antonio vieira

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 Padre António Vieira Texto de ANTÓNIO MEIRA MARQUES HENRIQUES* O Padre António Vieira foi uma das figuras marcantes do século XVII português, e foi-o não apenas como religioso, mas tam- bém como diplomata, conselheiro da corte, com- batente da Inquisição, teólogo e profeta, defensor dos cristãos-novos, dos índios e dos escravos. Ho- mem de Deus e homem do mundo, tanto vivia nas cortes da Europa como nos sertões do Brasil, sempre empenhado nas causas dos indefesos. A sua vida, inflamada pelo zelo missionário, foi um constante peregrinar por continentes e oceanos.  A sua fala, atrav és sobretud o das pregações, tanto ecoava em improvisadas ermidas de missão, como nos púlpitos solenes da Capela Real ou da Igre-  ja de São Roque. Neste templo , sede da ordem  jesuíta em Portugal, o eloquen te Vieira pregou alguns assinaláveis sermões, nomeadamente o No ano em que passam quatrocentos anos sobre o na scimento de Padre António Vieira, a Cidade Solidária  pela mão do autor evoca a vida e a obra de um homem de saber perpétuo 1. O “Sermão das Quarenta Horas” tinha lugar por ocasião do Jubileu das Quarenta Horas, na Igreja de São Roque, nos dias chamados de Entrudo ou Carnaval. 2. P. António Vieira, Sermões , vol. 8, Porto, Livraria Chardron, 1907. célebre “Sermão das 40 Horas”, no ano de 1642 1 . No mesmo ano, pregou também o “Sermão de S. Roque” na festa que dedicou ao santo padroeiro,  António T elles da Silva. Este sermão é dividido em duas partes distintas: uma panegírica, outra política. A peroração ou conclusão é eloquentíssi- ma, sendo a mais nobre de todo o discurso.  A mesma igreja s eria palco da sua presen ça nu- ma tardia passagem por Lisboa, em 1657, tendo proferido o sermão anual de São Roque 2 . Este ser- mão seria pregado no mesmo dia na Capela Real e na Igreja da Casa Professa. É um discurso pa- negírico, riquíssimo na forma, igual aos modelos mais primorosos da oratória francesa da época. Evocar o Padre António Vieira, em 2008, sig- nifica celebrar a sua intensa vida, como intensa e variada foi a sua obra, numa entrega total ao serviço de Deus e do homem m ulticultural. Sig- nifica também evocar a personalidade genial que sua vida Vieira Padre António e suas lutas HISTÓRIA E CULTURA JULHO 2008 CIDADE SOLIDÁRIA 126 CIDADE SOLIDÁRIA  JULHO 2008 127

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Txt d AnTónio MeirA MArques Henriques*

O Padre António Vieira foi uma das figurasmarcantes do século XVII português, efoi-o não apenas como religioso, mas tam-

bém como diplomata, conselheiro da corte, com-batente da Inquisição, teólogo e profeta, defensordos cristãos-novos, dos índios e dos escravos. Ho-mem de Deus e homem do mundo, tanto vivianas cortes da Europa como nos sertões do Brasil,

sempre empenhado nas causas dos indefesos. A sua vida, inflamada pelo zelo missionário, foi umconstante peregrinar por continentes e oceanos.

 A sua fala, através sobretudo das pregações, tantoecoava em improvisadas ermidas de missão, comonos púlpitos solenes da Capela Real ou da Igre-

 ja de São Roque. Neste templo, sede da ordem jesuíta em Portugal, o eloquente Vieira pregoualguns assinaláveis sermões, nomeadamente o

No ano em que passam quatrocentos anos sobre o nascimento

de Padre António Vieira, a Cidade Solidária pela mão do autorevoca a vida e a obra de um homem de saber perpétuo

1. O “Sermão das Quarenta Horas” tinha lugar por ocasião do Jubileu das Quarenta Horas, na Igreja de São Roque, nos dias chamadosde Entrudo ou Carnaval.2. P. António Vieira, Sermões , vol. 8, Porto, Livraria Chardron, 1907.

célebre “Sermão das 40 Horas”, no ano de 16421.No mesmo ano, pregou também o “Sermão de S.Roque” na festa que dedicou ao santo padroeiro,

 António Telles da Silva. Este sermão é divididoem duas partes distintas: uma panegírica, outrapolítica. A peroração ou conclusão é eloquentíssi-ma, sendo a mais nobre de todo o discurso.

