análise de montagem
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ESCOLA DE CINEMA DARCY RIBEIRO
DISCIPLINA: Teoria da Montagem
PROFESSOR: Renato Schvartz
ALUNA: Maíra Lana de Araújo e Souza
re c or tesAnálise de determinadas seqüências com enfoque na montagem
Rio de Janeiro
Julho de 2010
Considerações Iniciais
A princípio, creio que é importante ressaltar que todas as seqüências
analisadas – bem como qualquer seqüência, de modo geral – depende
estreitamente de sua estrutura total, visto que muitas questões nela
presentes só podem ser amplamente compreendidas no todo da obra. Assim,
uma seqüência de ação pode perder muito de seu impacto e uma seqüência
de comédia pode ser destituída de sua comicidade, inclusive, uma vez
analisadas isoladamente. Mas procurarei me ater às especificidades de cada
linguagem, limitando-me a comentar possíveis ações exteriores à seqüência,
sempre que isso se mostrar necessário.
Outra questão é a incapacidade, em determinados momentos (algo
que foi também aventado em aula), de se distinguir elementos de linguagem
propostos e executados pela montagem e aqueles propostos pelo roteiro e
direção e apenas executados na sala de edição. Na impossibilidade de
discernir as situações, buscarei avaliar tudo aquilo que é aparentemente
realizado na montagem, sem me ater à origem das idéias.
Análise da seqüência de ação:
Pesquisa e Escolha:
Diante da possibilidade de pesquisar cenas diversas no site youtube,
pus-me – a princípio sem idéias precisas sobre qual filme analisar – a realizar
uma busca das “melhores cenas de ação” ou ainda “the best action scenes”,
gerando outro resultado. A partir destas pesquisas acabei tendo acesso a
uma série de cenas e/ou seqüências1 (incluindo as eleitas como piores cenas
de ação, que sou grata por ter tido a oportunidade de ver) provenientes
desde a indústria de Bolywood2, até filmes incríveis (difíceis de crer, de fato)
da indústria de filmes “z” orientais. Chegam a ser interessantes – são no
1 Dependendo da fonte à qual se refere – para alguns, a cena é delimitada por uma mudança de espaço e/ou tempo e a sequência seria como uma espécie de unidade dramática, de valor mais subjetivo. Para outros, a seqüência seria definida por esta mudança espaço-temporal e o termo cena seria utilizado somente a nível dramatúrgico, de roteiro.2 Indústria cinematográfica indiana.
mínimo originais e surpreendentes – de tão ruins. A seqüência de ação
filmada na Índia me impressionou especialmente pelo maltrato dos cavalos
(posso ser leiga em matéria de produção de cenas de ação, mas acho difícil
que os bichos não tenham sido de fato judiados), especialmente por ser um
filme realizado na índia, onde os animais possuem importância sagrada. Em
seguida me impressionou a intensa produção, certamente fruto de gastos
homéricos – a cena é uma das mais longas dentre as assistidas e certamente
uma das que mais abusa de todas as possibilidades à mão, utilizando-se de
todos os clichês imagináveis, tanto de filmagem como de montagem e, com
isso, cansando a vista e a mente do espectador com os excessos. Tudo
acontece e nada acontece. Algumas técnicas também não foram tão bem
absorvidas, fazendo com que a fórmula holywoodyana seja usada às vezes
de maneira deturpada e não funcional. Apesar disso, vale a pena assistir
devido à ousadia e pela tentativa de fazer algo digno de Holywood – em
termos técnicos – fora de lá.
Uma cena oriental, em particular, me chamou muitíssimo a atenção,
pela inventividade, ainda que bizarra. Trata-se de uma cena mal atuada, mal
dirigida, mal montada, mal assistida. Ou eu tive lá minhas dificuldades... De
tão mal das pernas a cena ganha um aspecto inovador e instigante. Um olho
salta (literalmente) da órbita do adversário com um tapa na nuca e este, por
sua vez, num apontamento de cena dramática, comete o tradicional rito de
Sepukku – suicídio – por meio de uma adaga, mas não para suicidar-se,
como cremos a princípio e sim para enforcar – bem entendido, enforcar – seu
adversário com seus intestinos. Fiquei tentada a usar esta cena como alvo da
análise, mas, mais adiante, me deparando com as cenas da indústria
massificada de Holywood (entre homens aranhas, batmans, 007’s, e outros
heróis mais ou menos conhecidos), assisti a uma que não me deu outra
escolha senão agarrá-la.
Antes disso, tenho uma consideração a fazer sobre uma das
seqüências mais quentes do último Batman, o “Dark Knight”, com a atuação
brilhante do ator Heath Ledger: a seqüência em que o Batman sai com a
moto e prefere se jogar no asfalto a atropelar o pobre coringa. Vejamos: a
cena começa muito antes disso, numa conturbada perseguição dentro de um
túnel subterrâneo. Confesso que me confundi por diversas vezes nessa
seqüência, sem saber qual era o carro atingido, o caminhão atingido, que
veículos se chocavam. E saí com uma curiosidade ainda não concluída: os
filmes de ação são, em sua maioria, feitos para uma absorção rápida e
irrefletida das suas cenas. Ora, são filmes de ação, dramáticos. Longe dos
gêneros estilísticos épico e do lírico das reflexões ativas. Sim, são filmes para
relaxar na cadeira, tomando uma dose de adrenalina (paradoxal, mas é isso
mesmo). Para tal, todas as imagens e ações têm de ser mostradas de modo
a bem conduzir o olhar do espectador, tornando as cenas o mais acessíveis e
decifráveis possível, sem possibilitar interpretações múltiplas. Aliás, o que há
é uma única interpretação possível que deve ser compreendida pelo
espectador. Afinal, trata-se de um filme certamente comercial, feito com um
pensamento midiático (ou seja, nivelado pela média – para compreensão e
gosto de uma maioria). Assim, algo me fez ironicamente refletir: ora, se não
consigo captar toda a ação proposta na seqüência de imediato, seria isso um
fator proposital (sim, você pensa que o Batman atingiu o caminhão do
Coringa, mas irônica – e não coincidentemente – o caminhão não é aquele
do Coringa, apesar de o Coringa aparentemente assistir a esse impacto de
seu próprio caminhão) ou seria uma falha da montagem? Minha dúvida fica
inconclusa, visto que ambas as possibilidades são plausíveis e sustentáveis,
o que torna a cena de certa forma interessante em termos de análise.
Mas voltemos. Acabei por escolher outra seqüência (apesar da
também instigante cena inicial de parkour3 do filme 007 – de tirar o fôlego):
uma das que compõem o lindíssimo filme – esteticamente falando – 300, do
diretor Zack Snider, tendo sido a que mais me chamou a atenção.
