arte e tecnologia da imagem
DESCRIPTION
arte e tecnologia da imagemTRANSCRIPT
-
Ines Karin Linke Ferreira
INTER/LOC/AO
A CONCEPO DA OBRA E SUAS DEPENDNCIAS ESPACIAIS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Artes rea de concentrao: Arte e Tecnologia da Imagem Orientador: Prof. Dr. Stphane Huchet
Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG
2008
-
AGRADECIMENTOS Agradeo a Stphane, pela orientao; a Louise, pela colaborao; a Guiomar,
pela generosidade; a Maldita, pelas vivncias; a Leo, pela inspirao; a Eduardo,
pelas correes; a Fabola, pelo olhar crtico; a Zina, pela pacincia e a todos os
amigos, colegas, professores e funcionrios, pelas contribuies diretas e
indiretas.
-
Arte chamada para acompanhar o homem em todos os lugares onde sua vida incansvel acontece e atua: na bancada de trabalho, no escritrio, no trabalho, no descanso e no lazer; nos dias de trabalho e feriados, em casa e na estrada, de forma que a chama da vida no se apague no ser humano.
Pevsner e Gabo
O mundo no um objeto do qual possuo comigo a lei da constituio; ele o meu natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepes explcitas. A verdade no habita apenas no homem interior, ou, antes, no existe homem interior, o homem est no mundo, no mundo que ele se conhece.
Maurice Merleau-Ponty
A forma de vida o processo de criao do espao.
Milton Santos
[...] desde que a arte passa a trabalhar qualquer matria do mundo e nele interferir diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte uma prtica de problematizao, decifrao de signos, produo de sentido, criao de mundos.
Peter Pl Pelbart
-
SUMRIO
1 INTRODUO 11
2 A REATIVAO DOS SENTIDOS 21
3 A DIMENSO SENSVEL 39
4 A DIMENSO FENOMENOLGICA 62
5 A DIMENSO EXPOSITIVA 100
6 CONCLUSO 125
REFERNCIAS 134
APNDICE 138
-
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 - Robert Morris, Column. Nova Iorque, 1960.
Figura 2 - Ines Linke. Seminrio: o arteso do corpo sem rgos. Belo
Horizonte, 2002.
Figura 3 - Ines Linke. Rua Maria Martins Guimares. Belo Horizonte, 2007.
Figura 4 - Dennis Oppenheim. Material interchange. In: Aspen Projects,
2:44min, 1970.
Figura 5 - Dennis Oppenheim. Parallel Stress. Nova Iorque, 1970.
Figura 6 - Ines Linke. Cidade Cenogrfica. Montagem Fotogrfica. Belo
Horizonte, 2006.
Figura 7 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Registro fotogrfico.
2004.
Figura 8 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Registro fotogrfico.
2005.
Figura 9 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Permetro. Belo
Horizonte, 2005.
Figura 10 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabola Tasca. Permetro. Belo
Horizonte, 2005.
Figura 11 - Peter Greenway. The stairs. Geneva, 1994.
Figura 12 - Dennis Oppenheim. Viewing station. 1969.
Figura 13 - Ines Linke e Louise Ganz. Topografia. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 14 - Ines Linke e Louise Ganz. Topografia. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 15 - Ines Linke e Louise Ganz. Banquete. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 16 - Ines Linke e Louise Ganz. Banquete. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 17 - Ines Linke e Louise Ganz. Cabeleireiro. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 18 - Ines Linke e Louise Ganz. Cabeleireiro. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 19 - Ines Linke e Louise Ganz. Brinquedos. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 20 - Ines Linke e Louise Ganz. Praia. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 21 - Ines Linke e Louise Ganz. Exhibio. In: M2, 52:00min, 2006.
-
Figura 22 - Ines Linke e Louise Ganz. Exhibio. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 23 - Robert Smithson. Um passeio pelos monumentos de Passaic. Nova
Jersey, 1967.
Figura 24 - Ines Linke e Louise Ganz. Registro fotogrfico. Nova Lima, 2006.
Figura 25 - Ines Linke e Louise Ganz. Registro fotogrfico. Aglomerado da
Serra, 2006.
Figura 26 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1, Montagem fotogrfica. Belo
Horizonte, 2007.
Figura 27 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1 - Construo. Tecido branco,
100cm. Nova Lima, 2007.
Figura 28 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1 - Construo. Tecido branco,
100cm. Nova Lima, 2007.
Figura 29 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Caixa com textos impressos,
11x9cm. Nova Lima, 2007.
Figura 30 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Montagem fotogrfica. Nova
Lima, 2007.
Figura 31 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2. Montagem fotogrfica, Belo
Horizonte, 2007.
Figura 32 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 2. Tapete
vermelho, camas e pelcia amarela, 400x400cm. Belo Horizonte,
2007.
Figura 33 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 3. Tapete
vermelho e bias verdes, 400x400cm. Belo Horizonte, 2007.
Figura 34 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 1. Tapete
vermelho, mesas, cadeiras, toalhas e louas, 300x400cm. Belo
Horizonte, 2007.
Figura 35 - Percurso 1 - Lona com impresso fotogrfica, 2.200x200cm. Belo
Horizonte, 2007.
Figura 36 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 1. Tapete
vermelho, mesas, bancos, toalha com impresso fotogrfica
-
(300x140cm), 300x400cm. Galeria Arlinda Corra Lima, Belo
Horizonte, 2007.
Figura 37 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construo 3. Almofada de
lona com impresso fotogrfica, 300x400cm. Galeria Arlinda Corra
Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 38 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 Construo 2. Tapete
vermelho, camas, lenis com impresso fotogrfica (280x140cm),
400x400cm. Galeria Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 39 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria
Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 40 - Michel Asher. Vista de instalao. Galeria Claire Copley, Los
Angeles, 1974.
Figura 41 - Michel Asher. Vista de interveno. 73rd Exibio Americana, Art
Institute, Chicago, 1979.
Figura 42 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Ambiente, lona com
impresso fotogrfica (2,200x200cm), 57m. Galeria Arlinda Corra
Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 43 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria
Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 44 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria
Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 45 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotogrfico. Galeria
Arlinda Corra Lima, Belo Horizonte, 2007.
-
RESUMO
Esta dissertao desenvolve uma reflexo sobre a concepo da obra artstica e
suas dependncias espaciais. Procuro refletir sobre as dimenses sensvel,
fenomenolgica e expositiva da obra de arte, a partir da discusso de
determinados trabalhos plsticos e cnicos realizados em Belo Horizonte entre
2002 e 2007. Recorro a conceitos e questes do teatro e das artes plsticas para
analisar a interseco dos dois campos. Repenso a instalao e o site para
fundamentar a experincia como uma troca entre instncias ou um encontro capaz
de criar novas localidades e noes de realidades no cruzamento entre arte e
vida. Os trabalhos so criados em relao e a partir de elementos do cotidiano.
Mas como criar uma noo do real que re-estabelece o prazer das coisas
comuns? A proposta o deslocamento do espao esttico para a experincia
cotidiana e a busca de encontros entre colegas de trabalho, relaes com lugares
do entorno e aes que permitem processos de sociabilidade fora e dentro do
espao institucional da galeria. Com o intuito de articular uma interlocuo entre
as prticas teatrais e visuais desenvolvo procedimentos de conscientizao,
apropriao e deslocamentos de lugares e objetos existentes para pesquisar a
relao de objetos, lugares e pessoas dentro da perspectiva da vivncia esttica e
da ao artstica.
Palavras-chave: artes plsticas e teatro criao espao percepo visual na arte.
-
ABSTRACT
This paper develops a reflection on the conception of the artistic work and its
spatial dependencies and searches to reflect on the sensitive and
phenomenological dimensions and the exhibition of the work of art based on the
discussion of certain plastic and scenic works, which were realized in Belo
Horizonte between 2002 and 2007. The paper considers concepts and issues of
Theater and Visual Arts to examine the intersection between the two fields and
reevaluates the installation and the site to establish the experience as an exchange
or a meeting between instances, which are capable of creating new locations and
concepts of realities that are located between art and life. The works are created in
regards to and based on elements of everyday life. But how does one create a
sense of reality that re-establishes the pleasure of common things? The proposal is
to displace the aesthetic space to daily experiences, promote exchange between
colleagues and create relations with surrounding places and actions that allow
processes of sociability outside and within the institutional space of a gallery.
Aiming at articulating an interlocution between visual and theatrical practices, the
artist develops procedures such as awareness, appropriation and displacements of
existing places and objects to investigate the relationship of objects, places and
people within the fields of esthetic experience and artistic action.
Key words: plastic arts and theater creation space visual perception in the arts.
-
1 INTRODUO Os homens, reduzidos condio de suporte de valor, assistem atnitos ao desmanchamento de seus modos de vida. Passam ento a se organizar segundo padres universais, que os serializam e os individualizam. Esvazia-se o carter processual de suas existncias: pouco a pouco, eles vo se insensibilizando. A experincia deixa de funcionar como referncia para a criao de modos de organizao do cotidiano: interrompem-se os processos de individualizao (ROLNIK, 1986, p.38).
Ao discutir questes que envolvem os processos de subjetivao,
desejos, fluxos de inconsciente e processos de universos psicosociais, Rolnik
(1986) assinala que fazemos parte de um campo social normalizado no qual se
fabricam subjetividades serializadas. Somos produzidos como suporte de valores
numa hierarquia de identidades reconhecidas dentro de um espao opressor das
representaes pre-estabeleciadas. O corpo violado, invadido, colonizado e a vida
expropriada, reduzida a seu mnimo, vida nua, vida reduzida ao estado de
mera atualidade, indiferena, impotncia e banalidade biolgica. De acordo com a
autora, a subjetividade foi reduzida ao corpo, sua aparncia, imagem,
performance, sade, longevidade, conforme modelos preestabelecidos. Criou-se
uma cidade das imagens, uma cidade cenogrfica1, que levou a uma crise de
visibilidade; o excesso de superfcies visveis leva invisibilidade das coisas. Pela
saturao dos olhos, as imagens so desvalorizadas e criou-se certa imunidade e
indiferena nas pessoas. Tendo perdido a capacidade de olhar e perceber,
transferiram-se as vivncias do corpo para um presente fixo e estvel da sua
imagem, ou seja, um mundo no qual o presente ausente.
