma canoa, debruçando-se

sobre dois aspectos principais: a diferenciação sociológica das funções e a regulação do

trabalho por meio da magia. Este último aspecto é de realçar pois, para os nativos, tanto

os resultados da capacidade técnica como a eficácia mágica são consideradas

imprescindíveis tendo, cada uma das duas, a sua própria função.

Por outro lado, o autor analisa detalhadamente a instituição da cerimónia de lançamento

de uma canoa que “não é uma simples formalidade ditada pelo costume; corresponde às

necessidades psicológicas da comunidade, desperta grande interesse e conta com a

presença de muitos nativos” (ibidem: 117). Também aqui, os rituais mágicos têm um

papel importante.

6. ECONOMIA TRIBAL

Para não fazer a descrição do Kula, considerado como uma forma de troca, fora do seu

contexto mais íntimo, o que contrariaria o seu princípio metodológico mais importante,

Malinowski dá-nos um esboço geral das modalidades de pagamento, presentes e

escambo existentes entre os nativos. Nesta análise, Malinowski faz uma crítica bastante

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

feroz ao que ele chama de «falsas concepções» sobre os povos nativos. Como ele

próprio diz: “Ao estudar quaisquer questões sociológicas nas ilhas Trobriand, ao

descrever o aspecto cerimonial da vida tribal, constantemente deparamos com esse «dar

e receber», com a permuta de presentes e pagamentos” (ibidem: 136). Ele ressalva ainda

que, em quase todas as modalidades de troca existentes nas ilhas Trobriand, não há

qualquer vestígio de lucro, ou seja, não há aumento da utilidade mútua através da

permuta, pelo que, segundo ele, não há razão para as analisar de um ponto de vista

puramente utilitário ou económico. Malinowski acrescenta mesmo que “a doação por si

mesma constitui uma das características mais marcantes da sociologia trobriandesa e, a

julgar por sua natureza tão geral e tão básica, defendo o ponto de vista de que essa é

uma característica universal de todas as sociedades primitivas” (ibidem: 137).

Sendo o kula a mais significativa expressão da concepção nativa de valor, é necessário

entender o processo psicológico que o fundamenta, se queremos entender todos os seus

actos e costumes, no seu próprio contexto. Assim, Malinowski faz um levantamento

completo de todas as modalidades de pagamento e de presentes, apresentando uma

classificação aproximada de cada uma das transacções, de acordo com o princípio da

equivalência. Como Malinowski declara, nos relatos etnográficos não pode existir nada

mais falso do que a descrição dos factos das civilizações nativas nos termos da nossa

própria civilização. “A compreensão final e mais profunda da natureza dos factos deve

ser obtida sempre através do estudo do comportamento, através da análise etnográfica

dos costumes e dos casos concretos de aplicação das regras tradicionais” (ibidem: 138)

7. SOCIOLOGIA DO KULA

Para melhor compreensão desta instituição, Malinowski discute, uns após outros, os

diversos aspectos da sociologia do Kula. Por um lado, existem limitações sociológicas à

participação no Kula. Nem todos os nativos que vivem na sua esfera cultural podem

participar. “As restrições quanto à participação no Kula existem apenas nos grandes

distritos Kula e são, em parte locais, excluindo aldeias inteiras e, em parte, sociais,

excluindo certos nativos de posição social mais baixa” (ibidem: 208). O autor faz-nos

também uma análise das relações de parceria e das condições necessárias para que um

nativo possa iniciar uma relação Kula. Como último ponto, o autor debruça-se sobre a

participação – ou falta dela – de mulheres no Kula. Embora a posição das mulheres

esteja longe da insignificância social, atingindo mesmo, a sua influência, em certos

casos e em certas tribos, um papel de grande importância, o Kula é, no entanto,

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

essencialmente uma actividade dos homens. As mulheres não participam nas grandes

expedições, não praticam o Kula ultramarino, nem entre si mesmas nem com os

homens.

Um aspecto a realçar é que a troca de presentes obedece sempre a certos rituais. A

mistura de minuciosidade e decoro, de um lado, e de ressentimento feroz e avidez, de

outro, está subjacente em todas as transacções, como característica psicológica principal

do interesse nativo. Uma característica universalmente considerada censurável e

desonrosa é a tendência de reter objectos de valor e mostrar-se vagaroso ao passá-los

adiante.

