proibição da insufiência lenio streck

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O DEVER DE PROTEO DO ESTADO (SCHUTZPFLICHT): O LADO ESQUECIDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS OU QUAL A SEMELHANA ENTRE OS CRIMES DE FURTO PRIVILEGIADO E O TRFICO DE ENTORPECENTES?LENIO LUIZ STRECK, Procurador de Justia-RS, Doutor e PsDoutor em Direito, Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS-RS; Membro Catedrtico da Academia Brasileira de Direito Constitucional; Presidente de Honra do Instituto de Hermenutica Jurdica; Professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros, de Verdade e Consenso (ED. Lmen Jris); Hermenutica Jurdica E(m) Crise (Livraria do Advogado), Interceptaes Telefnicas (Livraria do Advogado). Editor do site www.leniostreck.com.br.

1. Consideraes iniciais: situando o problema a opo do legislador constituinte em combater determinadas condutas por intermdio do direito penalO contedo do debate acerca de qual sentido que deve tomar, no interior do Estado Democrtico (e Social) de Direito, o modelo penal e processual penal brasileiro vem mantendo acesa uma celeuma filosfica ainda que no explcita , a partir de dissensos que envolvem concepes de vida e modos-de-ser-no-mundo centrados nas mais diversas justificaes materiais e espirituais. O substrato de fundo destes embates, entre tradies de pensamento to diversas e, em grande parte dos assuntos, antagnicas, revela uma contraposio ainda mais fundamental consistente em um conflito quanto aos bens jurdicopenais que efetivamente merecem proteo penal nesta quadra da histria.1 Ao contrrio do que acontece na maioria das Constituies contemporneas, estes conflitos esto positivados no texto constitucional brasileiro. Isso implica a tomada de atitudes por parte do legislador ordinrio. Ocorre, entretanto, que o legislador, ao lado da doutrina e da jurisprudncia ptrias, continua atrelado ao paradigma liberal-individualista, podendo-se perceber, nestes vinte anos de Constituio compromissria e social, entre outros aspectos,

a) certa dificuldade de coexistncia de determinados princpios e valorestradicionalmente imputados ao direito penal pelas vertentes liberais-iluministas, caracteristicamente individualistas; e1

Nesse sentido, ver Streck, Lenio Luiz e Copetti, Andr. O direito penal e os influxos legislativos psConstituio de 1988: um modelo normativo e ecltico consolidado ou em fase de transio?, In: Anurio do Programa de Ps-Graduao em Direito da UNISINOS. So Leopoldo, Editora Unisinos, 2003, pp. 255 e segs. 1

b) outra gama de princpios e valores (como defini-los?) que sustentam alegitimidade de novas matrizes normativas dirigidas tutela de bens no individuais. A opo do legislador constituinte em positivar comandos criminalizantes provocou ou deveria ter provocado uma drstica mudana no tratamento dos bens jurdico-penais. Em outras palavras, possvel afirmar que, ao contrrio do que sustentam os penalistas adeptos de posturas minimalistas, o constituinte no albergou a tese da interveno mnima do direito penal, mas, ao contrrio disso, colocou, pelo menos hipoteticamente, a possibilidade de subverso de grande parte de uma hegemonia histrica nas relaes de poder sustentadas e reproduzidas, em no desprezvel parcela, pela aplicao da lei penal. Essa questo vem agravada a partir do comando constitucional de o legislador enquadrar algumas condutas no rol dos crimes hediondos. E com as conseqncias que isso ter. Com efeito, a Constituio do Brasil estabelece:Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: (...) XLIII - a lei considerar crimes inafianveis e insuscetveis de graa ou anistia a prtica da tortura, o trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evit-los, se omitirem;

Despiciendo lembrar, j de incio, uma questo irrefutvel: o comando constitucional (originrio) no pode ser inconstitucional. Do mesmo modo, no h registros, nos tribunais e na literatura penal, de questionamento ao enquadramento, no rol dos crimes hediondos, dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor para falar apenas destes, no explicitados no inciso constitucional. E relembremos por absoluta relevncia que, no caso do trfico de entorpecentes, o legislador constituinte vai ao ponto de vedar a concesso, a esse tipo de crime, de favores legais (v.g., graa e anistia). Tm-se, ento, dois problemas, que se constituem em base para qualquer discusso: - primeiro, est-se diante de hiptese de obrigao constitucional de criminalizar; - segundo, est-se diante de uma vedao constitucional de concesso de favores legais aos traficantes. Parte-se, pois, de limitaes explcitas ao legislador ordinrio. A questo saber as dimenses desses limites do legislador, isto , de que modo deve ser atendido o complexo (e duro) comando constitucional. Nesse sentido, desde logo deve ser apresentada a pergunta: quando da elaborao da Lei 11.343/06, poderia o legislador ter enfraquecido/mitigado a resposta penal conferida s condutas que consubstanciam o trfico de drogas? Ou seja, na medida em que a Constituio Federal, em seu artigo 5, inciso XLIII, prev o crime de trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins como hediondo, proibindo2

graa e anistia, e sendo a Repblica Federativa do Brasil signatria de tratados internacionais que tm como meta o combate a esse crime, poderia o legislador ordinrio, sem apresentar qualquer prognose e em desobedincia aos princpios da integridade, da coerncia e da igualdade (alm da proibio de proteo deficiente), ter concedido favor legal consistente na expressiva diminuio da pena em patamar varivel de 1/6 a 2/3?

2. A necessidade de uma nova viso acerca da questo dos bens jurdicos: a importncia dos princpios da proibio de excesso (bermassverbot) e da proibio de proteo deficiente (Untermassverbot)Tem razo Alessandro Baratta quando esclarece que, no Estado Democrtico de Direito, est-se diante de uma poltica integral de proteo dos direitos. Tal definio permite que se afirme que o dever de proteo estatal no somente vale no sentido clssico (proteo negativa) como limite do sistema punitivo, mas, tambm, no sentido de uma proteo positiva por parte do Estado.2 Isso decorre, obviamente, da evoluo do Estado e do papel assumido pelo direito nessa nova forma de Estado, sob a direo de um constitucionalismo compromissrio e social. por isto que no se pode mais falar to-somente de uma funo de proteo negativa do Estado. Parece evidente que no, e o socorro vem de Baratta, que chama a ateno para a relevante circunstncia de que esse novo modelo de Estado dever dar a resposta para as necessidades de segurana de todos os direitos, tambm dos prestacionais por parte do Estado (direitos econmicos, sociais e culturais) e no somente daquela parte de direitos denominados de prestao de proteo, em particular contra agresses provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas. Perfeita, pois, a anlise de Baratta: ilusrio pensar que a funo do Direito (e, portanto, do Estado), nesta quadra da histria, esteja restrita proteo contra abusos estatais. No mesmo sentido, o dizer de Joo Baptista Machado, para quem o princpio do Estado de Direito, neste momento histrico, no exige apenas a garantia da defesa de direitos e liberdades contra o Estado: exige, tambm, a defesa dos mesmos contra quaisquer poderes sociais de fato. Desse modo, ainda com o pensador portugus, possvel afirmar que a idia de Estado de Direito demite-se da sua funo quando se abstm de recorrer aos meios preventivos e repressivos que se mostrem indispensveis tutela da segurana, dos direitos e liberdades dos cidados.3 Tanto isso verdadeiro que o constituinte brasileiro optou por positivar um comando criminalizador, isto , um dever de criminalizar com rigor alguns crimes, em especial, o trfico de entorpecentes, inclusive epitetando-o, prima facie, de hediondo.

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Cf. Baratta, Alessandro. La poltica Criminal y el Derecho Penal de la Constitucin: Nuevas Reflexiones sobre el modelo integrado de las Ciencias Penales. Revista de la Faculdad de Derecho de la Universidad de Granada, n. 2, 1999, p. 110. 3 Cf. Baptista Machado, Joo. Introduo ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra, Coimbra Editora, 1998. 3

Na verdade, a tarefa do Estado defender a sociedade, a partir da agregao das trs dimenses de direitos protegendo-a contra os diversos tipos de agresses. Ou seja, o agressor no somente o Estado. Dito de outro modo, como muito bem assinala Roxin, comentando as finalidades correspondentes ao Estado de Direito e ao Estado Social, em Liszt, o direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de interveno do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivduo de uma represso desmedurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivduo. Estes so os dois componentes do direito penal: a) o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual; b) e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo custa da liberdade do indivduo.4 Tem-se, assim, uma espcie de dupla face de proteo dos direitos fundamentais: a proteo positiva e a proteo contra omisses estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, como tambm por deficincia na proteo. Nesse sentido, com propriedade Ingo Sarlet assevera que a proteo aos direitos fundamentais:no se esgota na categoria da proibio de excesso, j que vinculada igualmente a um dever de proteo por parte do Estado, inclusive quanto a agresses contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se est diante de dimenses que reclamam maior densificao, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibio de insuficincia no campo jurdico-penal e, por conseguinte, na esfera da poltica criminal, em que encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados."5

