análise de montagem

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ESCOLA DE CINEMA DARCY RIBEIRO DISCIPLINA: Teoria da Montagem PROFESSOR: Renato Schvartz ALUNA: Maíra Lana de Araújo e Souza re c or tes Análise de determinadas seqüências com enfoque na montagem

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Page 1: Análise de montagem

ESCOLA DE CINEMA DARCY RIBEIRO

DISCIPLINA: Teoria da Montagem

PROFESSOR: Renato Schvartz

ALUNA: Maíra Lana de Araújo e Souza

re c or tesAnálise de determinadas seqüências com enfoque na montagem

Rio de Janeiro

Julho de 2010

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Considerações Iniciais

A princípio, creio que é importante ressaltar que todas as seqüências

analisadas – bem como qualquer seqüência, de modo geral – depende

estreitamente de sua estrutura total, visto que muitas questões nela

presentes só podem ser amplamente compreendidas no todo da obra. Assim,

uma seqüência de ação pode perder muito de seu impacto e uma seqüência

de comédia pode ser destituída de sua comicidade, inclusive, uma vez

analisadas isoladamente. Mas procurarei me ater às especificidades de cada

linguagem, limitando-me a comentar possíveis ações exteriores à seqüência,

sempre que isso se mostrar necessário.

Outra questão é a incapacidade, em determinados momentos (algo

que foi também aventado em aula), de se distinguir elementos de linguagem

propostos e executados pela montagem e aqueles propostos pelo roteiro e

direção e apenas executados na sala de edição. Na impossibilidade de

discernir as situações, buscarei avaliar tudo aquilo que é aparentemente

realizado na montagem, sem me ater à origem das idéias.

Análise da seqüência de ação:

Pesquisa e Escolha:

Diante da possibilidade de pesquisar cenas diversas no site youtube,

pus-me – a princípio sem idéias precisas sobre qual filme analisar – a realizar

uma busca das “melhores cenas de ação” ou ainda “the best action scenes”,

gerando outro resultado. A partir destas pesquisas acabei tendo acesso a

uma série de cenas e/ou seqüências1 (incluindo as eleitas como piores cenas

de ação, que sou grata por ter tido a oportunidade de ver) provenientes

desde a indústria de Bolywood2, até filmes incríveis (difíceis de crer, de fato)

da indústria de filmes “z” orientais. Chegam a ser interessantes – são no

1 Dependendo da fonte à qual se refere – para alguns, a cena é delimitada por uma mudança de espaço e/ou tempo e a sequência seria como uma espécie de unidade dramática, de valor mais subjetivo. Para outros, a seqüência seria definida por esta mudança espaço-temporal e o termo cena seria utilizado somente a nível dramatúrgico, de roteiro.2 Indústria cinematográfica indiana.

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mínimo originais e surpreendentes – de tão ruins. A seqüência de ação

filmada na Índia me impressionou especialmente pelo maltrato dos cavalos

(posso ser leiga em matéria de produção de cenas de ação, mas acho difícil

que os bichos não tenham sido de fato judiados), especialmente por ser um

filme realizado na índia, onde os animais possuem importância sagrada. Em

seguida me impressionou a intensa produção, certamente fruto de gastos

homéricos – a cena é uma das mais longas dentre as assistidas e certamente

uma das que mais abusa de todas as possibilidades à mão, utilizando-se de

todos os clichês imagináveis, tanto de filmagem como de montagem e, com

isso, cansando a vista e a mente do espectador com os excessos. Tudo

acontece e nada acontece. Algumas técnicas também não foram tão bem

absorvidas, fazendo com que a fórmula holywoodyana seja usada às vezes

de maneira deturpada e não funcional. Apesar disso, vale a pena assistir

devido à ousadia e pela tentativa de fazer algo digno de Holywood – em

termos técnicos – fora de lá.

Uma cena oriental, em particular, me chamou muitíssimo a atenção,

pela inventividade, ainda que bizarra. Trata-se de uma cena mal atuada, mal

dirigida, mal montada, mal assistida. Ou eu tive lá minhas dificuldades... De

tão mal das pernas a cena ganha um aspecto inovador e instigante. Um olho

salta (literalmente) da órbita do adversário com um tapa na nuca e este, por

sua vez, num apontamento de cena dramática, comete o tradicional rito de

Sepukku – suicídio – por meio de uma adaga, mas não para suicidar-se,

como cremos a princípio e sim para enforcar – bem entendido, enforcar – seu

adversário com seus intestinos. Fiquei tentada a usar esta cena como alvo da

análise, mas, mais adiante, me deparando com as cenas da indústria

massificada de Holywood (entre homens aranhas, batmans, 007’s, e outros

heróis mais ou menos conhecidos), assisti a uma que não me deu outra

escolha senão agarrá-la.

Antes disso, tenho uma consideração a fazer sobre uma das

seqüências mais quentes do último Batman, o “Dark Knight”, com a atuação

brilhante do ator Heath Ledger: a seqüência em que o Batman sai com a

moto e prefere se jogar no asfalto a atropelar o pobre coringa. Vejamos: a

cena começa muito antes disso, numa conturbada perseguição dentro de um

túnel subterrâneo. Confesso que me confundi por diversas vezes nessa

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seqüência, sem saber qual era o carro atingido, o caminhão atingido, que

veículos se chocavam. E saí com uma curiosidade ainda não concluída: os

filmes de ação são, em sua maioria, feitos para uma absorção rápida e

irrefletida das suas cenas. Ora, são filmes de ação, dramáticos. Longe dos

gêneros estilísticos épico e do lírico das reflexões ativas. Sim, são filmes para

relaxar na cadeira, tomando uma dose de adrenalina (paradoxal, mas é isso

mesmo). Para tal, todas as imagens e ações têm de ser mostradas de modo

a bem conduzir o olhar do espectador, tornando as cenas o mais acessíveis e

decifráveis possível, sem possibilitar interpretações múltiplas. Aliás, o que há

é uma única interpretação possível que deve ser compreendida pelo

espectador. Afinal, trata-se de um filme certamente comercial, feito com um

pensamento midiático (ou seja, nivelado pela média – para compreensão e

gosto de uma maioria). Assim, algo me fez ironicamente refletir: ora, se não

consigo captar toda a ação proposta na seqüência de imediato, seria isso um

fator proposital (sim, você pensa que o Batman atingiu o caminhão do

Coringa, mas irônica – e não coincidentemente – o caminhão não é aquele

do Coringa, apesar de o Coringa aparentemente assistir a esse impacto de

seu próprio caminhão) ou seria uma falha da montagem? Minha dúvida fica

inconclusa, visto que ambas as possibilidades são plausíveis e sustentáveis,

o que torna a cena de certa forma interessante em termos de análise.

Mas voltemos. Acabei por escolher outra seqüência (apesar da

também instigante cena inicial de parkour3 do filme 007 – de tirar o fôlego):

uma das que compõem o lindíssimo filme – esteticamente falando – 300, do

diretor Zack Snider, tendo sido a que mais me chamou a atenção.