 A mesma igreja seria palco da sua presença nu-ma tardia passagem por Lisboa, em 1657, tendoproferido o sermão anual de São Roque2. Este ser-

mão seria pregado no mesmo dia na Capela Reale na Igreja da Casa Professa. É um discurso pa-negírico, riquíssimo na forma, igual aos modelosmais primorosos da oratória francesa da época.

Evocar o Padre António Vieira, em 2008, sig-nifica celebrar a sua intensa vida, como intensae variada foi a sua obra, numa entrega total aoserviço de Deus e do homem multicultural. Sig-nifica também evocar a personalidade genial que

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históriA e culturA

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Va ao a açopoga oava ob o domíoda ooa paoa, fao xpaao vm amo om ao a

aaço da dpdêa d Poga

foi um dos expoentes da cultura portuguesa detodos os tempos e um dos mais exímios utilizado-res da língua de Camões. António Vieira nasceu em Lisboa, a 6 de Feve-

reiro de 1608, na freguesia da Sé, perto do localonde quatro séculos antes nascera o insigne por-tuguês, Santo António3. Era filho primogénito deCristóvão Vieira Ravasco e de Maria Azevedo,uma família de recursos modestos 4. Seu pai, queera escrivão da corte, embarcou para a Bahia, em

1609, no nordeste brasileiro, para exercer funçõesna Relação do Brasil. Ali se juntou a restantefamília, em 1614, decorrendo desde então no co-légio jesuíta da cidade baiana os primeiros anosde formação do futuro pregador. Vieira cresceuenquanto a nação portuguesa se encontrava sob odomínio da coroa espanhola, facto que explicariao veemente entusiasmo com que acolheu a restau-ração da independência de Portugal.

 Aos 15 anos de idade, ingressa no noviciado daCompanhia de Jesus, no Brasil, passando a residirna Aldeia do Espírito Santo (hoje, Vila de Abran-tes). Em 1626, com 18 anos de idade, o aindanoviço António Vieira é encarregue de redigir a“Carta Annua” ao Geral dos Jesuítas, uma espéciede relatório anual circunstanciado da Companhia

de Jesus no Brasil, o qual constitui o seu primeiroescrito conhecido, que iniciaria desde logo umcurrículo epistolar sem precedentes5. Na Bahiaassiste ao ataque holandês de 1624, o qual descre-verá em carta dirigida ao Superior Provincial dePortugal, dois anos mais tarde.

em Salvador. O Sermão seria traduzido para es-panhol, francês, latim, alemão, existindo mais devinte edições do texto original.

Profundamente animado pela Restauração dePortugal, viaja para Lisboa no início de 1641,integrando uma comitiva de locais que veio ma-nifestar a D. João IV a adesão do Brasil à causada Restauração; permanecerá em Portugal até1646, sendo este o cenário ideal para desenvolver

uma actividade incessante de contactos políticose apostólicos. Lembremo-nos que certos sectoresda nobreza e do clero não apoiavam D. João IV.Também muitos estados europeus, entre os quaisa Santa Sé, ainda permaneciam vinculados à he-gemonia espanhola, não reconhecendo portantoo novo rei. Escasseavam igualmente os meiosfinanceiros para sustentar a defesa da nação res-taurada, bem como os meios diplomáticos que erapreciso empreender. Neste contexto, Vieira serviuo Reino como seu “embaixador” em França, naHolanda e em Roma. O seu zelo patriótico aliadoa uma poderosa dialéctica e à fina elegância nouso da língua foram fundamentais para granjearapoios.

Entre 1642-1644, prega na Capela Real, tendoiniciado com o Sermão dos Bons Anos. Em aten-ção ao brilhantismo das suas prédicas recebe, em1644, o título de “Pregador de Sua Majestade”. Éigualmente nomeado “Tribuno da Restauração”.Na semana santa de 1645, prega o Sermão doMandato, na Capela Real, em Lisboa. No ano se-guinte, a 21 de Janeiro de 1646, faz a sua profissãode votos solenes na Igreja jesuítica de São Roque.