Exponho, aqui, as razões desse espanto, antes que se possa detalhá-
la. Em primeiro lugar, este é um plano seqüência. Ou ao menos é o que
aparenta ser, num primeiro momento. Somente este fator – em se tratando de
uma seqüência de ação, normalmente composta pela interação de um
número absurdo de planos e perspectivas – já chama a atenção. Em seguida,
3 Parkour (por vezes abreviado como PK) ou l'art du déplacement (em português: arte do deslocamento) é uma atividade cujo princípio é mover-se de um ponto a outro o mais rápida e eficientemente possível, usando principalmente as habilidades do corpo humano. Criado para ajudar a superar obstáculos de qualquer natureza no ambiente circundante — desde galhos e pedras até grades e paredes de concreto — e pode ser praticado em áreas rurais e urbanas. Homens que praticam parkour são reconhecidos como traceur e mulheres como traceuses. Criado por David Belle. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Parkour
a beleza das imagens, espetacularmente bem compostas e finalizadas, com
filtros e acabamento que dão a sensação, em texturas e cores, de se ter
sempre um quadro renascentista pintado à frente (afinal, trata-se de uma
história em quadrinhos retratando a Grécia Antiga – e esta é uma ótima
referência estética, uma vez que o renascimento remete-se justamente à
Grécia clássica). As imagens parecem ter uma densidade não captável na
realidade. Como se tudo estivesse numa rotatividade diversa da nossa.
Quadros em movimento; a própria História em movimento diante dos nossos
olhos. Bela e violenta.
A montagem dessa seqüência é incrível, de um primor e inventividade
extremos. (Digo, não estou certa de que tais recursos foram usados da
mesma maneira em outros filmes anteriores, mas de fato me parece uma
seqüência de ação totalmente inusitada diante das muitas outras às quais
tive acesso, talvez em função da combinação de elementos aqui usada.)
A cena anterior à seqüência tratada mostra um grande aglomerado de
pessoas numa guerra – os espartanos e o inimigo, persa em sua maioria. Um
ruído extremo e cheio toma conta da cena, dando-nos uma idéia da confusão
digladiada de uma guerra qualquer e inominada. No entanto, a cena que se
segue – e que nos interessa – mostra o líder dos espartanos numa seqüência
de tirar o fôlego e ao mesmo tempo tão bem coreografada e bela quanto um
ballet violento. Eis que surge Leônidas, extremamente visível em meio ao
tumultuado quadro, a caminhar lenta e decididamente para a frente, sua
lança e espada encontrando o inimigo a cada passo dado.
Toda a cena se transforma em relação à anterior, dando a impressão
de que a primeira foi colocada ali justamente para dar maior impacto a esta
última, contrapondo-se a ela radicalmente: a câmera lenta é utilizada, sendo
que o movimento às vezes toma a velocidade natural de volta e, por outras,
acelera ainda mais seu ritmo, especialmente nos instantes de impacto com o
inimigo e outros em que inimigos cruzam nossa objetiva, para que possamos
melhor ver a cena que se passa. Tudo bem, este recurso certamente foi
utilizado em inúmeros filmes, mas não me lembro de ter sido conjugado com
outros detalhes aqui aventados: há ainda, além da deturpação da velocidade,
o constante uso de zoom, que dinamiza – e muito – a seqüência, na ausência
de cortes e mudanças de perspectiva. Sempre que se mostra interessante
exibir-nos um trecho mais impactante e dramático, como expressões, golpes,
etc., a câmera fecha no recorte a ser enquadrado pelo olhar sedento de
detalhes. Quando a cena demanda distância, para captar todo um amplo
movimento corporal ou o conjunto do embate, a câmera se distancia. As
distâncias focais usadas são as mais diversas, parando em inúmeros pontos
entre a objetiva e a ação, o que nos dá um leque variado de perspectivas
possíveis, dependendo da necessidade de aproximação ou distanciamento. É
importante ressaltar que isso ocorre, noventa por cento das vezes, junto ao
choque das armas de Leônidas contra o inimigo, afinando-se, também – mas
não coincidentemente – com a aceleração das imagens. Por vezes a câmera
– que está quase todo o tempo caminhando em travelling para a lateral,
acompanhando os passos do líder – também se move em chicote para
mostrar algo que está adiante, retornando também em chicote para a ação
principal. Isso ocorre quando a lança é jogada e a câmera a acompanha até
que ela se choca com o inimigo, por exemplo. Por último, temos quase
imperceptíveis cortes na ação, criando uma espécie de falso raccord muito
velado, devido às mudanças de velocidade da cena, mas que dão todo um
toque dinâmico à apresentação das imagens, junto ao eficaz conjunto da
seqüência.
Certamente a conjugação de todos esses elementos cria uma
seqüência das mais eletrizantes sem deixar de apontar uma profunda beleza
estética presente nos momentos mais inusitados. É de fato fascinante. Ao
menos para mim.
Análise da seqüência quanto à sua construção sonora
Uma vez tendo escolhido a seqüência anterior a dedo, não poderia
deixar de concluí-la através da observação em torno da sua construção
sonora. É certo que a combinação imagética reproduzida já seria de tirar o
fôlego por si só, mas o som também tem papel fundamental para que o êxito
da cena seja completo. Vindo do momento anterior, onde há um aglomerado
aparentemente sem acuro de sons indistintos se misturando uns aos outros,
a cena seguinte transforma o quadro: é cuidadosamente pensada,
destacando os sons que a si interessam. Para acompanhar a lentidão das
imagens, os sons são também ralentados por vezes, além de serem muito
mais recortados, dando a eles maior foco por sua seletividade. Os sons que
se destacam são os ruídos de lâminas recortando a matéria, o impacto das
armas contra o inimigo, com intensidade elevadíssima, os urros do inimigo e
do próprio guerreiro e, ao fim, um suspiro seu, mostrando que a cena
literalmente de tirar o fôlego, acabou. Podemos todos respirar aliviados. Os
efeitos de ar sendo transposto pela matéria, seja dos corpos, seja das armas
é também usado, sendo elevado em intensidade à centésima potência, num
resultado poderoso.
Para a finalização dos ruídos, o editor faz uso de um efeito muito
recorrente, em que os sons parecem estar sendo reproduzidos em um
ambiente de acústica diferenciada, com uma reverberação peculiar e
aumentada. Outro efeito faz com que eles soem como se estivessem sendo
produzidos num ambiente muito mais denso e intransponível, aumentando a
sensação de ralentar e de tensão da cena. Estes efeitos dão aos sons uma
permanência maior e um tom épico, distanciado, permitindo-nos realmente
analisar a cena em toda a sua beleza, longe dos horrores da guerra.
Há, ainda, o provável uso de sons em modo reverse, devido à
qualidade sonora do choque de alguns metais. Isso dá um tom mais
dramático a cena, como se os sons estivessem sendo sugados em alguns
momentos. A estranheza futurística é ponto positivo para a criação de uma
atmosfera de adrenalina.
