art a dupa face da proporcionalidade e o ms - lenio streck

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  • 8/2/2019 ART a Dupa Face Da Proporcionalidade e o MS - Lenio Streck

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    A DUPLA FACE DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E O CABIMENTODE MANDADO DE SEGURANA EM MATRIA CRIMINAL: SUPERANDO O

    IDERIO LIBERAL-INDIVIDUALISTA-CLSSICO

    LENIO LUIZ STRECK, Procurador de Justia (RS), Ps-Doutor em Direito(Lisboa), Professor Titular dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direitoda Unisinos (RS), Professor Convidado da Unesa (RJ) e das Universidadesde Valladolid (ES) e de Lisboa (PT), Membro Catedrtico da AcademiaBrasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e Presidente de Honra doInstituto de Hermenutica Jurdica (IHJ). Autor, entre outras obras, deJurisdio Constitucional e Hermenutica Uma Nova Crtica do Direito(2 ed., Forense), Hermenutica Jurdica e(m) Crise (5 ed., Livraria doAdvogado), Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado (4 ed., Livraria doAdvogado) e Tribunal do Jri Smbolos e Rituais (4 ed., Livraria doAdvogado).

    a segurana pessoal uma varivel das mais importantes a seremconsideradas nas estratgias de respeito aos direitos humanos. Esegurana tanto quanto sade, educao, trabalho, etc. umbenefcio que um Estado democrtico deve aos seus cidados. Sem ela,voltamos ao chamado estado de natureza que talvez seja menos idlicodo que pintaram os contratualistas da nossa predileo. Ou seja: lemostanto Rousseau, que esquecemos Hobbes (OLIVEIRA, Luciano.Segurana: um direito humano para ser levado a srio. Anurio dosCursos de Ps-Graduao em Direito da UFPE, n. 11, Recife, 2000).

    1. Consideraes iniciais: situando o problema

    O contedo do debate acerca de qual sentido que deve tomar, no interior

    do Estado Democrtico (e Social) de Direito, o modelo penal e processual penal

    brasileiro tem mantido acesa uma celeuma filosfica ainda que no explcita - ,

    a partir de dissensos que envolvem concepes de vida e modos-de-ser-no-

    mundo centrados nas mais diversas justificaes materiais e espirituais. O

    substrato de fundo destes embates, entre tradies de pensamento to diversas,

    e em grande parte dos assuntos antagnicos, revela uma contraposio ainda

    mais fundamental consistente em um conflito quanto hierarquia axiolgica

    revelado de modo mais manifesto no projeto de Estado Democrtico de Direito.1

    Estes conflitos que esto positivados no texto constitucional revelam uma

    caracterstica fundamental das sociedades contemporneas: o alto grau de

    relativismo que est encerrado em seu conjunto. E nelas, utilizando as idias de

    1 A crise do direito penal abordada com mais especificidade em texto que escrevi em conjuntocom Andr Coppeti, para o qual remeto o leitor (Streck, Lenio Luiz e Coppeti, Andr. O Direito

    Penal e os Influxos Legislativos ps-Constituio de 1988: um modelo normativo e eclticoconsolidado ou em fase de transio? Anurio do programa de Ps-Graduao em Direito daUnisinos. So Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 225-295. Alguns conceitos foram transladados daquelepara este. Consultar, tambm, Streck, Lenio Luiz e Feldens, Luciano. Crime e Constituio. A

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    Zagrebelsky, a Constituio no tem a tarefa de estabelecer diretamente um

    projeto determinado de vida em comum, mas de realizar as suas condies de

    possibilidade2.

    No obstante a exigncia desta funo de unidade a ser cumprida pela

    Constituio, quando se adentra o campo da produo normativa

    infraconstitucional, e particularmente de um modelo penal como o brasileiro, que

    nos ltimos tempos sofreu ampliaes relevantes quantitativa e

    qualitativamente, fcil notar

    a) uma certa dificuldade de coexistncia de certos princpios e valorestradicionalmente imputados ao direito penal pelas vertentes liberais-

    iluministas, caracteristicamente individualistas, e

    b) uma outra gama de princpios e valores que sustentam a legitimidadede novas matrizes normativas dirigidas tutela de bens no

    individuais.

    Eis o problema. A complexidade do mundo contemporneo expe a

    possibilidade e a necessidade de os indivduos aspirarem no a um reduzido

    grupo de valores ou princpios, com uma homogeneidade de caractersticas e

    funes, mas, de outra forma, a um rol axiolgico e principiolgico variado que

    possibilite a conformao normativa da vida social e coletiva do tempo presente.

    Assim sendo, no deve haver a prevalncia de um s valor ou de um grupo de

    valores que uma determinada tradio dogmtica tratou de conferir um alto grau

    de verossimilhana. desejvel que haja uma flexibilidade na escala hierrquica

    de valores constitucionalizados, mediante solues histricas e contextualizadas

    que permitam o desenvolvimento dos princpios constitucionais e garantam a

    homogeneidade do projeto de sociedade, Estado e Direito positivado3.

    A atual configurao do modelo penal brasileiro, em funo do surgimento

    gradual de uma srie de leis que determinaram o deslocamento do seu foco de

    tutela de bens individuais para bens coletivos, distancia-se ao contrrio do que

    sustentam os penalistas adeptos de um minimalismo garantstico - de um

    padro de interveno mnima, e coloca, pelos menos hipoteticamente, a

    possibilidade de subverso de grande parte de uma hegemonia histrica nas

    legitimidade da funo investigatria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2003.2 Cf. Zagrebelski, Gustavo. El derecho dctil. Madrid: Trotta, 1999, p. 13.3 Ver a respeito Zagrebelski, op. cit., p. 14-17.

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    relaes de poder sustentadas e reproduzidas em no desprezvel parcela pela

    aplicao da lei penal.

    Dito de outro modo: enquanto predominou o interesse liberal-individualista

    na persecuo penal, as classes mais abastadas da sociedade brasileira

    mantiveram-se em uma situao extremamente confortvel em relao aos

    estratos sociais economicamente mais carentes, pois praticamente apenas as

    condutas das parcelas mais pobres e exploradas da populao que no tinham

    funo alguma na reproduo e manuteno de uma determinada ordem scio-

    econmica, eram, e ainda em grande parte continuam sendo, destinatrias da

    aplicao de alguma norma penal incriminadora. De todo modo, possvel dizer,

    sem maiores rodeios, que o direito penal brasileiro assim compreendido noapenas o seu modelo legal, seno que tambm o produto de sua interpretao

    jurisprudencial -, por ainda guardar caracterstica liberal-individualista na

    proteo dos bens jurdicos em pas com distncias sociais to significativas,

    continua com forte cheiro de direito penal de classe, ou seja, suas baterias

    continuam apontadas na direo dos setores mais desfavorecidos da sociedade.

    J contemporaneamente, as condutas que, regra geral, somente podem

    ser praticadas por quem possui uma quota considervel de patrimnio individual,e constituem-se como indesejveis por violarem bens e interesses de natureza

    coletiva, compem um novo quadro de comportamentos cuja caracterizao

    delituosa ainda encontra srias resistncias, especialmente por alguns setores da

    dogmtica tradicionalmente comprometidos com a proteo nica e exclusiva de

    interesses individuais.4 Isto revela uma face do conflito pelo poder instalado no

    cerne do direito penal, que se traduz num embate de paradigma, cuja superao

    pe-se, historicamente, como tarefa fundamental.

    O paradigma a ser superado que pode ser denominado de liberal-

    individualista-iluminista compe-se, paradoxalmente, de tudo o que a tradio

    liberal-iluminista nos legou: direito penal para ser utilizado no combate s

    condutas lesivas ao indivduo e ao seu patrimnio individual, questo que

    igualmente est presente nos demais ramos do direito. Da a crise: o direito (em

    4 Isto para dizer o mnimo. No se pode, contudo, desprezar outro componente que sustenta o quese pode denominar de crise do modelo liberal-iluminista-individualista-normativista de Direito: ametafsica equiparao que faz a dogmtica jurdica entre vigncia e validade, o que, sobremodo,enfraquece a filtragem hermenutico-constitucional do direito penal. Nesse sentido, consultarStreck,Jurisdio Constitucional e Hermenutica, op. cit., em especial cap. 5.

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    especial o penal), est apenas preparado para resolver conflitos inter-individuais

    entre Caio e Tcio, 5onde Caio o agente/autor e Tcio (ou Mvio), o ru/vtima.

    Assim, se Caio (sic) invadir (ocupar) a propriedade de Tcio (sic), ou Caio (sic)

    furtar um botijo de gs ou o automvel de Tcio (sic), fcil para o operador do

    Direito resolver o problema. No primeiro caso, a resposta singela: esbulho,

    passvel de imediata reintegrao de posse, mecanismo jurdico de pronta e

    eficaz atuao, absolutamente eficiente para a proteo dos direitos reais. No

    segundo caso, a resposta igualmente singela: furto (simples, no caso de um

    botijo; qualificado, com uma pena que pode alcanar 8 anos de recluso, se o

    automvel de Tcio (sic) for levado para outra unidade da federao).

    Ou seja, nos casos apontados, a dogmtica jurdica coloca disposio dooperador umprt--porter significativo contendo uma resposta pronta e rpida!