Exponho, aqui, as razões desse espanto, antes que se possa detalhá-

la. Em primeiro lugar, este é um plano seqüência. Ou ao menos é o que

aparenta ser, num primeiro momento. Somente este fator – em se tratando de

uma seqüência de ação, normalmente composta pela interação de um

número absurdo de planos e perspectivas – já chama a atenção. Em seguida,

3 Parkour (por vezes abreviado como PK) ou l'art du déplacement (em português: arte do deslocamento) é uma atividade cujo princípio é mover-se de um ponto a outro o mais rápida e eficientemente possível, usando principalmente as habilidades do corpo humano. Criado para ajudar a superar obstáculos de qualquer natureza no ambiente circundante — desde galhos e pedras até grades e paredes de concreto — e pode ser praticado em áreas rurais e urbanas. Homens que praticam parkour são reconhecidos como traceur e mulheres como traceuses. Criado por David Belle. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Parkour

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a beleza das imagens, espetacularmente bem compostas e finalizadas, com

filtros e acabamento que dão a sensação, em texturas e cores, de se ter

sempre um quadro renascentista pintado à frente (afinal, trata-se de uma

história em quadrinhos retratando a Grécia Antiga – e esta é uma ótima

referência estética, uma vez que o renascimento remete-se justamente à

Grécia clássica). As imagens parecem ter uma densidade não captável na

realidade. Como se tudo estivesse numa rotatividade diversa da nossa.

Quadros em movimento; a própria História em movimento diante dos nossos

olhos. Bela e violenta.

A montagem dessa seqüência é incrível, de um primor e inventividade

extremos. (Digo, não estou certa de que tais recursos foram usados da

mesma maneira em outros filmes anteriores, mas de fato me parece uma

seqüência de ação totalmente inusitada diante das muitas outras às quais

tive acesso, talvez em função da combinação de elementos aqui usada.)

A cena anterior à seqüência tratada mostra um grande aglomerado de

pessoas numa guerra – os espartanos e o inimigo, persa em sua maioria. Um

ruído extremo e cheio toma conta da cena, dando-nos uma idéia da confusão

digladiada de uma guerra qualquer e inominada. No entanto, a cena que se

segue – e que nos interessa – mostra o líder dos espartanos numa seqüência

de tirar o fôlego e ao mesmo tempo tão bem coreografada e bela quanto um

ballet violento. Eis que surge Leônidas, extremamente visível em meio ao

tumultuado quadro, a caminhar lenta e decididamente para a frente, sua

lança e espada encontrando o inimigo a cada passo dado.

Toda a cena se transforma em relação à anterior, dando a impressão

de que a primeira foi colocada ali justamente para dar maior impacto a esta

última, contrapondo-se a ela radicalmente: a câmera lenta é utilizada, sendo

que o movimento às vezes toma a velocidade natural de volta e, por outras,

acelera ainda mais seu ritmo, especialmente nos instantes de impacto com o

inimigo e outros em que inimigos cruzam nossa objetiva, para que possamos

melhor ver a cena que se passa. Tudo bem, este recurso certamente foi

utilizado em inúmeros filmes, mas não me lembro de ter sido conjugado com

outros detalhes aqui aventados: há ainda, além da deturpação da velocidade,

o constante uso de zoom, que dinamiza – e muito – a seqüência, na ausência

de cortes e mudanças de perspectiva. Sempre que se mostra interessante

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exibir-nos um trecho mais impactante e dramático, como expressões, golpes,

etc., a câmera fecha no recorte a ser enquadrado pelo olhar sedento de

detalhes. Quando a cena demanda distância, para captar todo um amplo

movimento corporal ou o conjunto do embate, a câmera se distancia. As

distâncias focais usadas são as mais diversas, parando em inúmeros pontos

entre a objetiva e a ação, o que nos dá um leque variado de perspectivas

possíveis, dependendo da necessidade de aproximação ou distanciamento. É

importante ressaltar que isso ocorre, noventa por cento das vezes, junto ao

choque das armas de Leônidas contra o inimigo, afinando-se, também – mas

não coincidentemente – com a aceleração das imagens. Por vezes a câmera

– que está quase todo o tempo caminhando em travelling para a lateral,

acompanhando os passos do líder – também se move em chicote para

mostrar algo que está adiante, retornando também em chicote para a ação

principal. Isso ocorre quando a lança é jogada e a câmera a acompanha até

que ela se choca com o inimigo, por exemplo. Por último, temos quase

imperceptíveis cortes na ação, criando uma espécie de falso raccord muito

velado, devido às mudanças de velocidade da cena, mas que dão todo um

toque dinâmico à apresentação das imagens, junto ao eficaz conjunto da

seqüência.

Certamente a conjugação de todos esses elementos cria uma

seqüência das mais eletrizantes sem deixar de apontar uma profunda beleza

estética presente nos momentos mais inusitados. É de fato fascinante. Ao

menos para mim.

Análise da seqüência quanto à sua construção sonora

Uma vez tendo escolhido a seqüência anterior a dedo, não poderia

deixar de concluí-la através da observação em torno da sua construção

sonora. É certo que a combinação imagética reproduzida já seria de tirar o

fôlego por si só, mas o som também tem papel fundamental para que o êxito

da cena seja completo. Vindo do momento anterior, onde há um aglomerado

aparentemente sem acuro de sons indistintos se misturando uns aos outros,

a cena seguinte transforma o quadro: é cuidadosamente pensada,

destacando os sons que a si interessam. Para acompanhar a lentidão das

Page 7: Análise de montagem

imagens, os sons são também ralentados por vezes, além de serem muito

mais recortados, dando a eles maior foco por sua seletividade. Os sons que

se destacam são os ruídos de lâminas recortando a matéria, o impacto das

armas contra o inimigo, com intensidade elevadíssima, os urros do inimigo e

do próprio guerreiro e, ao fim, um suspiro seu, mostrando que a cena

literalmente de tirar o fôlego, acabou. Podemos todos respirar aliviados. Os

efeitos de ar sendo transposto pela matéria, seja dos corpos, seja das armas

é também usado, sendo elevado em intensidade à centésima potência, num

resultado poderoso.

Para a finalização dos ruídos, o editor faz uso de um efeito muito

recorrente, em que os sons parecem estar sendo reproduzidos em um

ambiente de acústica diferenciada, com uma reverberação peculiar e

aumentada. Outro efeito faz com que eles soem como se estivessem sendo

produzidos num ambiente muito mais denso e intransponível, aumentando a

sensação de ralentar e de tensão da cena. Estes efeitos dão aos sons uma

permanência maior e um tom épico, distanciado, permitindo-nos realmente

analisar a cena em toda a sua beleza, longe dos horrores da guerra.

Há, ainda, o provável uso de sons em modo reverse, devido à

qualidade sonora do choque de alguns metais. Isso dá um tom mais

dramático a cena, como se os sons estivessem sendo sugados em alguns

momentos. A estranheza futurística é ponto positivo para a criação de uma

atmosfera de adrenalina.