Há, na trilha sonora, o uso de um pedal agudo, provavelmente
produzido por cordas orquestradas que parecem se transformar, adiante, em
vozes espectrais, ritualísticas, que dão um tom de transe à seqüência. Mais
adiante, os violinos são substituídos por violoncelos e baixos, dando maior
gravidade – literalmente – à cena. Alguns instrumentos de percussão fazem
trinados, quebrando a monotonia dos pedais e, aparentemente, uma flauta de
bambu – ou semelhante – conclui a seqüência junto ao suspiro do nosso
guerreiro, dando a ela maior leveza à conclusão da chacina.
Um outro pedal eletrônico, muito agudo e quase imperceptível, entre
outros efeitos que aparecem mais raramente, parece acompanhar a
seqüência quase o tempo todo, ligando-a num fluxo do início ao fim.
Este conjunto primoroso fecha com chave de ouro a seqüência
analisada em detalhes, não deixando a avaliadora de comentar seu
envolvimento e fascínio pela beleza estética e técnica do filme como um todo,
aqui evidenciados.
Assista à seqüência no youtube em: http://www.youtube.com/watch?v=aTXlWYdodnc ou digitando “300 Insane Fight Scene”.
Análise de uma sequência de comédia
A escolha desta seqüência também não foi nada fácil, apesar de ter
se dado mais rapidamente. Afinal, que estilo de comédia abordar?
Após passar por filmes como o brasileiro Se eu fosse você, com
ótimas atuações e algum conteúdo além da forte carga cômica e por
enlatados completos como a série Todo mundo em pânico, na qual o riso
depende estritamente do conhecimento prévio de outros filmes, cheguei aos
inteligentes e certeiros filmes de Woody Allen, que se inspira e baseia seus
roteiros em personagens comuns oriundos das grandes concentrações
urbanas, onde retrata a incapacidade do homem em lidar com as situações
do seu cotidiano. Esta característica, por si, já encontra eco na exploração
existencialista mas, acima de tudo, escancara “o rígido, o esteriótipo, o
mecânico, por oposição ao flexível, ao mutável, ao vivo, a distração por
oposição à atenção, enfim, o automatismo por oposição à atividade livre”,
características próprias à forma cômica, tal como ressaltadas por Bergson em
seu brilhante “O Riso” (Bergson, 2007: 97). A escolha dentre as mais de
quarenta produções do consagrado diretor também não foi das mais fáceis,
mas levou-me a duas obras em particular que acreditei estarem mais
abarcadas em nossa disciplina enquanto temática: o primeiro foi o filme Zelig,
uma ficção que nos é apresentada em formato documental, transitando entre
a (suposta) realidade e a criação artística. O pseudo-documentário trata da
vida de Leonard Zelig (Woody Allen), o homem- camaleão, que tinha o dom
de modificar a aparência para agradar a outras pessoas. Tema de extrema
perspicácia e construído no formato documental, Zelig se encaixava na
discussão que vinha sendo levantada em sala de aula sobre os diferentes
graus de ficção presentes em documentários de maneira muito interessante,
visto que é a criação de uma história de ficção, mas com ecos tão sólidos na
realidade que faz-nos questionar se não é ainda mais verdadeiro que certos
documentários que manipulam excessivamente seus discursos. No entanto,
apesar do fascínio por esse universo, foi um outro ainda mais aproximado de
nosso universo que me fez cair em seus encantos: o filme Dirigindo no
Escuro, que trata de um diretor de renome desempregado e atualmente no
ostracismo que finalmente tem a chance de trabalhar mais uma vez numa
grande produção, tendo uma cegueira psicossomática antes do início das
filmagens. Embora tenha personagens caricaturais, elemento recorrente da
comédia, o roteiro apresenta situações realistas e atuais, no contexto urbano
e cinematográfico de países ricos, expondo ao ridículo a indústria de
Hollywood (produtores, diretores, agentes, técnicos e artistas) em
contraposição ao próprio ridículo da indústria dos ditos “filmes de arte”, que
inúmeras vezes acaba por considerar qualquer novidade, refletida ou não,
compreensível ou não, um traço vanguardista.
Como o tema muito me interessa e a discussão é uma das mais
calorosas em qualquer meio artístico, me decidi por analisar uma sequência
deste filme.
A princípio, é interessante salientar que uma das maiores causas do riso
é, de acordo com Bergson, “uma certa rigidez do corpo, do espírito e do
caráter, que a sociedade gostaria ainda de eliminar” (BERGSON, 1983:1).
Todo o cerne do cômico gira em torno desses preceitos e esta não é uma
verdade alheia a Woody Allen, que sempre trabalha com a construção de
roteiros e personagens com dificuldades de adaptação e uma rigidez que
lhes é própria, que lhes impede de serem maleáveis diante de situações
adversas (grosseiramente falando, seria o retrato do homem que não desvia
da casca da banana, por exemplo, o que se confira numa rigidez física à qual
ele não consegue escapar).
A representação de um tipo fixo, que não se atém a uma personalidade,
a um nome individual, mas a uma característica do espírito, a um adjetivo,
também é aqui mantida. Wal Waxman, o diretor incorporado por Allen neste
filme é, mais uma vez, um personagem neurótico, cheio de pequenas e
irritantes manias, e com uma grande dificuldade de inserção social ou, no
mínimo, às situações que lhe são impostas.
Nas comédias, os homens são representados piores do que eles são na
realidade, para que possamos ridicularizá-los sem nos identificarmos de
maneira tão direta com eles. Waxman certamente é esse homem a quem
compreendemos em parte, mas que possui uma série de atitudes e
características caricatas, fruto de um riso certo, mas inteligente, visto que as
piadas são muitas vezes extremamente discursivas e espirituosas. No
entanto, a seqüência pela qual me decidi conta com a presença do sempre
bem vindo humor pastelão, que, unido a uma trama reflexiva e boas sacadas
dramatúrgicas, só acrescenta ao filme. A seguir uma espécie de resumo
comentado:
Waxman deve se encontrar com o produtor do filme que o contratou
por insistência de sua esposa (ex de Waxman) para uma conversa tête-a-
tête, longe da cumplicidade de seus comparsas, que são tirados de campo.
Para isso, se prepara na suíte onde o encontro ocorrerá, contando os passos
até a cadeira mais próxima, a direção e disposição dos móveis dos quais
precisará, etc. É evidente que, para que o riso ocorra, deve-se partir do
pressuposto de que aquilo que dá segurança nunca se concretiza como
planejado. Sempre há algo que sai errado, mudança com a qual o herói
cômico não consegue lidar – normalmente inconsciente dessa limitações e
rigidez. Este é um automatismo muito próximo da simples distração. Para
convencer-se, basta notar que uma personagem cômica geralmente é cômica
na exata medida em que ela se ignora. O cômico é inconsciente.