    Mas, quando Caio (sic) e milhares de pessoas sem teto ou sem terra

    5 Uma observao necessria: os personagens Caio, Tcio, Mvio (a) so aqui utilizados comouma crtica aos manuais de Direito, os quais, embora sejam dirigidos ou deveriam ser a umsistema jurdico (brasileiro!) no interior do qual proliferam Joos, Pedros, Antonios e Joss, Marias,Terezas, teimam (os manuais) em continuar usando personagens idealiatas/idealizados,desconectados da realidade social. Registre-se que at mesmo no provo do MEC os personagensCaio e Tcio (re)apareceram... Isto decorre de uma cultura estandartizada, no interior da qual a

    dogmtica jurdica trabalha com prt--porters significativos. H uma proliferao de manuais, queprocuram explicar o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais ahistricos e atemporais(portanto, metafsicos). Ocorre, assim, uma ficcionalizao do mundo jurdico, como se a realidadesocial pudesse ser procustianamente aprisionada/moldada/explicada atravs de verbetes eexemplos com pretenses universalizantes. Alguns exemplos beiram ao folclrico, como no caso daexplicao do estado de necessidade constante no art. 25 do Cdigo Penal, no sendo incomumencontrar professores (ainda hoje) usando o exemplo do naufrgio em alto mar, onde duaspessoas (Caio e Tcio, personagens comuns na cultura dos manuais) sobem em uma tbua, e nadisputa por ela, um deles morto (em estado de necessidade, uma vez que a tbua suportavaapenas o peso de um deles...!) Cabe, pois, a pergunta: por que o professor (ou o manual), paraexplicar a excludente do estado de necessidade, no usa um exemplo do tipo menino pobre entrano Supermercado Carrefour e subtrai um pacote de bolacha a mando de sua me, que no tem oque comer em casa? Mas isto seria exigir demais da dogmtica tradicional. Afinal de contas,exemplos deste tipo aproximariam perigosamente a cincia jurdica da realidade social...! Na

    mesma linha: em recente concurso pblico no RS, perguntou-se: Caio quer matar Tcio, comveneno; ao mesmo tempo, Mvio tambm deseja matar Tcio (e, pasmem, com veneno!). Um nosabe da inteno assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (no ficaexplicado em que circunstncia Tcio com certeza um idiota -, bebe as duas pores de veneno).Em conseqncia da ingesto das meia-doses, Mvio vem a perecer... E o concurso indagava: quala soluo jurdica? Em outro concurso, de mbito nacional, a pergunta dizia respeito soluojurdica a ser dada ao caso de um gmeo xifpago ferir o outro (com certeza, gmeos xifpagosandam armados, e em cada esquina encontramos vrios deles...!). Dito de outro modo: dessemodo, a cultura standartfornecida pelos manuais reproduzida nas salas de aula e nos concursospblicos. A propsito, h um manual que, para explicar a diferena entre culpa consciente e doloeventual, utiliza um exemplo a partir do ato de um jardineiro, que quer cortar as ervas daninhas ecorta o caule da flor.... No podemos esquecer, finalmente, o clssico exemplo do acar e doarsnico, utilizado, h vrias dcadas, para explicar o conceito de crime impossvel...! Esta aapenas a ponta do iceberg, e que retrata a dura face do idealismo que permeia o discurso jurdico,que pode ser retratada pela seguinte anedota envolvendo o filsofo Hegel. Conta-se que, no augede uma abstrao filosfica, o filsofo foi interrompido por um de seus alunos, que lhe perguntou:Mestre, tudo isto que o senhor est dizendo no tem absolutamente nada a ver com a realidade.Ao que Hegel teria respondido: Pior para a realidade...

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    invadem/ocupam a propriedade de Tcio (sic), ou quando Caio (sic) participa de

    uma "quebradeira" de bancos, causando desfalques de bilhes de dlares (como

    no caso do Banco Nacional, Bamerindus, Econmico, Coroa-Brastel, sem

    esquecer os segredos da CPI do Banestado, etc.),6 os juristas ptrios s

    conseguem "pensar" o problema a partir da tica forjada no modo liberal-

    individualista-normativista de produo de Direito.

    2. O contraponto entre penalistas liberais e comunitaristas

    Em resumo, verifica-se uma grave controvrsia acerca da extenso e das

    funes do direito penal e do direito processual penal a partir do dissenso entre a

    postura dos juristas liberais, que defendem uma funo limitadora do conceito de

    bem jurdico e tudo o que lhe diz respeito, e aqueles de orientao

    comunitarista, cuja posio quanto funcionalidade do direito penal e do direito

    processual penal assenta-se em uma concepo organizativa, interventiva e

    atenta realidade social.

    O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e, consequentemente, dado

    margem ao aquecimento do debate entre penalistas liberais e comunitaristas,

    que estes buscam introjetar, na concepo do direito penal, a idia de que uma

    srie de valores constitucionais de feio coletiva necessitam proteo do Estado,

    enquanto aqueles, ainda presos s matrizes penais iluministas-clssicas,

    resistem a tanto, obstaculizando a extenso da funo de proteo penal aos

    bens de interesse da comunidade, ao argumento de que tal barreira implicaria

    uma indesejada antecipao das barreiras do direito penal.

    Assim, do que foi exposto, possvel afirmar que o panorama do direito

    penal (e processual penal) no Brasil aponta para o fato de que parcela

    considervel dos juristas brasileiros tm assumido uma postura paradoxal, uma

    vez que, de um lado, defensores de posies que buscam penas mais duras,

    lanam ao mesmo tempo um olhar leniente sobre os delitos que colocam em

    xeque os objetivos da Repblica previstos na Constituio (que afetam bens

    jurdicos coletivo-comunitrios).

    6 A melhor anlise acerca da criminalidade que colocam em xeque os objetivos da Repblica feitapor Luciano Feldens, em seu Tutela Penal dos Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, leitura obrigatria para quem pretende des-velar oproblema da crise paradigmtica que assalta o direito brasileiro.

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    Nesse sentido veja-se o tratamento dado aos crimes de sonegao de

    tributos, lavagem de dinheiro, crimes contra o meio ambiente, para citar apenas

    alguns desse jaez, cuja desproporcionalidade em relao aos delitos de feio

    inter-individual no vem recebendo maiores- ou nenhuma contestao por

    parte desse setor do direito penal brasileiro, caudatrio ainda de uma dogmtica

    jurdica inserida no paradigma liberal-individualista-normativista, no interior do

    qual o papel do direito penal e do processo penal seriam apenas o de proteger

    bens jurdicos inter-individuais, fenomenologia que pode ser observada

    facilmente no Cdigo Penal ainda em vigor.

    Relembre-se, ainda nesse sentido, que esse modelo hbrido brasileiro que

    se amplia continuamente em relao criminalizao de condutas violadoras debens das mais variadas espcies, caminha neste aspecto para um modelo

    bastante repressor, mas que adota solues em termos de penalizao em

    sentido totalmente oposto. Ou seja, ao mesmo tempo em que eleva categoria

    de crime uma srie de aes e omisses que atingem a coletividade, cria

    alternativas penais de recluso que sustentam normativamente depois da

    discurso da impunidade. Basta ver, para tanto, os benefcios trazidos pela Lei

    9.714, pela qual muito raramente algum crime do colarinho branco fica excludo

    da pena alternativa (geralmente, uma prestao pecuniria, via de regra

    dissolvida no pagamento de cestas bsicas).

    Em sentido oposto ou no mnimo em uma linha acentuadamente crtica em

    relao dogmtica jurdico-penal dominante, h os que propugnam por uma

    interveno cada vez menor do direito penal, no importando a natureza dos

    crimes. Aludem que o aumento das penas e da represso acarreta aumento da

    criminalidade.7 Os juristas que perfilham esse entendimento com forte

    7 Muitos criminlogos, especialmente os que fundamentam teoricamente suas pesquisas e estudosno paradigma da reao social, podero afirmar que o aumento da criminalidade tem ocorridoexatamente em funo da ampliao do sistema normativo repressor. Mas esta uma afirmaode difcil sustentao, e cuja validade altamente questionvel e duvidosa. Ela pode ser tomadacomo verdadeira para as condutas que passaram, por exemplo, a ser consideradas comodelituosas, aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, por fora de normasincriminadoras que surgiram como instrumentos jurdicos de regulamentao infraconstitucionalpenal de dispositivos presentes no texto da Magna Carta brasileira. Entretanto, a mesma afirmaono pode ser alada a uma condio equivalente de veracidade quando referente criminalidadetradicional, econmica, tributria, e s violaes criminais a uma srie de outros bens que jeram anteriormente protegidos pela legislao penal7. Estes nichos de condutas delinqenciais jprevistos normativamente como tal, e que tiveram um salto quantitativo nos ltimos anos, tmsuas causas numa pluralidade de fatores que as mais diversas cincias que se imbricam com odireito penal no estudo do crime tm buscado apontar. Alguns nmeros da realidade brasileirailustram bem a atual situao de crise institucional vivida pelo Estado no combate criminalidade.

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    influncia da doutrina de Ferrajoli aceitam apenas a existncia de bens

    jurdicos de carne e osso. Embora preocupados de forma acertada, diligente

    e democrtica com o arbtrio estatal, as mazelas do direito penal e as misrias

    do processo penal, tais juristas incorrem igualmente em um paradoxo, porque,

    ao repudiarem o uso do direito penal para o enfrentamento das infraes que

    lesam bens jurdico-sociais, deixam de lado esse importante mecanismo para o

    alcance daquilo que o prprio Ferrajoli denominou de direitos sociais mximos,

    circunstncia que possibilita um direito penal mnimo, igualmente por ele

    proposto.

