arte e tecnologia da imagem

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Ines Karin Linke Ferreira INTER/LOC/A˙ˆO A CONCEP˙ˆO DA OBRA E SUAS DEPEND˚NCIAS ESPACIAIS Dissertaªo apresentada ao Programa de Ps- Graduaªo em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigŒncia parcial para obtenªo do ttulo de Mestre em Artes `rea de concentraªo: Arte e Tecnologia da Imagem Orientador: Prof. Dr. StØphane Huchet Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2008

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arte e tecnologia da imagem

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  • Ines Karin Linke Ferreira

    INTER/LOC/AO

    A CONCEPO DA OBRA E SUAS DEPENDNCIAS ESPACIAIS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Artes rea de concentrao: Arte e Tecnologia da Imagem Orientador: Prof. Dr. Stphane Huchet

    Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG

    2008

  • AGRADECIMENTOS Agradeo a Stphane, pela orientao; a Louise, pela colaborao; a Guiomar,

    pela generosidade; a Maldita, pelas vivncias; a Leo, pela inspirao; a Eduardo,

    pelas correes; a Fabola, pelo olhar crtico; a Zina, pela pacincia e a todos os

    amigos, colegas, professores e funcionrios, pelas contribuies diretas e

    indiretas.

  • Arte chamada para acompanhar o homem em todos os lugares onde sua vida incansvel acontece e atua: na bancada de trabalho, no escritrio, no trabalho, no descanso e no lazer; nos dias de trabalho e feriados, em casa e na estrada, de forma que a chama da vida no se apague no ser humano.

    Pevsner e Gabo

    O mundo no um objeto do qual possuo comigo a lei da constituio; ele o meu natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepes explcitas. A verdade no habita apenas no homem interior, ou, antes, no existe homem interior, o homem est no mundo, no mundo que ele se conhece.

    Maurice Merleau-Ponty

    A forma de vida o processo de criao do espao.

    Milton Santos

    [...] desde que a arte passa a trabalhar qualquer matria do mundo e nele interferir diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte uma prtica de problematizao, decifrao de signos, produo de sentido, criao de mundos.

    Peter Pl Pelbart

  • SUMRIO

    1 INTRODUO 11

    2 A REATIVAO DOS SENTIDOS 21

    3 A DIMENSO SENSVEL 39

    4 A DIMENSO FENOMENOLGICA 62

    5 A DIMENSO EXPOSITIVA 100

    6 CONCLUSO 125

    REFERNCIAS 134

    APNDICE 138

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 - Robert Morris, Column. Nova Iorque, 1960.

    Figura 2 - Ines Linke. Seminrio: o arteso do corpo sem rgos. Belo

    Horizonte, 2002.

    Figura 3 - Ines Linke. Rua Maria Martins Guimares. Belo Horizonte, 2007.

    Figura 4 - Dennis Oppenheim. Material interchange. In: Aspen Projects,

    2:44min, 1970.

    Figura 5 - Dennis Oppenheim. Parallel Stress. Nova Iorque, 1970.

    Figura 6 - Ines Linke. Cidade Cenogrfica. Montagem Fotogrfica. Belo

    Horizonte, 2006.

    Figura 7 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Registro fotogrfico.

    2004.

    Figura 8 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Registro fotogrfico.

    2005.

    Figura 9 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Permetro. Belo

    Horizonte, 2005.

    Figura 10 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Permetro. Belo

    Horizonte, 2005.

    Figura 11 - Peter Greenway. The stairs. Geneva, 1994.

    Figura 12 - Dennis Oppenheim. Viewing station. 1969.

    Figura 13 - Ines Linke e Louise Ganz. Topografia. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 14 - Ines Linke e Louise Ganz. Topografia. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 15 - Ines Linke e Louise Ganz. Banquete. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 16 - Ines Linke e Louise Ganz. Banquete. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 17 - Ines Linke e Louise Ganz. Cabeleireiro. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 18 - Ines Linke e Louise Ganz. Cabeleireiro. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 19 - Ines Linke e Louise Ganz. Brinquedos. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 20 - Ines Linke e Louise Ganz. Praia. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 21 - Ines Linke e Louise Ganz. Exhibio. In: M2, 52:00min, 2006.

  • Figura 22 - Ines Linke e Louise Ganz. Exhibio. In: M2, 52:00min, 2006.

    Figura 23 - Robert Smithson. Um passeio pelos monumentos de Passaic. Nova

    Jersey, 1967.

    Figura 24 - Ines Linke e Louise Ganz. Registro fotogrfico. Nova Lima, 2006.

    Figura 25 - Ines Linke e Louise Ganz. Registro fotogrfico. Aglomerado da

    Serra, 2006.

    Figura 26 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1, Montagem fotogrfica. Belo

    Horizonte, 2007.

    Figura 27 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1 - Construo. Tecido branco,

    100cm. Nova Lima, 2007.

    Figura 28 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1 - Construo. Tecido branco,

    100cm. Nova Lima, 2007.

    Figura 29 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Caixa com textos impressos,

    11x9cm. Nova Lima, 2007.

    Figura 30 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Montagem fotogrfica. Nova

    Lima, 2007.

    Figura 31 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2. Montagem fotogrfica, Belo

    Horizonte, 2007.

    Figura 32 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 2. Tapete

    vermelho, camas e pelcia amarela, 400x400cm. Belo Horizonte,

    2007.

    Figura 33 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 3. Tapete

    vermelho e bias verdes, 400x400cm. Belo Horizonte, 2007.

    Figura 34 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 1. Tapete

    vermelho, mesas, cadeiras, toalhas e louas, 300x400cm. Belo

    Horizonte, 2007.

    Figura 35 - Percurso 1 - Lona com impresso fotogrfica, 2.200x200cm. Belo

    Horizonte, 2007.

    Figura 36 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 1. Tapete

    vermelho, mesas, bancos, toalha com impresso fotogrfica

  • (300x140cm), 300x400cm. Galeria Arlinda Corra Lima, Belo

    Horizonte, 2007.

    Figura 37 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 3. Almofada de

    lona com impresso fotogrfica, 300x400cm. Galeria Arlinda Corra

    Lima, Belo Horizonte, 2007.

    Figura 38 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 Construo 2. Tapete

    vermelho, camas, lenis com impresso fotogrfica (280x140cm),

    400x400cm. Galeria Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.

    Figura 39 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria

    Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.

    Figura 40 - Michel Asher. Vista de instalao. Galeria Claire Copley, Los

    Angeles, 1974.

    Figura 41 - Michel Asher. Vista de interveno. 73rd Exibio Americana, Art

    Institute, Chicago, 1979.

    Figura 42 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Ambiente, lona com

    impresso fotogrfica (2,200x200cm), 57m. Galeria Arlinda Corra

    Lima, Belo Horizonte, 2007.

    Figura 43 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria

    Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.

    Figura 44 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria

    Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.

    Figura 45 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria

    Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.

  • RESUMO

    Esta dissertao desenvolve uma reflexo sobre a concepo da obra artstica e

    suas dependncias espaciais. Procuro refletir sobre as dimenses sensvel,

    fenomenolgica e expositiva da obra de arte, a partir da discusso de

    determinados trabalhos plsticos e cnicos realizados em Belo Horizonte entre

    2002 e 2007. Recorro a conceitos e questes do teatro e das artes plsticas para

    analisar a interseco dos dois campos. Repenso a instalao e o site para

    fundamentar a experincia como uma troca entre instncias ou um encontro capaz

    de criar novas localidades e noes de realidades no cruzamento entre arte e

    vida. Os trabalhos so criados em relao e a partir de elementos do cotidiano.

    Mas como criar uma noo do real que re-estabelece o prazer das coisas

    comuns? A proposta o deslocamento do espao esttico para a experincia

    cotidiana e a busca de encontros entre colegas de trabalho, relaes com lugares

    do entorno e aes que permitem processos de sociabilidade fora e dentro do

    espao institucional da galeria. Com o intuito de articular uma interlocuo entre

    as prticas teatrais e visuais desenvolvo procedimentos de conscientizao,

    apropriao e deslocamentos de lugares e objetos existentes para pesquisar a

    relao de objetos, lugares e pessoas dentro da perspectiva da vivncia esttica e

    da ao artstica.

    Palavras-chave: artes plsticas e teatro criao espao percepo visual na arte.

  • ABSTRACT

    This paper develops a reflection on the conception of the artistic work and its

    spatial dependencies and searches to reflect on the sensitive and

    phenomenological dimensions and the exhibition of the work of art based on the

    discussion of certain plastic and scenic works, which were realized in Belo

    Horizonte between 2002 and 2007. The paper considers concepts and issues of

    Theater and Visual Arts to examine the intersection between the two fields and

    reevaluates the installation and the site to establish the experience as an exchange

    or a meeting between instances, which are capable of creating new locations and

    concepts of realities that are located between art and life. The works are created in

    regards to and based on elements of everyday life. But how does one create a

    sense of reality that re-establishes the pleasure of common things? The proposal is

    to displace the aesthetic space to daily experiences, promote exchange between

    colleagues and create relations with surrounding places and actions that allow

    processes of sociability outside and within the institutional space of a gallery.

    Aiming at articulating an interlocution between visual and theatrical practices, the

    artist develops procedures such as awareness, appropriation and displacements of

    existing places and objects to investigate the relationship of objects, places and

    people within the fields of esthetic experience and artistic action.

    Key words: plastic arts and theater creation space visual perception in the arts.

  • 1 INTRODUO Os homens, reduzidos condio de suporte de valor, assistem atnitos ao desmanchamento de seus modos de vida. Passam ento a se organizar segundo padres universais, que os serializam e os individualizam. Esvazia-se o carter processual de suas existncias: pouco a pouco, eles vo se insensibilizando. A experincia deixa de funcionar como referncia para a criao de modos de organizao do cotidiano: interrompem-se os processos de individualizao (ROLNIK, 1986, p.38).

    Ao discutir questes que envolvem os processos de subjetivao,

    desejos, fluxos de inconsciente e processos de universos psicosociais, Rolnik

    (1986) assinala que fazemos parte de um campo social normalizado no qual se

    fabricam subjetividades serializadas. Somos produzidos como suporte de valores

    numa hierarquia de identidades reconhecidas dentro de um espao opressor das

    representaes pre-estabeleciadas. O corpo violado, invadido, colonizado e a vida

    expropriada, reduzida a seu mnimo, vida nua, vida reduzida ao estado de

    mera atualidade, indiferena, impotncia e banalidade biolgica. De acordo com a

    autora, a subjetividade foi reduzida ao corpo, sua aparncia, imagem,

    performance, sade, longevidade, conforme modelos preestabelecidos. Criou-se

    uma cidade das imagens, uma cidade cenogrfica1, que levou a uma crise de

    visibilidade; o excesso de superfcies visveis leva invisibilidade das coisas. Pela

    saturao dos olhos, as imagens so desvalorizadas e criou-se certa imunidade e

    indiferena nas pessoas. Tendo perdido a capacidade de olhar e perceber,

    transferiram-se as vivncias do corpo para um presente fixo e estvel da sua

    imagem, ou seja, um mundo no qual o presente ausente.