Afirma-se a necessidade muito constante da presença de três sujeitos
na comédia: “aquele que revela os aspectos risíveis do outro (o herói ou uma
personagem complementar, opositora ou não), aquele que tem expostos
seus aspectos risíveis (o herói ou uma personagem complementar, opositora
ou não), e aquele que é o destinatário da exposição, diverte-se com ela e ri (o
herói ou uma personagem complementar, opositora ou não, e, ainda, o leitor/
espectador)”. Assim, podemos identificar no objeto dessa pesquisa quais os
sujeitos e suas disposições: nos é evidente que o herói ridicularizado é o
personagem interpretado por Allen, o diretor Waxman. Os dois outros papéis
se confundem, mostrando-se de forma um pouco mais velada, mas, se
prestarmos atenção, ainda que inconscientemente (e tanto melhor, pois que a
comédia se dá de maneira mais eficaz tanto mais natural é o acontecimento),
o produtor se presta ao papel de revelador do ridículo do colega de cena.
Isso acontece porque Yager, sem saber (e sem poder saber) das condições
excepcionais do diretor, inverte os posicionamentos, embaralhando – ainda
mais – a mente do diretor e dificultando sua adaptação à conjuntura. O
terceiro papel, o daquele que se diverte com a situação, é frequentemente
ocupado pelo próprio público, fechando a estrutura de chiste muito comum à
comédia.
A sequência começa com Waxman andando em direção ao hotel com
seu agente e comparsa, tentando passar em sua mente as direções
aprendidas alguns dias antes. Já neste momento, preparamos o riso para o
que vem a seguir, uma vez que vemos claramente que ele não conseguiu
guardar as informações dizendo “dois passos depois do relógio é o primeiro
sofá. Não, não. Dois passos é o primeiro… Hum, dois passos depois do
primeiro relógio…” mostrando-nos que está decididamente confuso quanto ao
que deve fazer. Waxman entra no quarto com Ellie, quando Yager pede a ela
que saia, para que eles tenham uma conversa de “homem para homem”, o
que já era esperado por Ellie. Ela sai e o produtor inicia a conversa: “Ellie diz
que as coisas estão indo bem.” Ao que Waxman, muito ocupado em contar
os passos até a primeira poltrona, não responde. A câmera não se fixa nele
neste momento, mas com o seu silêncio (numa pausa de timing perfeito
antes a câmera de mostrar o diretor perdido com um travelling) só podemos
deduzir que ele se atrapalha com a situação e não ouve o produtor. Yager
repete a pergunta duas outras vezes – ainda de costas para o protagonista,
ocupado com outros papéis – entre as quais vemos nosso próprio herói,
atrapalhado em passos e tatos. Quando ele finalmente encontra a tão
sonhada poltrona, Yager nos surpreende, pedindo que ele se se sente “aí
não, aqui”. Waxman pergunta “Onde?” e Yager responde, para desespero de
Waxman, que não obteve essa informação previamente: “Aqui, no sofá”. O
diretor, mantendo a rigidez que lhe é própria e sem conseguir esconder certa
decepção (muito bem salientada, por sinal), continua “No sofá? O sofá, que é
à...” como que pedindo um mapeamento mais preciso da localização do sofá
e rapidamente desistindo da idéia, pois que Yager não sabe e nem pode
saber de sua cegueira. Nos é bastante óbvio que a cena montada (já vista
um incontável número de vezes, em outros enredos) é banal, mas
extremamente eficaz, visto que contávamos com um desfecho da situação já
bastante intrincado e cômico e o próprio contexto nos traz novos elementos
que dificultam ainda mais a adaptação do herói a ela.
Em seguida, como era de se esperar, Waxman, tendo Yager de costas
para ele, numa cena absolutamente cômica, anda alguns passos um pouco
mais decididos adiante, pára, e com algumas expressões de “bom, creio que
é mesmo por aqui” – já que o produtor nada disse enquanto ele caminhava –
vira-se e senta-se de uma só vez, caindo ao chão e provocando riso certo.
O produtor se assusta, sentando-o no sofá e perguntando se ele está
bem. Waxman diz que tem trabalhado demais e Yager decide servir uísque a
ele. Waxman recusa, mas Yager o traz mesmo assim. Waxman, sem ver o
copo, quase o derruba ao tentar segurá-lo, empurrando o braço do produtor
sem querer, quando yager diz que ele realmente está trabalhando demais.
A situação seguinte, em que Waxman conversa com Yager olhando
para o lado e não para frente, onde se encontra o produtor, é um pouco
inverossímil – mas não impossível – prejudicando em parte a comicidade da
cena, mas funciona bem. Quando o produtor se senta ao seu lado, buscando
o olhar do diretor, este fica confuso e passa a olhar em várias direções,
tateando algo veladamente com os braços. O diretor estranha aquilo e chama
a atenção de Waxman, pedindo que ele pare de mexer a cabeça daquela
maneira, pois aquilo o distrai. Ele pede desculpas, diz que tem trabalhado
demais, quando o diretor se levanta e – algo com o que não contávamos –
chama-o para ver alguns pôsteres do filme. Waxman se desespera, mas,
sem opção, se levanta, dá uma tragada no uísque e acaba por jogar o copo
no chão, quebrando-o, com a menção inicial de colocá-lo em algum lugar
seguro. Yager vai buscá-lo, repetindo o texto de que ele realmente está
fatigado. A repetição de elementos funcionais e engraçados também é um
fator muito constante nas produções cômicas, reforçando a dificuldade do
herói em entender a situação na qual se encontra, mesmo já tendo tido a
chance de vivê-la.
Este é um dos momentos mais engraçados da seqüência, em que
Yager pergunta ao diretor o que ele acha dos pôsteres e Waxman, olhando
para lugar nenhum, responde que são muito bonitos. Yager, ainda sem mirá-
lo, com os olhos fixos nos cartazes, aponta um que prefere e entrega-o nas
mãos de Waxman. Tudo perfeito, não fosse o fato de o cartaz estar virado de
costas, revelando apenas sua faceta em branco voltada para o público.
Waxman levanta o cartaz de modo que vemos com clareza o pardo papel de
fundo e aponta elementos interessantes do cartaz, como as cores. Por sorte
(mas não por acidente), Yager mantém-se de lado, olhando para o outro
cartaz e aguardando o posicionamento de Waxman, de modo que a única
parte consciente de toda a movimentação ocorrida somos nós mesmos, o
espectador. Boa configuração de cena, bem resolvida. Sequer chegamos a
questionar a veracidade do fato de o produtor não olhar diretamente para o
diretor. Mecanismo muito bem explorado.
Por fim, o telefone toca e a cena é concluída, segundos depois, com a
saída de Waxman, auxiliado pelo produtor.
