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janeiro de 2015 Ana Marta Dias Crespo Pereira Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-ordenações Universidade do Minho Escola de Direito Ana Marta Dias Crespo Pereira Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-ordenações UMinho|2015

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janeiro de 2015

Ana Marta Dias Crespo Pereira

Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-ordenações

Universidade do Minho

Escola de Direito

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janeiro de 2015

Ana Marta Dias Crespo Pereira

Universidade do Minho

Escola de Direito

Dissertação de MestradoMestrado em Direito Judiciário

Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-ordenações

Trabalho realizado sob orientação do Professor Doutor Mário Ferreira Monte

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

II

RESUMO

“Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações”.

O Direito das contra-ordenações tem-se mantido, ao longo dos anos, um

dos lugares jurídicos com maior relevância prática mas, também, um dos

ramos cuja solidez mais tem fugido entre os dedos da doutrina e da

jurisprudência. Já se disse que “o direito de mera ordenação social constituiu

um dos ramos do direito mais rebeldes à categorização dogmática e que, por

isso mesmo, tem condenado a doutrina ao destino de Sisifo”1.

Urge então densificar e autonomizar este ramo do Direito sancionatório.

No presente escrito estamos esperançados em dar um pequeno

contributo para a reflexão sobre tal autonomia, ainda que apenas no que tange

ao princípio da culpa no Direito das contra-ordenações.

Para tanto, começaremos por fazer uma breve resenha sobre a origem e

expansão do Direito das contra-ordenações e analisaremos os vários

elementos do conceito de contra-ordenação. Passaremos, depois, à análise do

estado actual da autonomia deste Direito.

Estes tópicos vindos de referir, embora de pendor mais teórico do que os

seguintes, cumprem não apenas uma função de enquadramento, mas, mais

importante, constituem premissas indispensáveis ao entendimento que depois

advogaremos sobre o funcionamento do princípio da culpa quer como

fundamento da coima e sanções acessórias, quer (como defendemos) como

limite das mesmas.

Por fim, e pela relevância prática que assume tal questão, sobrevoaremos

brevemente a questão da fundamentação da culpa na decisão administrativa e

na sentença que versem sobre ilícitos de mera ordenação social.

Delineado o percurso, iniciemos a caminhada.

1 MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo para o conceito de contra-ordenação (a experiência alemã)», in AA. VV.,

Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra,

1998, p. 76 (citado: «Contributo»).

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

III

ABSTRACT

“A few ideas about the principle of guilt as anautonomy factor in

regulatory law”.

The regulatory law has been, all over the years, and from a pratical

perspective, one of the most relevant areas of law, but also one of the most

fluid and unexplored areas to doctrine and jurisprudence. It has been said that

“regulatory law is one of the most rebel areas of law concerning dogmatic

categorization, and it has condemned the doctrine to Sisifo´s destiny” 2.

Therefore, we need to densify and to give more autonomy to this area of

law.

In this study we hope to give a small contribution to the reflexion about

the autonomy of regulatory law but only in what the principle of guilt concerns.

In order to that, we will start by doing a summarized description about

the beginning and the expansion of the regulatory law and we will also focus on

the elements of the concept of the ilicit of this type of law.

After that, we will also analyse the current state of autonomy of

regulatory law.

These topics that we just mentioned, though they appear to be more

theoretical than the next ones, they do play a role of being the background and

the starting point to our conclusions about how the principle of guilt in

regulatory law operates wether as the base of the principal and accessory

sanctions and also (as we defend) as a limit to them. At the end of this study,

due to the practical interest that this question assumes, we will make a brief

reference about the obligation to state reasons in regulatory law’s decisions.

2 MANUEL DA COSTA ANDRADE, «A contribution for the concept of regulatory law´s ilicit (the german experience», in AA.

VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Coimbra Editora,

Coimbra, 1998, p. 76 (quoted: «Contributo»).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

IV

ÍNDICE

RESUMO ......................................................................................................................................... II

ABSTRACT ..................................................................................................................................... III

ABREVIATURAS MAIS UTILIZADAS .................................................................................................... VI

I. SURGIMENTO E EXPANSÃO DO DIREITO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES ............................................... 1

II. O CONCEITO DE CONTRA-ORDENAÇÃO ...................................................................................... 10

1. A dificuldade na construção de uma delimitação material da contra-ordenação ............. 10

2. A necessidade de construção de uma delimitação material da contra-ordenação .......... 12

2.1.Noção legal de contra-ordenação: considerações gerais ............................................. 12

2.2.A tipicidade nas contra-ordenações .............................................................................. 15

2.3.A ilicitude nas contra-ordenações ................................................................................. 16

2.3.1. As teses quantitativas.......................................................................................... 17

2.3.2. As teses qualitativas ............................................................................................ 19

2.3.3. As teses mistas ou outras teses .......................................................................... 27

2.4.A culpa nas contra-ordenações ..................................................................................... 33

2.5.A coima (sanção principal) ............................................................................................ 34

2.6.Outros elementos auxiliares na delimitação da figura da contra-ordenação: as

especificidades processuais do Direito das Contra-ordenações ........................................ 40

III. O ACTUAL DIREITO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES: A SUA (AINDA ALGO FRÁGIL) AUTONOMIA .......... 44

1. Estado actual do Direito das contra-ordenações .............................................................. 44

2. As relações do Direito contra-ordenacional com o Direito Constitucional como alavanca

no sentido da autonomização do Direito Contra-ordenacional ............................................... 45

3. As relações do Direito contra-ordenacional com outros ramos do Direito (Direito Civil,

Direito Administrativo e Direito Penal e seus processos); O Direito das contra-ordenações

como ramo autónomo enquadrável no Direito Público sancionatório ..................................... 51

IV. O PRINCÍPIO DA CULPA NAS CONTRA-ORDENAÇÕES ................................................................... 70

1. Princípio da culpa nas contra-ordenações: imposição constitucional ou opção do

legislador ordinário? ................................................................................................................ 70

2. Contributos para a caracterização da culpa nas contra-ordenações ............................... 75

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

V

3. Primeira vertente do princípio da culpa: A culpa como fundamento da coima e sanções

acessórias nas contra-ordenações ......................................................................................... 89

3.1.A culpa como fundamento da sanção contra-ordenacional .......................................... 89

3.1.1. A negação da responsabilidade contra-ordenacional objectiva .......................... 89

3.1.2. A pessoalidade e intransmissibilidade da sanção contra-ordenacional .............. 93

3.2.As causas de exclusão da culpa em sede contra-ordenacional ................................. 115

3.2.1. Causas de exclusão da culpa previstas no RGCO ........................................... 116

3.2.1.1.A inimputabilidade em razão da idade e de anomalia psíquica (arts. 10.º e

11.º do RGCO) ........................................................................................................ 116

3.2.1.2.O erro sobre a factualidade típica (em especial, o erro sobre as proibições) e

o erro sobre a ilicitude ............................................................................................. 122

3.2.2. Causas de exclusão da culpa previstas no Código Penal aplicáveis

subsidiariamente ao Direito das Contra-ordenações ................................................... 131

3.3.Modalidades de imputação da culpa: a negligência e o dolo nas contra-ordenações 135

3.3.1. O dolo ................................................................................................................ 135

3.3.2. A negligência ..................................................................................................... 143

3.3.2.1.Noção de negligência nas contra-ordenações ............................................ 143

3.3.2.2.O princípio da excepcionalidade da sancionabilidade por negligência nas

contra-ordenações: perspectiva de iure constituto e de iure condendo ................. 148

3.3.2.3.A admissibilidade ou inadmissibilidade de presunções de negligência nas

contra-ordenações .................................................................................................. 155

4. Segunda vertente do princípio da culpa: A culpa como limite da coima e sanções

acessórias nas contra-ordenações .................................................................................. 161

4.1.A culpa na moldura da sanção aplicável ..................................................................... 161

4.2.A culpa no quantum concreto de coima e sanção acessória ...................................... 164

V. BREVES NOTAS SOBRE A FUNDAMENTAÇÃO DA CULPA NAS DECISÕES

(ADMINISTRATIVA/JUDICIAL) RELATIVAS ÀS CONTRA-ORDENAÇÕES .................................... 171

CONCLUSÕES ........................................................................................................................... 187

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................... 196

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VI

ABREVIATURAS MAIS UTILIZADAS

AA. – Autores

AAFDL – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa

AA. VV. – Autores Vários

Ac. – Acórdão

AEDUM – Associação de Estudantes da Universidade do Minho

Al. - Alínea

Art. – Artigo

Arts. – Artigos

AUJ – Acórdão Uniformizador de Jurisprudência

CC – Código Civil

CEDAM – Casa Editrice Dott Antonio Milani

CEDH – Convenção Europeia dos Direitos do Homem

Cfr. – Confira

CIVA – Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

CJ – Colectânea de Jurisprudência

CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários

CP - Código Penal

CPA – Código do Procedimento Administrativo

CPC - Código de Processo Civil

CPP - Código de Processo Penal

CRP - Constituição da República Portuguesa

D.R. – Diário da República

FDUC – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

INMC – Imprensa Nacional Casa da Moeda

MP – Ministério Público

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

VII

N.º - Número

Ob. Cit. – Obra citada

Owig - Ordnungswidrigkeitengesetz

P. – Página

PIDCP – Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Pp. – Páginas

Proc. – Processo

RGCO – Regime Geral das Contra-ordenações

RJIFNA – Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras

RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias

Ss. – Seguintes

STA – Supremo Tribunal Administrativo

STJ – Supremo Tribunal de Justiça

TC – Tribunal Constitucional

TCA – Tribunal Central Administrativo

TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias

TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia

V.g. – Verbi gratia

Vol. – Volume

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

1

I. SURGIMENTO E EXPANSÃO DO DIREITO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES

Cada momento histórico tem um ordenamento jurídico construído, por

assim dizer, à sua imagem e semelhança dependendo o mesmo, desde logo,

da conjuntura económica, social e política vivenciada em cada momento.

Tal afirmação, apesar de lapalissiana, não deixa de nos ajudar a

compreender o surgimento do ilícito de mera ordenação social3.

Como facilmente se entenderá, com a Administração estadual iluminista,

em que o rei era a figura predominante e símbolo do Estado, emergiu uma

Administração absoluta intensamente actuante e de mão forte.

Mas foi sobretudo após a Revolução francesa que a Administração

intervencionista de um chamado Estado de Direito formal passou a estender o

seu manto interventivo policial a áreas tão abrangentes como, entre outras, a

economia, a concorrência, a saúde, o consumo, a educação, a cultura, a

ecologia, a circulação rodoviária, sendo, de resto, áreas nas quais a

Administração apostava numa protecção preventiva de perigos que se

pudessem reflectir na vida e direitos dos cidadãos.

Tal intervenção intensificou-se ainda mais nos pós-guerras mundiais, com

a transformação da Administração estadual numa Administração actuante

agora dita de “bem-estar social”, preocupada com os direitos dos cidadãos.

Geradas estas amplas intervenções estaduais, importava dar-lhes

aplicação prática, criando sanções para as injunções da Administração, sob

pena de ineficácia da intervenção estadual e de violação do que viria a ser

conhecido como “contrato social”.

3 Utilizaremos indistintamente os conceitos de contra-ordenação (resultante de uma tradução mais literal da figura

germânica) e de ilícito de mera ordenação social. O próprio legislador o faz. Contudo, afigura-se-nos que a expressão

contra-ordenação é mais completa do que a de ilícito de mera ordenação social já que esta última nomenclatura

acentua apenas um dos elementos definidores da figura em causa: o facto ilícito típico e ainda porque, como mais à

frente se verá, a expressão “mera” ordenação social dá a ideia errada quanto a um Direito que é, na sua essência, um

Direito sancionatório.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

2

Num primeiro momento, e sobretudo após a Revolução francesa, foi o

próprio Direito Penal que respondeu a tais desígnios, designadamente por via

do surgimento do denominado Direito Penal de polícia contravencional.

FEUERBACH, pioneiramente, arriscou uma distinção qualitativa entre ilícito

criminal e ilícito de polícia, alicerçando-se na diferença entre Direito e Moral e

referindo que o Estado deveria tutelar não apenas direitos do Homem que são

originários e preexistentes ao Direito positivo (direitos esses que estão na base

do conceito de crime), mas ainda condutas que, não sendo antijurídicas em si,

ultrapassam os limites criados pelo Estado e que, por isso, devem ser alvo de

prevenção. Nesta base veio a entender-se que, ao ilícito criminal estariam,

assim, ligadas razões de justiça e ao ilícito de polícia razões de utilidade sendo

certo que, neste último, existiria uma função preventiva da violação

indeterminada dos direitos subjectivos determinados.

Todavia, continuaram a registar-se intervenções estaduais moralizantes,

sobretudo ao nível sexual e religioso, e a tese de FEUERBACH foi

paulatinamente sendo derrotada pela criação da ideia de um Direito Penal

unitário ou total relacionado com a protecção de bens jurídicos.

É neste contexto que emerge e se passa a falar, no início do século XX,

de Direito Penal Administrativo, proclamado pelas vozes de incontornáveis

autores alemães como JAMES GOLDSCHMIDT, ERIK WOLF e de EBERHARD

SCHMIDT4. Todos eles, sem prejuízo das suas teses individuais, tendiam a

4 Para mais desenvolvimentos sobre as doutrinas de JAMES GOLDSCHMIDT e sua obra Verwaltunsstrafrecht (1902) e

ERIK WOLF e sua obra “O lugar do delito administrativo penal no sistema jurídico penal” (1930) cfr. entre outros,

EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação Social», Boletim da Faculdade de Direito, XLIX, FDUC,

Coimbra, 1973, pp. 257 a 281 (citado: «Direito Penal e de mera ordenação»), H. MATTES, “Untersuchung zur Lehre von

der Ordnungswidrigkeiten”, Band, 2./2, Duncker & Humbolt, Berlin, 1982, pp.. 251 e ss. e HELIANA MARIA DE AZEVEDO

COUTINHO, «O Direito de Mera Ordenação Social no sistema Jurídico-Penal alemão», Revista Brasileira de Ciências

Criminais, ano 2, n.º7, IBCCRIM, São Paulo, Julho-Setembro de 1994, pp. 91 e ss (citado: «O Direito de Mera

Ordenação»). Neste artigo, esta autora consigna que a nota comum aos três AA. é a “visão histórica, fenomenológica e

dogmática da divisão material (qualitativa) e também formal (quantitativa) da crescente independência do Direito Penal

administrativo (Verwaltungsstrafrecht) do Direito Penal de Polícia ou clássico (Justiz-oder Kriminalstrafrecht)”. Não

deixa, contudo, de assinalar as teses individuais de cada um dos incontornáveis AA. aludidos. Assim, GOLDSCHMIDT, na

sua obra Vermaltungsstrafrecht, defende que a diferença entre as normas penais clássicas e as normas penais

administrativas deve ser encontrada na maior ou menor ameaça ou lesão aos bens jurídicos tutelados por normas de

Direito Penal ou por decretos penais administrativos. Entende, pois, que há uma autonomia muito relativa do Direito

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

3

caracterizar o Direito Penal Administrativo por oposição ao Direito Penal

clássico através de um critério teleológico, afirmando que o Estado, para além

de ter como função tutelar bens ou interesses essenciais à vida em sociedade,

teria ainda a função de tutelar uma diversidade de interesses relacionados com

o bem-estar social. Vale isto por dizer que, à luz do pensamento destes

autores, só os específicos interesses sociais opunham o Direito Penal

Administrativo ao Direito Penal clássico, razão pela qual toda a discussão era

ainda travada no seio dos quadros formais do Direito Penal.

Contudo, cedo se percebeu que a resposta por via do Direito Penal,

mesmo que Contravencional ou Administrativo, era ainda insatisfatória já que

conduzia, como conduziu, a uma indesejável “hipertrofia do Direito Criminal”56,

quando o que se pretendia era precisamente a descriminalização de tais ilícitos

administrativos, com apelo à competência de autoridades administrativas.

Tudo veio a desaguar, assim, no final do século passado, num claro

movimento de descriminalização com consequente criação de um novo

enquadramento jurídico para as novas áreas de intervenção da Administração,

enquadramento esse com estruturas (substantiva e processual) diferentes,

Penal administrativo face ao Direito Penal de justiça, dizendo mesmo que aquele é “filho bastardo” deste. Tal tese,

pese embora não tenha logrado obter grande êxito na época, não deixou de ser apoiada por nomes como BELLING,

OTTO MAYER, FRANK e de se transformar em anteprojecto de Código de Direito Penal Administrativo. Por seu turno,

ERIK WOLF aprofundou a autonomia material do Direito Penal Administrativo (vide a sua obra O lugar do delito

administrativo penal no sistema jurídico penal). Para este doutrinador, a diferença dos dois Direitos já não é operada

apenas com apelo ao critério dos diferentes bens jurídicos em causa (penais e administrativos) mas ainda por

referência à ilicitude da conduta relativamente ao dano individual ou social que produz no sistema jurídico, enunciando

um critério axiológico de distinção do ilícito por ordem de valores: valores jurídicos, valores de autoridade executiva e

valores de bem-estar social. WOLF teve ainda o mérito de contribuir para a delimitação dos delitos de mera ordenação

social e para o conceito de delitos de bagatela. Já EBERHARD SCHMIDT esteve na base da positivação das doutrinas

anteriores (Leis de Direito Penal Económico e Leis quadro de mera ordenação social de 1952 e 1968), tendo

esclarecido que o Direito de mera ordenação social (Ordnungsstrafrecht) teria por base a imposição de coimas

(Gelbusse), ou seja, uma censura sem mácula ética, ou, o mesmo é dizer, a mera advertência administrativa.

5 A expressão é de EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», p. 257.

6 Assim não ocorreu uniformemente em toda a Europa. JOSÉ CEREZO MIR, «Sanções Penais e Administrativas no

Direito Espanhol», Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 1, n.º 2, IBCCRIM, São Paulo, Abril a Junho de 1993,

p. 27 (citado: «Sanções Penais») v.g., dá conta que em Espanha “(…) o aumento da actividade administrativa não deu

lugar a uma hipertrofia do Direito Penal, como nos demais países europeus (Alemanha, França, Itália) senão ao

desenvolvimento de um desmesurado poder sancionatório da Administração.”

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

4

sublinhando-se, à data, o facto de a sanção ter uma finalidade de mera

advertência ou censura social, sem coloração ética7.

Por essa altura, era assim evidente a premência da retirada dos quadros

penais das inúmeras infracções ditas sem relevância ética não só porque urgia

criar quadros processuais distintos (v.g. quanto à competência para a

aplicação da sanções) mas também porque importava recolocar o Direito

Penal na sua função de última ratio sancionatória (embora não se possa

olvidar que infracções houve - e ainda há - que se mantiveram pela sua

natureza criminal, com acerto, no chamado Direito Penal secundário sobretudo

ao nível económico).

É sob este pano de fundo, e sobretudo na esteira do pensamento de

EBERHARD SCHMIDT (e da evolução da sua concepção de Direito Penal de

ordem), que, na República Federal Alemã, vieram a ser promulgadas as 1ª e

2ª Leis-Quadro do Direito de mera ordenação Social (OWIG) em 1952 e 1968,

respectivamente.

Em Portugal, rompendo-se com a influência francesa, e bebendo-se a

influência da figura germânica da Ordnungswidrigkeit8, surge, pela mão de

EDUARDO CORREIA, então Ministro da Justiça, o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24

de Julho, ou seja, uma Lei-Quadro que introduziu a figura das contra-

ordenações no nosso ordenamento jurídico e que, simultaneamente, pretendeu

eliminar, em bloco, a figura das contravenções (art. 1.º, n.º 3 do citado diploma

legal).

O nascimento de tal diploma revelou-se turbulento em virtude, por um

lado, das dúvidas constitucionais que suscitou e, por outro lado, pelo facto de

rapidamente ter sofrido alterações legislativas já que o tal ímpeto inicial no

7 Sobre a essencialidade do movimento de descriminalização no surgimento do ilícito de mera ordenação social cfr.

CARLO ENRICO PALIERO, Mínima no curat praetor: ipertrofia del dirrito penale e descriminalizzacione dei reati bagatelari,

Padova, CEDAM, 1985; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação

social», in AA. VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Instituto de

Direito Penal Económico e Europeu, FDUC, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp.. 19-33 (citado: «O movimento»); JOSÉ

M. RICO, Las sanciones penales y la politica criminológica contemporânea, 4ª edição, Siglo Veintiuno Editores, México,

1987, pp. 128 e ss..

8 Com uma análise dos aspectos essenciais da Lei de Mera Ordenação Social alemã (OWIG de 1968), cfr HELIANA

MARIA DE AZEVEDO COUTINHO, «O Direito de Mera Ordenação», pp. 91 e ss..

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

5

sentido do desaparecimento das contravenções foi refreado pelo Decreto-Lei

n.º 411-A/79, de 01 de Outubro que revogou a norma que previa a revogação

das contravenções em bloco.

Um novo fôlego legislativo (oxigenado sobretudo pela revisão

constitucional e pelo Código Penal, ambos de 1982) foi aquele que se

materializou no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que, revogando

aqueloutro Decreto-Lei de 1979, instituiu definitiva e inovadoramente um

“Regime Geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo” ou

também designado de Regime Geral das Contra-ordenações (doravante

apenas RGCO) e que foi sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89,

de 19 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo

Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei n. 109/2001, de 24 de

Dezembro.

Os diplomas referidos aprofundaram a normativização das contra-

ordenações ainda que sem curar de pôr o desejável fim total à figura das

contravenções (que só veio a ocorrer mais tarde, sob o mote dos ilícitos

rodoviários, com a Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho e, sobretudo, com a Lei n.º

30/2006, de 11 de Julho). Por outro lado, foi com a revisão constitucional de

1982 (Lei n.º 1/82, de 30 de Setembro) que a figura das contra-ordenações

passou a assumir ressonância constitucional (cfr. actualmente os arts. 32.º, n.º

10, 37.º, n.º 3, 165.º, n.º 1 al. d), 227.º al. q), 282.º, n.º 3 da Constituição da

República Portuguesa).

De resto, entre nós, a área contra-ordenacional conheceu uma expansão

difícil de imaginar aquando do seu surgimento. É o próprio legislador quem o

confessa e dá conta disso mesmo referindo a este propósito que “consagrado

a partir de 1979, o ilícito de mera ordenação social tem vindo a assumir uma

importância antes dificilmente imaginável. Com efeito, a par do programa de

descriminalização desde então gizado, com a inerente transformação em

contra-ordenações de muitas infracções anteriormente qualificadas como

contravenções ou como crimes, regista-se um crescente movimento de

neopunição, com o alargamento notável das áreas de actividade que agora

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

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são objecto de ilícito de mera ordenação social” – cfr. preâmbulo do Decreto-

Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro que alterou o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27

de Outubro.

Após esta relevante expansão, chegámos em Portugal a um modelo que,

no domínio contra-ordenacional, passa pela existência de um RGCO e de

regimes sectoriais contra-ordenacionais (v.g. contra-ordenações laborais,

fiscais, segurança social, etc.) de que aquele primeiro funciona, em regra,

como legislação subsidiária9.

Importa ainda sublinhar que, actualmente, não obstante a referida

proliferação da previsão legislativa de contra-ordenações, assistiu-se à

passagem de um modelo de Estado intervencionista para um Estado

sobretudo regulador e de supervisão com o erigir, v.g., de novas entidades

reguladoras independentes que suscitam novos desafios ao Direito contra-

ordenacional.

Também a maioria dos países europeus demorou algum tempo a

adaptar-se à existência da nova área sancionatória a que se reconduzia o

Direito das contra-ordenações, apenas com algumas excepções feitas à Suíça,

e Itália ou o análogo Direito Administrativo sancionador espanhol (ressalvadao

o interesse da análise das diferenças10), sendo ainda hoje um ramo por

explorar em muitos ordenamentos jurídicos11.

9 Este modelo bicéfalo de existência de um RGCO e de regimes sectoriais é algo discutido. FREDERICO DE LACERDA DA

COSTA PINTO defende o referido modelo aduzindo que o mesmo é o mais consentâneo com o princípio da intervenção

penal mínima, o mais eficaz na articulação entre prevenção e repressão e o que mais estimula o desenvolvimento de

diferentes técnicas de construção dos tipos. - cfr. «As Codificações sectoriais e o papel das contra-ordenações na organização do

Direito Penal secundário», Themis, ano 3, n.º 5, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 87-99 (citado: «As Codificações»).

10 Para uma análise comparativa do modelo português e do modelo espanhol veja-se MÁRIO FERREIRA MONTE,

Lineamentos de Direito das Contraordenações, AEDUM, Braga, 2014, (edição inédita e no prelo, cedida pelo autor),

Capt. I, ponto 2 (citado: Lineamentos)

11 Refere a este propósito JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, que “a monumental investigação dedicada ao tema por HEINS

MATTES, em base histórica e comparatística, pôde concluir (…) que, até 1972, a criação de um ilícito de mera

ordenação social continuava a constituir uma decisão legislativa de carácter germânico exclusivo. Mas a situação

modificou-se durante os últimos anos. Assim, a lei federal suíça sobre o Direito Penal administrativo, de 23-3-1974,

aproxima-se em muitos pontos – sobretudo no que toca ao processamento das infracções – de um verdadeiro Direito

das Contra-ordenações. Em Portugal o Decreto-lei n.º 232/79, de 24 de Julho, instituiu um autêntico ilícito de mera

ordenação social. Em Itália, a Lei n.º 689, de 24-11-1981, introduz modificações no sistema penal que se traduzem, no

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

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Ao nível da União Europeia existem ainda as dificuldades inerentes à

inexistência de um chamado Direito sancionador comunitário (ao contrário do

Direito Penal europeu que tem já alguma consistência)12. Tal inexistência ou,

pelo menos, fraca densidade, são explicáveis. A propósito de um Direito

Administrativo sancionatório europeu, referem ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE

OLIVEIRA MENDES e JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL que “O

primeiro obstáculo consiste no facto de não existir uma regulação normativa

suficiente dado que as referências dos Tratados são escassas e dispersas.