Entre 1646 e 1652 exerce o papel de pregadore conselheiro de D. João IV. Nesta qualidade,é enviado em missões diplomáticas a França eà Holanda, negociando a situação política dePernambuco, a paz europeia, o financiamentoda guerra contra Castela e a futura CompanhiaComercial do Brasil. Esta última seria sustentada

com a par ticipação de capitais dos cristãos-novos6

.É o período de maior actividade “diplomática” deVieira, que se desloca por grande parte da Euro-pa, representando e defendendo os interesses dePortugal. Faz ainda parte da embaixada portu-guesa nas negociações da “Paz de Münster”, cujoobjectivo era pôr fim à Guerra dos Trinta Anos.De passagem por Ruão e Amsterdão negoceia3. Uma lápide antiga, situada no átrio da Sé de Lisboa, a ssinala o nascimento do P. António Vieira nesta Freguesia.

4. No Registo do Baptismo de António Vieira consta que era filho de Cristóvão Vieira Ravasco (escrivão) e de Maria de Azevedo,moradores na Rua dos Cónegos, f reguesia da Sé de Lisboa. O baptismo foi celebrado a 15 de Fevereiro. Cf. Registos Paroquiais da Sé deLisboa, L. 4-M (baptizados), f. 101 v., Lisboa IAN/TT.5. A “Carta Annua” revela-se como um precioso documento do ponto de vista histórico, sendo uma fonte essencial para o estudo doconturbado período da presença holandesa no Brasil, de que a conquista da cidade de Salvador acabou por ser um prelúdio para odomínio calvinista daquela parcela do Nordeste brasileiro, no período compreendido entre 1630 e 1645.

“Com a luz do diaseguinte apareceu a

 Armada inimiga, que repartida em esqua-dras vinha entrando.Tocavam-se em todas as naus trombetas bas-tardas a som de guerra;

que com o vermelho dos  pavetes vinham ao longe publicando sangue.Divisavam-se as bandeiras holandesas, flâmu-las e estandartes, que ondeando das antenas e mastaréus mais altos, desciam até varrer omar com tanta majestade e graça que, a quemse não temera, podiam fazer uma alegre e for-mosa vista (...) E foi tal a tempestade de fogoe ferro, tal o estrondo e confusão, que a muitos 

 principalmente aos poucos experimentados,causou perturbação e espanto, porque por uma

 parte os muitos relâmpagos fuzilando feriamos olhos, e com a nuvem espessa do fumo nãohavia quem se visse; por outra, o contínuotrovão da artilharia tolhia o uso das línguas e orelhas, e tudo junto de mistura com as trom-

betas e mais instrumentos bélicos, era terror amuitos e confusão a todos.” 

(P. António Vieira, Annua ou Annaes da Provinciado Brazil dos dous annos de 1624 e de 1625...)

O Pad Ao Va fo ma da fgamaa do éo XVii pogê,

fo-o o apa omo goo,ma ambém omo dpomaa, oo

da o, omba da iço, ogo

pofa, dfo do o-ovo,do ído do avo

Em 1633, ainda estudante de teologia, prega oseu primeiro sermão público – Sermão do Nas-cimento do Menino Deus – na Igreja de NossaSenhora da Conceição da Praia, em Salvador.

 A 10 de Dezembro de 1634 é ordenado sacerdote.Terminada a formação académica Vieira é nomea-do Professor de Teologia. Entretanto, prosseguemos assédios dos Holandeses à Bahia. O clima de

ansiedade reflecte-se bem nos sermões proferidosnesta época.Em 1640, antevendo já no horizonte a Restau-

ração de Portugal, prega o famoso Sermão peloBom Sucesso das Armas de Portugal contra as daHolanda, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda,

históriA e culturA

com representantes da comunidade judaica por-tuguesa, aí refugiada, a questão de Pernambuco,o que lhe valeria, desde então, a hostilidade doSanto Ofício. Com efeito, o relacionamento comos cristãos-novos seria para Vieira uma das suasfortes paixões e simultâneamente campo de in-compreensões.