As atuações são muito acuradas, de modo que praticamente não se
percebe a inverossimilhança em que algumas vezes incorre o roteiro. O
timing é perfeito; as ações não se estendem além do que deveriam e não
passam por cima de pausas necessárias, como a salientada ao início. Ainda
assim, são muito mais ágeis e fluidas do que o drama ou a tragédia.
Em termos técnicos, a cena simplesmente segue o padrão do cômico:
há muita luz no quarto e as cores usadas são luminosas e neutras, chegando
no máximo a um salmão – presente na camisa do produtor e em algumas das
paredes. Para que não haja a menor alusão a uma ambiente opressor ou
triste e para que se possa enxergar bem as expressões dos atores e sua
movimentação.
A cena e seus acontecimentos são muito claros, não dando margem a
duplas interpretações, de modo que a sua leitura é bastante linear.
A simplicidade está em tudo, inclusive no uso dos planos e da
movimentação de câmera, extremamente econômica e na maior parte do
tempo fixa, deixando a ação em evidência e desviando o mínimo possível a
atenção do espectador. Os cortes são também os mais básicos, apenas
propiciando uma melhor visão da cena a partir de determinado ponto. Não se
quebra nenhuma regra da ilusão cênica, apesar das inverossimilhanças que
possuem uma certa “licença poética” outorgada no meio cênico à comedia,
apesar de os efeitos nos parecerem tanto mais cômicos quanto mais natural
consideramos a causa. Rimos já da distração que nos é apresentada como
simples fato. Mais risível será a distração que tivermos visto nascer e crescer
diante de nossos olhos, cuja origem conheceremos e cuja história poderemos
reconstituir.
4 – Nem tanto ao céu, nem tanto à terra
(Análise da estrutura do filme “Abril Despedaçado” em função da
construção narrativa)
Ao me propor a realizar a análise de um filme sob o ponto de vista da
montagem num âmbito mais extenso, uma pergunta insistentemente não quis
calar: nos é um tanto quanto evidente a identificação dos elementos que
caracterizam a linguagem clássica do cinema de Griffith e – em
contraposição a esta primeira – dos definidores da linguagem dos soviéticos
– em especial de Eiseinstein. No entanto, quantos desses elementos ainda
se mostram válidos na realidade atual? Digo, o quanto da linguagem do
cinema soviético de então, por exemplo, ainda permanence um contraponto à
linguagem clássica holywoodyana? Assistindo a vários filmes atuais com um
olhar mais treinado voltado à questão da montagem, após este período, pude
constatar que a técnica em cinema se apropriou de muitos dos elementos
que um dia foram considerados uma afronta artística à linguagem comercial.
Não só do cinema soviético, mas de elementos da nouvelle vague, por
exemplo, entre outros. Aliás, todo e qualquer elemento vanguardista, seja de
onde e quando for, parece, em maior ou menor grau, mais cedo ou mais
tarde, incorporado à indústria cinematográfica. Este fator me leva a crer que o
que faz um filme, ao fim, não é somente a busca por uma linguagem
inovadora, mas, antes disso, a sinceridade do artista com seus próprios
princípios de expressão. Hoje é muito difícil dizer com certeza o que faz e o
que não faz parte do sistema narrativo clássico, uma vez que, cada vez mais,
o espectador se habitua às novas convenções do fazer cinematográfico.
Assim, torna-se muito mais distante a possibilidade de quebra da ilusão, visto
que o espectador “compra” as inúmeras e variadas verdades expostas pela
câmera com cada vez mais naturalidade. Poucas linguagens o surpreendem
e suas reações, na atualidade, acabam por depender mais do conteúdo
narrado do que da linguagem usada para narrá-lo.
Partindo dessas considerações, pode-se dizer que o filme analisado
(Abril Despedacado, de Walter Salles) é tão comum em linguagem quanto
inúmeros outros - não se atendo sequer a uma tentativa de quebra da ilusão -
e não nos causa surpresa em termos de possíveis inovações. Neste sentido,
ele tem mais do cinema comercial do que se poderia imaginar, a princípio – é
extremamente coerente com a sua diegese e nos conduz o olhar a todo
momento. Por outro lado, ele certamente tem um acuro impressionante no
que diz respeito à sua realização, ao seu fechamento, contando com muitas
metáforas icônicas passíveis das leituras mais diversas. E estas se mostram
através dos variados elementos presentes numa produção fílmica, desde os
objetos de cena à trilha sonora, por exemplo.
Enfim, à análise propriamente dita:
Vôos estilhaços – Primeiras impressões
Ao assistir ao filme Abril Despedaçado com seus círculos e ciclos
contínuos, suas moscas, bois e homens semi-mortos tecendo um trajeto infinito
em torno das sobras da sobrevivência, imediatamente fui remetida ao mágico
mundo de Fernão Capelo Gaivota: neste porto de qualquer parte, essas aves, as
gaivotas, são aparentemente destinadas ao mesmo fardo, utilizando seu vôo
como forma de sobrevivência e não como busca de um refúgio libertador rumo ao
topo de seus sonhos.
Nesse livro, assim como no filme, surge um agente desafiador das metas
gerais. Fernão Capelo Gaivota, assim como Pacu ou “minino”, no filme - e em
segundo plano seu irmão Tonho - dá asas às próprias asas e permite que elas o
mergulhem no universo quente e acolhedor dos seus próprios desejos, do
imaginário, do usufruto de uma visão diferenciada como fuga do ordinário “dia-
após-dia”.
Sendo assim, enveredo, refletindo sobre o esqueleto constituído dessa
história fascinante, pelos signos – sejam icônicos ou simbólicos – que mais me
tocam:
“Meu nome é Pacu. É um nome novo. Tão novo que ainda nem peguei
costume”. A primeira frase do filme já causa curiosidade e estranheza. Seria
este um apelido que o garoto sem rosto se deu ou recebeu? Mas avançamos
no filme para descobrir, com desgosto, que o garoto tem rosto, mas de fato –
e tristemente – não tem um nome. Chamam-no “Minino”. Num mundo onde
todos se matam sem trégua, parece haver uma necessidade de desapego,
uma predileção das mortes precoces, como se os filhos nascessem
marcados e fossem criados tão somente para a guerra, que os leva
implacavelmente ao mesmo destino.
Assim, o Minino, no decorrer da trama, é batizado Pacu. Não se
habitua de imediato, pois o nome não lhe agrada plenamente. Queria ser um
peixe de mar e não um peixe de rio. Mas, como bom criador de histórias que
é, adaptado às mais atrozes realidades, vê-se como um peixe de rio vivendo
no mar. Ao lado da linda sereia que veio buscá-lo para eles se casarem,
vivendo felizes para sempre.
Assim, Pacu caminha pela vereda incerta narrando a sua História
Humana ao lado da estória redentora que criou para si – mundos
diametralmente opostos que se confundem momentaneamente em tempo e
espaço. Aquela estrada que Pacu de fato deseja trilhar, se mescla, em sua
memória, à sua própria trajetória impiedosa. Ao fim do filme, início e fim da
história se fundem, num movimento que é o próprio movimento da trama em
si: circular e infindável.