    Nesse sentido, entendo que o enunciado direito penal mnimo - direito

    social mximo traduz-se em uma equao que desembarca tardiamente empases de modernidade tardia, onde no houve welfare state. E, convenhamos,

    mesmo nos pases em que o Estado Social foi/ uma realidade, o direito penal

    continua a ser utilizado no combate de crimes que tratam de bens jurdicos

    sociais, ou seja, na Europa ningum tem dvidas, por exemplo, que os crimes

    fiscais e outros desse jaez devem ser punidos com rigor. Dito de outro modo:

    direito penal mnimo e direito social mximo um paradoxo em pases de

    modernidade tardia.

    H, ainda, um terceiro grupo de juristas que assume uma espcie de

    direito penal comunitarista, propugnando por uma atuao mais forte do direito

    penal no terreno da represso das condutas que lesam bens jurdicos de feio

    transindividual. Para estes e aqui me incluo o direito penal seria (tambm)

    um importante instrumento de transformao da sociedade, espcie de brao

    armado da Constituio, nas palavras de Paulo Ferreira da Cunha: no armado

    para servir a ela, mas para, imbudo dos seus princpios, servir a sociedade.Ou

    seja, no direito de duplicao, mas direito que fundamentalmente estrutura a

    ordem jurdica e lhe d uma especial feio. Isto : no se trata apenas do

    apavorante a quantidade de crimes violentos cometidos no Brasil. Segundo dados do Ministrioda Justia que abrangem o trinio 1999-2001, obtidos junto s Secretarias Estaduais de SeguranaPblica e ao IBGE, ocorreram neste perodo, somente nas capitais estaduais, 64.138 mortesviolentas (1999 21.189, 2000 21.360, 2001 21.589), sendo agregados neste conjuntohomicdios dolosos, homicdios culposos de trnsito, outros homicdios culposos, leses corporaisseguidas de morte, roubo seguido de morte, morte suspeita e resistncia seguida de morte. Seforem considerados somente os homicdios dolosos, os nmeros so da mesma formaassombrosos. A mesma estatstica aponta um total de 40.604 delitos desta espcie praticados noperodo e nos mesmos locais antes mencionados. Ver a respeito a pagina da web do Ministrio daJustia do Governo Federal brasileiro, a saber: http://www.mj.gov.br/Senasp/senasp/estat_homi-cidio_dolos.htm

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    conhecido fenmeno de constitucionalizao do direito penal, mas do

    reconhecimento do mesmo como matria que, no sendo de Direito

    Constitucional prprio sensu, juridicamente constitucional, ou fundante. 8

    Tais questes tm profundos reflexos no campo do processo penal, uma

    vez que as duas primeiras posies trabalham to-somente na perspectiva de

    um garantismo negativo: o direito processual serviria apenas para proteger o

    indivduo contra os excessos do Estado. A liberdade de conformao do

    legislador, nos dois primeiros grupos, ampla quando se trata de leis

    descriminadoras e concessivas de garantias processuais, mesmo que revelia da

    Constituio. No fundo, trata-se de uma espcie de retorno a Rousseau: no h

    limites vontade geral, o que se pode perceber, por exemplo, na concesso dofavor legis no caso do REFIS (Lei 9.964/00) ou do PAES (Lei 10.684/03),

    tambm conhecido como REFIS II, na (des)classificao de crimes como abuso

    de autoridade, sonegao de tributos, desobedincia, invaso de domiclio

    noturna, atentado ao pudor mediante fraude (para citar apenas alguns) para

    crimes de menor potencial ofensivo (Lei 10.259/03) ou, ainda, na permanncia

    no sistema do art. 107, VIII, do Cdigo Penal, que possibilita a extino da

    punibilidade do crime de estupro quando a vtima casar com terceira pessoa.

    Mais recentemente, temos o episdio envolvendo o Estatuto do Idoso (Lei

    10.741/03), cujo artigo 94 rebaixa categoria de crimes de menor potencial

    ofensivo todos os crimes previstos na citada Lei, desde que a pena,

    abstratamente considerada, no ultrapasse a 4 anos, o que faz com que crimes

    como deixar de prestar assistncia a idoso, com resultado morte, e expor a

    perigo a integridade e a sade, fsica ou psquica do idoso, submetendo a

    condies desumanas, com a sujeio deste a trabalho escravo e disso

    resultando leso corporal grave, sejam levados aos Juizados Especiais Criminais,

    ficando os criminosos aptos, neste caso, a receberem a benesse da transao

    penal, atravs da qual, mediante o pagamento de uma ou algumas cestas

    bsicas, a persecutio criminis estar esgotada.9 No houve, ao que se sabe -

    exceo feita ao caso da Lei do REFIS, em que o Procurador Geral da Repblica

    interps ADin qualquer reao de ndole constitucional contra a validade de tais

    8 Cunha, Paulo Ferreira da.A Constituio do Crime. Coimbra: Coimbra Ed., 1998, p. 89-90.9 Sobre esses assuntos, remeto o leitor ao meu artigo Da proibio de excesso (bermassverbot) proibio de proteo deficiente (Untermassverbot): de como no h blindagem contra normaspenais inconstitucionais. (Neo)Constitucionalismo. Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica.Porto Alegre: IHJ, 2004, p. 243 e segs.

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    leis e dispositivos.10 Afinal, como se afirma no mundo jurdico, lei vigente lei

    vlida...!

    Desse estado da arte, possvel depreender que a matriz liberal-

    iluminista, com uma orientao epistemolgica privilegiadora de uma lgica de

    apreenso e subsuno da realidade em abstraes redutoras, encontra-se em

    dificuldades para legitimar o saber produzido a partir de suas bases filosficas

    frente nova complexidade criada pelas manifestaes delinqenciais hodiernas.

    Esta situao coloca em questionamento a hegemonia liberal de justificao dos

    modelos penais11, o que tem gerado uma resistncia contundente por setores da

    dogmtica mais tradicional, que ferozmente tm sustentando a necessidade de

    manuteno do paradigma penal do Esclarecimento12.

    Nesse sentido, a lio de Gisele Cittadino, para quem

    o pensamento jurdico brasileiro marcadamente positivista ecomprometido com a defesa de um sistema de direitos voltado para agarantia da autonomia privada dos cidados. Uma cultura jurdicapositivista e privatista atravessa no apenas os trabalhos de autoresvinculados rea do direito privado, mas tambm caracteriza a produoterica de muitos dos nossos publicistas. Em todos estes autores a defesado sistema de direitos se associa prioritariamente aos direitos civis epolticos e menos implementao dos direitos econmicos e sociais,inclusive pelo fato de que defendem uma concepo menos participativa

    do que representativa da democracia. Em outras palavras, a culturajurdica brasileira est majoritariamente comprometida com umliberalismo do modus vivendi. Se tivssemos que associ-la a umadeterminada matriz poltica, certamente falaramos mais de Hayek eNozick do que de Rawls e Dworkin, muito embora as fontes talvez sejamoutras13.

    Ou seja, essa disputa terica baseia-se em esquemas conceituais

    fundamentais, fixados atemporalmente, pela referncia a textos com padres de

    autoridade que fornecem exemplos paradigmticos usados na instruo de

    nefitos sobre como entender e estender conceitos, como utilizar as expresses

    estabelecidas e como transitar atravs de uma multiplicidade de usos possveis.

    Esta postura terica no tem ficado restrita aos crculos acadmicos, mas muito

    10 Cabe registrar que tambm houve questionamento junto ao TRF/4 Regio sobre o art. 34 daLei 9.249/95, bem como sobre a Lei 10.684/03. O Tribunal sequer apreciou a preliminar deinconstitucionalidade em sede recursal; no caso da Lei 10.684, ficou assentado pelo Tribunal quemilitava em favor da lei a presuno de constitucionalidade (sic). No primeiro grau, o juiz PauloAveline reconheceu, incidenter tantum, a inconstitucionalidade.11 Sobre a influncia do iluminismo jurdico-penal lusitano na formao da cultura penal brasileira,ver a respeito NEDER, Gizlene. Iluminismo jurdico-penal luso-brasileiro. Obedincia e submisso.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.12 Ver, para tanto, Streck e Copetti, op. cit.13 Ver a respeito Cittadino, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia Distributiva. Elementos da FilosofiaConstitucional Contempornea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 14.

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    adiante disto, tem influenciado significativamente as posturas prticas adotadas

    por grande parte dos operadores jurdicos, o que, como veremos, inclui os

    tribunais (no caso, a forte incidncia no Superior Tribunal de Justia).

    Por ltimo, entendo que no deve haver dvida sobre o fato de que, do

    modelo constitucional brasileiro, possvel extrair um novo perfil para o direito

    penal e processual penal. E isto facilmente detectvel pelos seguintes

    aspectos:

    a) o primeiro, refere-se s necessidades sociais de proteo dedeterminados bens e valores;

    b) o segundo, referente ao rol de bens com relevncia constitucional e asindicaes formais criminalizadoras presentes na Carta Magna;

    c) o terceiro, relativo legislao produzida aps a promulgao da CartaConstitucional de 1988 e a sua adequao ao projeto constitucional.