8. A MAGIA

A magia assume uma importância primordial na maneira do nativo encarar o Kula, ela

tem uma influência dominante sobre a vida tribal e entra profundamente na estrutura da

mentalidade nativa. “Todas as fórmulas mágicas deixam transparecer traços essenciais

de crenças e ilustram as ideias típicas de um modo tão completo e significativo que

nenhum caminho nos levaria mais directamente ao conhecimento da mentalidade do

nativo” (ibidem: 288). “Pode-se dizer que a crença na magia é uma das principais forças

psicológicas que possibilitam a organização e a sistematização dos esforços económicos

nas ilhas Trobriand” (ibidem: 290). Para os nativos, a magia sempre existiu desde o

princípio das coisas; ela cria, mas nunca é criada; ela modifica, mas nunca deve nem

pode ser modificada. Por outro lado, a magia é considerada como algo essencialmente

humano. É, essencialmente, a afirmação do poder intrínseco do homem sobre a

natureza. Consiste num poder inerente ao homem sobre as coisas que o afectam

vitalmente, poder esse transmitido pela tradição.

Ao analisar os detalhes concretos dos desempenhos mágicos, Malinowski faz a

distinção entre a fórmula, o rito, e a condição do executor. Na sociedade trobriandesa, a

importância relativa destes três factores que se destacam de uma forma bastante clara e

precisa, não é exactamente a mesma. A fórmula é, sem dúvida, o componente mais

importante da magia. É a parte da magia que é mantida em segredo e é somente

conhecida pelo grupo esotérico de praticantes. A natureza do rito é sempre do domínio

público. A condição do feiticeiro, assim como o rito, é essencial à realização da magia,

mas também é considerada pelos nativos como subordinada à fórmula mágica. “A força

da magia, cristalizada nas fórmulas mágicas, é carregada pelos homens da geração

presente em seus próprios corpos. Eles são o receptáculo do legado mais valioso do

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

passado. A força da magia não reside nas coisas; ela está dentro do homem e só pode

escapar através da voz” (ibidem: 299)

Os efeitos da magia são considerados como algo muito diferente dos efeitos de outras

actividades humanas. Embora os nativos compreendam que a velocidade e a capacidade

de flutuação de uma canoa se devem ao conhecimento e trabalho do construtor, para

eles, a magia da rapidez acrescenta algo mais, mesmo à canoa mais bem construída. “A

influência da magia exerce-se paralela e independentemente dos efeitos do trabalho

humano e das condições naturais. Ela produz aquelas diferenças e resultados

inesperados que não podem ser explicados por nenhum outro factor” (ibidem: 304).

9. AS RAMIFICAÇÕES DO KULA

Malinowski, neste seu trabalho, considera imprescindível fazer uma descrição das partes

restantes do Kula, assim como das suas ramificações, ou seja, o comércio e as

expedições empreendidas regularmente de certos pontos do anel para lugares afastados.

Ressalva, no entanto, que estes dados que apresenta não são da mesma categoria do

resto das informações contidas no seu estudo, que foram obtidas de nativos entre os

quais viveu e que, na sua maior parte, foram verificadas e controladas por observações e

experiências pessoais. Como ele próprio diz, “o material referente ao ramo sudeste foi

obtido por meio de uma investigação superficial, realizada com nativos daquele distrito,

que eu encontrei fora de sua terra natal, desde que eu não estive pessoalmente em

nenhum dos lugares entre a ilha de Woodlark e Dobu” (ibidem: 355).

Apesar destas limitações, o autor dá-se conta de que os pontos fundamentais da

transacção são idênticos em todo o anel, embora possam ocorrer algumas variações nos

detalhes. Embora não tenha muito material disponível sobre os diversos detalhes das

expedições e técnicas do Kula que ocorrem nestas outras subdivisões, “as regras da

troca, a cerimónia de tocar búzio, o código de honra ou moralidade ou talvez de

vaidade, que leva as pessoas a darem artigos equivalentes aos que receberam, tudo isso

é igual em todo o circuito. Assim o é também a magia kula, com variações nos detalhes”

(ibidem: 358).