No outra a lio do Tribunal Constitucional espanhol quando assevera que los derechos fundamentales no incluyen solamente derechos subjetivos de defensa de los individuos frente al Estado, y garantas institucionales, sino tambin deberes positivos por parte de ste. Enfatiza o aludido tribunal, inclusive, que:[...] la garanta de su vigencia no puede limitarse a la posibilidad del

ejercicio de pretensiones por parte de los individuos, sino que ha de ser asumida tambin por el Estado. Por consiguiente, de la obligacin del sometimiento de todos los poderes a la Constitucin no solamente se deduce la obligacin negativa del Estado de no lesionar la esfera individual o institucional protegida por los derechos fundamentales, sino tambin la obligacin positiva de contribuir a la efectividad de tales4

Cf. Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. Ed. Lisboa, Coleo Veja Universitria, 1998, p. 76 e segs. 5 Cf. Sarlet, Ingo. Constituio e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibio de excesso e de insuficincia. In: Revista de Estudos Criminais n. 12, ano 3. Sapucaia do Sul, Editora Nota Dez, 2003, pp. 86 e segs. Refira-se, tambm, do mesmo autor, o texto revisitado: Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicao das categorias da proibio de excesso e de insuficincia em matria criminal. In: Revista da Ajuris, ano XXXV, n. 109, Porto Alegre, mai. 2008, pp.139-161. Frise-se que o mencionado autor admite a extenso da proibio de proteo deficiente ao processo penal. 4

derechos, y de los valores que representan, aun cuando no exista una pretensin subjetiva por parte del ciudadano. Ello obliga especialmente al legislador, quien recibe de los derechos fundamentales los impulsos y lneas directivas, obligacin que adquiere especial relevancia all donde un derecho o valor fundamental quedara vaco de no establecerse los supuestos para su defensa. [STC 53/1985]

Pois bem, isso significa afirmar e admitir que a Constituio determina explcita ou implicitamente que a proteo dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: por um lado, protege o cidado frente ao Estado; por outro, protege-o atravs do Estado e, inclusive, por meio do direito punitivo uma vez que o cidado tambm tem o direito de ver seus direitos fundamentais tutelados em face da violncia de outros indivduos. Quero dizer com isso que este (o Estado) deve deixar de ser visto na perspectiva de inimigo dos direitos fundamentais, passando-se a v-lo como auxiliar do seu desenvolvimento (Drindl, Canotilho, Vital Moreira, Sarlet, Streck, Bolzan de Morais e Stern) ou outra expresso dessa mesma idia, deixam de ser sempre e s direitos contra o Estado para serem tambm direitos atravs do Estado.6 Insisto: j no se pode falar, nesta altura, de um Estado com tarefas de guardio de liberdades negativas, pela simples razo e nisto consistiu a superao da crise provocada pelo liberalismo de que o Estado passou a ter a funo de proteger a sociedade nesse duplo vis: no mais apenas a clssica funo de proteo contra o arbtrio, mas, tambm, a obrigatoriedade de concretizar os direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigao de proteger os indivduos contra agresses provenientes de comportamentos delitivos, razo pela qual a segurana passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5, caput, da Constituio do Brasil).

3. O direito penal no contexto da necessidade social de proteo de determinados bens jurdicos. O dever estatal de utilizar medidas adequadas consecuo desse desiderato.Afastando qualquer possibilidade de mal-entendidos, parece no haver qualquer dvida sobre a validade da tese garantista clssica (por todos, cito Ferrajoli) no direito penal e no processo penal: diante do excesso ou arbtrio do poder estatal, a lei coloca disposio do cidado uma srie de writs constitucionais, como o habeas corpus e o mandado de segurana. As garantias substantivas no campo do direito penal (proibio de analogia, a reserva legal, etc.) recebem, no processo penal, a sua materializao a partir dos procedimentos manejveis contra abusos, venham de onde vierem. So conquistas da modernidade, representadas pelos revolucionrios ventos iluministas. Portanto, contra o poder do Estado, todas as garantias; enfim, aquilo que denominamos de garantismo negativo. A questo que aqui se coloca, entretanto, relacionase diretamente com a proteo de direitos fundamentais de terceiros em face de atos abusivos dos agentes estatais, notadamente o favor legal concedido aos praticantes de crime6

Cf. Cunha, Maria da Conceio Ferreira da. Constituio e Crime. Porto, Universidade Catlica do Porto, 1995, pp. 273 e segs. 5

de trfico de drogas. De pronto, caberia a pergunta: poderia o legislador descriminalizar um crime como o roubo e o estupro, para citar apenas os casos mais simples? Tais leis descriminalizantes estariam livres de sindicabilidade constitucional? 3.1. O incio da discusso acerca da existncia de dever de proteo Como se sabe, essa polmica acerca dos limites do dever de proteo (penal) por parte do Estado teve origem na Alemanha, quando da Lei de 1975 que descriminalizou o aborto (primeiro caso do aborto). Na verdade, o dever de proteo (Schutzpflicht) passou a ser entendido como o outro lado da proteo dos direitos fundamentais, isto , enquanto os direitos fundamentais, como direitos negativos, protegem a liberdade individual contra o Estado, o dever de proteo derivado desses direitos destina-se a proteger os indivduos contra ameaas e riscos provenientes no do Estado, mas, sim, de atores privados, foras sociais ou mesmo desenvolvimentos sociais controlveis pela ao estatal. Conforme lembra Dieter Grimm, na Alemanha os deveres de proteo so considerados a contraparte da funo negativa dos direitos fundamentais. Isso explica por que o dever de proteo no pode ser visto como outra palavra para os direitos econmicos e sociais. O Schutzplicht tem a funo de proteo dos direitos fundamentais de primeira dimenso, isto , das liberdades tradicionais. A preocupao recai nos indivduos e no no bem estar social. Grimm lembra ainda que no nenhuma novidade o fato de os bens protegidos pelos direitos fundamentais no serem, ameaados apenas pelo Estado, mas tambm por pessoas privadas. O Estado deve a sua existncia a esse fato. Ele sempre retirou sua legitimidade da circunstncia de salvaguardar os cidados contra ataques estrangeiros ou de outros indivduos. At o momento em que a proteo conferida pelas leis em geral pareceu suficiente, no aflorou a questo sobre a existncia de uma exigncia constitucional de que tal lei fosse editada. No por acaso que a idia de um Schutzplicht especfico tenha surgido pela primeira vez quando o legislador aboliu uma lei criminal de proteo, h muito tempo existente, da vida humana em desenvolvimento.7 Assim, na Alemanha, h uma distino entre os dois modos de proteo de direitos: o primeiro o princpio da proibio de excesso (bermassverbot) funciona como proibio de intervenes; o segundo o princpio da proibio de proteo insuficiente (Untermassverbot) funciona como garantia de proteo contra as omisses do Estado, isto , ser inconstitucional se o grau de satisfao do fim legislativo for inferior ao grau em que no se realiza o direito fundamental de proteo.8 A efetiva utilizao da Untermassverbot (proibio de proteo deficiente ou insuficiente) na Alemanha deu-se com o julgamento da descriminalizao do aborto (BverfGE 88, 203, 1993), com o seguinte teor:O Estado, para cumprir com o seu dever de proteo, deve empregar medidas suficientes de carter normativo e material, que permitam

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Cf. Grimm, Dieter. A funo protetiva do Estado. In: A Constitucionalizao do Direito. Lumen Juris, 2007, pp. 149 e segs. 8 Nesse sentido, ver Canaris, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra, Almedina, 2003. 6

alcanar atendendo contraposio de bens jurdicos uma proteo adequada, e como tal, efetiva (Untermassverbot). (...) tarefa do legislador determinar, detalhadamente, o tipo e a extenso da proteo. A Constituio fixa a proteo como meta, no detalhando, porm, sua configurao. No entanto, o legislador deve observar a proibio de insuficincia (...). Considerando-se bens jurdicos contrapostos, necessria se faz uma proteo adequada. Decisivo que a proteo seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteo adequada e eficiente e, alm disso, basear-se em cuidadosas averiguaes de fatos e avaliaes racionalmente sustentveis. (...).

Desse modo, duas indagaes se pem: - primeiro, no caso em anlise (diminuio da pena de 1/6 a 2/3 aos criminosos condenados por trfico de drogas que ostentem bons antecedentes e a condio de primariedade, desde que no comprovada a dedicao a prticas criminosas e o envolvimento com organizao criminosa), est-se em face de uma proteo insuficiente por parte do legislador (e, portanto, por parte do Estado)? - segundo, em sendo a resposta positiva, o Poder Judicirio, ao aplicar tbula rasa referida benesse legal, no estar, igualmente, protegendo insuficientemente os direitos de terceiros? Na Alemanha discutiu-se muito tempo quando em face da dicotomia bermassverbot-Untermassverbot se haveria um direito subjetivo observao do dever de proteo ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental proteo, questo que ficou resolvida com a resposta dada pelo Tribunal Constitucional, mormente no caso BverfGE 88, 203, 1993. Doutrina e jurisprudncia entendem que o dever de proteo pode ser classificado do seguinte modo: a) o Verbotspflicht, que significa o dever de se proibir uma determinadaconduta;

b) o Sicherheitspflicht, que significa, em linhas gerais, que o Estado tem o dever c)de proteger o cidado contra ataques provenientes de terceiros, sendo que, para isso, tem o dever de tomar as medidas de defesa; o Risikopflicht, pelo qual o Estado, alm do dever de proteo, deve atuar com o objetivo de evitar riscos para o indivduo.9