Em 1653, regressa ao Brasil, a fim de se dedicaràs missões junto dos índios do Pará e do Mara-nhão, dos quais assumirá corajosamente a defesa

contra os interesses esclavagistas dos colonos por-tugueses. Com efeito, a sua acção junto dos índiose a dos jesuítas, em gera l, no Brasil, com a cons-tituição das célebres “reduções”, originou umaagressiva oposição dos colonos, que se viam assimlimitados na captura de mão-de-obra escrava.

 Ao mesmo tempo, as suas incursões missionáriaslevam-no a extasiar-se com a beleza do território,

6. A iniciativa visava a criação de duas Companhias comerciais instituídas com capitais privados, à semelhança das que existiam naHolanda – uma para fomentar o comércio da Índia e outra para o comércio brasileiro. Os capitais a serem investidos nestas companhiasdeviam ficar isentos de impostos.

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a variedade das tribos indígenas, o exotismo dafauna e flora, extra indo descrições admiráveis pa-ra o conhecimento do Brasil daquela época.

Entretanto, em 1654 prega o famoso Sermão de 

Santo António aos Peixes 7

, nas vésperas de embar-car para Lisboa onde, numa breve visita, pedirá aoRei providências favoráveis aos índios e às missõesdo Maranhão. No ano seguinte, prega durante aQuaresma de 1655, na Capela Real, o Sermão daSexagésima8, igualmente o Sermão do Mandato e

7. Este célebre Sermão foi pregado em S. Luís do Maranhão, em 1654, três dias antes de embarcar para Lisboa. Quase todo o sermão éuma alegoria em que “Santo António” se dirige aos peixes porque os homens não o querem ouvir, usando as diversas categorias de peixescomo analogia para criticar os vícios humanos.8. Ao preparar a 1ª edição (Princeps) dos seus Sermões, Vieira abriu a série de quinze volumes com o Sermão da Sexagésima, pregadoem 1655, certamente por considerar nele o paradigma do método de pregar.9. Um conjunto de 5 Sermões foi pregado em Roma, na corte da Rainha Cristina da Suécia, em 1674 . “Le cinque pietre della fionda diDavid” (Cinco pedras da fu nda de David), editados em italiano e em castelhano pelo próprio autor.

fecha com o Sermão do Bom Ladrão, na Igreja daMisericórdia de Lisboa (Conceição Velha).

Com a morte de D. João IV, ocorrida em 1656,perdeu Vieira o seu melhor amigo, e o missioná-rio só encontra consolação no sonho de o ver denovo voltado à vida. Ensombrado pelo luto e pelasaudade do rei, embarca com destino ao Brasil.

No regresso a Belém do Pará, encontrando-sedoente, redige, em 1659, o seu primeiro tratadofuturológico - “Esperanças de Portugal, V Im-pério do Mundo”, destinado a consolar a rainhaviúva, D. Luísa de Gusmão, no qual antevia oregresso de D. João IV e o estabelecimento de umimpério de concórdia mundial sob o domínio dorei português.

Em resultado do seu persistente combate emfavor dos índios, Vieira e os seus companheiros

 jesuítas são expulsos do Ma ranhão, em 1661, eembarcados para Lisboa. Em 1662, prega o Ser-mão da Epifania diante da Rainha-regente, D.Luísa de Gusmão, na capela Real.

Entre 1663 e 1667 é desterrado para Coimbraonde será preso pela Inquisição, que o perseguiadevido sobretudo às suas ideias milenaristas epouco ortodoxas, inspiradas no profetismo doBandarra , bem como pelas alegadas simpatias pe-los Judeus. Em 1666, é retirado da sua residênciafixa no Colégio de Coimbra, sendo levado paraum cárcere normal, numa cela miserável. Aqui,isolado de todos, e tendo como sua companhiauma Bíblia e o Breviário, redige duas “Represen-tações de Defesa” e, em segredo, parte do seu li-vro “História do Futuro”. Em 1667, é proferida asentença sobre ele: “... seja privado para sempre devoz activa e passiva e do poder de pregar (...)”. Ter-minou, porém, o seu cativeiro, em 12 de Junho de1668, já no reinado de D. Pedro II. Logo depois,segue para Lisboa, hospedando-se no Noviciado

da Cotovia da ordem jesuíta.Em 1670, vi aja para Roma em busca de revisãoda sua sentença, onde permanecerá seis anos; aíprega em italiano aos cardeais da Cúria Romanae à exilada rainha Cristina da Suécia9. A partir deRoma luta sem tréguas contra a Inquisição. Em