10. CONCLUSÃO – O SIGNIFICADO DO KULA

“A ciência precisa analisar e classificar factos para colocá-los num todo orgânico, para

incorporá-los a um dos sistemas nos quais tenta agrupar os vários aspectos da realidade”

(ibidem: 365). Nesta parte final do seu trabalho, Malinowski faz algumas reflexões

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

sobre os aspectos mais gerais da instituição, tentando exprimir o que lhe parece

constituir a atitude mental subjacente aos vários costumes do Kula. Deparamo-nos

assim, até certo ponto, com um novo tipo de facto etnológico. A sua originalidade reside

em parte, na sua enorme extensão, tanto sociológica como geográfica. É um mecanismo

sociológico de dimensão e complexidade insuperáveis, considerando-se o nível de

cultura no qual o encontramos. A sua mitologia altamente desenvolvida e o seu ritual

mágico mostram-nos quão profundamente o Kula se enraizou na tradição destes nativos

e como deve ser antiga a sua origem.

Um aspecto interessante é o próprio carácter da transacção, substância primordial do

Kula. Uma troca semi-comercial, semi-cerimonial que satisfaz um profundo desejo de

possuir. Mas este é um tipo especial de posse, apenas por um curto período de tempo e

de uma forma alternada, de espécimes individuais de duas classes de objectos. Outro

aspecto de grande importância e que revela bem o carácter pouco comum do Kula é a

atitude mental dos nativos em relação aos símbolos de riqueza. Estes objectos não são

usados nem considerados como dinheiro ou moeda e assemelham-se muito pouco com

estes instrumentos económicos. Nunca são usados como meio de troca ou medida de

valor, as duas funções mais importantes do dinheiro ou moeda.

Cada peça tem um objectivo principal que se mantêm durante toda a sua existência – ser

possuída e trocada; e serve a um propósito principal – circular ao longo do anel do Kula,

ser possuída e ser exibida. Até mesmo a troca que cada peça sofre constantemente é de

um tipo muito especial: é limitada na direcção geográfica na qual pode ocorrer, é

circunscrita ao círculo social de homens entre os quais deve ser efectuada e está

submetida a toda a sorte de regulamentos e regras rigorosas. Com efeito, o Kula é uma

troca de um tipo inteiramente novo. Estes objectos constituem um dos interesses

centrais na vida nativa, e são um dos itens principais no inventário de sua cultura.

Assim, um dos aspectos mais importantes do Kula é a existência do vaygu’a kula, os

objectos sempre trocáveis e de circulação incessante, que devem seu valor e seu carácter

a esta própria circulação. O cerimonial associado ao acto da troca, assim como a forma

de transportar e manipular o vaygu’a, mostra claramente que ele é encarado como algo

mais do que uma simples mercadoria. Para o nativo é algo que lhe confere dignidade,

que o exalta e que, consequentemente, ele trata com veneração e afecto.

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

No Kula, a iniciativa económica e o ritual mágico formam um todo inseparável, onde as

forças da crença mágica e os esforços do homem se moldam e se influenciam

mutuamente.

Como Malinowski sublinha, “minha convicção, repetidamente expressa, é de que o que

realmente importa não é o detalhe, não é o facto, mas o uso científico que fazemos dele.

Assim, os detalhes e pormenores técnicos do Kula adquirem seu significado apenas na

medida em que expressam alguma atitude mental fundamental e assim ampliam nosso

conhecimento, alargam nossa visão e aprofundam nossa compreensão da natureza

humana” (ibidem: 370). “Não podemos chegar à sabedoria final socrática de conhecer-

nos a nós mesmos se nunca deixarmos os estreitos limites dos costumes, crenças e

preconceitos em que todo homem nasceu. Nada nos pode ensinar melhor lição nesse

assunto de máxima importância do que o hábito mental que nos permite tratar as crenças

e valores de outro homem do seu próprio ponto de vista” (ibidem: 370)

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ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL

11. BIBLIOGRAFIA

Malinowski, Bronislaw, 1977 (1922), Argonautas do Pacífico Ocidental, São Paulo,

Abril

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