Todos vivemos quase que cotidianamente em crise; crise da economia, especialmente do desejo, crise dos modos que vamos encontrando para nos ajeitar na vida. [...] Vivemos sempre em defasagem em relao atualidade de nossas experincias (ROLNIK, 1986, p.12).
1 Ultilizo este termo para referir-me cidade que se apresenta como realidade fixa, que diferencio posteriormente da teatralizao dos espaos capaz de desestabelizar a noo do real fixo a partir da encenao de contradies existentes.
-
As relaes de alienao e opresso influenciam todas as atividades,
as relaes entre pessoas e a nossa circulao no campo social. Dessa maneira
perdemos o controle sobre a construo da nossa realidade. Somos produtos de
uma sociedade que se empenha em produzir indivduos normalizados,
articulados, conectados uns aos outros segundo sistemas hierrquicos, sistemas
de valores, sistemas de submisso. Na cidade, experimentamos espaos,
condicionamentos ou confinamentos similares ao ambiente de uma priso.
Em uma visita da Maldita2 penitenciaria feminina Estevo Pinto3,
localizada em Belo Horizonte, observamos a organizao de um organismo
eficiente cujo conjunto de diversos componentes forma um corpo coletivo. A
guarda apresentou esse conjunto como organismo inteligente, auto-suficiente,
autnomo, em que normas e procedimentos fixos regulam os comportamentos do
dia-a-dia. Tudo funcional e prtico. Para tudo existem solues prefiguradas.
Um conhecimento antecipado prev todos os acontecimentos, e o organismo
eficaz reage antecipadamente, antes que qualquer coisa possa acontecer. um
projeto de dissoluo da individualidade, da desmaterializao psicolgica e fsica
dos indivduos; agora o corpo constitui uma parte padronizada e funcional de um
mecanismo maior.
Na priso, a triagem permite um tempo para a normalizao e a
adaptao ao funcionamento. Ela abre o caminho da participao e das escolhas
previamente determinadas. Para superar o tdio, pode se exercer uma atividade,
um trabalho repetitivo, terminar pilhas infinitas de abas de bons para a prxima
campanha eleitoral ou colar as alegres bandeirinhas para as festas juninas,
2 A Maldita -Companhia de Investigao Teatral de Belo Horizonte, Minas Gerais, nasceu em 2002 do encontro de profissionais com trajetrias de experincias diversas. Do desejo comum de abrir caminhos e instrumentos com os quais possam estabelecer a socializao da escrita cnica, a experimentao do processo colaborativo e a investigao de mecanismos pico-dramticos, juntaram-se, inicialmente, Amaury Borges e Lenine Martins (diretores e atores), Lissandra Guimares (atriz), Nina Caetano (dramaturga), Ricardo Garcia (diretor musical) e a artista plstica Ines Linke. O grupo pesquisa, por meio da polifonia de funes, mecanismos para o estabelecimento de uma linguagem pico-dramtica. Dentro dessa perspectiva, est presente a experimentao da atuao, do espao fsico, de objetos, da sonoplastia, da iluminao e da dramaturgia. 3 Visita realizada no dia 3 de maio de 2006.
-
diariamente, por horas a fio em uma monotonia triste. O direito de trabalhar
adquirido pela obrigao de estudar. Submetendo-se aos testes necessrios e
agendando com antecedncia, pode-se ter uma vida sexual nos finais de semana
ou nas horas vagas que no so destinadas para o repouso obrigatrio. Tudo e
todos funcionam de acordo com o relgio. A distribuio de funes e
responsabilidades individuais faz o corpo coletivo funcionar impecavelmente.
Criou-se um espao que prope estmulos de uma higiene fsica e mental. Um
projeto formal, esttico e a visualidade do corpo roubado4 incorporaram-se
funcionalidade integrada dos espaos especficos de cada atividade.
A mortificao do cotidiano e a modelizao do comportamento dentro
de uma ordem social rgida resultam em uma evaso do real, uma perda da
integridade do corpo e da propriocepo - da percepo espacial do eu no tempo
presente - tambm fora da priso. A reduo da capacidade perceptiva na vida
urbana gera uma viso limitada dentro dos moldes e das maneiras existentes de
ver o mundo. As pessoas perderam a capacidade de reconhecer sua cinesfera, o
espao individual do corpo que se movimenta e se vem como imagens
construdas a partir de categorias predefinidas pelo olhar do outro.
Como resposta a essa condio, Rolnik (1986) prope a recusa dos
modos estabelecidos para construir modos de sensibilidade, modos de relao
com o outro, modos de produo que geram processos de singularizao. A
criao de subjetividades singulares, conforme a autora, a base necessria
para produzir relaes efetivas e sair das esferas fechadas sobre si mesmas.
Para orientar e organizar no mundo, Rolnik (1986) enfatiza a importncia dos
processos de subjetivao. O tempo presente se constri a partir da interao e
de formas dialgicas entre as pessoas e proximidades com o entorno. A
existncia sensorial a base da propriocepo a qual necessria para se viver
o presente corporal e imageticamente.
4 Antonin Artaud usa a idia do corpo roubado para expressar a impotncia do corpo oprimido de possuir a vida. Este conceito forma a base de sua busca do corpo sem rgos para o Teatro da Crueldade.
-
As situaes e trabalhos reunidos nesta dissertao partem da idia de
criar agenciamentos individuais e coletivos de processos de subjetivao como
uma tentativa de manifestar a impotncia e de re-apropriar-se do [...] corpo
roubado (ARTAUD, 1984, p.17). Vivencias, situaes e os desdobramentos
dessas aes estabelecem novas relaes entre objetos, corpos e espaos.
Associando essas experincias a diferentes dimenses procuro ver o presente,
estar no presente e criar o presente como estratgia de viver ou de sobreviver e
refletir sobre a relao entre arte-vida.
Neste texto, desenvolvo uma conscientizao, a partir da realizao de
trabalhos recentes, sobre a conceituao da obra de arte e suas dependncias
espaciais. Reflito sobre a concepo da obra de arte em relao ao espao como
estmulo inicial, suporte e meio do trabalho e a sua recepo. Inter/loc/ao
investiga as funes espaciais, por meio da anlise desses trabalhos em
associao com obras de diversos artistas e categorias criticas e tericas do
teatro e das artes plsticas, enfocando, sobretudo, a percepo esttica de
elementos do cotidiano, a apropriao e a reinveno de diferentes espaos.
Repenso, a partir dos trabalhos individuais e coletivos, as prticas artsticas
existentes, como a instalao e a obra lugar-especfica, para fundamentar a
experincia esttica como uma troca entre instncias ou um encontro que
interdependem de sistemas. Nesta dissertao investigo procedimentos estticos
a partir de localidades dentro da perspectiva da ocupao, instalao e
interveno em um lugar que chamo de cidade cenogrfica5.
Com a estruturao do texto reflito o processo e as mudanas de
pensamento ocorridas no contexto do meu trabalho cenogrfico e artstico ao
longo dos ltimos anos. De um ttulo provisrio, Simbiose espacial, que visou
investigar a contribuio dos espaos na produo de sentido a partir de
deslocamentos, a dissertao passou a tratar de questes de cenobiose, da vida
em conjunto; uma investigao das interaes entre lugares, aes e dilogos: 5 A idia da cidade cenogrfica aponta que a representacionalidade uma propriedade fundamental de todos os lugares em nosso entorno e se contrape definio convencional do espao urbano externo como um espao mais real que uma construo ou um interior.
-
Inter/loc/ao: a concepo da obra e suas dependncias espaiais. A
experincia dos trabalhos realizados na grande maioria ao longo do
desenvolvimento do texto escrito, visava inicialmente ilustrar uma reflexo terica,
mas passava a ganhar importncia no decorrer do processo e construiu
referncias prticas prprias que correspondem ao que Guattari e Rolnik (1986)
chamam de revoluo molecular. Esta revoluo ocorreu no plano individual e
continua como desejo que visa a re-criao de modos de organizao do
cotidiano, a inveno de novas formas pessoais e interpessoais e o
desenvolvimento de agenciamentos em que as pessoas criam a vida para si
prprio e podem retomar a prpria ao cotidiana em coletivo.
Nos diferentes espaos, o evento cnico, a instalao, a arte ambiental
e a teatralizao de procedimentos artsticos permitem, mas tambm regulam, a
interao de pessoas nos espaos. Cria-se um encontro que transforma o pblico
em participante. Mas quais so os critrios dessa participao e como criada
uma colaborao efetiva? Quais so as diferenas de trabalhar em espaos
institucionais da arte e em espaos outros?
Relato o processo de criao de uma exposio que dialoga com as
situaes criadas em uma instncia anterior. Os trabalhos in situ so analisados
durante a escolha de um lugar, a sua percepo, a interveno e o
deslocamento, visando no a documentao de um evento, mas a anlise de um
procedimento processual que, num quarto momento, torna-se pblico no ato de
ser exposto. Exibe-se um trabalho, um modo de fazer, um procedimento em uma
galeria. Quais questes so pertinentes para deslocar uma situao e suas
diversas instncias de criao, o que interessa na concepo e apresentao de
um trabalho em uma galeria6? As discusses nesses seis captulos, que formam
o corpo da dissertao, so conduzidas por diferentes processos de criao e
permeadas pelos dilogos com Louise Ganz7 durante a elaborao de dois
projetos especficos chamados de Percurso 1 e Percurso 2. Na concluso, 6 Percursos, Galeria Arlindo Corra Lima, Palcio das Artes, Belo Horizonte. Exposio de dois trabalhos desenvolvidos por Ines Linke e Louise Ganz em 2006 e 2007. 7 Louise Marie Cardoso Ganz, (1964- , Belo Horizonte) arquiteta e artista plstica.
-
reapresento os questionamentos que foram feitos nos captulos anteriores. As
perguntas so reavaliadas e respondidas a partir das experincias dos trabalhos
realizados e citados anteriormente.