1675, regressa a Lisboa, munido de um Breve doPapa Clemente X, isentando-o “por toda a vidade qualquer jurisdição, poder e autoridade dosinquisidores presentes e futuros de Portugal”, maspermanecendo sob a autoridade da Cúria Roma-na. Este estatuto de excepção seria, contudo, malacolhido em Lisboa por D. Pedro II.

Em 1679 declina o convite da rainha Cristinada Suécia, para ser seu confessor, e regressa aPortugal.

Em 1681, desiludido com a vida cortesã e como desamparo do rei D. Pedro II, decide regressarao Brasil, após mais de vinte anos de ausência.Isolou-se, então, na Quinta do Tanque, casa decampo do colégio da Bahia , onde, longe do acti-vismo de outros tempos, prepara a publicação dosSermões e a Clavis Prophetarum, obra inacabada,em que alimentava o sonho messiânico de umQuinto Império português.

Em 1688, Vieira é nomeado Visitador-Geral daProvíncia do Brasil, cargo que exerceu até 1691.Em 1690 promove a construção da Missão dosíndios Carirís, na Baía, financiando-a com o lu-cro da venda dos seus livros.

Em 1695 envia uma carta-circular de despedidaà nobreza de Portugal e amigos, por não poderescrever a todos em particular.

No ano seguinte, por razões de velhice e desaúde é transferido da Quinta do Tanque para oColégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus.

Em 1697, termina a revisão do tomo XI dos Ser-mões publicados ainda em vida10. A 12 de Julho,dita a sua última carta ao Geral da Companhiade Jesus, Tirso Gonzalez, carta escrita pela mãode um amanuense, devido à c egueira que o ator-mentou nos últimos anos de vida. A 18 de Julho,morre com 89 anos, tendo ficado sepultado naIgreja da Companhia de Jesus.

VieirA e A OrAtóriA BArrOcA Ao contrário do “Cultismo” e do “Gongoris-

mo” que utilizavam um vocabulário preciosoe rebuscado na busca de efeitos meramente so-nantes, Vieira optou nos seus Sermões por umalinguagem chã e sóbria, com vista a atingir todas

10. A obra do P. António Vieira compreende cerca de 200 Sermões, 750 cartas e outros escritos de natureza diversa. A edição  princeps dosseus Sermões consta de 15 volumes e foi publicada entre 1679 e 1748. A sua epistolografia começou a ser divulgada em 1735, quase 40anos após a sua morte.11. A ideia do Quinto Império herdou-a Vieira da doutrina medieval de Joaquim de Fiora (1132-1202), que advogava três idades para arealização do Reino de Cristo na terra, sendo a última a do Quinto Império.

“Não são só ladrões os que cortam bolsas, ou espreitamos que se vão banhar, paralhes colher a roupa; os la-drões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os Reis encomen-dam os exércitos e legiões, ou o governo das 

Províncias, ou a administração das Cidades,os quais, já com manha, já com força, roubame despojam os povos. Os outros ladrões roubamum homem, estes roubam Cidades e Reinos; os outros, furtam debaixo do seu risco, estes semtemor nem perigo; os outros, se furtam, sãoenforcados; estes furtam e enforcam. Diógenes,que tudo via com mais aguda vista, viu que uma grande tropa de varas e Ministros de jus-tiça levavam a enforcar uns ladrões, e começoua bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”.