(…) Nestas condições não existe outra solução que não utilizar, num delicado

processo de síntese, os princípios gerais comuns dos Estados Membros.

Assim está a proceder o Tribunal de Justiça (…) A identificação dos princípios

gerais comuns não é desde logo tarefa fácil. A esse propósito aceita-se

pacificamente que não se trata de abstrair da regulação vigente na maioria dos

Estados membros nem muito menos de aceitar um mínimo denominador

comum, mas sim de fixar a atenção no que parece mais adequado às

finalidades do ordenamento (advogado geral Sir Gordon Slynn no processo

115/79; A.M. y S. c/ Comissão: recurso 1892, p.1648) ou o princípio mais

desenvolvimento (advogado geral Roemer no processo Wilhelm c.

BundesKastellamt: recurso 1969, p. 26) ou o elemento do progresso jurídico

ainda que extrapolando as concepções imperantes nalguns Estados membros

(advogado geral Reischl no processo Hofman-La Roche, recurso 1979, p. 585-

596)”13.

São pois muitas as vozes que consideram não estar ainda erigido um

Direito das contra-ordenações comunitário, embora não olvidem que existe um

poder sancionatório da União Europeia sobre os estados membros e um poder

seu conjunto, na transformação de uma larga quantidade de ilícitos penais em ilícitos não penais, para os quais são

cominadas sanções exclusivamente pecuniárias, de carácter não criminal.” – in «O movimento», p.22.

12 Sobre o Direito Penal Europeu e sua legitimação cfr. MÁRIO FERREIRA MONTE, O Direito Penal Europeu, de “Roma” a

“Lisboa” – subsídios para a sua legitimação, Quid Iuris, Lisboa, 2009.

13 ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Notas ao Regime

Geral das Contra-ordenações e coimas, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 109 e 110 (citado: Notas).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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jurisdicional exercido pelo Tribunal Europeu, mas que não deu ainda origem a

um ramo autónomo e densificado do Direito Comunitário14.

De resto, também o Tribunal de Justiça da União Europeia foi já chamado

a pronunciar-se em matéria contra-ordenacional. A título exemplificativo e de

modo paradigmático, entendeu tal Tribunal ser aplicável ao processo contra-

ordenacional o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem

(processo equitativo) como elucida, v.g., o Acórdão Oztürk de 21 de Fevereiro

de 198415.

No âmbito do panorama internacional descrito (sobretudo ao nível

europeu), e exposto o surgimento e expansão das contra-ordenações, não se

pode dizer que Portugal, nesta matéria, esteja numa situação legislativa,

doutrinal ou jurisprudencial incipiente. Ao invés, e malgrado todo o caminho

ainda por percorrer (que é ainda, sem dúvida, longo), em termos comparativos,

Portugal é um dos países onde se vem aprofundando com maior afinco esta

área do Direito. JOSÉ DE FARIA COSTA, após participar no 14.º Congresso da

Associacion Internationale de Droit Penal (1989) subordinado ao tema das

diferenças entre Direito Criminal e Direito Administrativo Penal, e no âmbito do

qual foram formuladas recomendações acerca de tais diferenças, afirmou

mesmo que “Portugal perante tais recomendações e ainda face à discussão

teórica entretecida ao longo dos vários debates não só está munido da

indispensável, a tantos títulos louvável, lei-quadro do direito de mera

ordenação social, como se perfila no âmbito doutrinal em perfeita mas

14

Nesse sentido, veja-se a posição defendida por MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA na sua obra O poder sancionatório

da União e das Comunidades Europeias sobre os Estados Membros, Almedina, Coimbra, 2006; MAITÉNA POELEMANS,

La sanction dans lórdre juridique communautaire; contribution à l´étude du systéme répressif de l´Únion Européennne,

Bruxelles, Bruylant, 2004 e TIEDMANN, Lecciones de derecho penal económico: comunitário, español, aléman,

Barcelona; PPU, 1993, pp. 76 e ss., todos citados por ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação Social, entre a

ideia de recorrência e a de erosão de um Direito Penal clássico, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pp. 190 e 191

(citado: O Direito de Mera Ordenação Social).

15 IRINEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Aequitas, Lisboa, 1995, p. 93.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

9

autónoma sintonia com as linhas mais marcantes do actual pensamento

jurídico penal”16.

Trilhado, ainda que brevemente, o percurso do surgimento e expansão

internacional e nacional da figura das contra-ordenações, vejamos, no capítulo

seguinte, quais os elementos caracterizadores da mesma.

16

JOSE DE FARIA COSTA em adenda ao seu «Les problémes juridiques et pratiques poses par la différence entre le droit

criminel et le droit administratif-pénal», Boletim da Faculdade de Direito, Vol LXII, FDUC, Coimbra, 1986, pp. 181 e 182

(citado : «Les problémes juridiques»).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

10

II. O CONCEITO DE CONTRA-ORDENAÇÃO

1. A dificuldade na construção de uma delimitação material da contra-

ordenação

Após o esforçado (e ainda inacabado) caminho percorrido na expansão

do Direito das contra-ordenações nos termos anteriormente referidos, tudo

levaria a crer estar já estabilizada e cristalizada a noção material de contra-

ordenação (designadamente por contraposição à noção de crime já que esse é

o referencial comummente utilizado).

Contudo, a realidade é distinta.

Na verdade, hoje, como ontem, continua a discussão em torno de tal

noção e tal diferença com grande actualidade e pertinência. Estamos, pois,

como sublinha FARIA COSTA, perante um daqueles casos de recorrência do

pensamento jurídico17.

A dificuldade vai ao ponto de não serem poucas as vozes que se erguem

no sentido de ser impossível delimitar materialmente o ilícito penal do ilícito de

mera ordenação social.

Diz quem assim entende que, sintomático disso mesmo, é o facto de o

próprio legislador entender que, em determinados momentos históricos, uma

conduta deve ser crime e noutra altura a passar a qualificar a mesma conduta

como contra-ordenação e vice-versa. Esta metamorfose, por via legislativa, de

17

Refere pois JOSÉ DE FARIA COSTA a este propósito, em «A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um

exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social», AA. VV., Direito Penal Económico: textos

Doutrinários, Vol. I, Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 143: “Assim, a recorrência outra coisa não é

do que a atitude metódica mais operatória para se conseguir aquele objectivo, porque, por um lado, fornece o objecto

tão delimitado quanto possível e, por outro, arrasta consigo o produto acumulado das compreensões teóricas

anteriores a que se tem, finalmente, de acrescentar - e aqui deparamos com outro ponto essencial – a necessidade de

reflectir acerca daquilo que está para trás. (…) Todavia, o que se tentou mostrar, principalmente nesta última fase do

trabalho, foi o sentido jurídico da própria recorrência, utilizando-se para isso um exemplo: a distinção entre o ilícito

penal e o ilícito de mera ordenação social”.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

11

crime em contra-ordenação e de contra-ordenação em crime é, pois, na

opinião de alguns (v.g. MIGUEL PEDROSA MACHADO18), um sintoma da

inexistência de distinção material entre os dois tipos de infracção.

Outros ainda, como MANUEL CAVALEIRO FERREIRA19, entendem que o

surgimento e expansão do Direito das contra-ordenações não ficou a dever-se

a uma qualquer diferença material entre crime e contra-ordenação, mas sim a

puras razões de oportunidade de descongestionamento dos Tribunais, assim

se inclinando para a inexistência essencial de diferenciação entre tais ilícitos.

A tarefa não é de facto simples, e não se atingiu, por ora, consenso

doutrinal ou jurisprudencial sobre o critério material distintivo entre crime e

contra-ordenação.

Ainda assim, apunhalada a ideia de simplicidade da tarefa, não seja a

dificuldade da mesma motivo para não empreendermos uma breve síntese

sobre os vários critérios distintivos entre crime e contra-ordenação elencados

ao longo do tempo (sendo que se pretende a delimitação da figura geral da

contra-ordenação e já não das suas sub modalidades, v.g., contra-ordenação

comum; contra-ordenação específica própria ou imprópria; contra-ordenação

de resultado; contra-ordenação de mera actividade; contra-ordenação de dano;

contra-ordenação de perigo; contra-ordenação de execução instantânea;

contra-ordenação permanente; contra-ordenação omissiva seja pura ou

impura20).

Para tanto, partiremos da noção legal de contra-ordenação e faremos

uma decomposição da mesma, assim explorando as diferenças que existem

ao nível do ilícito típico, da culpa e da sanção, acrescentando ainda um último

18

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo da legislação portuguesa sobre contra-ordenações», in AA.

VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Instituto de Direito Penal

Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1998 (citado:

«Elementos para o estudo»).

19 MANUEL CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal – Parte Geral, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 107 e ss. (citado:

Lições).

20 Sobre tais submodalidades e suas noções cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das

Contra-ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,

Universidade Católica Editora, Lisboa, Outubro de 2011, pp. 30-32 (citado: Comentário).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

12

elemento (especificidades processuais) que tem ajudado a individualizar a

figura jurídica em estudo.

2. A necessidade de construção de uma delimitação material da contra-

ordenação

2.1. Noção legal de contra-ordenação: considerações gerais

Antes de mais, importa dizer que, no ordenamento jurídico nacional, é o

próprio legislador quem define o que se deverá ter como contra-ordenação (art.

1º do RGCO) e como crime (art. 1º, al. a), do Código de Processo Penal)21.

Com nítida inspiração na lei alemã (OWIG), previu-se no art. 1.º do RGCO

que “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha

um tipo legal no qual se comine uma coima”. Assim, o legislador português, à

semelhança do alemão22, estabeleceu uma noção nominal formal de contra-

ordenação, deixando de lado uma definição material da mesma.

No fundo, no nosso sistema jurídico o critério de diferenciação do que seja

contra-ordenação por reporte ao crime, passa por um critério nominativo e

formal (art. 1.º do RGCO), que interliga o ilícito à sua sanção principal

específica.

Um tal critério tem a relevante virtualidade prática de não deixar dúvida

ao aplicador e intérprete da lei quanto ao que seja em concreto a contra-

ordenação, mas não resolve o problema de saber, a montante, o que levou o

legislador a optar pelo sancionamento de uma conduta como contra-ordenação

ou como crime. Subsistirá, assim, em rigor, a questão de saber o que é

21

Não cuidaremos aqui de desenvolver o conceito de crime, atenta a parcimónia que dissemos pretender usar nestas

notas de cariz mais introdutório e de enquadramento.

22 Sobre o conceito formal de contra-ordenação no sistema alemão, ver GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal – Parte

General, Fundamentos y Teoria de la Imputación (tradução de Joaquin Cuello Contreras e José Luís Serrano Gonzalez

de Murillo), Murcial Pons, Ediciones Jurídicas S.A., Madrid, 1997, pp. 66 e ss. (citado: Derecho Penal).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

13

materialmente uma contra-ordenação, sem o que, a tarefa do legislador seria

puramente arbitrária.

Não se censura o legislador por ter optado por tal solução nominal face às

águas agitadas que ainda se movem em torno de tal noção. Traz, sem dúvida,

segurança jurídica. A noção legal é, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,

“a única praticamente exequível” dada a “natureza altamente questionável, no

plano doutrinal, dos critérios substanciais avançados para a distinção”23.

Em semelhante sentido e explicitando a razão de ser dos conceitos

formais legais, refere JOSÉ DE FARIA COSTA “Os critérios formais existem (…)

para que se resolvam questões que impliquem uma clara definição de

fronteiras normativas. Existem, sobretudo, para afirmação dos princípios de

certeza e segurança que são, se bem virmos, uma outra face da ideia de

garantia. Mas não são nem podem ser considerados como a panaceia para se

atingir a certeza e segurança. De certa maneira só é dogmaticamente legítima

a sua utilização quando for, de todo em todo, impossível estabelecer uma

nítida fronteira material entre as realidades normativas que se querem,

justamente, destrinçar ou ainda sempre que os princípios da certeza e da

segurança jurídicas se imponham como valores proeminentes e indiscutíveis

dentro do quadro normativo que se quer regular”24.

O que já não se mostra desejável nem aceitável é a falta de coerência

legislativa, uma vez que se constata que, não obstante a clareza do critério

adoptado no art. 1.º do RGCO, acabam por existir contra-ordenações que não

aludem ao sancionamento com coima, antes importando acriticamente

sanções penais para o domínio contra-ordenacional.

Veja-se, por exemplo o art. 15.º da Lei n.º 30/2000, de 02 de Novembro,

relativa ao regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes quando

dispõe que “1 - Aos consumidores não toxicodependentes poderá ser aplicada

uma coima ou, em alternativa, sanção não pecuniária. 2 - Aos consumidores

23

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime,

Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp.161 e 162 (citado: Direito Penal, Parte Geral).

24 JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis) Introdução, Coimbra

Editora, Coimbra, 2007, p. 37 (citado: Noções Fundamentais).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

14

toxicodependentes são aplicáveis sanções não pecuniárias. 3 - A comissão

determina a sanção em função da necessidade de prevenir o consumo de

estupefacientes e substâncias psicotrópicas (…)”.

Como se vê, pode haver contra-ordenação relativa a consumo de

estupefacientes não sancionada, a título principal, com coima mas antes com

sanção não pecuniária, sendo que é a referida Lei que depois elenca no seu

art. 17.º quais serão essas sanções, no fundo, ao arrepio do art. 1.º do RGCO.

Com efeito, estatui o art. 17.º, n.ºs 2, 3 e 4 da referida Lei que “2 - Sem

prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 15.º, a comissão pode aplicar as

seguintes sanções, em alternativa à coima ou a título principal:

a) Proibição de exercer profissão ou actividade, designadamente as sujeitas a

regime de licenciamento, quando daí resulte risco para a integridade do próprio

ou de terceiros; b) Interdição de frequência de certos lugares; c) Proibição de

acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; d) Interdição de ausência para

o estrangeiro sem autorização; e) Apresentação periódica em local a designar

pela comissão; f) Cassação, proibição da concessão ou renovação de licença

de uso e porte de arma de defesa, caça, precisão ou recreio; g) Apreensão de

objectos que pertençam ao próprio e representem um risco para este ou para a

comunidade ou favoreçam a prática de um crime ou de outra contra-

ordenação; h) Privação da gestão de subsídio ou benefício atribuído a título

pessoal por entidades ou serviços públicos, que será confiada à entidade que

conduz o processo ou àquela que acompanha o processo de tratamento,

quando aceite. 3 - Em alternativa às sanções previstas nos números

anteriores, pode a comissão, mediante aceitação do consumidor, determinar a

entrega a instituições públicas ou particulares de solidariedade social de uma

contribuição monetária ou a prestação de serviços gratuitos a favor da

comunidade, em conformidade com o regime dos n.os 3 e 4 do artigo4 - Na

aplicação das sanções, a comissão terá em conta a situação do consumidor e

a natureza e as circunstâncias do consumo, ponderando, designadamente: a)

A gravidade do acto; b) A culpa do agente; c) O tipo de plantas, substâncias ou

preparados consumidos; d) A natureza pública ou privada do consumo; e)

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

15

Tratando-se de consumo público, o local do consumo; f) Em caso de

consumidor não toxicodependente, o carácter ocasional ou habitual do

consumo; g) A situação pessoal, nomeadamente económica e financeira, do

consumidor”.

Salvaguardadas estas indesejáveis incoerências do sistema legal, é ponto

assente que existe um critério nominal formal de contra-ordenação feita por

referência à sanção principal que é a coima.

Contudo, e sem deixar cair por terra a utilidade que tem uma noção legal

formal de contra-ordenação, só um olhar apressado nos levaria a pensar que

estaria assim encerrada a discussão sobre o conceito material de contra-

ordenação.

Com efeito, como já fomos sublinhando, o critério de distinção baseado

num nomen iuris que o legislador atribua (é contra-ordenação se a lei se referir

à coima), não resolve a questão de saber a essência do que se tenha por

contra-ordenação já que este ponto de vista só resolve o problema, como já

referimos, a jusante da opção legistativa. Assim, a existência de uma noção

legal não desvenda a diferença a fazer em termos legislativos e de política

criminal sobre a opção de uma conduta, em termos sancionatórios, como crime

ou como contra-ordenação.

Quais então os critérios que o legislador poderá e deverá mobilizar na

opção que tem que fazer?

Centremo-nos, pois, nos três elementos da noção legal supra enunciada

(1. facto típico ilícito; 2. censurável; 3. punível com coima) analisando os vários

critérios distintivos elencados no sentido de delimitar a figura da contra-

ordenação, a que acrescentaremos ainda um quarto elemento mais lateral

referente às especificidades processuais.

2.2. A tipicidade nas contra-ordenações

Vejamos o primeiro elemento da noção de contra-ordenação: o facto

típico.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

16

Na noção avançada por GERMANO MARQUES DA SILVA, “Diz-se que há

tipicidade quando o facto se ajusta ao tipo, ou seja, quando corresponde às

características objectivas e subjectivas do modelo legal, abstractamente

formulado pelo legislador”25.

Ora, à semelhança do que sucede na área criminal, também na área

das contra-ordenações vigora o princípio da tipicidade como corolário do

princípio da legalidade – cfr. arts. 1.º e 2.º do RGCO.

De resto, estando-se perante Direito sancionatório, dificilmente se

compreenderia que não se norteasse por um tal princípio atento o imperativo

constitucional ínsito no art. 29.º da CRP para o Direito Criminal26.

Com efeito, todas aquelas normas vão no mesmo sentido, ou seja, a de

que a contra-ordenação há-de estar prevista em lei e que a referida previsão

há-de ser anterior à prática do facto que se adequará e subsumirá ao tipo (lei

anterior e ainda lei certa e precisa quer quanto ao tipo objectivo quer subjectivo

do ilícito).

Cabe pois à lei em cada momento, e só a ela, de forma tão clara quanto

possível, especificar as condutas que constituem contra-ordenação, o que,

sendo nota importante, não é nota que nos permita uma concretização material

do que é a contra-ordenação, tanto mais que a questão se coloca sobretudo no

momento legislativo (embora a compreensão da noção e a sua autonomização

seja relevante depois, naturalmente, em termos interpretativos).

2.3. A ilicitude nas contra-ordenações

Coisa diferente se dirá quanto à ilicitude. Efectivamente, no que respeita

à ilicitude, é travada uma longa discussão, sobretudo doutrinal, ao nível das

diferenças entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação social.

25

GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, parte geral II, teoria do crime, Verbo, Lisboa, 1998, p. 18.

26 Neste sentido veja-se JOSE FARIA COSTA quando refere “qu´on ne pas omettre, le droit de mera ordenação social est

un droit sanctionnateur, et de plus, et par détermination légale, subordonné au príncipe de la légalité.” – in «Les

problémes juridiques», p. 155.

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17

Mas serão tais diferenças, quantitativas, qualitativas, um misto de

ambas?

2.3.1. As teses quantitativas

Entendem alguns autores que entre ilícito penal e o ilícito contra-

ordenacional intercedem diferenças quantitativas27.

Quem assim entende põe o crime e a contra-ordenação a caminhar muito

mais próximos do que quem os olha com os olhos da diferença qualitativa.

Esta doutrina assenta na ideia de que ambos os tipos de infracção se

situam no âmbito do Direito sancionatório e, nessa medida, tutelam

verdadeiros bens jurídicos, pelo que a pedra de toque distintiva passará pelo

tipo de bem jurídico violado e pela gravidade/quantidade de tal violação. No

horizonte de um tal entendimento está sempre presente o princípio da

subsidiariedade da intervenção penal.

Vejam-se, a este propósito, alguns autores defensores de teses

quantitativas enumerados por ALEXANDRA VILELA quando refere v.g., “Defensor

de um critério quantitaitvo é MITSCH, para quem a relação entre o Direito Penal

e o direito de mera ordenação social é uma relação de plus-minus, em que

este último se apresenta como minus e onde a contra-ordenação se mostra

como um ilícito penal mais leve, continuando todavia a ser ofendidos bens

jurídicos. Esse minus de que nos fala o autor pode revelar-se no menor valor

do bem jurídico e na forma de ofensa àquele. (…) de CEREZO MIR surge-nos a

ideia segundo a qual a diferença entre Direito Penal e Direito Administrativo

sancionador, entre pena e sanção administrativa, deve ser vista a partir de un

critério quantitativo, sendo certo que o limite deve ser traçado pelo legislador,

27

Defendendo a tese quantitativa cfr., entre outros, HANS-HENRICH JESCHECK,Tratado de Derecho Penal – Parte

General, Vol. I (tradução e aditamentos de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde), Bosch. Casa Editorial S.A., Barcelona, 1981

(citado: Tratado de Derecho Penal); GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal, JOSÉ CEREZO MIR, «Sanções Penais», SANTIAGO

MIR PUIG, Derecho Penal – Parte General (Fundamentos y teoria del delito), Promociones Publicaciones Universitarias,

Barcelona, 1984; MÁRIO GOMES DIAS, «Breves reflexões sobre o processo de contra-ordenação», Revista do Ministério

Público, ano 5.º, vol. 20, 1984 (citado: «Breves reflexões»); NUNO B.M. LUMBRALES, Sobre o conceito de contra-

ordenação, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2006 (citado: Sobre o conceito).

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

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levando em linha de conta a gravidade das infracções, aferida em função do

respectivo desvalor ético-social e cultural, bem como considerações de política

criminal, nomeadamente a rapidez e a eficácia da sanção”28.

De todo o modo, importa sublinhar que mesmo para quem defende um

critério distintivo meramente quantitativo não deixa de reconhecer que tal

diferença será suficiente para justificar um ramo de Direito com regras

sancionadoras diferentes29.

Embora o critério quantitativo seja um critério relevante designadamente

nos sistemas jurídicos alemão e na distinção que a doutrina espanhola faz

entre crime e sanções administrativas, o mesmo não é, contudo, isento de

críticas.

A doutrina tem estado atenta a tais teses pondo em relevo as suas

insuficiências.

Neste sentido veja-se, v.g., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS quando refere «Já

se pensou – e continua a pensar-se, na Alemanha até predominantemente –

em negar a possibilidade de delimitação material dos dois ilícitos, na base de

não poder reconhecer-se a existência de um ilícito eticamente indiferente,

mesmo que ele seja de “mera” ordenação social. Quem sustentar esta

impossibilidade tem, do meu ver inteira razão. Mas já a não tem quando daqui

pretenda concluir pela impossibilidade de delimitação material entre ilícito

penal e ilícito de ordenação, ou pela possibilidade de entre eles interceder

apenas uma diferença “quantitativa”, que levaria à identificação do ilícito de

ordenação com um ilícito de “bagatelas”»30.

Afirma também JOSÉ DE FARIA COSTA “Entre o Direito Penal e o direito de

mera ordenação social intercede uma diferença qualitativa e não meramente

quantitativa (…) Na verdade, o fundamento que encontrámos para o Direito

Penal e as funções que lhe vão conexas não podem, sem erro de perspectiva,

ser coincidentes com o que fundamenta e sustenta, ainda que só

funcionalmente, o direito de mera ordenação social. Se, na verdade, o Direito

28

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera Ordenação Social, p. 219 e ss..

29 V.g. HANS HENRICH JESCHECK ao longo do seu Tratado de Derecho Penal.

30 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 26.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

19

Penal se estrutura e vive, enquanto sua razão e modo-de-ser, através de dois

elementos essenciais, o crime e a pena, o direito de mera ordenação social

constrói-se por meio da contra-ordenação e da coima”31.

Contudo, temos para nós que, se é certo que o desvalor da ilicitude penal

será, em regra, maior do que o da ilicitude contra-ordenacional, tal nem

sempre corresponde a uma sanção penal mais gravosa (bastará atentar, v.g.,

nas molduras das coimas nas contra-ordenações ambientais no nosso

ordenamento jurídico para se compreender que, ao nível da sanção, não se

pode falar na prática, em bom rigor, de “bagatelas”).

Parece-nos assim que partir da tese quantitativa equivale a afirmar que

crime e contra-ordenação são a mesma realidade ainda que com gradação

diferente, o que não se nos afigura rigoroso. A autonomia deve existir, são

ilícitos diferentes entre si, não sendo apenas uma mera diferença de grau ou

quantidade.

2.3.2. As teses qualitativas

Face às referidas fragilidades das teses quantitativas, outros autores

realçam diferenças qualitativas (um “aliud”) entre o ilícito criminal e o ilícito

contra-ordenacional32. AUGUSTO SILVA DIAS chega mesmo a afirmar que o

critério qualitativo de distinção é “o único racionalmente defensável” e possui

grande relevância prática na hora da criação legislativa33.