Problematizo ao longo da dissertao o relacionamento do artista com
o seu entorno e com os espaos encontrados. Na associao entre o campo
teatral, artstico e urbano objetivo ampliar a experincia e as potencialidades no
espao urbano. O desafio dos trabalhos se coloca em projetar as proposies
com os espaos e as pessoas. Isso predispe prpria percepo, ao ato
vivencial e ao estabelecimento de relaes e interaes em que o espao e o
evento se retro-alimentam. Viso ocupar um vazio relacional, o corpo como interior
e a cidade como interior, para iniciar um processo que reverte a alienao e no
qual a experincia estabelece acontecimentos, trocas entre instncias e
encontros capazes de criar novas cenas e noes de realidades.
Pretendo contestar a concluso sobre o cubo branco da galeria e a
caixa preta do teatro como contra-modelos da arte pblica e da interveno e
defender uma postura em que todos os espaos so adequados para trabalhar a
cidade e criar uma interseo entre arte e vida para um pblico. As artes plsticas
e cnicas dispem de campos de investigao anlogos e procedimentos
parecidos, na medida em que ambas perseguem o objetivo de criar a
possibilidade de uma experincia fsica e/ou mental para o espectador/pblico,
que, ao experimentar o evento, ao entrar no trabalho, cria seus prprios
processos de subjetivao. Nos dois casos, o encontro com o espectador/pblico
gera um todo indivisvel, uma soma da percepo dos objetos, da experincia
sensorial e da interao com o lugar.
Para refletir sobre o processo de criao dos trabalhos e para
sistematizar os procedimentos de elaborao das idias penso os trabalhos
plsticos e cenogrficos como uma seqncia sucessiva de trs instncias:
percepo, interveno e deslocamento. Trs operaes que formam um
conjunto que se completa e nas quais se considera o espao como ponto de
partida; lugares a serem observados, contemplados, escolhidos, ocupados,
-
reconstrudos e vividos. As crticas tericas e prticas que reverberaram no meu
trabalho e que perpassam esta dissertao falam de percepo, de momentos
estticos, de participao e de intervenes em lugares e sistemas que
extrapolam as prticas do sistema tradicional das artes plsticas.
O crtico e terico, Jack Burnham lana em vrios textos8 uma hiptese
sobre arte no tempo real. Ele aponta a mudana de uma cultura de objetos para
uma cultura na qual prticas artsticas invocam ou operam como sistemas. Por
meio da noo de ambiente e da compreenso das prticas artsticas como
estticas de sistemas, J. Burnham visa um papel importante para o artista na
cultura contempornea. A aproximao das prticas artsticas via sistemas amplia
sua atuao para um campo de conceitos que vai alm dos limites dos campos e
disciplinas artsticas existentes. Para J. Burnham, qualquer situao (contendo
pessoas, idias, mensagens etc.) dentro ou fora do sistema de arte pode ser
projetada ou analisada como um complexo de interaes consistindo de material,
energia e informao em diferentes graus de organizao. Para o autor, o artista
se confronta com um sistema considerando metas, limites, estrutura e consegue
alterar a consistncia desse sistema em tempo e espao9. Assim, os artistas
prefiguram a transformao necessria do homo faber para o homo arbiter
formae, o fazedor de decises estticas, o propositor que determinaria como
invenes da civilizao industrial seriam usadas e como a sociedade se
organizaria.
A partir do conceito da heterotopia de Michel Foucault, busco
estabelecer a teatralidade10 dos outros lugares como possibilidades de
resistncia ao isolamento, ao esvaziamento e espetacularizao da vida
contempornea. Em seu ensaio, De outros espaos (FOUCAULT, 1998), fala da 8 Systems esthetics, Real time systems e Beyond sculpture: the effects of science and technology on the sculpture of this century. 9 Em Esttica de sistemas Burnham visa compreender e delinear as prticas de artistas como Marcel Duchamp, Laszlo Moholy Nagy, o grupo GRAV, Robert Morris, Robert Smithson, Carl Andr, Dan Flavin e Hans Haacke como pessoas preocupadas com os meios de pesquisa e produo. 10 A teatralidade, a partir de um modelo polifnico que quebra as unidades aristotlicas, valoriza o carter transitrio do instante presente e ope-se idia de uma realidade fixa.
-
experincia com o mundo como uma rede de intersees no de pontos
homogneos, mas de sites especializados e reservados para a projeo do
sujeito. O site, segundo ele, um lugar vivo, totalmente imerso numa rede de
conexes em constante movimento e a partir dessa rede, dessa srie de
relaes construdas que se delineiam os stios. O autor desenvolve diferentes
formas de relaes entre sites. A primeira ele denomina stios utpicos, irreais,
aperfeioados e idealizados, lugares que so livres de impurezas e imunes ao
mundo exterior. Para ele, o cubo branco nas artes plsticas e a caixa preta no
teatro so representativos desses espaos homogneos que supostamente
excluem qualquer interferncia externa. E, segunda forma, ele se refere como
stios heterotpicos nos quais existe a justaposio ou a combinao de vrios
lugares em um nico espao. Tais sobreposies simultneas criam espaos que
no dm limites geogrficos mesmo mostrando posies exatas. Os espaos so
acumulativos, sobrepostos, stios contraditrios onde uma srie de lugares se
renem ou se sucedem como no caso das heterotopias transitrias nas quais os
elementos se apropriam temporariamente de um site11. Penso que os elementos
da cidade cenogrfica no so fixos, mas coexistem e se complementam num
modelo polifnico, heterotpico.
Os trabalhos teatrais e artsticos deste texto lidam como os diferentes
sites, ruas, lotes, praas, edificaes e galerias, no como stios utpicos neutros
e imunes, mas com stios heterotpicos. As aes propem outros lugares,
transformaes que lidam com o ser humano em constante processo, e
possibilitam maneiras de pensar como o indivduo que age sobre o ambiente
conscientemente pode entrar em processo de desalienao. Os trabalhos que
compem a dissertao Inter/loc/ao empregam conscientemente mtodos e
procedimentos que partem da observao da infra-estrutura, da arquitetura e das
caractersticas e cdigos de espaos para a criao de novas situaes e
11 Utilizo esse termo em detrimento de local. O site refere-se ao local existente escolhido como lugar da ao ou meio e suporte de um trabalho.
-
imagens. Associo propositalmente o conceito de arte idia da utopia12, um lugar
fictcio e imaginado que suscita o espectador. Quero pensar a relao entre
objetos, pessoas e lugares para criar possibilidades do espao de encontro entre
eu e o mundo exterior. Procuro privilegiar os acontecimentos e provocar acasos,
tanto no processo de criao como no encontro com o espectador/colaborador.
Os trabalhos, que formam a base desta dissertao, so continuao
da minha pesquisa na rea de cenografia, desenvolvida desde 2002 dentro da
Maldita, companhia de investigao teatral, que resultou na ocupao de diversos
espaos abandonados em Minas Gerais e do meu envolvimento com o projeto
Lotes Vagos, em 2005, com um trabalho coletivo intitulado Permetro13 e seus
desdobramentos, o documentrio M2-Metros Quadrados, em 2006, e o projeto
Percursos, em 2007, ambos desenvolvidos em conjunto com Louise Ganz14. Para
a realizao do documentrio M2-Metros Quadrados15, que tem como objeto
principal e ponto de partida o projeto Lotes Vagos, foram desenvolvidas seis
aes coletivamente. As situaes surgiram a partir de uma reflexo sobre
comportamentos, estratgias artsticas e pensamentos polticos que visam
problematizar a relao entre o homem e a cidade.
Os dilogos que proponho nos trabalhos prticos cnicos e plsticos,
dos quais alguns integram este texto, formam parte da tentativa de achar um
processo de interlocao, uma maneira de trabalho que corresponde aos meus
objetivos. O prprio dilogo nos processos criativos da Maldita e nos trabalhos
com Louise, que a base da colaborao, um mecanismo de desalienao. Ele
promove encontros e trocas que implicam mudanas. Essa capacidade da
conversa me faz acreditar que ela, como forma, pertinente aos trabalhos
12 Nome de um pas imaginrio criado em 1480 pelo escritor ingls Thomas More. 13 Trabalho realizado por Fabola Tasca, Ines Linke e Rodrigo Borges. 14 Ines Linke e Louise Ganz comearam, em janeiro de 2006, a realizar passeios em Belo Horizonte e em seu entorno (Lebenswelt) e criar intervenes que interferem na espacialidade dos lugares. 15 O documentrio M2-Metros Quadrados (52) discute as noes de pblico e privado em diversos campos, enfocando, sobretudo, o potencial de lotes vagos e reas residuais para serem usados coletivamente, a partir das diretrizes do projeto Lotes Vagos.
-
desenvolvidos, nos quais tento abolir hierarquias e criar situaes capazes de
sustentar o esprito coletivo do encontro.
Em a reativao dos sentidos (captulo 2), a segunda das seis partes
da dissertao, aps esta breve introduo, procuro situar historicamente o
surgimento dos parmetros que influenciam minhas produes artsticas por meio
da concepo e da recepo esttica de obras minimalistas, instalaes e
intervenes. Viso significar a sada do quadro para introduzir a terceira parte, a
dimenso sensvel (captulo 3) que desenvolve a relao entre indivduo e nosso
espao vivencial a partir da percepo e do olhar. A seguir, na dimenso
fenomenolgica (captulo 4), a percepo do espao e a construo de um ponto
de vista individual participam na construo de um conceito de realidade. Esta
parte prope ampliar as discusses iniciais percepo, apreciao esttica do
mundo exterior, a um olhar sobre o comum, colocando em questo a oposio
entre arte e as coisas reais. Relato exerccios de reconhecimento e
conscientizao, procurando tornar visvel a irrealidade do real. A dimenso
expositiva (captulo 5) trata da relao espacial com o local da representao, de
uma dimenso discursiva que o espao institucional de uma galeria ou de um
museu agrega ao trabalho e pensa a obra de arte ou a proposio artstica dentro
da perspectiva do deslocamento para um outro lugar. Como pensar o
deslocamento de uma vivncia, uma ao in situ ou de uma situao? O que se
deve expor?
As concluses se encontram no captulo 6. As referncias e um
apndice completam a minha dissertao.