Seguindo adiante na narrativa nada inocente de Pacu, ouvimos a
primeira (e reveladora) descrição dos personagens: o pai toca os bois, Tonho
mói a cana, a mãe recolhe os bagaços e o “minino” carrega o fardo. Fardo
que está constantemente em suas mãos – seja de cana, seja de capim, de
temor ou de repressão. Não por acaso, ainda, Tonho mói a cana, visto que
está mesmo responsável pelo serviço sujo da casa, por cobrar o sangue do
irmão que foi assassinado. Ele é a parte ativa da família. A mãe recolhe os
bagaços, os restos, sempre com a prontidão de uma vaca cega que doa seu
leite, seu couro, sua cria. Sem pestanejar, sem questionar. A função do pai é
a mais previsível. Ele é o pulso da família; a voz, o chicote, a decisão
personificada. Ele conduz toda a prole à perdição com a convicção de um
Deus. E conduz os bois, como conduz aos seus: forçando-os numa trajetória
cíclica, impiedosa e imutável. É como o pequeno e sábio Pacu ressalta: “a
gente tá que nem os boi: roda, roda e nunca sai do lugar”. E rodam tanto em
direção ao nada, que começam a rodar sozinhos, sem trégua, sem
compaixão, sem rumo. E por fim sucumbem, sob o chicote em riste do pai
severo. Os bois? Sim, os bois. Os dois que fazem girar a bolandeira? Sim,
estes. E mais os outros dois que, também sem rumo, se perdem no vazio de
uma vida da ausência.
Os bois – e sobretudo os homens – quedam no fatal movimento
circular que é claramente ressaltado por Walter Salles através da bolandeira,
com suas engrenagens redondas e seu trajeto circular – o mesmo movimento
circular e inevitável da tradição, dos dias que sempre levam à morte, seja em
abril para uns ou em outro instante para outros; as próprias estações e suas
facetas diferenciadas, o movimento circular das moscas em torno de uma
“doce” rapadura, ou em torno dos restos na janela - tendo ao fundo a
infinitude do céu e das montanhas aguardando um único olhar que as
valorize, que sequer as perceba e à sua força. A tradição circular e impune
da desavença entre as famílias, que acaba por devorá-las pelas próprias
mãos, pela própria fúria cega. Já dizia Pacu que “em terra de cego, quem
tem um olho só todo mundo acha que é doido”. De fato, naquela terra de
ninguém, não há quem enxergue as saídas para um caminhar mais leve, fora
da tradicional vendeta e quem vê isso, um mínimo que seja, é jogado à
fogueira. O cego, por sinal, figura marcante presente no filme, representa
também uma espécie de Tirésias dos Sertões, com mais olhos que se possa
ver e mais conhecimentos e percepção da vida do que os muitos olhos que o
cercam, mas apenas sendo também devorado e aguardando o fim de sua
própria trajetória circular – sempre que o relógio marca mais um, mais um,
para os personagens será sempre menos um, menos um. Bem como para
todos nós.
A disputa entre as famílias é a grande imagem que ironicamente dá
vida ao filme, ao mesmo tempo em que suscita a morte. Vários são os
símbolos presentes que reforçam o poder dessa crença e modo de vida: o
retrato onipresente de cada parente morto na parede das casas, como num
santuário religioso, desvenda a razão para a qual vivem: honrar e louvar os
mortos. É a vida para a morte. Os fantasmas assombram pelas mãos
daqueles que insistem em mantê-los vivos em suas memórias e nas dos
outros. A camisa jaz ao vento com o sangue do morto e também nos crava na
memória a força da tradição: enquanto o sangue não fica amarelecido, seu
assassino tem ainda uma trégua. Assim que ele amarela, o parente mais
próximo e viril deve cobrar seu sangue, trucidando o último matador com vida
num ciclo irreversível. Ao cair o homicida, a camisa pode ser lavada e
guardada, quase como num segundo enterro – este, da alma do morto, que
pode finalmente descansar em paz. Mas Pacu lembra em sua narrativa que o
sangue lavado é como em Lady Macbeth: “a mãe acha que sai, mas não sai”.
E enquanto a trajetória das famílias não mudar, ele não sairá nunca.
O nauseante velório dos finados em meio a mil vozes ladainhentas que se
entrecruzam, instaura um clima opressor. O patriarca cego clama, ao cair o
silêncio na presença do homicida: “Senhor, tende piedade de nós. Cristo, tende
piedade de nós”, como que a pedir que uma força divina perdoe, na morte, as
atrocidades cometidas em vida. Por todos eles, sujos dos horrores da vingança.
Os ambientes familiares são sempre muito escuros e silenciosos,
sobretudo na presença do patriarca, deixando clara a morbidez desse pacto
inquebrantável com o além. No filme há também muitos elementos
contraditórios, facas de dois gumes, que transportam para o divagar de que a
liberdade é uma ilusão contínua e que a verdadeira liberdade só pode e deve
ser buscada dentro de si. As estradas longas e infinitas que muitas vezes não
levam a lugar algum, como é o caso das estradas e do próprio circo para a
garota acrobata, o balanço e a corda que nos levam alto e dão a sensação de
liberdade, mas não saem do mesmo lugar.
O receio de subir muito alto e o medo de tirar os pés do chão vividos
por Tonho afirmam essa tese porque ele se arrisca, cai, brinca com a morte,
passando-se por moribundo para assustar aos seus, mas não se machuca,
pois ele finalmente alcança a própria libertação. Tonho afinal descobre que
não tem mais de pensar para responder a pergunta feita por Salustiano, o
personagem do circo: “Tu nasceu vivo ou morto?”. Ali, enfim, ele reconhece
que nasceu vivo, muito vivo. E assim quer permanecer, por um longo tempo
ainda.
Símbolos de libertação não faltam ao filme e os que se mostram com maior
força são aqueles criados pela ambientação da mente dos personagens: a sereia,
o mar (que aparece, ao final, em sua imensidão branca e purificadora). Há ainda o
circo, as lendas, o fogo. O fogo, muito presente, reforça a ligação entre o amor e a
libertação da alma, que é alcançada e consumada por Tonho e por Pacu (este
último, em sonhos), ao fim do filme, quando a sereia, ser aquático, é trazida – não
coincidentemente – pelo vento e pela chuva, que cai forte ao rasgar da fita
fúnebre. Sob a imagem e a sensação da chuva purificadora, as almas são lavadas
de todo o temor e as copas das árvores se agitam num movimento de acalanto,
de embalo.
O momento mais forte e intenso do filme é quando vemos o “minino Pacu”
abdicando da própria vida em nome da vida e felicidade do irmão condenado.