(Extracto do Sermão do Bom ladrão, §5, pregadona Igreja da Misericórdia de Lisboa, no ano de 1655)

históriA e culturA

evoa o Pad Ao Va, m 2008,gfa ba a a a vda,

omo a vaada fo a aoba, ma ga oa ao vço

d D do omm ma

O o Va pgo agaaáv mõ, omadamo éb “smo da 40 hoa”

igja d s. r – Púlpt, lad act.

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BiBliOGrAFiA

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PESSOA, Fernando, Mensagem (2ª parte - O ENCOBERTO).

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VIEIRA, Padre António, Sermões , Porto, Livraria Chardron, 1907.

as classes de público; o seu vocabulário e fraseolo-gia são essencialmente funcionais e correntes; eleconsegue o equilíbrio perfeito entre a linguagemfalada e a escrita, entre a solenidade e a familiari-dade. Os seus argumentos e o encadeamento deideias, pretendiam mais captar a imaginação doque o entendimento; a sua análise dos textos bí-blicos procurava o aproveitamento engenhoso dasvirtualidades das palavras e seus nexos. Em Vieiraa estrutura geral do Sermão é muito livre, emforma aberta, sem o esquema dedutivo e rigorosoda maneira francesa de Bossuet e Bourdaloue.

 Através de um domínio admirável da linguagem,conseguirá alcançar uma dialéctica inventiva,ao modo de reflexos sucessivos e encadeados,recheados de metáforas e hipérboles, dirigidas aogrande público. São sermões desenvolvidos emparágrafos, à imagem de ondas concêntricas, commúltiplos reflexos e múltiplas aplicações. A sualógica, aparentemente irregular, amplia-se atravésde aspectos novos e de alusões, tal como a talha

do retábulo barroco, com vista a captar o enlevodos ouvintes, a empolgar a emoção estética e, porfim, a mudança de comportamentos. Deste mo-do, o insigne Pregador ultrapassou, no conteúdoe na forma, a oratória sagrada, dominante noséculo XVII, excessivamente formal mas vazia deconteúdos.

O MessiAnisMO De VieirAProfundamente imbuído de um messianismo

atlantista, cujas raízes mergulhavam na epopeiados descobrimentos e no catolicismo expansionis-

ta da Contra-Reforma, Vieira alimentou, aindamais, o espírito profético na sua vasta culturabíblica e na espiritualidade militante da ordeminaciana. A tragédia sebastianista e a decadênciaque se lhe seguiu seriam o pretexto para dar largasao visionarismo e à grandiosa miragem do Quinto

Império português. Gradualmente, tornar-se-ia ogrande arauto do messianismo lusitano no século

 XVII. Desde os primeiros sermões brasileiros,Vieira decidiu romper com o mito sebastianistado regresso do rei D. Sebastião. Os tempos eramoutros e as mentalidades já tinham evoluído.11 Asprofecias relativas ao “Desejado” ou “Encoberto”transferiu-as ele para D. João IV logo que chegoua Lisboa (Sermão do Ano Bom, de 1642); paraisso, combinou textos bíblicos com as popularesprofecias do Bandarra. Profetizou ainda que o reiviria para vencer os Turcos que ameaçavam a cris-tandade, para reconduzir os Judeus à lei de Cristoe para extirpar todas as heresias, impondo assimuma paz universal em que haveria um só papa eum só rei... Como D. João IV morresse sem terrealizado as suas utopias, Vieira, reinterpretandoos textos, formula em 1659 a profecia de que esterei ressuscitaria para os cumprir. Porém, o anode 1666, que ele apontara como o desse grandeacontecimento, passou-se sem nada ter aconte-cido. Vieira inventou logo novas interpretações,que recaíram em D. Afonso VI, então reinante, e,posteriormente, no príncipe D. Pedro, que lhe su-cedeu. A astrologia entrava também nestas conge-minações. Esta curiosa interpretação dos sinais, aque dedicou muito dos seus anos, compreende-sepelo ambiente de psicose geral que acompanhou aRestauração de Portugal e pelo grande sentimen-to de frustração nos anos que se sucederam, deuma nação em declínio, profundamente saudosa

da grandeza do seu império.