-
2 A REATIVAO DOS SENTIDOS
Espao e tempo so as nicas formas onde a vida construda, as nicas formas, ento, onde a arte deveria ser erguida (PEVSNER e GABO, apud OLIVEIRA, 1994, p.17-18).
Segundo a tradio do teatro no-literrio de Artaud (1984), o teatral
tudo o que no est contido nos dilogos. Com a funo de ir alm dos artifcios
da linguagem verbal e dos cdigos estabelecidos por convenes, os signos
mortos, as aes humanas e a ao dos objetos criam uma experincia visual
imediata, uma expresso no espao. Ao discutir a reativao dos sentidos, surge
a idia de que o teatro no deve iludir o pblico mostrando o que no , mas
afirmar o seu carter de acontecimento. O lugar no mais representado, usa-se
a estrutura do palco, a realidade cnica, com a inteno de provocar os sentidos
e a imaginao.
Artaud (1984), em seu primeiro manifesto do teatro da Crueldade,
declara que no haver cenrio; ele exige a expresso no espao por meio dos
atores, a ao fsica da luz e os objetos de cena. Para achar uma esttica que
atinge a sensibilidade de todos, ele busca referncias nos rituais e no teatro
oriental, sem o carter do psicolgico, simblico e ilusionstico do teatro ocidental.
As encenaes de Artaud existem dentro de um espao tridimensional, no qual
todos os elementos apresentam uma plasticidade. Ele no se ope a essa
plasticidade, mas ao cenrio que representa um lugar especfico e funciona
dentro da lgica do espao teatral ilusionstico italiano.
Para Artaud (1984) o vazio sempre pleno e habitado por foras que
encontram na potncia seus significados, foras capazes de desconstruir
universos engessados. Ele quer acordar uma crueldade viva e libertadora. Para
ele, no teatro onde se refaz a vida, onde se foge do suicdio pela sociedade,
onde se reconstri o corpo roubado. O corpo sem rgos, o corpo libertado de
seus automatismos que permite a pulsao vibrtil, a emergncia da vida. Ele
busca ir alm de um sujeito historicamente institudo para viver uma lgica dos
-
fluxos e construir uma cartografia dos desejos e acredita que o encontro de sua
energia no corpo sem rgos se produz o real. Construir um corpo sem rgos
para Artaud (1984) uma maneira de escapar da ilusria identidade do sujeito.
Assim, ele afirma que, se as pessoas no se contentam em ser rgos
registradores, elas podem criar. A vida do corpo sustentada pelo teatro, no qual
os rgos se transformam em foras que ainda no existem. O sentido da vida se
renova por meio do teatro.
Acreditando nessa possibilidade da devoluo do corpo roubado,
Artaud (1984) compara a diferenciao orgnica do corpo corrompido
organizao hierrquica do teatro, cujas articulaes, relaes de funes
internas, de membros remetem ao desmembramento do corpo. Para ele, a
manifestao das foras possvel s aps a destruio dos rgos teatrais. Ele
busca uma forma de teatro original, cujo signo ainda no foi separado da fora e
que ainda no um signo, mas no mais uma coisa. Ele busca a reconstituio
da representao original, a zona entre o real e a representao. Essa zona junto
ao dilogo da encenao com a arquitetura cnica existente, e os cdigos do
sistema teatral tradicional so preocupaes fundamentais para o teatro
experimental e a performance, que percebem o evento como um instante em que
o corpo colide com o mundo exterior: um acontecimento.
As relaes entre o homem e o lugar em outros ambientes tambm so
permeadas pelos acontecimentos. As vivencias, experincias e acasos
acontecem no presente, o aqui e agora, que interligado idia do
acontecimento, de algo que sucede, que ocorre. Um fato, coisa ou pessoa que
causa sensao. As tentativas de definir esses instantes passam pela metfora
da vibrao, da ondulao, da corda sonora ou luminosa e do ponto de encontro
de intensidades (DELEUZE, 2000). O acontecimento apresentado como algo
em si e necessita do lugar e do sujeito para existir. Nessa perspectiva, o presente
relacionado posio do sujeitoator, ao ponto de vista, ao lugar de onde
estou. Modos de ver interdependem de quem olha e de onde se olha. O lugar do
-
acontecimento permite formas de relacionamento e funciona como mediador
para o indivduo, favorecendo as relaes do homem consigo e com o mundo.
O pensamento desses acontecimentos se d na relao entre
apresentao e representao. Penso apresentao no sentido dramtico, no
qual os componentes convergem para criar uma sensao do hic et nunc, um
tempo e lugar dramtico, presente. Os espaos apresentam-se como verdades
fixas que regulam e condicionam os corpos em todas as esferas da vida. Mas
fora do teatro, verdades fixas, a realidade como algo determinado, so uma
contradio porque no existe um presente estvel. Cria-se uma iluso de algo
permanente, uma iluso de realidade estvel. Como a unidade de lugar no Teatro
Aristotlico, esses espaos no so questionados, so vistos como
preestabelecidos e fixos.
Na vida cotidiana tomamos a unidade de lugar como fato que contribui
para a percepo do entorno como realidade fixa. Nosso referencial de realidade
formado a partir de apartamentos, casas, prdios, carros, ruas, carros, escolas
e outros espaos do campo social. Tais espaos cotidianos ou fatias de vida
preestabelecem suas funes, agem sobre ns e, assim, automatizam as aes e
relaes das pessoas que so passivamente condicionados.
Entendo a representao no sentido brechtiano no qual os elementos
picos no criam um mundo permanente e coerente, mas proporcionam um olhar
sobre o mundo. Seus componentes existem simultaneamente, se distanciam um
do outro e no oferecem um modelo sinttico, mas um modelo polifnico, que
confronta as convenes, importa narrativas, imagens e questiona as
familiaridades. Estabelecem-se outros lugares que coexistem e entram em
dilogo com a realidade estvel. Assim, pode-se acreditar que as coisas no so
fixas ou eternas, mas suscetveis a mudanas e transformaes.
O artista, como ser no mundo, um ser social e poltico. Em vez de
afirmar um lugar fixo, um lugar comum, ele, para trabalhar na constante
reconstruo do seu entorno, se mantm no limite onde existe o efeito de borda.
A heterogeneidade das prticas espacializadas, nas quais existe uma relao
-
entre a proposio artstica, seu lugar de acontecimento e as pessoas presentes,
resultou numa proliferao de termos que procuram especificar a relao
especfica dos elementos constitutivos das prticas artsticas, sobretudo, com o
espao. Nas artes cnicas, espao alternativo virou uma categoria prpria e, no
campo das artes plsticas, instalao hoje um termo genrico que associado
a outros termos como ocupao, stio-especfico, interveno, ambiente, arte
urbana, land-art, ao, evento, situao. O denominador comum dessas palavras
o conceito de que as prticas mudaram da concepo de um objeto autnomo
construdo e exibido para uma abordagem complexa de produo e percepo de
um trabalho em um determinado espao tridimensional e social. O lugar da obra,
suas caractersticas e seu contexto vieram formar parte do contedo do trabalho,
um participante ativo. O significado no est dado pelo contedo interior da obra
ou do objeto, mas no encontro entre objetos e pessoas em uma situao que
predeterminada pelo entorno e pela predisposio cultural do espectador. O
conjunto cria um novo espao social.
Rosalind Krauss relata as transformaes da obra de arte para a
experincia da arte num contexto maior. No seu artigo A escultura no campo
ampliado ela explicita as mudanas de paradigmas e das categorias tradicionais
da arte e define trs novas categorias (o local de construo, locais demarcados
e estruturas axiomticas), que, ao situar a arte entre sistemas outros, apontam
para uma expanso das formas existentes. Ela cita o local de construo, uma
forma que se situa entre paisagem e arquitetura; locais demarcados, formas que
definem territrios e trajetos a partir da manipulao fsica dos locais; e estruturas
axiomticas, formas nas quais existe um tipo de interveno no espao real da
arquitetura (KRAUSS, 1984). Por meio dessas formas no campo ampliado, a
autora redefine procedimentos artsticos e cria uma lgica da relao espacial
que pode servir como modelo para as propostas classificadas como ocupao,
site-specific, interveno, ambiente, arte urbana etc.
A ocupao um local de construo, no qual uma coisa se instala, se
abriga. O stio-especfico implica uma especificidade do lugar ocupado por
-
designar a interpendncia da circunstncia espacial do trabalho. O espao ao
redor, fsico ou social, significante e forma parte constitutiva da experincia do
espectador de maneira que o trabalho s acontece em relao situao
espacial. O ambiente se insere num espao existente ou reconstruido criando
uma relao envolvente agregando qualidades perceptveis alm da viso. O
pblico se encontra dentro da obra e vivencia o espao. O conjunto de elementos
se instala em uma proposta na qual uma interao corprea, fsica e ttil
agregada experincia visual. Os procedimentos da land-art substituem a viso
da cidade, dos espaos internos e externos urbanos pelo ideal do deserto, da
paisagem homognea onde o cu colide com a terra pela linha do horizonte e
criam locais demarcados. A idia da situao16, que insere as prticas artsticas
num contexto da vida cotidiana, promove vivncias de situaes existentes ou
criadas. A interveno se apropria de um lugar existente e, via interferncia,
expande ou revela seu significado que corresponde ao que Krauss (1984) chama
de estruturas axiomticas. Ambientes, instalaes e arte urbana, que acontecem
dentro do espao urbano, no so sinnimos de arte pblica. Um trabalho se
torna pblico quando ele acessvel a todos17, no por sua relao espacial, mas
por sua insero social. Seu carter pblico depende de sua abrangncia de
espectadores e, no, de sua localizao em um espao aberto ou fechado,
mesmo porque, hoje em dia, existem vrios espaos internos pblicos e externos
privados e outros falsamente pblicos que so restritos a diferentes fraes
sociais, alguns por costumes e outros por mecanismos de controle.
Nas prticas de instalao, comum que as diferentes formas de
espacializao se sobreponham e se agreguem. Elas no somente dependem da
natureza do espao original ou da proposta do artista, mas tambm da maneira
como o pblico interage com a obra. A situao espacial promove uma
16 Em 1957, a Internacional Letrista, o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista e a Associao Psicogeogrfica de Londres se juntaram para formar a internacional situacionista. 17 Projeto utpico, considerando que um nico lugar nunca praticado por todos. Mas podemos considerar que uma mesma obra em espaos diversos poderia atualizar-se no campo social em um sentido amplo.