Há, na trilha sonora, o uso de um pedal agudo, provavelmente

produzido por cordas orquestradas que parecem se transformar, adiante, em

vozes espectrais, ritualísticas, que dão um tom de transe à seqüência. Mais

adiante, os violinos são substituídos por violoncelos e baixos, dando maior

gravidade – literalmente – à cena. Alguns instrumentos de percussão fazem

trinados, quebrando a monotonia dos pedais e, aparentemente, uma flauta de

bambu – ou semelhante – conclui a seqüência junto ao suspiro do nosso

guerreiro, dando a ela maior leveza à conclusão da chacina.

Um outro pedal eletrônico, muito agudo e quase imperceptível, entre

outros efeitos que aparecem mais raramente, parece acompanhar a

seqüência quase o tempo todo, ligando-a num fluxo do início ao fim.

Este conjunto primoroso fecha com chave de ouro a seqüência

Page 8: Análise de montagem

analisada em detalhes, não deixando a avaliadora de comentar seu

envolvimento e fascínio pela beleza estética e técnica do filme como um todo,

aqui evidenciados.

Assista à seqüência no youtube em: http://www.youtube.com/watch?v=aTXlWYdodnc ou digitando “300 Insane Fight Scene”.

Análise de uma sequência de comédia

A escolha desta seqüência também não foi nada fácil, apesar de ter

se dado mais rapidamente. Afinal, que estilo de comédia abordar?

Após passar por filmes como o brasileiro Se eu fosse você, com

ótimas atuações e algum conteúdo além da forte carga cômica e por

enlatados completos como a série Todo mundo em pânico, na qual o riso

depende estritamente do conhecimento prévio de outros filmes, cheguei aos

inteligentes e certeiros filmes de Woody Allen, que se inspira e baseia seus

roteiros em personagens comuns oriundos das grandes concentrações

urbanas, onde retrata a incapacidade do homem em lidar com as situações

do seu cotidiano. Esta característica, por si, já encontra eco na exploração

existencialista mas, acima de tudo, escancara “o rígido, o esteriótipo, o

mecânico, por oposição ao flexível, ao mutável, ao vivo, a distração por

oposição à atenção, enfim, o automatismo por oposição à atividade livre”,

características próprias à forma cômica, tal como ressaltadas por Bergson em

seu brilhante “O Riso” (Bergson, 2007: 97). A escolha dentre as mais de

quarenta produções do consagrado diretor também não foi das mais fáceis,

mas levou-me a duas obras em particular que acreditei estarem mais

abarcadas em nossa disciplina enquanto temática: o primeiro foi o filme Zelig,

uma ficção que nos é apresentada em formato documental, transitando entre

a (suposta) realidade e a criação artística. O pseudo-documentário trata da

vida de Leonard Zelig (Woody Allen), o homem- camaleão, que tinha o dom

de modificar a aparência para agradar a outras pessoas. Tema de extrema

perspicácia e construído no formato documental, Zelig se encaixava na

discussão que vinha sendo levantada em sala de aula sobre os diferentes

graus de ficção presentes em documentários de maneira muito interessante,

visto que é a criação de uma história de ficção, mas com ecos tão sólidos na

realidade que faz-nos questionar se não é ainda mais verdadeiro que certos

Page 9: Análise de montagem

documentários que manipulam excessivamente seus discursos. No entanto,

apesar do fascínio por esse universo, foi um outro ainda mais aproximado de

nosso universo que me fez cair em seus encantos: o filme Dirigindo no

Escuro, que trata de um diretor de renome desempregado e atualmente no

ostracismo que finalmente tem a chance de trabalhar mais uma vez numa

grande produção, tendo uma cegueira psicossomática antes do início das

filmagens. Embora tenha personagens caricaturais, elemento recorrente da

comédia, o roteiro apresenta situações realistas e atuais, no contexto urbano

e cinematográfico de países ricos, expondo ao ridículo a indústria de

Hollywood (produtores, diretores, agentes, técnicos e artistas) em

contraposição ao próprio ridículo da indústria dos ditos “filmes de arte”, que

inúmeras vezes acaba por considerar qualquer novidade, refletida ou não,

compreensível ou não, um traço vanguardista. 

Como o tema muito me interessa e a discussão é uma das mais

calorosas em qualquer meio artístico, me decidi por analisar uma sequência

deste filme. 

A princípio, é interessante salientar que uma das maiores causas do riso

é, de acordo com Bergson, “uma certa rigidez do corpo, do espírito e do

caráter, que a sociedade gostaria ainda de eliminar” (BERGSON, 1983:1).

Todo o cerne do cômico gira em torno desses preceitos e esta não é uma

verdade alheia a Woody Allen, que sempre trabalha com a construção de

roteiros e personagens com dificuldades de adaptação e uma rigidez que

lhes é própria, que lhes impede de serem maleáveis diante de situações

adversas (grosseiramente falando, seria o retrato do homem que não desvia

da casca da banana, por exemplo, o que se confira numa rigidez física à qual

ele não consegue escapar).

A representação de um tipo fixo, que não se atém a uma personalidade,

a um nome individual, mas a uma característica do espírito, a um adjetivo,

também é aqui mantida. Wal Waxman, o diretor incorporado por Allen neste

filme é, mais uma vez, um personagem neurótico, cheio de pequenas e

irritantes manias, e com uma grande dificuldade de inserção social ou, no

mínimo, às situações que lhe são impostas.

Nas comédias, os homens são representados piores do que eles são na

realidade, para que possamos ridicularizá-los sem nos identificarmos de

Page 10: Análise de montagem

maneira tão direta com eles. Waxman certamente é esse homem a quem

compreendemos em parte, mas que possui uma série de atitudes e

características caricatas, fruto de um riso certo, mas inteligente, visto que as

piadas são muitas vezes extremamente discursivas e espirituosas. No

entanto, a seqüência pela qual me decidi conta com a presença do sempre

bem vindo humor pastelão, que, unido a uma trama reflexiva e boas sacadas

dramatúrgicas, só acrescenta ao filme. A seguir uma espécie de resumo

comentado:

Waxman deve se encontrar com o produtor do filme que o contratou

por insistência de sua esposa (ex de Waxman) para uma conversa tête-a-

tête, longe da cumplicidade de seus comparsas, que são tirados de campo.

Para isso, se prepara na suíte onde o encontro ocorrerá, contando os passos

até a cadeira mais próxima, a direção e disposição dos móveis dos quais

precisará, etc. É evidente que, para que o riso ocorra, deve-se partir do

pressuposto de que aquilo que dá segurança nunca se concretiza como

planejado. Sempre há algo que sai errado, mudança com a qual o herói

cômico não consegue lidar – normalmente inconsciente dessa limitações e

rigidez. Este é um automatismo muito próximo da simples distração. Para

convencer-se, basta notar que uma personagem cômica geralmente é cômica

na exata medida em que ela se ignora. O cômico é inconsciente.