    Quanto ao primeiro aspecto, no h qualquer dvida que, pela graduao

    quantitativa e qualitativa atingida pela criminalidade em nosso Pas, a

    interveno reclamada social e cientificamente est muito distanciada de um

    patamar mnimo. Pelo segundo aspecto, da anlise dos indcios formaisaxiolgico-normativos constitucionalizados desvela-se uma tendncia de

    ampliao da esfera de interveno estatal penal, no s pela recorrente

    presena de indicaes ampliadoras do direito penal manifestamente expressas

    na Carta Magna, mas tambm pela ampliao de rol de bens que foram elevados

    ao patamar constitucional e que, em razo disto, podem, com legitimao

    constitucional, ser tutelada penalmente. Basta ver, por exemplo, neste sentido,

    as disposies contidas nos seguintes incisos do art. 5, da CF/88: XLI (prev

    punio a qualquer discriminao atentatria dos direitos e liberdade

    fundamentais); XLII (prev a criminalizao do racismo e veda a fiana e a

    prescrio a este crime); XLIII (dispe sobre a inafianabilidade e

    insuscetibilidade de graa ou anistia a uma srie de crimes); XLIV (prev a

    inafianabilidade e a imprescritibilidade de crime de ao de grupos armados,

    civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrtico).

    Tambm a disposio constante no 3 do artigo 225 que prev a criminalizao

    e a penalizao das condutas lesivas ao meio ambiente enquadra-se neste grupo

  • 8/2/2019 ART a Dupa Face Da Proporcionalidade e o MS - Lenio Streck

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    de indicaes constitucionais criminalizadoras e ampliadoras da interveno

    estatal penal.

    Por outro lado, preciso considerar que a Constituio Federal de 1988

    ampliou significativamente o rol de bens elevados a tal categoria em relao aos

    textos constitucionais anteriores, especialmente no referente ordem social, o

    qual praticamente somente abriga disposies tutelares de bens no individuais.

    A simples positivao de tais valores indica se no a imposio de proteo

    penal, pelo menos a possibilidade de extenso do sistema penal para a guarida

    de tais bens constitucionalizados merecedores de tutela jurdica que, em alguma

    medida, haver de ser penal.

    Disso resulta, sem dvida, um deslocamento histrico do princpio da

    interveno estatal penal de uma posio minimalista para uma situao de

    adequao de sua magnitude numa relao direta com a gama de bens

    constitucionalizados merecedores de tutela jurdica. Por fim, em relao ao

    terceiro ponto denunciador da desconformidade do princpio da interveno penal

    mnima ao modelo jurdico brasileiro, basta verificar o contedo de toda a

    legislao que contm disposies incriminadoras surgida ps-88. Por isto tudo,

    a posio que defendo em relao interveno estatal no corpo do direito penale processo penal a da interveno minimamente necessria para a realizao

    do estado democrtico de direito nos pases de modernidade tardia. 14

    3. O Processo Penal no contexto da necessidade social de proteo

    de determinados bens e valores. A segurana como direito

    fundamental. O dever estatal de utilizar medidas adequadas a

    consecuo desse desiderato.

    Parece no haver qualquer dvida sobre a validade da tese garantista

    clssica no processo penal: diante do excesso ou arbtrio do poder estatal, a lei

    coloca disposio do cidado uma infinidade de writs constitucionais, como o

    habeas corpus e o mandado de segurana. As garantias substantivas no campo

    do direito penal (proibio de analogia, a reserva legal, etc.) recebem no

    processo penal a sua materializao a partir dos procedimentos manejveis

    14 Nesse sentido, ver Streck e Copetti, op. cit.

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    contra abusos, venham de onde vierem. So conquistas da modernidade,

    representadas pelos revolucionrios ventos iluministas.

    Portanto, contra o poder do Estado, todas as garantias, enfim, aquilo que

    denominamos de garantismo negativo. A questo que aqui que se coloca,

    entretanto, relaciona-se diretamente com a proteo de direitos fundamentais de

    terceiros em face de atos abusivos dos agentes estatais, notadamente os juzes e

    tribunais na hiptese de concesso de liberdade ou outro direito revelia do

    sistema processual-constitucional.

    Pois bem. O Superior Tribunal de Justia e parte considervel dos tribunais

    da Repblica vm sedimentando entendimento de que o Ministrio Pblico no

    parte legtima para interpor mandado de segurana em matria criminal. Assim,

    por exemplo, na hiptese de concesso (indevida) de liberdade provisria ou

    progresso de regime, para ficar nestes dois exemplos, o Ministrio Pblico

    parte ilegtima para buscar efeito suspensivo do recurso interposto. Neste caso, o

    ato judicial no poderia ser cassado em instncia superior atravs de medida

    acautelatrias em sede de segundo grau de jurisdio.

    Assim, a questo que se coloca : decises concessivas de liberdade

    provisria ou concessivas de progresso de regime carcerrio, em flagrante

    contrariedade lei processual-penal, ficam imunes (blindadas) remdios de

    urgncia para corrigi-las?

    Colocando o problema de uma forma mais objetiva: como resolver um

    caso em que deciso judicial,15 de forma indevida e ilegal, restabeleceu, contra

    legem, o livramento condicional de um condenado por roubo, estupro e atentado

    violento ao pudor, flagrado, no perodo de prova, praticando novo assalto mo

    armada?

    Por que negar ao Ministrio Pblico o uso do mandado de segurana para

    dar efeito suspensivo ao recurso interposto, quando se sabe que um agravo em

    15 Ver Mandado de Segurana em matria Criminal n. 70.008.316.606 Tribunal de Justia do RioGrande do Sul, onde a 5 Cmara Criminal assim decidiu: " UNANIMIDADE, JULGARAM OIMPETRANTE (O MINISTRIO POBLICO) CARECEDOR DA AO E DECLARARAM EXTINTO OPROCESSO, SEM JULGAMENTO DO MRITO, FORTE NO ART. 267, INC. VI, DO CPC" A Des.Genacia da Silva Alberton, todavia, denegou a ordem por outro fundamento (entendeu no estarpresente o requisito do direito lquido e certo), afirmando que o Ministrio Pblico temlegitimidade para manejar mandado de segurana para conferir efeito suspensivo ao recurso deagravo em execuo. Cf.: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/consulta/consulta_julgamento.php?en-trancia=2&comarca=700&num_processo=70008316606.

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    execuo no tem efeito suspensivo, levando, alm disto, meses para ser

    apreciado em segundo grau?

    A resposta dos tribunais tem sido basicamente nos moldes dos julgados a

    seguir delineados:

    RECURSO ORDINRIO EM MANDADO DE SEGURANA. CONCESSO DEINDULTO. MINISTRIO PBLICO: ILEGITIMIDADE. EFEITO SUSPENSIVOEM AGRAVO EM EXECUO. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DEJUSTIA.

    O Ministrio Pblico no tem legitimidade para impetrar mandado desegurana almejando atribuir efeito suspensivo ao recurso de agravo emexecuo, porquanto o rgo ministerial, em observncia ao princpioconstitucional do devido processo legal, no pode restringir o direito doacusado ou condenado alm dos limites conferidos pela legislao,mormente se, nos termos do art. 197, da LEP, o agravo em execuo no

    possui efeito suspensivo. Precedentes do STJ. (...) Unanimidade. ROMS12200/SP- STJ.

    CRIMINAL. HABEAS CORPUS. REMIO. LEGALIDADE DO CMPUTO DOSDIAS REMIDOS. SUPRESSO DE INSTNCIA. NO-CONHECIMENTO.HABEAS DE OFICIO. AGRAVO EM EXECUO CONTRA LIVRAMENTOCONDICIONAL. MANDADO DE SEGURANA PARA CONFERIR EFEITOSUSPENSIVO AO RECURSO. IMPROPRIEDADE DO MANDAMUS. AUSNCIADE DIREITO LQUIDO E CERTO. ATO ILEGAL PASSVEL DE RECURSO OUCORREIO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM NOCONHECIDA. HC CONCEDIDO DE OFCIO.

    Hiptese em que se sustenta a legalidade do cmputo dos dias remidos,

    com o fim de restabelecer a deciso concessiva do livramento condicional paciente. Tema que no foi analisado em 2. Grau de jurisdio.

    A anlise do pleito implicaria em indevida supresso de instncia.Concesso de habeas corpus de ofcio, pela verificao de ilegalidade nojulgamento proferido pelo Tribunal a quo.

    O mandado de segurana no se presta para atribuir efeito suspensivo aagravo em execuo interposto pelo Ministrio Pblico contra deciso queconcede benefcio na execuo da pena. Precedentes. (...) HC 32088/SP.-STJ

    MANDADO DE SEGURANA IMPETRADO PELO MINISTRIO PBLICO

    VISANDO EFEITO SUSPENSIVO A AGRAVO EM EXECUO.DESCABIMENTO. O PRESENTE REMDIO DESTINA-SE A PROTEGER OCIDADO QUE SOFRA VIOLAO POR PARTE DE AUTORIDADE (ART. 1.Da LEI 1.522/51). SE O ATO DA AUTORIDADE COATORA FAVORVEL AOCIDADO, NO DISPE, VIA DE CONSEQNCIA, O MINISTRIOPBLICO DE LEGITIMIDADE PARA INTENTERA O WRIT. (...) (MS n.70005087077- Segunda Cmara Criminal do TJ/RS).