    Todos vivemos quase que cotidianamente em crise; crise da economia, especialmente do desejo, crise dos modos que vamos encontrando para nos ajeitar na vida. [...] Vivemos sempre em defasagem em relao atualidade de nossas experincias (ROLNIK, 1986, p.12).

    1 Ultilizo este termo para referir-me cidade que se apresenta como realidade fixa, que diferencio posteriormente da teatralizao dos espaos capaz de desestabelizar a noo do real fixo a partir da encenao de contradies existentes.

  • As relaes de alienao e opresso influenciam todas as atividades,

    as relaes entre pessoas e a nossa circulao no campo social. Dessa maneira

    perdemos o controle sobre a construo da nossa realidade. Somos produtos de

    uma sociedade que se empenha em produzir indivduos normalizados,

    articulados, conectados uns aos outros segundo sistemas hierrquicos, sistemas

    de valores, sistemas de submisso. Na cidade, experimentamos espaos,

    condicionamentos ou confinamentos similares ao ambiente de uma priso.

    Em uma visita da Maldita2 penitenciaria feminina Estevo Pinto3,

    localizada em Belo Horizonte, observamos a organizao de um organismo

    eficiente cujo conjunto de diversos componentes forma um corpo coletivo. A

    guarda apresentou esse conjunto como organismo inteligente, auto-suficiente,

    autnomo, em que normas e procedimentos fixos regulam os comportamentos do

    dia-a-dia. Tudo funcional e prtico. Para tudo existem solues prefiguradas.

    Um conhecimento antecipado prev todos os acontecimentos, e o organismo

    eficaz reage antecipadamente, antes que qualquer coisa possa acontecer. um

    projeto de dissoluo da individualidade, da desmaterializao psicolgica e fsica

    dos indivduos; agora o corpo constitui uma parte padronizada e funcional de um

    mecanismo maior.

    Na priso, a triagem permite um tempo para a normalizao e a

    adaptao ao funcionamento. Ela abre o caminho da participao e das escolhas

    previamente determinadas. Para superar o tdio, pode se exercer uma atividade,

    um trabalho repetitivo, terminar pilhas infinitas de abas de bons para a prxima

    campanha eleitoral ou colar as alegres bandeirinhas para as festas juninas,

    2 A Maldita -Companhia de Investigao Teatral de Belo Horizonte, Minas Gerais, nasceu em 2002 do encontro de profissionais com trajetrias de experincias diversas. Do desejo comum de abrir caminhos e instrumentos com os quais possam estabelecer a socializao da escrita cnica, a experimentao do processo colaborativo e a investigao de mecanismos pico-dramticos, juntaram-se, inicialmente, Amaury Borges e Lenine Martins (diretores e atores), Lissandra Guimares (atriz), Nina Caetano (dramaturga), Ricardo Garcia (diretor musical) e a artista plstica Ines Linke. O grupo pesquisa, por meio da polifonia de funes, mecanismos para o estabelecimento de uma linguagem pico-dramtica. Dentro dessa perspectiva, est presente a experimentao da atuao, do espao fsico, de objetos, da sonoplastia, da iluminao e da dramaturgia. 3 Visita realizada no dia 3 de maio de 2006.

  • diariamente, por horas a fio em uma monotonia triste. O direito de trabalhar

    adquirido pela obrigao de estudar. Submetendo-se aos testes necessrios e

    agendando com antecedncia, pode-se ter uma vida sexual nos finais de semana

    ou nas horas vagas que no so destinadas para o repouso obrigatrio. Tudo e

    todos funcionam de acordo com o relgio. A distribuio de funes e

    responsabilidades individuais faz o corpo coletivo funcionar impecavelmente.

    Criou-se um espao que prope estmulos de uma higiene fsica e mental. Um

    projeto formal, esttico e a visualidade do corpo roubado4 incorporaram-se

    funcionalidade integrada dos espaos especficos de cada atividade.

    A mortificao do cotidiano e a modelizao do comportamento dentro

    de uma ordem social rgida resultam em uma evaso do real, uma perda da

    integridade do corpo e da propriocepo - da percepo espacial do eu no tempo

    presente - tambm fora da priso. A reduo da capacidade perceptiva na vida

    urbana gera uma viso limitada dentro dos moldes e das maneiras existentes de

    ver o mundo. As pessoas perderam a capacidade de reconhecer sua cinesfera, o

    espao individual do corpo que se movimenta e se vem como imagens

    construdas a partir de categorias predefinidas pelo olhar do outro.

    Como resposta a essa condio, Rolnik (1986) prope a recusa dos

    modos estabelecidos para construir modos de sensibilidade, modos de relao

    com o outro, modos de produo que geram processos de singularizao. A

    criao de subjetividades singulares, conforme a autora, a base necessria

    para produzir relaes efetivas e sair das esferas fechadas sobre si mesmas.

    Para orientar e organizar no mundo, Rolnik (1986) enfatiza a importncia dos

    processos de subjetivao. O tempo presente se constri a partir da interao e

    de formas dialgicas entre as pessoas e proximidades com o entorno. A

    existncia sensorial a base da propriocepo a qual necessria para se viver

    o presente corporal e imageticamente.

    4 Antonin Artaud usa a idia do corpo roubado para expressar a impotncia do corpo oprimido de possuir a vida. Este conceito forma a base de sua busca do corpo sem rgos para o Teatro da Crueldade.

  • As situaes e trabalhos reunidos nesta dissertao partem da idia de

    criar agenciamentos individuais e coletivos de processos de subjetivao como

    uma tentativa de manifestar a impotncia e de re-apropriar-se do [...] corpo

    roubado (ARTAUD, 1984, p.17). Vivencias, situaes e os desdobramentos

    dessas aes estabelecem novas relaes entre objetos, corpos e espaos.

    Associando essas experincias a diferentes dimenses procuro ver o presente,

    estar no presente e criar o presente como estratgia de viver ou de sobreviver e

    refletir sobre a relao entre arte-vida.

    Neste texto, desenvolvo uma conscientizao, a partir da realizao de

    trabalhos recentes, sobre a conceituao da obra de arte e suas dependncias

    espaciais. Reflito sobre a concepo da obra de arte em relao ao espao como

    estmulo inicial, suporte e meio do trabalho e a sua recepo. Inter/loc/ao

    investiga as funes espaciais, por meio da anlise desses trabalhos em

    associao com obras de diversos artistas e categorias criticas e tericas do

    teatro e das artes plsticas, enfocando, sobretudo, a percepo esttica de

    elementos do cotidiano, a apropriao e a reinveno de diferentes espaos.

    Repenso, a partir dos trabalhos individuais e coletivos, as prticas artsticas

    existentes, como a instalao e a obra lugar-especfica, para fundamentar a

    experincia esttica como uma troca entre instncias ou um encontro que

    interdependem de sistemas. Nesta dissertao investigo procedimentos estticos

    a partir de localidades dentro da perspectiva da ocupao, instalao e

    interveno em um lugar que chamo de cidade cenogrfica5.

    Com a estruturao do texto reflito o processo e as mudanas de

    pensamento ocorridas no contexto do meu trabalho cenogrfico e artstico ao

    longo dos ltimos anos. De um ttulo provisrio, Simbiose espacial, que visou

    investigar a contribuio dos espaos na produo de sentido a partir de

    deslocamentos, a dissertao passou a tratar de questes de cenobiose, da vida

    em conjunto; uma investigao das interaes entre lugares, aes e dilogos: 5 A idia da cidade cenogrfica aponta que a representacionalidade uma propriedade fundamental de todos os lugares em nosso entorno e se contrape definio convencional do espao urbano externo como um espao mais real que uma construo ou um interior.

  • Inter/loc/ao: a concepo da obra e suas dependncias espaiais. A

    experincia dos trabalhos realizados na grande maioria ao longo do

    desenvolvimento do texto escrito, visava inicialmente ilustrar uma reflexo terica,

    mas passava a ganhar importncia no decorrer do processo e construiu

    referncias prticas prprias que correspondem ao que Guattari e Rolnik (1986)

    chamam de revoluo molecular. Esta revoluo ocorreu no plano individual e

    continua como desejo que visa a re-criao de modos de organizao do

    cotidiano, a inveno de novas formas pessoais e interpessoais e o

    desenvolvimento de agenciamentos em que as pessoas criam a vida para si

    prprio e podem retomar a prpria ao cotidiana em coletivo.

    Nos diferentes espaos, o evento cnico, a instalao, a arte ambiental

    e a teatralizao de procedimentos artsticos permitem, mas tambm regulam, a

    interao de pessoas nos espaos. Cria-se um encontro que transforma o pblico

    em participante. Mas quais so os critrios dessa participao e como criada

    uma colaborao efetiva? Quais so as diferenas de trabalhar em espaos

    institucionais da arte e em espaos outros?

    Relato o processo de criao de uma exposio que dialoga com as

    situaes criadas em uma instncia anterior. Os trabalhos in situ so analisados

    durante a escolha de um lugar, a sua percepo, a interveno e o

    deslocamento, visando no a documentao de um evento, mas a anlise de um

    procedimento processual que, num quarto momento, torna-se pblico no ato de

    ser exposto. Exibe-se um trabalho, um modo de fazer, um procedimento em uma

    galeria. Quais questes so pertinentes para deslocar uma situao e suas

    diversas instncias de criao, o que interessa na concepo e apresentao de

    um trabalho em uma galeria6? As discusses nesses seis captulos, que formam

    o corpo da dissertao, so conduzidas por diferentes processos de criao e

    permeadas pelos dilogos com Louise Ganz7 durante a elaborao de dois

    projetos especficos chamados de Percurso 1 e Percurso 2. Na concluso, 6 Percursos, Galeria Arlindo Corra Lima, Palcio das Artes, Belo Horizonte. Exposio de dois trabalhos desenvolvidos por Ines Linke e Louise Ganz em 2006 e 2007. 7 Louise Marie Cardoso Ganz, (1964- , Belo Horizonte) arquiteta e artista plstica.