Afirma-se a necessidade muito constante da presença de três sujeitos

na comédia: “aquele que revela os aspectos risíveis do outro (o herói ou uma

personagem complementar, opositora ou não), aquele que tem expostos

seus aspectos risíveis (o herói ou uma personagem complementar, opositora

ou não), e aquele que é o destinatário da exposição, diverte-se com ela e ri (o

herói ou uma personagem complementar, opositora ou não, e, ainda, o leitor/

espectador)”. Assim, podemos identificar no objeto dessa pesquisa quais os

sujeitos e suas disposições: nos é evidente que o herói ridicularizado é o

personagem interpretado por Allen, o diretor Waxman. Os dois outros papéis

se confundem, mostrando-se de forma um pouco mais velada, mas, se

prestarmos atenção, ainda que inconscientemente (e tanto melhor, pois que a

comédia se dá de maneira mais eficaz tanto mais natural é o acontecimento),

o produtor se presta ao papel de revelador do ridículo do colega de cena.

Isso acontece porque Yager, sem saber (e sem poder saber) das condições

Page 11: Análise de montagem

excepcionais do diretor, inverte os posicionamentos, embaralhando – ainda

mais – a mente do diretor e dificultando sua adaptação à conjuntura. O

terceiro papel, o daquele que se diverte com a situação, é frequentemente

ocupado pelo próprio público, fechando a estrutura de chiste muito comum à

comédia.

A sequência começa com Waxman andando em direção ao hotel com

seu agente e comparsa, tentando passar em sua mente as direções

aprendidas alguns dias antes. Já neste momento, preparamos o riso para o

que vem a seguir, uma vez que vemos claramente que ele não conseguiu

guardar as informações dizendo “dois passos depois do relógio é o primeiro

sofá. Não, não. Dois passos é o primeiro… Hum, dois passos depois do

primeiro relógio…” mostrando-nos que está decididamente confuso quanto ao

que deve fazer. Waxman entra no quarto com Ellie, quando Yager pede a ela

que saia, para que eles tenham uma conversa de “homem para homem”, o

que já era esperado por Ellie. Ela sai e o produtor inicia a conversa: “Ellie diz

que as coisas estão indo bem.” Ao que Waxman, muito ocupado em contar

os passos até a primeira poltrona, não responde. A câmera não se fixa nele

neste momento, mas com o seu silêncio (numa pausa de timing perfeito

antes a câmera de mostrar o diretor perdido com um travelling) só podemos

deduzir que ele se atrapalha com a situação e não ouve o produtor. Yager

repete a pergunta duas outras vezes – ainda de costas para o protagonista,

ocupado com outros papéis – entre as quais vemos nosso próprio herói,

atrapalhado em passos e tatos. Quando ele finalmente encontra a tão

sonhada poltrona, Yager nos surpreende, pedindo que ele se se sente “aí

não, aqui”. Waxman pergunta “Onde?” e Yager responde, para desespero de

Waxman, que não obteve essa informação previamente: “Aqui, no sofá”. O

diretor, mantendo a rigidez que lhe é própria e sem conseguir esconder certa

decepção (muito bem salientada, por sinal), continua “No sofá? O sofá, que é

à...” como que pedindo um mapeamento mais preciso da localização do sofá

e rapidamente desistindo da idéia, pois que Yager não sabe e nem pode

saber de sua cegueira. Nos é bastante óbvio que a cena montada (já vista

um incontável número de vezes, em outros enredos) é banal, mas

extremamente eficaz, visto que contávamos com um desfecho da situação já

bastante intrincado e cômico e o próprio contexto nos traz novos elementos

Page 12: Análise de montagem

que dificultam ainda mais a adaptação do herói a ela.

Em seguida, como era de se esperar, Waxman, tendo Yager de costas

para ele, numa cena absolutamente cômica, anda alguns passos um pouco

mais decididos adiante, pára, e com algumas expressões de “bom, creio que

é mesmo por aqui” – já que o produtor nada disse enquanto ele caminhava –

vira-se e senta-se de uma só vez, caindo ao chão e provocando riso certo.

O produtor se assusta, sentando-o no sofá e perguntando se ele está

bem. Waxman diz que tem trabalhado demais e Yager decide servir uísque a

ele. Waxman recusa, mas Yager o traz mesmo assim. Waxman, sem ver o

copo, quase o derruba ao tentar segurá-lo, empurrando o braço do produtor

sem querer, quando yager diz que ele realmente está trabalhando demais.

A situação seguinte, em que Waxman conversa com Yager olhando

para o lado e não para frente, onde se encontra o produtor, é um pouco

inverossímil – mas não impossível – prejudicando em parte a comicidade da

cena, mas funciona bem. Quando o produtor se senta ao seu lado, buscando

o olhar do diretor, este fica confuso e passa a olhar em várias direções,

tateando algo veladamente com os braços. O diretor estranha aquilo e chama

a atenção de Waxman, pedindo que ele pare de mexer a cabeça daquela

maneira, pois aquilo o distrai. Ele pede desculpas, diz que tem trabalhado

demais, quando o diretor se levanta e – algo com o que não contávamos –

chama-o para ver alguns pôsteres do filme. Waxman se desespera, mas,

sem opção, se levanta, dá uma tragada no uísque e acaba por jogar o copo

no chão, quebrando-o, com a menção inicial de colocá-lo em algum lugar

seguro. Yager vai buscá-lo, repetindo o texto de que ele realmente está

fatigado. A repetição de elementos funcionais e engraçados também é um

fator muito constante nas produções cômicas, reforçando a dificuldade do

herói em entender a situação na qual se encontra, mesmo já tendo tido a

chance de vivê-la.

Este é um dos momentos mais engraçados da seqüência, em que

Yager pergunta ao diretor o que ele acha dos pôsteres e Waxman, olhando

para lugar nenhum, responde que são muito bonitos. Yager, ainda sem mirá-

lo, com os olhos fixos nos cartazes, aponta um que prefere e entrega-o nas

mãos de Waxman. Tudo perfeito, não fosse o fato de o cartaz estar virado de

costas, revelando apenas sua faceta em branco voltada para o público.

Page 13: Análise de montagem

Waxman levanta o cartaz de modo que vemos com clareza o pardo papel de

fundo e aponta elementos interessantes do cartaz, como as cores. Por sorte

(mas não por acidente), Yager mantém-se de lado, olhando para o outro

cartaz e aguardando o posicionamento de Waxman, de modo que a única

parte consciente de toda a movimentação ocorrida somos nós mesmos, o

espectador. Boa configuração de cena, bem resolvida. Sequer chegamos a

questionar a veracidade do fato de o produtor não olhar diretamente para o

diretor. Mecanismo muito bem explorado.

Por fim, o telefone toca e a cena é concluída, segundos depois, com a

saída de Waxman, auxiliado pelo produtor.