De resto, é o próprio legislador quem, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º

433/82, de 27 de Outubro, aponta no sentido da distinção qualitativa (com

critérios com que podemos ou não concordar) ao dizer “Manteve-se, outrossim,

31

JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais, pp. 35 e 36.

32 No sentido da existência de diferenças qualitativas entre crime e contra-ordenação, cfr., entre outros, AUGUSTO SILVA

DIAS, «Crimes e Contra-ordenações Fiscais», in AA. VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários –

Volume II: Problemas especiais, Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra, Coimbra editora, Coimbra, 1999, p. 441 (citado: «Crimes e Contra-ordenações; EDUARDO

CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», pp. 257 e ss.; GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português,

Parte Geral I, introdução e teoria da lei penal, Verbo, Lisboa, 2001, pp. 155 e ss. (citado: Direito Penal, Parte Geral I);

HELIANA MARIA DE AZEVEDO COUTINHO, «O Direito de Mera Ordenação», p. 116.

33 AUGUSTO SILVA DIAS, «Crimes e Contra-ordenações», p 441.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

20

a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-

ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas duas categorias de

ilícito tendem a extremar-se quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos

quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última

instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente

formal”.

Quem opta pelas teses qualitativas entende que o critério quantitativo

contribui para a errónea perspectiva de que o Direito das contra-ordenações

incide sobre bagatelas penais. Por outro lado, afirma que o critério quantitativo

não traz qualquer vantagem prática relativamente aos critérios qualitativos no

momento legislativo de definir uma infracção como criminal ou contra-

ordenacional, pelo que importa delimitar qualitativamente o ilícito contra-

ordenacional do criminal.

Mas quais então as diferenças de qualidade?

Têm-se aduzido vários critérios distintivos, entre os quais, pela frequência

com que são invocados (aliás, como vimos, pelo próprio legislador no

preâmbulo vindo de referir), se destacam os critérios relativos ao bem jurídico

tutelado e à relevância ou irrelevância ética das condutas.

Vejamos assim o critério qualitativo da tutela de bens jurídicos.

Com efeito, de acordo com este critério, as contra-ordenações não

tutelam verdadeiros bens jurídicos, mas antes meros bens ou interesses

administrativos caso exista violação ou desobediência a comandos ou ordens

da Administração.

Invoca-se, a este propósito a necessidade de apelar à ordem

constitucional já que a mesma funcionará como referência da actividade

punitiva do Estado. Consequentemente, não deverão caber ao Direito Penal

clássico as ofensas de bens jurídicos não individualizáveis nem, outrossim, as

ofensas a bens jurídicos individualizáveis mas em que não se revele

necessária a intervenção penal (dada a sua veste de última ratio). Um tal

critério passa ainda pela assunção de que o Direito Penal tutela bens jurídicos

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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com dignidade penal34 de forma directa e imediata e que o Direito das contra-

ordenações tutela meros bens ou interesses de natureza administrativa e, por

vezes, de forma indirecta ou mediata.

O Direito Penal dito clássico ou de justiça estará, assim, reservado às

ofensas ligadas ao livre desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo

ou ser humano enquanto tal, ou seja, ligado à axiologia pressuposta

constitucionalmente35.

Trata-se de um critério que, bebendo as suas origens no pensamento de

GOLDSCHMIDT e de SCHIMIDT veio a ser retomado e desenvolvido por outros

autores como LANGE e MICHELS que enquadram e interligam elementos das

várias teses de diferenciação qualitativa.

No fundo, de acordo com tais autores, há que diferenciar os delicta in se

(ilicitudes que se baseiam em violação de bens jurídicos e a que está ínsito um

desvalor ético-social) e os delicta mere prohibita (ilicitudes que apenas existem

como mera desobediência a um comando legal e a que não era ínsito qualquer

desvalor jurídico à partida), aqueles próprios do Direito Penal e estes próprios

do Direito contra-ordenacional.

Também AMELUNG distinguia o Direito Penal protector de bens jurídicos

do Direito Penal Administrativo protector de interesses administrativos, sem

contudo deixar de revelar que havia que equacionar a incorrecção do

enquadramento das contra-ordenações no seio do Direito Penal Administrativo.

AMELUNG, de resto, acrescentou um outro elemento útil de diferenciação ao

fazer assentar a distinção entre crime e contra-ordenação no que seja o seu

substracto cultural e social de cada momento histórico.

Conforme refere ALEXANDRA VILELA36 a propósito do pensamento de

AMELUNG “O autor em análise, segundo o nosso ponto de vista, volta a revelar

34

Sobre a distinção entre dignidade penal e carência de tutela penal, cfr. MANUEL DA COSTA ANDRADE, «A dignidade

penal e a carência de tutela penal como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime», Revista

Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, Fasc. 2, Aequitas – editorial notícias, Abril-Junho de 1992, pp. 173-205.

35 Cfr. AUGUSTO SILVA DIAS, «Crimes e Contra-ordenações», pp. 441 e ss. e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O

movimento», pp 23 e 24.

36 ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera Ordenação Social, pp. 190 e 203, que expõe o pensamento de AMELUNG e

ainda de LANGE e MICHELS.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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grande lucidez quando discreteia que é efectivamente inegável a existência de

especificidades sociológicas das contra-ordenações que, por sua vez,

conduzem a implicações nos planos dogmático e da política criminal. Logo, por

aqui, é visível a diferença qualitativa entre os dois ilícitos: o ilícito penal, por

mais bagatelar que ele seja, apesar de o grau de ilicitude de alguns tipos legais

de crime ser igual ao das contra-ordenações, dada a existência daquelas

especificidades, é impossível ser reconduzido ao mesmo plano qualitativo

daquelas. (…) O que equivale a dizer que os tipos legais do Direito Penal se

ligam às normas que a pessoa interiorizou no estádio da sua Gewissenbildung,

da sua socialização primária e na sua formação enquanto pessoa, sendo certo

que o horizonte dessas normas interiorizadas é determinado pela tradição

cultural. No direito de mera ordenação social, pelo contrário, o legislador não

pode pressupor que os destinatários das suas normas tenham consciência do

seu conteúdo ilícito”.

Este critério não fica, porém, a salvo de críticas.

Como lembra TERESA PIZARRO BELEZA, há por um lado crimes de perigo

(portanto, com uma tutela mais mediata) e, por outro, crimes de desobediência,

pelo que a mera ideia de se estar a infringir uma injunção administrativa não é

suficientemente caracterizadora das contra-ordenações por oposição ao

crime37.

Alguns autores consideram mesmo artificial a distinção entre o bem

jurídico justiça e o bem jurídico do bem-estar social ou público, dizendo que “el

ordenamiento jurídico solo puede prestar protección a un bienestar comuún

que sea justo (…) La realidad legislativa muestra que muchos de los bienes

jurídicos que las normas penales protegen son interesses pertenecientes de

modo inmediato a la Administración”38.

Não obstante tais críticas, há quem veja neste critério um efeito útil de

delimitação negativa de tal caracterização material.

37

TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, 1.º vol, Lisboa, AAFDL editora, Lisboa, 1998, pp.102 e 103 (citado: Direito

Penal).

38 ROBERTO GOLDSCHMIDT, «La teoria del derecho penal administrativo y sus críticos», Estúdios de derecho comparado,

Universitad Central de Caracas, publicaciones de la facultad de derecho, Vol xxii, 1958, p. 147.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

23

Com efeito, autores como W. HASSEMER39

e GÜNTHER JAKOBS40 entendem

que o critério da tutela do bem jurídico pode, nalguns casos, ser útil numa

legitimação negativa, isto é, o critério permite pelo menos afirmar algumas

condutas que jamais poderiam ser sancionadas com uma coima dada a

natureza dos bens jurídicos em causa bem como as condutas que, por falta de

dignidade penal, jamais poderiam ser qualificadas como crime.

Trata-se ainda assim de uma delimitação nos extremos mas que não

resolve as “zonas cinzentas” bastando pensar nas dificuldades que suscitaria o

Direito Penal secundário.

Mas vejamos outro dos critérios aduzidos.

Conforme se havia referido, a par do critério relacionado com os bens

jurídicos, destaca-se ainda um outro critério: o critério qualitativo da

irrelevância ética da conduta contra-ordenacional por contraposição à conduta

ético-penalmente relevante por referência à ordem axiológica constitucional.

Era com base num tal critério, importado da doutrina do Direito Penal

Administrativo e agora aprofundado, que EDUARDO CORREIA dizia que as

contra-ordenações deveriam ser objecto não de penas propriamente ditas, mas

de “outro tipo de medidas que exprimam apenas uma censura de natureza

social e se traduzam num mal com o sentido de mera advertência despido de

toda a mácula ético-jurídica”41. Note-se que, já em sede de contravenções (e

portanto, ainda no domínio penal), se referia que as mesmas eram

independentes de “toda a intenção maléfica” - cfr. art. 3.º do Código Penal de

1886.

Mas existirão ilícitos axiologicamente neutros?

Face a tal questão, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, explicita que não são tanto

os ilícitos, mas as condutas que lhes subjazem que, sem a proibição legal, são

eticamente neutras, explicando «necessário é sim que a perspectiva da

“indiferença ética” se dirija, não imediatamente aos ilícitos – que supõem já

39

W. HASSEMER, Theorie und Soziologie des Verbrechens, Atheäum Verlag, Frankfurt, 1973, pp. 216 e ss. citado por

MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo» , p. 76.

40 GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal, pp. 68 e 69.

41 EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», pp. 266 e 267.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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realizada a valoração legal, mas às condutas que os integram. Nada tolhe o

passo à distinção entre condutas a que, antes e independentemente do

desvalor da ilicitude, corresponde, e condutas a que não corresponde mais

amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta em si mesma,

independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiologicamente

relevante, no segundo, axiologicamente neutra»42.

No fundo, os tributários desta tese distintiva, entendendo que em ambos

os ilícitos está em causa a protecção de bens jurídicos (pelo que a distinção

não pode ter essa “pedra de toque”), defendem, contudo, que as condutas

integradoras de contra-ordenações, ao contrário das penas, sem a proibição

legal, seriam axiologicamente neutras.

AUGUSTO SILVA DIAS também separa os ilícitos como “delicta in se” e os

“delicta mere prohibita”. Refere que o “delicta in se”, com dignidade penal,

“encerra desvalor ético, danosidade e reprovação sociais, resultantes, em

primeira mão, do dano que produz em estruturas de reconhecimento recíproco

constituídas, entre outros elementos, por bens ou valores de referente pessoal

e, portanto, de perda efectiva para alguém”. Já os “delicta mere prohibita”

traduzem-se em “perturbações funcionais, que impedem o regular

funcionamento de subsistemas de economia de mercado, e provêm de

consequências (…) que se não produzem imediatamente sobre pessoas e

escapam por isso à experiência do dano”, embora entenda que nesta zona

podem já haver condutas que integrem crime e condutas que integrem contra-

ordenações43.

As críticas a um tal critério distintivo são já antigas.

Com efeito, ninguém duvidará que o ilícito penal é axiologicamente

relevante. Já do que duvidam alguns autores é que o ilícito de mera ordenação

social o não seja igualmente, trazendo à colação o argumento que nenhum

ilícito ou conduta é, na totalidade, axiologicamente neutro.

42

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 26.

43 AUGUSTO SILVA DIAS, “Delicta in se” e “Delicta mere proihbita”: uma análise de descontinuidade do ilícito penal

moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 578 e ss. (citado:

Delicta in se).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

25

Mas vejamos o que alguma da doutrina nacional tem dito a tal propósito

(citando o seu próprio discurso).

TERESA PIZARRO BELEZA entende que deve, pois, ser dado ao referido

critério da irrelevância ética (que já era aduzido para a distinção entre crime e

contravenção) uma “importância muito relativa”44.

Também FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO se pronuncia no sentido

da insuficiência do critério diferenciador enunciado, afirmando que “Para

delimitar as diversas modalidades de ilícito o critério ético é insuficiente, em

especial a partir do momento em que o Direito das contra-ordenações se

passou a ocupar de matérias com ressonância ética, nomeadamente criando

infracções a regras de ética profissional, ética dos negócios ou a deveres de

respeito ambiental”45.

MANUEL DA COSTA ANDRADE não deixa igualmente de afirmar que “Não é

verdade fácil aceitar-se que qualquer violação do direito seja, sem mais,

eticamente neutra: a elevação de uma dada conduta à dignidade de

juridicamente imposta ou proibida confere à respectiva omissão ou prática uma

irrecusável carga ética”46.

TAIPA DE CARVALHO, por seu turno, afirma peremptoriamente que as

condutas que integram os ilícitos de mera ordenação social não são axiológico-

socialmente neutras47.

Chega mesmo a pôr-se em causa, a este propósito, a própria designação

do ilícito tido como de “mera” ordenação social (como aliás inicialmente

também referimos). Neste sentido veja-se, v.g., a posição de TIAGO LOPES DE

AZEVEDO, que bebendo dos ensinamentos de TAIPA DE CARVALHO, defende que

“Desta forma, somos de opinião de que o uso do adjectivo mera não se

coaduna com a realidade contra-ordenacional. O direito contra-ordenacional

protege bens jurídicos socialmente incorporados como tal. Bens jurídicos

44

TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, p. 102.

45 FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «As Codificações», p. 94.

46 MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo», p. 99.

47 TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal – Parte Geral, Questões Fundamentais, Publicações Universidade Católica, Porto,

2003, p.150 (citado: Direito Penal –Parte Geral).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

26

esses que apesar de contarem com o auxílio importante do Estado-legislador,

são também compreendidos pela comunidade como valores sociais, os quais

comportam mesmo, na nossa opinião, a devida relevância axiológica.

Seguimos por isso muito aproximadamente a opinião de Américo Taipa de

Carvalho, quando refere que “tal adjectivo (mera) pode contribuir para iludir ou

contornar a realidade. A realidade é que o direito de mera ordenação social

não protege uma qualquer ordenação social como que seguindo o “capricho”

do legislador, mas sim, tutela valores sociais”48. Aliás, afirma este autor que

um dos sintomas de que não há condutas axiologicamente relevantes ao nível

contra-ordenacional é precisamente o apelo à denúncia do cidadão de

condutas lesivas em matéria ambiental (v.g. no sítio da Internet da Guarda

Nacional Republicana).

Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE entende que, a par de condutas

que até serão axiologicamente neutras, existem condutas, sancionáveis a título

contra-ordenacional, que serão indubitavelmente condutas axiologicamente

relavantes (constatação que terá que relevar, v.g., em matéria de erro)

entendendo este autor que, nestes últimos casos, “a punição da conduta a

título contra-ordenacional deve-se a um juízo político-criminal de

desnecessidade da tutela penal”49.

Na senda dos referidos autores e ainda na esteira do pensamento v.g. de

JESCHECK e AMELUNG, também cremos que não é de considerar que o ilícito

contra-ordenacional se reporta estritamente a condutas axiologicamente

neutras.

Com efeito, não poderemos olvidar que o Direito das contra-ordenações

não deixa de ser Direito sancionatório e, nessa medida, importará sempre

alguma reprovação ética (maior ou menor) das condutas quer das pessoas

singulares quer das pessoas colectivas, reprovação essa que certamente

dependerá da ética do legislador em cada momento histórico e social.

48

TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade no Direito das Contra-ordenações: problemas, críticas e sugestões

práticas, Coimbra Editora, Coimbra, Outubro de 2011,pp. 65 e 66 (citado: Da subsidiariedade).

49 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, Proc.28.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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Acresce que, em muitas das contra-ordenações parece clara a

susceptibilidade de censura mesmo antes da proibição legal. Para tanto,

bastará pensar nas contra-ordenações por condução sob efeito do álcool com

uma taxa de álcool no sangue entre os 0,5 gr/lt e 1,1 gr/lt (cfr. art. 81.º do

Código da Estrada, posto que a partir de 1,2 gr/lt se tratará de crime nos

termos do art. 292.º do Código Penal).

Há pois que relativizar o presente critério, embora, a nosso ver se deva

assentar na premissa da delimitação material e qualitativa da contra-

ordenação.

Daí que surjam as teses mistas e outras teses que em seguida se verão.

2.3.3. As teses mistas ou outras teses

Não se pode esconder o facto de a tese da diferença qualitativa ter

sofrido algum desgaste com as críticas advindas sobretudo das doutrinas

alemã e espanhola, o que está essencialmente relacionado com a crescente

proliferação, em número e heterogeneidade, do domínio contra-ordenacional.

Refere, elucidativamente, a este propósito NUNO B. M. LUMBRALES,

simpatizante das teses quantitativas, que “A heterogenidade das condutas

qualificadas pela lei como ilícito de mera ordenação social é de tal forma

manifesta que acaba, conjugada com outros argumentos, por pôr em causa a

sustentabilidade dos critérios de distinção substancial tradicionalmente

avançados pela doutrina sobretudo os da tutela de bens jurídicos ou de meros

bens ou interesses de natureza administrativa e da relevância ética da

infracção”50. É neste contexto que se vêm erguendo teses que, por exemplo,

transformam depois a quantidade em qualidade.

Entre nós, e pese embora inclinando-se para o critério da irrelevância

ética da conduta quando divorciada da proibição legal, JORGE DE FIGUEIREDO

DIAS não deixa de, em determinado momento do seu pensamento, referir que

tal «não obsta, naturalmente, a que em certos casos o legislador aceite

50

NUNO B.M. LUMBRALES, Sobre o conceito, pp. 132 e 133.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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critérios adicionais de distinção; e mesmo critérios de pura “quantidade” –

quando esta se converte em qualidade, isto é, quando seja condição da

relevância axiológica de uma conduta o facto de que ela não constitua uma

pura bagatela do ponto de vista quantitativo, antes assuma um mínimo de

gravidade. E tanto mais me confirmo nesta via de distinção quanto é ela que

vejo mais próxima da necessária ligação de todo o Direito Penal –

diferentemente do que sucede com o direito de mera ordenação – aos bens

jurídicos e, por aí, à ordem axiológica constitucional»51.

Trata-se de um pensamento que vai beber as suas raízes a ROXIN que

vinha dando realce ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal como

premissa político-criminal importante da distinção a operar.

Parte-se então do princípio da subsidiariedade da intervenção penal, e,

bem assim, da discricionariedade do legislador na opção entre crime e contra-

ordenação, para depois se entender que «a ideia de transformação da

quantidade em qualidade permite sustentar, relativamente às infracções mais

graves, que as mesmas se possam incluir “En el campo nuclear del Derecho

Penal”, já que “las exigências de la protección subsidiaria de bienes jurídicos

requieren necesariamente un castigo penal en caso de delitos de un cierto

peso, podendo igualmente, e por outro lado, através do recurso ao princípio da

subsidiariedade, delimitar-se um campo em que só será admissível a punição

a título de contra-ordenação»52.

No entanto, novas críticas podem, ainda assim, ser erigidas a este

raciocínio.

ALEXANDRA VILELA, por exemplo, não deixa de referir, a propósito desta

tese de ROXIN, seguida por FIGUEIREDO DIAS, que “é inconcebível aceitar que a

quantidade, uma vez atingido um certo grau, se transfigure em qualidade.

Comungando do pensamento de FARIA COSTA e de BOHNERT, diremos que a

adesão a um critério misto quantitativo-qualitativo, onde há espaço para a

existência do Kernbereich privativo do Direito Penal, equivale a aceitar que,

51

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 27.

52 NUNO B.M. LUMBRALES, Sobre o conceito, p. 132., citando obra traduzida de CLAUS ROXIN.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

29

efectivamente, a diferenciação é feita através de um critério qualitativo.

BOHNERT refere mesmo que as teorias mistas não são possíveis, As assim

chamadas teorias mistas são, na verdade, qualitativas. (…) A estes

argumentos acrescenta-se ainda um outro de THIEΒ, que, no caso tem total

cabimento. Diz-nos este autor que este salto de quantidade para qualidade,

peca por falta de nitidez e situa-se num determinado ponto que tolera

transições pouco claras (…) com recurso a critérios arbitrários” 53.

MÁRIO FERREIRA MONTE, avança também com um critério material, que

parte das finalidades das contra-ordenações (critério teleológico) a que adita

um novo factor atendível: a política criminal. Tal autor propõe o seguinte “é hoje

possível sustentar uma distinção que, sendo na sua base qualitativa – natureza

da conduta que subjaz ao ilícito, - sobretudo em alguns casos vem a ser

refinada por razões quantitativas – maior ou menos necessidade penal – e

consequentemente maior ou menor necessidade de sanção, por sua vez

também mais ou menos severa, e que vá ao encontro de maiores ou menores

exigências de preveção ou de simples advertência. Tudo isto, no entanto, feito

à luz de considerações indispensavelmente político-criminais: o direito penal

rege-se por critérios de lesividade ou perigosidade e de imputação pessoal do

ilícito, sendo este determiunado na sua base por condutas com relevância

ético-social; o direito de mera ordenação social, embora proteja bens jurídicos,

pauta-se por critérios de ordenação, em geral, de sectores de actividade,

mediante sanções, um determinado modelo de gestão sectorial, gestaão essa

que vem a ser determinada por normas que proíbem ou impõem

comportamentos e de cuja violação resulta o ilícito (…) Para as condutas que

se situam numa área indistinta, isto é, que teriam dignidade penal mas não

justificam a utilização do direito penal, continua a ser um juízo criminal de

necessidade que resolve o problema, ou seja, uma solução de política criminal,

53

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera Ordenação Social, p. 211.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

30

e não através de um critério material qualitativo que não chega a distinguir tais

ilícitos””54.

Já FARIA COSTA havia também introduzido, por seu turno, o que se ainda

se afigura ser um importante elemento auxiliar à distinção material entre crime

e contra-ordenação: o da dignidade penal entendida como algo fluído no

tempo, como marcado pela valoração do que seja o mínimo ético de cada

momento histórico, social e antropológico 55.

ALEXANDRA VILELA, alicerçando as bases da sua posição nesta premissa

dada por FARIA COSTA, refere que a dignidade penal é um elemento importante

mas não pode ser o que, em última análise, e por si só, delimitar crime e

contra-ordenação.

É que, como a mesma sublinha, sendo (também para nós) indiscutível

que o Direito de mera ordenação social protege bens jurídicos, há ainda que

constatar que por vezes protege bens jurídicos com dignidade penal (veja-se

v.g. a condução em estado de embriaguez, seja a sancionável com contra-

ordenação nos termos do art. 81.º do Código da Estrada seja a punível nos

termos do art. 292º do Código Penal; vejam-se as contra-ordenações e crimes

contra a economia; os crimes e as contra-ordenações ambientais, etc.).

54

MÁRIO FERREIRA MONTE, Lineamentos, Capt II, ponto 4 e Capt. III. Ponto 1. Note-se que com base no critério

distintivo proposto, na referida obra, o Autor formula uma síntese de hipóteses enquadrando cada uma no ilícito penal

ou no ilícito de mera ordenação social. Assim, sintetiza o seguinte:

“- condutas com relevância ética que põem em causa bens jurídicos que merecem e necessitam de tutela penal (ilícito

penal (IP) (o normal dos crimes);

- condutas com relevância ética, que põem em causa bens jurídicos que merecem tutela penal, mas não necessitam

dessa tutela, - ilícito de mera ordenação social (IMOS) ou outra tutela (p. ex., crimes que, pela natureza fragmentária

do Direito Penal, não necessitam de tutela penal em certas situações;

- condutas que isoladamente não chegam a ter relevância ética mas que, consideradas pelo seu potencial dano

cumulativo, põem em causa a convivência social – IP – ou apenas colocam em causa normas de ordenação social –

IMOS (p. ex., os crimes e as contra-ordenações ambientais);

- condutas com relevância ética que merecem e necessitam de pena a partir de um certo grau de lesão ou de perigo do

bem jurídico – IP (p. ex., condução sob efeito do álcool a partir de uma certa taxa de alcoolemia);

- condutas com relevância ética que merecem pena, mas não a necessitam abaixo de um certo grau de lesão ou de

perigo do bem jurídico – IMOS (p. ex., a condução sob efeito de álcool abaixo de uma taxa de alcoolemia);

- condutas sem relevância ética, que iolam normas que visam a ordenação social – IMOS (o normal das contra-

ordenações).”

55 JOSÉ DE FARIA COSTA, O perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pp. 317 e ss..

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

31

Por isso mesmo, ao critério distintivo da dignidade penal a referida

autora acrescenta outro: o da falta de necessidade de pena, referindo que “Daí

que se revele também necessário que a conduta violadora do bem jurídico

constitua, para este, um ataque absolutamente intolerável que a faça dever ser

sancionada com uma pena. Logo, ao cânone metodológico da dignidade penal,

há-de juntar-se o da necessidade ou merecimento de pena. De outro modo, a

conduta só será sancionada no âmbito do Direito Penal se, ao juízo de

dignidade penal – ao qual anda adrede “um limiar qualificado de danosidade ou

de perturbação ou abalo sociais – se juntar a necessidade de tutela penal, esta

entendida enquanto expressão do princípio de subsidiariedade e de ultima

ratio”.

Mas não fica ainda por aqui o auxílio distintivo. Importa ainda analisar a

diferenciação à luz de outra ideia avançada pela mesma autora: o da carência

da sanção contra-ordenacional.