  • reapresento os questionamentos que foram feitos nos captulos anteriores. As

    perguntas so reavaliadas e respondidas a partir das experincias dos trabalhos

    realizados e citados anteriormente.

    Problematizo ao longo da dissertao o relacionamento do artista com

    o seu entorno e com os espaos encontrados. Na associao entre o campo

    teatral, artstico e urbano objetivo ampliar a experincia e as potencialidades no

    espao urbano. O desafio dos trabalhos se coloca em projetar as proposies

    com os espaos e as pessoas. Isso predispe prpria percepo, ao ato

    vivencial e ao estabelecimento de relaes e interaes em que o espao e o

    evento se retro-alimentam. Viso ocupar um vazio relacional, o corpo como interior

    e a cidade como interior, para iniciar um processo que reverte a alienao e no

    qual a experincia estabelece acontecimentos, trocas entre instncias e

    encontros capazes de criar novas cenas e noes de realidades.

    Pretendo contestar a concluso sobre o cubo branco da galeria e a

    caixa preta do teatro como contra-modelos da arte pblica e da interveno e

    defender uma postura em que todos os espaos so adequados para trabalhar a

    cidade e criar uma interseo entre arte e vida para um pblico. As artes plsticas

    e cnicas dispem de campos de investigao anlogos e procedimentos

    parecidos, na medida em que ambas perseguem o objetivo de criar a

    possibilidade de uma experincia fsica e/ou mental para o espectador/pblico,

    que, ao experimentar o evento, ao entrar no trabalho, cria seus prprios

    processos de subjetivao. Nos dois casos, o encontro com o espectador/pblico

    gera um todo indivisvel, uma soma da percepo dos objetos, da experincia

    sensorial e da interao com o lugar.

    Para refletir sobre o processo de criao dos trabalhos e para

    sistematizar os procedimentos de elaborao das idias penso os trabalhos

    plsticos e cenogrficos como uma seqncia sucessiva de trs instncias:

    percepo, interveno e deslocamento. Trs operaes que formam um

    conjunto que se completa e nas quais se considera o espao como ponto de

    partida; lugares a serem observados, contemplados, escolhidos, ocupados,

  • reconstrudos e vividos. As crticas tericas e prticas que reverberaram no meu

    trabalho e que perpassam esta dissertao falam de percepo, de momentos

    estticos, de participao e de intervenes em lugares e sistemas que

    extrapolam as prticas do sistema tradicional das artes plsticas.

    O crtico e terico, Jack Burnham lana em vrios textos8 uma hiptese

    sobre arte no tempo real. Ele aponta a mudana de uma cultura de objetos para

    uma cultura na qual prticas artsticas invocam ou operam como sistemas. Por

    meio da noo de ambiente e da compreenso das prticas artsticas como

    estticas de sistemas, J. Burnham visa um papel importante para o artista na

    cultura contempornea. A aproximao das prticas artsticas via sistemas amplia

    sua atuao para um campo de conceitos que vai alm dos limites dos campos e

    disciplinas artsticas existentes. Para J. Burnham, qualquer situao (contendo

    pessoas, idias, mensagens etc.) dentro ou fora do sistema de arte pode ser

    projetada ou analisada como um complexo de interaes consistindo de material,

    energia e informao em diferentes graus de organizao. Para o autor, o artista

    se confronta com um sistema considerando metas, limites, estrutura e consegue

    alterar a consistncia desse sistema em tempo e espao9. Assim, os artistas

    prefiguram a transformao necessria do homo faber para o homo arbiter

    formae, o fazedor de decises estticas, o propositor que determinaria como

    invenes da civilizao industrial seriam usadas e como a sociedade se

    organizaria.

    A partir do conceito da heterotopia de Michel Foucault, busco

    estabelecer a teatralidade10 dos outros lugares como possibilidades de

    resistncia ao isolamento, ao esvaziamento e espetacularizao da vida

    contempornea. Em seu ensaio, De outros espaos (FOUCAULT, 1998), fala da 8 Systems esthetics, Real time systems e Beyond sculpture: the effects of science and technology on the sculpture of this century. 9 Em Esttica de sistemas Burnham visa compreender e delinear as prticas de artistas como Marcel Duchamp, Laszlo Moholy Nagy, o grupo GRAV, Robert Morris, Robert Smithson, Carl Andr, Dan Flavin e Hans Haacke como pessoas preocupadas com os meios de pesquisa e produo. 10 A teatralidade, a partir de um modelo polifnico que quebra as unidades aristotlicas, valoriza o carter transitrio do instante presente e ope-se idia de uma realidade fixa.

  • experincia com o mundo como uma rede de intersees no de pontos

    homogneos, mas de sites especializados e reservados para a projeo do

    sujeito. O site, segundo ele, um lugar vivo, totalmente imerso numa rede de

    conexes em constante movimento e a partir dessa rede, dessa srie de

    relaes construdas que se delineiam os stios. O autor desenvolve diferentes

    formas de relaes entre sites. A primeira ele denomina stios utpicos, irreais,

    aperfeioados e idealizados, lugares que so livres de impurezas e imunes ao

    mundo exterior. Para ele, o cubo branco nas artes plsticas e a caixa preta no

    teatro so representativos desses espaos homogneos que supostamente

    excluem qualquer interferncia externa. E, segunda forma, ele se refere como

    stios heterotpicos nos quais existe a justaposio ou a combinao de vrios

    lugares em um nico espao. Tais sobreposies simultneas criam espaos que

    no dm limites geogrficos mesmo mostrando posies exatas. Os espaos so

    acumulativos, sobrepostos, stios contraditrios onde uma srie de lugares se

    renem ou se sucedem como no caso das heterotopias transitrias nas quais os

    elementos se apropriam temporariamente de um site11. Penso que os elementos

    da cidade cenogrfica no so fixos, mas coexistem e se complementam num

    modelo polifnico, heterotpico.

    Os trabalhos teatrais e artsticos deste texto lidam como os diferentes

    sites, ruas, lotes, praas, edificaes e galerias, no como stios utpicos neutros

    e imunes, mas com stios heterotpicos. As aes propem outros lugares,

    transformaes que lidam com o ser humano em constante processo, e

    possibilitam maneiras de pensar como o indivduo que age sobre o ambiente

    conscientemente pode entrar em processo de desalienao. Os trabalhos que

    compem a dissertao Inter/loc/ao empregam conscientemente mtodos e

    procedimentos que partem da observao da infra-estrutura, da arquitetura e das

    caractersticas e cdigos de espaos para a criao de novas situaes e

    11 Utilizo esse termo em detrimento de local. O site refere-se ao local existente escolhido como lugar da ao ou meio e suporte de um trabalho.

  • imagens. Associo propositalmente o conceito de arte idia da utopia12, um lugar

    fictcio e imaginado que suscita o espectador. Quero pensar a relao entre

    objetos, pessoas e lugares para criar possibilidades do espao de encontro entre

    eu e o mundo exterior. Procuro privilegiar os acontecimentos e provocar acasos,

    tanto no processo de criao como no encontro com o espectador/colaborador.

    Os trabalhos, que formam a base desta dissertao, so continuao

    da minha pesquisa na rea de cenografia, desenvolvida desde 2002 dentro da

    Maldita, companhia de investigao teatral, que resultou na ocupao de diversos

    espaos abandonados em Minas Gerais e do meu envolvimento com o projeto

    Lotes Vagos, em 2005, com um trabalho coletivo intitulado Permetro13 e seus

    desdobramentos, o documentrio M2-Metros Quadrados, em 2006, e o projeto

    Percursos, em 2007, ambos desenvolvidos em conjunto com Louise Ganz14. Para

    a realizao do documentrio M2-Metros Quadrados15, que tem como objeto

    principal e ponto de partida o projeto Lotes Vagos, foram desenvolvidas seis

    aes coletivamente. As situaes surgiram a partir de uma reflexo sobre

    comportamentos, estratgias artsticas e pensamentos polticos que visam

    problematizar a relao entre o homem e a cidade.

    Os dilogos que proponho nos trabalhos prticos cnicos e plsticos,

    dos quais alguns integram este texto, formam parte da tentativa de achar um

    processo de interlocao, uma maneira de trabalho que corresponde aos meus

    objetivos. O prprio dilogo nos processos criativos da Maldita e nos trabalhos

    com Louise, que a base da colaborao, um mecanismo de desalienao. Ele

    promove encontros e trocas que implicam mudanas. Essa capacidade da

    conversa me faz acreditar que ela, como forma, pertinente aos trabalhos

    12 Nome de um pas imaginrio criado em 1480 pelo escritor ingls Thomas More. 13 Trabalho realizado por Fabola Tasca, Ines Linke e Rodrigo Borges. 14 Ines Linke e Louise Ganz comearam, em janeiro de 2006, a realizar passeios em Belo Horizonte e em seu entorno (Lebenswelt) e criar intervenes que interferem na espacialidade dos lugares. 15 O documentrio M2-Metros Quadrados (52) discute as noes de pblico e privado em diversos campos, enfocando, sobretudo, o potencial de lotes vagos e reas residuais para serem usados coletivamente, a partir das diretrizes do projeto Lotes Vagos.

  • desenvolvidos, nos quais tento abolir hierarquias e criar situaes capazes de

    sustentar o esprito coletivo do encontro.

    Em a reativao dos sentidos (captulo 2), a segunda das seis partes

    da dissertao, aps esta breve introduo, procuro situar historicamente o

    surgimento dos parmetros que influenciam minhas produes artsticas por meio

    da concepo e da recepo esttica de obras minimalistas, instalaes e

    intervenes. Viso significar a sada do quadro para introduzir a terceira parte, a

    dimenso sensvel (captulo 3) que desenvolve a relao entre indivduo e nosso

    espao vivencial a partir da percepo e do olhar. A seguir, na dimenso

    fenomenolgica (captulo 4), a percepo do espao e a construo de um ponto

    de vista individual participam na construo de um conceito de realidade. Esta

    parte prope ampliar as discusses iniciais percepo, apreciao esttica do

    mundo exterior, a um olhar sobre o comum, colocando em questo a oposio

    entre arte e as coisas reais. Relato exerccios de reconhecimento e

    conscientizao, procurando tornar visvel a irrealidade do real. A dimenso

    expositiva (captulo 5) trata da relao espacial com o local da representao, de

    uma dimenso discursiva que o espao institucional de uma galeria ou de um

    museu agrega ao trabalho e pensa a obra de arte ou a proposio artstica dentro

    da perspectiva do deslocamento para um outro lugar. Como pensar o

    deslocamento de uma vivncia, uma ao in situ ou de uma situao? O que se

    deve expor?