As atuações são muito acuradas, de modo que praticamente não se

percebe a inverossimilhança em que algumas vezes incorre o roteiro. O

timing é perfeito; as ações não se estendem além do que deveriam e não

passam por cima de pausas necessárias, como a salientada ao início. Ainda

assim, são muito mais ágeis e fluidas do que o drama ou a tragédia.

Em termos técnicos, a cena simplesmente segue o padrão do cômico:

há muita luz no quarto e as cores usadas são luminosas e neutras, chegando

no máximo a um salmão – presente na camisa do produtor e em algumas das

paredes. Para que não haja a menor alusão a uma ambiente opressor ou

triste e para que se possa enxergar bem as expressões dos atores e sua

movimentação.

A cena e seus acontecimentos são muito claros, não dando margem a

duplas interpretações, de modo que a sua leitura é bastante linear.

A simplicidade está em tudo, inclusive no uso dos planos e da

movimentação de câmera, extremamente econômica e na maior parte do

tempo fixa, deixando a ação em evidência e desviando o mínimo possível a

atenção do espectador. Os cortes são também os mais básicos, apenas

propiciando uma melhor visão da cena a partir de determinado ponto. Não se

quebra nenhuma regra da ilusão cênica, apesar das inverossimilhanças que

possuem uma certa “licença poética” outorgada no meio cênico à comedia,

apesar de os efeitos nos parecerem tanto mais cômicos quanto mais natural

consideramos a causa. Rimos já da distração que nos é apresentada como

simples fato. Mais risível será a distração que tivermos visto nascer e crescer

diante de nossos olhos, cuja origem conheceremos e cuja história poderemos

Page 14: Análise de montagem

reconstituir.

4 – Nem tanto ao céu, nem tanto à terra

(Análise da estrutura do filme “Abril Despedaçado” em função da

construção narrativa)

Ao me propor a realizar a análise de um filme sob o ponto de vista da

montagem num âmbito mais extenso, uma pergunta insistentemente não quis

calar: nos é um tanto quanto evidente a identificação dos elementos que

caracterizam a linguagem clássica do cinema de Griffith e – em

contraposição a esta primeira – dos definidores da linguagem dos soviéticos

– em especial de Eiseinstein. No entanto, quantos desses elementos ainda

se mostram válidos na realidade atual? Digo, o quanto da linguagem do

cinema soviético de então, por exemplo, ainda permanence um contraponto à

linguagem clássica holywoodyana? Assistindo a vários filmes atuais com um

olhar mais treinado voltado à questão da montagem, após este período, pude

constatar que a técnica em cinema se apropriou de muitos dos elementos

que um dia foram considerados uma afronta artística à linguagem comercial.

Não só do cinema soviético, mas de elementos da nouvelle vague, por

exemplo, entre outros. Aliás, todo e qualquer elemento vanguardista, seja de

onde e quando for, parece, em maior ou menor grau, mais cedo ou mais

tarde, incorporado à indústria cinematográfica. Este fator me leva a crer que o

que faz um filme, ao fim, não é somente a busca por uma linguagem

inovadora, mas, antes disso, a sinceridade do artista com seus próprios

princípios de expressão. Hoje é muito difícil dizer com certeza o que faz e o

que não faz parte do sistema narrativo clássico, uma vez que, cada vez mais,

o espectador se habitua às novas convenções do fazer cinematográfico.

Assim, torna-se muito mais distante a possibilidade de quebra da ilusão, visto

que o espectador “compra” as inúmeras e variadas verdades expostas pela

câmera com cada vez mais naturalidade. Poucas linguagens o surpreendem

e suas reações, na atualidade, acabam por depender mais do conteúdo

narrado do que da linguagem usada para narrá-lo.

Partindo dessas considerações, pode-se dizer que o filme analisado

(Abril Despedacado, de Walter Salles) é tão comum em linguagem quanto

Page 15: Análise de montagem

inúmeros outros - não se atendo sequer a uma tentativa de quebra da ilusão -

e não nos causa surpresa em termos de possíveis inovações. Neste sentido,

ele tem mais do cinema comercial do que se poderia imaginar, a princípio – é

extremamente coerente com a sua diegese e nos conduz o olhar a todo

momento. Por outro lado, ele certamente tem um acuro impressionante no

que diz respeito à sua realização, ao seu fechamento, contando com muitas

metáforas icônicas passíveis das leituras mais diversas. E estas se mostram

através dos variados elementos presentes numa produção fílmica, desde os

objetos de cena à trilha sonora, por exemplo.

Enfim, à análise propriamente dita:

Vôos estilhaços – Primeiras impressões

Ao assistir ao filme Abril Despedaçado com seus círculos e ciclos

contínuos, suas moscas, bois e homens semi-mortos tecendo um trajeto infinito

em torno das sobras da sobrevivência, imediatamente fui remetida ao mágico

mundo de Fernão Capelo Gaivota: neste porto de qualquer parte, essas aves, as

gaivotas, são aparentemente destinadas ao mesmo fardo, utilizando seu vôo

como forma de sobrevivência e não como busca de um refúgio libertador rumo ao

topo de seus sonhos.

Nesse livro, assim como no filme, surge um agente desafiador das metas

gerais. Fernão Capelo Gaivota, assim como Pacu ou “minino”, no filme - e em

segundo plano seu irmão Tonho - dá asas às próprias asas e permite que elas o

mergulhem no universo quente e acolhedor dos seus próprios desejos, do

imaginário, do usufruto de uma visão diferenciada como fuga do ordinário “dia-

após-dia”.

Sendo assim, enveredo, refletindo sobre o esqueleto constituído dessa

história fascinante, pelos signos – sejam icônicos ou simbólicos – que mais me

tocam:

“Meu nome é Pacu. É um nome novo. Tão novo que ainda nem peguei

costume”. A primeira frase do filme já causa curiosidade e estranheza. Seria

este um apelido que o garoto sem rosto se deu ou recebeu? Mas avançamos

no filme para descobrir, com desgosto, que o garoto tem rosto, mas de fato –

e tristemente – não tem um nome. Chamam-no “Minino”. Num mundo onde

Page 16: Análise de montagem

todos se matam sem trégua, parece haver uma necessidade de desapego,

uma predileção das mortes precoces, como se os filhos nascessem

marcados e fossem criados tão somente para a guerra, que os leva

implacavelmente ao mesmo destino.

Assim, o Minino, no decorrer da trama, é batizado Pacu. Não se

habitua de imediato, pois o nome não lhe agrada plenamente. Queria ser um

peixe de mar e não um peixe de rio. Mas, como bom criador de histórias que

é, adaptado às mais atrozes realidades, vê-se como um peixe de rio vivendo

no mar. Ao lado da linda sereia que veio buscá-lo para eles se casarem,

vivendo felizes para sempre.