-
visualidade e um sentido do corpo que corresponde ao que Grossmann (1996)
chama de momento arte, o acontecimento que resulta da interao entre
presena, proposta e participao.
A percepo dos objetos e do espao como elementos presentes e
vivos a base da encenao da pea Casa das Misericrdias18 da Maldita,
companhia de investigao teatral. Durante os ensaios, foram criadas imagens
concretas e imaginrias em transio por meio de estmulos reais. Dinmicas
espaciais foram transferidos para o corpo e geraram aes. O espao tornou-se
arquitetura viva, espao performtico, capaz de transformar a si mesmo e aos
objetos e pessoas nele inseridas. A apropriao individual aconteceu a partir da
construo de novas relaes, conexes e articulaes que agregaram outros
sentidos e valores aos elementos.
O confronto dessas experincias individuais o procedimento de
criao e da colaborao entre as pessoas; a produo de significado depende
de uma reinveno a partir da interao dos espaos individuais existentes. A
cenografia nesse mbito da ao no se esgota na representao ou na imitao
do mundo visvel, ao contrrio, realiza-se em um processo dialtico entre a
experincia real e o imaginrio. So criadas memrias novas que se sobrepem
aos usos cotidianos dos lugares, situaes que criam cruzamentos de referncias
e, assim, possibilitam uma releitura dos espaos.
Para a estria em Belo Horizonte, em vez de escolher uma
determinada configurao num lugar supostamente neutro, optou-se por trabalhar
com uma configurao arquitetnica preestabelecida, um lugar cotidiano e
pblico, um bar abandonado no bairro Horto. Focalizamos a suspenso da
concretude do espao e dos objetos familiares relacionados a ele, atribuindo 18 O espetculo Casa das Misericrdias, gerado em processo colaborativo, fruto da primeira edio (2003) do projeto Cena 3 x 4, concebido pela Maldita e realizado em parceria com o Galpo Cine Horto. O projeto visava o dilogo prtico entre as experincias colaborativas de grupos como pesquisa para criao de uma dramaturgia prpria. A partir de temticas como loucura e instituio, indivduo e sociedade, e tendo como referncia as obras da escritora Maura Lopes Canado, Artur Bispo do Rosrio e Antonin Artaud, o grupo experimentou diversas possibilidades espaciais e chegou ao conceito de arquitetura do abandono, ocupando, como primeiro espao de encenao, a Gruta, uma velha casa-bar em Belo Horizonte.
-
valores subjetivos e coletivos. Para cada cena, o espao redefinido e
reorganizado e os significados estabelecidos dialogam com os elementos do
ambiente. Tudo em volta apropriado, tirado do seu contexto do bar/casa e
inserido no lugar fictcio que so os espaos das subjetividades dos personagens.
Desenvolve-se uma produo de objetos e aes anlogas ao real nas quais os
smbolos criados existem com referncia realidade. As experincias revelam as
potencialidades dos elementos para criticar os hbitos automticos, as crenas e
valores, a organizao montona dos dias e a concepo de uma vida normal
que rege as relaes dirias. A representao nada mais que a projeo no mundo sensvel dos estados e das imagens que dele constituem suas molas escondidas. Uma pea de teatro deve, portanto, ser o lugar onde o mundo visvel e o mundo invisvel se tocam e se chocam, em outras palavras, a colocao em evidncia, a manifestao do contedo oculto, latente, que encobre os germes do drama (DORT, 1977, p.18)
Cada novo espao oferece mltiplas possibilidades e potencializa novas
relaes. A decifrao de signos, sentidos e a criao de mundos dependem
desses espaos existentes. A especificidade espacial da pea Casa das
Misericrdias criou um vnculo recproco entre os elementos cnicos e os lugares
como estruturas performticas. Mais do que criar uma instalao autnoma, cada
montagem em um novo local se apropria e habita o lugar. O novo local ocupado
e experimentado por meio de prticas que consideram a presena dos materiais
do espao escolhido e recriam a relao entre os elementos inseridos e
encontrados. O pblico imerso no espao da atuao introduzido num ambiente
que parece real e cujo sentido representacional problematizado. Os potenciais
de variao, a participao e a transformao ao decorrer da pea interferem na
percepo convencional do espao. No deslocamento da pea para outros
lugares, procura-se estabelecer uma relao stio especfico que dialoga com a
proposta ambiental na qual o espectador inserido. A apropriao de elementos
existentes em cada espao e a sua disposio interferem na relao entre as
-
coisas e na percepo do espectador. Os elementos se agregam e so indivisveis
para uma produo de sentido. O contedo representativo de uma priso pblica
abandonada e de um asilo vazio, suas divises, marcas, estados de conservao,
objetos abandonados e elementos de infra-estrutura so experimentados em suas
potencialidades em cada recriao para suscitar um envolvimento que excede
uma simples ocupao das arquiteturas pblicas abandonadas. A pea procura,
na tradio dos trabalhos denominados minimalistas, criar uma situao, na qual
os atores e espectadores se instalam num espao que tem memria passada, e
estabelecer um lugar performtico com novas referncias que questionam as
certezas e deslocam as verdades. No caso da encenao, como nos trabalhos
minimalistas, reloca-se a experincia do trabalho para a experincia do corpo
inserido em um espao teatralizado.
Nas artes plsticas, um exemplo dessa transferncia de paradigmas do
objeto contemplativo para o encontro a obra de Robert Morris na qual a
percepo se d no tempo real e a obra se
constitui na experincia da dimenso corporal.
Robert Morris cria uma forma primria a partir
de seu corpo. Ele muda a nfase do objeto
para a nfase da viso e cria um convite ao
do espectador que implica movimento. Seus
objetos surgem do seu envolvimento com a
performance19 e so articulados com e como
corpos no espao. Column (Figura 1), o
morfema ou o objeto primrio inicial de Robert
Morris, foi destinado a ser um guarda corpo, uma caixa contendo um corpo que,
no decorrer da apresentao com durao de sete minutos, cai da posio
vertical na horizontal. A durao dividida exatamente ao meio pela queda
abrupta. Por meio do elemento nico, a abstrao da figura humana e o
19 Ligado ao Judson Dance Theater, Nova Iorque, onde Robert Morris trabalhou com Trisha Brown, Lucinda Childs, Simone Forte e Yvonne Rainer.
Figura 1 - Column, MORRIS, 1960.
-
movimento nico, numa dimenso temporal, Morris emprega o trabalho
minimalista como pretexto para o encontro corpreo. A coluna de compensado
liso com suas superfcies retangulares pintadas de cinza para ele a blank form,
a forma vazia, a unidade bsica para aplicar seu conceito de formar.
Em outro trabalho posterior, o artista junta dois blocos, duas colunas,
para formar uma viga em L. Pela disposio de trs unidades modulares em
diferentes posies no mesmo ambiente, o espectador convocado a investigar
seu campo de viso. As contingncias da montagem de L Beams influenciam a
fenomenologia da viso. A percepo resultado de um processo que envolve
uma ao e a execuo de uma tarefa. O espectador est consciente de que se
trata de elementos idnticos repetidos, mas, na comparao da imagem mental,
do entendimento da forma geomtrica com a forma concreta em vrias posies,
percebe, por meio das condies de observao, que eles so diferentes. O
espectador atento compreende a Gestalt de cada L pela sucesso de posies
no espao. Amplia-se o espao tico para o espao fsico, concreto. A partir
dessa entrada no espao real, o objeto se abre a vrios pontos de vista. O
material visual primrio elimina a imitao da realidade e critica o idealismo, a
psicologia e a pretensa autonomia da obra de arte modernista. L Beams, como
tambm outras obras minimalistas, substituem a aluso ao espao dentro do
quadro pela conscincia de que as superfcies e volumes pertencem ao mesmo
espao tridimensional que vivido pelo artista e compartilhado pelo espectador.
Robert Morris investiga as relaes entre os objetos, o espao e o
espectador. As relaes internas da obra so ampliadas em funo do espao,
da luz e da viso individual. O artista afirma que a obra de arte no um dom
fixo, mas objeto de uma viso situada. Em Permutation Works, ele radicaliza no
ato expositivo pelas alteraes dirias de peas seccionadas de fibra de vidro,
morfemas que assumem diferentes configuraes diariamente. As
transformaes das posies transformam a viso do espao existente. A
conscincia da permutao diria e a memria das permutaes anteriores
formam parte da observao. R. Morris trabalha com a galeria no como no-
-
lugar para hospedar a memria do site em forma de objeto indicando por meio de
uma abstrao material para fora da galeria, mas ativa o lugar e estabelece a
galeria com um lugar com memria. Os mdulos, com suas configuraes
variveis, podem assumir infinitos posicionamentos e levam o artista idia de
reposicionamento, de padres de constncia e variabilidade e da anti-form
(MORRIS, 1968), na qual ele contrape a imposio geomtrica dos seus
trabalhos anteriores com a organizao acidental de posies produzidas por
acaso que deixam a construo explcita e exercem um efeito sobre o espao.
Os aspectos complexos da relao entre artista, obra de arte, espao e
espectador passam por constantes modificaes. A tradio da ruptura e as
revolues plsticas associadas ao modernismo exibem procedimentos e
manifestaes artsticas diversas que marcam as mudanas do campo plstico
para a arquitetura. Essa reorientao do campo pictrico para o campo espacial
resulta das investigaes no campo da escultura e da espacializao da forma
bidimensional da pintura no sculo XX. Os conceitos plsticos construtivistas de
Pevsner e Gabo (2000) se orientaram na cultura dos materiais e no espao real.
A presena fsica dos materiais reais no espao real reflete os ideais da
sociedade moderna fundada na crena do progresso industrial. A partir do incio
do sculo XX, a escultura e a pintura procuraram expandir seus campos para o
espao social. Paralelamente a esse desenvolvimento nas artes plsticas, a
cenografia experimenta ao mesmo tempo as possibilidades de movimento por
meio de construes em volumes. A partir de formas abstratas Adolphe Appia e
Gordon Craig negam a atmosfera e a ambientao naturalista na busca da
construo pura; uma nova organizao do espao que relaciona o indivduo com
o entorno e cria novos desafios para o corpo dos atores via imagem em
movimento.