    As concluses se encontram no captulo 6. As referncias e um

    apndice completam a minha dissertao.

  • 2 A REATIVAO DOS SENTIDOS

    Espao e tempo so as nicas formas onde a vida construda, as nicas formas, ento, onde a arte deveria ser erguida (PEVSNER e GABO, apud OLIVEIRA, 1994, p.17-18).

    Segundo a tradio do teatro no-literrio de Artaud (1984), o teatral

    tudo o que no est contido nos dilogos. Com a funo de ir alm dos artifcios

    da linguagem verbal e dos cdigos estabelecidos por convenes, os signos

    mortos, as aes humanas e a ao dos objetos criam uma experincia visual

    imediata, uma expresso no espao. Ao discutir a reativao dos sentidos, surge

    a idia de que o teatro no deve iludir o pblico mostrando o que no , mas

    afirmar o seu carter de acontecimento. O lugar no mais representado, usa-se

    a estrutura do palco, a realidade cnica, com a inteno de provocar os sentidos

    e a imaginao.

    Artaud (1984), em seu primeiro manifesto do teatro da Crueldade,

    declara que no haver cenrio; ele exige a expresso no espao por meio dos

    atores, a ao fsica da luz e os objetos de cena. Para achar uma esttica que

    atinge a sensibilidade de todos, ele busca referncias nos rituais e no teatro

    oriental, sem o carter do psicolgico, simblico e ilusionstico do teatro ocidental.

    As encenaes de Artaud existem dentro de um espao tridimensional, no qual

    todos os elementos apresentam uma plasticidade. Ele no se ope a essa

    plasticidade, mas ao cenrio que representa um lugar especfico e funciona

    dentro da lgica do espao teatral ilusionstico italiano.

    Para Artaud (1984) o vazio sempre pleno e habitado por foras que

    encontram na potncia seus significados, foras capazes de desconstruir

    universos engessados. Ele quer acordar uma crueldade viva e libertadora. Para

    ele, no teatro onde se refaz a vida, onde se foge do suicdio pela sociedade,

    onde se reconstri o corpo roubado. O corpo sem rgos, o corpo libertado de

    seus automatismos que permite a pulsao vibrtil, a emergncia da vida. Ele

    busca ir alm de um sujeito historicamente institudo para viver uma lgica dos

  • fluxos e construir uma cartografia dos desejos e acredita que o encontro de sua

    energia no corpo sem rgos se produz o real. Construir um corpo sem rgos

    para Artaud (1984) uma maneira de escapar da ilusria identidade do sujeito.

    Assim, ele afirma que, se as pessoas no se contentam em ser rgos

    registradores, elas podem criar. A vida do corpo sustentada pelo teatro, no qual

    os rgos se transformam em foras que ainda no existem. O sentido da vida se

    renova por meio do teatro.

    Acreditando nessa possibilidade da devoluo do corpo roubado,

    Artaud (1984) compara a diferenciao orgnica do corpo corrompido

    organizao hierrquica do teatro, cujas articulaes, relaes de funes

    internas, de membros remetem ao desmembramento do corpo. Para ele, a

    manifestao das foras possvel s aps a destruio dos rgos teatrais. Ele

    busca uma forma de teatro original, cujo signo ainda no foi separado da fora e

    que ainda no um signo, mas no mais uma coisa. Ele busca a reconstituio

    da representao original, a zona entre o real e a representao. Essa zona junto

    ao dilogo da encenao com a arquitetura cnica existente, e os cdigos do

    sistema teatral tradicional so preocupaes fundamentais para o teatro

    experimental e a performance, que percebem o evento como um instante em que

    o corpo colide com o mundo exterior: um acontecimento.

    As relaes entre o homem e o lugar em outros ambientes tambm so

    permeadas pelos acontecimentos. As vivencias, experincias e acasos

    acontecem no presente, o aqui e agora, que interligado idia do

    acontecimento, de algo que sucede, que ocorre. Um fato, coisa ou pessoa que

    causa sensao. As tentativas de definir esses instantes passam pela metfora

    da vibrao, da ondulao, da corda sonora ou luminosa e do ponto de encontro

    de intensidades (DELEUZE, 2000). O acontecimento apresentado como algo

    em si e necessita do lugar e do sujeito para existir. Nessa perspectiva, o presente

    relacionado posio do sujeitoator, ao ponto de vista, ao lugar de onde

    estou. Modos de ver interdependem de quem olha e de onde se olha. O lugar do

  • acontecimento permite formas de relacionamento e funciona como mediador

    para o indivduo, favorecendo as relaes do homem consigo e com o mundo.

    O pensamento desses acontecimentos se d na relao entre

    apresentao e representao. Penso apresentao no sentido dramtico, no

    qual os componentes convergem para criar uma sensao do hic et nunc, um

    tempo e lugar dramtico, presente. Os espaos apresentam-se como verdades

    fixas que regulam e condicionam os corpos em todas as esferas da vida. Mas

    fora do teatro, verdades fixas, a realidade como algo determinado, so uma

    contradio porque no existe um presente estvel. Cria-se uma iluso de algo

    permanente, uma iluso de realidade estvel. Como a unidade de lugar no Teatro

    Aristotlico, esses espaos no so questionados, so vistos como

    preestabelecidos e fixos.

    Na vida cotidiana tomamos a unidade de lugar como fato que contribui

    para a percepo do entorno como realidade fixa. Nosso referencial de realidade

    formado a partir de apartamentos, casas, prdios, carros, ruas, carros, escolas

    e outros espaos do campo social. Tais espaos cotidianos ou fatias de vida

    preestabelecem suas funes, agem sobre ns e, assim, automatizam as aes e

    relaes das pessoas que so passivamente condicionados.

    Entendo a representao no sentido brechtiano no qual os elementos

    picos no criam um mundo permanente e coerente, mas proporcionam um olhar

    sobre o mundo. Seus componentes existem simultaneamente, se distanciam um

    do outro e no oferecem um modelo sinttico, mas um modelo polifnico, que

    confronta as convenes, importa narrativas, imagens e questiona as

    familiaridades. Estabelecem-se outros lugares que coexistem e entram em

    dilogo com a realidade estvel. Assim, pode-se acreditar que as coisas no so

    fixas ou eternas, mas suscetveis a mudanas e transformaes.

    O artista, como ser no mundo, um ser social e poltico. Em vez de

    afirmar um lugar fixo, um lugar comum, ele, para trabalhar na constante

    reconstruo do seu entorno, se mantm no limite onde existe o efeito de borda.

    A heterogeneidade das prticas espacializadas, nas quais existe uma relao

  • entre a proposio artstica, seu lugar de acontecimento e as pessoas presentes,

    resultou numa proliferao de termos que procuram especificar a relao

    especfica dos elementos constitutivos das prticas artsticas, sobretudo, com o

    espao. Nas artes cnicas, espao alternativo virou uma categoria prpria e, no

    campo das artes plsticas, instalao hoje um termo genrico que associado

    a outros termos como ocupao, stio-especfico, interveno, ambiente, arte

    urbana, land-art, ao, evento, situao. O denominador comum dessas palavras

    o conceito de que as prticas mudaram da concepo de um objeto autnomo

    construdo e exibido para uma abordagem complexa de produo e percepo de

    um trabalho em um determinado espao tridimensional e social. O lugar da obra,

    suas caractersticas e seu contexto vieram formar parte do contedo do trabalho,

    um participante ativo. O significado no est dado pelo contedo interior da obra

    ou do objeto, mas no encontro entre objetos e pessoas em uma situao que

    predeterminada pelo entorno e pela predisposio cultural do espectador. O

    conjunto cria um novo espao social.

    Rosalind Krauss relata as transformaes da obra de arte para a

    experincia da arte num contexto maior. No seu artigo A escultura no campo

    ampliado ela explicita as mudanas de paradigmas e das categorias tradicionais

    da arte e define trs novas categorias (o local de construo, locais demarcados

    e estruturas axiomticas), que, ao situar a arte entre sistemas outros, apontam

    para uma expanso das formas existentes. Ela cita o local de construo, uma

    forma que se situa entre paisagem e arquitetura; locais demarcados, formas que

    definem territrios e trajetos a partir da manipulao fsica dos locais; e estruturas

    axiomticas, formas nas quais existe um tipo de interveno no espao real da

    arquitetura (KRAUSS, 1984). Por meio dessas formas no campo ampliado, a

    autora redefine procedimentos artsticos e cria uma lgica da relao espacial

    que pode servir como modelo para as propostas classificadas como ocupao,

    site-specific, interveno, ambiente, arte urbana etc.

    A ocupao um local de construo, no qual uma coisa se instala, se

    abriga. O stio-especfico implica uma especificidade do lugar ocupado por

  • designar a interpendncia da circunstncia espacial do trabalho. O espao ao

    redor, fsico ou social, significante e forma parte constitutiva da experincia do

    espectador de maneira que o trabalho s acontece em relao situao

    espacial. O ambiente se insere num espao existente ou reconstruido criando

    uma relao envolvente agregando qualidades perceptveis alm da viso. O

    pblico se encontra dentro da obra e vivencia o espao. O conjunto de elementos

    se instala em uma proposta na qual uma interao corprea, fsica e ttil

    agregada experincia visual. Os procedimentos da land-art substituem a viso

    da cidade, dos espaos internos e externos urbanos pelo ideal do deserto, da

    paisagem homognea onde o cu colide com a terra pela linha do horizonte e

    criam locais demarcados. A idia da situao16, que insere as prticas artsticas

    num contexto da vida cotidiana, promove vivncias de situaes existentes ou

    criadas. A interveno se apropria de um lugar existente e, via interferncia,

    expande ou revela seu significado que corresponde ao que Krauss (1984) chama

    de estruturas axiomticas. Ambientes, instalaes e arte urbana, que acontecem

    dentro do espao urbano, no so sinnimos de arte pblica. Um trabalho se

    torna pblico quando ele acessvel a todos17, no por sua relao espacial, mas

    por sua insero social. Seu carter pblico depende de sua abrangncia de

    espectadores e, no, de sua localizao em um espao aberto ou fechado,

    mesmo porque, hoje em dia, existem vrios espaos internos pblicos e externos

    privados e outros falsamente pblicos que so restritos a diferentes fraes

    sociais, alguns por costumes e outros por mecanismos de controle.