Assim, Pacu caminha pela vereda incerta narrando a sua História

Humana ao lado da estória redentora que criou para si – mundos

diametralmente opostos que se confundem momentaneamente em tempo e

espaço. Aquela estrada que Pacu de fato deseja trilhar, se mescla, em sua

memória, à sua própria trajetória impiedosa. Ao fim do filme, início e fim da

história se fundem, num movimento que é o próprio movimento da trama em

si: circular e infindável.

Seguindo adiante na narrativa nada inocente de Pacu, ouvimos a

primeira (e reveladora) descrição dos personagens: o pai toca os bois, Tonho

mói a cana, a mãe recolhe os bagaços e o “minino” carrega o fardo. Fardo

que está constantemente em suas mãos – seja de cana, seja de capim, de

temor ou de repressão. Não por acaso, ainda, Tonho mói a cana, visto que

está mesmo responsável pelo serviço sujo da casa, por cobrar o sangue do

irmão que foi assassinado. Ele é a parte ativa da família. A mãe recolhe os

bagaços, os restos, sempre com a prontidão de uma vaca cega que doa seu

leite, seu couro, sua cria. Sem pestanejar, sem questionar. A função do pai é

a mais previsível. Ele é o pulso da família; a voz, o chicote, a decisão

personificada. Ele conduz toda a prole à perdição com a convicção de um

Deus. E conduz os bois, como conduz aos seus: forçando-os numa trajetória

cíclica, impiedosa e imutável. É como o pequeno e sábio Pacu ressalta: “a

gente tá que nem os boi: roda, roda e nunca sai do lugar”. E rodam tanto em

direção ao nada, que começam a rodar sozinhos, sem trégua, sem

compaixão, sem rumo. E por fim sucumbem, sob o chicote em riste do pai

severo. Os bois? Sim, os bois. Os dois que fazem girar a bolandeira? Sim,

Page 17: Análise de montagem

estes. E mais os outros dois que, também sem rumo, se perdem no vazio de

uma vida da ausência.

Os bois – e sobretudo os homens – quedam no fatal movimento

circular que é claramente ressaltado por Walter Salles através da bolandeira,

com suas engrenagens redondas e seu trajeto circular – o mesmo movimento

circular e inevitável da tradição, dos dias que sempre levam à morte, seja em

abril para uns ou em outro instante para outros; as próprias estações e suas

facetas diferenciadas, o movimento circular das moscas em torno de uma

“doce” rapadura, ou em torno dos restos na janela - tendo ao fundo a

infinitude do céu e das montanhas aguardando um único olhar que as

valorize, que sequer as perceba e à sua força. A tradição circular e impune

da desavença entre as famílias, que acaba por devorá-las pelas próprias

mãos, pela própria fúria cega. Já dizia Pacu que “em terra de cego, quem

tem um olho só todo mundo acha que é doido”. De fato, naquela terra de

ninguém, não há quem enxergue as saídas para um caminhar mais leve, fora

da tradicional vendeta e quem vê isso, um mínimo que seja, é jogado à

fogueira. O cego, por sinal, figura marcante presente no filme, representa

também uma espécie de Tirésias dos Sertões, com mais olhos que se possa

ver e mais conhecimentos e percepção da vida do que os muitos olhos que o

cercam, mas apenas sendo também devorado e aguardando o fim de sua

própria trajetória circular – sempre que o relógio marca mais um, mais um,

para os personagens será sempre menos um, menos um. Bem como para

todos nós.

A disputa entre as famílias é a grande imagem que ironicamente dá

vida ao filme, ao mesmo tempo em que suscita a morte. Vários são os

símbolos presentes que reforçam o poder dessa crença e modo de vida: o

retrato onipresente de cada parente morto na parede das casas, como num

santuário religioso, desvenda a razão para a qual vivem: honrar e louvar os

mortos. É a vida para a morte. Os fantasmas assombram pelas mãos

daqueles que insistem em mantê-los vivos em suas memórias e nas dos

outros. A camisa jaz ao vento com o sangue do morto e também nos crava na

memória a força da tradição: enquanto o sangue não fica amarelecido, seu

assassino tem ainda uma trégua. Assim que ele amarela, o parente mais

próximo e viril deve cobrar seu sangue, trucidando o último matador com vida

Page 18: Análise de montagem

num ciclo irreversível. Ao cair o homicida, a camisa pode ser lavada e

guardada, quase como num segundo enterro – este, da alma do morto, que

pode finalmente descansar em paz. Mas Pacu lembra em sua narrativa que o

sangue lavado é como em Lady Macbeth: “a mãe acha que sai, mas não sai”.

E enquanto a trajetória das famílias não mudar, ele não sairá nunca.

O nauseante velório dos finados em meio a mil vozes ladainhentas que se

entrecruzam, instaura um clima opressor. O patriarca cego clama, ao cair o

silêncio na presença do homicida: “Senhor, tende piedade de nós. Cristo, tende

piedade de nós”, como que a pedir que uma força divina perdoe, na morte, as

atrocidades cometidas em vida. Por todos eles, sujos dos horrores da vingança.

Os ambientes familiares são sempre muito escuros e silenciosos,

sobretudo na presença do patriarca, deixando clara a morbidez desse pacto

inquebrantável com o além. No filme há também muitos elementos

contraditórios, facas de dois gumes, que transportam para o divagar de que a

liberdade é uma ilusão contínua e que a verdadeira liberdade só pode e deve

ser buscada dentro de si. As estradas longas e infinitas que muitas vezes não

levam a lugar algum, como é o caso das estradas e do próprio circo para a

garota acrobata, o balanço e a corda que nos levam alto e dão a sensação de

liberdade, mas não saem do mesmo lugar.

O receio de subir muito alto e o medo de tirar os pés do chão vividos

por Tonho afirmam essa tese porque ele se arrisca, cai, brinca com a morte,

passando-se por moribundo para assustar aos seus, mas não se machuca,

pois ele finalmente alcança a própria libertação. Tonho afinal descobre que

não tem mais de pensar para responder a pergunta feita por Salustiano, o

personagem do circo: “Tu nasceu vivo ou morto?”. Ali, enfim, ele reconhece

que nasceu vivo, muito vivo. E assim quer permanecer, por um longo tempo

ainda.

Símbolos de libertação não faltam ao filme e os que se mostram com maior

força são aqueles criados pela ambientação da mente dos personagens: a sereia,

o mar (que aparece, ao final, em sua imensidão branca e purificadora). Há ainda o

circo, as lendas, o fogo. O fogo, muito presente, reforça a ligação entre o amor e a

libertação da alma, que é alcançada e consumada por Tonho e por Pacu (este

último, em sonhos), ao fim do filme, quando a sereia, ser aquático, é trazida – não

coincidentemente – pelo vento e pela chuva, que cai forte ao rasgar da fita

Page 19: Análise de montagem

fúnebre. Sob a imagem e a sensação da chuva purificadora, as almas são lavadas

de todo o temor e as copas das árvores se agitam num movimento de acalanto,

de embalo.

O momento mais forte e intenso do filme é quando vemos o “minino Pacu”

abdicando da própria vida em nome da vida e felicidade do irmão condenado.