Efectivamente, na eventual falta de dignidade penal e de necessidade de

pena, para estarmos perante a tipificação de uma contra-ordenação, há ainda

que aferir, se existe carência de sanção contra-ordenacional. Situando este

elemento como relevante sobretudo (e compreensivelmente) na distinção do

Direito contra-ordenacional por confronto com o Direito Penal secundário, há

que aferir, igualmente dentro da fluidez de cada momento histórico-social, se

uma conduta carece ou não de sanção contra-ordenacional. Refere assim a tal

propósito: “Diríamos amparados em AMELUNG e FARIA COSTA, que a essência

do direito de mera ordenação social “não” é. Apontamos, tão-somente, que ela

acontece, vai sendo (…) E como se vê, por aqui, neste preciso ponto, é

impensável não chamar à colação o princípio da subsidiariedade, para que

apela ROXIN e usá-lo, porém, não do jeito aludido por este autor, mas da forma

defendida por ULRICH WEBER, segundo o qual é necessário o uso de contenção

na tarefa legislativa de criação de contra-ordenações, tarefa essa sujeita aos

apertados princípios reitores do Estado de Direito Material, como, por exemplo,

o da necessidade de sanção contra-ordenacional. (…) Portanto, o correcto

talvez seja afirmarmos que o critério distintivo é dado pelo produto do “material”

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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social, encontrado num plano pré-jurídico – social, por consequência – depois

de trabalhado pela criminologia e política criminal”56.

É por causa deste critério assim definido pelos múltiplos vectores

somados (protecção de bens jurídicos com ou sem dignidade penal a que se

adicionar a necessidade ou não de pena e ainda a carência ou não de sanção

contra-ordenacional) que a autora distingue e categoriza dois tipos de contra-

ordenação: por um lado, relativamente às contra-ordenações que constituem

infracção às ordens da autoridade e Administração ou simples contra-

ordenações” que serão as que não têm a si subjacente um conteúdo ético

social, não protegendo assim bens jurídico-penais (sendo que aí bastará o

critério distintivo da falta de dignidade penal). Por outro lado, as contra-

ordenações, que protegem bens jurídicos com dignidade penal ou contra-

ordenações com conteúdo ético-social em que já é necessário lançar mão do

critério da carência da sanção contra-ordenacional ou da pena para perceber

se a conduta deve ser legislada como contra-ordenação ou como crime

(podendo acrescentar-se, na esteira de MÁRIO FERREIRA MONTE, que tal sucede

à luz de considerações de política criminal de cada momento histórico-social e

cientes, ainda assim, que este segundo tipo de contra-ordenações são a

excepção).

Tal perspectiva poderá parecer uma arrumação artificial na medida em

que o legislador teria desde logo que classificar as contra-ordenações como

sendo de um ou de outro tipo (já que tal distinção levaria a que passasse a

existir aquilo que a autora em causa denomina de “direito de mera ordenação

social a duas velocidades”, do qual se teria que expurgar, em coerência, a

palavra “mera”)57.

Contudo, e ante as virtualidades da distinção proposta e das teses

mistas às quais aderimos nos termos referidos, não vemos que tal fosse um

problema insuperável já que tal artificialidade não anda muito longe de outras

56

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação social, pp. 237-239.

57 ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação social,pp. 240 e 241 e 308.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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tarefas legislativas já existentes como, v.g., de classificação de contra-

ordenações como leves, graves ou muito graves.

O problema, esse sim, seria o de proceder a uma revisão profunda do

regime legal, com a criação de regimes distintos para cada um dos tipos de

contra-ordenação, podendo dizer-se, grosso modo, que o RGCO actualmente

existente seria adequado apenas para as que designaremos de simples contra-

ordenações e já não para aquele segundo tipo de contra-ordenações

protectoras de bens jurídicos com dignidade penal.

Estes são alguns dos principais critérios distintivos elencados ao nível do

tipo de ilícito (com relevância no regime jurídico a definir e ainda com

relevância para a concepção de culpa a traçar) sendo as referidas teses

sintomáticas do caminho feito e do caminho ainda por trilhar neste domínio das

contra-ordenações e ainda o sintoma da dificuldade da concretização de tal

tarefa em termos de consagração normativa.

2.4. A culpa nas contra-ordenações

Vejamos agora um outro elemento definidor da contra-ordenação a que o

legislador apelidou de “censurabilidade” (cfr. art. 1º do RGCO).

É dado adquirido que o legislador português bebeu a sua inspiração da

Lei alemã, pelo que, à semelhança do que sucede em tal Lei, consagrou-se

entre nós o carácter censurável da contra-ordenação. Efectivamente, na OWIG

de 1968 definia-se a figura da contra-ordenação (Ordnungswidrigkeitengesetz)

como censurável (Vorwerfbarkeit). Diziam os autores alemães que, nas contra-

ordenações, o agente não se conduz dolosa ou culposamente (Schuldhaft)

apenas merecendo uma censura social por meio de coima (Geldbusse) por ter

agido contrariamente aos seus deveres de cidadão de um Estado social58.

Mas poderemos, com rigor, falar de culpa?

Censurabilidade e culpa querem significar o mesmo?

58

Veja-se, a este propósito, HELIANA MARIA DE AZEVEDO COUTINHO, «O Direito de mera ordenação», p. 99.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

34

Entendem alguns autores que se pode ainda falar de culpa59, sem com

isso se deixar de sublinhar que é uma culpa com contornos diferentes da culpa

penal, sendo como o entendimento de que “a expressão desta censura não

envolve portanto, um sentido de retribuição ou expiação ética, ligado a uma

finalidade de recuperação do delinquente, mas exprime apenas que está

ausente o pensamento de qualquer mácula ético-social. Ora, um tal

esvaziamento do conteúdo ético-social de uma advertência desse tipo há-de

necessariamente, corresponder à libertação das categorias dos corolários

formais do Direito Criminal”60.

Tal culpa ou advertência tem em si suposta uma imputação subjectiva a

título de dolo ou negligência, conforme decorre do art. 8.º do RGCO.

Afigura-se-nos que, estando-se perante Direito que é sancionatório é de

culpa que falamos (independentemente de o legislador, influenciado pela

linguagem usada no ordenamento jurídico alemão em que se inspirou, usar a

palavra “censurabilidade”).

Do que vem de referir já se infere que, independentemente da questão

conceptual, esta culpa há-de ter algumas especificidades e pode ser uma mais

valia no sentido da distinção material entre crime e contra-ordenação, com

todos os efeitos quer teóricos quer práticos daí decorrentes.

Não nos alongaremos, por ora, nesta particular questão da culpa

considerando que sobre ela nos deteremos em ulterior capítulo com maior

acuidade, uma vez que é esse o objecto principal do presente escrito.

2.5. A coima (sanção principal)

De acordo com a noção legal, temos um último elemento definidor da

contra-ordenação: a sanção principal que é a coima.

59

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 29.

60 EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», p. 265.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

35

É relativamente comum distinguir crime e contra-ordenação por referência

à natureza das sanções de cada um, sobretudo quanto à sanção principal: a

coima61 por comparação com a pena, designadamente, de multa (de resto,

como vimos, o legislador parte desta diferença para o critério nominal formal

legalmente estabelecido no art. 1.º do RGCO).

A coima vem sendo entendida, nas palavras de ANTÓNIO LEONES DANTAS,

como uma “sanção que não se apresenta, desta forma, como expressão de um

juízo de reprovação dirigido pela colectividade a um dos seus membros que

põe em causa através da sua conduta valores essenciais à normalidade da

vida comum, mas apenas uma censura dirigida pela Administração a um dos

membros dessa colectividade, fundada no incumprimento do dever de não

obstar à execução da ordem definida”62.

Conforme já se referiu supra, existe uma corrente doutrinária que defende

não existir qualquer diferença material entre crime e contra-ordenação. Tal

doutrina, coerentemente, não pode deixar de entender que entre a pena de

multa e a coima não existem igualmente diferenças. MANUEL CAVALEIRO

FERREIRA, por exemplo entende que, a distinção entre coima e pena de multa é

meramente nominal já que ambas têm natureza penal e não civil ou

administrativa63.

Dizem outros que faltará na sanção principal contra-ordenacional – a

coima - o pathos ético que existe na censura penal com as consequências daí

extraídas ao nível da personalidade do agente.

À distinção baseada na sanção não é alheio o carácter apriorísticamente

mais drástico das sanções penais, quer aquelas que se aplicam a agentes com

culpa (penas), quer aqueloutras que se aplicam aos agentes perigosos

(medidas de segurança), sobretudo quando nos referimos às penas principais:

pena de prisão e pena de multa. Já no ilícito de mera ordenação social, a

61

Isto porque, como é sabido, existem inúmeras sanções acessórias no domínio contra-ordenacional (v.g., desde logo,

as elencadas no art. 21.º do RGCO).

62 ANTÓNIO LEONES DANTAS, Direito das Contra-ordenações – Questões Gerais, AEDUM, Braga, 2010, p. 75 (citado:

Direito das Contra-ordenações).

63 MANUEL CAVALEIRO FERREIRA, Direito Penal Português, Editora Verbo, Lisboa, 1981, pp. 15 e ss.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

36

sanção principal (pois que existem ainda as acessórias e até as sanções

substitutivas) é, por princípio, apenas patrimonial – a coima64.

De novo, ninguém duvidará da diferente natureza da sanção se comparar

pena de prisão com coima. Já a comparação da pena de multa com coima faz-

se de modo crescentemente difícil, desde logo porque ambas comungam da

característica da patrimonialidade (cfr. art. 47.º do Código Penal e art. 17.º do

RGCO) sendo ambas aplicadas pelo Estado (por via de Tribunais e das

entidades administrativas e, mais recentemente, por entidades reguladoras

que, ainda assim, são supervisionadas pelo Estado).

De todo o modo, existem diferenças assinaláveis entre ambas.

Enquanto a pena de multa, por regra, é averbada ao registo criminal, o

mesmo não sucederá com a coima (o mesmo sucedendo, v.g., no caso da

admoestação ser criminal ou contra-ordenacional – cfr. diferenças do art. 51.º

do RGCO e 60.º do CP).

Por outro lado, é ainda comum assinalar a diferença por via da

susceptibilidade de conversão da pena de multa em prisão subsidiária no caso

de não pagamento da pena de multa (art. 49.º do Código Penal), ao contrário

do que sucede em caso de incumprimento do pagamento da coima, que dará

lugar à mera execução do montante da mesma (cfr. arts. 88.º e sobretudo 89.º

do RGCO)65.

64

A figura da coima tem já longa tradição no nosso Ordenamento Jurídico. Diz-se a este propósito que a coima “(…) é

tributária de uma tradição que remonta aos tempos de fundação da nacionalidade; coimas e calúnias eram penas

pecuniárias que, no sistema penal da Idade Média, deviam ser pagas ao rei ou senhor da terra (às vezes também aos

próprios ofendidos) pelo agente de determinados delitos, ao lado das penas a que esses delitos pudessem dar lugar

(…) Posteriormente, e já no século passado, veio a novíssima Reforma Judiciária (1841) a tratar do processo das

coimas, no seu artigo 241.º (v. tb. Referências nos artigos 81.º e 302.º). (…) Não se pense, porém, com estas

referências de carácter histórico, que se tratou de “ressuscitar” uma designação; é talvez mais correcto falar de

“reavivar”, já que a expressão “coima” nunca deixou de ter cabimento no Direito sancionatório português. Assim reza o

artigo 485.º do Código Penal de 1886 que “as coimas continuarão a ser julgadas em todos os casos em que se acham

determinadas pelas posturas e regulamentos municipais, actualmente em vigor e feitos na conformidade das leis.” – cfr.

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», p.162.

65 Com o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro passou a prever-se a possibilidade de a coima ser substituída por

trabalho a favor da comunidade nos termos previstos no art. 89.º-A do RGCO, passando ainda a prever-se a

possibilidade de substituição da coima por admoestação nos termos do art. 51.º do RGCO

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

37

Ainda assim, não se olvide, como refere J. LOBO MOUTINHO que a velha

distinção com base na convertibilidade ou não em prisão subsidiária está um

pouco atenuada com a recente possibilidade de aplicação da multa a pessoas

colectivas (cfr. art. 90.º-B, n.º 7, do Código Penal na versão alterada pela Lei

n.º 59/2007, de 04 de Setembro)66, o que, ainda assim, tem mais que ver com

o destinatário da sanção do que com a natureza da própria sanção.

São pois realidades diferentes, com finalidades igualmente diferentes,

sobretudo nas designadas simples contra-ordenações em que apenas está em

causa, não uma qualquer finalidade ressocializadora mas apenas o sancionar

da violação de proibições legais67.

De todo o modo, a diferenciação por via da sanção não deixa de suscitar

um certo sentimento de perplexidade e ambiguidade… Por um lado, é certo

que face aos traços distintivos aludidos, não deixa de nos ajudar a autonomizar

a contra-ordenação do crime. Contudo, na prática, os elevados limites das

molduras das coimas abstractamente puníveis e elevado quantum concreto de

coima aplicado pelas autoridades administrativas e Tribunais por contraposição

a uma alegada brandura dos Tribunais na aplicação da pena de multa conduz

a uma aproximação do ponto de vista das consequências das contra-

ordenações ao mundo penal.

Com efeito, bastará sobrevoar alguns tipos contra-ordenacionais

(sobretudo em regimes sectoriais) para facilmente constatarmos a severidade

de algumas molduras das coimas abstractamente previstas (a título

meramente exemplificativo veja-se v.g. o art. 22.º, da Lei Quadro das Contra-

ordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto alterada pela Lei n.º

89/2009, de 31 de Agosto) que prevê que “1 - A cada escalão classificativo de

gravidade das contra-ordenações ambientais corresponde uma coima variável

consoante seja aplicada a uma pessoa singular ou colectiva e em função do

66

J. LOBO MOUTINHO, Direito das Contra-ordenações – ensinar e investigar, Universidade Católica Editora, Lisboa,

2008, p. 37 (citado: Direito das Contra-ordenações).

67 Sobre a inexistência de finalidade preventiva positiva de prevenção especial de socialização na sanção contra-

ordenacional e ainda sobre as dúvidas sobre a existência de prevenção geral negativa da mesma cfr. MÁRIO FERREIRA

MONTE, Lineamentos, Capt. III. 2 b).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

38

grau de culpa, salvo o disposto no artigo seguinte. 2 - Às contra-ordenações

leves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas

singulares, de (euro) 200 a (euro) 1000 em caso de negligência e de (euro)

400 a (euro) 2000 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas,

de (euro) 3000 a (euro) 13 000 em caso de negligência e de (euro) 6000 a

(euro) 22 500 em caso de dolo. 3 - Às contra-ordenações graves

correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares,

de (euro) 2000 a (euro) 10 000 em caso de negligência e de (euro) 6000 a

(euro) 20 000 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de

(euro) 15 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a

(euro) 48 000 em caso de dolo. 4 - Às contra-ordenações muito graves

correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares,

de (euro) 20 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a

(euro) 37 500 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de

(euro) 38 500 a (euro) 70 000 em caso de negligência e de (euro) 200 000 a

(euro) 2 500 000 em caso de dolo.”

O mesmo se diga quanto à gravidade de algumas das sanções

acessórias previstas. Basta pensar na, frequentemente sentida como gravosa,

sanção acessória de inibição de conduzir de um mês a um ano (art. 147.º do

Código da Estrada) ou na inibição do exercício de funções que se exerciam

profissionalmente (v.g. art. 404.º do Código de Valores Mobiliários).

Bastarão, assim cremos, estes exemplos, para ilustrar que as contra-

ordenações não podem ser olhadas como meras “bagatelas”.

Na prática estamos pois perante sanções gravosas para o arguido. Não

será, de resto, despropositado afirmar que com a aplicação de uma ou duas

coimas ficará não raras vezes em causa a continuação e viabilidade financeira

das pequenas e médias empresas que abundam em Portugal. No que tange às

sanções acessórias há até autores que referem que as actualmente previstas

são tão vastas e tão gravosas que “faz o leitor espantar-se com a afirmação

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

39

(verdadeira) de que a contra-ordenação é um ilícito menos grave do que o

ilícito criminal”68.

E se, em regra, as sanções são bastante gravosas, tal poderá demandar

direitos e garantias tendencialmente maiores69.

De resto, os próprios preâmbulos dos Decretos-Lei na área contra-

ordenacional confessam isso mesmo. Assim, no Decreto-Lei n.º 356/89, de 17

de Outubro, que introduziu alterações ao RGCO na versão do Decreto-Lei n.º

433/82, de 27 de Outubro refere-se “Passados que foram seis anos sobre a

entrada em vigor do referido diploma, importa introduzir-lhe alterações ditadas

pela experiência da sua aplicação e, ainda, pelas transformações entretanto

operadas, quer na realidade social e económica, quer no ordenamento jurídico

português. Revela-se necessário o reforço das garantias dos particulares”.

Ainda mais sintomático do referido, menciona o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14

de Setembro, que introduziu novamente alterações ao Decreto-Lei n.º 433/82,

de 27 de Outubro, que “regista-se um crescente movimento de neopunição,

com o alargamento notável das áreas de actividade que agora são objecto de

ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas

de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias

especialmente severas. Compreensivelmente, não pode o direito de mera

ordenação continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais. É

nesta perspectiva que deve entender-se a presente reforma do Regime Geral

das Contra-ordenações, especialmente orientada para o efectivo reforço das

68

Neste sentido AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal- Parte Geral, pp. 132 e 133.

69 Chegam mesmo a suscitar-se questões de constitucionalidade junto dos nossos Tribunais em virtude da

perplexidade de se sancionar mais severamente o ilícito contra-ordenacional do que o ilícito criminal. Sobre tal questão

veja-se o interessante Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.10.2007, Proc. n.º 3470/06.0TBVIS.C1, disponível

em www.dgsi.pt (como todos doravante sem indicação de outra fonte), e em que se decidiu que “1- Nada obsta a que o

legislador puna com maior gravidade um ilícito de natureza contra-ordenacional do que um outro de natureza criminal.

Basta que a perspectiva politico-criminal que justifica a adopção de um ilícito contra-ordenacional punido com um nível

de gravidade superior a qualquer ilícito de natureza criminal, com o séquito de sanções acessórias que se lhe

acrescentem, se prefigure, em determinado momento histórico, como aquelas que de forma mais eficiente satisfaz as

necessidades de segurança e tranquilidade da comunidade jurídica. 2- Não fere o princípio da igualdade consagrado

no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa o facto de o legislador punir com maior gravame um ilícito de

natureza contra-ordenacional do que um ilícito criminal.”

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

40

garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da

Administração.”

A doutrina tem estado atenta a tais aparentes paradoxos práticos,

sublinhando que esta severidade na aplicação das sanções contra-

ordenacionais importa algum beliscar da pretendida autonomia do Direito das

contra-ordenações. Neste sentido veja-se FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO

quando refere que “No plano sancionatório a gravidade das sanções criadas

desde 1982 põe igualmente em causa a desejável autonomia e diferenciação

entre os sistemas penal e contra-ordenacional. Nesta matéria interessa reter

fundamentalmente o alargamento excepcional das coimas em certos sectores

de actividade e o progressivo alargamento das sanções acessórias

estabelecidas em diplomas avulsos”70. Pese embora a ambiguidade referida, a

análise das diferentes sanções não deixa de ser útil no trilhar da delimitação

material possível de contra-ordenação71.

De todo o modo, não deixa a coima de ser, a nosso ver, um relevante

factor distintivo e de autonomização da figura do ilícito contra-ordenacional.

2.6. Outros elementos auxiliares na delimitação da figura da contra-

ordenação: as especificidades processuais do Direito das Contra-

ordenações

A par dos critérios referidos relativos aos elementos da noção formal de

contra-ordenação (facto ilícito típico; censurável; cominado com coima),

sublinham alguns autores que as especificidades processuais do RGCO por

contraposição ao Código de Processo Penal nos ajudam também a delimitar

70

Neste sentido veja-se FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «O Ilícito de mera ordenação social e a erosão do

princípio da subsidiariedade da intervenção penal», in AA. VV., Direito Penal Económico e Europeu: Textos

Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 254 (citado: «O ilícito de mera ordenação social e a

erosão»).

71 Alguns AA. consideram artificiosa e insinuam a inconstitucionalidade desta construção do ilícito contra-ordenacional

partindo da sua sanção – cfr. PETER HÜNERFELD,« A pequena criminalidade e o processo penal», Revista de Direito e

Economia, 4, n.º1, Almedina, 1978, pp. 29 e ss.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

41

materialmente a figura da contra-ordenação. De resto, vimos já que se fala de

uma certa autonomia processual neste domínio.

Por exemplo, FREDERICO DE LACERDA COSTA PINTO refere, a este propósito,

que “Uma possível contraposição passa pela articulação de critérios

substantivos com critérios processuais, o que não deve causar estranheza pois

o processo é uma componente constitutiva do conceito de responsabilidade

penal nos Estados de Direito. Neste sentido, as contra-ordenações poderiam

corresponder a uma ordem técnica de deveres instrumentais, enquanto os

crimes ficariam reservados apenas para casos de adequada tutela dos bens

jurídicos essenciais (de natureza individual ou supre individual) (…). O critério

processual pode por isso constituir um filtro adicional: é contraproducente

sujeitar aos crivos da intervenção penal clássica factos ilícitos que não podem

ter uma adequada e tempestiva resolução através de um processo criminal,

pois isso acaba por sujeitar a vigência da lei penal substantiva a uma perigosa

erosão”72.

Também JOSÉ DE FARIA COSTA parece apontar no sentido de as

especificidades processuais serem delimitadoras do Direito das Contra-

ordenações na sua relação com o Direito Penal, ao referir que existem “pontos

onde se cristalizam específicas características do regime jurídico das contra-

ordenações” sendo a diferenciação feita “tendo como referente de contraste o

regime jurídico que enforma o Direito Penal”73.

FIGUEIREDO DIAS afirma mesmo que as especificidades processuais

ajudam “a muitos títulos, poderosamente” a consolidar a distinção material

entre o Direito Penal e Direito das Contra-ordenações74.

Sabemos que o processo contra-ordenacional está indelevelmente

marcado pela dicotomia Penal/Administrativo chegando mesmo a afirmar-se

que o processo contra-ordenacional tem estrutura complexa “(…) porque, no

72

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «As Codificações», Proc. 94.

73 Cfr. JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais, pp. 35 a 48, sendo certo que ainda se não tinha consagrado a

responsabilidade penal das pessoas colectivas (cfr. alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de

04 de Setembro).

74 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, p 149.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

42

essencial, resultou da fusão de um verdadeiro processo administrativo do tipo

sancionador (desde a instauração até à decisão) com um autêntico processo

jurisdicionalizado do tipo criminal (a partir da impugnação contenciosa da

decisão administrativa)” havendo até quem vislumbra o processo contra-

ordenacional como um “meio termo” entre o processo administrativo

sancionador e o Direito Criminal75.

As especificidades processuais são inúmeras (v.g. competência para

investigar e decidir da mesma entidade; impugnação judicial; não conversão da

coima em prisão subsidiária, fase administrativa e eventual fase judicial, etc.),

não cabendo aqui elencá-las de modo exaustivo, importando apenas reter, no

que ora nos importa, que as mesmas são vistas por alguns autores como

critério adicional para delimitar a área das contra-ordenações da área penal.

Explanados, em grossas pinceladas, os critérios que vêm sendo

avançados na tentativa de delimitar a figura da contra-ordenação de outras

figuras jurídicas, designadamente da do crime, não se nos afigura, pelo menos

face à actual dogmática do Direito Contra-ordenacional, poder afirmar um

único critério em termos absolutos que caracterize universalmente a contra-

ordenação. De todo o modo, e embora o legislador (no acto político e

pragmático que é legislar) deva em cada caso aferir da qualificação de uma

conduta como crime ou contra-ordenação, e com o devido respeito pela tese

contrária, não se nos afigura que a diferença do ilícito possa ser reconduzida

apenas a um factor quantitativo, antes havendo características materiais

delimitadoras (e, nessa medida, autonomizadoras) da figura da contra-

ordenação.

Compreenderá o leitor que não cuidaremos de tratar de todas essas

características, pois tal não caberia nos espartilhos do presente escrito... O

que nos propomos é tão-somente, e ainda assim, de modo necessariamente

incompleto, aprofundar a distinção entre crime e contra-ordenação quanto ao

elemento da culpa, simpatizando nós com a ideia exposta de que existem dois

75

MÁRIO GOMES DIAS, «Breves reflexões», pp. 91-110.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

43

tipos de contra-ordenações: as que protegem bens jurídico-penais e as que

não protegem bens jurídicos com tal dignidade.

No entanto, antes de se arregaçarem as mangas para tal estudo da culpa

importa analisar, mesmo que brevemente, o estado da autonomia do Direito

Contra-ordenacional, que aqui e ali fomos já aflorando.

Isso se fará, pois, no capítulo seguinte, enquanto premissa do estudo

que se pretende empreender ao nível da culpa contra-ordenacional.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

44

III. O ACTUAL DIREITO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES: A SUA (AINDA

ALGO FRÁGIL) AUTONOMIA

1. Estado actual do Direito das contra-ordenações

Qual então o estado de arte actual no domínio da autonomização do

Direito das contra-ordenações?

Qual a sua posição relativa, o seu estado de autonomia, face a outros

ramos do Direito, como o Direito Civil, o Direito Administrativo e, sobretudo,

face ao Direito Penal (sendo certo que o nosso modelo penal total passa pela

existência de um Direito Penal clássico ou de justiça, Direito Penal secundário

e Direito de mera ordenação social)?