    Registre-se ainda mais recentemente o episdio ocorrido no Estado do Rio

    Grande do Sul, envolvendo o apenado Dilonei Melara, condenado a 60 anos de

    recluso.16 Escorado na nova redao da Lei 10.792/03, que alterou

    16 Com relao ao caso Melara, deixo de opinar acerca do mrito, pela simples razo de que,para mim, o dispositivo do art. 112, com a nova redao que lhe deu a Lei n. 10.792/03,

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    substancialmente o art. 112 da Lei de Execues Penais, na medida em que

    dispensou a feitura dos laudos tcnicos, antes tidos como condio de

    possibilidade para aferio das condies para progresso de regime, o apenado,

    munido de atestado de bom comportamento exigido pela nova Lei, requereu a

    progresso do regime fechado para o semi-aberto. O Juiz da Vara de Execues

    de Porto Alegre deferiu o pedido. Inconformado com o (in)devido deferimento da

    progresso de regime, o Ministrio Pblico interps agravo em execuo,

    ingressando ainda com Mandado de Segurana buscando efeito suspensivo para

    o agravo. Muito embora o Tribunal de Justia tenha concedido o mandamus, o

    Superior Tribunal de Justia cassou a deciso, com base na ausncia de

    legitimidade do Ministrio Pblico para manejar mandado de segurana em taishipteses.17

    Casos como estes18 do uma adequada amostra das aporias que

    circunscrevem o sistema jurdico brasileiro. Ou seja, pela jurisprudncia do

    Superior Tribunal de Justia, vedado ao Ministrio Pblico buscar via

    mandado de segurana a correo de atos judiciais que demandem urgncia,

    em face depericulum in mora pro societate. 19

    inconstitucional. Ou seja, conforme deixei claro nos autos do incidente de inconstitucionalidade quesuscitei junto 5 Cmara Criminal do TJRS Agravo n. 70.008.229.775 no era permitido aolegislador tornar dispensveis os laudos tcnicos. Nesse exato sentido que fiz representao aoProcurador-Geral da Repblica, para que ingresse com ADIn junto ao STF. Portanto, a discusso docaso Melara teria outro desiderato, se o Juiz ou o Tribunal tivessem, em sede de controledifuso considerado como inconstitucional a alterao legislativa, com o que voltaria vigir ao art.112, na sua redao anterior. Lamentavelmente, preferiu-se discutir o problema da nova redaodo art. 112 da LEP nos limites da infra-constitucionalidade...!17 Ver, nesse sentido, HC 37856 Superior Tribunal de Justia, Rel. Min. Laurita Vaz. Cominformaes de: http://www.stj.gov.br/webstj/Noticias/detalhes_noticias.asp?seq_noticia=1172518

    Fora do mbito do STF, h decises no sentido da concesso, como o acrdo n. 70005065495 TJ/RS, verbis: MANDADO DE SEGURANA. UTILIZAO EM MATRIA CRIMINAL. POSSIBILIDADE.INEXISTNCIA DE PERICULUM IN MORA NA DECISO JUDICIAL. No existem impedimentos nautilizao do mandado de segurana em matria criminal, desde que demonstrando o ''fumus bonijuris'' e o ''periculum in mora'', bem como a falta de recurso especifico ou ausncia de efeitosuspensivo aquele manejado pela parte. Desta forma, possvel acolher esta ao, quandoimpetrado pelo interessado, requerendo a outorga do efeito mencionado (suspensivo) a recurso emsentido estrito ou agravo de execuo. No caso em concreto, no se concede a segurana. no hnenhum perigo a sociedade no deferimento, por ora, do livramento condicional ao apenado. Tantoo laudo do EOC, como a administrao penitenciaria so favorveis a concesso do beneficio,mostrando que o condenado esta em condies de retornar a sociedade. Mandado conhecido,denegando-se a segurana. Unnime (MS n 70005065495, 6 Cmara Criminal, TJRS, Rel. Des.Sylvio Baptista Neto, julgado em 24/10/2002).19 Afasto, de pronto, as crticas no sentido de que no h, em sede de direito penal,periculum inmora a favor da sociedade No fosse por outras razes apontadas no presente texto, bastaria quese examinasse o art. 5, caput, da CF, que ala a segurana (da sociedade, portanto, das pessoas)ao status de direito fundamental. Ora, parece evidente a possibilidade da ocorrncia de periculumin mora pro societate na hiptese, v.g., de evidente erro judicial na soltura de determinado

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    3.1. Os fundamentos do leading case do Superior Tribunal de Justia

    Os argumentos que fundamentam a posio do STJ seguida por outros

    tribunais podem ser resumidos a partir do que pode ser considerado o leading

    case capitaneado pelo ento Min. Lus Vicente Cernicchiaro, quando do

    julgamento do habeas corpus n. HC n. 6.466/SP. Em resumo, os fundamentos

    so os seguintes:

    a) As partes da relao processual vinculam-se ao princpio da igualdade.No campo processual penal, submetidos ao tratamento conferido ao Ministrio

    Pblico e ao acusado. O Direito, entretanto, no se esgota ao impor a igualdade.

    Consagrou-se tambm o princpio da proporcionalidade; em breve, pode ser

    enunciado como tratamento igual para os casos iguais e desigual para os

    desiguais.

    b) Em se projetando esse princpio para o processo penal, cumpre estaobservao: o procedimento escolhido para ensejar acusao e defesa

    desenvolver as respectivas teses. A, tem-se a igualdade. E teleologicamente,

    decorre do princpio da presuno de inocncia, impedindo qualquer

    constrangimento ao exerccio do direito de liberdade do ru.

    c) Se ocorrer, no curso do processo, qualquer deciso ofensiva a essedireito, o acusado poder valer-se tambm das aes constitucionalizadas a fim

    de preserv-lo imediatamente (no faz sentido o processo visar a garantir o

    direito de liberdade e transformar-se em causa de agresso).

    d) Diferente, porm, quanto ao Ministrio Pblico, restrito ao devidoprocesso legal (Princpio da Legalidade), ou seja, s pode provocar restrio a

    direito do acusado, nos modos e limites colocados em lei.

    e) As situaes do agente do Ministrio Pblico e do acusado, quanto aoprocedimento, evidenciam o princpio da igualdade. Em se considerando,

    contudo, a desigualdade, ou seja, somente o acusado corre o risco de restrio

    ao direito de liberdade, incide o princpio da proporcionalidade, voltada para

    tratamento desigual frente a situaes desiguais. Nessa linha, o Ministrio

    Pblico fica restrito s regras do procedimento. No poder valer-se do Mandado

    de Segurana para, exemplificativamente, obter efeito suspensivo a recurso que

    no o tenha. carecedor do direito de ao.

    indivduo, considerado perigoso.

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    Os demais tribunais no tm acrescentado razes de fundo que desbordem

    da assumida pelo Superior Tribunal de Justia.

    3.2. O perfil do Direito e do Estado no (novo) modelo de Estado

    Democrtico de Direito: ultrapassando as posturas liberais-clssicas

    Tomando por base uma perspectiva liberal-clssica sobre o Direito (e

    sobre a funo do Estado), seria possvel concordar com a tese de que ao

    Ministrio Pblico vedado o uso de instrumento do quilate do mandado de

    segurana. Afinal, no parece difcil sustentar a tese esgrimida pelo Superior

    Tribunal de Justia, pela qual somente o acusado corre o risco de restrio

    liberdade, incidindo, por isto, o princpio da proporcionalidade enquanto proteo

    contra os excessos estatais (o que aqui denomino de garantismo negativo). Por

    outro lado, em uma perspectiva liberal-iluminista, no faz sentido o processo

    visar a garantir o direito de liberdade e, ao mesmo tempo, transformar-se em

    causa de agresso ao cidado (sic).

    Essa posio presente, alis, em boa parte da doutrina penal brasileira

    no leva em conta a evoluo do Estado e o papel do Direito no interior dos

    diversos modelos que conforma(ra)m a teoria do Estado.

    Assim, evidente que a perspectiva liberal-clssica, prpria do Estado em

    formao no longnquo sculo XIX, fundava-se na contraposio Estado-

    Sociedade, sendo a funo da lei meramente ordenadora (o que no proibido

    permitido), a partir da tarefa-funo de defender o dbil cidado contra a

    maldade do Leviat. Afinal, a revoluo francesa bero do Estado Liberal

    representava o triunfo do privado. A burguesia destronara o velho regime

    exatamente para recuperar o poder poltico do qual abrira mo para o

    fortalecimento do seu poder econmico, no nascedouro do Estado Moderno-

    Absolutista.

    O novo perfil do Estado, nessa quadra, ser absentesta. Sua funo ser a

    de servir de guardio dos interesses da classe revolucionria, a burguesia. Em

    outras palavras: o pblico (Estado) era visto como algo ruim. Por isto, o triunfo

    do privado e a pouca importncia dada Constituio, entendida como cdigo

    das relaes privadas.