    Nas prticas de instalao, comum que as diferentes formas de

    espacializao se sobreponham e se agreguem. Elas no somente dependem da

    natureza do espao original ou da proposta do artista, mas tambm da maneira

    como o pblico interage com a obra. A situao espacial promove uma

    16 Em 1957, a Internacional Letrista, o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista e a Associao Psicogeogrfica de Londres se juntaram para formar a internacional situacionista. 17 Projeto utpico, considerando que um nico lugar nunca praticado por todos. Mas podemos considerar que uma mesma obra em espaos diversos poderia atualizar-se no campo social em um sentido amplo.

  • visualidade e um sentido do corpo que corresponde ao que Grossmann (1996)

    chama de momento arte, o acontecimento que resulta da interao entre

    presena, proposta e participao.

    A percepo dos objetos e do espao como elementos presentes e

    vivos a base da encenao da pea Casa das Misericrdias18 da Maldita,

    companhia de investigao teatral. Durante os ensaios, foram criadas imagens

    concretas e imaginrias em transio por meio de estmulos reais. Dinmicas

    espaciais foram transferidos para o corpo e geraram aes. O espao tornou-se

    arquitetura viva, espao performtico, capaz de transformar a si mesmo e aos

    objetos e pessoas nele inseridas. A apropriao individual aconteceu a partir da

    construo de novas relaes, conexes e articulaes que agregaram outros

    sentidos e valores aos elementos.

    O confronto dessas experincias individuais o procedimento de

    criao e da colaborao entre as pessoas; a produo de significado depende

    de uma reinveno a partir da interao dos espaos individuais existentes. A

    cenografia nesse mbito da ao no se esgota na representao ou na imitao

    do mundo visvel, ao contrrio, realiza-se em um processo dialtico entre a

    experincia real e o imaginrio. So criadas memrias novas que se sobrepem

    aos usos cotidianos dos lugares, situaes que criam cruzamentos de referncias

    e, assim, possibilitam uma releitura dos espaos.

    Para a estria em Belo Horizonte, em vez de escolher uma

    determinada configurao num lugar supostamente neutro, optou-se por trabalhar

    com uma configurao arquitetnica preestabelecida, um lugar cotidiano e

    pblico, um bar abandonado no bairro Horto. Focalizamos a suspenso da

    concretude do espao e dos objetos familiares relacionados a ele, atribuindo 18 O espetculo Casa das Misericrdias, gerado em processo colaborativo, fruto da primeira edio (2003) do projeto Cena 3 x 4, concebido pela Maldita e realizado em parceria com o Galpo Cine Horto. O projeto visava o dilogo prtico entre as experincias colaborativas de grupos como pesquisa para criao de uma dramaturgia prpria. A partir de temticas como loucura e instituio, indivduo e sociedade, e tendo como referncia as obras da escritora Maura Lopes Canado, Artur Bispo do Rosrio e Antonin Artaud, o grupo experimentou diversas possibilidades espaciais e chegou ao conceito de arquitetura do abandono, ocupando, como primeiro espao de encenao, a Gruta, uma velha casa-bar em Belo Horizonte.

  • valores subjetivos e coletivos. Para cada cena, o espao redefinido e

    reorganizado e os significados estabelecidos dialogam com os elementos do

    ambiente. Tudo em volta apropriado, tirado do seu contexto do bar/casa e

    inserido no lugar fictcio que so os espaos das subjetividades dos personagens.

    Desenvolve-se uma produo de objetos e aes anlogas ao real nas quais os

    smbolos criados existem com referncia realidade. As experincias revelam as

    potencialidades dos elementos para criticar os hbitos automticos, as crenas e

    valores, a organizao montona dos dias e a concepo de uma vida normal

    que rege as relaes dirias. A representao nada mais que a projeo no mundo sensvel dos estados e das imagens que dele constituem suas molas escondidas. Uma pea de teatro deve, portanto, ser o lugar onde o mundo visvel e o mundo invisvel se tocam e se chocam, em outras palavras, a colocao em evidncia, a manifestao do contedo oculto, latente, que encobre os germes do drama (DORT, 1977, p.18)

    Cada novo espao oferece mltiplas possibilidades e potencializa novas

    relaes. A decifrao de signos, sentidos e a criao de mundos dependem

    desses espaos existentes. A especificidade espacial da pea Casa das

    Misericrdias criou um vnculo recproco entre os elementos cnicos e os lugares

    como estruturas performticas. Mais do que criar uma instalao autnoma, cada

    montagem em um novo local se apropria e habita o lugar. O novo local ocupado

    e experimentado por meio de prticas que consideram a presena dos materiais

    do espao escolhido e recriam a relao entre os elementos inseridos e

    encontrados. O pblico imerso no espao da atuao introduzido num ambiente

    que parece real e cujo sentido representacional problematizado. Os potenciais

    de variao, a participao e a transformao ao decorrer da pea interferem na

    percepo convencional do espao. No deslocamento da pea para outros

    lugares, procura-se estabelecer uma relao stio especfico que dialoga com a

    proposta ambiental na qual o espectador inserido. A apropriao de elementos

    existentes em cada espao e a sua disposio interferem na relao entre as

  • coisas e na percepo do espectador. Os elementos se agregam e so indivisveis

    para uma produo de sentido. O contedo representativo de uma priso pblica

    abandonada e de um asilo vazio, suas divises, marcas, estados de conservao,

    objetos abandonados e elementos de infra-estrutura so experimentados em suas

    potencialidades em cada recriao para suscitar um envolvimento que excede

    uma simples ocupao das arquiteturas pblicas abandonadas. A pea procura,

    na tradio dos trabalhos denominados minimalistas, criar uma situao, na qual

    os atores e espectadores se instalam num espao que tem memria passada, e

    estabelecer um lugar performtico com novas referncias que questionam as

    certezas e deslocam as verdades. No caso da encenao, como nos trabalhos

    minimalistas, reloca-se a experincia do trabalho para a experincia do corpo

    inserido em um espao teatralizado.

    Nas artes plsticas, um exemplo dessa transferncia de paradigmas do

    objeto contemplativo para o encontro a obra de Robert Morris na qual a

    percepo se d no tempo real e a obra se

    constitui na experincia da dimenso corporal.

    Robert Morris cria uma forma primria a partir

    de seu corpo. Ele muda a nfase do objeto

    para a nfase da viso e cria um convite ao

    do espectador que implica movimento. Seus

    objetos surgem do seu envolvimento com a

    performance19 e so articulados com e como

    corpos no espao. Column (Figura 1), o

    morfema ou o objeto primrio inicial de Robert

    Morris, foi destinado a ser um guarda corpo, uma caixa contendo um corpo que,

    no decorrer da apresentao com durao de sete minutos, cai da posio

    vertical na horizontal. A durao dividida exatamente ao meio pela queda

    abrupta. Por meio do elemento nico, a abstrao da figura humana e o

    19 Ligado ao Judson Dance Theater, Nova Iorque, onde Robert Morris trabalhou com Trisha Brown, Lucinda Childs, Simone Forte e Yvonne Rainer.

    Figura 1 - Column, MORRIS, 1960.

  • movimento nico, numa dimenso temporal, Morris emprega o trabalho

    minimalista como pretexto para o encontro corpreo. A coluna de compensado

    liso com suas superfcies retangulares pintadas de cinza para ele a blank form,

    a forma vazia, a unidade bsica para aplicar seu conceito de formar.

    Em outro trabalho posterior, o artista junta dois blocos, duas colunas,

    para formar uma viga em L. Pela disposio de trs unidades modulares em

    diferentes posies no mesmo ambiente, o espectador convocado a investigar

    seu campo de viso. As contingncias da montagem de L Beams influenciam a

    fenomenologia da viso. A percepo resultado de um processo que envolve

    uma ao e a execuo de uma tarefa. O espectador est consciente de que se

    trata de elementos idnticos repetidos, mas, na comparao da imagem mental,

    do entendimento da forma geomtrica com a forma concreta em vrias posies,

    percebe, por meio das condies de observao, que eles so diferentes. O

    espectador atento compreende a Gestalt de cada L pela sucesso de posies

    no espao. Amplia-se o espao tico para o espao fsico, concreto. A partir

    dessa entrada no espao real, o objeto se abre a vrios pontos de vista. O

    material visual primrio elimina a imitao da realidade e critica o idealismo, a

    psicologia e a pretensa autonomia da obra de arte modernista. L Beams, como

    tambm outras obras minimalistas, substituem a aluso ao espao dentro do

    quadro pela conscincia de que as superfcies e volumes pertencem ao mesmo

    espao tridimensional que vivido pelo artista e compartilhado pelo espectador.

    Robert Morris investiga as relaes entre os objetos, o espao e o

    espectador. As relaes internas da obra so ampliadas em funo do espao,

    da luz e da viso individual. O artista afirma que a obra de arte no um dom

    fixo, mas objeto de uma viso situada. Em Permutation Works, ele radicaliza no

    ato expositivo pelas alteraes dirias de peas seccionadas de fibra de vidro,

    morfemas que assumem diferentes configuraes diariamente. As

    transformaes das posies transformam a viso do espao existente. A

    conscincia da permutao diria e a memria das permutaes anteriores

    formam parte da observao. R. Morris trabalha com a galeria no como no-

  • lugar para hospedar a memria do site em forma de objeto indicando por meio de

    uma abstrao material para fora da galeria, mas ativa o lugar e estabelece a

    galeria com um lugar com memria. Os mdulos, com suas configuraes

    variveis, podem assumir infinitos posicionamentos e levam o artista idia de

    reposicionamento, de padres de constncia e variabilidade e da anti-form

    (MORRIS, 1968), na qual ele contrape a imposio geomtrica dos seus

    trabalhos anteriores com a organizao acidental de posies produzidas por

    acaso que deixam a construo explcita e exercem um efeito sobre o espao.

    Os aspectos complexos da relao entre artista, obra de arte, espao e

    espectador passam por constantes modificaes. A tradio da ruptura e as

    revolues plsticas associadas ao modernismo exibem procedimentos e

    manifestaes artsticas diversas que marcam as mudanas do campo plstico

    para a arquitetura. Essa reorientao do campo pictrico para o campo espacial

    resulta das investigaes no campo da escultura e da espacializao da forma

    bidimensional da pintura no sculo XX. Os conceitos plsticos construtivistas de

    Pevsner e Gabo (2000) se orientaram na cultura dos materiais e no espao real.

