antelo, raúl - potências da imagem.pdf
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RalAntelo
Potncias da imagem
SBD-FFLCH-USP
II~IW~I~
editora universitria
Chapec, 2004
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r-hUNOCHP,PECUHIVERSIDADfCllMUNIT,(RlARl6JOHAlDECHAPEC6
Av. Senador Attlio Fontana, 591-EFone/Fax (49) 321-8000
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Chapec - SC
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DEDALUS - Acervo - FFLCH
IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII~ IIIIIIII~ IIII/Ir/I/I"II/'III 11111111
20900000795
302.222
A635p
Antelo, Ral
Potncias da imagem / Ral Antelo. - -Chapec : Argos, 2004.
149 p.
I. Comunicao visual. 2. Imagem.I. Ttulo.
CDD 302.222
ISBN: 85-7535-058-7 Catalogao: YaraMenegatti - CRB 14/488
editora universitria
Conselho EditorialJosiane Roza de Oliveira (Presidente)
Ricardo Rezer; Alexandre Maurcio MatielloArlene Renk; Eliane Marta Fistarol
Flvio Roberto Mello Garcia;
Hermgenes Saviani FilhoJosLuizZambiasi; juara NairWollf
Leonardo Secchi;
Maria dos Anjos Lopes ViellaMaria Luiza de Souza Lajus
,Impresso no Brasil, 2004
Tiragem: 1000
CoordenadoraMonica Hass
Assistente EditorialHilario Junior dos Santos
Assistente AdministrativoNeli F~rrari
Projeto grfico e capaHilario Junior dos Santos
RevisoFabiana Cardoso Fidelis e
Jakeline Mendes
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Sumrio
P .c" . " . . 7relaclO - cntIca e Imagem .
o inconsciente tico do modernismo 13A imagem fotogrfica......................................................................... 17
Fascismo e imagem 23
Polticas da amizade e anamorfose do moderno 29Pettoruti: nova forma e no-verdade 31
Rebelo................................................................................................. 37
A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro , 43Montevidu........................................................................................ 48
Leituras............................................................................................... 65
Dobras e redobres............................................................................... 71
Suplemento de imagens: de Whitman a Jorge Amado,d "M ,," "passan o por acunaIma, e ate mesmo
Garca Mrquez : 75
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Amado: tradio e extradio 87
Deleitao morosa: imagem, identidade e testemunho 125Arte e vida 126
Identidade e memria 136
Paradoxos do testemunho 138
Referncias 143
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Prefcio
crtica e imagem
Em "Inquisies" (1925), seu primeiro livro de ensaios, Jorge
Luis Borges assinalava que as imagens so uma fantasmagoria -Iaimagen es hechicera - e admitia no ser suficiente afirmar que los
espejos se asemejan a un agua, como cualquier Huidobro diria. Borges
entendia no s possvel, mas mesmo necessrio, ir alm desses jogos
meramente verbais, porque
Hay que manifestar ese anteojo hecllO forzosa realidad de una mente:
hay que mostrar un individuo que se introduce en el cristal y que persiste
en su ilusorio pas (donde hay figuraciones y colores, pero regidos de
inmovible silencio) y que siente el bochorno de no ser ms que un
simulacro que obliteran Ias noches y que Ias vislumbres permiten
(BORGES, 1925).
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Potncias da imagem
Um indivduo se introduziu num cristal, tornou-se mquina,
exigindo que Ias consteIaciones desbarataran su incorruptzble destino y
renovaran su ardimiento en signos no mirados de Ia contemplacin angua
de navegantes y pastores. Esse sujeito que, para retomar o ttulo da
inquisio borgiana, postava-se depois das imagens", era um Ur-
histrico e podia chamar-se Walter Benjamin. Ele nos ensinou a
perceber que, na mente de algum acostumado a assistir a imagens
cinematogrficas, o processo de associaes fica logo interrompido
pela mudana icnica constante. A idia sugere que, mais do que
de espao, a imagem precisa de tempo, por requerer um processo
de associaes incessantes.
bem verdade que a obra de arte na era da reprodutibilidadetcnica pede o leitor desatento", aquele mesmo procurado com
afinco por Macedonio Fernandez, porm no menos verdadeiro
que esse novo leitor seja obrigado, tambm, a realizar certas operaes
abstratas, certas desleituras, mesmo quando assista a uma imagem
banal, cotidiana. Junto com a perda do valor de aura por parte da
obra, o leitor exausto de imagens culturais perde, tambm, toda
ingenuidade. A idia ter seu correlato nas formas visuais
contemporneas. No ps-cinema, por exemplo, a questo da durao
dos planos j no to relevante como o era no cinema de autor.
Como observa Beatriz Sarlo, a questo j foi decidida de antemo,
os planos so curtos ou curtssimos, uma vez que, na nova
linguagem, nos defrontamos com um discurso de alto-impacto,
baseado na velocidade de substituio das imagens, cujos melhores
exemplos ainda so os anncios de propaganda e os videoclipes.
Giorgio Agamben, que define o homem como o animal que
vai ao cinema, tem analisado as imagens-movimento como o motor
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Prefcio - crtica e imagem
de uma teoria recursiva da histria, construda a partir das imagens
dialtcas de Benjamin. Graas a elas, compreendemos que a histria
se faz por imagens, mas que essas imagens esto, de fato, carregadas
de histria. Isto , de nonsense, de equvocol Constatamos, assim,
que a imagem nunca um dado natural. Ela uma construo
discursiva que obedece a duas condies de possibilidade: a
repetio e o corte.
Enquanto ativao de um procedimento de montagem, toda
imagem um retorno, mas elaj no assinala o retorno do idntico.
Aquilo que retoma na imagem a possibilidade do passado. Como
procedimento de suspenso ou corte, a imagem aproxima-se, ento,
da poesia, e no da prosa, na medida em que at mesmo o poema
poderia ser reduzido ao simples efeito de enjambement. Retorno e
corte alimentam, portanto, uma certa indecibilidade ou indiferena,
uma impossibilidade de discernimento entre julgamento verdadeiro
e falso, que potencializa, entretanto, o artifcio da falsidade como a
nica via possvel de acesso estrutura ficconal da verdade.
N esse sentido, diramos que as imagens produzem um regime
de significao que apela aos processos da memria psquica e,
elaborando-se como sintoma, elas sobrevivem e deslocam-se no
tempo e no espao, exigindo que se alarguem, conseqentemente,
os modelos da temporalidade histrica e que se acompanhe a sua
sobrevivncia para alm do espao cultural originrio. Esta hiptese,
que foi pioneiramente aventada, no campo da histria da arte, por
Aby Warburg, ',jnos coloca perante uma concepo rememorativa
da histria, em que as imagens, na sua dimenso de memria ou de
tempo histrico condensado, criam, no movimento de sobrevivncia
e de diferimento que lhes caracterstico, determinadas circulaes
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Potncias da imagem
e intrincaes de tempos, intervalos e falhas, que vo desenhando
um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional
prpria.
Borges, Warburg e, em sua esteira, Benjamin ou Agamben,
nos propem, atravs do trabalho das imagens, um modelo cultural
da histria que tem muito mais a ver com o inconsciente histrico e
com a sobrevivncia de certas formas expressivas. Trata-se de um
modelo que toma distncia com relao ao esquema narrativo
pautado por comeo e recomeo, progresso e declnio, nascimento
e decadncia, a partir do qual sempre se retirou um mecanismo
linear para explicar as influncias e os modos de transmisso cultural.
O prprio Warburg, em sua "Introduo ao Atlas Mnemosyne",
postulou que a histria de uma disciplina um evolucionismo
descritivo insuficiente se, ao mesmo tempo que se capta o
contingente, no se ousa, tambm, descer profundidade da
tessitura (Verflochtenheit), que liga o esprito humano matria
estratificada acronologicamente.
Georges Didi- Huberman, em sua leitura de Warburg, vai mais
longe ainda. Argumenta que no h histria da arte que possa
prescindir, para seu prprio relato e para sua construo, de modelos
estticos. Toda histria cultural um peculiar modo da fico. Vemos,
ento, que o conceito de sobrevivncia, central na teoria de Warburg,
embora ensaiado previamente pela antropologia anglo-saxnica, mais
precisamente por Edward B. Tylor, nos fornece uma sada para o
impasse do presente. De fato, com a sua noo de survival, Tylor
tambm vinha tentando uma teoria da linguagem emocional e
imitativa de que, no Brasil, um de seus adeptos foi Mrio de Andrade.
"Memria, assombrao, superstio" costumam delatar, no autor
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Prefcio - crtica e imagem
de Macunama", uma atenta leitura de Tylor e Freud. Mas a
genealogia do conceito de sobrevivncia nos leva tambm a
Burckhardt que, nos seus estudos sobre a arte da Renascena, j tinha
comeado a construir o fundamento terico da sobrevivncia, ao
mostrar que essa arte impura, tanto nos seus estilos artsticos como
na temporalidade complexa das suas idas e vindas, entre o presente
vivo e a antiguidade rememorada. E nos leva, ainda, a Nietzsche,
cuja polaridade dionisaco/apolneo ganha destaque, em Warburg,
ao ser transformada em olmpico/demnico. Nietzsche, em ltima
anlise, fornece a Warburg os instrumentos para pensar uma esttica
das foras e considerar opathos na sua potncia formadora. Da deriva,
portanto, o conceito "frmula de pathos" (Patho.ifrmel), que se impor
na anlise cultural contempornea.
O valor do pathos , entretanto, dplice. , sem dvida,manifestao de um eterno retorno, de uma inequvoca vontade de
chance e de potncia mas, ao mesmo tempo, ele uma vontade sem
semelhana, que nos fornece uma imagem da arte depurada de toda
fora. A frmula do pathos amarra assim, ambivalentemente, a
receptividade (ou potncia passiva) e a representatividade (ou
potncia ativa). Nesse sentido, diramos que, nas leituras que
seguem, visamos ultrapassar o crculo da subjetividade,
potencializando, ao mesmo tempo, a receptividade, que mostra de
que modo as formas do passado podem ainda ser novamente
equacionadas como "problema".
O ltimo livro de Jean-Luc Nancy faz eco primeira
inquisio borgiana. Depois das imagens, preciso ir Au fond des
images. At o fundo das imagens - diria Rimbaud - para encontrar
I 'inconnu, o moderno, porque, como argumenta Nancy, a imagem,
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Potncias da imagem
em ltima anlise, fornece presena ao texto, se entendemos texto
como um tecido de sentidos. Mas por tirar o sentido da ausncia
ou da vacncia de sentido, todo presens no passa, a rigor, de absens.