Tonho, ao ver o irmão mais novo, sentindo o peso de outra espécie de
condenação e do erro comum ao herói trágico, se redime enfim de toda a
impureza, tomando um caminho que nunca havia tomado antes e desembocando
no mar dos sonhos de Pacu. Assim, ele segue os conselhos de seu falecido irmão
e liberta-se. Buscando seus desejos, Pacu também encontra o caminho da
libertação, que é alcançada, depois de muito buscar, através da morte, como um
vulto num corredor escuro e cheio de esperanças.
Como Fernão, Pacu encontra sua redenção num mundo além, longe da
crueza da realidade cíclica e implacável, onde os sonhos são palpáveis e os
desejos por fim se podem materializar.
A montagem em Abril Despedaçado
A montagem em Abril Depedaçado segue um certo padrão clássico no
que diz respeito aos planos e cortes - em sua maioria secos e contínuos, com
raccord, obedecendo sempre as regras dos trinta graus e do eixo, entre
outras regras criadas para a manutenção da ilusão, obtida com a proximidade
da representação da realidade cotidiana. Faz-se uso de establishing shots,
de planos gerais para localizar (sendo mais narrativos, épicos), de planos
conjunto e médios para estabeler a ação (linguagem de cunho dramático), e
os planos fechados, detalhe e closes para exprimir emoções (onde entra um
possível lirismo das individualidades). São usadas, ainda, subjetivas dos
personagens muito bem marcadas e realizadas, fazendo passar
despercebida a condução cinematográfica. A estrutura repete uma fórmula
menos utilizada pelas convenções, mas também gasta, iniciando pelo fim do
filme e criando, assim, uma narrativa cíclica (nada acidental, visto que o filme
trata a todo o tempo - como foi dito - da forma circular). Enfim, tudo é
encaixado da maneira mais padronizada e banal possível, mas com razões
bastante claras e tocantes. Essa linearidade em termos de linguagem é
quebrada em alguns poucos momentos que se expõem a seguir. Abordo,
ainda, alguns elementos de montagem que me chamam a atenção:
Há uma sacada genial no início do filme - e que se repete ao final - ao
montarem duas imagens do vulto de Pacu andando pela vereda - filmado de
frente e de costas - uma seguida da outra, numa radical inversão de cento e
oitenta graus. Esta inversão repentina nos dá uma certa impressão de ter,
diante de nós, alguém que não sabe para onde vai e pouco se importa com
isso. Como Pacu, neste momento, é apenas um vulto, não se distingue com
clareza o que é sua frente e o que são suas costas. Essa opção dramática
aparenta querer nos dizer que não importa se ele anda para frente ou para
trás, pois ele percorre, neste momento, uma vereda diferente daquela que
está fisicamente diante de nós: ele percorre um corredor da morte, que é
também - ironicamente - o da sua redenção. Indo adiante ou para trás - e
vice-versa, o que é apenas uma questão de ponto de vista - seu fatal
caminho será o mesmo.
Em seguida temos uma espécie de imagem de predileção na qual a
montagem é de fundamental importância: vê-se a referida camisa
ensangüentada ao vento, pertencente a Inácio - irmão mais velho dos Breves
– se agitando em primeiro plano e, ao fundo, alternam-se imagens dos
irmãos Pacu e Tonho, à medida que a camisa voa e esconde os rostos,
revelando a mudança. Não é difícil a associação dessa montagem ao destino
dos dois irmãos, pois ao fim, há justamente uma troca de papéis e Pacu dá
sua vida em lugar da do irmão condenado, em decorrência da camisa e do
que ela representa.
A seqüência de ação ocorrida no momento da perseguição de Tonho
ao assassino de seu irmão em meio à vegetação seca é de tirar o fôlego e
conta com algumas sacadas interessantes. A seqüência é bastante longa,
aumentando a tensão à medida que passa. Há um enorme frenesi provocado
pela captação das imagens por vezes desfocadas e em movimentação
intensa, realizadas por uma câmera na mão em alta velocidade, junto aos
atores em disparada no meio da caatinga. E, por último, há uma proposta
bastante interessante da montagem que alterna, por vezes, um ponto de vista
distanciado, do próprio espectador (em que aparecem os dois personagens
no plano), com subjetivas do próprio Tonho, seguidamente, numa
aproximação muito pequena, que não seria suficiente para acrescentar uma
nova informação ao plano, quebrando uma regra da narrativa clássica. Ou
seja, vemos o perseguido em seu desespero de uma perspectiva mais
próxima e, logo em seguida, o vemos pouco mais distante, inserido na ação,
com Tonho em primeiro plano. Essa opção torna a longa seqüência ainda
mais visceral e arrebatadora, nos aproximando por vezes da situação na
figura do assassino, e, em seguida, nos aliviando - mas apenas
momentaneamente - deste fardo. Filmagem e montagem muito bem casadas
e inteligentes.
Há, muito rapidamente, num determinado momento do filme, uma
montagem paralela bem ao estilo de Eiseinstein - apesar de ser muito mais
sutil - quando o pai está batendo em Tonho por ele ter levado o menino ao
circo. Antes de bater nele, o pai diz que ele perdeu o respeito pelos mortos da
casa e que ele devia seguir o exemplo de Inácio, seu irmão mais velho. Ao
que Tonho responde: "se preocupe não, pois já tô seguindo os passos dele"
(referindo-se, evidentemente, à morte por assassinato de seu irmão), o que
provoca a fúria do pai. Nos momentos em que Tonho apanha, alternam-se
imagens da parede iluminada pela bruxuleante e quente iluminação de um
lampião, do pai e de Tonho e, curiosamente, eis que surge, em fração de
segundos, a imagem do retrato de Inácio que fica preso à parede, sem
conexão direta com o espaço onde eles se encontram ou com a situação. A
referência é bastante simbólica e nos traz uma série de sensações quando
unida à forte cena. Desde o olhar do irmão, que, dependendo do humor de
quem assiste, pode ser lido como aprovativo ou reprovativo, até a dramática
força onipresente da imagem de alguém que se foi, mas que continua entre
eles a assombrar por sua morte, decidindo os passos de quem ainda anda
sobre a terra.
Há uma outra seqüência que se usa de uma espécie de paralelismo
mais convencional, mas que é extremamente bem montada. Esta seqüência
nos mostra imagens de Pacu se deliciando ao recriar as histórias da sereia e
do menino sob a sombra de uma árvore intercaladas a imagens de seu pai
trabalhando na caatinga, cortando alguns cactos. Há a intenção da
montagem paralela de fazer surgir um terceiro significado dialeticamente,
porém, as cenas acontecem num espaço relativamente próximo e ao mesmo
tempo, recorrendo a um raccord perceptível especialmente porque ouvimos a
voz de pacu ao longe enquanto são mostradas as imagens do pai. Esta
configuração tem um resultado muito interessante, pois, a princípio, a união
nos remete à estranheza entre esses mundos – o sonhado por Pacu e aquele
vivido pelo pai. Pacu conta a história de como a sereia se encanta ao ver sua
terra, com todos os seus elementos característicos, incluindo a bolandeira,
por exemplo, trazendo à tona toda uma cor e brilho inexistentes naquele
mundo sob o ponto de vista rígido do pai. A leveza de Pacu contrapõe-se à
austeridade dele. Da união das imagens saímos com a sensação de
impossibilidade, de embate entre forças opostas que nunca se alinharão.