Não existem conclusões sólidas a tal propósito. De todo o modo, mais

uma vez, não obstante a dificuldade da delimitação, devemos esforçar-nos por

fazê-la pois do correcto enquadramento dependerão opções de regime com

consequências dogmáticas e práticas.

Vejamos.

As relações do Direito das contra-ordenações v.g. com o Direito Civil, com

o Direito Penal e com o Direito Administrativo são ainda muito fluídas e

indefinidas, sendo tentador (mas falacioso) pensá-lo como um Direito Penal

menor ou então como um Direito Administrativo sancionatório. Ao ponto de

alguns fazerem mesmo o ponto da situação dizendo que “Nem a doutrina nem

a jurisprudência conseguiram ainda discernir claramente se o Direito das

contra-ordenações deve ser visto como um ramo de direito quase-penal ou

para-penal, ou pelo contrário, essencialmente autónomo e dotado de uma

dogmática própria”76.

Como já referimos antes, não seremos nós que iremos, no presente

escrito, superar todas essas indefinições, e isto por duas razões essenciais: a

76

NUNO B.M. LUMBRALES, Sobre o conceito, p. 7.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

45

primeira, porque não é esse o tema do presente trabalho e, a segunda, mais

decisiva, porque para tal não teríamos engenho e arte.

O que nos propomos é, pois, bastante mais modesto: apenas nos

referiremos brevemente ao que cremos serem as linhas principais da

discussão em causa na medida em que tal nos possa servir de premissa na

discussão sobre o tema culpa nas contra-ordenações. Isto porque, a relação

do Direito das contra-ordenações com o Direito Civil, Direito Penal, com o

Direito Administrativo e, em diferente medida, também com o Direito

Constitucional não é indiferente ao estudo da culpa que se pretende

empreender, mais a mais quando é certo que no maior ou menor alcance de

tais relações se joga a maior ou menor autonomia do Direito das contra-

ordenações77.

2. As relações do Direito contra-ordenacional com o Direito

Constitucional como alavanca no sentido da autonomização do

Direito Contra-ordenacional

Tem-se hoje mais ou menos por pacífico que o Direito das contra-

ordenações é um Direito sancionatório sempre iluminado pela estrela polar do

Direito Constitucional.

Qualquer Direito de natureza sancionatória importa, com maior ou menor

extensão, uma restrição de direitos fundamentais e, assim sendo, também no

77

Neste sentido vejam-se os ilustrativos ensinamentos de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS quando refere que o ilícito de

mera ordenação social vem sendo um dos «enfants-chéries da literatura jurídico-penal portuguesa: de HENRIQUES DA

SILVA a CAVALEIRO FERREIRA, de BELEZA DOS SANTOS a EDUARDO CORREIA, ninguém escapou – nem eu próprio! – ao

fascínio desta matéria, assim recorrente na história da nossa especulação doutrinária. Circunstância esta que não

revela não se tratar de os estudiosos se sacrificarem a uma “moda”, mas de tentarem vencer as múltiplas resistências

oferecidas por um nódulo problemático forte; tão forte que nele se jogam questões como a da função do Direito Penal e

dos seus limites e das relações entre o Direito Penal e o Direito Administrativo (eu acrescentaria ainda: e o Direito

Constitucional).» - in «O movimento», p. 20.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

46

Direito das contra-ordenações se convocará a ideia de concordância prática

(art. 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

Parece ainda pacífico afirmar-se que não é à Constituição que caberá

definir as categorias dogmáticas de crime e contra-ordenação. “Tais categorias

pré-existem. O que a Constituição faz – tarefa nobre – é conformá-la às

específicas finalidades normativas que cabem à Lei Fundamental. Nada mais.

Mas também nada menos”78.

O que já não se mostrou desde sempre pacífico foram a própria

existência e competências para tipificar contra-ordenações no quadro legal

português, suscitando-se dúvidas de constitucionalidade79.

Efectivamente, logo aquando da publicação do Decreto-Lei n.º 232/79, de

24 de Julho se questionou a sua constitucionalidade, sobretudo porque,

embora concebido como Lei-quadro do regime das contra-ordenações,

pretendia transformar todas as contravenções em contra-ordenações (art. 1.º,

n.º 3 da mesma).

A Comissão Constitucional, no seu Parecer n.º 4/8180, veio a entender

que, a tal propósito, não seria de falar em qualquer inconstitucionalidade, vindo

o Conselho da Revolução a pronunciar-se nesse mesmo sentido na Resolução

n.º 71/81 publicada no Diário da República, I Série, 83, de 09 de Abril de 1981.

Em 1982 surge um novo Regime Geral das contra-ordenações,

novamente ensombrado por dúvidas constitucionais.

Desde logo, instalou-se a dúvida sobre a constitucionalidade orgânica de

tal diploma.

O actual art. 165.º, n.º1 alíneas c) e d) da Constituição da República

Portuguesa estabelece que “É da exclusiva competência da Assembleia da

República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:

(…) c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos

78

JOSÉ DE FARIA COSTA, «Crimes e contra-ordenações – afirmação do numerus clausus na repartição das infracções

penais e diferenciação qualitativa entre as duas figuras dogmáticas», Questões Laborais, ano VIII, n.º 17, Coimbra

Editora, Coimbra, 2001, p. 5. (citado: «Crimes e contra-ordenações»).

79 Para mais desenvolvimentos cfr. TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, pp.123 e ss.

80 In Pareceres da Comissão Constitucional, INCM, 14.º vol, 1983.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

47

pressupostos, bem como processo criminal; d) Regime geral de punição das

infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social

e do respectivo processo”.

Decorre, pois, da Constituição que o legislador apenas pode criar crimes,

contra-ordenações e infracções disciplinares (princípio do numerus clausus).

Suscita-se assim a questão de ser ou não inconstitucional, após 1982, criar

novas contravenções, sendo que o Tribunal Constitucional as admitiu em

matéria estradal (cfr. Acórdãos n.ºs 308/94 e 61/99 do Tribunal

Constitucional81).

Contudo, à data da publicação do Decreto-Lei de 1982 a redacção

constitucional era outra. À data, referia o art. 167.º da CRP que era da

competência exclusiva da Assembleia da República legislar em matéria

criminal, sendo que a alusão às contra-ordenações (nota importante) apenas

passou a ser feita precisamente com a revisão constitucional de 1982. A

questão da inconstitucionalidade orgânica do diploma de 1982 não tardou em

surgir já que o mesmo provinha do Governo (com autorização legislativa) e se

duvidava se a matéria das contra-ordenações era ou não criminal. A questão,

com a redacção resultante da referida revisão constitucional, ficou

ultrapassada em virtude de o RGCO de 1982 ter sido feito ao abrigo de

autorização legislativa.

Questão diferente era a de saber se a reserva legislativa abrangia apenas

o RGCO ou ainda a consagração individual de contra-ordenações em termos

sectoriais.

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ia no sentido de a qualificação individual e

concreta de uma determinada conduta como contra-ordenacional ou criminal

poder ser objecto de fiscalização de constitucionalidade, já que “Decerto, não é

– como alguém com infundado sarcasmo criticou a BRICOLA -, não é à

Constituição que se pode pedir que decida em todos os casos e em cada caso,

81

Disponíveis em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., p. 885 e Diário da República, II série, 31 de Março de

1999 respectivamente, referidos por LOPES DO REGO, «Alguns Problemas Constitucionais do Direito das Contra-

ordenações», Questões Laborais, ano VIII, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 13 (citado: «Alguns Problemas

Constitucionais»).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

48

de forma imediata, se uma certa conduta deve constituir um crime ou antes

uma contra-ordenação. Mas não tenho dúvida que é a ela que importa recorrer

quando se suscite a questão de saber se foi ou não respeitado o princípio

material que há-de estar na base da decisão de qualificação legislativa e

comandá-la. Tanto mais (…) quanto uma tal qualificação releva de um ponto

de vista jurídico-constitucional positivo e pode, em certos casos, ser objecto de

fiscalização de constitucionalidade”82. No mesmo sentido parece ir MIGUEL

PEDROSA MACHADO ao entender ser possível a arguição da

inconstitucionalidade material dos diplomas que criem contra-ordenações

como tipos substitutivos de infracções penais mas já não da Lei-Quadro em

si83.

De todo o modo, em face da redacção constitucional de 1982, JOSÉ DE

FARIA COSTA refere que, ao contrário do que sucede com as normas

incriminadoras, só é matéria de reserva relativa da Assembleia da República a

definição do RGCO e não já a individual e concreta definição das contra-

ordenações, pelo que a criação de novas contra-ordenações pode ser feita por

acto legislativo do Governo84.

Também os constitucionalistas GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA

pugnam pela interpretação da al. d) do n.º 1 do art. 165.º da CRP no sentido

de que só é obrigatória a autorização da Assembleia da República no caso de

se legislar sobre o respectivo regime geral85.

Podemos assim hoje assentar que será da exclusiva competência da

Assembleia da República (salvo autorização ao Governo) legislar sobre o

regime geral das contra-ordenações e seu processo, mas já será da

competência concorrente da Assembleia da República e do Governo definir,

dentro dos limites do regime geral, as individuais contra-ordenações. Isto

mesmo se plasmou no Acórdão n.º 308/94 do Tribunal Constitucional a que se

82

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 27.

83 MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», pp. 190 e ss..

84 Cfr. JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais, pp. 46-48.

85 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol II, Coimbra

Editora, Coimbra,1985, pp.197-200.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

49

aludiu supra. Assim, na súmula levada a cabo pelo ilustríssimo processualista

LOPES DO REGO «A tipificação de contra-ordenações ou contravenções que não

colidam com matérias atinentes aos “direitos, liberdades e garantias” e se

conforme inteiramente com o respectivo regime geral, definido pela lei quadro

em vigor, não está sujeita à reserva de lei», e isto é tanto mais relevante

quanto «A questão que mais frequentemente se vem suscitando no âmbito do

direito contra-ordenacional é, aliás, a que decorre da alegada

inconstitucionalidade orgânica de normas constantes de diplomas legais que –

desprovidos de credencial parlamentar bastante – afrontem o regime geral de

tal ilícito, ao estabelecerem “coimas” cujo limite máximo ultrapassa o

consentido pela respectiva “lei quadro”»86.

Mas, tal como deixámos referido supra, não deixaram também de surgir

dúvidas de constitucionalidade material ao diploma de 1979.

É que aí se estatuía a competência das autoridades administrativas para

aplicação das sanções prevendo ainda, mesmo que a título excepcional, casos

de responsabilidade contra-ordenacional objectiva. Suscitava-se pois a

questão de saber se, estando-se perante Direito sancionatório não deveria

haver aqui aplicação judicial das sanções, recusando-se ainda a possibilidade

de responsabilidade objectiva e o preceito que admitia a detenção de um

suspeito pelo prazo de vinte e quatro horas para identificação.

Hoje, quer do ponto de vista orgânico quer material, as relações entre o

Direito contra-ordenacional e o Direito Constitucional são, como desejável,

mais serenas.

Está hoje delimitada a reserva de lei neste ponto. Por outro lado, na

revisão constitucional de 1997, o legislador constitucional estatuiu no art. 32.º,

n.º 10 que “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer

processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência

e defesa”, assim contribuindo para uma visão mais autónoma do Direito das

contra-ordenações. Assim, “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de

sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou

86

LOPES DO REGO, «Alguns Problemas Constitucionais», p. 16.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

50

qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-

se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação,

pois que só há defesa perante uma acusação. (…) O direito de se defender é

por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma

exigência fundamental do Estado de Direito material”87.

Afigura-se-nos, aliás, que o Direito Constitucional (sobretudo nos

impulsos constitucionais de 1982 e também em 1997) foi uma alavanca para

uma maior autonomização do Direito das contra-ordenações já que alude ao

Direito das contra-ordenações como algo distinto do Direito Criminal prevendo

um regime mais flexível deste ramo comparativamente com o do Direito Penal.

Refere MÁRIO FERREIRA MONTE a tal propósito “O regime constitucional do

Direito das contra-ordenações não é tão implicativo, tão restritivo e tão

garantístico como o é em relação ao Direito Penal, e por isso vem a ser mais

flexível, mas, par cause, também mais nebuloso”88.

Com efeito, o Direito Constitucional não é hoje um óbice a uma maior

autonomização do Direito das Contra-ordenações. Ao contrário, ele vem

sedimentando a ideia de que se trata de um ramo jurídico autónomo (referindo-

se a tal figura em vários artigos constitucionais, v.g., arts. 32.º, n.º 10, 37.º, n.º

3, 165.º, n.º 1 al. d), 227.º, n.º 1 al. q), 282.º, n.º 3 da CRP).

Já quanto às relações do Direito contra-ordenacional com o Direito

Administrativo e com o Direito Penal as coisas não serão tão simples, como

veremos em seguida (não deixando ainda de ser útil a sua comparação com

outros ramos, como o do Direito Civil).

87

JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 363.

88 MÁRIO FERREIRA MONTE, Lineamentos, Capt. II., pontos 1 e 2.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

51

3. As relações do Direito contra-ordenacional com outros ramos do

Direito (Direito Civil, Direito Administrativo e Direito Penal e seus

processos); O Direito das contra-ordenações como ramo autónomo

enquadrável no Direito Público sancionatório

Como dizíamos, se as relações entre o Direito das contra-ordenações e o

Direito Constitucional se podem ter hoje por serenas, o mesmo não se pode

ainda dizer das relações com o Direito Penal e o Direito Administrativo, sendo

que aquele ramo do Direito se diferencia ainda, como é óbvio, do Direito Civil.

Assim, a delimitação e a autonomia joga-se, pois, e desde logo, nas

relações com o Direito Civil.

Pegando nas palavras de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “O problema

reside hoje, como no início, na delimitação das fronteiras do direito contra-

ordenacional. E não apenas em relação ao Direito Penal, mas também, e

crescentemente, em relação ao Direito Civil. É que a avalanche legislativa no

âmbito do Direito das contra-ordenações invade muitas vezes o espaço

clássico do próprio direito civil, como sucede nos casos em que as contra-

ordenações tutelam direitos e interesses estritamente subjectivos”89.

De resto, mesmo sob o ponto de vista adjectivo, não raras vezes se

colocam em cima da mesa as relações do Direito contra-ordenacional com o

Direito Processual Civil ao nível da subsidiariedade.

A questão é sobretudo pertinente quando o RGCO seja omisso sobre

uma determinada matéria processual, e bem assim o seja o CPP (para o qual

o art. 41.º do RGCO remete) mas se possa encontrar solução no CPC (por via

de nova remissão por força do art. 4.º do CPP).

Tal questão de exequibilidade prática da aplicação subsidiária do CPC ao

domínio contra-ordenacional foi já testada a propósito, por exemplo, da

aplicabilidade do art. 150.º do CPC (apresentação a juízo dos actos

processuais, matéria actualmente regulada no art. 144.º na redacção dada

pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) ao prazo do art. 59.º, n.º 3 do RGCO

89

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p.12.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

52

relativamente ao envio às autoridades administrativas, pelo correio registado,

de recurso de impugnação judicial.

Esta questão veio mesmo a ser objecto do Acórdão Uniformizador de

Jurisprudência n.º 1/2001, de 20 de Abril de 2001 (D.R. nº 93, série I-A, de 20

de Abril de 2001). Em tal Acórdão entendeu-se que o art. 150.º do CPC nada

tinha de específico quanto ao ramo processual civil, aplicando-se assim ao

processo penal pela porta que o art. 4.º do CPP lhe abre. Entendeu-se em tal

aresto jurisprudencial que não sendo o Direito contra-ordenacional um ilícito

penal administrativo mas antes aproximado do Direito Penal o que sucede no

âmbito do CPP (aplicação do CPC ex vi art. 4.º do CPP como referiu também o

AUJ n.º 2/2000) deverá suceder de igual modo no âmbito do RGCO (aplicação

CPC ex vi art. 4.º do CPP ex vi art. 41.º do RGCO).

Uniformizou-se assim Jurisprudência no seguinte sentido: “Como em

processo penal, também em processo contra-ordenacional vale como data da

apresentação da impugnação judicial a da efectivação do registo postal da

remessa do respectivo requerimento à autoridade administrativa que tiver

aplicado a coima – artigos 41.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de

Outubro, 4.º do Código de Processo Penal e 150.º, n.º 1 do Código de

Processo Civil e Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2000, de 07 de

Fevereiro de 2000” - cfr. Acórdão uniformizador de Jurisprudência de 08 de

Março de 2001, Proc. n.º 00P3291.

PAULA MEIRA LOURENÇO, em comentário a tal Acórdão defende ser esta a

boa jurisprudência na medida em que a ideia subjacente ao então art. 150.º do

CPC quanto à utilização de novos meios de comunicação para entrega de

peças processuais se aplicam ao processo contra-ordenacional já que se visa

em geral uma maior comodidade das pessoas que se socorrem da Justiça,

bem como o descongestionamento das secretarias judiciais, uma maior

agilização e desbrurocratização de procedimentos, propiciadora de maior

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

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celeridade, não sendo ainda de olvidar o contributo para a eliminação de

diferenças territoriais que o uso de tal novos meios de comunicação importa90.

Relações com o ramo civil (e processual civil) à parte, com maior relevo, é

de sublinhar que ao longo dos tempos o Direito das contra-ordenações foi

fazendo um movimento pendular, ora se aproximando do Direito Administrativo

ora do Direito Penal.

Importa desde logo dar conta que existe uma corrente (hoje minoritária

mas com alguma expressividade) que aproxima mais o Direito das contra-

ordenações do Direito Administrativo do que do Direito Penal.

Nem penalistas nem administrativistas duvidam que ilícito penal e ilícito

administrativo assumem contornos distintos.

Vejamos então o que a doutrina foi dizendo ao longo do tempo a tal

propósito.

Já em 1945 BELEZA DOS SANTOS91 tentava clarificar os limites entre tais

ilícitos, sendo que a própria comissão revisora do projecto de EDUARDO

CORREIA da parte geral do Código Penal, logo na sua primeira sessão, aflorou

o tema da distinção entre ilícito criminal e ilícito administrativo92.

Num ponto de vista administrativista, MARCELLO CAETANO chamava a

atenção para a distinção que há que fazer entre o ilícito administrativo

(pertencente ao “Direito do bem-estar social” a que presidem ideias de

prevenção) e ilícito penal (Direito repressivo), sendo que, entre um e outro,

existe espaço para o ilícito contra-ordenacional93.

DIOGO FREITAS DO AMARAL, parte de dois diferentes tipos de bens jurídicos

e passa ainda pela distinção entre prevenção e repressão, enunciando que “o

Direito Penal visa proteger a sociedade contra os factos ilícitos graves que nela

90

PAULA MEIRA LOURENÇO, Da aplicação do disposto no artigo 150º n.1 do CPC ao direito de mera ordenação social,

anotação ao “assento” n.º 1/2001 de 20 de Abril, consultável em http://www.cmvm.pt/CMVM/Publicacoes/Cadernos/Documents/d7546d15ad8041cfa9be04f43fe7a694paula_laurenco.p

df , consultado a última vez em 20.08.2012.

91 BELEZA DOS SANTOS, «Ilícito penal administrativo e ilícito criminal», Revista da Ordem dos Advogados, 5, 1945, pp. 39

e ss..

92 Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Geral do Código Penal, 1ª sessão, Boletim do

Ministério da Justiça 140, 1964, pp. 235 e ss..

93 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 1980, pp. 33 e ss..

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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podem ter lugar, e protege-a estabelecendo para esses factos as sanções

mais graves que a ordem jurídica permite aplicar. Ora, o Direito Administrativo

tem outros objectivos, como já sabemos: visa a satisfação das necessidades

colectivas de segurança, cultura e bem-estar. Quanto à cultura e bem-estar

nenhuma dúvida haverá, porque as diferenças são óbvias. Já quanto à

segurança (…) enquanto o Direito Penal é um direito repressivo (…) o Direito

Administrativo é, em matéria de segurança, essencialmente preventivo”. O

ilustre administrativista dá mesmo o exemplo das contra-ordenações estradais

como fazendo parte do Direito Administrativo, dizendo que “O Direito

Administrativo, através de um dos seus diplomas, que é o Código da Estrada,

impõe um certo número de regras de prudência quanto à condução de

automóveis (…) Se o condutor violou essas regras, ofendendo o Código da

Estrada, cometeu uma contra-ordenação: esta é a forma típica do ilícito

administrativo (…) Actualmente, assiste-se a um amplo movimento pragmático

de descriminalização, que levou a criar outro tipo de ilícito administrativo, ou

pelo menos não criminal: o chamado ilícito de mera ordenação social”94. Este

critério é considerado por MARCELO REBELO DE SOUSA como excessivamente

simplista pelo que sugere uma distinção na qual se reserva o Direito

Administrativo para a tutela de interesses públicos relevantes mas não

essenciais para a colectividade, já que os essenciais serão tutelados pelo

Direito Penal95.

Outros autores administrativistas, como MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA vão

até mais longe, entendendo que o ilícito de mera ordenação social estando

integrado no Direito Administrativo deverá pertencer à jurisdição administrativa

(propondo uma distinção entre Direito Administrativo e Penal não apenas com

base nas ideias de prevenção/repressão mas também nas de

relevância/irrelevância ética das condutas)96, o que, quanto a nós é ir longe de

mais. Acerca desta tese de MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA refere MIGUEL PEDROSA

94

DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo – Vol. I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 189 e

190.

95 MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Vol I, Lex, Lisboa,1990, p. 62.

96 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, I, Almedina, Lisboa, 1980, pp. 78 -82.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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MACHADO que «a posição deste administrativista acerca da integração do ilícito

meramente ordenativo no Direito Administrativo é um bom exemplo do risco

que se corre com esta “descriminalização” de parte das infracções penais,

pois, deixando de estar em causa a sua consideração autónoma com

suficientes garantias por parte do cidadão, realiza-se não uma

descriminalização, mas uma pura e simples “administrativização”»97.

Já TERESA PIZARRO BELEZA, reconhecendo que “também o Direito

Administrativo pode pôr, e põe frequentemente em causa direitos

fundamentais” parece adoptar uma solução de compromisso “entre a ideia de

total autonomia desse Direito de mera ordenação social, mais próximo do

Direito Administrativo, e a outra ideia de que, no fundo, mesmo esse direito de

mera ordenação social pode pôr em causa os direitos individuais de uma forma

idêntica ao Direito Penal”98.

De igual modo, também MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA,

(partindo do enunciado do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de

Julho que referia que a coima era “sanção de natureza administrativa, aplicada

por autoridades administrativas” o que não foi alterado pelo Decreto-Lei n.º

433/82, de 27 de Outubro), parecem também inclinar-se, em certa medida,

para uma perspectiva administrativista quando afirmam que «À face da

legislação portuguesa, o processo de contra-ordenação, na fase que decorre

antes da remessa do processo a tribunal não deve considerar-se um processo

judiciário ou para-judiciário, mas um verdadeiro processo administrativo, da

competência de autoridades administrativas, com o qual se prosseguem fins

incluídos nos objectivos das autoridades administrativas. (…) Resulta destes

proclamados desígnios legislativos que o direito de mera ordenação social visa

assegurar a realização de interesses públicos cuja prossecução se integra no

âmbito funcional da Administração. Como actividade administrativa que é,

justifica-se que, congruentemente, o controle judicial da mesma fosse atribuído

aos tribunais administrativos e não aos tribunais judiciais. Isso, aliás, não

97

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», p. 164.

98 TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, pp.111-114.

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passou despercebido ao legislador que, no preâmbulo daquele Decreto-Lei n.º

232/79, refere “Reconhece-se de boamente que a pureza dos princípios levaria

a privilegiar a competência dos tribunais administrativos” E foi só por razões

pragmáticas que se optou pela atribuição de competência aos tribunais

judiciais “pelo menos como solução imediata e eventualmente provisória”»99.

ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA também se deixou seduzir pela ideia da

preponderância do quadro administrativo nas contra-ordenações100 e também

AUGUSTO DA SILVA DIAS não deixou de constatar uma certa funcionalização e

administrativização do Direito Penal (e contra-ordenacional) actual no âmbito

de um Direito Penal numa sociedade do risco101.

Por outro lado, actualmente, a ideia da administrativização do Direito das

Contra-ordenações poderá ter ganho maior destaque com a recente entrada

em palco das entidades reguladoras, ideia a que, contudo, nos parece que

devemos resistir. A este propósito MÁRIO FERREIRA MONTE (que sublinha que a

contra-ordenação é um ilícito administrativo mas não de autotutela

administrativa102), alerta para o facto de “Com a erupção das entidades

reguladoras (…) concentrando poderes diversos, entre os quais os

sancionatórios, poderes que são, diz-se, de “tipo para-jurisdicional”, é óbvio,

que se põe em evidência a aproximação do Direito das Contra-ordenações ao

Direito Administrativo (…) Mesmo assim, é de Direito sancionatório que se

trata, sendo indispensável armá-lo de garantias que são próprias do Direito

Penal e não do Direito Administrativo”, sendo que tal Autor estranha, com

razão, o que parece ser a inversão do percurso percorrido, ao se reclamar uma

maior administrativização das contra-ordenações reclamada por alguma

99

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2ª edição,

Vislis, Lisboa, 2003, pp. 362 e 363 (citado: Contra-ordenações – Anotações).