N a leitura do inconsciente tico do modernismo, a partir de
fotografias estampadas em uma revista oficial do Estado Novo; na
anlise das anamorfoses do moderno que, atravs de uma coleo
que se espetaculariza em exposio para, finalmente, se
patrimonializar, novamente, em coleo, desvendando, en passant,
muito intrincadas, embora precisas e, sem dvida, duradouras
"polticas da amizade"; por ltimo, na relao entre imagem e cultura
de massa, imagem e poltica, imagem e desaparecimento, que
atravessa o debate do modernismo tardio, julgamos captar algo da
energia do moderno que ainda resiste nos textos e nas imagens. O
inacabamento de uns remete-nos s outras, mas a impotncia delas
carrega-se de renovadas foras de sentido. So essas as "Potncias
da imagem" .
Os textos aqui reunidos foram previamente estampados em
revistas especializadas - "Letterature d / America", "Punto de vista",
"Revista de Crtica Cultural" - ou apresentados em colquios
acadmicos. Agradeo aos colegas que me impulsionaram a escrev-
Ias. Sou grato a Cludia Rio Doce e a Antonio Carlos Santos pelo
auxlio em reuni-Ias; a Mario Cmara e Fabola Alves da Silva, pelo
suporte material; e a Valdir Prigol, pela confiana. Imagens:
maneiras e matrias da presena.
Ral Antelo
dezembro, 2003.
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o inconscientetico do modernismo
Quando as publicaes de vanguarda, 'Bifur' ou 'Varit', mostram
unicamente detalhes, sob ttulos como 'Westminster', 'Lille', 'Anturpia'
ou 'Boslau', representando, ora um fragmento de balaustrada, ora a
copa desfolhada de uma rvore cujos galhos se entrecruzam de mltiplas
maneiras sobre um poste de gs, ora um muro ou um candelabro com
uma bia de salvao na qual figura o nome da cidade, elas se limitam
a levar ao extremo motivos descobertos por Atget. Ele buscava as coisas
perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a
ressonncia extica, majestosa, romntica, dos nomes de cidade; elas
sugam a aura da realidade como uma bomba suga a gua de um navioque afunda.
Walter Benjamin
Toda imagem uma representao, de carter global e
abrangente, de uma ordem, de um territrio, de uma identidade,
enfim, que se constitui, opera e se insere em parmetros
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Potncias da imagem
coletivamente aceitos. Essa peculiaridade redefine seu contorno no
somente no plano cultural, mas, acima de tudo, na esfera do social.
O imaginrio, conjunto variado e proliferante dessas prticas
discursivas fornece, assim, uma resposta ativa aos conflitos
constitutivos de uma cultura. Trata-se de um sistema de valores
que orienta o sujeito em relao ao grupo com o qual ele se identifica
ou ainda pauta esse grupo face sociedade como um todo, isto ,
enquadra-o em relao a suas hierarquias e dominaes e, em ltima
anlise, coloca a sociedade global frente a seus outros. Essa operao
descansa, mais do que em vago simbolismo transitrio, na
articulao, precisa e orientada, de verdade e normatividade,
capitalizando as energias decorrentes da construo de toda
representao em direo a um alvo comum, a prtica social.
Essa peculiaridade das imagens leva-me, em conseqncia, a
analisar um imaginrio especfico, os valores de hierarquia e
normatividade, tal como ele se depreende a partir de certas imagens
emblemticas do Estado Novo. Digamos, para antecipar a hiptese,
que em algumas imagens desse perodo capta-se, com pungncia,
o inconsciente tico do prprio modernismo. Meu campo de
pesquisa , fundamentalmente, constitudo por revistas e, a esse
respeito, caberia relembrar, para incio de conversa, que a prpria
histria dos peridicos culturais brasileiros inseparvel da lei e da
imagem, o que se desdobra em uma srie de paradoxos.
Essas imagens reificam uma sociedade paralisada ou
funcionam, pelo contrrio, como uma prensa de energias livres?
Essas leis profanam a sacralidade imperial ou somente nos anunciam
a existncia de foras originrias adormecidas? Seja como for, elas
problematizam a representao, tanto na lei quanto na imagem, que
j no se confunde com a simples ao, mas alimenta-se da paixo.
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o inconsciente tico do modernismo
Marco fundacional dos estudos historiogrficos em meados
do sculo XIX, a "Revista do Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro", por exemplo, assinala o conceito patrimonial da
modernizao aristocrtica dos Bragana, sua paixo pelos acervos.
Com elao Imprio comea coleesculturais. Observa Max Fleiuss,
secretrio perptuo do Instituto e diretor de ''A Semana", revista
porta-voz da formao intelectual que fundaria, em 1897, a
Academia Brasileira de Letras, que
[... ] so inapreciveis as doaes de patrimnio intelectual que o
Imperador fez ao Instituto. Bibliotecas, arquivos de manuscritos e
mapotecas completas. Basta dizer que o ncleo principal de sua
vastssima coleo de livros, cartas, mapas geogrficos e autgrafos
raros - o que o Instituto, desde h muitos anos zelosamente acumula-
pertenceu biblioteca do Imperador. a coleo magnfica de Martius,composta de 600 obras, em vrios idiomas, referentes todas elas ao
Novo Continente. So valiosos volumes em edio princeps, e
maravilhas rarssimas, como por exemplo o mapa da 'Razo de Estado
do Brasil', todos eles doados ao Instituto, em vida ou depois de seu
falecimento, como a melhor de suas riquezas, pelo insigne monarca
(FLEUISS, 1938, p. 22, traduo minha).
A esse acervo deveramos agregar a fotografia, de que Dom
Pedro, alm do mais, foi interessado cultor. Por outro lado, convm
destacar que esse um momento de esplendor da imagem e ela, em
boa parte, ajuda a construo do imaginrio nacional. Peridicos
como "O Ostensor Brasileiro", em que colaboraram Alberdi e
Mrmol, ou "Jornal das Senhoras", de Joana Manso, sem esquecer
"Guanabara", "Revista Popular" ou "Revista Ilustrada", acolheram
os trabalhos de ngelo Agostini, Alfred Martinet, Augusto Off ou
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Potncias da imagem
Henrique Fleuiss, pai de Max. Como exemplarmente resume
Alexandre Eulalio, a trajetria da imagem inseparvel da
modernidade Imperial.
Em 1842 eram pela primeira vez mostradas fotos na Exposio Geral; elas
continuaro presentes, recebendo distines nesses certames, tanto na sua
forma propriamente mecnica, quanto realadas sob a espcie das foto-
pinturas - processo que, em 1866, Victor Meirelles compreensivelmente
desaprovava por lhe parecer fonte de retrocesso 'da verdadeira arte'. As
diversas variantes da foto-pintura, praticada pelo menos desde 185O e tantos,
por um Joaquim lnsley Pacheco (ele mesmo artista do pincel) e por um
Augusto Stahl (associado, no Recife, ao pintor Steffen, no Rio de Janeiro a
Wahnschaffe), aderem ainda artistas visuais de certo prestgio, como Louis-
Auguste Moreau, Miguel Caiiizares e Ernst Papf; este ltimo chegou
mesmo a abrir durante algum tempo atelier especializado. O trabalho de
encarnar o 'fantasma' fixado na placa 'que podia ser recoberto a leo, a
guache e mesmo a pastel' segundo sempre Victor Meirelles, 'se algum
merecimento pode ter certamente devido ao pintor e no ao fotgrafo'. A
firma Carneiro & Gaspar contava com o grafismo elegante de Courtois; j
Alberto Henschel 'avivava' pessoalmente as suas reprodues; Jos Ferreira
Guimares especializara-se, por seu lado, em 'retratos vitrificados, fixados
a fogo como as pinturas de Sevres e Limoges'. Uma referncia apenas
fuso foto-litografia: um gnero que encontra alguns dos mais altos
momentos da nossa iconografia oitocentista nas vistas brasileiras fixadas
pelas objetiva de Victor Frond e litografiadas pelos melhores mestres do
gnero da Paris de N apoleo lIl. Precedem -nas de um decnio o panorama
da capital do que os lpis litogrficos de Benoit e Cicri deram relevo todo
especial (EULALlO, 1992, p. 156).
Herdeira, portanto, dessa tradio, a Repblica no s no
interrompe a atitude colecionadora de imagens, mas reorienta-a. A
"Revista Americana", rgo oficioso do Itamaraty, organiza, com
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o inconsciente tico do modernismo
efeito, um tipo peculiar de coleo: as nacionalidades americanas,
unidas, em nome de uma poltica de hegemonia regional, pelo pan-americanismo do baro do Rio Branco.
No nem um pouco surpreendente, ento, que, mais tarde,
na era Vargas, vrios peridicos culturais ainda se pautem por
programas nacionalistas e modernistas, em perspectiva de fuso,
ou de amlgama, do supra-regional, mas por isso mesmo lgico
que quase todos eles permaneam atentos pulso escpica.
"Atlntico" e "Travei in Brazil", publicaes do Departamento de
Imprensa e Propaganda, ilustram aspectos pouco estudados do
modernismo brasileiro. Ambas catalisam colees geopolticas
especficas. A primeira revista, alinhando-se com os interesses
estratgicos no Atlntico de Salazar U que era publicao bi-
nacional, sustentada tambm pela Secretaria Nacional de
Propaganda de Portugal). A segunda, entretanto, identificando-se
grosso modo com a dominante norte-americana para a regio. Mas,
alm destas manifestaescoincidentes, as duas publicaes ilustram
modos divergentes de entender o moderno, tramas especficas de
espao e tempo em que o prximo, por mais colado que estiver,
aparece irremediavelmente distante de ns e isto graas s imagens.
A imagem fotogrfica
Ora, em uma colaborao para o "Jornal de Letras", CarlosDrummond de Andrade teoriza sintomaticamente sobre essa
virtualidade da fotografia, recordando que,
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Potncias da imagem
[ ... J segundo Paul Valry, deviam os filsofos meditar no nmero
prodigioso de estrelas, radiaes e energias csmicas que s se tornaram
conhecidas atravs da fotografia; energias, radiaes e estrelas que, por
assim dizer, ficamos devendo placa sensvel do fotgrafo. Mas essa
placa no nos desvenda somente os mundos longnquos e as vibraes
imponderveis da matria. Os nossos prprios mundos individuais, o
mundo interior que se defende por trs das aparncias catalogadas do
mundo de todos os dias - o fotgrafo consegue, muitas vezes, capt-lo
em sua pureza singular, quando nem o psiclogo nem o pedagogo nem
o ficcionista dele retiram mais que um esboo confuso.!