Trata-se da nova concepo do direito esculpido no Estado Democrtico de Direito. As lies do passado e os fracassos do direito diante da poltica fizeram com que o direito assumisse um acentuado grau de autonomia. E o direito penal no ficou imune a essa nova perspectiva, o que pode ser percebido pela obrigao de proteger o cidado a partir de atitudes negativas e positivas, chegando por vezes ao limite da obrigao de9

Ver, para tanto, Richter, Ingo; Schuppert; Gunnar Folke. Casebook Verfassungsrecht. 3.ed. Mnchen, 1996, p. 33 e segs; Klein, Eckart. Grundrechtlicheschutzplichtdesstaates, In: Neue Juristische Wochenschrift, 1989; ver tambm voto Min. Gilmar Mendes na ADIn 3510, em que o assunto invocado na questo das clulas embrionrias. 7

criminalizar. E, claro, tais circunstncias trazem conseqncias relao entre legislao e jurisdio. 3.2. Da sensvel diminuio da liberdade de conformao do legislador no constitucionalismo contemporneo at a obrigao de criminalizar; da antiga discricionariedade necessidade de estabelecer justificativas (prognoses) na elaborao das leis. possvel afirmar, desse modo, que o legislador, em um sistema constitucional que reconhece efetivamente o dever de proteo10 do Estado, no est mais livre para decidir se edita determinadas leis ou no. Nesse sentido, alis, j decidiu o Tribunal Constitucional espanhol (embora a Constituio de Espanha nem de longe estabelea mandado de criminalizao como estabelece a brasileira, na especificidade combate ao trfico de entorpecentes), esclarecendo que:En rigor, el control constitucional acerca de la existencia o no de medidas alternativas menos gravosas [], tiene um alcance y una intensidad muy limitadas, ya que se cie a comprobar si se ha producido un sacrificio patentemente innecesario de derechos que la Constitucin garantiza [], de modo que slo si a la luz del razonamiento lgico, de datos empricos no controvertidos y del conjunto de sanciones que el mismo legislador ha estimado necesarias para alcanzar fines de proteccin anlogos, resulta evidente la manifiesta suficiencia de un medio alternativo menos restrictivo de derechos para la consecucin igualmente eficaz de las finalidades deseadas por el legislador, podra procederse a la expulsin de la norma del ordenamiento. Cuando se trata de analizar la actividad del legislador en materia penal desde la perspectiva del criterio de necesidad de la medida, el control constitucional debe partir de pautas valorativas constitucionalmente indiscutibles, atendiendo en su caso a la concrecin efectuada por el legislador en supuestos anlogos, al objeto de comprobar si la pena prevista para un determinado tipo se aparta arbitraria o irrazonablemente de la establecida para dichos supuestos. Slo a partir de estas premisas cabra afirmar que se ha producido um patente derroche intil de coaccin que convierte la norma en arbitraria y que socava los principios elementales de justicia inherentes a la dignidad de la persona y al Estado de Derecho. [55/1996] (grifo nosso)

Isto significa afirmar que o legislador ordinrio no pode, ao seu bel prazer, optar por meios alternativos de punio de crimes ou at mesmo pelo afrouxamento da persecuo criminal sem maiores explicaes, ou seja, sem efetuar prognoses, isto , a exigncia de prognose significa que as medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteo adequada e eficiente e, alm disso, basear-se em cuidadosas averiguaes de fatos e avaliaes racionalmente sustentveis. No h grau zero para o estabelecimento de criminalizaes, descriminalizaes, aumentos e atenuaes de penas. Para ser mais claro: o comando explcito de criminalizao obriga o legislador a explicitar as razes pelas quais promoveu essa drstica reduo de pena aos traficantes que ostentem primariedade. Refira-se que, a demonstrar a situao em que se encontra o10

Veja-se, para tanto, os diferentes modos de proteo j citados: Verbotspflicht, Sicherheitspflicht e Risikopflicht. 8

pas, e, logo, a impossibilidade de qualquer prognose no sentido de aplacar a represso aos crimes que viabilizam a disponibilizao de drogas populao, segundo o Relatrio Mundial sobre Drogas 2008, o Brasil o segundo maior consumidor de cocana das Amricas, com 870 mil usurios, atrs, apenas, dos Estados Unidos, em que a quantidade de usurios alcana os seis milhes. As pesquisas apontam tambm para um aumento, entre 2001 e 2005, no consumo da droga e que as crescentes atividades de grupos que traficam cocana nos Estados da regio sudeste impulsionam a oferta da droga. Aponta, ainda, o relatrio que o territrio do Brasil constantemente explorado por organizaes criminosas internacionais que buscam pontos de rota para envio de cocana proveniente da Colmbia, Bolvia e Peru para a Europa, sendo provvel que isso tenha trazido mais cocana para o mercado local. Assim, se prognose existe, esta aponta para o lado contrrio do pensado pelo legislador. Mais ainda, h que se lembrar a existncia de uma circunstncia que coloca o caso sob anlise em uma categoria especial: enquanto as demais Constituies do mundo no especificam como os deveres de proteo devem ser supridos, no Brasil, no caso especfico dos crimes hediondos (e mais especificamente ainda, no caso do trfico de entorpecentes), a Constituio clara ao obrigar a criminalizao (e, repita-se, ao mesmo tempo, ao determinar a vedao de favores legais como a graa e a anistia). Isso significa que o grau de liberdade de conformao, especialmente no caso da criminalizao dos crimes de tortura, terrorismo e trfico de entorpecentes fica drasticamente diminudo. Somente a partir de amide prognose que o legislador poderia apresentar proposta com tal grau de radicalidade. Nesse sentido, aponto para a diferena entre o caso da aplicao da Untermassverbot no caso do aborto na Alemanha e o caso da Lei 11.343/06 sob comento: enquanto naquele caso no havia determinao explcita de criminalizao no texto da Grundgesetz, neste existe um comando da Constituio brasileira que de to drstico chega a proibir a concesso de graa e anistia. Mas, poder-se-ia indagar e certamente este o ponto de defesa da prevalncia da lei: o dever de criminalizar constante na Constituio e a vedao de favores legais alcanaria o caso sob comento? Ou seja, possvel dizer que o legislador no estava autorizado a conceder a benesse do 4 do artigo 33 da Lei 11.343/06? Lembremos aqui novamente as palavras de Dieter Grimm, ao dizer que se configura a proibio de excesso quando o legislador vai longe demais; e a proibio de proteo insuficiente, quando o legislador faz muito pouco. Isto , a questo saber, nesta segunda hiptese, se o legislador fez muito pouco para proteger o direito ameaado. Este ponto.

4. De como o pargrafo 4 do artigo 33 da Lei 11.343 viola o princpio da proibio de proteo insuficiente e a existncia de precedentes da aplicao da tese da Untermassverbot em terrae brasilis.J no novidade, no Brasil, a incidncia do princpio da proibio de proteo insuficiente. Foi aplicada, v.g., no caso do Recurso Extraordinrio n 418.376,11 em11

O voto do Min. Gilmar Mendes refere doutrina de Ingo Sarlet, (Constituio e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibio de excesso e de insuficincia. In: Revista de Estudos Criminais n. 12, ano 3. Sapucaia do Sul, Editora Nota Dez, 2003, pp. 86 e segs) e de Lenio Streck (Bem jurdico e Constituio: da Proibio de Excesso (bermassverbot) Proibio de Proteo Deficiente 9

especial quando do voto do Ministro Gilmar Mendes, considerando inconstitucional, por violar a Untermassverbot, o art. 107, VII do Cdigo Penal, que trazia o favor legal de extino da punibilidade, nos crimes contra os costumes (definidos nos Captulos I, II e III do Ttulo VI da Parte Especial do Cdigo Penal), pelo casamento do agente com a vtima. Ficou ntido no voto do Min. Gilmar uma espcie de ruptura paradigmtica, no sentido de que o legislador ordinrio no possui blindagem e liberdade absoluta para conceder favores legais a criminosos. No caso do RE n 418.376, tratava-se de dispositivo penal que, ao conceder o favor legal de extino da punibilidade do crime de estupro nos casos de casamento da vtima com terceiro ou com o prprio autor, nitidamente protegeu de forma insuficiente o bem jurdico dignidade da pessoa humana. Tambm o Tribunal de Justia do Estado de So Paulo vem aplicando, reiteradas vezes, o aludido princpio (veja-se, exemplificativamente, o MS 893.436-3/9-00 SP). Mais recentemente, no rumoroso caso do julgamento das clulas-tronco embrionrias, a tese foi aplicada, na integra, quando da apreciao da ADIn 3510, pelo Min. Gilmar Mendes, Presidente da Corte Suprema:O presente caso oferece uma oportunidade para que o Tribunal avance nesse sentido. O vazio jurdico a ser produzido por uma deciso simples de inconstitucionalidade/nulidade dos dispositivos normativos impugnados torna necessria uma soluo diferenciada, uma deciso que exera uma funo reparadora ou, como esclarece Blanco de Morais, de restaurao corretiva da ordem jurdica afetada pela deciso de inconstitucionalidade. Seguindo a linha de raciocnio at aqui delineada, deve-se conferir ao art. 5 uma interpretao em conformidade com o princpio da responsabilidade, tendo como parmetro de aferio o princpio da proporcionalidade como proibio de proteo deficiente (Untermassverbot). Conforme analisado, a lei viola o princpio da proporcionalidade como proibio de proteo insuficiente (Untermassverbot) ao deixar de instituir um rgo central para anlise, aprovao e autorizao das pesquisas e terapia com clulas-tronco originadas de embrio humano. O art. 5 da Lei n 11.105/2005 deve ser interpretado no sentido de que a permisso da pesquisa e terapia com clulas-tronco embrionrias, obtidas de embries humanos produzidos por fertilizao in vitro, deve ser condicionada prvia aprovao e autorizao por Comit (rgo) Central de tica e Pesquisa, vinculado ao Ministrio da Sade. Entendo, portanto, que essa interpretao com contedo aditivo pode atender ao princpio da proporcionalidade e, dessa forma, ao princpio da responsabilidade.