Embora com objetivos diferentes, artistas minimalistas tambm
buscaram a forma primria, elementos primrios na sua materialidade e a
abolio do ilusionismo. Aps a Segunda Guerra Mundial, em um momento em
que a viso positivista da sociedade industrial e a celebrao do progresso da
-
modernidade so substitudas por uma crtica aos valores humanos da sociedade
de consumo que regido por uma crena nas aparncias e dominado por valores
mercadolgicos, os artistas minimalistas retomam o purismo e o paradigma da
entrada no espao real do incio do sculo. Ao retirar as operaes formativas do
objeto de arte, eles adotam a tecno-esttica dos construtivistas e reutilizam
conceitos presentes no readymade e objet trouv.
As experimentaes dos artistas minimalistas abriram novas
possibilidades de colaborao entre prticas artsticas e o ambiente e renovaram
o conceito da instalao criando trabalhos referenciais de sites e environments.
As diversas prticas expandiram o sistema de arte para uma inter-relao, uma
experincia interativa dentro de sistemas. Parte de um grupo de trabalhos que se
parece em sua ruptura com o fazer manual, a relao hierrquica das partes, a
textura, a referncia figurativa, do ilusionismo pictrico, complexidade de detalhes
e o monumentalismo, operam dentro de conceitos arquitetnicos ou paisagsticos
e substituem os termos tradicionais da arte com categorias como campo, direo,
passagem, lugar e movimento.
A nfase em trocas reais na arte ataca a prpria idia de arte. Diversos
artistas criam trabalhos em relao ao momento, desprovidos de qualquer
qualidade artstica. A arte minimalista e trabalhos denominados ps-minimalistas
como process art, land art e body art buscaram uma reativao dos sentidos por
meio da nfase na experincia em lugar do produto de arte como bem econmico
e bem simblico. Diferentes manifestaes artsticas dos anos sessenta e
setenta, conscientes da rede de presses externas e usos tradicionais,
procuravam substituir a sublimao dos desejos da sociedade individualista e o
aspecto sensacional da arte pela experincia sensvel na busca de produzir
sensaes que no deixassem o espectador indiferente e, assim, provocar uma
consciente construo do real.
Essa tentativa de inserir a arte no cotidiano, no contexto social, e de re-
locar o espectador resulta em transformaes na funo e no uso do lugar da
arte. So quebrados os parmetros espaciais do mundo da arte e propostas
-
vrias experincias que levam noo do site-specific. As reflexes de Tony
Smith, Robert Morris, Robert Smithson e Dennis Oppenheim, entre outros,
evidenciam a dependncia da obra em relao paisagem, arquitetura, sala,
parede, luz e ao corpo. Experimentam-se procedimentos que transformam o site
em obra plstica e a obra plstica em site ou non-site, como no caso de Robert
Smithson20.
Priorizando a experincia direta, as obras minimalistas colocaram o
entorno em evidncia, o material, a luz e a estrutura criam ambientes que
suscitam os sentidos. Essas criaes, no seu contexto histrico, podiam ser
vistas em um contexto da arte poltica, por oferecerem resistncia aos padres
vigentes da sociedade contempornea e questionar a representao simblica
praticada. Processos concebidos fora das prticas convencionais da arte e
situaes efmeras articularam a experincia do individuo com o mundo. Os
trabalhos de artistas minimalistas mudaram a produo do sentido da obra de
arte da atividade mental, da interpretao de um significado interior da obra para
a experincia fsica e sensvel no espao exterior. Ao criar uma instncia de
observao consciente do estar no mundo, eles apontaram para um caminho
para chegar devoluo do corpo roubado. O corpo reconstrudo quando a
relao obra-espao-corpo se atualiza.
A mudana de paradigmas, a quebra das categorias convencionais
como escultura e pintura, a perda da autonomia da obra, conforme o
assinalamento de Krauss (1984), resulta em prticas que exploram a lgica do
espao que no organizado em torno de um determinado meio de expresso. A
dimensionalidade da obra incita o espectador a assumir uma relao ao contexto
experimental dado que implica uma presena no interior do espao
(GROSSMANN, 1996) ou de outro lugar demarcado. A arte espacializada cria
20 O non-site de Smithson, um earthwork para um interior, uma imagem lgica tridimensional que abstrato. Ele uma cartografia do site original sem semelhana ou mimese, mas por uma metfora dimensional em forma de uma construo que busca ser livre de contedos realsticos e expressivos. O que interessa ao artista o espao entre os dois sites.
-
uma experincia no espao e no tempo que permite uma troca e uma interao
em que o sujeito presente se torna atuante.
Transfere-se a produo do significado para a experincia do real
artificial. Os objetos ganham concretude pela sua materialidade e o espao por
meio da experimentao da sua forma fsica, do seu uso, que inseparvel da
matria corprea do espectador. O espao exterior vira o novo limite formal do
trabalho. No espao ampliado tambm a posio do espectador influencia o
campo de viso. Essa transferncia da produo de sentido para o espao
exterior ativa os espaos existentes onde os trabalhos acontecem. O lugar de
exibio, o contexto, o ambiente natural ou construdo formam parte da
percepo do trabalho e, assim, da experincia do espectador.
O habitat da obra torna-se um dos problemas estticos. Inicialmente, o
habitat da obra minimalista um lugar ocupado por objetos artsticos. O entorno
ativado pelos materiais comuns, as superfcies refletidas, a disposio dos
elementos ou simplesmente pela presena das obras. Na medida em que a
ativao dos espaos se torna norteador para os artistas, so experimentadas
espacialidades com diferentes qualidades fsicas e diferentes configuraes para
investigar, junto com os trabalhos, as dinmicas entre objetos, paisagem,
arquitetura e espectador. O ambiente preexistente se apresenta como suporte
concreto e torna-se inseparvel do trabalho, um environment.
O exerccio de ocupao de diferentes espaos na prtica da Maldita,
companhia teatral, um processo coletivo que envolve todas as reas cnicas, a
atuao, os elementos visuais, a cenografia, a sonoplastia, a iluminao, a
dramaturgia e a direo, que estavam envolvidas na criao do texto da cena.
Nas ocupaes no se trabalha a criao de novos contedos, mas com as
possibilidades de variaes e novas associaes a partir da estrutura
performtica sugerida pelo lugar. No caso da cenografia, o espao trazido para
a experincia corporal dos atores e do pblico para que o sentido possa derivar
de um estado de coisas que no depende da sua traduo em representaes,
mas dos diferentes estados vividos.
-
A relao lugar-obra, a lgica do
lugar e a percepo esttica de lugares
diferentes que incitam uma predisposio
crtica e consciente no dependem da natureza
do lugar. No necessrio um espao
especializado para criar um momento arte, do
qual fala Grossmann (1996). A experincia
pode acontecer em qualquer lugar, uma casa,
um quarto, uma rua, um prdio, uma sala de
escola.
A instalao/interveno, Seminrio:
o arteso do corpo sem rgos (Figura 2)21,
prope (des-)construir cdigos existentes dos
componentes da sala de aula para (re-)
significar objetos e relaes. As pessoas
entram em uma sala de aula escura na qual as
cadeiras e mesas viradas, empilhadas at o
teto, formam um crculo descentrado iluminado
por uma lmpada incandescente. No cho so
dispostos papis com linhas irregulares,
curvadas e pontilhadas e canetas. Na
apresentao dos conceitos gerais do
contedo, o seminarista (ditador e dono da
verdade) ausente substitudo por mediadores e pelas relaes que se
estabelecem na interao dos elementos no espao. O seminrio uma
montagem singular da sala de aula, o lugar do seminrio tambm o corpo do
sujeito, da pessoa que entra em relao com os elementos dispostos. A recepo
da instalao foi controversa. Muitas pessoas escreveram frases, desenharam e 21 Seminrio: o arteso do corpo sem rgos foi apresentado por mim no contexto da disciplina Imagens do pensamento - pensamento das Imagens no dia 29 de novembro de 2002, na EBA, UFMG.
Figura 2 - Seminrio, LINKE, 2002.
-
rabiscaram, mas vale um seminrio sem seminarista? Porque no tinha nenhuma
indicao do que se tratava, exceto um aviso na porta com os dizeres:
Seminrio: o arteso do corpo sem rgos.
O seminrio buscou um instante presente no qual o sentido se d na
observao da disposio de elementos no espao e nas escolhas do
observador, movido por um olhar condicionado, por um ponto de vista prprio,
que, conseqentemente, contamina a percepo do exterior. Estabeleceu-se uma
relao entre o corpo mquina, o organismo subdividido em funes e o sistema
da sala de aula como mquina, tambm organismo com suas funes
determinadas pela predisposio do lugar e o uso da linguagem na interao
entre as pessoas.
Os componentes da sala de aula so organizados hierarquicamente.
Eles atribuem valores via orientao que direciona e limita o fluxo entre os
elementos. Os principais componentes do sistema aula, no modelo dogmtico
tradicional, so: a disposio dos lugares, a disposio das pessoas no espao e
o uso da linguagem para garantir o entendimento e aprendizado de um dado
contedo. As funes so organizadas, as instalaes eltricas, a ventilao, o
quadro negro com giz, as cadeiras, a carteira do professor e o arranjo do corpo
que participam da aula, professor e alunos, regulam e controlam o evento e a
interao entre as pessoas na sala de aula. Como dar um seminrio sobre o CsO
em tais condies? Pensar o seminrio como corpo levou s questes: de que
corpo se trata aqui? Por quais procedimentos e meios podemos experiment-lo?
O que acontece com as variantes em relao s expectativas? O que o seminrio
pode fazer enquanto CsO?
A aula uma cena, uma situao que se recria e se repete quando as
pessoas se encontram para tal fim. Como na aula, um seminrio prope uma
apresentao audiovisual no qual o orador, visvel e acusticamente inteligvel,
comunica um determinado contedo aos interessados. Os participantes dessa
cena, orador e ouvintes, fazem papis fixos. A organizao hierrquica entre as
-
pessoas e a predisposio geogrfica da sala determinam o fluxo das
informaes.