100 ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA, «O ilícito de mera ordenação social na confluência das jurisdições: tolerável ou

desejável», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 71, Editora CEJUR, Setembro-Outubro, 2008, pp. 15 e ss.

101 AUGUSTO SILVA DIAS, Delicta in se, pp. 579 e ss..

102 Diz o predito Autor a este respeito: “Trata-se de um ilícito de natureza administrativa e não penal, com uma sanção

própria, seguindo um processo específico, ainda que o Direito (processual) penal funcione como subsidiário. Não se

trata, todavia, de um ilícito administrativo tout court, ou seja, um ilícito de autotutela administrativa.” – cfr. ,

Lineamentos, Capt. II, ponto 3 a) e Capt. III ponto 3 b).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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doutrina por si citada e ainda pelo próprio legislador (referindo-se ao

anteprojecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) 103.

De igual modo, à aproximação do Direito Penal e contra-ordenacional a

uma certa administrativização não é alheia a concepção de Estado como um

Estado regulador, que intervém nas mais diversas áreas sociais e económicas.

É mediante tal constatação que SILVA SANCHEZ ensaiou um chamado “Direito

Penal a duas velocidades”: um constituído pelo Direito Penal clássico, com

todas as garantias e princípios típicos do Direito Penal, e um Direito Penal com

vocação intervencionista e regulamentadora, e portanto, mais administrativo,

onde, não havendo cabimento para penas privativas da liberdade, não seria

necessário tanto garantismo104.

Não obstante o que vem de se expor, a corrente maioritária é a que

aproxima, em maior ou menor medida, o Direito das contra-ordenações ao

Direito Penal, sem deixar de sublinhar a autonomia de cada um (v.g. EDUARDO

CORREIA, JOSÉ DE FARIA COSTA, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, MÁRIO FERREIRA

MONTE, MANUEL DA COSTA ANDRADE, GERMANO MARQUES DA SILVA, MIGUEL

PEDROSA MACHADO, ALEXANDRA VILELA, entre outros105).

Parece-nos, desde logo, uma perspectiva historicamente mais coerente já

que a intenção que presidiu à instituição de um RGCO foi assumidamente a de

criar um ordenamento sancionatório mas distinto do Direito Criminal.

103

Além dos já citados AA. DIOGO FREITAS DO AMARAL e DUARTE DE ALMEIDA convoca ainda a posição de EUGÉNIA

TEIXEIRA, O ilícito administrativo autárquico, dissertação de mestrado apresentada na Universidade do Minho, Janeiro,

2011 (inédito) e define a sua posição no sentido da rejeição de tal administrativização do Direito das Contra-

ordenações - cfr. MÁRIO FERREIRA MONTE, Lineamentos, sobretudo nos Capt. II, ponto 3 a) e Capt. III ponto 3 b).

104 SILVA SANCHÉZ, La expansión del derecho penal, pp. 136 e ss. citado por ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera

ordenação social, pp. 263 e ss..

105 Questão idêntica se suscita no Direito Disciplinar. A tal propósito entendem alguns que é Direito sancionatório e que,

nessa medida faz parte da Ciência total do Direito Penal, pelo que lhe é aplicável, subsidiariamente, o CPP. Outros

entendem que “Como o procedimento disciplinar é um procedimento administrativo especial, de natureza sancionatória,

cumpre, em primeiro lugar, no processo de integração de lacunas, esgotado o recurso à analogia dentro do próprio

direito processual disciplinar, fazer apelo às normas e princípios de procedimento administrativo em geral (…) Só em

seguida se recorrerá às normas e princípios do Direito Processual Penal (…) O CPP não será, assim, aplicável de

forma automática, pondo em causa a autonomia do procedimento disciplinar sem qualquer ganho para os direitos de

defesa, mas apenas na medida em que não vá contra a especificidade do procedimento disciplinar.” – cfr. LUÍS

VASCONCELOS ABREU, Para o estudo do procedimento disciplinar no Direito Administrativo português vigente: as

relações com o processo penal., Almedina, Coimbra,1993, p. 84.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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É ainda uma perspectiva coerente com o modelo legislativo vigente no

nosso país já que, como predito, o Código Penal e o Código de Processo

Penal são legislação subsidiária nesta matéria (cfr. arts. 32.º e 41.º do RGCO),

sendo a nosso ver de todo em todo criticável que se afaste esta regra nas

contra-ordenações sectoriais.

Concordamos pois que, sendo o Direito das contra-ordenações um Direito

sancionatório, importará «“não deixar fugir” o sistema das contra-ordenações

dos quadros do Direito Penal. E isto pelas garantias formais de legalidade e

tipicidade que se sente não deverem ser afastadas, considerando as contra-

ordenações como uma das categorias das acções ilícitas castigadas com uma

sanção estatal»106.

Por outro lado, como analisámos em antecedente capítulo, a nosso ver, a

ilicitude contra-ordenacional não deve mais ser perspectivada como

generalizadamente marcada por irrelevância axiológica das condutas que a

integram. Ao invés, existirão contra-ordenações axiologicamente relevantes e

até, como já vimos, protectoras de bens jurídico-penais relativamente aos

quais não há necessidade de pena mas há carência de sanção contra-

ordenacional. Ora, para quem assim pense, o Direito Administrativo joga mal

com o sancionamento deste tipo de contra-ordenações, pelo que nos devemos

aninhar no leito do Direito Penal e Processual Penal como Direito subsidiário

em toda a linha, inclusive na fase administrativa (que é administrativa de um

ponto de vista orgânico).

Mas note-se que falámos de aproximações.

É que o Direito das Contra-ordenações não pode hoje ser visto nem como

Direito Civil, nem como Direito Administrativo nem como Direito Penal no

sentido clássico ou de Justiça.

Trata-se antes de um Direito que adquiriu autonomia, independentemente

da sua inserção.

EDUARDO CORREIA, no relatório do projecto de 1963 do Código Penal

Português, escrevia, a este propósito que “Verdadeiramente, estas violações

106

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», p. 188.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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não representam um minus relativamente ao ilícito penal, mas constituem

coisa diferente. Por isso, embora a intervenção do Estado, neste domínio

salutista, se processe hoje por todos os lados, na mais larga medida, a

tendência legislativa que lhe corresponde procura arrumar o respectivo ilícito –

formalmente determinado pela natureza das sanções que lhe cabem – num

domínio próprio do Direito: o respeitante às violações das normas de

ordenação social”107.

Muitos entendem que o direito de mera ordenação social há-de estar

integrado naquilo que VON LISZT chamou de “Direito Penal total” e que abarca

não apenas o Direito Penal clássico ou de justiça mas ainda o Direito Penal

secundário, o referido Direito de mera ordenação social e ainda outros direitos

que sejam Direito sancionatório (v.g. Direito disciplinar) e daí as afinidades

entre os mesmos, com inerentes dificuldades de delimitação e ainda em

comunhão de problemas e de respostas.

Como vimos não é fácil delimitar materialmente o que seja crime e o que

seja contra-ordenação e, independentemente da tese ou critério a que se adira,

sempre a opção terá um contexto temporal e espacial próprio que é evolutivo.

Há pois zonas cinzentas em que a distinção se torna mais difícil…

Uma dessas zonas cinzentas como já se havia dito, é, sem dúvida, a

relação do Direito das contra-ordenações com o Direito Penal secundário

(conjunto de normas punitivas, previstas em legislação extravagante, e que

contêm na sua generalidade o sancionamento de carácter administrativo).

Tal afinidade fica a dever-se às próprias características do Direito Penal

secundário (que se encontra sobretudo normativizado no Decreto-Lei n.º 28/84,

de 20 de Janeiro onde, de resto, coabitam contra-ordenações e crimes), que

passam pela actuação sobretudo na área da economia e saúde pública,

embora se alargue, v.g., ao ambiente, ao consumo, etc., protegendo

essencialmente bens jurídicos supra individuais, através de crimes de perigo

abstracto, nos quais, não raras vezes, aparecem conceitos indeterminados ou

cláusulas gerais e ainda normas penais em branco.

107

EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», pp. 256 e 257.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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De todo o modo, ainda que se possa entender que o Direito das contra-

ordenações está integrado no que seja o Direito Penal total, isso não faz com

que não se deva considerar o mesmo como autónomo.

Com efeito, o ilícito de mera ordenação social dever-se-á autonomizar

(maxime do Direito Penal clássico ou de justiça e do Direito Penal secundário)

em três vertentes: dogmática, sancionatória e processual.

Vejamos a autonomia dogmática, a que, aliás, mais nos importa108.

E importa-nos por duas razões essenciais: a primeira porque nos parece

que a autonomia sancionatória e processual serão consequência da autonomia

dogmática que se entenda existir no domínio contra-ordenacional, prendendo-

se a segunda razão com o objecto do presente estudo. É que, debruçarmo-nos

sobre a culpa nas contra-ordenações é debruçarmo-nos sobre um dos pontos

que poderá ajudar a autonomizar, do ponto de vista dogmático, o Direito das

Contra-ordenações.

Sobre tal autonomia dogmática refere EDUARDO CORREIA que “A referida

autonomia do ilícito de mera ordenação face ao ilícito penal é antes de tudo, na

verdade, e até certo ponto, uma autonomia dogmática – como se revela nos 16

primeiros artigos do Decreto-Lei n.º 433/82”109.

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO afirma, relativamente ao Direito das

contra-ordenações, que “não se trata de Direito Administrativo, sujeito ao

sistema de garantias deste ramo de direito, mas sim de matéria para-penal,

sujeita a uma parte das garantias do sistema penal, com respeito pelas

especificidades que lhe conferem autonomia”110, embora este autor venha

considerando que a autonomia, nas suas três vertentes, vem sendo beliscada

precisamente pela crescente aproximação ao Direito Penal.

108

FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, em «O ilícito de mera ordenação social e a erosão», pp. 209 e ss., ilustra a

frágil autonomia dogmática do ilícito de mera ordenação social referindo que o regime contra-ordenacional decalca

muitas das soluções penais e que “quando tal equivalência de regimes não se verifica subsiste a dúvida quanto a saber

se estamos perante uma omissão intencional do legislador ou perante uma matéria carente de regulamentação por via

de regime subsidiário. O alcance destes problemas pode ser ilustrado com três matérias: a comparticipação, a omissão

e o regime de concurso de contra-ordenações”.

109 EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», pp. 256 e 257.

110 FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «As Codificações», p. 90.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

61

Contudo, não deixámos já de elencar os vários critérios que contribuem

para uma delimitação material da ilicitude própria das contra-ordenações

quanto comparada, desde logo, com a ilicitude criminal.

Também se alude a uma autonomia sancionatória apelando-se às

diferentes sanções existentes, aos critérios diferentes de determinação da

sanção, sendo certo que, ante a crescente consagração de coimas e sanções

acessórias gravosas, também aqui se adensam alguns problemas de

autonomia dos ramos do Direito em causa (a que não é alheia alguma

confusão do legislador que chega a tipificar contra-ordenações puníveis com

outras sanções que não a coima, v.g., em matéria de consumo de droga).

A autonomia dogmática não pode ainda deixar de se reflectir também

numa autonomia processual.

Pretendeu-se criar um regime processual mais célere e mais simples ante

a natureza das infracções em causa (quer na fase administrativa quer na fase

judicial). JOSÉ DE FARIA COSTA, v.g., parece apontar no sentido de as

especificidades processuais ajudarem a construir a autonomia do Direito

contra-ordenacional indicando que questões atinentes à sanção (arts. 1.º, 17.º

e 18.º do RGCO por contraste com a pena de prisão e com a pena de multa

dos arts. 41.º e 47.º do Código Penal), competência judicial exclusiva para

aplicação de penas e competência administrativa para aplicação de coimas

(salvo caso de concurso entre contra-ordenação e coima nos termos do art.

38.º do RGCO), inexistência de prisão preventiva no RGCO, aplicação da lei

no espaço (consagração quase pura do princípio da territorialidade no art. 4.º

do RGCO por oposição aos arts. 4.º e 5.º do Código Penal); responsabilidade

das pessoas colectivas (irrestrita nos termos consagrados no art. 7.º do

RGCO), tentativa (embora se consagre quer no Código Penal quer no RGCO a

excepcionalidade da punibilidade por tentativa) e concurso de infracções (arts.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

62

19.º e 20.º do RGCO) sofrem, no domínio das contra-ordenações, alterações

nevrálgicas e que as individualizam do ilícito penal111.

Porém, tal autonomia está ainda em construção.

Muitas são as vozes que ecoam nesse sentido, dando conta do longo

caminho que ainda está por fazer quanto à autonomização do Direito das

contra-ordenações.

Com efeito, a par da descaracterização que a

hipercontraordenacionalização pode introduzir, o panorama legislativo e

jurisprudencial não tem construído pontes sólidas e definitivas para essa

autonomização. São abundantes, habituais (e justificadas) as críticas feitas ao

quadro legal contra-ordenacional existente, com demasiadas remissões entre

diplomas, com um enfoque relevante no papel subsidiário dos preceitos penais

e processuais penais e sobretudo com uma enorme proliferação de regimes

sectoriais e extravagantes que ora reproduzem o regime geral de forma

desnecessária e inócua, ora o contrariam sem grande justificação, não sendo

raros os silêncios legislativos a demandar interpretações, analogias e regimes

subsidiários.

Por outro lado, face a tais dificuldades legislativas, não é de estranhar

que a jurisprudência seja igualmente tão pouco uniforme.

Chega mesmo a afirmar-se que “Nestes três planos, dogmático,

sancionatório e processual, a autonomia do Direito de mera ordenação social

tem sido juridicamente hipotecada pela experiência, pela evolução legislativa e

pela grande heterogeneidade das matérias que este sector foi abrangendo (…)

com crescente descaracterização do regime do ilícito de mera ordenação

social, processo esse que de algum modo começou a ser marcado pela

indesejável subsistência da figura das contravenções no sistema sancionatório

e se revela actualmente numa aproximação excessiva aos institutos e figuras

do Direito Penal”, sendo certo que “a negação prática dos diversos níveis de

autonomia do Direito de mera ordenação social é profundamente indesejável

111

JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais, pp. 35-48, sendo certo que ainda se não tinha consagrado a

responsabilidade penal das pessoas colectivas (cfr. Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro) e ainda TERESA PIZARRO

BELEZA, Direito Penal, pp. 120-123.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

63

no âmbito da ordem jurídica portuguesa, mas ela põe igualmente em causa a

ideia, defendida por diversos sectores, de usar a figura das contra-ordenações

como um modelo de ilícito comum a um ordenamento jurídico europeu. Por

uma ou outra razão, trata-se de uma tendência que deve ser contrariada, em

primeira linha pela inversão da política legislativa até aqui seguida, mas

também pela construção dogmática de bases teóricas que assegurem uma

autonomia real ao sistema do Direito de mera ordenação social”112.

Mas quais as consequências práticas do referido para o presente estudo?

Face a tal fluidez de relações entre Direito Penal e Administrativo com

Direito contra-ordenacional, a questão que se coloca é pois a de equacionar

se, na integração de lacunas e na interpretação das normas contra-

ordenacionais, as deveremos interpretar à luz do Direito Administrativo ou

Penal.

Já fomos adiantando a nossa opinião. De todo o modo, relativamente à

integração de lacunas, o RGCO não deixa margem para dúvidas.

Independentemente do que se possa pensar numa perspectiva de iure

condendo, de iure constituto a legislação subsidiária contra-ordenacional é (e

bem) a legislação penal e processual penal (arts. 32.º e 41.º do RGCO) e, não

se restringindo a aplicação subsidiária a qualquer fase processual, ela vale

para todo o processo contra-ordenacional113. Daí que concordamos que

“contrariamente ao que defende alguma doutrina e Jurisprudência, em caso

algum se poderá recorrer ao Direito Administrativo, nomeadamente ao Código

do Procedimento Administrativo para suprir lacunas que possam existir no

Decreto-Lei n.º 433/82”114.

Com efeito, não parece poder pensar-se o processo contra-ordenacional

como processo administrativo especial (embora uma leitura apressada no art.

2.º, n.º 7 do Código do Procedimento Administrativo pudesse indicar esse

112

FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, «O ilícito de mera ordenação social e a erosão», pp. 214 e 274 .

113 Neste sentido ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral das Contra-ordenações e das coimas, Almedina, Coimbra,

2001, p. 75 (citado: Regime Geral).

114 ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, «Contra-ordenações laborais. Breves reflexões quanto ao seu âmbito e sujeitos», Questões

Laborais, ano VIII, Coimbra Editora, 2001, p. 142.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

64

sentido já que prevê que “No domínio da actividade de gestão pública, as

restantes disposições do presente Código aplicam-se supletivamente aos

procedimentos especiais, desde que não envolvam diminuição das garantias

dos particulares”). E se na fase judicial as coisas são mais claras, tem-se

suscitado a dúvida quanto à fase administrativa. Refere a este propósito

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO que “Do ponto de vista da autoridade

administrativa a competência para processar contra-ordenações pode ter algo

peculiar: trata-se de Direito aplicável por uma entidade administrativa, mas que

não é em rigor Direito Administrativo. O que significa que iniciado um processo

de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração – que

fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto,

ao regime e garantias próprias do Direito Administrativo) – passarem a ser

regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto

de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um

acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação

o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser

em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime

do processo penal, mas não o Código do Procedimento Administrativo. Uma

solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade

sancionatória da Administração por cruzamento de regimes e garantias

jurídicas”115.

O mesmo entendimento foi plasmado no Parecer n.º 84/2007 da

Procuradoria Geral da República116, que aqui se segue de perto, no qual se

consignou que “Na verdade, o processo das contra-ordenações não pode ser

considerado como um procedimento administrativo especial para efeitos do

disposto no n.º 7 do art. 2.º do Código de Procedimento Administrativo, pelo

que está excluída a aplicação subsidiária, em primeira linha, deste Código à

fase administrativa do processo das contra-ordenações. Embora o

procedimento das contra-ordenações integre, na sua fase administrativa, uma

115

FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, «O ilícito de mera ordenação social e a erosão», pp. 260 e 261.

116 Publicado no Diário da República II série, n.º 68, de 07 de Abril de 2008.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

65

actuação materialmente administrativa, esta forma de actuar, sempre

obedeceu a um procedimento de natureza sancionatória, moldado a partir do

processo penal que é expressamente assumido como Direito subsidiário.

Trata-se de uma fase do processo que tem como direito subsidiário, na sua

globalidade, o processo penal, nos termos do referido no n.º 1 do art. 41.º

daquele Dec.-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro. Os procedimentos especiais

previstos no n.º 7 do art. 2.º do Código de Procedimento Administrativo são

aqueles que se encontram dispersos pela legislação administrativa,

nomeadamente, os licenciamentos, os loteamentos urbanos, os procedimentos

concursais e outros. Não cabem nesse âmbito os procedimentos

sancionatórios na medida em que tenham como Direito subsidiário o Direito

Processual Penal, uma vez que é com este ramo do direito que aqueles

procedimentos se articulam, já que foram moldados a partir dele, e é nesse

procedimento que sistematicamente se inserem”.

Efectivamente, entendemos que a legislação subsidiária aplicável no

domínio contra-ordenacional, em qualquer das suas fases, é a legislação penal

e processual penal, em homenagem à ideia de que seja na fase

organicamente administrativa seja na fase judicial nos encontramos perante

Direito sancionatório. Nem seria possível, sem perda da unidade e coerência

do sistema jurídico contra-ordenacional, ter duas legislações subsidiárias com

garantias e ritos tão distintos quando está em causa a mesma realidade. Se se

vier a reconduzir o Direito das contra-ordenações aos quadros do Direito

Administrativo (o que não defendemos) haverá que aceitar que se mudou de

paradigma e que se estará perante um ordenamento diferente, naturalmente

com legislação subsidiária diferente. Não é contudo esse o estado de arte do

Direito das contra-ordenações.

Em suma, independentemente de poder ser enquadrado na ciência total

do Direito Penal, o Direito das contra-ordenações há-de ser visto como algo

autónomo, que se caracteriza por ser Direito Público sancionatório, sendo que,

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

66

pelo facto de ser sancionatório, leva a que se apliquem os princípios e

garantias do Direito Penal e Processual Penal117.

Tal aplicação dos princípios e garantias penais e processuais penais

funcionará quer em sede de integração de lacunas ainda que com as

adaptações necessárias (cfr. art. 41.º do RGCO), mas também em sede

interpretativa. De todo o modo, deverá a prática tentar encontrar primeiramente

a solução nos puros quadros normativos contra-ordenacionais com respeito

pela sua autonomia, sem abuso desnecessário dos regimes subsidiários e,

quando necessário, integrar lacunas sem uma importação acrítica das

soluções penais e processuais penais.

Sublinhando a necessidade de adaptar as disposições processuais

penais ao processo contra-ordenacional (art. 41.º do RGCO), afirma o Parecer

supracitado (Parecer n.º 84/2007 da Procuradoria Geral da República) o

seguinte: “A importação das soluções daquele Código não é contudo directa,

devendo passar sempre que necessário por um processo de adaptação dos

princípios e soluções processuais próprias do Direito das Contra-ordenações,

de forma a salvaguardar a harmonia do processo e a afastar disjunções que

podem afectar a aplicação do Direito. Nas situações em que se constate a

necessidade de recorrer às soluções do Direito subsidiário, impõe-se ao

intérprete o cuidado de avaliar previamente as soluções do processo penal e

sua articulação com as especificidades do processo das contra-ordenações, de

forma a respeitar os valores acima referidos, em conformidade com o comando

legal “devidamente adaptados” constantes daquela norma. Só através deste

processo de adaptação é possível salvaguardar a autonomia do processo das

contra-ordenações face ao processo penal e respeitar os princípios e valores

117

O próprio Tribunal Constitucional já o afirmou no Acórdão n.º 41/2004 de 14 de Janeiro no qual se refere que “Está,

porém, consolidado no pensamento constitucional que o Direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de

direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o Direito Penal, isto é, do

núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (cf. Acórdãos do Tribunal

Constitucional nºs 158/92, de 23 de Abril, 263/94, de 23 de Março, publicados no D.R., II Série, de 2 de Setembro de

1992 e de 19 de Julho de 1994, e nº 269/2003, de 27 de Maio, inédito). E se tal não resulta directamente dos preceitos

da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da

Constituição”, consultado pela última vez em 23.07.2014 em http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/Acordaos04/1-

100/4104.htm.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

67

que inspiram as especificidades das soluções processuais que consagra.”

Neste mesmo sentido também A. LEONES DANTAS quando refere “impõe-se ao

intérprete o cuidado de avaliar previamente as soluções de processo penal e a

sua articulação com as especificidades do processo das contra-ordenações, de

forma a respeitar os valores acima referidos, em conformidade com o comando

legal devidamente adaptados (…) Só através deste processo de adaptação é

possível salvaguardar a autonomia do processo das contra-ordenações face

ao processo penal e respeitar os princípios e os valores que inspiram as

especificidades das soluções processuais que consagra”118. HELENA

MAGALHÃES BOLINA dá até alguns exemplos da adaptação que, na sua opinião,

deve ser feita do regime de aquisição das provas, do direito ao silêncio do

arguido no processo contra-ordenacional por contraponto ao processo

penal119.

Também jurisprudencialmente, aqui e ali vão surgindo alertas para a

necessidade de não usar indiscriminadamente a legislação subsidiária.

Exemplificativamente, diz-se no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de

21.11.2007, P. n.º 0744369: “Retenha-se desde já, que contrariamente ao que

muitas vezes se pretende fazer crer, não são aplicáveis ao processo de contra-

ordenação todas as normas processuais penais que regulam matérias não

especificamente reguladas no âmbito deste último domínio, mas apenas e tão

só os preceitos reguladores do processo criminal (que até poderão não ser do

Código de Processo Penal) que não colidam com o que resulta do RGCO. Isto

é, que não colidam com as normas deste diploma nem com os princípios que

lhe estão subjacentes. É esta a leitura ajustada do n.º 1 do art. 41.º do RGCO.”

118

ANTÓNIO LEONES DANTAS, «Os direitos de audição e de defesa do processo das contra-ordenações», Revista do

CEJ, 2. N.º10, Almedina, 2010, p. 295.

119 HELENA MAGALHÃES BOLINA, «O direito ao silêncio e o estatuto dos supervisionados à luz da aplicação subsidiária do

processo penal aos processos de contra-ordenação no mercado de valores mobiliários», Revista do CEJ, 2. N.º 10,

Almedina, 2010, pp. 383 e ss..

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

68

É pois prejudicial, a vários títulos, e como muitos têm sublinhado120, que

se transportem acríticamente as soluções penais e processuais penais para o

domínio das contra-ordenações por via da legislação subsidiária.

Por outro lado, há que atentar nas omissões legislativas com especial

cuidado e não apenas quanto à aplicação subsidiária adaptada das soluções

penais e processuais penais….

É que, por vezes a tarefa do intérprete é até mais difícil e reconduzir-se-á

a equacionar se uma determinada omissão legislativa no domínio contra-

ordenacional é propositada no sentido em que há legislação subsidiária para

aplicar ao caso (e portanto o legislador absteve-se de repetir a solução

previsão legal porque seria inócuo), ou se, pelo contrário, em certos casos, a

omissão é propositada num outro sentido que passa pelo não ter aquela

solução subsidiária prevista cabimento no Direito das contra-ordenações face

às específicas finalidades deste.