Vale a pena, portanto, observar mais em detalhe esta potica da
imagem, nas duas publicaes do modernismo tardio que acabamos decitar.
Dirigida por um ex-vanguardista, Antonio Ferro2, a revista
'~tlntico", furtivamente visual, opta pela exibio de um patrimnio
plstico tradicional, admitindo, no mximo, a ilustrao convencional,
tipogrfica ou em desenhos, de artistas como Santa Rosa, Tarsila ou
Nomia. "TraveI in Brazil", no entanto, escrita em ingls, com textos
especficos de modernistas como Mrio de Andrade, Manuel Bandeira,
Ceclia Meireles ou Srgio Buarque de Hollanda, assinala, por sua vez,
um aspecto mais instigante da modernidade perifrica: seu inconscientetico.
Caberia reivindicar este conceito no apenas como um ingrediente
marginal ou deslocado do moderno, mas, at certo ponto, como
caracterstico de um ponto de vista menor, digamos assim, "latino-
1. M.P. (pseud. Carlos Drummond de Andrade). Retratos do artista quando menino. "Jornal de
Letras", Rio de Janeiro, novo1949. o nico texto de Drummond com essa acrografia.2. Prefaciado por Gmez de ia Serna e Eugenio d'Ors, Antonio Ferro foi bigrafo de Oliveira Salazar.
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o inconsciente tico do modernismo
americano". Efetivamente, Marcel Duchamp quem comea a se
interessar pela imagem como elemento analtico da prtica cultural,
atravs de suas estereoscopias, praticadas pela primeira vez em Buenos
Aires, no final da primeira guerra. Mas , de fato, Walter Benjamin,
em 1931, quem estipula teoricamente que, atravs da fotografia,
descobrimos a existncia de um inconsciente tico, assim como nos
deparamos com o inconsciente por meio da psicanlise. Primeiro em
Walter Benjamin, logo em Drummond de Andrade, reaparece, pois, o
conceito de Valryde que, sempre iminente, a fotografia frustra o encontro
e se revela como pura distncia.
Poderamos dizer, em poucas palavras, que no predomnio
concedido imagem em detrimento do texto, "TraveI in Brazil" revela
o enigma do modernismo. Suas imagens, obtidas por J ean Manzon,
Eric Hesse, Jorge de Castro, Vieira, Kahan e outros, so elucidativas
tanto das fantasias visuais, hiperestticas, do Estado Novo como da
sutil fuso anestsica promovida pelo canto orfenico de Villa-Lobos,
calorosamente defendido por Mrio de Andrade em suas pginas. Esto
a o jangadeiro de Orson Welles e o tropeiro de Glauber Rocha, para,
em suma, constatarmos, na rasura que supe uma revista, em primeiro
lugar, editada pela censura, e no menos importante, em ingls, a relao
especular do modernismo com seu Outro.
Admitindo a hiptese de que a imagem espectro e, como tal,
no apenas fantasma, mas srie ou leque, uma reportagem,
aparentemente secundria, assinada com pseudnimo, chama
subitamente nossa ateno. "Through the Rio streets", tal a matria,
organiza-se a partir das poderosas imagens de J ean Manzon, ilustrando
um texto evocativo das profisses ambulantes que a cidade v
desaparecer. Toda imagem vem acompanhada de uma epgrafe. Ver e
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Potncias da imagem
ler. Como assinala Bourdieu, uma foto no nada sem essa epgrafe
que nos diz o que deve ser lido - legendum - ou seja, algo que, com
frequncia, s uma lenda que nos faz ver qualquer coisa. Mas neste
nomear, fazer ver, criar ou levar a existir, as epgrafes particularizam,
precisamente, uma caracterstica da fotografia, sua distncia mdia entre
o infinito e o sujeito, seu trao irredutvel, o a-a-t que lhe atribua
RolandBarthes(BARTHES, 1997,p.1l63;ZAPATA, 1997,p.1O-14).
Todas as imagens da matria em questo sublinham ou dobram
o que a imagem impe, um irrevogvel passado colonial e migratrio.
"An italian fruit vendor", "The itinerant Portuguese grinder", "The
Portuguese fresh-eggman", "The Portuguese ambulant seller of
brooms and feather-dusters", todas apontam um mundo de interesses.
Interessere, que est entre dois mundos, que afirma e nega, que atrai,
enfim. So o complemento de outras imagens, as de vendedores de
frutas pintadas por Tarsila do Amaral ou ainda aquelas outras, filmadas
por Humberto Mauro na mesma poca, as de profisses rurais
condenadas, cuja distncia dramatizam os cantos de trabalho. Nestas
que nos ocupam, no entanto, uma identidade europia, manual e
artesanal, arquivada com o mesmo gesto com que outra nova, nacional
e industrial, a substitui. Mas esta mudana no menos problemtica,
j que o novo, to novo, diga-se de passagem, como o Estado que o
promove, o Estado Novo, um regime autoritrio, de represso interna,
alinhado aos Estados Unidos, sua proteo externa, para uma drstica
industrializao do pas.
As fotos, portanto, suspensas em meio metamorfose, mais do
que o "eis aqui" mtico do novo, exibem a problemtica imagem do
"isto foi", ou seja, a distncia de uma modernidade esquiva que se impe
como proto-histria de nossa reconstruo contempornea. Essas
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o inconsciente tico do modernismo
imagens de Manzon elegem como objeto artstico o mundo do trabalho,
mas expurgando dele todo vestgio de violncia ou explorao. O novo
desse Estado de compromisso, quando no de exceo, insinua a lenta
substituio do brao pela mquina e impe a arbitragem do Estado
nos conflitos suscitados pelos interesses discordantes entre cidadania e
modernizao. Essas fotos dramatizam a existncia de duas faces do
cultural que, por sua vez, engendram formas histricas de organizao
social. No apontam um movimento teleolgico progressivo, "novo",
de superao do passado pelo presente, mas a reabertura indefinida e
infinita de um conflito entre o princpio de utilidade e o princpio de
perda. O Brasil est, ento, definindo, o que fazer com seus
investimentos, j que o excedente econmico, que no poder mais ser
desperdiado periodicamente em festas e transgresses coletivas, deve
da por diante ser reapropriado e utilizado pelos setores dominantes na
criao ou consolidao de empresas militares e religiosas: a guerra, a
arte nova, a festa disciplinada, o turismo, enfim, de "TraveI in Brazil".
N esta linha de anlise, inscrevem-se textos como "Holly week in
Ouro Preto", de Ceclia Meirelles (n. 4, 1942), "Carnaval in Rio", da
mesma Ceclia, publicado em um nmero (n. 2, 1941) cuja capa traz
Carmen Miranda em fotomontagem tropicalista, provavelmente de
Sanso Castello Branco, e mesmo "Ouro Preto and the old Vila Rica",
de Manuel Bandeira (n. 4,1941).
Tradicionalmente identificadas com a ordem profana, razo e
moral passam a ser, em certa medida, divinizadas por estas imagens,
enquanto o divino, decado, agora racionalizado como uma arte a
servio da guerra contempornea, guerra entre as naes, em funo
da diviso poltica. H aqui uma evidente opo entre dois modelos
divergentes do moderno, o de Marx e o de Nietzsche. Marx, como
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Potncias da imagem
sabemos, prope a secularizao radical do social para a abolio da
propriedade privada e o conseqente desaparecimento de fronteiras
polticas internacionais. Nietzsche, por sua vez, acredita que o homem
deve liberar-se da tutela racional e do temor ao limite temporal para
afirmar a vida como aposta criativa, ldica e elusiva, mas, ao mesmo
tempo, gozosa dolorosa, o que, em ltima anlise, configura a
emergncia de uma subjetividade soberana.
Niet'lsche, em geral, foi lido como defensor de uma soberania
meramente objetiva e esta ser a divergncia que a tradio de Bataille,Blanchot e Foucault recriminar ao saber consolidado: confundir
soberania e poder, buscar a autopreservao ao preo de controlar o
futuro e dominar os demais. essa, precisamente, a perspectiva queAlmir de Andrade, um dos diretores do Departamento de Imprensa e
Propaganda, deixa claro quando afirma que
[...] no reconhece Nietzsche qualquer idia moral que pretenda definir o
bem em si ou o mal em si: bem e mal so conceitos relativos, que se
modelam sobre os objetivos da vontade-de-poder do homem superior. Os
fins justificam todos os meios, desde que se tenha em vista desenvolver na
personalidade humana avontade-de-poder, que traz em si os bens supremos
e essenciais da vida, que gera tudo o que grande, nobre e duradouro sobre
a terra. A filosofia de Nietzsche conduz, assim, a uma 'transmutao de
todos os valores', com o fito de alcanar o sobrehumano, isto , a
personalidade que transcende, que se satura dessa potente e grandiosa
vontade-de-viver ou vontade-de-poder, smbolo da dominao do homem
sobre si mesmo e sobre o mundo exterio~ (ANDRADE, 1949).
3. Prefcio de Agrippino Grieco. Com aparente objetividade, Almir de Andrade observa neste
prefcio posterior guerra que "a doutrina de Nietzsche foi a grande inspiradora do Fhrerprinzip
do pensamento nacional-socialista alemo e de toda a filosofia poltica do Nazismo e do Fascismo."
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o inconsciente tico do modernismo
Fascismo e imagem
Esta alternativa super-herica de Nietzsche reabre, assim, em
pleno estadonovismo, a discusso sobre os limites entre natureza e
cultura, que o darwinismo social, com sua impugnao do mito
teleolgico e do dogmatismo bblico, havia capitalizado para si como
religio da cincia. Tornam a ser uvidas, em conseqncia, as
fantasias viris do empirismo, que impregnam inclusive seus prprios
crticos. Walter Benjamin, talvez o mais ilustre deles, ao concluir
seu clebre ensaio sobre "A obra de arte na poca de sua
reprodutividade tcnica", estabelece uma correlao entre a
crescente proletarizao do homem moderno e o alinhamento,
tambm crescente, da sociedade que ele explica dizendo que o
fascismo trata de organizar as massas sem tocar nas condies da
propriedade que essas mesmas massas queriam destruir. Assim, o
fascismo buscaria, de fato, com seu vitalismo, conservar as condies
culturais prvias de existncia. A conseqncia prtica, em seu juzo,
como sabemos, o ecletismo beligerante da vida poltica. E
acrescenta: " violao das massas, que o fascismo impe pela fora
no culto ao caudilho, corresponde a violao de todo um mecanismo
posto a servio da falsificao de valores culturais" (BENJAMIN,
1973, p. 56, traduo minha).