A linguagem, organizada pelas funes gramaticais e sintxicas com
seus mecanismos de descrever, designar, expressar e significar remete ao
organismo. A construo do significado passa pelo regime da linguagem para
produzir mensagens instantneas, incorporais e signos. Os aspectos lgicos da
palavra discursiva usam a linguagem como representao. As palavras, na sua
compreenso e recepo, so significaes limitadas por serem originalmente
repeties.
A sala de aula do Seminrio coloca o corpo do observador no centro
das atividades. O indivduo responde a estmulos que provm da percepo do
entorno em relao ao prprio corpo. Essas respostas subjetivas implicam
variaes contnuas de tudo o que se pode fazer como corpo. Aps da abolio
do texto escrito d-se lugar a uma fala que corpo, um corpo que teatro, um
teatro que vira texto.22
Nos anos sessenta, artistas saram do espao utpico, do cubo branco
idealizado do museu e da galeria modernista e entraram no domnio dos stios
heterotpicos, dos espaos heterogneos que combinam vrios lugares em
sistemas maiores. Intensificaram-se as prticas processuais realizadas no mundo
real, em lugares, sem lugares, nas quais intervenes artsticas produzem
dilogos que criam novas relaes entre partes j existentes. O mundo das artes
procura reintegra-se ao seu contexto exterior. Os objetos situados minimalistas e
sites e non-sites ps-minimalistas exploraram e expandem as reas da
experincia artstica e humana criando encontros que expandiram a viso para se
ver em mltiplos nveis de realidade. O papel do espao e o aspecto de durao
fundamentam os trabalhos na sua dimenso social. De uma prtica de reajuste ou
de adaptao a um lugar existente para acolher um trabalho, muda-se para uma
conscincia de um espao associador e fundador que elimina a distino entre a
obra e seu abrigo. O espao sociofsico vira o espao performtico, um lugar da 22 O ur-texto em qual Antonin Artaud acredita.
-
cidade cenogrfica, agora, um lugar em ao. O espao de stios urbanos,
paisagens, salas, construes evocado para uma experimentao sensorial.
Sylviane Leprun cita diferentes orientaes dos artistas-cengrafos especificando
as diferentes abordagens do espao como meio das pesquisas plsticas
espacializadas: stio, mdia, museu e arquitetura. Ela refora o conceito
cenogrfico da instalao com a afirmao que a instalao no trabalha somente
sobre o espao, mas com ele. Assim, a autora define a prtica da instalao que
se prope a uma construo simblica do espao como uma prtica
interdisciplinar presente na vida domstica, coletiva de qualquer sociedade
(LEPRUN, 1999).
O sentido das obras no reside na interpretao de um contedo e na
apreciao da sua contraparte material, mas na percepo ligada aos esquemas
sensoriais. A experincia esttica acontece em um espao vivencial, e a
apreenso da obra ocorre na percepo da relao corpo-objeto. Nesse encontro,
o espao vital, o Lebensraum, como contexto exterior forma parte do conjunto da
obra. Os elementos arquitetnicos numa encenao e na exposio resultam
numa espacialidade que estimula uma conscincia corprea similar aos espaos
urbanos que correlacionam o homem ao seu redor. O cidado vive em espaos
criados, como o ator vive no espao do palco. Os espaos propem diferentes
relaes que determinam seu uso e suas dinmicas que o corpo experimenta a
partir de um objeto ou um elemento arquitetnico. Com base nessa vivncia, a
pessoa pode (re-)proporcionar o seu entorno.
A instalao como a proposio de uma arte em ato oferece maneiras
de pensar o espao individual e coletivo e a simblica de seus materiais e escalas.
As sensorialidades que resultam das relaes estabelecidas pela proposta so
situaes efmeras capazes de ordenar, exibir ou construir uma sociabilidade
plstica. Retomando A. Artaud, pode-se constatar que o ato que exprime a
potncia e que forma o pensamento. O indivduo se atualiza enquanto participa na
reorganizao e na subjetivao do espao, ele vive um orgnico artificial tornado-
se corpo-obra. A partir dessa experincia corporal, a conscientizao do
-
organismo em que as diferentes partes interagem, estabelece-se uma relao
corpo-sentido que provm de um estado das coisas e das possibilidades de afetar
e ser afetado. Por meio da percepo sensvel das coisas e do ato como potncia
de diferenciao e de inveno, interfere-se no sistema vigente, nas formas
constitudas e representaes estabelecidas. A prtica da experimentao e a
transformao do exterior criam um mundo em obra, uma reativao do sentido
processual da construo de noes de realidade.
-
3 A DIMENSO SENSVEL
Ines: A gente tinha conversado antes sobre a funo da
percepo esttica para os trabalhos de Smithson e do Turnpike de Tony Smith. O ato perceptivo como sustentao
da obra.
Louise: Podemos comear do Monumento de Passaic, da coisa no
materializada.
I: Acho interessante. Ele trata de uma coisa muito familiar,
muito cotidiana dele, a cidade natal.
L: um caminho, um percurso e um texto que ele constri. No sei como o trabalho depois apresentado, se de outra forma, se aquele texto que se constitui como obra.
I: E se ele no tivesse tirado as fotos e no tivesse
escrito o texto?
L: Se tivesse feito s o percurso? I: Sim, o que seria?
L: Se no tivesse feito nenhuma manifestao, nenhum
registro; se no tiver registro ou nenhuma manifestao
para se passar para um meio pblico, como a coisa funciona? Por exemplo, os dadastas ocuparam um terreno,
ficaram l durante um dia ocupando. O tipo de registro que tive disso foi uma foto ou outra. Lanaram um jornal depois, um texto falando sobre o dia. Mas teve algum tipo
de manifestao, um registro, mesmo no sendo muito bem
articulado.
I: Mas documentao, relatos e textos escritos so
materializaes a partir de alguma experincia. E a
experincia em si, tipo a deambulao surrealista?
-
L: A gente s sabe da deambulao porque tem registro. complicado, acho que um ato, como o percurso que a gente
fez, cheio de sentido. Mas, se a gente quer levar isso para um outro lugar, tem que ter alguma forma de
materializar a experincia para virar objeto artstico ou outra coisa.
I: Se no, no cria relao, fica dentro da cabea. O
dilogo, quando a gente andou e conversou sobre coisas de vrias naturezas diferentes, tambm era um modo de externalizar essa experincia do lugar.
L: Isso a primeira instncia, esse registro. Uma coisa registrar, a outra manipular a experincia de alguma forma, trabalhar com esses indcios, com o sensorial, o
sensvel, com algum sentido que a experincia provocou na
gente. Acho que manipular pode ser uma palavra
interessante.
I: Tem-se a percepo na primeira, a manipulao na segunda
e a transferncia na terceira instncia, mas qual o lugar dessas materializaes nos sites locais
escolhidos?23
A teatralidade dos espaos no se restringe ao palco de um teatro. O que
est contido ou acontecendo num lugar est sujeito ao prprio espao, cidade
cenogrfica ou cidade polifnica (CANEVACCI, 1997). Por meio de vivncias e
percursos, muda-se a atividade artstica na primeira instncia para perceber o
lugar como um objet trouv ou uma cenografia pronta. A experincia desses
espaos, dentro da tradio do environment inclui a concepo do espao na sua
23 Dilogo gravado entre Ines Linke e Louise Ganz em novembro de 2006 a propsito do desenvolvimento dos trabalhos Percurso 1 e Percurso 2.
-
materialidade, visualidade, seu funcionamento, como condicionamento do corpo e
como mecanismo de apropriao.
Certeau (1994) aponta que vivemos a cidade como praticantes ordinrios,
como caminhantes, pedestres cujos corpos obedecem aos desenhos dos espaos
com seus cheios e vazios. Para o autor, as prticas organizadoras da cidade
habitada se passam numa espcie de cegueira que contraposta pelas prticas
artsticas no espao ampliado via aes que criam afetividades com os espaos
cotidianos e produzem relaes espaciais que reivindicam os lugares como stios
de relaes capazes de revelar ou extrapolar o contedo representativo da cidade.
Esses processos questionam o lugar do corpo na cidade real planejada de acordo
com os parmetros da organizao funcionalista e a impessoalidade do discurso
da sociedade modernista que gera, classifica e hierarquiza todos os aspectos da
vida. Produzindo prticas outras nos espaos, a (re-)apropriao depende de um
modo individual de exercer prticas cotidianas no espao vivido. As deambulaes
surrealistas e as caminhadas psicogeogrficas situacionistas criaram modelos de
processos de caminhar que questionam a familiaridade do entorno. O ato de andar [...] um processo de apropriao do sistema topogrfico pelo pedestre; uma realizao espacial do lugar; enfim, implica relaes entre posies diferenciadas, ou seja, contratos pragmticos sob a forma de movimento. O ato de caminhar parece, portanto encontrar uma primeira definio como espao de enunciao (CERTEAU, 1994. p.177).
O caminhar, o percurso em si uma realizao, uma atualizao
espacial do lugar (Figura 3). Certeau (1994) compara esse ato a um modo de
fazer, de atualizar, selecionar, afirmar e transgredir. O ato de andar apontado
como a criao de um orgnico mvel que se configura em tipos de relaes
sucessivas. O autor supe que as prticas do espao correspondam
manipulao de uma ordem construda, de propriedades finitas articuladas entre
si, formando um sistema que pode ser modificado ou deslocado (CERTEAU,
1994). Em um jogo com as organizaes espaciais so feitos recortes, selees,
escolhidos fragmentos do espao percorrido que implica ligaes pessoais, alm
de omisses de partes. Essa substituio da totalidade por fragmentos
-
Figura 3 - Rua Maria Martins Guimares, LINKE, 2007.
-
colocados em evidncia cria um novo conjunto que aponta para uma alterao do
espao pelo ato de andar durante o qual territrios fixos se movimentam e entram
em relao a processos de subjetivao (Figura 3).