4.1. Da especificidade do dispositivo Portanto, em sendo perfeitamente cabvel a transposio do princpio do direito alemo para terrae brasilis, deve-se examinar a adequao do dispositivo da Lei 11.343/06(Untermassverbot): de como no h blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito, vol 80, ano 2004, pp. 303-345). 10

que probe o trfico de entorpecentes. Assim, tem-se que o artigo 33 define o crime e a pena (05 a 15 anos), revogando a lei anterior (Lei n 6.368/76), que estabelecia a pena mnima de 03 anos. Veja-se o ocorrido: o legislador, depois de aumentar a pena mnima, curiosamente promoveu, no pargrafo quarto do mesmo artigo, um retrocesso, a ponto de alar a nova pena mnima de 05 anos a um patamar inferior a 02 anos (na realidade, a pena pode descer ao patamar de 1 ano e 8 meses), bem abaixo da antiga pena mnima (03 anos). Com efeito:Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor venda, oferecer, ter em depsito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar: Pena - recluso de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. 1 Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expe venda, oferece, fornece, tem em depsito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar, matria-prima, insumo ou produto qumico destinado preparao de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matria-prima para a preparao de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administrao, guarda ou vigilncia, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar, para o trfico ilcito de drogas. (...) 4 Nos delitos definidos no caput e no 1 deste artigo, as penas podero ser reduzidas de um sexto a dois teros, vedada a converso em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primrio, de bons antecedentes, no se dedique s atividades criminosas nem integre organizao criminosa.

Antes de tudo, evidente que no discutirei a hiptese de trfico bagatelar ou outras coisas do gnero. No parece que essa discusso deva tomar lugar aqui, uma vez que trfico insignificante atpico e, neste caso, estar-se-ia trabalhando com a contradio secundria do problema de um crime considerado hediondo pela Constituio. O que deve ser aqui considerado diz respeito determinao legislativa que veio a aplacar/mitigar a represso penal do crime de trfico ilcito de entorpecentes. No desarrazoado afirmar que a punio insuficiente para um crime de extrema gravidade e reprovabilidade equivale impunidade. Ou, em outras palavras, equivale a no aplicao do comando constitucional de criminalizar. Na verdade, o legislador banaliza a punio do trfico, nesse particular, ao tempo em que a Constituio aponta explicitamente para o outro lado, isto , para uma atuao eficaz do Estado na represso do trfico de entorpecentes.

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Dito de outro modo, a Constituio Federal da Repblica do Brasil estabelece diretrizes de poltica criminal a serem, necessariamente, seguidas quando da edio de leis penais no exerccio da atividade legiferante. Com base em tal premissa, o legislador no dotado de absoluta liberdade na eleio das condutas que sero alvo de incriminao e nem, tampouco, na escolha dos bens jurdicos que sero objeto de proteo penal. Em decorrncia, tambm no pode o Poder Legislativo deliberar sobre a descriminalizao de normas protetivas de bens jurdicos com manifesta dignidade constitucional. Por isso, o legislador ordinrio, ao conceder o favor legal de desconto da pena com o teto de 2/3, extrapolou sua competncia, a ponto de se poder dizer que tal atitude equivale desproteo do bem jurdico ofendido pela conduta de quem pratica o crime de trfico ilcito de entorpecentes. A determinao constitucional expressa, no sendo possvel a partir do que vem consagrado no artigo 5o, XLIII interpretar o contrrio do que est disposto no texto constitucional. Trata-se de uma questo de fcil resoluo hermenutica. A fora normativa da Constituio no pode ser esvaziada por qualquer lei ordinria. Por isso, h que se levar a srio o texto constitucional. Veja-se que no h similitude no Cdigo Penal. Crimes graves como o roubo nem de longe permitem diminuio de pena no teto de 2/3. Na verdade, o teto de 2/3 de desconto da pena transforma o crime de trfico ilcito de entorpecentes em crime equiparvel ao furto qualificado, para citar apenas este. A propsito, cumpre lembrar que o ordenamento jurdico considera como de menor potencial ofensivo crimes cujas penas mximas no ultrapassam 02 anos de recluso.12 Acrescento, ainda a partir da anlise de todo o Cdigo Penal que so rarssimas, em nosso sistema, as causas de diminuio de pena que alcanam o patamar de 2/3. Com efeito, tm-se, na parte geral, as minorantes genricas da tentativa e do arrependimento posterior, que alcanam esse quantum de desconto desde que e aqui se enfatize na primeira, o iter criminis recm tenha iniciado e, na segunda, restrita a crimes sem violncia ou grave ameaa pessoa, haja reparao do dano ou restituio da coisa, por ato voluntrio do agente, at o recebimento da denncia. E s. J na parte especial do Cdigo, verifico que quando algum comete um crime de homicdio impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domnio de violenta emoo veja-se que (a) no basta a paixo e que (b) a reao deve ser imediata injusta provocao da vtima a pena pode ser reduzida em, no mximo, 1/3. Ainda, maior parcela dos crimes, mesmo aqueles que no ostentam grande gravidade, no conferida qualquer benesse especfica de diminuio de pena. Observo, alm disso, que a primariedade uma vez aliada no-comprovao de envolvimento em organizao criminosa deixa de ser, no crime de trfico ilcito de entorpecentes, uma causa que inviabiliza a agravao da pena para se tornar uma causa especial de sua diminuio, circunstncia que subverte a parte geral do Cdigo Penal. No fundo, trata-se de uma questo que beira teratologia, quando se constata que o legislador ordinrio foi buscar na figura do furto privilegiado artigo 155, 2o, do Cdigo Penal a inspirao (sic) para diminuir a pena do crime de trfico ilcito de entorpecentes.12

E, com o advento da Lei 11.313/06, no mais h dvidas sobre isso, uma vez que suprimido o pargrafo nico do artigo 2 da Lei 10.259/01 e alterada a disposio do artigo 61 da Lei n 9.099/95.

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Sim, porque esse o furto privilegiado o nico crime que recebe tratamento anlogo ao recebido pelo trfico de entorpecentes, verbis:Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mvel: Pena - recluso, de um a quatro anos, e multa. (...) 2 - Se o criminoso primrio, e de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de recluso pela de deteno, diminu-la de um a dois teros, ou aplicar somente a pena de multa.

Ou seja, o legislador, ao desvalorar a ao, na falta de outro elemento, socorreu-se do mesmo critrio utilizado para abrandar a punio nos crimes de furto cujo objeto material de pequeno valor econmico. Mutatis mutandis, os parmetros para a avaliao do desvalor da ao nessas duas modalidades delitivas o crime hediondo de trfico de drogas e o singelo crime de furto por mais espcie que isto possa causar, so idnticos. E mais: ao se considerar a alterao legislativa e, logo, a benesse instituda no 4 da Lei 11.343 como vlidas, ter-se- como legtima a atuao do legislador em futuras alteraes legislativas na mitigao da proteo conferida a um crime equiparado, por fora constitucional, a crime hediondo. Veja-se, assim, a situao teratolgica e me permito utilizar novamente essa adjetivao, porque merecida que se delineia em terrae brasilis: a Constituio exige tratamento mais rigoroso a determinados crimes e o legislador atenua, sem qualquer autorizao/justificao/ressalva constitucional, a proteo conferida a tais crimes. Ora, isso ler a Constituio de acordo com a lei ordinria! Pior do que isso, sem qualquer prognose. E no precisamos aqui recordar, por tudo o que j avanamos em termos de teoria constitucional e de controle de constitucionalidade, o caso Marbury v. Madison para saber que uma lei ordinria no pode alterar a Constituio! 4.2. De como a atenuao da pena no patamar de 2/3 viola os princpios da igualdade e da integridade do direito e de como o dispositivo repristina o direito penal do autor. Alm de infringir o princpio da proibio de proteo insuficiente (Untermassverbot) e, por conseqncia, o dever de proteo (Schutzplicht) nsito aos ditames do Estado nesta quadra da histria, o dispositivo sob comento viola o princpio da coerncia, da integridade e da igualdade. Uma das exigncias do direito no Estado Democrtico a manuteno de sua integridade e de sua coerncia. Veja-se que a integridade duplamente composta, conforme Dworkin13: um princpio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princpio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto o possvel, seja vista como coerente nesse sentido. A exigncia da integridade (princpio), no dizer de Dworkin, condena, veementemente, as leis conciliatrias e as violaes menos clamorosas desse ideal como uma violao da natureza associativa de sua profunda organizao. A integridade uma forma de virtude poltica, exigindo que as13