Ora, J ess Aguirre, o duque de Alba, em sua verso do ensaio
ao espanhol, traduz corretamente o conceito de Vergewaltigung der
Massen, violao ou, para enfatizar o sentido tambm presente em
alemo, estupro. Deve-se observar, entretanto, que o conceito
desdobra-se em outro, Vergewaltigung einer Apparatur, duplicando,
assim, mesmo os sujeitos femininos, die Masse ou Apparatur (e
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Potncias da imagem
sintomaticamente no Apparat masculino) com o que o estupro das
massas e das cmaras no apenas feminiza suas vtimas, mas tambm
antropomorfiza-as, no sentido carregadamente genrico da expresso,
vinculando-as ao mesmo fascismo que, linhas adiante, manifesta-se
sintomaticamente, em prosopopia:ftat ars - pereat mundus4
O fascismo condena, assim, a physis para exaltar o fsico como
Kultwerten, ou seja, fisioculturismo. Essa sua arte. As fotos de Jorge
de CastroS, discpulo de Portinari, que ilustram o trabalho da Escola
de Educao Fsica6 juntam, precisamente, estetizao e mercan-
tilizao. Partem do esforo comunitrio e blico ("A. well developed
tug-of-war team" a epgrafe de uma delas; "Like a bronze statue",
a de outra) e prometem um para alm do humano, embora consigam
apenas trazer mais para c as promessas da indstria, at alcanar um
fetiche de poder. A superposio de seis braos, em um desses
exerccios, mostra-nos "a physical jerks stunt that looks like an ancient
4. Com o que Benjamin, em prespectiva nietzscheana, transvalorizaria os valores do rnscismo; ou
seja, criticaria a violncia, mas participaria, em ltima instncia, da retrica da virilidade.
(5PACKMAN, 1996).
5. Jorge de Castro comps tambm as letras de muitas marchas de Carnaval com Wilson Batista,destacando-se "Man Garrincha" ou "Rei Pel" e, em 1956, "Todo vedete", sobre o baile de
travestis no teatro Joo Caetano, que teve problemas com a censura. Cf ''As fotografias de Jorge deCastro", Dom Casmurro, 21 out. 1939.
6. Em "The National School of Physical Education of Brazil" ("Travei in Brazil", vol. 2, n. 4,
1942), J. Moreira de Souza estipula que "in the general plane adopted by the state to concretize,
on solid bases, the aspiration of the create an institution, through which it would by possible to
improve their physical health and morale, as a foundation for the working out of national organic
reconstitution, from which should emerge the complete political programme of government which
was pledged to give to it's people a happy life, and to the N ation, an ample and solid sovereignty.
When President Vargas, on the instal1ationof the N ew State, proclaimed the inauguration of an era
of economic emancipation, as an indispensable base of political independence and moral autonomy,
he diligently sought for methods to bring about this ideal, and amongst other creations of this lucid
and pratical mind, the National 5chool ofPhysical Education and Sports was evolved".
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o inconsciente tico do modernismo
hindu God", isto , O dolo funciona como um simulacro de deus,
assim como o homem um simulacro do dolo. Mrio de Andrade
achara, nessas fotos, o "dom de apanhar a poesia do real". Talvez
fosse o caso de interpretar o real como o Reallacaniano, o que no
cessa de no poder ser representado.
Mas este mesmo gesto, no qual podemos adivinhar uma violao
das massas na estetizao da fora, admite seu complemento, a
antropomorfizao do fantasma, ou seja, a visualizao de um desejo
homoertico - as malhas cavadas dos atletas, as ndegas para o ar, as
dobras da roupa ou as poses, mais tarde banalizadas por qualquer
carto postal de So Francisco - o que nos persuade de que a nica
semntica da imagem fotogrfica sua pragmtica, seu modo, sua
prtica. Este seu valor mais concreto e contundente. O cone esttico
absorve, assim, tanto as funes fundacionais do logos como a physis
dos filsofos, para exibir, portanto, a conjuno (carnal) de iconofilia
e inconsciente.
Tais contradies tm seu correlato no plano tico e juntam-se
s idias de uma moral invertida nos quinta-coluna, defendida por
Sartre no terceiro volume de "Situations". O colaborador, nesta
perspectiva,
[...] em vez de julgar os fatos luz do direto, fundou o direito sobre os
fatos. Sua metafsica implcita identifica o ser com o dever ser. Tudo que
, bom; o que bom o que . Sobre tais princpios construiu
apressadamente uma tica da virilidade. Tomando a mxima de Descartes
- 'o homem h de vencer a si mesmo antes que ao mundo' - pensou que
a submisso aos fatos uma escola de valor e de dureza viril. Para ele, o
que no parte de uma apreciao objetiva da situao no mais que uma
fantasia de mulher e um monte de palavras vazias. Explicou a resistncia
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Potncias da imagem
como uma adeso anacrnica a costumes e a uma ideologia extinta e no
como afirmao de um valor. No entanto, sempre ocultou a si mesmo a
contradio profunda encerrada no fato de que ele tambm escolheu os
acontecimentos que constituem seu ponto de partida (SARTRE, 1965,
p. 38, traduo minha).
E esse ponto de partida implica sonhar para alm da
sensibilidade, um "tempo de camisolinha", como diria Mrio de
Andrade, onde fosse possvel localizar uma vida autntica, hoje ausente.
Esta parte separada, destacada e at mesmo maldita da vida possvel,
que, na realidade, confunde-se com todo o futuro, emerge, assim, do
corao mesmo de uma imagem, no apenas como sua abstrao,
mas como supersensao, algo j realizado de antemo. Sua durao
carrega-se ento com a opacidade da morte e seu outro surge com a
fora de uma iluminao. Toda existncia fica, portanto, separada de
sua essncia. Toda a sensibilidade resulta amarga. Toda conscincia
de si, revelando ao homem sua impotncia, impe, por seu lado, seu
prprio desprezo. Todo homem , de algum modo, aleijado e no h
poltica higienista capaz de redimi-lo ou reabilit-lo.
Como na teoria do leitor desatento de Macedonio Fernndez,
o inconsciente tico remete a um infinito dessublimizado, proveniente
de uma experincia cotidiana vista e vivida, embora no
deliberadamente contemplada que nos conduz, como diz Italo
Moriconi, ao no tematizado pelo olhar, mesmo quando integra
satisfatoriamente as percepes mais convencionais do indivduo.
Como mescla de choque e apatia, de intensidades corporais e
sonambulismo de massas em viglia pelo novo, o inconsciente tico
articula tcnica e vivncia, nos levando a uma percepo sinestsica e
a uma poltica da imagem que procedem do visual ao ttil:
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o inconsciente tico do modernismo
Ao contrrio de uma pedagogia conservadora, o tempo distrado, tempo
entre um momento e outro de intensificada focalizao pelo olhar (ateno
intensa, base da reflexo) no encarado por Benjamin como homogneo
e vazio. Nele ocorre a recepo comandada pela dominante ttil. Nele
ocorre tambm o descentramento do sujeto individual, pois a recepo
coletiva pressupe um revezamento na posse da palavra. Para Benjamin,
a recepo ttil especialmente significativa nas conjunturas de
transformao histrica. no domnio da recepo ttil que se formamos hbitos. E na decomposio analtica do habitualizado pelo cotidiano
que se formam novos modos de vivenciar e perceber determinados pelo
desenvolvimento tcnico. Se a pedagogia iluminista atua de cima para
baixo, disciplinando desejos (ou seja, habitualizando) a partir de idias e
de estruturas formais, Benjamin aponta para toda uma nova realidade,
ainda mais vigente hoje que em seu tempo, em que os ideais a construir
devem partir do reconhecimento da instabilidade emocional coletiva
(MORICONI, 1996, p. 144-5).
Primeiro impulso de uma existncia saudvel, a pulso, faltando
em seu verdadeiro objeto, prolifera em virtualidade, mas agora em
uma variante sufocada, abortada, e naquilo que poderia ser o ritmo
de participao na vida, transforma-se, pelo contrrio, em signo do
proibido. curioso pensar, a partir destas imagens, na biopoltica doEstado Novo, mais ainda levando em conta que a videopoltica
contempornea, de um lado, orgulha-se de sepultar a era Vargas
enquanto, de outro, revoga uma lei do aborto, em casos de estupro,
aprovada por esta mesma ditadura, violenta por definio. No Brasil,
por paradoxal que possa parecer, as ditaduras tm sido modernizadoras
tanto como a modernizao, ditatorial. Tamanha indefinio de limites
prova que as relaes entre identidade e sexualidade, arte e tcnica,
exigem, para sua correta avaliao, uma potica especfica, nada alheia,
por sinal, s estratgias requeridas pela leitura de uma revista literria.
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Potncias da imagem
Analisar um peridico cultural mimetiza sua produo mesma:
obriga-nos a selecionar e a omitir, produzindo um texto, uma leitura,
que colagem espacial ou montagem temporal de fragmentos,
enxertados em relaes provisrias ou aleatrias que, no entanto,
reafirmam o motor mesmo do moderno: a experincia do descontnuo
(BENNETT, 1989, p. 480).
Alfonso Reyes percebeu esse fato quando, ao traar uma teoria
da antologia, observou que "las antologas marcan hitos de las grandes
controversias crticas, sea que las provoquen o que aparezcan como
su consecuencia. En rigor - acrescenta - las revistas literarias de
escuela y grupo se reducen a igual argumento y cobran carcter de
antologas cruciales" (REYES, 1942, p. 136). , enfim, por esse carterantolgico e descontnuo, entendido como ndice efetivo de formaes
proto-histricas, que o sentido se rearma, sem resto, para bem ou
para mal, como um enigma que nos indaga e nos exige, em todos os
sentidos que a frase possa ter, que a poltica deve ser revista na medida
em que a revista, tal como a experincia comunitria, se nos apresenta,
para retomar a categoria de Jean-Luc Nancy, desoeuvre, inoperante
e improdutiva, o reverso da oeuvre benjaminiana, o anverso do texte
barthesiano. No h nela nem obra a ser produzida, nem mesmo
comunicao extraviada no tempo. H to-somente um espao e, em
conseqncia disto, o espaamento de uma experincia do exterior
que, a contrapelo de toda nostalgia, ilumina-se com a conscincia de
sua prpria separao.