Caminhar ter falta de lugar, um exlio caminhante, uma forma de
suspenso, uma experincia de deslocamento e de condensao, uma fico que
no distingue entre lugares sonhados e lugares vivenciados (CERTEAU, 1994).
Criam-se, assim, representaes dos lugares que apresentam contedos,
resduos, fragmentos, detritos que se insinuam como um conjunto simblico, um
texto ou uma imagem, uma figura da cidade.
A experincia dos espaos ao nvel do corpo uma prtica, um
processo de criao de uma dramaturgia do espao, que forma uma parte
fundamental durante as apropriaes de espaos do grupo teatral Maldita. O lugar
contribui para reinventar a composio das aes no novo espao-tempo. Assim,
a dramaturgia do espao muda a idia do conceito aristotlico da mimese, da
imitao das aes, para o evento teatral como composio de aes; busca-se
uma ao direta sobre o corpo, o sujeito criador. As experincias de contato, as
configuraes entre espao e corpo correspondem ao homem em processo
brechtiano, no qual a relao dialgica, o
confronto entre instncias abole o contedo
representativo na primeira instncia, ...para o
absoluto a prpria vida um jogo. (ARTAUD,
apud DERRIDA, 2002, p.176).
O corpo em jogo e a experincia
corprea dos espaos sugerem uma entidade
mais ativa e no puramente visual, tal como
podemos receber nos trabalhos de Dennis
Oppenheim, que parte em seus trabalhos da
noo de que a escultura uma permutao da
performance. Ele situa sua investigao artstica
num encontro entre o corpo e o ambiente. Esse
Figura 4 - Material interchange, OPPENHEIM, 1970.
-
trabalho leva o artista para fora do atelier e do espao da galeria. Sua experincia
da construo plstica demonstra constantes mudanas em termos de escala e
localizao. Ele estende a idia da escultura minimalista natureza onde ele
transforma o ambiente da vida real em mdium e suporte. Em Material
interchange (Figura 4), adotando uma microescala, ele substitui a paisagem pelo
corpo. Em lugar de confeccionar uma obra ou produzir um objeto, ele desloca o
fazer artstico para uma conscincia de processos materiais por meio de um
movimento minsculo de uma unha e uma farpa de madeira. As trocas mtuas de
materiais criam interseces ou cruzamentos de sistemas. A unha comea formar
parte do assoalho, e a farpa se integra ao corpo do artista. Os efeitos so
recprocos.
A interseco de sistemas est
presente em diversas escalas tambm em uma
srie de trabalhos dos quais Parallel stress
(Figura 5) constitui uma parte. Nesse trabalho,
Dennis Oppenheim prope processos cognitivos
psicofsicos, a obra se transforma em ao
fsica. Os sites so: um molhe na proximidade
da Brooklyn Bridge em Manhattam, na primeira
instncia, e, num outro momento, um
reservatrio de gua abandonado em Long
Island para o qual transferida a forma corprea
da primeira situao. No trabalho, o artista
experimenta a resistncia de seu corpo tenso
resultante de uma suspenso entre duas
paredes de blocos de alvenaria. A parede toma
lugar do suporte do corpo. Por meio dessa
posio, Dennis Oppenheim tenciona os limites
internos e vive uma experincia fsica no espao arquitetnico. Seu corpo, as
paredes, a localizao e a ao criam um espao vivo. Durante dez minutos, o
Figura 5 Parallel stress, OPPENHEIM, 1970
-
artista assume a posio que registrada no ponto de tenso mxima do
momento antes do colapso. A curvatura do arqueamento corpreo
posteriormente duplicada e transportada para a segunda instncia para a qual o
artista recria na terra um suporte para assumir uma posio paralela ao primeiro
arco por uma hora. O ttulo mistura referncias mentais e materiais: estresse, a
condio de tenso que afeta as emoes, o mal do homem da cidade e stress
como fora na forma de tenso, o fenmeno fsico que testa a resistncia dos
materiais. Com essa aluso e a associao paralela das duas imagens, Dennnis
Oppenheim questiona a natureza do objeto fsico de arte e prope novos dilogos
com o site externo na recriao da curvatura original em outra localizao. O
artista buscou um ambiente industrial para a primeira, onde ele cria uma situao
que passa pelo corpo e um ambiente degenerado para sua recriao da segunda
etapa do trabalho. Ao recri-la, ele comenta a primeira relao. O lugar agora
encenado e, dessa vez, a dramtica visual e fsica envolve o corpo inteiro. Existe
uma estrutura simblica nesse trabalho. Mas onde exatamente acontece a obra?
Ela acontece no corpo, na relao com os elementos, nas condies geofsicas ou
arquitetnicas do lugar, na associao das imagens, no ttulo, no efeito recproco
da experincia fsica espacial ou na associao dos dois registros fotogrficos?
As fotografias documentam um processo, mas tambm existem no
campo das imagens sem sua relao referencial. Na associao das duas
fotografias, estabelece-se uma relao, um lugar entre que independe da primeira
instncia, o lugar da ao fsica. As fotografias como imagens so primrias, elas
so elas mesmas. Pens-las como um sistema de signos significa construir um
modelo que aproxima o visvel ao legvel, mas nega o carter enigmtico da
imagem. Pensar imagens como sistemas formais diferente de pens-las como
produes singulares a partir de um repertrio ilimitado. No h, porm,
percepo e transmisso sem conhecimentos provenientes da razo; isso que
leva tanto o artista como espectador a entrar num sistema de correspondncias
simblicas socioculturais. Essas operaes simblicas criam representaes
subjetivas dependentes do referencial de cada pessoa. Assim, os sentidos
-
derivados podem ser divergentes, e as interpretaes, mltiplas e subjetivas. Mas
um cdigo completamente subjetivo deixa de ser um cdigo; porque um cdigo
tem que ser compartilhado por um grupo de pessoas para existir.
Em 1964, Frank Stella, para falar de suas pinturas, inventou a frase que
exemplifica o parmetro da arte minimalista. What you see is what you see,
comentando o esvaziamento do contedo representativo e afirmando a pintura em
sua materialidade. A imagem primeiramente no veculo, suporte ou instrumento
de uma outra coisa. Primeiro, ela ela mesma com seus materiais, cores e
dimenses. Ela faz sentido por si mesma. Ela se expressa como intensidade,
estado sensvel e comunica anterior ao sistema da significao. Ela se coloca
para o espectador, que tem um papel fundamental, porque construir o sentido
depende da percepo seletiva e da interpretao dessa apreenso sensvel da
pessoa.
Se as imagens so simplesmente imagens, a arte esbarra na noo do
objeto, se as coisas so simplesmente coisas, como o processo da sua
apreenso? O reconhecimento das coisas no automtico, mas passa pelo
indivduo e sua percepo da cidade cenogrfica; o corpo como imagem, como
tela, est a todo momento em relao ao espao urbano, com o entorno, o espao
exterior composto por mltiplos sistemas significantes que se sobrepem. A
significao de qualquer situao dentro ou fora do sistema de arte consiste num
complexo de interaes de material, energia e informao em diferentes graus de
organizao que estabelecem relaes com o indivduo.
O espao heterogneo da cidade criou fronteiras que gerenciam as
relaes entre sociedade e indivduo - espaos restritivos, reas segregadas dos
ricos, favelas dos pobres, passeios pblicos cujos usos so regulados pelo poder
aquisitivo. A cidade de todos? Experimentamos os espaos pblicos coletivos
como estrangeiros; vemos lugares de passagem e no lugares de uma
significao coletiva ou convidativa. Deixando o espao agir sobre mim e agindo
sobre ele, posso me aproximar e distanciar-me dele ou inserir-me nele. Os lugares
existentes comeam a participar na minha cena como cenrio, artifcios capazes
-
de construir velhas relaes e reconstruir novas. Assim, os lugares so
reinventados para produzir um novo campo vivencial que participa na produo de
novos sentidos. Cria-se um olhar sobre a cidade cenogrfica, um olhar sobre a
cidade como imagem, um exerccio que passa a experincia para uma expresso
verbovisual, uma reinveno mnima a partir de uma situao, uma vivncia em
um cruzamento de cinco ruas no Aglomerado da Serra (Figura 6).
Hiptese uma Uma steadycam segue uma rua em movimento suave.
Movimentos em cmera lenta. No se reconhece o lugar, at que o movimento
pra e d um zoom em uma casa no morro, mostrando um quintal com um varal
de roupas onde uma criana pequena brinca com um cachorro do seu tamanho.
No beco da frente, um menino soltando pipa correndo com um outro cachorro, em
cima da laje vizinha, uma mulher pendurando roupas olha para um homem
tropeando no asfalto irregular da rua, desequilibrando e quase caindo.
Observando os detalhes, de um lugar invisvel, distante. A iluso de ser voyeur
invisvel se rompe quando uma mulher passa na frente, xingando. Acho que ela
me viu e falou comigo e lhe pergunto por que ela est chateada, o que ela nega
em tom agressivo. Resumo meu caminho, mas no consigo encontrar o mesmo
lugar e o mesmo movimento suave e confortvel. Olhos das janelas, varandas e
lajes me perseguem e colocam a minha presena em evidncia. Sinto que cometi
um crime. Sinto-me ameaada e decido retornar pelo mesmo caminho que
cheguei. Quando me afasto mais, reconheo todos os lugares, relaxo por causa
da familiaridade, a volta rpida. No, no bem isso.
Hiptese dois Subo a Serra, um morro; paro numa linha de diviso;
o incio de uma favela: o Aglomerado da Serra. No conheo ningum, sinto-me
diferente, fora do lugar. Quando vejo um moo andando torto dou meia volta e
comeo descer. No, no bem isso.
Hiptese trs Vejo no final da rua um muro pintado com tinta a leo
azul claro brilhante. uma igreja. Abrem-se as portas e saem pessoas em roupas
de domingo. Sigo o fluxo das pessoas, reparo na roupa de uma menina, sapatos
laqueados e um manto duro com gola grossa de um vermelho intenso. O casaco
-
Figura 6 Cidade cenogrfica, LINKE, 2006.
-
de inverno faz surgir tempos diferentes. Perco as referncias temporais
completamente quando me encontro no meio de uma interseo de cinco ruas
com motos atravessando em todas as direes. O casaco da menina parec