Ver, para tanto, Dworkin,Ronald. Laws Empire. Londres, Fontana Press, 1986, cap. VI. 13

normas pblicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possvel, de modo a expressar um sistema nico e coerente de justia e equanimidade na correta proporo, diante do que, por vezes, a coerncia com as decises anteriores ser sacrificada em nome de tais princpios (circunstncia que assume especial relevncia nos sistemas jurdicos como o do Brasil, em que os princpios constitucionais transformam em obrigao jurdica um ideal moral da sociedade). O carter nitidamente conciliatrio do aludido pargrafo 4 afronta a integridade e a igualdade no tratamento dado pelo legislador no combate criminalidade. No dizer de Dworkin, uma lei considerada conciliatria quando mostra incoerncia de princpio, podendo ser justificada se que pode somente com base em uma distribuio eqitativa do poder poltico entre as diferentes faces morais. Por isso ele diz que certamente quase todos ns ficaramos consternados diante de um direito conciliatrio que tratasse crimes similares de forma diferenciada, em bases arbitrrias. O que a integridade condena a incoerncia de princpio entre os atos do Estado personificado.14 Veja-se que, nos Estados Unidos, o ideal de integridade levado ao patamar de princpio constitucional, pois se considera que a clusula de igual proteo da Dcima Quarta Emenda veda conciliaes internas sobre questes de princpios importantes. Essa clusula utilizada pela US Supreme Court para declarar inconstitucionais leis que conferem tratamento diferenciado a diferentes grupos ou pessoas (por exemplo, em termos de direitos fundamentais).15 Nessa linha, possvel certificar que o aludido pargrafo 4 que estabelece tratamento absolutamente diferenciado a acusados primrios e em patamar absolutamente desproporcional (incoerente, pois) fere o princpio da igualdade. Afinal, no h explicao coerente ou razovel que justifique, ao mesmo tempo, o aumento da pena mnima de 03 para 05 anos e, na mesma lei, a diminuio do patamar de 2/3 para os rus primrios, sem que, para tanto, haja precedentes na legislao brasileira e sem que tenha havido qualquer preocupao com os efeitos colaterais de tal deciso (v.g., a aplicao analgica do favor legal a todos os demais crimes hediondos e, por extrema obviedade, aos crimes que no so hediondos). Ou seja, a caracterstica conciliatria do referido dispositivo fere de morte o princpio da igualdade nas suas duas frentes: a um, na instituio de indevidas diferenciaes; a dois, a sua conseqncia, decorrente da aplicao analgica dessas indevidas diferenciaes. Visto sob qualquer desses escopos, a lei no resiste integridade legislativa e jurisdicional. Veja-se que a partir dos princpios da coerncia e da integridade,16 tendo-se por pressupostos os assentados fatos de que o legislador, at a revogao da Lei 6.368/76, no concebia o desconto da pena e de que a pena mnima era de 03 anos de recluso, torna-se absolutamente paradoxal, contraditrio, incoerente e contrrio a qualquer possibilidade de integridade aprovar uma nova lei que aumenta a pena mnima e, ao mesmo tempo, possibilita uma diminuio, por condio pessoal do ru, de at 2/3 da pena, recolocando, assim, a pena mnima em patamar inferior ao que existia anteriormente. Ora, se o legislador resolve aumentar a pena mnima, porque deve ter motivos (prognose) para tal. Se ele aumenta em mais da metade a pena mnima, no tem sentido, ao14 15 16

Idem, ibidem. Idem, ibidem. Cf. Dworkin, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, Mass., Harvard Universiy Press, 1978. 14

mesmo tempo, diminuir a pena em percentual maior que prprio aumento. Simples, pois! E, na medida em que no h qualquer prognose do legislador, tem-se que se deve partir dos motivos implcitos que o levaram a aumentar a pena mnima para 05 anos, isto , a penalizao era diminuta e a pena mnima no atendia minimamente o desvalor da ao de traficar ilicitamente (observe-se, conforme j mencionado, que estatsticas e relatrios comprovam o aumento do consumo de drogas e do trfico ilcito de entorpecentes no pas). Pois exatamente a partir dessa motivao que a diminuio repita-se, totalmente excepcional, porque assistemtica (bastando examinar o restante do Cdigo Penal e da legislao) inconstitucional. Pretendendo ser mais claro: a quebra do princpio da integridade provoca tambm retrocesso social no combate ao crime de trfico de entorpecente. Ou seja, uma vez eleita pelo prprio legislador constituinte a via da criminalizao (sem direito sequer a graa e anistia) do crime de trfico de drogas e j estando em vigor legislao que atendia ao comando constitucional, parece razovel afirmar que a nova lei desatendeu aos propsitos constituintes. A menos que o mesmo legislador houvesse comprovado que o favor legal, com fortes evidncias, proporcionaria uma diminuio da ocorrncia do crime to fortemente combatido pelo legislador constituinte. Observe-se, ainda, que a anlise no esgota seus efeitos na apreciao singularizada dos crimes de trfico ilcito de entorpecentes. A se aceitar como legtima e vlida e, portanto, imune ao controle de constitucionalidade a atuao do Poder Legislativo quando da previso de diminuio da pena do crime de trfico de drogas de acordo com a condio pessoal do agente (como ocorre no caso em pauta), teremos que anuir com uma eventual descriminalizao ou diminuio da proteo a critrio do legislador infraconstitucional de crimes como a tortura e o roubo qualificado pelo resultado morte. Enfim, s maiorias parlamentares de ocasio competir determinar a necessidade de represso aos crimes hediondos e equiparados. E isso no pode, de forma alguma, ser aceito em um Estado Constitucional. A agravar a situao, a Lei 11.343/06 trouxe como critrios de diminuio de pena circunstncias concernentes a um ultrapassado direito penal do autor, no mais aceito em um Estado que se declare Democrtico de Direito. A propsito, a doutrina do direito penal do autor, adotada com prevalncia pela Escola de Kiel, surgida durante a vertente nacionalsocialista da Alemanha e utilizada para legitimar a represso durante o perodo nazista , agora, tambm de forma equivocada, invocada para a concesso de benefcios. Veja-se, pois, a dimenso do paradoxo! Assim como no dado ao Fhrer a preponderncia sobre o prprio direito, no se pode proporcionar, em um Estado Constitucional e Democrtico de Direito, ao legislador poderes de contrariar a base normativa do Estado, ou seja, a sua Constituio. Aqui, francamente violado o princpio da igualdade: o indivduo que trafica e que for primrio tem tratamento absolutamente diferenciado daquele que no ostenta essa peculiaridade. Para comprovar a assertiva anterior: seria possvel conferir ao genocida ou ao latrocida primrio, sem antecedentes criminais e sem envolvimento comprovado em organizao criminosa, o favor legal de diminuio de 2/3 da pena? A resposta, que parece simples, conduz soluo da questo proposta: a Constituio no permite ao legislador tal

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liberdade de conformao. Tampouco o sistema penal que deve necessariamente ser entendido como um sistema aceitaria tal descritrio na proteo dos bens jurdicos. Ainda na mesma linha, considerando-se o princpio da igualdade, a pergunta que deve necessariamente ser feita : por que no aplicar o favor legal aos demais crimes hediondos? E, melhor ainda, por que no aplicar esse favor legal para aqueles condenados por crimes no hediondos? Lembremos da discusso da extenso da Lei da Tortura para os crimes hediondos no que tange progresso de regime...! Absolutamente estranha essa preocupao mitigadora e conciliatria do legislador para com o trfico de entorpecentes. No limite, em face do dever de criminalizao e do fato de que esta no pode estar dissociada da pena de priso stricto sensu, no possvel compatibilizar as circunstncias de se tratar de crime hediondo e, ao mesmo tempo, de crime apenado com pena abstrata mnima que autorizaria tanto a substituio da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos quanto fixao da pena em regime inicial aberto17. Claro que a determinao das penas abstratas tarefa para o legislador, mas o estabelecimento de pena mnima que autorizaria o cumprimento da pena, desde logo, em liberdade um despropsito. Com efeito, no se pode conceber que a um crime cuja previso de punio decorre, dada a relevncia e a natureza do bem jurdico protegido, da prpria Constituio Federal, possa ser determinada uma pena que, no sistema no fosse a pontual vedao estabelecida pelos artigos 2 da Lei 8072/90 e 44 da Lei 11.343/06 , implicaria a substituio, de plano, por penas restritivas de direitos ou o cumprimento da pena em regime prisional aberto, o qual, se fundamenta em autodisciplina e em senso de responsabilidade do condenado. Para tanto, basta a constatao de que permitido que o apenado trabalhe fora do estabelecimento prisional, sem qualquer vigilncia, permanecendo recolhido apenas durante o perodo noturno e nos dias de folga: trata-se, pois, de regime prisional destinado reinsero do indivduo na sociedade. Ou seja, a benesse legislativa transforma o crime equiparado a hediondo em um delito equiparado a crimes de menor gravidade em que em que se autoriza o cumprimento da pena, desde o incio, em liberdade; equipara, analisando por outro enfoque, o trfico de entorpecentes com crimes que autorizam a reinsero direta do apenado em liberdade. E isso absolutamente incompatvel com a determinao constitucional e com os tratados internacionais firmados para o controle e represso do crime de trfico de entorpecentes. Observo e aqui insisto que o condenado pelo crime de trfico beneficiado pelo favor legal institudo no 4o do artigo 33 da Lei 11.343/06, apenas no ficar em liberdade em funo de vedaes que excepcionam a regra geral. Eis a na prpria edio de regras excepcionais o reconhecimento da situao deturpada e desproporcional que se criou no ordenamento. Mais do que isso, o patamar mnimo estabelecido na Lei 11.343/06 fosse a sano aplicada no mnimo legal autorizaria, nos termos do artigo 77 do Cdigo Penal, a Suspenso Condicional da Pena. E absolutamente incongruente equiparar as penas de17