A questãO DA escrAVAturAVieira foi também sensível ao problema da es-

cravatura e da exploração dos negros. A situaçãolegal de uns e de outros era todavia diferente naépoca, consoante se tratasse de Ameríndios ou deNegros Africanos . Desde 1572 a lei portugue saestatuía para os índios o princípio da liberdade.Este princípio, acerrimamente defendido pelos

 jesuítas era, porém, ignorado ou violado pelos co-lonos. Para solucionar esta sistemática violação, os

 jesuítas portugueses e espanhóis concentravam osíndios convertidos em comunidades geridas pelosmissionários - as chamadas “Reduções”; nestas“aldeias” o trabalho era obrigatório, a propriedadeera comum, a família monogâmica, a vida emgeral pautada pelo serviço religioso. Tratava-se,

com efeito, de um regime teocrático, em quetudo estava ordenado, nessas comunidades, pelalei religiosa e a autoridade dos padres, que nãoconhecia limites. Quanto aos Negros, que eramcomprados na costa africana e transportados parao Brasil, como mercadoria, os teólogos e casuístasda época consideravam-nos como “escravos” emterritório americano, defendendo, deste modo, asua condição de dependência em relação aos do-nos, por motivos de “protecção legal”. Compreen-de-se, assim, a posição do jesuíta Tirso de Molina(1593-1609), grande jurist a da Universidade deÉvora que, no seu tratado De iustitia et de iure defendia o estatuto dos escravos, explicando-opor razões particulares de servidão civil (guerra,condenação penal, compra). Vieira nunca contes-tou esta posição, antes implicitamente a aceitou,embora tenha censurado amplamente os maustratos infligidos pelos proprietários aos escravos.No entanto, a aparente aceitação deste statu quonão impediu o pregador de lembrar aos colonosque os Negros eram cristãos e, por conseguinte,com igual dignidade que os brancos, redimidosuns e outros pelo sangue de Cristo...

cOnclusãOVieira foi uma figura ímpar do século XVII

português. A sua cultura, enraizada numa forma-ção exigente, foi vasta e profunda, no campo dosagrado e do profano. Ele realizou de um modoadmirável o ideal jesuíta da síntese entre a “con-

templação” e a “acção”, do homem “teorético”e do homem “político” ou, por outras palavras,do profeta e do activista... Com uma inteligênciapoderosíssima, arquitectou mundos à medidados seus sonhos. E, quando esses sonhos não seconcretizavam, voltava a reformular novas inter-pretações ou “visões”...

Tendo grande facilidade em aprender línguas,expressou-se com brio admirável nos círculosdiplomáticos europeus. Dominou igualmenteidiomas nativos, talento que lhe proporcionouenorme êxito na actividade missionária. Apesar

Ao oáo do “cmo” do “Gogomo” zavam

m voabáo poo badoa ba d fo mam oa,

Va opo o smõpo ma gagm ba,

om va a ag oda a ad púbo; o voabáo

faooga o amfoa o

do seu espírito combativo, teve numerosos admi-radores e amigos, que ficavam arrebatados coma sua retórica, com a argúcia do seu raciocínio,com as arrojadas propostas que formulava e pelasquais se batia... Através da sua exuberante orató-ria e epistolografia foi o grande artífice da prosa

portuguesa, “Imperador da língua portuguesa”(Fernando Pessoa).

Manifestou grande nobreza no t rato, sabendoconciliar a justiça, a humanidade e a benevolênciacom a defesa intransigente dos valores éticos. Nãodeixou Vieira no esquecimento nenhuma das cau-sas fundamentais que agitavam a vida pública doseu tempo. Efectivamente, nunca receou denun-ciar a exploração dos indígenas ou a discriminaçãodos judeus, cuja defesa lhe trouxe a perseguição eo cárcere. Por outro lado, a sua vivência do Abso-luto, como religioso e missionário, proporcionou-lhe um invulgar arrojo, que fez dele uma figuraarrebatada, desmedida, verdadeiro protótipo dohomem barroco. É evidente que, para a compre-ensão de Vieira torna-se indispensável situá-lo nocontexto da cultura portuguesa seiscentista, deque ele foi um digno protagonista. n

*Técnico Superior, Museu de São Roque