Para isso, importa que o intérprete conheça bem as finalidades próprias e

os traços de autonomia do Direito das contra-ordenações, não havendo quem

120

Neste sentido vejam-se as críticas não só de FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, «O ilícito de mera ordenação

social e a erosão», pp. 214 e 215, mas ainda de GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal, Parte Geral I, pp. 155 e

ss.; Também incisivamente JOÃO SOARES RIBEIRO in «Questões sobre o processo contra-ordenacional», Questões

Laborais, ano VIII, n.º 18, Coimbra Editora, 2001, p.122, quando refere “(…) temos a sensação que nem sempre se

equaciona devidamente esta realidade “sui generis” que é, ou deve ser o processo de contra-ordenação na sua fase

administrativa, fazendo-se, por vezes, a nosso ver, um uso demasiado primário do princípio da aplicação subsidiária do

processo penal consagrado no art. 41.º da lei-quadro, para não dizer uma errada equiparação da estrutura do processo

de contra-ordenação na fase administrativa à estrutura processual penal.” (citado: «Questões»); LOPES DO REGO refere

igualmente que há uma “(…) notória tendência para ampliar determinadas garantias típicas do direito e do processo

penal aos demais direitos sancionatórios públicos”, quando “(…) é evidente e incontroverso que determinadas

garantias típicas do processo penal não são seguramente aplicáveis no domínio de todo o Direito sancionatório público,

estando excluídos – ou substancialmente atenuados – os princípios da legalidade, da necessária jurisdicionalidade e

da necessidade ou da máxima restrição das penas e medidas de segurança – (…)” – in «Alguns Problemas

Constitucionais», p. 17; Elucidativamente, referem a este propósito ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE OLIVEIRA MENDES e

JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Notas, p.21, que “independentemente da possibilidade ou

impossibilidade de distinção material entre ilícito criminal e contra-ordenacional, cumpre referir desde já que o Direito

de mera ordenação social tem vindo a perder autonomia, sendo que após a revisão operada pelo Decreto-Lei 244/95,

de 14 de Setembro, a identificação entre a base normativa do regime geral do ilícito de mera ordenação social e as

soluções da Parte Geral do Código Penal acentuou-se ainda mais, recorrendo agora o legislador na maior parte dos

casos, à importação pura e simples das soluções do Direito Penal.” Refira-se ainda que, a este propósito, JORGE DE

FIGUEIREDO DIAS alude a uma verdadeira contra-revolução contra-ordenacional, in Temas básicos da Doutrina Penal,

Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 143 (citado: Temas básicos).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

69

deixe de reclamar uma maior construção dogmática deste mesmo Direito das

contra-ordenações.

Neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE sugere o seguinte labor: “1.

definição dos princípios comuns ao Direito sancionatório que enquadram esta

área do direito público com base na Jurisprudência nacional e europeia que se

tem debruçado sobre esta área do direito, isto é, a Jurisprudência do TEDH, do

TJ, do TC português e do TC alemão; 2. Definição dos princípios estruturais do

processo contra-ordenacional, por contraposição com os princípios

correspondentes do processo penal. À luz dos princípios pode não apenas

descortinar-se a idiossincrasia dogmática do processo contra-ordenacional,

mas também avaliar as mais importantes soluções dos regimes especiais do

direito contra-ordenacional e apresentar propostas de iure condendo para a

reforma deste ramo do Direito sancionatório Público”121.

Aqui chegados, e tendo-se concluído pela autonomia (mesmo que

dogmaticamente ainda algo frágil) do Direito contra-ordenacional importa aferir

em que medida o princípio da culpa pode funcionar como factor de uma tal

autonomia. A isso nos dedicaremos no próximo capítulo.

121

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, pp.12 e 13.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

70

IV. O PRINCÍPIO DA CULPA NAS CONTRA-ORDENAÇÕES

1. Princípio da culpa nas contra-ordenações: imposição constitucional

ou opção do legislador ordinário?

Já se referiu antes que, actualmente, o carácter censurável da conduta é

elemento da noção legal de contra-ordenação (art. 1.º do RGCO), pelo que só

é sancionável a conduta voluntária culposa, inexistindo assim responsabilidade

contra-ordenacional objectiva.

Também já se sublinhou em anterior capítulo que nem sempre a lei se

referiu a tal censurabilidade.

De facto, o n.º 2 do art. 1.º do RGCO, com inspiração na OWIG alemã, na

sua versão originária, previa o sancionamento independentemente do carácter

censurável do facto, o que foi objecto do Parecer constitucional n.º 4/81 vindo

tal posição a ser abandonada na revisão do RGCO de 1995, passando-se a

anotar a “censurabilidade” como elemento da noção de contra-ordenação122.

Note-se, de todo o modo, que há quem entenda que nem a própria OWIG

alemã quis prever a responsabilidade contra-ordenacional objectiva. É certo

que evitou utilizar a palavra “culpa” antes se referindo a “censurabilidade”, mas

parece-nos que tal foi feito mais numa perspectiva de individualização dos

ilícitos em causa, com uso de palavras diferentes, do que para categorizar um

novo conceito, como já tínhamos adiantado.

122O primeiro dos diplomas sobre contra-ordenações em Portugal, continha, pois, um artigo que previa contra-

ordenações “independentemente do carácter censurável do facto” (art. 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de

Julho. A propósito da fiscalização preventiva da constitucionalidade de tal diploma foi elaborado o Parecer n.º 4/81 da

Comissão Constitucional onde se aludia que a coima se limitava a ser uma sanção não expiatória, que constituía uma

mera advertência e que, assim sendo, o princípio da culpa, aplicável a crimes e contravenções, seria de aplicabilidade

duvidosa ao domínio do ilícito de mera ordenação social, atenta a vontade expressa do legislador (cfr. preâmbulo do

Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

71

Ainda assim, perguntar se o Direito contra-ordenacional, à semelhança do

Direito Penal também é um Direito da culpa, continua a não ser pergunta

destituída de sentido.

É que, como vimos, de entre os vários critérios mobilizados para distinguir

crime e contra-ordenação, um dos mais antigos (ainda que ao nível do tipo de

ilícito), é o da irrelevância ética do ilícito contra-ordenacional… Tal

característica ao nível da ilicitude contra-ordenacional terá certamente reflexos

ao nível da culpa para quem adopte um tal critério (o que, como predito, não

fazemos em toda a linha).

Várias questões emergem, assim, nesta sede…

Será o princípio da culpa um princípio constitucionalmente imposto ao

domínio contra-ordenacional?

E na afirmativa, que culpa é esta a que se alude na contra-ordenações? É

uma culpa próxima da penal (já que em ambas estamos no domínio do Direito

sancionatório)? Que especificidades existem?

Em que medida é que a culpa fundamenta a sanção contra-ordenacional?

Em que medida é ainda o seu limite?

E como é que se fundamenta em sede decisória (administrativa e judicial)

esta culpa nas contra-ordenações?

Mergulhemos, pois, na tentativa de delinear alguns contributos para a

resposta a tais perguntas, sempre na perspectiva de analisar em que pontos o

funcionamento do princípio da culpa contribui para a autonomia do Direito das

contra-ordenações.

Não temos hoje dúvidas em afirmar que o princípio da culpa impregna o

ordenamento jurídico contra-ordenacional. Mas será tal princípio da culpa

constitucionalmente imposto nas contra-ordenações?

A questão suscita-se porque a Constituição da República Portuguesa se

remete, nesta matéria, ao silêncio. O nó górdio da questão reside

precisamente em saber que interpretação fazer de tal silêncio. Significará o

mesmo que não se quis prever o princípio da culpa? Ou, ao invés, não foi

necessário prevê-lo porque o mesmo é corolário de outros princípios como o

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

72

da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade ou até da presunção

da inocência?

Em Espanha, v.g., onde pese embora inexista a figura da contra-

ordenação como nacionalmente a concebemos, existe um estudo

relativamente aprofundado do Direito Administrativo sancionador, nesse

âmbito, o Tribunal Constitucional, por volta de 1990, tomou posição concluindo

pela aplicabilidade do princípio da culpa ao dito Direito Administrativo

sancionador, considerando a culpa como um pressuposto essencial de

qualquer sistema sancionatório, pese embora o art. 25.º da sua Constituição

também não lhe faça referência expressa123.

Também no Brasil, inexistindo norma constitucional sobre a culpa no

designado Direito Administrativo sancionador vem-se entendendo, como

explica CÉSAR LOURENÇO SOARES NETO, que a culpa é um princípio

constitucional implícito atendendo ao valor consagrado da dignidade

humana124.

Já em Portugal, se é certo que o legislador ordinário consagrou o carácter

censurável da contra-ordenação logo no art. 1.º do RGCO, se bem se vir,

nenhuma norma expressa existe na Constituição da República Portuguesa

sobre a culpa (nem para o ilícito contra-ordenacional nem para o ilícito

criminal), o que, naturalmente, empresta raízes mais fundas à polémica.

As vozes nacionais não são unânimes.

FIGUEIREDO DIAS entende que a culpa não é imposta constitucionalmente

ao Direito das contra-ordenações125. No mesmo sentido, (uma vez que

entenderão tratar-se de uma opção do legislador ordinário) parecem ainda ir

SIMAS SANTOS E LOPES DE SOUSA lembrando que “Um dos princípios basilares

do Código Penal e do RGCO é o princípio da culpa (não há pena sem culpa e

a culpa decide da medida da pena). Na verdade, apesar de o ilícito de mera

ordenação social não ter por base a formulação de uma censura de tipo ético-

123

Dando conta disso mesmo vide NUNO B.M. LUMBRALES, Sobre o Conceito, p. 204.

124 CESAR LOURENÇO SOARES NETO, «Responsabilidad Ambiental subjetiva no Direito Administrativo sancionador em

face da Lei 9.605/98», Ciência e Opinião, v. 2, n. 1 / 2, jan/dez 2005, p. 231.

125 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O Movimento», p. 29.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

73

pessoal, optou-se legislativamente por fazer valer também aqui o princípio da

culpabilidade (nulla poena sine culpa) nos termos do qual toda a sanção

contra-ordenacional tem por base uma culpa concreta”126.

Já TERESA PIZARRO BELEZA vai em sentido oposto dizendo que “A este

respeito o Prof. F. Dias defendeu que o princípio da culpa seria, de facto,

imposto pela Constituição (art. 1.º, 13.º, 1 e 25.º, 1) mas só para o domínio do

Direito Penal, não também para o domínio das contra-ordenações. Parece-me

esta afirmação pouco fundamentada e discutível. Se a dignidade humana

exige que o Direito Penal se baseie num princípio de culpa – o que me parece,

desde logo duvidoso – não vejo porque isso não deva ser verdade quanto ao

d.m.s.o. (direito de mera ordenação social). Se o problema se coloca em

função da possibilidade de responsabilizar pessoas colectivas, então o

problema põe-se também no Direito Penal, ainda que só em casos pontuais

elas possam ser autoras de crimes e sujeitas a penas”127.

Também TIAGO LOPES DE AZEVEDO, relembrando não apenas a

Constituição da República Portuguesa mas igualmente o previsto a este

propósito nos arts. 14.º, n.º 2 do PIDCP e art. 6.º, n.º 2 da CEDH, afirma de

modo bastante peremptório que “seria totalmente inconstitucional e violaria

igualmente o Direito Internacional que um Direito sancionatório contra-

ordenacional afastasse o princípio da culpa e por isso sancionasse o agente

infractor independentemente da culpa ou em medida maior do que a culpa da

sua conduta. Note-se porém que, em termos gerais, a responsabilidade

subjectiva no domínio das contra-ordenações não se confunde com a questão

de saber se a culpa no direito contra-ordenacional tem, ou não, que ver com o

juízo de censura sobre a atitude do agente infractor”128.

O Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou igualmente sobre tal

questão no Acórdão de 26.04.2007, proferido no âmbito do P. n.º 01168/06

entendendo que “Não existem razões, nem legais, nem constitucionais,

inerentes à menor gravidade do ilícito, que tornem inadequada ou injustificada

126

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações, Anotações, p. 118.

127 TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, pp. 128 e 129.

128 TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade, p. 98.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

74

(bem ao invés) a aplicação do princípio legal da culpa ao processo contra-

ordenacional, até por que esse princípio exprime uma acentuação das

garantias do arguido – cf., a este respeito, entre muitos outros, o Acórdão do

Tribunal Constitucional, de 9-1-2007, proferido no recurso n.º 254/06.”

Assim, os defensores da tese de que a culpa é um imperativo

constitucional alicerçam-se sobretudo no princípio da dignidade humana de

que emana o princípio da culpa aplicável quer ao Direito Penal quer ao Direito

das contra-ordenações.

De resto, note-se que em termos constitucionais, não deixa de ser

impressivo o facto de o Direito das contra-ordenações, como Direito

sancionatório que é, estar previsto no art. 32.º da Constituição da República

Portuguesa, ou seja, por referência às garantias e limites criminais e não na

parte alusiva à Administração (e certamente ninguém pensará em abolir o

princípio da culpa do Direito Penal).

Contudo, a questão pode ainda perspectivar-se de uma outra maneira. Na

verdade, poder-se-ia ainda basear o princípio da culpa não apenas (nem

sobretudo) no princípio da dignidade humana mas no princípio da

proporcionalidade.

Com efeito, o que se pretende com o princípio da culpa é não apenas

fundamentar a sanção (e uma sanção sem culpa parece afectar ainda a

dignidade humana) mas ainda limitar o poder punitivo do Estado na sanção

que venha a aplicar (nessa medida jogando um importante papel o princípio da

proporcionalidade).

Aliás, o princípio da culpa e o princípio da proporcionalidade têm entre si

relações muito próximas. Mesmo no Direito Penal WINFRIED HASSEMER, por

exemplo, adopta o entendimento de que o princípio da culpa decorre do

princípio da proporcionalidade129.

Acresce que, a acentuação do princípio da proporcionalidade no campo

das contra-ordenações é também uma tendência que se pode ir beber ao

129

WINFRIED HASSEMER, «Perspectivas del Derecho Penal Futuro», tradução de Enrique Anarte Borrallo, Universidade

de Huelva, Revista Penal, também disponível em www.derechopenalenlared.com consultado pela última vez em

05.08.2012.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

75

Tribunal de Justiça da União Europeia. Conforme nos dá conta LUÍS ARROYO

ZAPATERO, numa Europa com tradições jurídicas tão distintas como são as

tradições românicas e germânicas e tradições dos países de Common Law, a

“gramática comum europeia” deve repousar sobre a jurisprudência daquele

Tribunal, jurisprudência essa que vem “declarando incompatible com el

Derecho Comunitário o al CEDH los supuestos de responsabilidad objetiva que

conducen a sanciones desproporcionadas. Este argumento excluye los casos

más graves de responsabilidad objetiva, con el valor añadido de que lo hace

penetrando com eficacia en todos los ordenamientos de la Unión, al provenir

de Luxemburgo”130.

Em Portugal, imposto pela Constituição, como nos parece ser, ou mera

decorrência da lei ordinária, do que não restam dúvidas é que o princípio da

culpa perpassa o Direito das Contra-ordenações, como o RGCO em várias

normas o insinua - cfr. v.g. arts. 1.º, 8.º, 9.º, 16.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 1,

26.º alínea a) e 51.º.

2. Contributos para a caracterização da culpa nas contra-ordenações

Aqui chegados, importa saber do que falamos quando nos referimos à

culpa nas contra-ordenações, pois essa é uma premissa importante para a

posterior análise das vertentes do princípio da culpa nas contra-ordenações.

É um tema delicado, controverso e de pouca sedimentação dogmática.

130

Ainda que no domínio penal, diz este Autor, com bastante interesse, que “Además, estimo que si hubiera que

destacar un âmbito en el que la Jurisprudência del Tribunal de Justicia de la Comunidad Europea há sido más

innovadora, y frente a su condición ordinaria de fuente débil de princípios fundamentales (…), creo que no habría que

vacilar en proponer precisamente el principio de proporcionalidad. Y es a este principio al que quiero sacar provecho

para abordar el asunto penal que se me encomieda: el princípio de culpabilidad y sus consecuencias en una

formulación europea. (…) a los efectos de una regulación común europea del Derecho Penal económico: 1) la

exclusión de la responsabilidad objetiva y la correlativa exigencia de dolo o imprudência; 2) la exigencia de admisión de

consecuencias exonerantes o atenunantes de la pena en los universos supuestos de error y 3) las consecuencias

procesales de la exclusión de la responsabilidad objectiva.” – LUÍS ARROYO ZAPATERO, «El princípio de culpabilidad y

sus plasmaciones, reflexiones y propuestas para la construcción de una normativa europea», Revista Penal, pp. 5-10,

também disponível em www.derechopenalenlared.com consultado a última vez em 06.08.2012.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

76

Ao contrário, no Direito Penal, já se foi solidificando toda uma dogmática

da culpa, fruto de uma evolução relativamente complexa.

Sendo o Direito Contra-ordenacional um Direito sancionatório que bebe

do Direito Penal (sem nunca perder de vista a autonomia) parece-nos ter

alguma utilidade analisar, ainda que muito brevemente, o que é a culpa penal

para melhor nos ajudar a compreender o que seja a culpa contra-ordenacional

num esforço comparativo entre ambas.

Uma das perguntas a que o Direito Penal sempre teve de responder é a

de saber se a culpa visa avaliar a personalidade e condições pessoais do autor

do facto para adequar a pena a finalidades preventivas ou se se dirige à

avaliação do facto em si mesmo para adequar a sanção à culpa do agente.

No nosso Direito positivo, é lugar comum dizer que não há um Direito

Penal de autor, mas um Direito Penal do facto e da culpa. Não que o Direito

Penal da culpa fosse uma inevitabilidade. Trata-se, ao invés, de uma opção

político-criminal tomada em homenagem sobretudo à ideia de que no seio de

um Estado de Direito, não podem valer exclusivamente meras considerações

preventivas, sob pena de as situações de erro, de doenças psíquicas, de falta

de maturidade, etc., serem tão punidas quanto as demais situações.

É por isso que, no nosso Direito Penal, a culpa assume um papel de

fundamento de pena (capacidade de culpa, possibilidade de conhecimento da

proibição) e limite da pena (factores de graduação da culpa).

Mas o conceito de culpa não é unívoco e sofreu grandes transformações

ao longo do tempo no seio do Direito Penal.

Sem nos querermos alongar em demasia na evolução do conceito de

culpa, dir-se-ia que no seio do empirismo do pensamento naturalístico do final

do Século XIX e da corrente do positivismo científico, pelas vozes de AA. como

BURI, LISZT, BELING, LÖFFLER, KOHLRAUSCH e RADBRUCH131, começou por se

131

Citados por CLAUS ROXIN, «Culpa e Responsabilidade – questões fundamentais da teoria da responsabilidade»,

tradução por Maria da Conceição Valdágua do § 19 do Vol I do Tratado do Prof. Claus Roxin, Revista Portuguesa de

Ciência Criminal, ano I, Fasc. 4, Outubro-Dezembro de 1991, Aequitas-Editorial Notícias, p 507. (citado: «Culpa e

Responsabilidade»).

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

77

desenvolver um conceito psicológico de culpa, que afirmaram as seguintes

ideias essenciais:

- a culpa era a ligação subjectiva do agente com o resultado,

- o dolo e a negligência são formas de culpa,

- a imputabilidade é um pressuposto da culpa.

No início do século XX as críticas ao conceito psicológico de culpa

haviam-se intensificado de tal forma que criaram terreno para o surgimento de

um novo conceito penal de culpa: o conceito normativo de culpa. Um forte

contributo nesse sentido foi dado pela obra de REINHARD FRANK, em 1907, com

a sua obra Acerca da Construção do conceito de culpa (Über den Aufbau des

Sculdbegriffs).

Em tal obra o Autor concluiu pela invalidade de um conceito psicológico

da culpa por duas razões essenciais. A primeira relacionada com a

imprestabilidade de tal conceito para explicar o estado de necessidade

desculpante. Dizia a este propósito que “Na verdade, se o conceito de culpa

não abrange mais do que a soma do dolo e da negligência, e se estes

consistem na produção, consciente ou imprevidente, do resultado, então é

incompreensível que a culpa possa ser excluída por estado de necessidade.

Com efeito, também o agente que actua em estado de necessidade sabe o

que faz. É, pura e simplesmente, ilógico (…) negar o seu dolo”132. A segunda

relacionada com o facto de discordar que a imputabilidade seja pressuposto de

culpa já que, para Frank, a imputabilidade pertence à própria culpa.

Alguma doutrina invocou ainda um terceiro argumento contra o conceito

psicológico de culpa relacionado com a negligência inconsciente: é que, nesta

modalidade de culpa, não se vislumbra uma qualquer ligação psíquica do

agente com o resultado.

O conceito normativo de culpa de FRANK foi aprofundado pela doutrina de

GOLDSCHMIDT que concretizou que a censurabilidade a que FRANK aludia

ocorria por referência à violação de uma norma de direito que tem em si

implícita uma norma de dever.

132

Referido por CLAUS ROXIN, «Culpa e Responsabilidade», p. 508.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

78

Com o conceito normativo de culpa (ideia de censurabilidade) foi assim

dado um passo em frente na separação entre valorações dos factos e factos

psíquicos, ou seja, entre valoração (juízo de culpa) e aquilo que se valora.

Retomando o pensamento de ARTHUR KAUFMANN, ROXIN defende o

conceito normativo de culpa mas aprofunda-o um pouco mais. Segundo este

ilustre penalista a censurabilidade não pode apenas reconduzir-se à categoria

da culpa já que para haver responsabilidade penal à culpa sempre terá de se

adicionar a necessidade preventiva de sanção, razão pela qual um conceito

normativo de culpa terá de se transformar num conceito normativo de

responsabilidade (culpa e prevenção). CLAUS ROXIN esclarece ainda que é

«inteiramente errónea a opinião de que a responsabilidade se torna num “puro

juízo de valor” com a eliminação do dolo da “culpa” e a sua localização no tipo»

sendo certo que, à semelhança do que sucede ao nível da ilicitude, também

quanto à responsabilidade há que distinguir o juízo de valoração da

factualidade valorada. Relativamente a esta factualidade a ser valorada refere

CLAUS ROXIN que «fazem parte da base factual da responsabilidade em sentido

restrito todas as circunstâncias que, para além do ilícito, são decisivas para a

responsabilidade. São elementos em parte subjectivos, em parte objectivos,

como a constituição psíquica do agente, a sua consciência real ou virtual da

ilicitude e a falta de situações de desculpa. Da base factual da

responsabilidade em sentido lato faz parte também o ilícito típico, pois é pelo

facto global que o agente é responsabilizado. Todos os elementos do ilícito são

portanto, indirectamente, critérios de culpa e de responsabilidade. A questão

de saber se se localiza o dolo no tipo ou na culpa só decide, portanto, da

pertença do dolo à base factual da responsabilidade em sentido lato ou em

sentido restrito. O termo “responsabilidade” tal como o de censurabilidade (ou

a ilicitude em relação ao facto ilícito) designa, no sentido rigoroso da palavra,

apenas o predicado de valoração, não a própria base factual valorada, onde

isso seja exigido pelo contexto»133.

133

Citado por CLAUS ROXIN, «Culpa e Responsabilidade», pp. 511 e 512.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

79

ROXIN mistura, assim, a teoria da culpa com a teoria dos fins das penas,

ao ponto de as causas de exclusão da culpa serem causas de exclusão da

responsabilidade baseadas nos fins das penas.

Uma nova reviravolta foi dada pela doutrina da acção final ao posicionar o

dolo e a negligência no tipo, assim eliminando definitivamente qualquer

resquício que ainda pudesse existir do conceito psicológico de culpa e assim

criando um conceito finalista de culpa.

HANS WELZEL parte do conceito normativo de culpa e introduz-lhe um

critério de reprovabilidade que se reconduzia à formação antijurídica da

vontade do autor. Mas o maior legado finalista nesta área, foi deixado por

MAURACH e ZIPF que pretenderam separar elementos psíquicos e elementos-

base de juízos de valor, valorativos ou normativos, assim formando um

conceito complexo de culpabilidade.

Partindo do conceito normativo de culpa, reformulou-se o mesmo à luz

deste reposicionamento da culpa no tipo, passando os três elementos da

censurabilidade a serem a imputabilidade, a possibilidade de consciência da

ilicitude e a exigibilidade.

Pese embora a evolução registada, na verdade, no marasmo conceptual

(culpa, censurabilidade, responsabilidade) a verdade é que estamos perante

perspectivas formais que não explicam o conteúdo material de tais conceitos.

Na tentativa de concretização de tal conceito material de culpa,

perfilaram-se várias teses que aqui não aprofundaremos mas que vão desde a

ideia de culpa como “poder agir de outra maneira”, à de culpa como atitude

interior reprovada pelo Direito, etc..

Existe também quem defenda um conceito de culpa em função da sua

finalidade – conceito funcionalista de culpa. Na senda da influência da teoria

dos sistemas sociais de LUHMANN, JAKOBS entende que o fim da culpa era a

prevenção geral positiva (restabelecimento da confiança na ordem jurídica,

fidelidade ao Direito), o que tem sido objecto de severas críticas.