Veja-se, nesse sentido, que os artigos 44, I e 33, 1, alnea c, ambos do Cdigo Penal, respectivamente, autorizam a substituio da pena privativa de liberdade e o cumprimento da pena em regime inicial aberto quando de penas no superiores a 04 anos de recluso. 16

crimes que permitem a substituio da pena e o regime aberto desde logo (v.g., dano, furto, estelionato, apropriao indbita, calnia, injria, difamao, etc.) com um crime do quilate do trfico. 4.3. O falso dilema representado pela alegao de que a anulao de leis penais favorveis ao ru, via controle de constitucionalidade (difuso e/ou concentrado), viola o princpio da legalidade Ainda dominante no mbito do direito penal brasileiro a tese de que qualquer lei que venha a trazer benefcios ao acusado est imune ao controle de constitucionalidade, porque isto equivaleria violao do princpio da legalidade. Trata-se de uma viso equivocada, uma vez que o princpio da reserva legal, antes de ser um dispositivo legalpenal, um princpio constitucional. O legislador ordinrio deve obedec-lo cada vez que elabora uma lei. Caso contrrio, existiria uma zona isenta de controle jurisdicional da constitucionalidade. E, assim, seria considerada lcita at mesmo a descriminalizao do crime de estupro. O controle de constitucionalidade das leis uma conquista civilizatria. E, obviamente, no poderia haver leis imunes a sindicabilidade. Fosse verdadeira a tese de que a anulao de uma lei que estabelece favores legais ao acusado fere o princpio da legalidade e estaria criado um enclave penal no interior do direito constitucional. A questo no nova. Por todos, cito o caso do aborto na Alemanha, j mencionado retro, e o julgamento dos soldados da antiga Alemanha Oriental, conhecido como o caso Mauerschtzen, em que, aps a reunificao, um grupo de soldados da antiga RDA foi condenado por homicdio, por atirarem em fugitivos que tentavam ultrapassar o muro de Berlim. O Tribunal Constitucional alemo (Bundesverfassugnsgericht), examinando o recurso, negou-lhe provimento, (BGHSt 39, 1); tambm negou provimento ao recurso dos altos funcionrios da RDA, condenados pelas mortes de fugitivos por minas terrestres (BGHSt 39, 168, entre outros). O Tribunal Constitucional considerou que as condenaes dos acusados pelas instncias ordinrias no violaram o art. 103, 2, da Lei Fundamental alem, que trata do nullum crime, nulla poena, sine lege. No se pode olvidar o recente caso da anulao, por inconstitucionalidade e por malferimento dos tratados internacionais e da Constituio, da lei da obediencia devida, que concedeu anistia aos militares argentinos. A referida lei foi declarada inconstitucional, com votos dos Ministros Ricardo Lorenzetti, Juan Maqueda, Eugnio Zaffaroni 18 e Helena Highton de Nolasco, pela Suprema Corte Argentina, fundamentalmente por violar tratados internacionais, firmados pela Repblica Argentina, de proteo aos direitos fundamentais e de combate tortura e a outros crimes graves. A Corte Argentina decidiu que os delitos que18

Em seu voto, o juiz Eugnio Zaffaroni chama a ateno para a relevante circunstncia de que o art. 29 da Constituio Argentina (El Congreso no puede conceder al Ejecutivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los gobernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni la suma del poder pblico, ni otorgales sumisiones o supremacas por las que la vida, el honor o las fortunas de los argentinos queden a merced de gobiernos o persona alguna. Actos de esta naturaleza llevan consigo uma nulidad insanable, y sujetarn a los que los formulen, consientan o firmen, a la responsabilidad y pena de los infames traidores a la patria..) uma clusula de obrigao de criminalizao, e, exatamente por isso, no poderia o Legislativo ou o Executivo conceder a anistia.

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lesam a humanidade, por sua gravidade, no podem ser objetos de indulto, uma vez que no s afrontam a Constituio, como, tambm, toda a comunidade internacional. Em suma, acabou por reconhecer o dever de proteo, no s por parte do Estado, mas, tambm, por parte de toda a comunidade internacional19. 4.4. A importncia dos tratados internacionais firmados pelo Brasil A par da importncia dos prprios tratados internacionais utilizados como parmetro para a declarao de inconstitucionalidade de leis como a da obediencia devida, na Argentina, j anteriormente assinalada, importa tambm registrar o reforo hermenutico de tais documentos (acordos, tratados, convenes, etc.) para a aferio da invalidade do citado pargrafo 4 do artigo 33 da Lei 11.343/06. Nesse sentido, embora no Brasil essa questo ainda esteja controvertida20 (principalmente no que tange aos tratados e convenes internacionais ratificados anteriormente Emenda Constitucional 45/04), isto , se os tratados internacionais servem, de per si, para a declarao da inconstitucionalidade de legislao ordinria que com eles se confronte, no se pode negar a fora do direito internacional para encontrar respostas e solues para casos anlogos que exsurgem no direito interno. Sua fora hermenutica inegvel. Relembre-se, na especificidade combate ao crime de trfico de entorpecentes, a Conveno das Naes Unidas contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas, concluda e assinada em Viena, internalizada, no Brasil, sob a forma do Decreto n 154, em 1991, que estabelece tendo por preocupao a magnitude e a crescente tendncia da produo, da demanda e do trfico ilcitos de entorpecentes e de substncias psicotrpicas, que representam uma grave ameaa sade e ao bem-estar dos seres humanos e que tm efeitos nefastos sobre as bases econmicas, culturais e polticas da sociedade, e, ainda, a crescente expanso do trfico ilcito de entorpecentes e de substncias psicotrpricas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela explorao de crianas em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condio de instrumentos utilizados na produo, na distribuio e no comrcio ilcitos de entorpecentes e de substncias psicotrpicas, o que constitui um perigo de19

A Suprema Corte Argentina frisou que la consagracin positiva del derecho de gentes en la Constitucin Nacional permite considerar que existe un sistema de proteccin de derechos que resulta obligatorio independientemente del consentimiento expreso de las naciones que las vincula y que es conocido actualmente dentro de este proceso evolutivo como ius cogens. Se trata de la ms alta fuente del derecho internacional que se impone a los Estados y que prohbe la comisin de crmenes contra la humanidad, incluso en pocas de guerra [...]Que, en consecuencia, de aquellas consideraciones surge que los Estados Nacionales tienen la obligacin de evitar la impunidad. La Corte Interamericana ha definido a la impunidad como "la falta en su conjunto de investigacin, persecucin, captura, enjuiciamiento y condena de los responsables de las violaciones de los derechos protegidos por la Convencin Americana" y ha sealado que "el Estado tiene la obligacin de combatir tal situacin por todos los medios legales disponibles ya que la impunidad propicia la repeticin crnica de las violaciones de derechos humanos y la total indefensin de las vctimas y sus familiares" [...]Que lo cierto es que los delitos que implican una violacin de los ms elementales principios de convivencia humana civilizada, quedan inmunizados de decisiones discrecionales de cualquiera de los poderes del Estado que diluyan los efectivos remedios de los que debe disponer el Estado para obtener el castigo. [M. 2333. XLII] 20 Refira-se, nesse sentido, as crticas de doutrinadores internacionalistas ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de 1977, consubstanciado no que se pode chamar de monismo nacionalista moderado, ou seja, na paridade hierrquica entre tratados/convenes internacionais e a lei federal.

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gravidade incalculvel, reconhecendo que os vnculos que existem entre o trfico ilcito e outras atividades criminosas organizadas, a ele relacionadas, que minam as economias lcitas e ameaam a estabilidade, a segurana e a soberania dos Estados e tambm que o trfico ilcito uma atividade criminosa internacional, cuja supresso exige ateno urgente e a mais alta prioridade em seu artigo 3, itens 1, 2 e 4, que os pases/partes que ratificarem o tratado devem adotar as medidas necessrias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno quando cometidos internacionalmente uma srie de condutas caracterizadoras de trfico ilcito de entorpecentes e que devero dispor de sanes proporcionais gravidade dos delitos. No mesmo sentido refiram-se, ainda, as convenes de Genebra para a Represso do Trfico Ilcito das Drogas Nocivas, de 1936, e de Nova York, de 1961, bem como o acordo assinado, entre os pases de Lngua Portuguesa (1997) visando Reduo da Demanda, Preveno do Uso Indevido e Combate Produo e ao Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas, firmado em Salvador. Existe, ainda, uma srie de acordos firmados entre o Brasil e pases como Espanha (1999), Romnia (1999), Peru (1999), Itlia (1997), frica do Sul (1996), Mxico (1996), Estados Unidos (1995), Rssia (1994), para mencionar, exemplificativamente, apenas estes, todos com a finalidade de integrao para preveno, controle e combate do crime de trfico ilcito de entorpecentes.