  • 8/2/2019 ART a Dupa Face Da Proporcionalidade e o MS - Lenio Streck

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    Passados mais de dois sculos, ainda possvel perceber as conseqncias

    desse perodo: em pleno modelo formal de Estado Democrtico de Direito, a

    Constituio brasileira de 1988 ainda vista como uma mera carta de

    intenes.20 Com efeito, muito embora tenhamos calcado nosso

    constitucionalismo no modelo norte-americano, mormente no que tange ao

    controle (difuso) de constitucionalidade, na prtica seguimos (cada vez mais) a

    vertente do constitucionalismo resultante da revoluo burguesa de 1789,

    dando-se maior valor aos cdigos do que Constituio...! Talvez isto explique o

    nvel de sonegao de tributos no Pas e o tipo de tratamento que dado pelo

    direito penal (portanto, do Estado) a esse crime, o que faz com que seja mais

    grave furtar um botijo de gs do que sonegar um milho de reais! Isto paradizer o mnimo!

    Parece razovel afirmar, desse modo, que os juristas brasileiros no

    podem continuar a calcar sua atuao no plano da construo do conhecimento

    jurdico (doutrina e jurisprudncia) - em modelos de Estado e de Direito

    ultrapassados pela evoluo histrica.

    Ou seja, o velho modelo de Estado liberal-absentesta contraposto

    sociedade, como se dela fosse inimigo, a partir de um modelo liberal-individualista inexoravelmente d lugar, no sculo XX, s novas formas de

    Estado e Constituio.

    Surge, pois, a funo social do Estado, a partir do modelo de Welfare

    State, frmula encontrada para superar a crise do liberalismo.

    J a partir do segundo ps-guerra esse (novo) modelo ganha um plus

    normativo, representado pelo Estado Democrtico de Direito, no interior do qual

    o Direito assume uma feio transformadora.

    Dito de outro modo: no marco do Estado Democrtico de Direito, s

    funes ordenadora e promovedora do Direito, prprias do modelos de Estado

    Liberal e Social, respectivamente, agrega-se a funo de potencial transformao

    social.

    Por isto, para bem compreendermos essa mudana de paradigmas, torna-

    se imperioso verificar como se alteram, paulatinamente, os papis institucionais

    20 Sobre a crise da Constituio, que denomino de baixa constitucionalidade, remeto o leitor aomeuJurisdio Constitucional e Hermenutica Uma Nova Crtica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro,

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    dos poderes do Estado. E isto no pode ser deixado de lado na anlise do papel

    do Direito em terrae brasilis.

    4. Do garantismo negativo ao garantismo positivo uma nova

    viso do princpio da proporcionalidade

    Com efeito, nesta quadra do tempo j no tratamos (apenas) de direitos

    individuais, mas, sim, passamos (ou estamos a) tratar destes a partir de um

    processo em que se agregam os direitos de segunda e terceira dimenses. Nesse

    contexto, o papel do Estado passar a ser a de proteger, de forma agregada, a

    esse conjunto de dimenses de direitos.

    Trata-se daquilo que Alessandro Baratta denominou depoltica integral de

    proteo dos direitos, o que significa definir o garantismo no somente em

    sentido negativo como limite do sistema positivo, ou seja, como expresso dos

    direitos de proteo relativamente ao Estado, seno tambm como garantismo

    positivo.21

    Assim, a (ultra)passagem das fases anteriores do Estado implica um novo

    processo de proteo dos direitos, agora redimensionados a partir dacomplexidade social exsurgente dos sucessos histricos ocorridos no sculo XX.

    por isto que no se pode mais falar to-somente de uma funo de

    proteo negativa do Estado (garantismo negativo).22 Parece evidente que no, e

    o socorro vem de Baratta, que chama a ateno para a relevante circunstncia

    de que esse novo modelo de Estado dever dar a resposta para as necessidades

    de segurana de todos os direitos, tambm dos prestacionais por parte do Estado

    (direitos econmicos, sociais e culturais) e no somente daquela parte de direitosdenominados de prestao de proteo, em particular contra agresses

    provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas.

    Perfeita, pois, a anlise de Alessandro Baratta: ilusrio pensar que a

    funo do Direito (e, portanto, por parte do Estado), nesta quadra da histria,

    fique restrita proteo contra abusos estatais (aquilo que denominamos de

    Forense, 2003.21

    Cfe. Baratta, Alessandro. La poltica Criminal y el Derecho Penal de la Constitucin: NuevasReflexiones sobre el modelo integrado de las Ciencias Penales. Revista de la Faculdad de Derechode la Universidad de Granada, n. 2, 1999, p. 110.22 Sobre o assunto, ver tambm Streck e Feldens, A legitimidade da Funo Investigatria do

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    garantismo negativo). No mesmo sentido, o dizer de Joo Baptista Machado,

    para quem o princpio do Estado de Direito, nesta quadra da histria, no exige

    apenas a garantia da defesa de direitos e liberdades contra o Estado: exige

    tambm a defesa dos mesmos contra quaisquer poderes sociais de fato. Desse

    modo, ainda com o pensador portugus, possvel afirmar que a idia de Estado

    de Direito se demite da sua funo quando se abstm de recorrer aos meios

    preventivos e repressivos que se mostrem indispensveis tutela da segurana,

    dos direitos e liberdades dos cidados.23

    Na verdade, a tarefa do Estado defender a sociedade, a partir da

    agregao das trs dimenses de direitos protegendo-a contra os diversos

    tipos de agresses. Ou seja, o agressor no somente o Estado. O Estado no nico inimigo! Registre-se, nesse sentido, a doutrina da eficcia horizontal dos

    direitos fundamentais ou de sua eficcia perante terceiros, produto de uma

    constatao bsica e evidente: a de que os direitos fundamentais tambm so

    violados por particulares, e no apenas pelo Estado. No caso do direito penal,

    exatamente essa a relao que se tem: uma pessoa fsica violando direito

    fundamental de outra.

    Dito de outro modo, como muito bem assinala Roxin, comentando sfinalidades correspondentes ao Estado de Direito e ao Estado Social em Liszt, o

    direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de interveno do

    Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivduo de uma

    represso desmedurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os

    seus membros dos abusos do indivduo. Estes so os dois componentes do

    direito penal: o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade

    individual, e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social

    mesmo custa da liberdade do indivduo.24

    Portanto, para uma avaliao mais aprofundada do problema, necessrio

    ter em conta essa superao do modelo clssico de garantismo negativo, que

    nada mais do que uma leitura unilateral do princpio da proporcionalidade, como

    Ministrio Pblico, op. cit.23 Baptista Machado, Joo. Introduo ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra: CoimbraEditora, 1998.24 Cf. Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Coleo VejaUniversitria, 1998, p. 76 e segs.

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    se este fosse apenas voltado proteo contra os excessos (abusos do Estado)

    (bermassverbot).

    Ou seja, nesta quadra do tempo preciso que tenhamos claro - e isto no

    deveria constituir maior novidade no plano do direito penal-processual

    constitucionalizado que a noo de proporcionalidade

    "no se esgota na categoria da proibio de excesso, j que vinculadaigualmente a um dever de proteo por parte do Estado, inclusive quantoa agresses contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de talsorte que se est diante de dimenses que reclamam maior densificao,notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamadaproibio de insuficincia no campo jurdico-penal e, por conseguinte, naesfera da poltica criminal, onde encontramos um elenco significativo deexemplos a serem explorados."25

    Como se sabe, a Constituio determina - explcita ou implicitamente - que

    a proteo dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: a uma,

    protege o cidado26frente ao Estado; a duas, atravs do Estado e inclusive

    atravs do direito punitivo uma vez que o cidado tambm tem o direito de ver

    seus direitos fundamentais protegidos, em face da violncia de outros indivduos.

    Isto significa afirmar sem temor s inexorveis crticas dos setores ainda

    atrelados a uma viso liberal-iluminista clssicos acerca do papel do Estado -que este (o Estado) deve deixar de ser visto na perspectiva de inimigo dos

    direitos fundamentais, passando-se a v-lo como auxiliar do seu

    desenvolvimento (Drindl, Canotilho, Vital Moreira e Stern) ou outra expresso

    dessa mesma idia, deixam de ser sempre e s direitos contra o Estado para

    serem tambm direitos atravs do Estado.27

    Essa alterao de papel d-se quando o Estado, de potencial opositor a

    direitos fundamentais (essa era a perspectiva liberal-clssica), torna-se seu25 Cf. Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituio e Proporcionalidade: o direito penal e os direitosfundamentais entre proibio de excesso e de insuficincia. Revista de Estudos Criminais, n. 12,ano 3. Sapucaia do Sul: Nota Dez, 2003, p. 86 e segs.26 Diga-se de passagem que a prpria Constituio no estabelece direitos fundamentais absolutos.H sempre a necessidade de que se realize o sopesamento diante da coliso de direitos. Aliberdade individual deve estar sujeita a condies mnimas, razoveis, de modo que o exercciodeste direito no colida com o interesse pblico. Nesse passo, a Declarao Universal dos DireitosHumanos estatui: Art. 29: 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livree pleno desenvolvimento de sua personalidade possvel. 2. No exerccio de seus direitos eliberdades, toda pessoa estar sujeita apenas s limitaes determinadas por lei, exclusivamentecom o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem ede satisfazer s justas exigncias (...) da ordem pblica e do bem-estar de uma sociedadedemocrtica.27 Cf. Cunha, Maria da Conceio Ferreira da. Constituio e Crime. Porto: Universidade Catlicado Porto, 1995, p. 273 e segs.

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    protetor, e, o que mais incrvel que o Estado se torne amigo dos direitos

    fundamentais (Stern) (afinal, como bem consta na Constituio do Brasil, o

    Brasil uma Repblica que visa erradicar a pobreza, construir a justia social,

    etc.)28.