Entre o novo e o velho, entre a tradição e a revolução. Vemos o pai se
indignando gradativamente com a narrativa do filho e, aos poucos, cresce
nossa agonia junto ao caminhar da cena para um desenlace. O ápice
dramático é quando o menino relata sua viagem com a sereia para o mar.
Quando ele, num crescendo rítmico, diz que “abriu os feixes de cana e
depois... (Pausa dramática.) Chegou no meio do mar”, o pai imediatamente
(num timing perfeito) joga a foice no chão e vai atrás do menino, com sua
expressão severa, o que nos agonia profundamente. O triste desenlace
acontece com um encontro dos dois no qual o pai tira o livro das mãos de
Pacu e este corre atrás dele em desespero, para que ele o devolva, sem
sucesso.
Outra solução é interessante do ponto de vista dramático: há um
momento em que Tonho – que a princípio não queria subir no balanço, mas
acaba subindo e sentindo-se livre – cai do balanço de uma altura
considerável e tudo o que acontece em torno nos leva a questionar se esse
teria sido o seu fim. É possível que principalmente por uma questão de
praticidade, a queda não seja mostrada e vemos apenas as reações de todos
seguidas da imagem de Tonho ao chão. Esta opção é louvável, pois além de
não explorar a adrenalina de uma cena que poderia ser chocante, aumenta o
suspense e a tensão do acontecimento, visto que não sabemos ao certo o
que houve com o personagem. Este momento brinca com a presença
constante da morte entre essa família e com a expectativa iminente de algo
sobre o que não devíamos ter controle.
Há, ainda, uma opção prática para uma das cenas finais, com solução
encontrada na montagem: é importante que vejamos, para compreender o
que se passou nos últimos instantes da vida de Pacu, os mesmos momentos
sob três pontos de vista diferentes: o de Pacu, que percorre a vereda e ri
largamente antes de ser baleado, com a visão romântica do mar e da sereia,
o do assassino, que esbarra em um tronco, deixa cair seus óculos de grau e
acaba pisando sobre eles (para reforçar sua importância, no caso de o
espectador não se lembrar de que ele os usava, acredito), o que faz com que
ele atire em Pacu, pensando se tratar de Tonho e o ponto de vista do próprio
Tonho, que acorda como estrondo do tiro disparado pelo inimigo, correndo
para encontrar o irmão morto. Esta seqüência é um pouco intrincada, mas
funciona bem e, ao fim, entendemos o essencial da narrativa – o que não
seria possível através da representação de um único ponto de vista.
A montagem em Abril despedaçado sob a perspectiva do áudio:
Trilha Sonora
Muitas vozes remetem a uma atmosfera ritualística, a novenas, rezas,
mantras, que se fundem entre si e a outros instrumentos, como as cordas,
muito presentes na trilha também. Elementos do som ambiente como
mugidos de boi parecem se fundir também (e não coincidentemente) às
vozes – ou é a sensação criada, por vezes, devido à semelhança de alguns
cantos entoados. Outros sons do ambiente (ou efeitos) de pássaros e outros
bichos são também incorporados de maneira consciente e harmônica ao
conjunto musical. Todos estes elementos são conjugados na medida certa
em relação à música através da montagem, de modo a se tornarem
dramática e esteticamente complementares.
As vozes, os bichos e, por vezes, as cordas, são apresentados com
efeitos de distorção e reverberação, o que cria um ambiente insólito e com
um distanciamento e grandeza próprios do épico.
Próximo à primeira hora de filme, quando há uma mudança de
atmosfera no momento em que Tonho decide acompanhar o circo, dando-nos
esperança, uma rabeca entra em cena para trazer à tona uma música um
pouco mais descontraída, apesar de ainda guardar um elo com aquela inicial
– o que confere também unidade ao conjunto muito bem estruturado.
Ao fim, a música é trabalhada de modo a possibilitar uma
contraposição de universos bem definidos e opostos que se cruzam, numa
opção de montagem bastante interessante. Clara retorna ao “Riacho das
Almas”, onde vive a família dos Breves e sua música descontraída funde-se
àquela opressiva do local, o que cria a sensação de desprendimento e
libertação, em alguns momentos e, em outros, de estranheza e prisão, visto
que a fusão provoca algumas dissonâncias. As dissonâncias, não
coincidentemente, recaem por vezes sobre imagens do rapaz da outra família
que ali está para assassinar Tonho, da fita preta que marca o morto, entre
outras que nos trazem amargura. No exato instante em que Clara e Tonho se
encontram e ela rasga a sua fita preta, a chuva cai com estrondo, numa clara
opção dramática muito bem aproveitada e definida pela montagem em
seqüência dos dois planos: a fita é rasgada; a chuva cai. Nem é preciso
demarcar a oposição entre esses elementos, tão inequívocos. Acho
interessante ressaltar apenas a inusitada visita da chuva ao sertão, que é
incomum – junto à visita da sereia, como se esta estivesse trazendo consigo
as águas do lugar de onde veio.
Efeitos
Mesmo os efeitos utilizados, por vezes, conferem função dramática ao
filme, como os passos de Tonho, ao sair da casa da família inimiga, que se
equiparam sincronicamente, por alguns segundos, ao som do implacável
relógio que se dependura ao lado do velho, reforçando a realidade de ele ter
pouco tempo para caminhar sobre a terra.
Som ambiente
O que mais chama a atenção no uso do som ambiente neste filme é a
quietude de muitos instantes e o uso dramático de alguns momentos de
silêncio sufocante.
Silêncio
Os momentos de quase silêncio são muito marcantes no filme, quando
ouvimos apenas os grilos bem ao fundo e a atmosfera opressora toma conta
do lugar. Dois momentos desse quase silêncio me chamaram a atenção –
aquele em que Tonho entra na casa da família inimiga para prestar sua
excelência ao morto de quem foi o assassino e todos – que antes rezavam –
se calam, demonstrando indignação e o ódio que mantém tal tradição
destrutiva viva. O segundo momento é quando o pai, ao perguntar à mãe
“Olha em volta, mulher, o que é que sobrou?” recebe um grande e pesado
silêncio seguido de um sussurrado “nada” em resposta. O silêncio ilustra de
forma fiel a própria condição de vazio, fruto da pergunta.