    A presena fsica dos materiais reais no espao real reflete os ideais da

    sociedade moderna fundada na crena do progresso industrial. A partir do incio

    do sculo XX, a escultura e a pintura procuraram expandir seus campos para o

    espao social. Paralelamente a esse desenvolvimento nas artes plsticas, a

    cenografia experimenta ao mesmo tempo as possibilidades de movimento por

    meio de construes em volumes. A partir de formas abstratas Adolphe Appia e

    Gordon Craig negam a atmosfera e a ambientao naturalista na busca da

    construo pura; uma nova organizao do espao que relaciona o indivduo com

    o entorno e cria novos desafios para o corpo dos atores via imagem em

    movimento.

    Embora com objetivos diferentes, artistas minimalistas tambm

    buscaram a forma primria, elementos primrios na sua materialidade e a

    abolio do ilusionismo. Aps a Segunda Guerra Mundial, em um momento em

    que a viso positivista da sociedade industrial e a celebrao do progresso da

  • modernidade so substitudas por uma crtica aos valores humanos da sociedade

    de consumo que regido por uma crena nas aparncias e dominado por valores

    mercadolgicos, os artistas minimalistas retomam o purismo e o paradigma da

    entrada no espao real do incio do sculo. Ao retirar as operaes formativas do

    objeto de arte, eles adotam a tecno-esttica dos construtivistas e reutilizam

    conceitos presentes no readymade e objet trouv.

    As experimentaes dos artistas minimalistas abriram novas

    possibilidades de colaborao entre prticas artsticas e o ambiente e renovaram

    o conceito da instalao criando trabalhos referenciais de sites e environments.

    As diversas prticas expandiram o sistema de arte para uma inter-relao, uma

    experincia interativa dentro de sistemas. Parte de um grupo de trabalhos que se

    parece em sua ruptura com o fazer manual, a relao hierrquica das partes, a

    textura, a referncia figurativa, do ilusionismo pictrico, complexidade de detalhes

    e o monumentalismo, operam dentro de conceitos arquitetnicos ou paisagsticos

    e substituem os termos tradicionais da arte com categorias como campo, direo,

    passagem, lugar e movimento.

    A nfase em trocas reais na arte ataca a prpria idia de arte. Diversos

    artistas criam trabalhos em relao ao momento, desprovidos de qualquer

    qualidade artstica. A arte minimalista e trabalhos denominados ps-minimalistas

    como process art, land art e body art buscaram uma reativao dos sentidos por

    meio da nfase na experincia em lugar do produto de arte como bem econmico

    e bem simblico. Diferentes manifestaes artsticas dos anos sessenta e

    setenta, conscientes da rede de presses externas e usos tradicionais,

    procuravam substituir a sublimao dos desejos da sociedade individualista e o

    aspecto sensacional da arte pela experincia sensvel na busca de produzir

    sensaes que no deixassem o espectador indiferente e, assim, provocar uma

    consciente construo do real.

    Essa tentativa de inserir a arte no cotidiano, no contexto social, e de re-

    locar o espectador resulta em transformaes na funo e no uso do lugar da

    arte. So quebrados os parmetros espaciais do mundo da arte e propostas

  • vrias experincias que levam noo do site-specific. As reflexes de Tony

    Smith, Robert Morris, Robert Smithson e Dennis Oppenheim, entre outros,

    evidenciam a dependncia da obra em relao paisagem, arquitetura, sala,

    parede, luz e ao corpo. Experimentam-se procedimentos que transformam o site

    em obra plstica e a obra plstica em site ou non-site, como no caso de Robert

    Smithson20.

    Priorizando a experincia direta, as obras minimalistas colocaram o

    entorno em evidncia, o material, a luz e a estrutura criam ambientes que

    suscitam os sentidos. Essas criaes, no seu contexto histrico, podiam ser

    vistas em um contexto da arte poltica, por oferecerem resistncia aos padres

    vigentes da sociedade contempornea e questionar a representao simblica

    praticada. Processos concebidos fora das prticas convencionais da arte e

    situaes efmeras articularam a experincia do individuo com o mundo. Os

    trabalhos de artistas minimalistas mudaram a produo do sentido da obra de

    arte da atividade mental, da interpretao de um significado interior da obra para

    a experincia fsica e sensvel no espao exterior. Ao criar uma instncia de

    observao consciente do estar no mundo, eles apontaram para um caminho

    para chegar devoluo do corpo roubado. O corpo reconstrudo quando a

    relao obra-espao-corpo se atualiza.

    A mudana de paradigmas, a quebra das categorias convencionais

    como escultura e pintura, a perda da autonomia da obra, conforme o

    assinalamento de Krauss (1984), resulta em prticas que exploram a lgica do

    espao que no organizado em torno de um determinado meio de expresso. A

    dimensionalidade da obra incita o espectador a assumir uma relao ao contexto

    experimental dado que implica uma presena no interior do espao

    (GROSSMANN, 1996) ou de outro lugar demarcado. A arte espacializada cria

    20 O non-site de Smithson, um earthwork para um interior, uma imagem lgica tridimensional que abstrato. Ele uma cartografia do site original sem semelhana ou mimese, mas por uma metfora dimensional em forma de uma construo que busca ser livre de contedos realsticos e expressivos. O que interessa ao artista o espao entre os dois sites.

  • uma experincia no espao e no tempo que permite uma troca e uma interao

    em que o sujeito presente se torna atuante.

    Transfere-se a produo do significado para a experincia do real

    artificial. Os objetos ganham concretude pela sua materialidade e o espao por

    meio da experimentao da sua forma fsica, do seu uso, que inseparvel da

    matria corprea do espectador. O espao exterior vira o novo limite formal do

    trabalho. No espao ampliado tambm a posio do espectador influencia o

    campo de viso. Essa transferncia da produo de sentido para o espao

    exterior ativa os espaos existentes onde os trabalhos acontecem. O lugar de

    exibio, o contexto, o ambiente natural ou construdo formam parte da

    percepo do trabalho e, assim, da experincia do espectador.

    O habitat da obra torna-se um dos problemas estticos. Inicialmente, o

    habitat da obra minimalista um lugar ocupado por objetos artsticos. O entorno

    ativado pelos materiais comuns, as superfcies refletidas, a disposio dos

    elementos ou simplesmente pela presena das obras. Na medida em que a

    ativao dos espaos se torna norteador para os artistas, so experimentadas

    espacialidades com diferentes qualidades fsicas e diferentes configuraes para

    investigar, junto com os trabalhos, as dinmicas entre objetos, paisagem,

    arquitetura e espectador. O ambiente preexistente se apresenta como suporte

    concreto e torna-se inseparvel do trabalho, um environment.

    O exerccio de ocupao de diferentes espaos na prtica da Maldita,

    companhia teatral, um processo coletivo que envolve todas as reas cnicas, a

    atuao, os elementos visuais, a cenografia, a sonoplastia, a iluminao, a

    dramaturgia e a direo, que estavam envolvidas na criao do texto da cena.

    Nas ocupaes no se trabalha a criao de novos contedos, mas com as

    possibilidades de variaes e novas associaes a partir da estrutura

    performtica sugerida pelo lugar. No caso da cenografia, o espao trazido para

    a experincia corporal dos atores e do pblico para que o sentido possa derivar

    de um estado de coisas que no depende da sua traduo em representaes,

    mas dos diferentes estados vividos.

  • A relao lugar-obra, a lgica do

    lugar e a percepo esttica de lugares

    diferentes que incitam uma predisposio

    crtica e consciente no dependem da natureza

    do lugar. No necessrio um espao

    especializado para criar um momento arte, do

    qual fala Grossmann (1996). A experincia

    pode acontecer em qualquer lugar, uma casa,

    um quarto, uma rua, um prdio, uma sala de

    escola.

    A instalao/interveno, Seminrio:

    o arteso do corpo sem rgos (Figura 2)21,

    prope (des-)construir cdigos existentes dos

    componentes da sala de aula para (re-)

    significar objetos e relaes. As pessoas

    entram em uma sala de aula escura na qual as

    cadeiras e mesas viradas, empilhadas at o

    teto, formam um crculo descentrado iluminado

    por uma lmpada incandescente. No cho so

    dispostos papis com linhas irregulares,

    curvadas e pontilhadas e canetas. Na

    apresentao dos conceitos gerais do

    contedo, o seminarista (ditador e dono da

    verdade) ausente substitudo por mediadores e pelas relaes que se

    estabelecem na interao dos elementos no espao. O seminrio uma

    montagem singular da sala de aula, o lugar do seminrio tambm o corpo do

    sujeito, da pessoa que entra em relao com os elementos dispostos. A recepo

    da instalao foi controversa. Muitas pessoas escreveram frases, desenharam e 21 Seminrio: o arteso do corpo sem rgos foi apresentado por mim no contexto da disciplina Imagens do pensamento - pensamento das Imagens no dia 29 de novembro de 2002, na EBA, UFMG.

    Figura 2 - Seminrio, LINKE, 2002.

  • rabiscaram, mas vale um seminrio sem seminarista? Porque no tinha nenhuma

    indicao do que se tratava, exceto um aviso na porta com os dizeres:

    Seminrio: o arteso do corpo sem rgos.

    O seminrio buscou um instante presente no qual o sentido se d na

    observao da disposio de elementos no espao e nas escolhas do

    observador, movido por um olhar condicionado, por um ponto de vista prprio,

    que, conseqentemente, contamina a percepo do exterior. Estabeleceu-se uma

    relao entre o corpo mquina, o organismo subdividido em funes e o sistema

    da sala de aula como mquina, tambm organismo com suas funes

    determinadas pela predisposio do lugar e o uso da linguagem na interao

    entre as pessoas.

    Os componentes da sala de aula so organizados hierarquicamente.

    Eles atribuem valores via orientao que direciona e limita o fluxo entre os

    elementos. Os principais componentes do sistema aula, no modelo dogmtico

    tradicional, so: a disposio dos lugares, a disposio das pessoas no espao e

    o uso da linguagem para garantir o entendimento e aprendizado de um dado

    contedo. As funes so organizadas, as instalaes eltricas, a ventilao, o

    quadro negro com giz, as cadeiras, a carteira do professor e o arranjo do corpo

    que participam da aula, professor e alunos, regulam e controlam o evento e a

    interao entre as pessoas na sala de aula. Como dar um seminrio sobre o CsO

    em tais condies? Pensar o seminrio como corpo levou s questes: de que

    corpo se trata aqui? Por quais procedimentos e meios podemos experiment-lo?

    O que acontece com as variantes em relao s expectativas? O que o seminrio

    pode fazer enquanto CsO?