    Esta nova face do Estado e do Direito decorre tambm e

    fundamentalmente do fato de que a Constituio, na era do Estado

    Democrtico de Direito (e Social) tambm apresenta uma dupla face, do mesmo

    modo que o princpio da proporcionalidade (bermassverbot e

    Untermassverbot).29 Ela contm, ensina Ferreira da Cunha, os princpios

    fundamentais de defesa do indivduo face ao poder estadual os limites ao

    exerccio do poder em ordem a eliminar o arbtrio e a defender a segurana e ajustia nas relaes cidado-Estado (herana, desenvolvida e aprofundada, da

    poca liberal da prpria origem do constitucionalismo), em especial em relao

    ao poder penal. Mas, por outro lado, preocupada com a defesa ativa do

    indivduo e da sociedade em geral, e tendo em conta que os direitos individuais e

    os bens sociais para serem efetivamente tutelados, podem no bastar com a

    mera omisso estadual, no devendo ser apenas protegidos face a ataques

    estaduais, mas tambm em face a ataques de terceiros, ela pressupe (e impe)

    uma atuao estadual no sentido protetor dos valores fundamentais (os valores

    que ela prpria, por essncia, consagra).30

    Dito de outro modo, o modelo de Estado Democrtico de Direito implica a

    sujeio do poltico ao jurdico. As Constituies assumem um papel

    compromissrio e dirigente. A liberdade de conformao legislativa fica

    sobremodo restringida, porque vinculada tambm materialmente ao texto

    constitucional. E as promessas da modernidade incumpridas passam a ter status

    constitucional, a partir da insero no texto da Constituio a idia de Estado

    Social (art. 3), que representa as possibilidades de resgate das promessas da

    modernidade incumpridas no pas, em que a etapa do Welfare State no passou

    de um simulacro.

    28 Idem, ibidem.29 Esta outra face do princpio da proporcionalidade adveio da jurisprudncia do TribunalConstitucional Alemo, decidindo sobre a obrigatoriedade de conferir-se proteo jurdico-penal vida intra-uterina sob determinados pressupostos, cabendo destaque para a seguinte passagem dasentena: Nos casos extremos, quando a proteo determinada pela Constituio no se consigade nenhuma outra maneira, o legislador pode estar obrigado a recorrer ao direito penal paraproteger a vida em desenvolvimento. BverfG, Urteil v. 25.02.1975 1 BVF 1-6/74.30 Cf. Cunha, op. cit., p. 273.

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    Repita-se: j no se pode falar, nesta altura, de um Estado com tarefas de

    guardio de liberdades negativas, pela simples razo e nisto consistiu a

    superao da crise provocada pelo liberalismo de que o Estado passou a ter a

    funo de proteger a sociedade nesse duplo vis31: no mais apenas a clssica

    funo de proteo contra o arbtrio, mas, tambm a obrigatoriedade de

    concretizar os direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigao de proteger os

    indivduos contra agresses provenientes de comportamentos delitivos, razo

    pela qual a segurana passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5,

    caput, da Constituio do Brasil).

    Por isto, a necessria crtica s posies do Superior Tribunal de Justia e

    dos demais tribunais que negam o direito de o Ministrio Pblico lanar mo domandado de segurana para buscar efeito suspensivo em recursos em sentido

    estrito e agravos de execuo.

    Fundamentalmente, a posio do Superior Tribunal de Justia e os

    demais tribunais que o seguem - no leva em conta que o princpio da

    proporcionalidade (utilizado como fio condutor dos acrdos), possui uma dupla

    face, isto , um ato estatal pode violar o referido princpio por ser arbitrrio

    (portanto, excessivo), como tambm pode violar o mesmo princpio quandohouver uma deficincia na proteo estatal a determinado bem jurdico.

    Ou seja, o Superior Tribunal de Justia, na voz do acrdo paradigmtico

    de Cernicchiaro, trabalha apenas com a hiptese a-histrica e atemporal - do

    garantismo negativo, em que a violao da proporcionalidade se d pela

    proibio de excesso (bermassverbot), esquecendo a relevante circunstncia de

    que o Estado e relembremos aqui Alessandro Baratta - pode vir a violar o

    princpio da proporcionalidade na hiptese de no proteger suficientementedireitos fundamentais de terceiros (garantismo positivo), representado pela

    expresso alem Untermassverbot.

    Este conceito, explica Carlos Bernal Pulido, refere-se estrutura que o

    princpio da proporcionalidade adquire na proteo dos direitos fundamentais de

    proteo. A proibio de proteo deficiente pode ser definida como um critrio

    estrutural para a determinao dos direitos fundamentais, com cuja aplicao

    31 No sentido desse vis de proteo, consultar Streck, Lenio Luiz e Feldens, Luciano. Crime eConstituio a legitimidade da funo investigatria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro:Forense, 2003.

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    pode-se determinar se um ato estatal por antonomsia, uma omisso viola

    um direito fundamental de proteo. Trata-se de entender, assim, que a

    proporcionalidade possui uma dupla face: de proteo positiva e de proteo de

    omisses estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de

    excesso do Estado, caso em que determinado ato desarrazoado, resultando

    desproporcional o restado do seu sopesamento (Abwgung) entre fins e meios;

    de outro lado, a inconstitucionalidade pode advir de proteo insuficiente de um

    direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mo do uso de

    determinadas sanes penais ou administrativas para proteger determinados

    bens jurdicos. Este duplo vis do princpio da proporcionalidade decorre da

    necessria vinculao de todos os atos estatais materialidade da constituio etem como conseqncia a sensvel diminuio da discricionariedade (liberdade de

    conformao) do legislador32.

    5. guisa de concluso: a dupla face da proporcionalidade como

    garantia contra decises judiciais ilegais-inconstitucionais33

    De tudo o que foi dito, no tenho receio em afirmar que, diante de uma

    deciso judicial que venha, de forma indevida, conceder liberdade a determinado

    indivduo contra disposio processual-penal (portanto, quando presentes

    requisitos que recomendem a sua manuteno na priso, na conformidade do

    que determina o Cdigo de Processo Penal), perfeitamente cabvel, porque

    constitucional, o manejo do mandado de segurana, em face de violao de

    direito lquido e certo dos demais cidados da Repblica, cujo direito segurana

    est alado ao status de direito fundamental.

    Trata-se, fundamentalmente, de resolver uma aparente aporia emnosso sistema jurdico. Afinal, por que negar ao Ministrio Pblico o uso do

    mandado de segurana para dar efeito suspensivo ao recurso interposto, quando

    se sabe que um agravo em execuo no tem efeito suspensivo, levando, alm

    disto, meses para ser apreciado em segundo grau? A argumentao de que o

    mandado de segurana somente pode ser utilizado a favor do cidado (portanto,

    32 Cf. Pulido, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid:Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2002, p. 798 e segs.33 Quando refiro a dicotomia (i)legal-(in)constitucional, fao-o to-somente para reforar aargumentao, uma vez que, toda evidncia, uma lei s vlida se for constitucional; casocontrrio, lei no .

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    do dbil, como diriam os penalistas liberais-iluministas) no se sustenta em

    face da dupla face do princpio da proporcionalidade.

    Parece evidente que, no caso, a devida proporcionalidade deve ser

    analisada pelo vis da proibio de proteo deficiente (Untermassverbot).

    Nestes casos, entendo que, mais do que um direito de fazer uso do nico

    remdio cabvel para restabelecer a legalidade, tem o Ministrio Pblico o dever

    constitucional de agir. Repita-se: como deixar sem correo atravs de um

    remdio eficaz - um ato judicial que agride frontalmente a ordem jurdica?

    Portanto, h que se fazer uso em determinados casos de medidas que

    garantam a eficcia de futuros provimentos judiciais. Caso contrrio, o princpio

    da segurana, que tambm um preceito fundamental, pode tornar-se letra

    morta.

    Desse modo, sempre que um ato judicial mostrar-se contrrio ao princpio

    constitucional que assegura a proteo aos particulares contra agresses

    (imediatas ou potenciais) provenientes de comportamentos delitivos de

    determinadas pessoas (no caso, o agente beneficiado de indevida liberdade, nas

    suas diversas formas), cabvel o uso do mandado de segurana para dar efeito

    suspensivo ao recurso interposto, remdio apenas de efeito mediato contra o

    abuso judicial que se d, nestes casos, por violao de proteo insuficiente.

    No se olvide que o agravo, no seu nascedouro, era tido como um recurso

    de julgamento quase imediato, no sendo, na poca, necessrio o efeito

    suspensivo. Atualmente, todavia, um recurso como o agravo pode demorar

    alguns meses para ser julgado, tempo em que o recorrido permanece solto (ou

    seja, fruindo o benefcio concedido em afronta aos sistema penal-processual-

    constitucional).

    Alis, quando do nascimento da tese de conferir efeito suspensivo a

    recursos que no o possuam, atravs do mandado de segurana, nunca se

    afirmou que a concesso do writ era contra determinada lei (o que violaria a

    Smula 266 do STF). Na verdade, quando o segundo grau concede o writ

    mandamental conferindo efeito suspensivo, por exemplo, a um agravo em

    execuo est corrigindo um ato judicial que violou a devida proporcionalidade

    (lembremos, aqui, a importncia do necessrio sopesamento entre fins e meios,

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    nsito ao citado princpio). Repita-se: o ato ilegal do magistrado que estar

    sendo corrigido.