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Polticas da amizade eanamorfose do moderno
N ous hsiterions toutefois au bord d'une fiction. Le monde serait
suspendu une sorte d'hypothese lmentaire et sans bord, une
conditionnalit gnrale gagnerait toutes les certitudes. I..:espace et le
temps virtuels du "peut-tre" seraient en train d'aspirer Ia force de nos
dsirs, Ia chair de nos vnements, le plus vivant de notre vie. Non, ils
ne seraient pas mme en train de le faire, car Ia prsence mme d'un tel
processus serait rassurante et encore trop effectivej non, ils seraient
tout pres d'y parvenir et cette imminence suffirait leur victoire. Elle
suffirait non s'y opposer, cette force et cette vie, ni les contredire,
ni mme leur nuire, mais pire encore, les rendre possibles, les
rendant ainsi seulement virtuels, d'une virtualit qui ne les quitterait
plus jamais, mme apres leur effectuation, les rendant donc impossibles
par l mme, comme seulement possibles, jusque dans leur prsume
ralit. La modalit du possible, l'insatiable peut-tre dtruirait tout,
impIacabIement, par une sorte d'auto-immunit dont ne serait exempte
aucune rgion de l'tre, de Ia phsis ou de l'histoire. AIors naus
imaginerions un temps, ce temps-ci, nous n'en aurions pas d'autre en
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Potncias da imagem
tout cas, mais nous hsiterions dire "ce temps-ci", doutant de sa
prsence, ici maintenant, et de sa singularit indivisible. N ous voudrions
nous rapproprier, ici maintenat, jusqu' cette hsitation, jusqu'au
suspens virtualisant de cette poque, pour le crever, pour l'ouvrir d'un
coup sur un temps qui serait le ntre, et seulement le ntre: le
contemporain, si quelque chose de tel se prsentait jamais.
Jacques Derrida
Como sabemos, a inscrio de uma marca em uma cena proto-
histrica, digamos, o moderno ou o outro, reprime, de algum modo,
um significado diferente do mesmo signo, por exemplo, o nosso, o
prprio que, ainda que invisvel no momento, permanece assim em
estado de suspenso estratgica, em outro lugar, sorte de antecmara
ou bambolina da cena textual e, mais do que isso, transforma-se na
conscincia ps-histrica do mesmo acontecimento. H ali uma
anfibologia cultural que se rene com o carter estriado que
apresenta a problemtica do moderno e do perifrico, conceitos que,
sendo constitudos de diferenas e, mais ainda, de diferenas de
diferenas, definem-se como o absolutamente heterogneo, o devir,
a deriva, constantemente compondo-se com as foras que tratamde anul-Ios.
Poderamos recorrer, para ilustrar esse complexo processo de
compossibilidades do moderno, ao peculiar curso de uma coleo,
a mostra de vinte pintores brasileiros que, em 1945, cruza a cena
cultural de trs pases, os quais, depois da guerra comum (a do
Paraguai), encontraram na arte moderna a soluo integradora de
suas energias fundacionais. Mas, ao mesmo tempo, essa emergncia
do moderno, em plena poca da guerra (entre politizao da arte
ou estetizao da violncia, quer dizer, entre vanguarda e kitsch)
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
prefigura outra guerra, a contempornea, de dissoluo dos Estados
ou, em outras palavras, de consolidao de mercados
videofinanceiros. H uma imagem do pblico mas sobretudo uma
poltica das imagens que magnetiza a cena urbana e popular na
Argentina, Brasil e Uruguai nesse momento inapreensvel. A
disseminao dessas marcas e seu refgio no museu explicam boa
parte dos avatares de nossa modernidade. Vamos, portanto,
reconstruo dos fatos.
Pettorut: nova forma e no-verdade
Em 1924, ao voltar impensadamente ao pas natal, rompendo
assim sua carreira artstica europia, Emlio Pettoruti (1892-1972)
transforma-se no paladino da nova plstica argentina, amparado
por seus corifeus martinfierristas: Xul Solar, Alberto Prebisch,
Ricardo Giraldes, Ernesto Palacio. No tardaria a chegar, junto
com a exibio de suas pinturas, a divulgao de suas idias, nem
sempre to identificadas, como se pode acreditar, com o programa
futurista, j que, afinal de contas, Pettoruti um pintor vinculado
Famgla Artstica milanesa, saudado por Carr, Marinetti ou
Bragagliaj nas pginas de "r..:lmpero" ou "Giovinezza", como "um
dos nossos". Se parece atrevido sugerir um vnculo orgnico com
os princpios hierrquicos da ordem italiana, nem sequer ocorreria
aos seus admiradores agreg-Io inequivocamente ao futurism07. Em
7. Apesar dos elogios de Marinetti, na conferncia da Sorbonne, no sentido de ser o primeiro pintor
do futurismo, ou no artigo para "El Diario", em sua visita a Buenos Aires em 1926, seu principal
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Potncias da imagem
compensao, impossvel recusar sua vocao para o debate
vanguardista nesse seu "renascimento" no Prata. Em 1926, ao expor
na principal galeria de Buenos Aires, "Amigos del Arte" (1924-
1943) - mais um avatar das "polticas da amizade", dessa vez, sob o
comando de Beb Sansisena de Elizalde, promotora de exposies
de Siqueiros ou Figari, bem como de cursos ou conferncias de
Fondane, Garcia Lorca, Ortega y Gasset, Bragaglia, Marinetti ou
Le Corbusier - nesse momento, ento, Pettoruti explicita sua
posio frente a uma poltica do olhar (a cpia da realidade, a cpia
da Europa), tpico recorrente, desde o criacionismo de Huidobro,no debate cultural dos anos trinta:
Desde o Renascimento at o impressionismo passa-se um grande
perodo de tempo na arte em que nada de fundamental varia, desde que
tudo gira sobre um mesmo apoio angular: a reproduo da Natureza,
mais ou menos idealizada, mas sempre a Natureza, quer dizer, o j
existente. No se cria nada. [ ...] O impressionismo deu o primeiro
golpe de picareta a esse realismo impuro ensaiando, por meios tcnicos,
uma transmutao dos valores, que so dissociados, alterados e
ordenados novamente de maneira distinta, a fim de produzir 'uma
impresso' da realidade, e no a simples viso da realidade mesma.
[ ...] Isto era algo, porm ainda muito pouco, porque a Natureza, os
objetos variavam mas continuavam sendo a razo de ser do quadro. E
defensor, Xul Solar; argumenta que "no pretende Pettoruti impor-nos uma moda dada, convencendo-
nos de qualquer coisa com a pujana de seu talento. Sua arte est dentro de todo o sculo espiritual
presente. Desta poca em que a arte mais individual e arbitrria do que nunca, no podemos dizer
que seja anrquica. Existe, apesar de tanta confuso, uma tendncia bem definida para a simplicidade
dos meios expressivos, a arquitetura clara e slida, at a pura plstica que conserva e acentua a
significao abstrata de linhas, massas, cor, tudo dentro de uma liberdade de compreenso e composio.
Estas amplas perspectivas novas, este srio esforo de Pettoruti - dissidente por fim - nos ocasionam
um alvio e uma liberao. A valentia desse pintor exemplificar" (PETTORUTI, 1924).
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
trata-se de que a pintura no siga as leis externas, alheias sua essncia,
no prossiga tiranizada pelo 'motivo', mas que, pelo contrrio, torne-se
independente e desvincule-se completamente do mundo exterior, para
no seguir seno suas prprias leis, impostas por necessidades de ordem
exclusivamente plstica: a cor e a linha.8
o exemplo da msica, ao qual recorre Pettoruti, j tinha sidoexplorado anos antes por Mrio de Andrade, em "Reao contra
Wagner" e mesmo em "A Escrava que no Isaura" (1925),
provavelmente lida por Pettoruti. No nos esqueamos que, alm
da correspondncia e dos recortes, o pintor lhe oferece uma aquarela
com tema de palhaos, de 1917, portadora de inequvoca dedicatria,
"A Mario de Andrade, carino". Diz ento Pettoruti:
A msica emancipando-se dos motivos pitorescos ou descritivos, e at
da interpretao e do reflexo de paixes e estados de nimo, foi-se
elevando at chegar na sinfonia, a com justia chamada 'msica pura',
porque desvinculou-se dos fins representativos que a escravizavam e
encaminha-se apenas para produzir beleza 'em si', e s utiliza e obedece
suas prprias leis: as do som e da harmonia. [ ...] Como ela e como a
arquitetura, que tambm se rege unicamente por suas leis ntimas e no
se prope representao alguma, deve chegar a pintura a esse estado de
'pureza' em que se emancipe do objeto para produzir somente obras
carentes de significao anedtica, puramente plstica. [ ...] A isso
vamos. Entretanto, observe voc que a nova pintura a nica que
realmente cria, isto , produz beleza por meio de elementos que o
artista busca e apreende em seu prprio esprito.9
8. Declaraes colhidas por Conrado Eggers-Lacour em "Pettoruti, primer pintor 'izquierdista'
argentino". "El Pas", Crdoba, 7 ago. 1926, (grifo meu).
9. Mrio de Andrade disse em relao msica que "sendo a mais vaga e a menos intelectual de
todas as artes fatalmente teria uma evoluo mais lenta. Os homens pouco livres ainda em relao
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Potncias da imagem
Copiar a natureza equivale, sem dvida, a copiar a Europa, o
tema que mais tarde desenvolver Martnez Estrada em
"Radiografa de Ia pampa". Mas no s nos artigos que escreve nos
anos 30 para a revista "Comps", como tambm em suas idias de
recm-chegado, Pettoruti no esconde que o importante tornar-
se independente da subservincia e, para isto, a tcnica pode seruma aliada:
De modo que, em sntese, temos desde o Renascimento at o
impressionismo, cpia ou, quando muito, interpretao: dali at as
novas tendncias, transposio, translao; e daqui at quem sabe
quando, criao [...]. A nova pintura responde sensibilidade da poca
atual, em seu ara de velocidade, de sntese e de criao. tambmtecnicamente seu produto, desde que a grande multiplicao das cores,
operada pela cincia, deu uma riqueza enorme palheta do pintor
contemporneo e, com isso, uma grande liberdade a seu esprito.