5. Concluso: a soluo do problema via controle de constitucionalidade concentrado e difusoFalar do lado esquecido do dever de proteo do Estado tarefa difcil e delicada. Afinal, est-se a contrapor e a pr em xeque teses at pouco tempo tidas como imodificveis. Parece bvio que o direito penal um campo especial do direito. Mas, por outro lado, necessrio verificar se o novo paradigma exsurgente do Estado Democrtico de Direito no necessita alterar a antiga contraposio Estado-sociedade ou Estadoindivduo. E por que isto? Porque o Estado no mais inimigo, como j referido saciedade. Trata-se de outro Estado. E, convenhamos, trata-se tambm de outra criminalidade. Tanto o Estado quanto a criminalidade mudaram desde a ruptura provocada pelas teses da Ilustrao. preciso compreender que o grau de autonomia atingido pelo direito aps os seus fracassos decorrentes das duas grandes guerras aponta, agora, mais e mais, para uma co-responsabilidade entre o legislador e o poder de aplicao da lei. A antiga blindagem do legislador e, lembremos que, sem a devida blindagem constitucional, a poltica solapou o direito deve dar lugar a um amplo processo de controle da compatibilidade formal e material da legislao ordinria com as constituies. E qual a razo que justificaria que o direito penal poderia escapar dessa nova concepo/formatao da relao entre os poderes do Estado? Ora, a regra contramajoritria, aplicada nos restritos limites da Constituio, pode, sim, alterar os escopos de determinada norma penal. No fosse assim, o legislador teria total liberdade de conformao. Tais questes devem ser encaradas de frente pelos penalistas e pelos

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constitucionalistas. Entendo, pois, que deve haver a suspenso dos pr-juzos forjados em um imaginrio liberal-individualista. Para ser mais explcito: devemos admitir que o legislador penal comete equvocos e que estes podem trazer malefcios sociedade. Ademais, constitui tarefa do legislador demonstrar, nas hipteses em que deseja abandonar as funes clssicas do direito penal e isso no lhe vedado , as razes pelas quais faz determinadas escolhas. Essa questo assume foros de maior gravidade quando se est em face de um comando explcito de criminalizao, isto , querendo ou no, o legislador no pode deixar de considerar o trfico de entorpecentes como crime de extrema gravidade, ao lado da tortura e do terrorismo. Isso significa dizer que o legislador no poder fazer desvios hermenuticos a partir da utilizao de um afrouxamento que transforma a principal incidncia do delito o trfico stricto sensu em um crime cuja pena pode chegar a menos de 02 anos de recluso, o que, comparvel com as demais penalizaes, escancara esse desvio cometido pela nova lei. Tal circunstncia viola os princpios da integridade, coerncia e igualdade. Alm disso, como bem diz Dworkin, o direito deve ser decidido a partir de argumentos de princpio, e no de polticas (o favor legal de 2/3 nitidamente um aparato legal de convenincia). Certamente tal diminuio no decorre de algum argumento principiolgico...! Alis, no caso em pauta, sequer o legislador apresentou razes para essa estranhssima previso de um favor legal que ele no tem concedido para os demais crimes. evidente que se poder replicar que o legislador ordinrio, ao conceder o favor legis de at 2/3, deixou ao juiz a possibilidade de aplic-lo ou no. Tal questo, contudo, no assume relevncia, uma vez que a tradio jurisprudencial tem apontado para a circunstncia de que, via de regra, o desconto mximo beira a um direito subjetivo do acusado, o que, alis, medida correta. Tambm se poderia argumentar que, assim o fazendo, o legislador no descriminalizou ou tornou impunvel a conduta de um crime hediondo, estando dentro de sua esfera de liberdade de conformao estabelecer esse patamar de at 2/3. Ocorre que, novamente, h que se atentar para o comando de criminalizao constante no inciso constitucional. Ora, se probe-se graa ou anistia, porque no se pode admitir um apenamento equivalente ao conferido aos crimes de menor gravidade de nosso sistema, em que o apenado, como regra, desde j, colocado em liberdade (veja-se que pena poder atingir 01 ano e 08 meses). E, a toda evidncia, no esse o desiderato do constituinte, ou seja, mesmo que se diga que as leis so compostas de vaguezas e ambigidades, h claros limites semnticos que limitam interpretaes despistadoras como a feita pelo legislador da Lei 11.343/06. E no devemos esquecer uma questo das mais relevantes, bvia, mas que merece destaque e lembrana nas palavras de Hans-Heirich Jescheck 21 Die Freiheitsstrafe ist als Rckgrat des Strafensystems bestehen geblieben, da sie fr dir schwere u. die durch Geldstrafe nich ausreichend zu erfassende mittlere Kriminalitt sowie auch fr der huchfigen Rchfall die einzing Reaktion ist. 21

Cf. Jescheck, Hans-Heirich. Lehrbuch des Sttrafrecht. Berlin, Duncker u. Humbolt, 1988, p.678 (a pena privativa de liberdade continua sendo a coluna vertebral do sistema penal, porque a nica reao que pode ser adequada para a criminalidade grave e para a criminalidade mdia no coberta pela multa, assim como para a reincidncia freqente). 20

Por todas as razes enunciadas, padece de inconstitucionalidade o 4 do artigo 33 da Lei 11.343/06, por violao do dever de proteo (Schutzplicht) a partir da proibio da proteo insuficiente (Untermassverbot) e do princpio da igualdade, em face da quebra da integridade do sistema. Assim, I. Em sede de controle concentrado, deve-se declarar a inconstitucionalidade do aludido pargrafo 4 da Lei 11.343/06, com um apelo ao legislador (Appellentscheidung), isto , se o legislador desejar, de fato, conceder favores legais, que o faa sem violar a Constituio Federal e os tratados internacionais formados pelo Brasil; de todo modo, neste caso, o dispositivo resta nulo, rrito, nenhum. II. Em sede de controle difuso (juiz singular e Tribunais), igualmente possvel deixar de aplicar o dispositivo, de dois modos: primeiro, pelo juiz de direito, que poder deixar de aplicar o dispositivo (no Brasil, qualquer juiz pode deixar de aplicar um a lei sob fundamento de sua inconstitucionalidade); segundo, por qualquer Tribunal da federao. Se o Tribunal, por seu rgo fracionrio, optar pela nulidade pura e simples do pargrafo em questo, ter que suscitar o incidente de inconstitucionalidade, nos termos do art. 97 da Constituio. A conseqncia que ao acusado no ser concedido o favor legal de diminuio da pena constante no aludido pargrafo 4. III. A opo pela elaborao de uma deciso redutiva (inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto) por juzes e tribunais Enquanto no for declarado inconstitucional o citado dispositivo ( 4. do art. 33) em sede de controle concentrado para o qual recomendvel que se provoque, de imediato, atravs de ADIn, o Supremo Tribunal Federal parece razovel, de forma opcional e para resolver problemas concretos, incentivar que juzes singulares e rgos fracionrios elaborem sentenas redutivas, a partir do mecanismo da inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto. Isso pode ser feito a partir de subsdios do direito aliengena e da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Com efeito, do direito alemo aprendemos que, por vezes, podemos salvar um texto jurdico, no o declarando inconstitucional, a partir de uma adio de sentido. o caso da verfassunsgskonforme Auslegung (Interpretao Conforme a Constituio). Em outros, retira-se uma das incidncias da norma, isto , na hiptese de se querer expungir da norma um dos sentidos que so contrrios Constituio. Neste caso, estar-se- em face de uma Teilnichtigerklrung ohne Normtextreduzierung (Nulidade Parcial sem Reduo de Texto). Em ambos os casos, no h mutilao formal do texto. Altera-se, apenas, o seu sentido. Uma pergunta, desde logo, se impe: a nulidade parcial sem reduo de texto e a interpretao conforme a Constituio podem ser aplicadas pelo juzo singular e pelos demais Tribunais, ou tal aplicao se afigura como prerrogativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal? Estou convencido de que no h qualquer bice constitucional que impea juzes e tribunais de aplicarem a interpretao conforme e a nulidade parcial sem reduo de texto. Entender o contrrio seria admitir que juzes e tribunais (que no o STF) estivessem obrigados a declarar inconstitucionais dispositivos que pudessem, no mnimo em parte, ser salvaguardados no sistema, mediante a aplicao das citadas tcnicas de controle. Por que um Juiz de Direito que, desde a Constituio de 1891, sempre esteve autorizado a deixar de21