    A aula uma cena, uma situao que se recria e se repete quando as

    pessoas se encontram para tal fim. Como na aula, um seminrio prope uma

    apresentao audiovisual no qual o orador, visvel e acusticamente inteligvel,

    comunica um determinado contedo aos interessados. Os participantes dessa

    cena, orador e ouvintes, fazem papis fixos. A organizao hierrquica entre as

  • pessoas e a predisposio geogrfica da sala determinam o fluxo das

    informaes.

    A linguagem, organizada pelas funes gramaticais e sintxicas com

    seus mecanismos de descrever, designar, expressar e significar remete ao

    organismo. A construo do significado passa pelo regime da linguagem para

    produzir mensagens instantneas, incorporais e signos. Os aspectos lgicos da

    palavra discursiva usam a linguagem como representao. As palavras, na sua

    compreenso e recepo, so significaes limitadas por serem originalmente

    repeties.

    A sala de aula do Seminrio coloca o corpo do observador no centro

    das atividades. O indivduo responde a estmulos que provm da percepo do

    entorno em relao ao prprio corpo. Essas respostas subjetivas implicam

    variaes contnuas de tudo o que se pode fazer como corpo. Aps da abolio

    do texto escrito d-se lugar a uma fala que corpo, um corpo que teatro, um

    teatro que vira texto.22

    Nos anos sessenta, artistas saram do espao utpico, do cubo branco

    idealizado do museu e da galeria modernista e entraram no domnio dos stios

    heterotpicos, dos espaos heterogneos que combinam vrios lugares em

    sistemas maiores. Intensificaram-se as prticas processuais realizadas no mundo

    real, em lugares, sem lugares, nas quais intervenes artsticas produzem

    dilogos que criam novas relaes entre partes j existentes. O mundo das artes

    procura reintegra-se ao seu contexto exterior. Os objetos situados minimalistas e

    sites e non-sites ps-minimalistas exploraram e expandem as reas da

    experincia artstica e humana criando encontros que expandiram a viso para se

    ver em mltiplos nveis de realidade. O papel do espao e o aspecto de durao

    fundamentam os trabalhos na sua dimenso social. De uma prtica de reajuste ou

    de adaptao a um lugar existente para acolher um trabalho, muda-se para uma

    conscincia de um espao associador e fundador que elimina a distino entre a

    obra e seu abrigo. O espao sociofsico vira o espao performtico, um lugar da 22 O ur-texto em qual Antonin Artaud acredita.

  • cidade cenogrfica, agora, um lugar em ao. O espao de stios urbanos,

    paisagens, salas, construes evocado para uma experimentao sensorial.

    Sylviane Leprun cita diferentes orientaes dos artistas-cengrafos especificando

    as diferentes abordagens do espao como meio das pesquisas plsticas

    espacializadas: stio, mdia, museu e arquitetura. Ela refora o conceito

    cenogrfico da instalao com a afirmao que a instalao no trabalha somente

    sobre o espao, mas com ele. Assim, a autora define a prtica da instalao que

    se prope a uma construo simblica do espao como uma prtica

    interdisciplinar presente na vida domstica, coletiva de qualquer sociedade

    (LEPRUN, 1999).

    O sentido das obras no reside na interpretao de um contedo e na

    apreciao da sua contraparte material, mas na percepo ligada aos esquemas

    sensoriais. A experincia esttica acontece em um espao vivencial, e a

    apreenso da obra ocorre na percepo da relao corpo-objeto. Nesse encontro,

    o espao vital, o Lebensraum, como contexto exterior forma parte do conjunto da

    obra. Os elementos arquitetnicos numa encenao e na exposio resultam

    numa espacialidade que estimula uma conscincia corprea similar aos espaos

    urbanos que correlacionam o homem ao seu redor. O cidado vive em espaos

    criados, como o ator vive no espao do palco. Os espaos propem diferentes

    relaes que determinam seu uso e suas dinmicas que o corpo experimenta a

    partir de um objeto ou um elemento arquitetnico. Com base nessa vivncia, a

    pessoa pode (re-)proporcionar o seu entorno.

    A instalao como a proposio de uma arte em ato oferece maneiras

    de pensar o espao individual e coletivo e a simblica de seus materiais e escalas.

    As sensorialidades que resultam das relaes estabelecidas pela proposta so

    situaes efmeras capazes de ordenar, exibir ou construir uma sociabilidade

    plstica. Retomando A. Artaud, pode-se constatar que o ato que exprime a

    potncia e que forma o pensamento. O indivduo se atualiza enquanto participa na

    reorganizao e na subjetivao do espao, ele vive um orgnico artificial tornado-

    se corpo-obra. A partir dessa experincia corporal, a conscientizao do

  • organismo em que as diferentes partes interagem, estabelece-se uma relao

    corpo-sentido que provm de um estado das coisas e das possibilidades de afetar

    e ser afetado. Por meio da percepo sensvel das coisas e do ato como potncia

    de diferenciao e de inveno, interfere-se no sistema vigente, nas formas

    constitudas e representaes estabelecidas. A prtica da experimentao e a

    transformao do exterior criam um mundo em obra, uma reativao do sentido

    processual da construo de noes de realidade.

  • 3 A DIMENSO SENSVEL

    Ines: A gente tinha conversado antes sobre a funo da

    percepo esttica para os trabalhos de Smithson e do Turnpike de Tony Smith. O ato perceptivo como sustentao

    da obra.

    Louise: Podemos comear do Monumento de Passaic, da coisa no

    materializada.

    I: Acho interessante. Ele trata de uma coisa muito familiar,

    muito cotidiana dele, a cidade natal.

    L: um caminho, um percurso e um texto que ele constri. No sei como o trabalho depois apresentado, se de outra forma, se aquele texto que se constitui como obra.

    I: E se ele no tivesse tirado as fotos e no tivesse

    escrito o texto?

    L: Se tivesse feito s o percurso? I: Sim, o que seria?

    L: Se no tivesse feito nenhuma manifestao, nenhum

    registro; se no tiver registro ou nenhuma manifestao

    para se passar para um meio pblico, como a coisa funciona? Por exemplo, os dadastas ocuparam um terreno,

    ficaram l durante um dia ocupando. O tipo de registro que tive disso foi uma foto ou outra. Lanaram um jornal depois, um texto falando sobre o dia. Mas teve algum tipo

    de manifestao, um registro, mesmo no sendo muito bem

    articulado.

    I: Mas documentao, relatos e textos escritos so

    materializaes a partir de alguma experincia. E a

    experincia em si, tipo a deambulao surrealista?

  • L: A gente s sabe da deambulao porque tem registro. complicado, acho que um ato, como o percurso que a gente

    fez, cheio de sentido. Mas, se a gente quer levar isso para um outro lugar, tem que ter alguma forma de

    materializar a experincia para virar objeto artstico ou outra coisa.

    I: Se no, no cria relao, fica dentro da cabea. O

    dilogo, quando a gente andou e conversou sobre coisas de vrias naturezas diferentes, tambm era um modo de externalizar essa experincia do lugar.

    L: Isso a primeira instncia, esse registro. Uma coisa registrar, a outra manipular a experincia de alguma forma, trabalhar com esses indcios, com o sensorial, o

    sensvel, com algum sentido que a experincia provocou na

    gente. Acho que manipular pode ser uma palavra

    interessante.

    I: Tem-se a percepo na primeira, a manipulao na segunda

    e a transferncia na terceira instncia, mas qual o lugar dessas materializaes nos sites locais

    escolhidos?23

    A teatralidade dos espaos no se restringe ao palco de um teatro. O que

    est contido ou acontecendo num lugar est sujeito ao prprio espao, cidade

    cenogrfica ou cidade polifnica (CANEVACCI, 1997). Por meio de vivncias e

    percursos, muda-se a atividade artstica na primeira instncia para perceber o

    lugar como um objet trouv ou uma cenografia pronta. A experincia desses

    espaos, dentro da tradio do environment inclui a concepo do espao na sua

    23 Dilogo gravado entre Ines Linke e Louise Ganz em novembro de 2006 a propsito do desenvolvimento dos trabalhos Percurso 1 e Percurso 2.

  • materialidade, visualidade, seu funcionamento, como condicionamento do corpo e

    como mecanismo de apropriao.

    Certeau (1994) aponta que vivemos a cidade como praticantes ordinrios,

    como caminhantes, pedestres cujos corpos obedecem aos desenhos dos espaos

    com seus cheios e vazios. Para o autor, as prticas organizadoras da cidade

    habitada se passam numa espcie de cegueira que contraposta pelas prticas

    artsticas no espao ampliado via aes que criam afetividades com os espaos

    cotidianos e produzem relaes espaciais que reivindicam os lugares como stios

    de relaes capazes de revelar ou extrapolar o contedo representativo da cidade.

    Esses processos questionam o lugar do corpo na cidade real planejada de acordo

    com os parmetros da organizao funcionalista e a impessoalidade do discurso

    da sociedade modernista que gera, classifica e hierarquiza todos os aspectos da

    vida. Produzindo prticas outras nos espaos, a (re-)apropriao depende de um

    modo individual de exercer prticas cotidianas no espao vivido. As deambulaes

    surrealistas e as caminhadas psicogeogrficas situacionistas criaram modelos de

    processos de caminhar que questionam a familiaridade do entorno. O ato de andar [...] um processo de apropriao do sistema topogrfico pelo pedestre; uma realizao espacial do lugar; enfim, implica relaes entre posies diferenciadas, ou seja, contratos pragmticos sob a forma de movimento. O ato de caminhar parece, portanto encontrar uma primeira definio como espao de enunciao (CERTEAU, 1994. p.177).

    O caminhar, o percurso em si uma realizao, uma atualizao

    espacial do lugar (Figura 3). Certeau (1994) compara esse ato a um modo de

    fazer, de atualizar, selecionar, afirmar e transgredir. O ato de andar apontado

    como a criao de um orgnico mvel que se configura em tipos de relaes

    sucessivas. O autor supe que as prticas do espao correspondam

    manipulao de uma ordem construda, de propriedades finitas articuladas entre

    si, formando um sistema que pode ser modificado ou deslocado (CERTEAU,

    1994). Em um jogo com as organizaes espaciais so feitos recortes, selees,

    escolhidos fragmentos do espao percorrido que implica ligaes pessoais, alm

    de omisses de partes. Essa substituio da totalidade por fragmentos

  • Figura 3 - Rua Maria Martins Guimares, LINKE, 2007.

  • colocados em evidncia cria um novo conjunto que aponta para uma alterao do

    espao pelo ato de andar durante o qual territrios fixos se movimentam e entram

    em relao a processos de subjetivao (Figura 3).