Poder-se-ia pensar a preponderncia estruturante da cor como
manifestao especfica dessa mesma imaterialidade da arte moderna.
a linha evolutiva que Thierry de Duve verifica em Duchamp ouque podemos traar em Benjamin, desde seus aforismos adolescentes,
que descrem de uma teoria harmnica da cor (salvo na passagem da
linha ao volume, o que implica tambm o olhar histrico), at suas
natureza tinham compreendido as artes praticamente como IMITAO. A msica no imitava
de modo fcilmente compreensivel a natureza. D'a apezar do prazer todo sensual que distilava, da
preferencia em que era tida, de seu lugar preponderante e indispensavel nas funes de magia e
religio, o estar sempre esclarecida, tornada inteligivel pela palavra. [...] Libertada da palavra, em
parte pelo aparecimento da notao medida, em parte pelo desenvolvimento dos instrumentos
solistas, conseguiu enfun tornar-se MSICA PURA, ARTE, nada mais." (ANDRADE, 1925).
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
consideraes sobre a teoria da cor de Goethe, que o conduzem a
dissociar conhecimento e verdade, postulando que no existe
conhecimento verdadeiro, assim como nunca h verdade j conhecida.
A arte e a crtica surgiriam, assim, como fragmentos do saber para
uma hiptese de verdade, e isto, inequivocamente, mantm contato
com uma teoria da histria e uma teoria da identidade, em que sempre
a totalidade aparece elusiva. A recepo expressionista de Pettoruti,
como o ilustra Sem Roem em 1923, soube destacar justamente esse
esforo pelo mais audaz da arte pura, ainda que se tratando de simples
prismas em af construtivo: conceder plasticidade ao dinamismo das
linhas, no concluir, no totalizar. Essa idia de um objeto in progress
aplicava-se no s ao objeto artstico imanente mas, em consequncia,
relao entre arte e sociedade. Assim, em outro artigo da poca,
sobre "N eoclassicismo e nacionalismo", Pettoruti destaca uma linha
argumentativa de reinveno da tradio, conciliando vanguarda e
nacionalismo, em posio tambm compartilhada com Mrio deAndrade:
Somente das novas tendncias de onde ns - como todos os demais
pases novos, sem tradio plstica - devemos forosamente dar a
partida. [ ...] As novas tendncias so as nicas que se ajustam na
tradio, se por tradio entende-se o esprito e no a forma: o resto
uma cpia fria, uma receita de tudo o realizado em outras pocas, por
outras civilizaes: 'Em outra vida'. [...J As novas artes so as nicas
que nos deram 'algo vivo', delas sair, sem dvida alguma, a arte que
preencher todas as nossas necessidades. [ ... J As manifestaes
artsticas foram sempre 'um momento dado', 'uma idia', e houve tantas
idias quantas foram para os povos as maneiras de compreender o
amor, a religio, a moral. [...J As novas tendncias, alm da tradio
ocidental, assimilaram as orientais, as brbaras, as negras, etc., isto o
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Potncias da imagem
que as far mais universais. [ ...] Efeito de supercultura, tradies estas
ltimas que muitas pocas ignoraram e que, por isso, a arte se reduzia
quase que exclusivamente a certas cidades. [ ...] Quem disse cubismo,
futurismo, expressionismo, o que poderia resumir-se em arte moderna,
disse arte nossa, quer dizer, intimidade, espiritualidade, cor, aspirao
at o infInito expresso com todos os meios que possuem as artes.
]\lIas nada disso faz-se sem museu: "Todos os grandes
inovadores estudaram nos museus. Negar o passado negar-nos a
ns mesmos". Portanto, assim como Portinari pedia uma ao mais
contundente de interveno do Estado na esfera pblica 10 , Pettoruti
vai desenvolver, frente do Museu Provincial de Bellas Artes - o
qual ele dirige entre 1930 e 1947 -, uma ao de abertura a essas
novas tradies, com o objetivo de dilatar o conceito de univer-
salismo. Uma delas a exposio "Vinte artistas brasileiros",
inaugurada em agosto de 1945 na Pasaje Dardo Rocha de La Plata.
Alm de muita obra em papel, ela traz um nmero expressivo de
telas ("Cidadezinha" de Tarsila, "Meninos de Brodowski" e
"Mulher chorando", de Portinari) as quais, junto a outras de Burle
Marx, Clvis Graciano, Jos Pancetti, Helena Pereira da Silva ou
Santa Rosa, seriam mais tarde incorporadas a seu patrimnio peloMuseu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires.
10. Nas pginas de uma revista fscista brasileira, Portinari invoca as palavras de Stalin para
ilustrar que um artista como Dostoievski foi mais valioso para a revoluo do qu~ o prprio Lenin,
com o que pretende demonstrar a necessidade da arte nos novos imaginrios, populares e modernos.
A poltica de aquisio de obras para os museus apia-se assim em dois exemplos, digamos,
surpreendentes, Mussolini e a Argentina. Ambos compram arte moderna para suas colees
pblicas. Um movimento de renovao nas Belas Artes. "Hierarquia", n. 5, Rio de Janeiro, mar/
abro 1932, p. 188-9. nessa linha que Pettoruti escreve sobre os "Fines y organizacin de lossalones de arte", em "Sur" (set. 1935),
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Polticas da amizade e anamonose do moderno
Rebelo
No eram poucos os contatos de Pettoruti com o Brasil. Tinha
exposto no Rio de Janeiro, em abril de 1929, poucos meses antes
que Tarsila do Amaral, a quem conheceu junto a seu marido, Oswald
de Andrade, e a outro casal, no menos irreverente, Eugnia e Alvaro
Moreyra. De Goeldi, Joo Ribeiro e Ronald de Carvalho, pintores,
crticos, escritores!!, conservou boas impresses. Confia, pois, a
organizao da exposio de 1945 a um escritor que fez suas
primeiras armas na "Revista de Antropofagia", Marques Rebelol2
Entendia Pettoruti que, com esta mostra, era
11. Algumas destas opinies esto recolhidas em suas memrias, "U n pintor ante el espejo" (Buenos
Aires, Hachette, 1968); outras, em compensao, encontram-se disseminadas na imprensa peridica
brasileira. o caso da anotao pioneira de um dos colaboradores de "Martn Fierro", seu ilustrador,o artista plstico Francisco Palomar (Fapa), que, instalado no Rio, divulga a obra de Pettoruti na
mesma revista que, pouco depois, se interessar pela obra de Le Corbusier (cf. PETTORUTI,
1928). Mas, provavelmente a partir da exposio de 45, retoma o interesse brasileiro por Pettoruti
como o demonstram os artigos de Oswaldo Alves (1945).
12. Contrariando sua tendncia por ntidos contornos realistas, o debut de Rebelo entre os
antropfgos se d com um poema chamado "Matinal" ("Revista de Antropofagia", ano 1, n. 2,
So Paulo, jun. 1928):
Eu abri a janela
e respirei fundamente a frialdade
da manh
Sob risadas de sinos,a cidade bnncava de esconder
dentro da nvoa.
Junto indefinio penumbrista da neblina, envolvendo o clima j abstrado de "a cidade" e no
do Rio de Janeiro ou outra qualquer, a energia de praticar uma inaugurao e instalar uma
moldura na nova sensibilidade impe o talho da iluminao, isolada visualmente no meio do
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Potncias da imagem
[...] propsito da Direo contribuir para fazer efetivo o conhecimento
das inquietudes artsticas do Norte, Centro e Sul de nosso Continente
e a esta louvvel iniciativa vai o nosso apoio, por entender que ela
encarna uma necessidade de ndole cultural muito sentida, como a de
procurarmos uma confrontao real, de esprito a esprito, com os
artistas plsticos da Amrica. [...] Correspondeu ao Brasil inaugurar
este promissrio ciclo de exposies de conjunto que h de dar-nos um
panorama total da arte americana contempornea. Com efeito, a que
hoje apresenta nosso Museu permitir apreciar globalmente o
movimento plstico de nossos irmos brasileiros. Est integrada por
vinte artistas, quase em sua totalidade jovens nascidos no que vai do
sculo e admiravelmente inspirados. Eles representam o mais vivo,
novo, audaz e esperanoso da arte do Brasil. [ ...] De forma isolada
eram-nos conhecidos alguns pintores por terem mostrado suas telas
em exposies individuais ou em uma ou outra exposio coletiva,
porm nunca se nos deu a oportunidade de apreciar uma exposio em
conjunto orgnico e harmnico como a que hoje se oferece ao pblico.
Com isso, Pettoruti perseguia integrao supra-regional, bem
como efetiva formao de acervo, e at poderamos supor, com
Kermode, que essa reavaliao do implcito (tradies nacionais
dissociadas) busca, em ltima anlise, no s abolir o passado, mas
oferecer vises sinpticas e integradoras, capazes de elaborar pr-
histrias do futurol3. Mas claro que nem os dezessete quadros
poema como o hiato fundador "da manh". Boa parte do debate sobre o materialismo dramtico da
modernidade estende-se entre esses dois polos, o decadente (o nevoeiro) e o incipiente (a manh).
Basta recordar o fragmento inicial de Ecce Romo nietzscheano com sua tenso entre foras ativase reativas.
13. Em "Modernism, Postmodernsm, and Explanation", Frank Kermode argumenta que "it is
surely in this sense - the revaluation of the illexplicit, the rejectioll by one means or allother, of the
cause-haullted past - that we understand the foulldation of the modern, though we have to add that
here, as elsewhere, programs to abolish the past are usually accompanied by llewly created views
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
incorporados ao Museu, nem muito menos a exposio mesma,
deixam de suscitar leituras dissidentes. A mais cida talvez seja a
que aparece em "Latitud", revista liberal-comunista de Buenos Aires,
em uma nota de Antonio Berni (1905-1981), assinada somente com
suas iniciais, A. B., na qual o pintor rosarino lamenta ausncias e
insinua o fantasma de toda vanguarda, sua institucionalizao oficial:
Separando-nos, momentaneamente, dos valores indiscutveis das obras
expostas, ainda que faltando nomes, entre eles o do grande Segall, no
compreendemos como se faz participar aos artistas brasileiros em uma
ao oposta e contrria atitude que atualmente tomou o mais destacado
da intelectualidade democrtica argentina, atitude que coincide em
um todo com as resolues do Primeiro Congresso de Escritores
Brasileiros de So Paulo. Os artistas brasileiros aparecem aqui
rompendo a necessria unidade que deve ter o movimento democrtico
intelectual latino-americano. No duvidamos que Portinari, Tarsila,
Cavalcanti e todos os demais artistas brasileiros ignoram a que fins
divisionistas fazem servir seus nomes com a exposio de La Plata. Faz
pouco mais de um ms um grupo de intelectuais argentinos negou-se a
dar conferncias no Museu Provincial de Belas Artes de La Plata em
solidariedade com o movimento em favor da normalidade democrtica
do pas. Com esta exposio faz-se suspeitar, aos desavisados, que osartistas democrticos brasileiros no tm interesse na solidariedade
com os artistas democrticos argentinos, coisa que no podem imaginar
nem remotamente aqueles que conheam algo dos altos valors pessoais
e artsticos dos pintores cujas obras esto expostas oficialmente pelas
autoridades da provncia de Buenos Aires.H
of it - less continuous ones perhaps, more scattered, more open to synoptic viewing, yet offered as
valid pasts ali the same" (BARKAN; BUSH, 1985, p. 370).