aplicar uma lei na ntegra por entend-la inconstitucional no pode, tambm hoje, em pleno Estado Democrtico de Direito, aplic-la to-somente em parte? O mesmo se aplica aos Tribunais, que, na especificidade da Interpretao Conforme a Constituio e da Nulidade Parcial sem Reduo de Texto, esto dispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade.22 Refira-se que em nada fica maculado esse entendimento em face da recente edio da Smula Vinculante n 10 ("Viola a clusula de reserva de plenrio [CF, artigo 97] a deciso de rgo fracionrio de tribunal que, embora no declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Pblico, afasta a sua incidncia no todo ou em parte.") do Supremo Tribunal Federal. Ela no se aplica Interpretao Conforme e nem Nulidade Parcial de Reduo de Texto. E explico o porqu: assim como uma deciso de Nulidade Parcial sem Reduo de Texto (tambm chamada de deciso de inconstitucionalidade parcial qualitativa,) feita pelo STF no necessita ser enviada ao Senado, no cabe exigir incidente de inconstitucionalidade, no havendo, assim, violao ao full bench (art. 97 da CF). Isso porque, tanto na Interpretao Conforme a Constituio quanto na Nulidade Parcial sem Reduo de Texto, no h expuno de texto ou parte de texto normativo, apenas havendo o afastamento de uma das incidncias do texto. Como h vrios sentidos, e o Tribunal opta por um deles (na Interpretao Conforme h uma adio de sentido), na nulidade parcial qualitativa o resultado hermenutico faz com que o texto permanea com um minus. Na medida em que, em ambas as hipteses, o texto permanece em sua literalidade, no h que se falar em incidente de inconstitucionalidade. Alis, no haveria como operacionalizar o incidente de inconstitucionalidade de um sentido de um texto. Numa palavra, a Smula 10 aplicada apenas aos casos em que h inconstitucionalidade com reduo de texto. III.I. A frmula para a aplicao da nulidade parcial sem reduo de texto. Aplicando a nulidade parcial sem reduo de texto, tem-se que determinado dispositivo inconstitucional se aplicado hiptese x. No caso sob anlise: o artigo 33 da Lei n. 11.343/06 (4.) ser inconstitucional se aplicvel de forma a possibilitar que ao condenado seja aplicada pena mnima inferior a 03 anos de recluso. O dispositivo ser inconstitucional se a sano aplicada vier a contrariar o comando constitucional de resposta rigorosa ao crime de trfico ilcito de entorpecentes, de forma que a defasada pena estabelecida pela legislao anterior Constituio Federal seja, ainda, abrandada, afrontando, assim, os propsitos constitucionais e os tratados assinados e ratificados com o objetivo de punir de forma mais veemente o crime de trfico de entorpecentes. Ou seja, o critrio, em face da nulidade do pargrafo 4 passa a ser o preceito secundrio do art. 12 da Lei 6.368/76, que estabelece a pena mnima de 03 anos para o trfico de entorpecentes. Isto , se a lei anterior estabelecia a pena mnima de 03 anos e no concedia desconto de pena pela qualidade pessoal do acusado (primariedade), a nova lei no poder ser aplicada em patamar que diminua a represso a patamares abaixo da pena mnima anterior.

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Parafraseando Medeiros e Prm, no se justifica aplicar o regime de fiscalizao concreta, ou seja, suscitar o incidente de inconstitucionalidade que o modo previsto no sistema jurdico brasileiro de aferir a constitucionalidade no controle difuso de forma stricto senso aos casos em que esteja em causa to somente a inconstitucionalidade de uma das possveis interpretaes da lei, pois o juzo de inconstitucionalidade de uma determinada interpretao da lei no afeta a lei em si mesma, no, pondo em causa, portanto, a obra do legislador. Cf. Medeiros, Rui. A deciso de inconstitucionalidade. Lisboa, Universidade Catlica, 2000; PRM, Hans Paul. Verfassung und Methodik. Berlin, 1977. 22

Conseqentemente, aplicada a tcnica da nulidade parcial, a pena mnima deve ser de 03 anos. III.II. Justificativa. A possibilidade de fixao de pena mais branda no configura resposta adequada represso do crime de trfico de entorpecentes, conforme comando constitucional do constituinte originrio (mandado de criminalizao, com vedaes a priori). Ou seja, a impossibilidade de fixao de pena inferior a 03 anos de recluso passa a ser condio de possibilidade para a aferio da incidncia do tipo penal. Nesse sentido, especificamente, sobre o modo de aplicao da nulidade parcial sem reduo de texto, ver ADIn n 319, rel. Min. Moreira Alves, RTJ 137, pp. 90 e segs.; tambm as ADins 491, 939 e 1045. Trata-se de aplicar, mutatis mutandis, aquilo que no direito portugus se denomina de deciso redutiva. Ou, melhor ainda, na acepo Jean-Claude Bguin (Le controle de la constitutionnalit de lois em Rpublique Fdrale dAllemagne), trata-se de anulao parcial qualitativa (quando a norma, no seu conjunto, no deve ser aplicada a certa situao, por tal aplicao ser inconstitucional). Nesse sentido, h um interessante precedente jurisprudencial da ento Comisso Constitucional (que antecedeu o Tribunal Constitucional portugus): em face de uma norma que regulava as atenuaes extraordinrias previstas no art. 298, prevendo certas atenuaes obrigatrias, verificadas determinadas circunstncias, entendeu-se declarar a norma parcialmente inconstitucional na parte em que consagrava as referidas atenuaes extraordinrias obrigatrias (ou legislativas, como so designadas no texto do acrdo) considerando-se que seriam, porm, admitidas como meramente facultativas para os juzes (Dirio da Repblica de 29 de dezembro de 1978, p.40).23 IV. Palavra final: Como advertncia derradeira necessria em face dos mal-entendidos que podem ser gerados a partir de leituras ideolgicas (no sentido tradicional da palavra) aplicao da tese da proibio de proteo insuficiente, mormente se feitas sem o devido contexto constitucional e constitucionalizante em que deve ser posta a discusso - e o fao com base no alerta do pesquisador e professor de Sociologia Jurdica da Universidade Federal do Pernambuco, Luciano Oliveira, por vezes parece que nos esquecemos da relevante circunstncia de que a segurana , ela tambm, direito humano:E no estou falando retoricamente, estou falando textualmente... Entretanto, geralmente nos esquecemos disso. Na verdade, to raramente nos lembramos disso que seria o caso de perguntar se algum dia soubemos de tal coisa isto , que a segurana, a segurana pessoal, um dos direitos humanos mais importantes e elementares. E, como disse, estou falando textualmente, com base nos documentos fundamentais dessa traduo, sejam as Declaraes inaugurais da Revoluo Francesa de fins do Sculo XVIII, seja a Declarao da ONU de 1948. Est l, j no artigo 2 da primeira Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789:23

Ver, para tanto, CANAS, Vitalino. Introduo s decises de provimento do Tribunal Constitucional. Os efeitos em particular. Lisboa: Cognitio, 1984, p. 42. 23

os direitos naturais e imprescritveis do homem so a liberdade, a propriedade, a segurana e a resistncia opresso grifei. Declarao tipicamente burguesa, dir-se-ia. Mas bom no esquecer (ou lembrar) que em 1793, no momento em que a Revoluo empreende uma guinada num sentido social ausente na primeira uma guinada a esquerda, na linguagem de hoje -, uma nova Declarao aparece estabelecendo, em idntico artigo 2, praticamente os mesmos direitos: a igualdade, a liberdade, a segurana, a propriedade (in Faur, 1988: 373) grifei. Mais adiante, o artigo 8 definia: A segurana consiste na proteo acordada pela sociedade a cada um de seus membros para a conservao de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades (idem p. 374).

E acrescenta o jurista pernambucano:Cento e cinqenta anos depois a Declarao Universal dos Direitos Humanos da ONU na qual figuram, ao lado dos direitos civis da tradio liberal clssica, vrios direitos scio-econmicos do movimento socialista moderno repetia no seu artigo 3: Todo indivduo temo o direito vida, liberdade e segurana pessoal. E, no entanto, esse um direito meio esquecido. No mnimo, pouco citado. Ou, ento, citado em contextos onde o titular dessa segurana pessoal aparece sempre como oponente de regimes ditatoriais atingido nesse direito pelos esbirros de tais regimes. Dou um exemplo significativo: numa publicao patrocinada pela UNESCO em 1981, traduzida entre ns pela Brasiliense em 1985, seu autor, ao comentar esse direito d como exemplo o caso de Steve Biko, ativista poltico negro torturado e morto pela polcia racista da frica do Sul em 1977. E comenta: O caso Steve Biko apenas um exemplo bem documentado de uma situao em que o Estado deixou de cumprir sua obrigao de assegurar e proteger a vida de um indivduo e em que violou este direito fundamental que, infelizmente, tem sido violado pelos governos em muitas partes do mundo (Levin, 1985: 55 e 56). Ou seja: por razes que so, reconhecemos, compreensveis, a segurana pessoal como direito humano, quando aparece na literatura produzida pelos militantes, sempre segurana pessoal de presos polticos, ou mesmo de presos comuns, violados na sua integridade fsica e moral pela ao de agentes estatais. Ora, com isso produz-se um curioso esquecimento: o de que o cidado comum tem tambm direito segurana, violada com crescente e preocupante freqncia pelos criminosos. (grifei)24

nesse contexto que se inserem as presentes reflexes. E para no haver malentendidos, fao minhas as duas advertncias enfticas de Oliveira (ibidem) sobre o assunto: a primeira a de que, com isto, no estou aderindo ao conhecido e, no contexto em que dito, estpido slogan e os direitos humanos da vtima com o que os inimigos dos direitos humanos procuram desacreditar a dura luta a seu favor num pas como o Brasil.24

Cf. Oliveira, Luciano. Segurana: Um direito humano para ser levado a srio. Em Anurio dos Cursos de Ps-Graduao em Direito n. 11. Recife, 2000., p. 244/245. 24

J a segunda remete ao fato de que de forma alguma estou considerando com a mesma medida as violaes de direitos humanos perpetrados por regimes ditatoriais e as violncias praticadas por bandidos mesmo se ambos so celerados.

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