    Numa palavra: no h qualquer bice constitucional utilizao do

    mandado de segurana para conceder efeito suspensivo a agravo de execuo. A

    tese de que o uso do writ estaria violando o princpio da proporcionalidade

    esbarra na prpria dupla face que o citado princpio possui, isto , o princpio no

    somente trata dos excessos estatais como tambm das deficincias (omisses)

    estatais.

    Isto significa admitir que o Estado Democrtico de Direito provoca

    profundas alteraes paradigmticas, detectveis e compreendidas a partir de

    um adequado olhar hermenutico. Nesse sentido, calha examinar a problemtica

    a partir da diferena (ontolgica) entre texto e norma (ou, se assim se quiser,

    entre vigncia e validade). Com efeito, muito embora o mandado de segurana

    mantenha o mesmo texto (significado de base) em vrias constituies, parece

    evidente que seu sentido (norma) vem sofrendo alteraes. Texto e norma no

    so a mesma coisa. O mesmo texto pode gerar vrias normas. E a passagem do

    tempo passa a ser o condicionante da alterao do sentido do texto.

    Ora, o mandado de segurana da Constituio de 1988 no o mesmo

    mandado de segurana do longnquo ano de 1951. O mesmo ocorre com o

    conceito de direito adquirido ou coisa julgada. Os sentidos de tais institutos

    devem ser relidos em conformidade com a complexidade social que conforma

    no mais os velhos direitos de ndole liberal-individualista, mas que hoje so

    agregados aos direitos de novas dimenses (sociais e transindividuais).

    Se antes o Estado e os seus instrumentos legais-institucionais tinham a

    tarefa de proteger apenas os direitos liberais de ndole individual contra amaldade (sic) do Estado (absentesta), hoje esse Estado que passou por

    profundas transformaes deve preocupar-se com essas novas dimenses.

    por isto que Baptista Machado e Barata vo chamar a ateno para o fato de que

    a tarefa deste novo Estado deve dar resposta para as necessidades de segurana

    de todos os direitos, incluindo-se nesse rol tambm os prestacionais por parte

    do Estado (direitos econmicos, sociais e culturais) e no somente daquela parte

    de direitos denominados de prestao de proteo, em particular contraagresses provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas.

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    Assim, quando o Estado-juiz concede liberdade a um indivduo de forma

    ilegal/inconstitucional, est, na verdade, incorrendo na violao da Constituio

    naquilo que esta garante a segurana para todos (art. 5, caput). Nesse sentido,

    a percuciente assertiva de Ingo Sarlet, para quem resulta inequvoca vinculao

    e isto vale tanto para o direito penal como para o processo penal - entre os

    deveres de proteo (isto , a funo dos direitos fundamentais como

    imperativos de tutela) e a teoria da proteo dos bens jurdicos fundamentais,

    como elemento legitimador da interveno do Estado nesta seara, assim como

    no mais se questiona seriamente, apenas para referir outro aspecto, a

    necessria e correlata aplicao do princpio da proporcionalidade e da

    interpretao conforme a Constituio. Com efeito, para a efetivao de seudever de proteo, o Estado - por meio de um dos seus rgos ou agentes -

    pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental

    (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violao de direitos

    fundamentais de terceiros). Estas hipteses correspondem s aplicaes

    correntes do princpio da proporcionalidade como critrio de controle de

    constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais. Por outro

    lado, o Estado - tambm na esfera penal - poder frustrar o seu dever de

    proteo atuando de modo insuficiente (isto , ficando aqum dos nveis mnimos

    de proteo constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar,

    hiptese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) problemtica das

    omisses inconstitucionais34.

    Destarte, no a concesso de um mandado de segurana para

    possibilitar o recolhimento do indivduo indevidamente solto que estar violando

    o princpio da proporcionalidade, mas, sim, estar violando o princpio da

    proporcionalidade naquilo que se entende por proibio de proteo deficiente.

    Para ser mais claro: isto ocorre quando o Estado-juiz no protege

    suficientemente os direitos fundamentais dos demais cidados da Repblica, os

    quais, por isto, passam a ter, deste modo, o direito lquido e certo de no serem

    molestados.

    Em sntese: quando se est diante de uma visvel violao de dever do

    Estado de respeitar o preceito que trata da garantia fundamental segurana da

    sociedade (ou, se se quiser de terceiros) - art. 6 da Constituio Ttulo II

    34 Cf. Sarlet, op.cit. (grifei).

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    Dos direitos e garantias fundamentais -, o Estado deve colocar disposio do

    Ministrio Pblico mecanismos para corrigir anomalias. Ou isto, ou estaramos

    deixando blindada (imune) qualquer deciso judicial que trate de indevida

    concesso de liberdade a apenados que a ela no fazem jus. E, convenhamos, no

    Estado Democrtico de Direito no pode haver blindagem contra decises

    judiciais ilegais/inconstitucionais.

    Seria absolutamente desarrazoado que, sob pretexto de garantirmos o

    direito fundamental liberdade do cidado, impedssemos a utilizao de

    remdio eficaz contra decises que, por vezes, revelia da lei, concedem

    liberdade a quem a ela no jus, como se a devida proporcionalidade tivesse

    apenas uma via...!

    Numa palavra final: por vezes, parece que esquecemos e o alerta do

    pesquisador e professor de Sociologia Jurdica da Universidade Federal do

    Pernambuco, Luciano Oliveira da relevante circunstncia de que a segurana ,

    ela tambm, direito humano:

    E no estou falando retoricamente, estou falando textualmente...Entretanto, geralmente nos esquecemos disso. Na verdade, to raramentenos lembramos disso que seria o caso de perguntar se algum dia

    soubemos de tal coisa isto , que a segurana, a segurana pessoal, um dos direitos humanos mais importantes e elementares. E, como disse,estou falando textualmente, com base nos documentos fundamentaisdessa traduo, sejam as Declaraes inaugurais da Revoluo Francesade fins do Sculo XVIII, seja a Declarao da ONU de 1948. Est l, j noartigo 2 da primeira Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de1789: os direitos naturais e imprescritveis do homem so a liberdade, apropriedade, a segurana e a resistncia opresso grifei. Declaraotipicamente burguesa, dir-se-ia. Mas bom no esquecer (ou lembrar)que em 1793, no momento em que a Revoluo empreende uma guinadanum sentido social ausente na primeira uma guinada a esquerda, nalinguagem de hoje -, uma nova Declarao aparece estabelecendo, emidntico artigo 2, praticamente os mesmos direitos: a igualdade, aliberdade, a segurana, a propriedade (in Faur, 1988: 373) grifei. Mais

    adiante, o artigo 8 definia: A segurana consiste na proteo acordadapela sociedade a cada um de seus membros para a conservao de suapessoa, de seus direitos e de suas propriedades (idem p. 374).

    E acrescenta o jurista pernambucano:

    Cento e cinqenta anos depois a Declarao Universal dos DireitosHumanos da ONU na qual figuram, ao lado dos direitos civis da tradioliberal clssica, vrios direitos scio-econmicos do movimento socialistamoderno repetia no seu artigo 3: Todo indivduo temo o direito vida, liberdade e segurana pessoal. Eno entanto, esse um direito meioesquecido. No mnimo, pouco citado. Ou, ento, citado em contextos onde

    o titular dessa segurana pessoal aparece sempre como oponente deregimes ditatoriais atingido nesse direito pelos esbirros de tais regimes.Dou um exemplo significativo: numa publicao patrocinada pela UNESCOem 1981, traduzida entre ns pela Brasiliense em 1985, seu autor, ao

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    comentar esse direito d como exemplo o caso de Steve Biko, ativistapoltico negro torturado e morto pela polcia racista da frica do Sul em1977. E comenta: O caso Steve Biko apenas um exemplo bemdocumentado de uma situao em que o Estado deixou de cumprir suaobrigao de assegurar e proteger a vida de um indivduo e em que violou

    este direito fundamental que, infelizmente, tem sido violado pelosgovernos em muitas partes do mundo (Levin, 1985: 55 e 56). Ou seja:por razes que so, reconhecemos, compreensveis, a segurana pessoalcomo direito humano, quando aparece na literatura produzida pelosmilitantes, sempre segurana pessoal de presos polticos, ou mesmo depresos comuns, violados na sua integridade fsica e moral pela ao deagentes estatais.Ora, com isso produz-se um curioso esquecimento: o deque o cidado comum tem tambm direito segurana, violada comcrescente e preocupante freqncia pelos criminosos (grifei)35.

    neste contexto que se inserem as presentes reflexes. E para no haver

    mal-entendidos, fao minhas as duas advertncias enfticas de Oliveira (ibidem)

    sobre o assunto: a primeira a de que, com isto, no estou aderindo ao

    conhecido e, no contexto em que dito, estpido slogan e os direitos humanos

    da vtima com o que os inimigos dos direitos humanos procuram desacreditar

    a dura luta a seu favor num pas como o Brasil. J a segunda remete ao fato de

    que de forma alguma estou considerando com a mesma medida as violaes de

    direitos humanos perpetrados por regimes ditatoriais e as violncias praticadas

    por bandidos mesmo se ambos so celerados.

    35 Cf. Oliveira, Luciano. Segurana: Um direito humano para ser levado a srio. Anurio dos Cursos