14. A. B. (pseud. Antonio Berni). "Veinte artistas brasileos". Latitud, Buenos Aires, set. 1945.
Encontrando-se em 1'vlendoza,Rebelo responde a Berni atrav de uma carta aberta publicada por
"La Palabla" (24 set. 19+5), "Esclarecin~ento sobre um comentrio de 'Vinte artistas brasileiros"';
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Potncias da imagem
Para alm das restries individuais, estas questes esto
afetadas pelos critrios de periodizao do moderno. Com efeito,
no catlogo da exibio portenha de Vinte artistas brasileiros"
"A exposio 'Vinte artistas brasileiros' no particular; veio sob os auspcios do Ministrio da
Educao e do Servio de Cooperao Intelectual do Ministrio de Relaes Exteriores do Brasil,
obedecendo, portanto, a disposies constantes de tratados culturais entre a Argentina e o Brasil.
Responde ao convite formulado em julho de 194+pela Direo Geral de Bellas Artes da Provncia
de Buenos Aires, o primeiro convite que se fuzia aos artistas modernos brasileiros para expor na
Argentina, no Museu de Bellas Artes de La Plata, cujo diretor, senhor Emilio Pettoruti, incluiu
entre os atos oficiais do ano de 1945, o incio de uma srie de exposies de artistas do continente,
com o democrtico propsito de 'aproximar por todos os meios os espritos dos homens representativos
dos povos, e nada melhor do que um intercmbio de obras de arte para servir-nos em nosso
objetivo'. No esta exposio um panorama completo da arte moderna brasileira, mas um
conjunto, como seu ttulo o indica, de vinte valores destacados. Diversos obstculos - por desgraa
sempre se apresentam em iniciativas desta natureza - impediram ao organizador trazer outros
valores destacados; por exemplo: Ccero Dias, que se encontrava em algum lugar da Frana em
guerra; Carlos Scliar, soldado das foras expedicionrias, que lutavam na Itlia; e quanto ao senhor
Segall, de futo o visitei em So Paulo, quatro meses antes do ltimo prazo para a sada da exposio
e, oportunamente, poder ser conhecida a cpia fotosttica da carta do pintor, na qual, com sua
habitual ateno, me informa e lamenta que razes tcnicas impossibilitem sua participao. No
entanto, esses e outros valiosos artistas no foram esquecidos no livro que, sobre a pintura moderna
do Brasil, ser lanado em breve pela 'Editorial Poseidn' desta Capital, com um estudo do
conceituado crtico e professor, Dr. Jorge Romero Brest. Os valores apresentados so vivos e
combativos. Todos se sentem orgulhosos em terem suas obras expostas a seus colegas argentinos,
uruguaios e chilenos, conhecendo a necessidade dessa aproximao urgente, artstica, antes de
tudo, pois ningum ignora que os artistas latino-americanos se desconhecem quase por completo.
E para este preliminar conhecimento que se pode organizar um efetivo e lgico entendimento,
baseado no justo valor artstico, poltico e moral de. cada um. Referente s convices ntimas do
subscrito - sem as quais no lhe haveriam entregue as obras os artistas mais absolutamente
vanguardistas de seu pas em todos os sentidos - so por demais conhecidas atravs da mensagem
conferida pela Associao Brasileira de Escritores para a Sociedade Argentina de Escritores e lido
em reunio especial de amistosa confraternizao, mensagem que foi comentada na imprensa
portenha. Finalmente, em relao aos citados Princpios proclamados pelo Congresso de Escritores
Brasileiros, em So Paulo, princpios que a revista 'Latitud' reproduz em forma destacada cinco
meses depois de sua publicao nos jornais brasileiros, cabe dizer que o subscrito foi eleito
delegado do Distrito Federal a esse Congresso. N ele foi, alm disso, eleito secretrio da importante
Comisso de Direitos do Autor e assinou os Princpios Polticos do Congresso em um dos momentos
mais dificeis da vida pblica brasileira, quando exercia, como ainda exerce, um cargo de comisso
no Ministrio da Educao, o qual depende diretamente da Presidncia da Repblica."
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
(Museu Nacional de Belas Artes, Palais de Glace, 25 de agosto de
1945), Marques Rebelo escande o modernismo brasileiro em dois
momentos, 1922 e 1930, quer dizer, em duas aes, o mostrar e o
resgatar, a Semana de Arte Moderna em So Paulo e o retorno dePortinari ao Brasil:
o ambiente artstico brasileiro era difcil, e ser artista no Brasil erauma forma de herosmo, pois faltavam todos os elementos
indispensveis formao do conhecimento e do bom gosto. [ ...] No
tnhamos seno deplorveis imitaes de escolas de belas-artes e de
museus; no tnhamos galerias de exposies nem colees particulares
que estimulassem pelo contato e divulgao das obras, o interesse pelas
artes. E como tampouco possuamos publicaes especializadas, nos
faltava orientao crtica. [ ...] Em tal ambiente, o esforo teve que ser
sempre individual, o que deu lugar a um auto-didatismo coletivo, fonte
da ignorncia de problemas fundamentais das artes e de seu contedo
esttico. [ ...] A arte moderna, que surgiu no Brasil em 1922, pelo
esforo de escritores, trouxe um novo ambiente para as artes, traando-
lhes tambm um caminho seguro. [ ...] Reuniu o movimento uma
minoria interessada e sensvel em torno de problemas plsticos comuns
e ligada ao sentido geral da arte. Estes escritores, msicos, arquitetos,
e artistas se aproximaram. Aportou assim o modernismo, pela primeira
vez na histria da arte do Brasil, numa grande inquietude, a percepo
da necessidade de pesquisas e uma ligao mais ntima entre o artista e
o povo, o que equivale a dizer que foram os modernistas que
descobriram, artisticamente, sua terra. [ ...] A volta de Portinari da
Europa, em 1930, o acontecimento que determina um impulso jamais
experimentado pela arte brasileira. Exercendo de imediato uma enorme
influncia nos jovens, combatido violentamente pelo academicismo e
pela ignorncia indgena, vence as dificuldades em exposies
sucessivas, afronta a mediocridade e o conservadorismo, respondendo
com o trabalho a todas as manifestaes gratuitas da opinio. [ ...]
Portinari exemplifica a dignidade do trabalho artstico. Funda na
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Universidade do Distrito Federal uma oficina maneua do
'Quatrocentos', e, seis meses mais tarde, apresenta ao Brasil um
numeroso grupo de jovens pintores formados dentro dos mais slidos
princpios.
Em resposta implcita s restries de Berni, Rebelo opta pela
verso paranica, tipicamente vanguardista.
Apesar de tal xito, no calaram as vozes contrrias. O momento
mundial era o do nazismo. Tambm no Brasil repercutiu o grito de
'Arte degenerada'. Todos os artistas modernos foram condenados. A
escola de Portinari foi fechada. Os Estados Unidos o receberam em
uma consagrao continental. Como consequncia do estado de coisas,
as novas vocaes foram sufocadas. E os artistas j feitos, se refugiaram
no mundo das formas abstratas. [ ...J Felizmente um novo vento soprou
sobre a face do mundo. E voltaram os artistas brasileiros ao encontro
das fontes de uma verdade plstica, que ao que aspiram todos os
artistas do mundo. [ ...J A exposio que agora apresentamos ao Povo
Argentino (sic), uma seleo representativa das tendncias da arte no
Brasil. Seu conjunto revela as preocupaes dominantes do campo
plstico, fruto de um esforo cujo mrito tratar de alcanar as grandes
formas da arte universal. O que pode ter de incompleta esta mostra
resultante da dificuldade de comunicao em que vive o artista
brasileiro; nela, no entanto, deve sentir-se a mensagem espiritual que
quer ligar aos artistas argentinos e brasileiros15 (REBELO, 1945).
Como argumenta Derrida em nossa epgrafe de "Polticas da
amizade", o espao e o tempo virtuais do possvel aspiram presena
15. Algumas das peas foram cedidas por colecionadores brasileiros, entre eles o escritor Francisco
Incio Peixoto, do grupo de Cataguases, o crtico Queiroz Lima, editor da revista "Esprito Novo"
do Rio, a atriz Tania Carrero e o prprio Candido Portinari.
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
e fora do desejo, "a mensagem espiritual", porm a mesma presena
desse processo basta, no para impugn-Io) seno para torn-Io
possvel, fazendo-o virtual, de uma virtualidade to absoluta que se
converte, por isso mesmo, em impossvel, ainda em sua presumvel
realidade. assim que podemos reunir Rebelo e Berni em umapeculiar e cifrada poltica da amizade que os transcende a ambos.
A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro
A estrela sobe e o romancista desce.
Oswald de Andrade
Em 1939 Rebelo publica um romance, "A estrela sobe", a
histria de uma moa, Leniza Mier, cantora de rdio, predestinada
desde a infncia a uma vida de infortnios e sacrifcios para manter
a casa. Recusa a proposta de casamento de Asterio e, atrada pela
vida que lhe mostram as revistas de espetculos, "Jornal das
Modinhas", "lbum do Seresteiro", "Lira do Povo", consegue,
finalmente, ser "artista de rdio", na Metrpolis, claro que passando
antes pela garonniere de Mrio Alves, um dcimo andar no
Flamengo "montado com um luxo notoriamente rastaqera", e
sendo a protege de Dulce, uma cantora com experincia. Abatida
pela falta de contrato, a farsa dos empresrios das pequenas emissoras
suburbanas e o abandono de sua me, Leniza precipita-se em solido
e anonimato de extraviada. Desaparece. A no ser para o narrador,
que no a abandona: perde-a. No desenlace dessa fico de lgrimas,
pergunta-se: "Que ser dela, no inevitvel balano da vida, se no
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descer do cu uma luz que ilumine o outro lado das suas vidas?"