    Caminhar ter falta de lugar, um exlio caminhante, uma forma de

    suspenso, uma experincia de deslocamento e de condensao, uma fico que

    no distingue entre lugares sonhados e lugares vivenciados (CERTEAU, 1994).

    Criam-se, assim, representaes dos lugares que apresentam contedos,

    resduos, fragmentos, detritos que se insinuam como um conjunto simblico, um

    texto ou uma imagem, uma figura da cidade.

    A experincia dos espaos ao nvel do corpo uma prtica, um

    processo de criao de uma dramaturgia do espao, que forma uma parte

    fundamental durante as apropriaes de espaos do grupo teatral Maldita. O lugar

    contribui para reinventar a composio das aes no novo espao-tempo. Assim,

    a dramaturgia do espao muda a idia do conceito aristotlico da mimese, da

    imitao das aes, para o evento teatral como composio de aes; busca-se

    uma ao direta sobre o corpo, o sujeito criador. As experincias de contato, as

    configuraes entre espao e corpo correspondem ao homem em processo

    brechtiano, no qual a relao dialgica, o

    confronto entre instncias abole o contedo

    representativo na primeira instncia, ...para o

    absoluto a prpria vida um jogo. (ARTAUD,

    apud DERRIDA, 2002, p.176).

    O corpo em jogo e a experincia

    corprea dos espaos sugerem uma entidade

    mais ativa e no puramente visual, tal como

    podemos receber nos trabalhos de Dennis

    Oppenheim, que parte em seus trabalhos da

    noo de que a escultura uma permutao da

    performance. Ele situa sua investigao artstica

    num encontro entre o corpo e o ambiente. Esse

    Figura 4 - Material interchange, OPPENHEIM, 1970.

  • trabalho leva o artista para fora do atelier e do espao da galeria. Sua experincia

    da construo plstica demonstra constantes mudanas em termos de escala e

    localizao. Ele estende a idia da escultura minimalista natureza onde ele

    transforma o ambiente da vida real em mdium e suporte. Em Material

    interchange (Figura 4), adotando uma microescala, ele substitui a paisagem pelo

    corpo. Em lugar de confeccionar uma obra ou produzir um objeto, ele desloca o

    fazer artstico para uma conscincia de processos materiais por meio de um

    movimento minsculo de uma unha e uma farpa de madeira. As trocas mtuas de

    materiais criam interseces ou cruzamentos de sistemas. A unha comea formar

    parte do assoalho, e a farpa se integra ao corpo do artista. Os efeitos so

    recprocos.

    A interseco de sistemas est

    presente em diversas escalas tambm em uma

    srie de trabalhos dos quais Parallel stress

    (Figura 5) constitui uma parte. Nesse trabalho,

    Dennis Oppenheim prope processos cognitivos

    psicofsicos, a obra se transforma em ao

    fsica. Os sites so: um molhe na proximidade

    da Brooklyn Bridge em Manhattam, na primeira

    instncia, e, num outro momento, um

    reservatrio de gua abandonado em Long

    Island para o qual transferida a forma corprea

    da primeira situao. No trabalho, o artista

    experimenta a resistncia de seu corpo tenso

    resultante de uma suspenso entre duas

    paredes de blocos de alvenaria. A parede toma

    lugar do suporte do corpo. Por meio dessa

    posio, Dennis Oppenheim tenciona os limites

    internos e vive uma experincia fsica no espao arquitetnico. Seu corpo, as

    paredes, a localizao e a ao criam um espao vivo. Durante dez minutos, o

    Figura 5 Parallel stress, OPPENHEIM, 1970

  • artista assume a posio que registrada no ponto de tenso mxima do

    momento antes do colapso. A curvatura do arqueamento corpreo

    posteriormente duplicada e transportada para a segunda instncia para a qual o

    artista recria na terra um suporte para assumir uma posio paralela ao primeiro

    arco por uma hora. O ttulo mistura referncias mentais e materiais: estresse, a

    condio de tenso que afeta as emoes, o mal do homem da cidade e stress

    como fora na forma de tenso, o fenmeno fsico que testa a resistncia dos

    materiais. Com essa aluso e a associao paralela das duas imagens, Dennnis

    Oppenheim questiona a natureza do objeto fsico de arte e prope novos dilogos

    com o site externo na recriao da curvatura original em outra localizao. O

    artista buscou um ambiente industrial para a primeira, onde ele cria uma situao

    que passa pelo corpo e um ambiente degenerado para sua recriao da segunda

    etapa do trabalho. Ao recri-la, ele comenta a primeira relao. O lugar agora

    encenado e, dessa vez, a dramtica visual e fsica envolve o corpo inteiro. Existe

    uma estrutura simblica nesse trabalho. Mas onde exatamente acontece a obra?

    Ela acontece no corpo, na relao com os elementos, nas condies geofsicas ou

    arquitetnicas do lugar, na associao das imagens, no ttulo, no efeito recproco

    da experincia fsica espacial ou na associao dos dois registros fotogrficos?

    As fotografias documentam um processo, mas tambm existem no

    campo das imagens sem sua relao referencial. Na associao das duas

    fotografias, estabelece-se uma relao, um lugar entre que independe da primeira

    instncia, o lugar da ao fsica. As fotografias como imagens so primrias, elas

    so elas mesmas. Pens-las como um sistema de signos significa construir um

    modelo que aproxima o visvel ao legvel, mas nega o carter enigmtico da

    imagem. Pensar imagens como sistemas formais diferente de pens-las como

    produes singulares a partir de um repertrio ilimitado. No h, porm,

    percepo e transmisso sem conhecimentos provenientes da razo; isso que

    leva tanto o artista como espectador a entrar num sistema de correspondncias

    simblicas socioculturais. Essas operaes simblicas criam representaes

    subjetivas dependentes do referencial de cada pessoa. Assim, os sentidos

  • derivados podem ser divergentes, e as interpretaes, mltiplas e subjetivas. Mas

    um cdigo completamente subjetivo deixa de ser um cdigo; porque um cdigo

    tem que ser compartilhado por um grupo de pessoas para existir.

    Em 1964, Frank Stella, para falar de suas pinturas, inventou a frase que

    exemplifica o parmetro da arte minimalista. What you see is what you see,

    comentando o esvaziamento do contedo representativo e afirmando a pintura em

    sua materialidade. A imagem primeiramente no veculo, suporte ou instrumento

    de uma outra coisa. Primeiro, ela ela mesma com seus materiais, cores e

    dimenses. Ela faz sentido por si mesma. Ela se expressa como intensidade,

    estado sensvel e comunica anterior ao sistema da significao. Ela se coloca

    para o espectador, que tem um papel fundamental, porque construir o sentido

    depende da percepo seletiva e da interpretao dessa apreenso sensvel da

    pessoa.

    Se as imagens so simplesmente imagens, a arte esbarra na noo do

    objeto, se as coisas so simplesmente coisas, como o processo da sua

    apreenso? O reconhecimento das coisas no automtico, mas passa pelo

    indivduo e sua percepo da cidade cenogrfica; o corpo como imagem, como

    tela, est a todo momento em relao ao espao urbano, com o entorno, o espao

    exterior composto por mltiplos sistemas significantes que se sobrepem. A

    significao de qualquer situao dentro ou fora do sistema de arte consiste num

    complexo de interaes de material, energia e informao em diferentes graus de

    organizao que estabelecem relaes com o indivduo.

    O espao heterogneo da cidade criou fronteiras que gerenciam as

    relaes entre sociedade e indivduo - espaos restritivos, reas segregadas dos

    ricos, favelas dos pobres, passeios pblicos cujos usos so regulados pelo poder

    aquisitivo. A cidade de todos? Experimentamos os espaos pblicos coletivos

    como estrangeiros; vemos lugares de passagem e no lugares de uma

    significao coletiva ou convidativa. Deixando o espao agir sobre mim e agindo

    sobre ele, posso me aproximar e distanciar-me dele ou inserir-me nele. Os lugares

    existentes comeam a participar na minha cena como cenrio, artifcios capazes

  • de construir velhas relaes e reconstruir novas. Assim, os lugares so

    reinventados para produzir um novo campo vivencial que participa na produo de

    novos sentidos. Cria-se um olhar sobre a cidade cenogrfica, um olhar sobre a

    cidade como imagem, um exerccio que passa a experincia para uma expresso

    verbovisual, uma reinveno mnima a partir de uma situao, uma vivncia em

    um cruzamento de cinco ruas no Aglomerado da Serra (Figura 6).

    Hiptese uma Uma steadycam segue uma rua em movimento suave.

    Movimentos em cmera lenta. No se reconhece o lugar, at que o movimento

    pra e d um zoom em uma casa no morro, mostrando um quintal com um varal

    de roupas onde uma criana pequena brinca com um cachorro do seu tamanho.

    No beco da frente, um menino soltando pipa correndo com um outro cachorro, em

    cima da laje vizinha, uma mulher pendurando roupas olha para um homem

    tropeando no asfalto irregular da rua, desequilibrando e quase caindo.

    Observando os detalhes, de um lugar invisvel, distante. A iluso de ser voyeur

    invisvel se rompe quando uma mulher passa na frente, xingando. Acho que ela

    me viu e falou comigo e lhe pergunto por que ela est chateada, o que ela nega

    em tom agressivo. Resumo meu caminho, mas no consigo encontrar o mesmo

    lugar e o mesmo movimento suave e confortvel. Olhos das janelas, varandas e

    lajes me perseguem e colocam a minha presena em evidncia. Sinto que cometi

    um crime. Sinto-me ameaada e decido retornar pelo mesmo caminho que

    cheguei. Quando me afasto mais, reconheo todos os lugares, relaxo por causa

    da familiaridade, a volta rpida. No, no bem isso.

    Hiptese dois Subo a Serra, um morro; paro numa linha de diviso;

    o incio de uma favela: o Aglomerado da Serra. No conheo ningum, sinto-me

    diferente, fora do lugar. Quando vejo um moo andando torto dou meia volta e

    comeo descer. No, no bem isso.

    Hiptese trs Vejo no final da rua um muro pintado com tinta a leo

    azul claro brilhante. uma igreja. Abrem-se as portas e saem pessoas em roupas

    de domingo. Sigo o fluxo das pessoas, reparo na roupa de uma menina, sapatos

    laqueados e um manto duro com gola grossa de um vermelho intenso. O casaco

  • Figura 6 Cidade cenogrfica, LINKE, 2006.

  • de inverno faz surgir tempos diferentes. Perco as referncias temporais

    completamente quando me encontro no meio de uma interseo de cinco ruas

    com motos atravessando em todas as direes. O casaco da menina parec