Tonho, ao ver o irmão mais novo, sentindo o peso de outra espécie de

condenação e do erro comum ao herói trágico, se redime enfim de toda a

impureza, tomando um caminho que nunca havia tomado antes e desembocando

no mar dos sonhos de Pacu. Assim, ele segue os conselhos de seu falecido irmão

e liberta-se. Buscando seus desejos, Pacu também encontra o caminho da

libertação, que é alcançada, depois de muito buscar, através da morte, como um

vulto num corredor escuro e cheio de esperanças.

Como Fernão, Pacu encontra sua redenção num mundo além, longe da

crueza da realidade cíclica e implacável, onde os sonhos são palpáveis e os

desejos por fim se podem materializar.

A montagem em Abril Despedaçado

A montagem em Abril Depedaçado segue um certo padrão clássico no

que diz respeito aos planos e cortes - em sua maioria secos e contínuos, com

raccord, obedecendo sempre as regras dos trinta graus e do eixo, entre

outras regras criadas para a manutenção da ilusão, obtida com a proximidade

da representação da realidade cotidiana. Faz-se uso de establishing shots,

de planos gerais para localizar (sendo mais narrativos, épicos), de planos

conjunto e médios para estabeler a ação (linguagem de cunho dramático), e

os planos fechados, detalhe e closes para exprimir emoções (onde entra um

possível lirismo das individualidades). São usadas, ainda, subjetivas dos

personagens muito bem marcadas e realizadas, fazendo passar

despercebida a condução cinematográfica. A estrutura repete uma fórmula

menos utilizada pelas convenções, mas também gasta, iniciando pelo fim do

filme e criando, assim, uma narrativa cíclica (nada acidental, visto que o filme

trata a todo o tempo - como foi dito - da forma circular). Enfim, tudo é

encaixado da maneira mais padronizada e banal possível, mas com razões

bastante claras e tocantes. Essa linearidade em termos de linguagem é

Page 20: Análise de montagem

quebrada em alguns poucos momentos que se expõem a seguir. Abordo,

ainda, alguns elementos de montagem que me chamam a atenção:

Há uma sacada genial no início do filme - e que se repete ao final - ao

montarem duas imagens do vulto de Pacu andando pela vereda - filmado de

frente e de costas - uma seguida da outra, numa radical inversão de cento e

oitenta graus. Esta inversão repentina nos dá uma certa impressão de ter,

diante de nós, alguém que não sabe para onde vai e pouco se importa com

isso. Como Pacu, neste momento, é apenas um vulto, não se distingue com

clareza o que é sua frente e o que são suas costas. Essa opção dramática

aparenta querer nos dizer que não importa se ele anda para frente ou para

trás, pois ele percorre, neste momento, uma vereda diferente daquela que

está fisicamente diante de nós: ele percorre um corredor da morte, que é

também - ironicamente - o da sua redenção. Indo adiante ou para trás - e

vice-versa, o que é apenas uma questão de ponto de vista - seu fatal

caminho será o mesmo.

Em seguida temos uma espécie de imagem de predileção na qual a

montagem é de fundamental importância: vê-se a referida camisa

ensangüentada ao vento, pertencente a Inácio - irmão mais velho dos Breves

– se agitando em primeiro plano e, ao fundo, alternam-se imagens dos

irmãos Pacu e Tonho, à medida que a camisa voa e esconde os rostos,

revelando a mudança. Não é difícil a associação dessa montagem ao destino

dos dois irmãos, pois ao fim, há justamente uma troca de papéis e Pacu dá

sua vida em lugar da do irmão condenado, em decorrência da camisa e do

que ela representa.

A seqüência de ação ocorrida no momento da perseguição de Tonho

ao assassino de seu irmão em meio à vegetação seca é de tirar o fôlego e

conta com algumas sacadas interessantes. A seqüência é bastante longa,

aumentando a tensão à medida que passa. Há um enorme frenesi provocado

pela captação das imagens por vezes desfocadas e em movimentação

intensa, realizadas por uma câmera na mão em alta velocidade, junto aos

atores em disparada no meio da caatinga. E, por último, há uma proposta

bastante interessante da montagem que alterna, por vezes, um ponto de vista

distanciado, do próprio espectador (em que aparecem os dois personagens

no plano), com subjetivas do próprio Tonho, seguidamente, numa

Page 21: Análise de montagem

aproximação muito pequena, que não seria suficiente para acrescentar uma

nova informação ao plano, quebrando uma regra da narrativa clássica. Ou

seja, vemos o perseguido em seu desespero de uma perspectiva mais

próxima e, logo em seguida, o vemos pouco mais distante, inserido na ação,

com Tonho em primeiro plano. Essa opção torna a longa seqüência ainda

mais visceral e arrebatadora, nos aproximando por vezes da situação na

figura do assassino, e, em seguida, nos aliviando - mas apenas

momentaneamente - deste fardo. Filmagem e montagem muito bem casadas

e inteligentes.

Há, muito rapidamente, num determinado momento do filme, uma

montagem paralela bem ao estilo de Eiseinstein - apesar de ser muito mais

sutil - quando o pai está batendo em Tonho por ele ter levado o menino ao

circo. Antes de bater nele, o pai diz que ele perdeu o respeito pelos mortos da

casa e que ele devia seguir o exemplo de Inácio, seu irmão mais velho. Ao

que Tonho responde: "se preocupe não, pois já tô seguindo os passos dele"

(referindo-se, evidentemente, à morte por assassinato de seu irmão), o que

provoca a fúria do pai. Nos momentos em que Tonho apanha, alternam-se

imagens da parede iluminada pela bruxuleante e quente iluminação de um

lampião, do pai e de Tonho e, curiosamente, eis que surge, em fração de

segundos, a imagem do retrato de Inácio que fica preso à parede, sem

conexão direta com o espaço onde eles se encontram ou com a situação. A

referência é bastante simbólica e nos traz uma série de sensações quando

unida à forte cena. Desde o olhar do irmão, que, dependendo do humor de

quem assiste, pode ser lido como aprovativo ou reprovativo, até a dramática

força onipresente da imagem de alguém que se foi, mas que continua entre

eles a assombrar por sua morte, decidindo os passos de quem ainda anda

sobre a terra.

Há uma outra seqüência que se usa de uma espécie de paralelismo

mais convencional, mas que é extremamente bem montada. Esta seqüência

nos mostra imagens de Pacu se deliciando ao recriar as histórias da sereia e

do menino sob a sombra de uma árvore intercaladas a imagens de seu pai

trabalhando na caatinga, cortando alguns cactos. Há a intenção da

montagem paralela de fazer surgir um terceiro significado dialeticamente,

porém, as cenas acontecem num espaço relativamente próximo e ao mesmo

Page 22: Análise de montagem

tempo, recorrendo a um raccord perceptível especialmente porque ouvimos a

voz de pacu ao longe enquanto são mostradas as imagens do pai. Esta

configuração tem um resultado muito interessante, pois, a princípio, a união

nos remete à estranheza entre esses mundos – o sonhado por Pacu e aquele

vivido pelo pai. Pacu conta a história de como a sereia se encanta ao ver sua

terra, com todos os seus elementos característicos, incluindo a bolandeira,

por exemplo, trazendo à tona toda uma cor e brilho inexistentes naquele

mundo sob o ponto de vista rígido do pai. A leveza de Pacu contrapõe-se à

austeridade dele. Da união das imagens saímos com a sensação de

impossibilidade, de embate entre forças opostas que nunca se alinharão.