Quem responde pergunta do narrado r no nenhum leitor
brasileiro mas o pintor Antonio Berni, que multiplica as vidas
possveis de Leniza Mier, em seu quadro de 1945, "Orquestra
tpica". direita da cena, meio marginal, quase caindo do cenrio,
em traje amarelo, que se recorta sobressaindo em meio estudada
correo da orquestra de tango, a cantora, a estrela que sobe. Mas
esta possvel anamorfose, que rene na fico as criaturas que se
opem na vida pblica, abisma-se, insacivel, na fronteira
aparentemente intransponvel da histria. Ela mesma cede, perante
os poderes da fico, e materializa uma nova estrela ascendente,
que faz da mensagem espiritual a razo de sua vida:
Minha vocao artstica me fez conhecer outras paisagens: deixei de
ver as injustias vulgares de todos os dias e comecei a vislumbrar
primeiro e a conhecer depois as grandes injustias; e no s as vi na
fico que representava como tambm na realidade de minha nova
vida. [ ...J Queria no ver, no me dar conta, no olhar a desgraa, o
infortnio, a misria; porm quanto mais eu queria esquecer-me, mais
era rodeada de injustia (PERON, 1951, p. 22).
Mas se Rebelo impe o filtro dos sentimentos onde Berni
julga colocar o corte das sensaes, o Estado no hesitar em
magnificar a pica da mensagem at reduzi-Ia a nada.
[ ... J o mandatrio, com graves problemas por resolver, precisava de
uma pessoa de toda sua confiana que soubesse e apreciasse devidamente
o que so a dor e a necessidade; que chegasse com abnegao at as
srdidas moradias do subrbio para escutar queixas] resolver
necessidades, diminuir angstias, colocar esperanas nos coraes
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
hirtos, trabalhar por uma vida melhor para a classe humilde. Quem
poderia reunir qualidades de compaixo, generosidade, dedicao
infatigvel, amor pelo desvalido e serenidade espiritual para preencher
este vazio? S havia uma pessoa, uma s (DIEZ GOMES, 1945).
Leniza Mier, a cantora de amarelo, e Eva Pern: vrios fios,
a mesma trama. Do lado de Berni, um processo social e nele a
emergncia de novas formas simblicas que so, alternativamente,
foras ativas e reativas; uma personagem, sob todas as luzes, dplice,
marginal e central, relativamente autnoma mas representativa de
valores que excedem sua individualidade; uma avaliao,por ltimo,
ilustrada, racional, desse processo histrico. Do lado de Leniza ou
Eva, situaes especficas em que o social impe-se a partir do
domstico e se exerce atravs de uma fatalidade inexorvel, deixando
o indivduo inerte e isolado frente ao antagonismo do mal. No h
drama, mas tragicidade; no h agonia, mas sofrimento, desiluso
ou frustrao; no h pedagogia mas espetculo.
tempo de dar a esta cantora de amarelo mais um de seusnomes: Martnez Estrada. O presidente da Sociedade Argentina
de Escritores, aproveitando a estadia de Rebelo em Buenos Aires,
recebe-o na SADE para homenage-Io e, atravs dele, exaltar, o
debate intelectual provocado pelo congresso paulista desse ano.
Conforme anota "La Prensa" (10 de maio de 1945), "esse gesto dos
escritores brasileiros constitua o incio de uma poltica de
solidariedade americana na qual os escritores, por cima de seus
interesses particulares, procuravam defender os princpios de
liberdade e de compreenso mtuas, sem os quais no possvel
nenhuma cultura". Rebelo, segundo o cronista de "La N acin",
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no deixou, no entanto, de assinalar os obstculos enfrentados "antes
de organizar-se em defesa de seus interesses gremiais e de liberdade
de expresso, e como o congresso nacional celebrado h alguns
meses em So Paulo assinalou um acontecimento auspicioso, no
s nos anais da literatura do Brasil, como tambm no
desenvolvimento civil de sua ptria."
Como interpretar o convite de Martnez Estrada a um escritor
como Marques Rebelo que, por sua adeso democratizao
simblica sem radicalismo ideolgico, poderamos qualificar de
"peronista" r Mais alm de seus temas da decadncia e predies,
que se renem em comuns interesses nietzscheanos, reinterpretados '
por Ortega y Gasset, Waldo Frank, Keyserling, Simmel, Freud e
Spengler16, vai-se desenhando por esses anos uma condio
excntrica, autenticamente vanguardista, que sai do campo do
artstico para regressar ao abertamente cultural e poltico. David
Viias, testemunha deste processo, avalia-o corretamente. Martnez
Estrada o Lugones dos anos 50. Mas no o tanto pelo
barroquismo ou pela palavra excntrica, nem mesmo pela decorao
wagneriana, a partir da qual dirige, como um dos "raros", como
diria Dario, a pantomima csmica de um espao espectral. Martnez
Estrada, margem, como a cantora de amarelo, passa a ser a vedete
de um espetculo condenado pelo arco ideolgico amplssimo:
16. A filosofia de Nietzsche no tem maior cotizao no mercado dos valores da filosofia acadmica
e doutoral pela mesma razo que o pathos musical da vida, inspirado por Dionsio, perdeu sentido
e poder em nossas almas e em nossas construes ciclpicas de um saber de alvenaria (MARTNEZ
ESTRADA, 1950, p. 192-4).
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Polticas da amizade e anamorfose do moderno
Hernndez Arregui em seu "Imperialismo e cultura" e Arturo Jauretche
em "Os profetas do dio" o atacaram; um com pretenses tericas,
Jauretche em um estilo mais insolente e agressivo. Dessa maneira se
corrobora que Martnez Estrada estava no centro da dramtica cultural
desse momento e tudo se definia por seu pr ou seu contra. Porm, mais
que insultos ou exaltaes, essas sries desenhavam um espectro de
autodefinies: se o liberalismo cauteloso e de centro de Csar Fernndez
Moreno ou o impregnado de incrustaes historicistas de Jos Luis
Romero o reconheciam, o esquerdismo militante de Pedro Orgambide
o recuperava de uma maneira tal que o condicionou a obstinar-se em seu
resgate em vrios trabalhos posteriores. Enquanto as lealdades e o
discipulado quase imperturbvel corria por conta de Murena - seu
mximo propagador -, de Rudolfo Kush, de Francisco Solero e de Julio
Mafud. [ ...] So os anos, disse, que vo de 1955 a 1960; o que no itinerrio
de Martnez Estrada implica o deslizamento desde as perspectivas
simblicas de Victoria Ocampo at as de Barletta; mas sobretudo, o
deslocamento desde o eixo representado por Pern em direo ao de
Fidel Castro. Poderia-se dizer, por conseguinte, que Martnez Estrada
passou-se da Argentina para a Amrica Latina, mas tambm 'de Florida
para Boedo' em funo dos dois apoios de uma nomenclatura tradicional.
Sobretudo se recordo aqui no mais a polmica isolada com Borges
(onde o autor de Aleph, por seu lado, acusava Martnez Estrada de fazer
'o elogio indireto a Pern'), mas a denncia de Martnez Estrada, logo
que houve a tentativa de invaso norte-americana Baia de Cochinos, na
qual declarava-se explicitamente contra o grupo representado por Borges,
Mallea, Bioy Casares e Mujica Linez que tinham aplaudido a poltica
seguida por Kennedy.
Por isso, recorrendo, mais uma vez ao raciocnio de Vifas,
caberia perguntar-se
[...] se Martnez Estrada, que de sua maneira buscou sempre a verdade
e vrias vezes teve que optar pela incerteza, realmente no esteve fra de
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lugar. Ou, melhor ainda: se o intelectual que desde a ponta extrema do
inconformismo desloca-se cada vez mais para a esquerda (entendida
esta nomenclatura como o lugar da crtica permanente que no admite
que a cultura seja um resultado da represso porm da utopia), no
est, no concreto e quotidi~no, sempre fora de lugar?l? (VINAS, 1991,
p. 412-423).
Montevidu
Mas voltemos exposio. Depois de La Plata, depois de
Buenos Aires e depois de fazer peregrinao em dezessete museus
pelas provncias, sempre acompanhada pelo inseparvel Marques
Rebelo, "Vinte artistas brasileiros" chega a Montevidu. amparada pelo prestgio de seu mentor, Pettoruti, a quem Torres
Garcia, pouco antes, dedicara palavras definitivas que vale a pena
resgatar por assinalarem uma linha de fora j insinuada antes: a
construo de um espao simblico e a importncia da cor como
mecanismo utilizado para alcan-Io. E, acima de tudo, apontam a
mesma alegoria j examinada: "a estrela sobe".
17. Desse esforo interpretativo supranacional derivam as "Diferencias y semejanzas entre 10s
pases de Amrica Latina" (Caracas: Ayacucho, 1990) e, ainda, a '~nlisis funcional de Ia
cultura" (Mxico: Digenes, 1971).
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Emlio Pettoruti - Livro em hranco
(1946-1947)
Antonio Berni - Orquestra tpica(Museu Nacional de Belas Artes - Buenos Aires)
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Cndido Portinari - Mulher
chorando (Museu Nacional deBelas Artes - Buenos Aires)
Iber Camargo - Negra sentada(Museu de Belas Artes - La Plata)
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Santa Rosa - Ponta seca
(Museu Nacional de BelasArtes - La Plata)
Alcides Rocha Miranda -
Auto-retrato (1940)
-
(l .' o~ p :/"7 ~ .,~~ ~ ....
Percy L ..au - R den eira (Museu de B 1e as Artes L- a Plata)
Jos Alv
(Museu Na' es Pedrosa - E hclOnal de BIs ooe as Artes - La Plata)
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Carlos Leo - Mulheres (Museu de Belas Artes - La Plata)
Clvis Graciano - Desenho (1944)
-
Burle Marx - Mulheres
(Museu Nacional de Belas Artes - Buenos Aires)
Ruben Cossa - Flores (1942)(Museu de Arte de Santa Catarina - Florianpolis)
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Di Cavalcanti - Po Nosso
Di Cavalcanti - Carnaval
-
Alberto da Veiga Guignard - Uma famlia na praa(Museu de Belas Artes - Montevidu)
Alberto da Veiga Guignard - Paquet(Museu de Belas Artes - La Plata)