Entre o novo e o velho, entre a tradição e a revolução. Vemos o pai se

indignando gradativamente com a narrativa do filho e, aos poucos, cresce

nossa agonia junto ao caminhar da cena para um desenlace. O ápice

dramático é quando o menino relata sua viagem com a sereia para o mar.

Quando ele, num crescendo rítmico, diz que “abriu os feixes de cana e

depois... (Pausa dramática.) Chegou no meio do mar”, o pai imediatamente

(num timing perfeito) joga a foice no chão e vai atrás do menino, com sua

expressão severa, o que nos agonia profundamente. O triste desenlace

acontece com um encontro dos dois no qual o pai tira o livro das mãos de

Pacu e este corre atrás dele em desespero, para que ele o devolva, sem

sucesso.

Outra solução é interessante do ponto de vista dramático: há um

momento em que Tonho – que a princípio não queria subir no balanço, mas

acaba subindo e sentindo-se livre – cai do balanço de uma altura

considerável e tudo o que acontece em torno nos leva a questionar se esse

teria sido o seu fim. É possível que principalmente por uma questão de

praticidade, a queda não seja mostrada e vemos apenas as reações de todos

seguidas da imagem de Tonho ao chão. Esta opção é louvável, pois além de

não explorar a adrenalina de uma cena que poderia ser chocante, aumenta o

suspense e a tensão do acontecimento, visto que não sabemos ao certo o

que houve com o personagem. Este momento brinca com a presença

constante da morte entre essa família e com a expectativa iminente de algo

sobre o que não devíamos ter controle.

Há, ainda, uma opção prática para uma das cenas finais, com solução

Page 23: Análise de montagem

encontrada na montagem: é importante que vejamos, para compreender o

que se passou nos últimos instantes da vida de Pacu, os mesmos momentos

sob três pontos de vista diferentes: o de Pacu, que percorre a vereda e ri

largamente antes de ser baleado, com a visão romântica do mar e da sereia,

o do assassino, que esbarra em um tronco, deixa cair seus óculos de grau e

acaba pisando sobre eles (para reforçar sua importância, no caso de o

espectador não se lembrar de que ele os usava, acredito), o que faz com que

ele atire em Pacu, pensando se tratar de Tonho e o ponto de vista do próprio

Tonho, que acorda como estrondo do tiro disparado pelo inimigo, correndo

para encontrar o irmão morto. Esta seqüência é um pouco intrincada, mas

funciona bem e, ao fim, entendemos o essencial da narrativa – o que não

seria possível através da representação de um único ponto de vista.

A montagem em Abril despedaçado sob a perspectiva do áudio:

Trilha Sonora

Muitas vozes remetem a uma atmosfera ritualística, a novenas, rezas,

mantras, que se fundem entre si e a outros instrumentos, como as cordas,

muito presentes na trilha também. Elementos do som ambiente como

mugidos de boi parecem se fundir também (e não coincidentemente) às

vozes – ou é a sensação criada, por vezes, devido à semelhança de alguns

cantos entoados. Outros sons do ambiente (ou efeitos) de pássaros e outros

bichos são também incorporados de maneira consciente e harmônica ao

conjunto musical. Todos estes elementos são conjugados na medida certa

em relação à música através da montagem, de modo a se tornarem

dramática e esteticamente complementares.

As vozes, os bichos e, por vezes, as cordas, são apresentados com

efeitos de distorção e reverberação, o que cria um ambiente insólito e com

um distanciamento e grandeza próprios do épico.

Próximo à primeira hora de filme, quando há uma mudança de

atmosfera no momento em que Tonho decide acompanhar o circo, dando-nos

esperança, uma rabeca entra em cena para trazer à tona uma música um

pouco mais descontraída, apesar de ainda guardar um elo com aquela inicial

– o que confere também unidade ao conjunto muito bem estruturado.

Page 24: Análise de montagem

Ao fim, a música é trabalhada de modo a possibilitar uma

contraposição de universos bem definidos e opostos que se cruzam, numa

opção de montagem bastante interessante. Clara retorna ao “Riacho das

Almas”, onde vive a família dos Breves e sua música descontraída funde-se

àquela opressiva do local, o que cria a sensação de desprendimento e

libertação, em alguns momentos e, em outros, de estranheza e prisão, visto

que a fusão provoca algumas dissonâncias. As dissonâncias, não

coincidentemente, recaem por vezes sobre imagens do rapaz da outra família

que ali está para assassinar Tonho, da fita preta que marca o morto, entre

outras que nos trazem amargura. No exato instante em que Clara e Tonho se

encontram e ela rasga a sua fita preta, a chuva cai com estrondo, numa clara

opção dramática muito bem aproveitada e definida pela montagem em

seqüência dos dois planos: a fita é rasgada; a chuva cai. Nem é preciso

demarcar a oposição entre esses elementos, tão inequívocos. Acho

interessante ressaltar apenas a inusitada visita da chuva ao sertão, que é

incomum – junto à visita da sereia, como se esta estivesse trazendo consigo

as águas do lugar de onde veio.

Efeitos

Mesmo os efeitos utilizados, por vezes, conferem função dramática ao

filme, como os passos de Tonho, ao sair da casa da família inimiga, que se

equiparam sincronicamente, por alguns segundos, ao som do implacável

relógio que se dependura ao lado do velho, reforçando a realidade de ele ter

pouco tempo para caminhar sobre a terra.

Som ambiente

O que mais chama a atenção no uso do som ambiente neste filme é a

quietude de muitos instantes e o uso dramático de alguns momentos de

silêncio sufocante.

Silêncio

Page 25: Análise de montagem

Os momentos de quase silêncio são muito marcantes no filme, quando

ouvimos apenas os grilos bem ao fundo e a atmosfera opressora toma conta

do lugar. Dois momentos desse quase silêncio me chamaram a atenção –

aquele em que Tonho entra na casa da família inimiga para prestar sua

excelência ao morto de quem foi o assassino e todos – que antes rezavam –

se calam, demonstrando indignação e o ódio que mantém tal tradição

destrutiva viva. O segundo momento é quando o pai, ao perguntar à mãe

“Olha em volta, mulher, o que é que sobrou?” recebe um grande e pesado

silêncio seguido de um sussurrado “nada” em resposta. O silêncio ilustra de

forma fiel a própria condição de vazio, fruto da pergunta.