A evolução do conceito formal de culpa não foi linear, nem a sua

caracterização fica esgotada nestas breves linhas, sendo que, numa

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

80

perspectiva mais material não deixaremos de atender à definição de culpa

penal como a “violação pelo homem do dever de conformar o seu existir de

forma a que na sua actuação na vida, não viole ou ponha em perigo bens

juridicamente (jurídico-penalmente) protegidos”134.

De todo o modo, actualmente estamos, como já sublinhámos, perante um

Direito Penal perpassado pelo princípio da culpa, princípio esse que tem, como

sintetiza GERMANO MARQUES DA SILVA135, os seguintes corolários: “a) a

exigência de dolo ou negligência e consequente afastamento da

responsabilidade simplesmente objectiva; b) a necessidade de que a pena se

refira a facto próprio (…); c) A necessidade de ter em conta a situação

concreta em que o agente se encontrava ao tempo de cometer o crime para

que as circunstâncias concorrentes possam exercer o seu papel excludente ou

redutor da pena; d) exigência de que a pena seja proporcionada à culpa do

agente, isto é, que entre o castigo e o facto exista um equilíbrio”.

Trilhado brevemente este percurso evolutivo do conceito de culpa no

ordenamento estritamente penal, ordenamento onde a dogmática se encontra

mais amadurecida, podemos então perguntar-nos: e no domínio contra-

ordenacional, concluindo-se (como fizemos) pela aplicabilidade do princípio da

culpa, de que culpa estamos a falar?

É certo que também aqui estamos na análise de uma culpa do facto que

passa pela análise da vontade do agente na sua liberdade de acção contrária

aos seus deveres jurídicos (partindo assim de premissas de imputabilidade e

de inexistência de circunstâncias exteriores que determinassem

irremediavelmente a conduta do agente, ou seja, sem a exigibilidade de

actuação diferente). Também é certo que a culpa contra-ordenacional deverá

igualmente ser analisada quer na sua vertente a objectiva (relação causal entre

o agente e a sua conduta ilícita) quer subjectiva (com reunião dos

pressupostos de formulação de um juízo de censura à conduta ilícita do

agente).

134

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Liberdade, Culpa, Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, p. 188.

135 GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal, Parte Geral I, pp. 92 e 93.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

81

Mas tal não significa que estejamos perante uma culpa inteiramente igual

à culpa penal.

Importa referir que há doutrina que se inclina a acometer ao Direito

Administrativo a tarefa de afirmar o que é a culpa nas contra-ordenações. Com

efeito, v.g. FIGUEIREDO DIAS inicialmente defendia mesmo que “não sendo a

conduta contra-ordenacional, em si mesma tomada, um substrato

axiologicamente relevante, a culpa contra-ordenacional não pode ser igualada

à) nem confundida com a) culpa penal; da mesma forma que desde o nosso

primeiro escrito defendemos acontecer com a culpa jurídico civil.

Reconhecendo que, em matéria de culpa contra-ordenacional, a última palavra

pertence à ciência do Direito Administrativo, não cremos que ela possa vir a

ser materialmente concebida (…) como o ter o agente que responder pela

personalidade – pela atitude pessoal – que se exprime no facto ilícito-típico e o

fundamenta; com o cotejo de implicações dogmáticas e prático-normativas que

aquela determinação material contém136”.

Com o devido respeito, apesar de tal afirmação de tão ilustre penalista

ser datada, não podemos, face à lei que temos, concordar em atribuir ao

Direito Administrativo a tarefa de definir o que é a culpa contra-ordenacional.

Com efeito, o legislador do RGCO previu duas fases processuais

distintas: uma (organicamente) administrativa e outra judicial e, no entanto,

apenas consagrou como legislação subsidiária em toda a linha, o Código Penal

e Processual Penal (arts. 32.º e 41.º do RGCO), sendo que, conforme já se

concluiu antes, o Direito contra-ordenacional é um Direito autónomo mas que,

tal como o Direito Penal, não deixa de ser um Direito sancionatório, fazendo

aliás parte da Ciência total do Direito Penal.

Temos pois as maiores dificuldades em admitir que a culpa num domínio

sancionatório como o contra-ordenacional o é, seja determinada em moldes

administrativistas. Nem se nos afigura que possa ser de atender a uma culpa

de cariz administrativo na fase administrativa do processo contra-ordenacional

e uma culpa de cariz penal na fase judicial sob pena desde logo de perda da

136

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, p. 149

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

82

coesão na análise das condutas e nos juízos de censura a realizar ao longo

das diferentes fases processuais.

Mas o facto de entendermos que a culpa nas contra-ordenações não é

uma culpa com cariz administrativo não faz com que se entenda que se está

perante uma culpa inteiramente igual à culpa penal em todas as situações.

É que se a culpa contra-ordenacional fosse inteiramente igual à culpa

penal, por exemplo, bastaria a remissão em termos de legislação subsidiária

para o Código Penal (art. 32.º do RGCO) não tendo o legislador de prever,

como previu, um regime específico de normas tocantes à culpa no RGCO

(embora, é certo, existam normas quase decalcadas e repetidas nesse mesmo

regime).

De resto, e como já fomos referindo, os especiais contornos do ilícito

típico contra-ordenacional a que aludimos introdutoriamente não poderiam

deixar de se reflectir na categoria da culpa. MANUEL DA COSTA ANDRADE não

hesita em afirmar que “A diferente referência subjectiva da ilicitude reflecte-se

naturalmente no conteúdo de culpa e no sentido das sanções”137.

Aliás, como vimos da evolução penalista do conceito de culpa, esta

sempre andou bastante associada a uma valoração axiológica das condutas

do indivíduo.

Ora, a perspectiva tradicional de que o ilícito contra-ordenacional é

marcado por uma irrelevância ética (e é-o na maioria dos casos, mas como

vimos, há excepções), não deixou de ter reflexos na doutrina que se foi

construindo sobre o que seria a culpa nas contra-ordenações.

Tal doutrina despia a culpa contra-ordenacional de juízos de censura

ética ao agente, ora vestindo-a de ideias de mera imputação, ora de ideias de

censurabilidade social, ora ainda de censura funcional atentas as especiais

qualidades do agente num determinado contexto, senão vejamos como se vêm

pronunciando as vozes nacionais (enunciando, propositadamente, cada um

dos entendimentos nas próprias palavras dos autores evitando assim correr

riscos de desvirtuamento num ponto fulcral como é este).

137

MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo», p. 95.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

83

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, por exemplo, entendia estar-se sobretudo

perante uma ideia não tanto de censura ética mas sim de imputação de

responsabilidade. Afirmava o mesmo que “no que toca aos pressupostos de

imputação da contra-ordenação respeitantes à culpa, haverá especialidades de

monta a assinalar. Pode mesmo questionar-se se, face à aludida neutralidade

ética das condutas nas contra-ordenações, deverá em rigor falar-se de culpa; e

em reforço da dúvida pode assinalar-se que no art. 1.º, n.º 1 se não refere

culpa, mas só o carácter censurável do facto constitutivo de contra-ordenação.

A minha opinião vai no sentido de que pode e deve aqui falar-se de culpa –

aliás, expressamente referida, v.g., nos artigos 9.º-1, 16.º-2, 18.º-1, 22.º-1, etc..

Só que (como bem notou, em algumas decisões, o Tribunal Constitucional

alemão) não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa

censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas

de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de

outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece

exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da

coima”138.

Também HELIANA MARIA DE AZEVEDO COUTINHO refere que “A culpabilidade

foi atingida directamente pelo legislador, pois o conceito de culpa stricto sensu

está ligado ao elemento ético-social relevante da tipicidade penal, que não

pode ser sancionado com uma simples Geldbusse”139.

Por seu turno, EDUARDO CORREIA define o conteúdo da culpa nas contra-

ordenações nos seguintes termos: “em vez de uma culpa fundamentada

eticamente, só pode a seu respeito falar-se de uma censura social. A

expressão desta censura não envolve, portanto, um sentido de retribuição ou

expiação ética, ligado a uma finalidade de recuperação do delinquente, mas

exprime, apenas, a ideia de advertência de que está ausente o pensamento de

qualquer mácula ético-social”, admitindo o ilustre penalista que tal teria reflexos

de regime ao avançar que “A um tal esvaziamento do conteúdo ético-social de

138

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p.29.

139 HELIANA MARIA DE AZEVEDO COUTINHO, «O Direito de Mera Ordenação», pp. 99 e ss.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

84

uma advertência desse tipo há-de, necessariamente, corresponder a libertação

de categoriais, e dos corolários formais, do Direito Criminal”, não deixando

ainda de fazer apelo à ideia de existência ou não de circunstâncias que

tornassem inexigível outra conduta140.

MÁRIO FERREIRA MONTE, partindo da ideia de que, na contra-ordenação “a

ilicitude vem a ser consequência e não causa da proibição legal”, não deixa de

extrair consequências ao nível do conceito de culpa, nos seguintes termos: “A

culpa que no Direito Penal se liga à atitude pessoal, ao ter o agente de

responder pela sua personalidade, apesar de ainda falarmos de direito penal

do facto, que se exprime no facto típico-ilícito que o fundamenta, uma vez que

a conduta, nos crime, tem em si uma relevância ético-social, susceptível de

produzir por si só um juízo de censura ética, enquanto nas contra-ordenações,

não tendo a conduta essa relevância e tendo-a apenas o ilícito, onde se insere

a proibição, permite concluir que também o conteúdo e sentido da culpa terá

de ser diverso, quiçá orientado para o desrespeito pela proibição e não mais

do que isso, assumindo aqui particular relevo a figura do erro, nomeadamente

do erro sobre as proibições ”141.

ANTÓNIO LEONES DANTAS, por seu turno, entende que, no domínio contra-

ordenacional «A culpa surge aqui e apenas como vínculo que permite imputar

os factos à vontade do agente e fundamentar nessa imputação a sua

responsabilização perante a sociedade e não como o facto de o agente

“responder pela sua personalidade”»142.

Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE contribui para a construção de um

conceito de culpa no domínio contra-ordenacional quando afirma que “A

censurabilidade da culpa do agente mede-se pela sua responsabilidade social

pela evitação da conduta infractora e não pela sua atitude interna, ao invés do

que sucede no âmbito do Direito Penal. Por isso a incapacidade do agente

para ser influenciado pelas penas não releva como índice da diminuição

140

EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», p. 265.

141 MÁRIO FERREIRA MONTE, Lineamentos, Capt.III. ponto 1.2.1. c).

142 ANTÓNIO LEONES DANTAS, Direito das Contra-ordenações, p. 81

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

85

sensível da capacidade do agente que comete infracções, ao invés do que

sucede no CP (ver o artigo 11.º do RGCO em comparação com o art. 20.º do

CP). Por isso também, o simples desrespeito pela recomendação constante do

auto de advertência pode consubstanciar o dolo (artigo 557.º do CT de 2009).

Assim, o agente não beneficia de qualquer atenuação de coima se ele tiver a

responsabilidade social (por exemplo profissional ou deontológica) de

conhecer os bens jurídicos protegidos pelo direito contra-ordenacional e as

regras que os protegem. Por exemplo, são censuráveis as lacunas de

conhecimento dos profissionais ou habitués de certa área de actividade

(médicos, advogados, industriais, comerciantes, caçadores, pescadores, etc.)

sobre a existência e a validade de regras que a regulamentam quando o

agente não cuida de saber as ditas regras (assim também, JOSÉ VELOSO, 1993,

22 e COSTA PINTO, 1997, 257, 2000b, 311 e 2003:670, admitindo “critérios de

exigibilidade adequados ao circuito económico e profissional onde se insere o

agente”, uma exigibilidade intensificada pelas circunstâncias do caso (por

exemplo, por facilidade e conhecimento das normas vigentes ou de acesso a

informação relevante), ou pela qualidade do agente (por exemplo, em função

do tempo de exercício da profissão assumido pelo agente”, critérios de censura

“ético-profissional”, “considerações preventivas sobre a finalidade das

sanções” e até a “atitude de indiferença do agente relativamente aos valores

tutelados pelas normas contra-ordenacionais”.”, concluindo assim este Autor

que “A censurabilidade da culpa do agente mede-se, pois, pelo conteúdo

social-adscritivo da culpa no Direito das Contra-ordenações”143.

Para lá das fronteiras nacionais, BONHERT refere que a “censurabilidade”

nas contra-ordenações equivale ao que em Direito Penal se designa de culpa,

e exige a capacidade de o agente perceber a ilicitude do facto como também a

capacidade de agir em conformidade. Também GÜRTLER entende esta

censurabilidade como o facto de o autor agir ilicitamente, apesar de segundo

as circunstâncias do caso ter tido capacidade para se comportar conforme o

direito, referindo assim que não está em causa um juízo de não aceitação

143

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, pp.67 e 68.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

86

ético-social. ROGALI sublinha também que no domínio da culpa contra-

ordenacional não releva o plano interno do dolo ou da negligência, não releva

a atitude interna do agente face ao dever-ser144.

FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO vai ainda mais longe e refere que o

princípio da culpa, mesmo para efeitos de imputação deve ser entendido

(fundamentalmente) no sector das contra-ordenações como um princípio de

imputação com finalidades preventivas145. É certo que a culpa nas contra-

ordenações poderá andar também associada a ideias de prevenção geral, com

maior relevo para quem entenda que a prevenção especial positiva ou de

ressocialização não tem aqui um papel importante a desempenhar na medida

em que não se trata de expiar uma culpa eticamente fundada146.

Independentemente da ideia de que a prevenção geral tem um papel ainda

assim mais relevante que a prevenção especial em sede de contra-

ordenações, não se deixará de entender que o poder sancionatório do Estado

(seja por via de autoridades administrativas, seja por autoridades judiciais) não

pode ser ilimitado pelo que a moldura de prevenção geral terá como limite

inultrapassável a culpa.

Tais ideias de culpa enquanto mera imputação tinham já sido ensaiadas a

propósito da responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas.

Com efeito, até à reforma penal de 2007, uma das diferenças acentuadas entre

o ilícito de mera ordenação social e o Direito Penal era a possibilidade de

responsabilizar contra-ordenacionalmente pessoas colectivas (art. 7º do

RGCO), sendo que aqui a culpa havia de ser analisada à luz da actuação dos

titulares dos órgãos sociais, representantes ou trabalhadores de pessoas

colectivas, por condutas no exercício de funções e por conta dessas mesmas

pessoas colectivas, mas ainda assim sem prescindir, a nosso ver, de um juízo

de culpa, cientes que, como refere B. LOZANO CUTANDA “En un sentido estricto

y literal, las personas jurídicas no pueden ser culpables, ni tampoco inocentes.

144

AA. citados, a este propósito, por ALEXANDRA VILELA, O Direito de Mera Ordenação social, pp. 546 a 553.

145 FREDERICO LACERDA COSTA PINTO no seu «O Ilícito de mera ordenação social e a erosão».

146 FIGUEIREDO DIAS chama a atenção para à coima serem “estranhos sentidos positivos de prevenção especial” – cfr.

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos, p. 151.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

87

No nacen ni mueren ni compram ni venden, pêro el Derecho finge todo ello.

Puesto que de esta ficción jurídica se trata, la responsabilidad com culpa de

estas personas jurídicas tiene que explicarse de una manera distinta a la culpa

y la inocência de una persona física”147.

Também a jurisprudência portuguesa, nalguns arestos, vem acolhendo

este entendimento da culpa em termos flexíveis, como mero juízo de

imputação de responsabilidade, sem expiação ética, avançando até que a

mesma se poderá presumir da mera imputação do elemento objectivo. Veja-se

v.g., Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11.04.2012, P. n.º

2122/11.3TBPVZ.P1, em que se sumaria que “I – Na decisão da autoridade

administrativa, o elemento subjetivo da conduta pode presumir-se da descrição

do elemento objetivo. II – O regime geral das contraordenações e coimas [DL

n.º 433/82 de 27-10] apresenta uma nítida autonomia face ao Código Penal,

decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da

diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o Direito

Penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da

distinta natureza dos órgãos decisores.”

De todo o modo, entendendo-se, como fazemos, que existem ilícitos

contra-ordenacionais (excepcionais, é certo) que não são axiologicamente

neutros, algumas das considerações referidas podem cair por terra… Com

efeito a diferente e dual concepção de ilicitude tem reflexos decisivos na culpa.

Daí que, na esteira da categorização bipartida de contra-ordenações

avançada por ALEXANDRA VILELA, e ainda que no pressuposto que tal exigiria

uma revisão profunda do regime legal ao nível das contra-ordenações, talvez

seja tempo de partindo das ideias cumulativas de imputabilidade,

censurabilidade e inexigibilidade, equacionar um critério dual de culpa nas

contra-ordenações: por um lado a culpa nas que vimos designando como

simples contra-ordenações (aí valendo efectivamente a ideia não tanto de

análise da conduta interna ou da personalidade do agente reflectida nos factos

147

B. LOZANO CUTANDA, «La responsabilidad de la persona jurídica en el âmbito sancionador administrativo (a propósito

de la STC 246/1991, de 19 de Diciembre)», Revista de Administración Pública, n.º 129, 1992, p. 224.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

88

mas antes ideias de imputação, de responsabilidade social do agente, não

raras vezes numa veste funcional, face à conduta violadora de proibições

legais pré-existentes ou, como o Tribunal Constitucional já lhe chamou, em Ac.

n.º 45/2014 de 09 de Janeiro, uma culpa fundada no “incumprimento de

deveres”) e, por outro lado, a culpa nas contra-ordenações com conteúdo

ético-social e até protectoras de bens jurídico-penais ainda que sem

necessidade de pena mas com carência de sanção contra-ordenacional (aí se

devendo usar os cânones penais da culpa, analisando já a conduta interna e

personalidade do agente, ainda que conscientes que a ofensa em causa não

foi considerada de tal modo insuportável que carecesse de pena embora

careça de sanção contra-ordenacional).

Parece-nos que é à luz destas especiais características da culpa nas

contra-ordenações que o intérprete deverá analisar as normas que surjam no

RGCO ou em regimes sectoriais sobre tal matéria, evitando assim importar

acríticamente raciocínios puramente penais para este domínio, atendendo às

especificidades aludidas e que ainda serão desenvolvidas infra.

Posto isto, e partindo desta modesta caracterização da culpa nas contra-

ordenações, estamos agora em condições de enunciar o princípio da culpa

contra-ordenacional nos seguintes termos “não há coima ou sanção acessória

sem culpa e a medida da coima ou da sanção acessória não pode ultrapassar

a medida da culpa.”

Nos esclarecedores dizeres de SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA “Um dos

princípios basilares do RGCO, à semelhança do que sucede com o Código

Penal, reside na compreensão de que toda a sanção tem de ter como suporte

axiológico-normativo uma culpa concreta, como desde logo pronuncia o art. 8.º

ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo, ou, nos casos

especialmente previstos na lei, com negligência. Esse princípio da culpa

significa não só que não há sanção sem culpa, mas também que a culpa

decide da medida da sanção, ou seja, a culpa não constitui apenas o

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

89

pressuposto-fundamento da validade da sanção, o que é aceite mesmo pelos

autores que dão maior tónica à prevenção geral”148.

Vejamos em que medida.

3. Primeira vertente do princípio da culpa: A culpa como fundamento

da coima e sanções acessórias nas contra-ordenações

3.1. A culpa como fundamento da sanção contra-ordenacional

3.1.1. A negação da responsabilidade contra-ordenacional

objectiva

Dizer que a culpa é fundamento da coima e das eventuais sanções

acessórias equivale a dizer que ainda que se verifique uma acção típica e

ilícita contra-ordenacional, se não houver culpa, a mesma não será

sancionável.

A afirmação precedente tem como primeiro corolário lógico a ideia de que

a responsabilidade contra-ordenacional não é puramente objectiva.

Não obstante, não é assim em todos os países. Na Grécia, por exemplo,

é admitida a responsabilidade objectiva ao nível do Direito Administrativo

sancionador149. Também o Tribunal Constitucional colombiano, v.g., vem

aceitando que existem situações de responsabilidade objectiva ao nível do

derecho administrativo sancionador, sobretudo na área tributária, sem que tal

seja manchado com a nódoa da inconstitucionalidade. Num estudo sobre a

jurisprudência do Tribunal Constitucional colombiano sobre a culpa nesta área

148

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA. Contra-ordenações – Anotações, p.169.

149Disso dá conta KLAUS TIEDEMANN, «El Derecho Penal Económico en la Comunidad Europea», Revista de Derecho y

ciências politicas, Facultad de Derecho y Ciências Politicas de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Vol 50,

año 1993, Lima, pp. 417-436, também disponível em

http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/articulos/a_20080527_19.pdf, consultado, pela última vez em 21.08.2013

(citado: «El Derecho Penal Económico»);

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

90

(anos de 1991-2007) MARIA LOURDES RAMÍREZ TORRADO dá-nos conta de que

em matérias cambiárias e tributárias vem-se admitindo, excepcionalmente, a

responsabilidade objectiva no paralelo que é o Direito Administrativo

sancionador, o que, segundo cita, está relacionado com a manutenção da

ordem pública e eficácia sancionatória. Por exemplo, no Acórdão C-10/2003

desse Tribunal decidiu-se que “En desarrolo de este objetivo que el Estado

impone deberes a quienes ejecuten actos, contratos y operaciones en el

mercado cambiário, cuyo control, para que sea oportuno y eficaz, demanda

total objectividad por parte de la administración, lo cual no se lograria si la

efectividad del régimen sancionatório en esta materia dependiera de la

demonstración de factores subjetivos como el dolo y la culpa”.

De todo o modo, este mesmo Tribunal assume a excepcionalidade desta

responsabilidade objectiva, estabelecendo aliás, no Acórdão C-616/2002

alguns requisitos gerais para que a mesma seja constitucionalmente

admissível: “En efecto, las sanciones por responsabilidad objetiva se ajustan a

la Carta siempre y cuando (i) carezcan de la naturaleza de sanciones que la

doctrina llama “rescisórias”, es decir, de sanciones que comprometen de

manera específica el ejercicio de derechos y afectan de manera directa o

indirecta a terceros; (ii) tengan un carácter meramente monetário; y (iii) sean

de menor entidade en términos absolutos (tal como sucede en el caso de las

sanciones de tránsito) o en términos relativos (tal como sucede en el régimen

cambiário, donde la sanción corresponde a un porcentage del monto de la

supracción, o en el caso del decomiso, en el que la afectación se limita

exclusivamente a la propriedad sobre el bien cuya permanência en el território

es contraria a las normas aduaneiras”150.

Na maioria dos países, contudo, não se admite a responsabilidade contra-

ordenacional objectiva. Veja-se, v.g., no ordenamento jurídico espanhol,

GARCIA DE ENTERRIA e TOMÁS-RAMÓN FERNANDEZ referindo que o também

paralelo (mas ainda assim bastante diferente) Direito Administrativo

150

MARIA LOURDES RAMÍREZ TORRADO, «Consideraciones de la Corte Constitucional acerca del principio de

culpabilidade en el âmbito sancionador administrativo», Revista de Derecho, n.º 29, Universidad del Norte, Colômbia,

2008, pp. 153-177 (citado: «Consideraciones de la Corte Constitucional»).

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

91

sancionador se abandonou a responsabilidade objectiva em virtude da

aplicação dos princípios penais. No Uruguai, SUSANA LOURENZO evidencia

também que nesse país se exige o dolo ou negligência nesta área do

jurídico151. Alguns Autores, como CESAR LOURENÇO SOARES NETO vão mesmo

ao ponto de afirmar que a admissão da responsabilidade objectiva nesta área

seria um “afronte a todos os conceitos da ciência jurídica152”.

A necessidade do fundamento da culpa é também afirmada ao nível

comunitário.

A um tal nível é interessante verificar que o Tribunal de Justiça da União

Europeia já tomou posição sobre a necessidade da culpa no Direito

Administrativo sancionador. Referem OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL “Com

esta elaboração analítica do Direito Administrativo sancionador da comunidade

europeia produz-se uma curiosa transmissão do pensamento jurídico através

dos flexíveis casos comunicantes da jurisprudência (…) Para ilustrar este

fenómeno pode utilizar-se o exemplo da culpabilidade que só se reconhece

nalguns países comunitários (Alemanha, Itália, Espanha) mas não do Reino

Unido e França onde só aceitavam as strict liability offences e os delits

purement matériels. Em transe de escolher entre uma e outra possibilidade o

Tribunal de Justiça fez sua a doutrina da culpa a partir das sentenças de 16 de

Novembro de 1983 (188/82 Thyssen contra AG) e 30 de Novembro de 1983

(270/82: Estel). Imediatamente a seguir o Tribunal da Cassação francês –

apegado até então à doutrina tradicional de denegação do princípio da culpa –

na sua sentença de 5 de Dezembro de 1983 o aceitou declarando a prioridade

dos princípios comunitários europeus do Direito Administrativo sancionador

sobre os princípios de cada um dos Estados membros começando pelos

franceses”153.

Desta europeização da culpa no dito Direito das contra-ordenações ou

análogos nos dá ainda conta KLAUS TIEDMANN quando refere “En el Derecho

comunitário, al respecto de las infracciones del TCECA la Comission ya en los

151

Citada por CESAR LOURENÇO SOARES NETO, Responsabilidad Ambiental subjetiva, p. 231.

152 CESAR LOURENÇO SOARES NETO, Responsabilidad Ambiental subjetiva, p. 236

153 ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Notas, p.108

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

92

años ochenta mantenia todavia que era supérflua la prueba de la culpabilidad

individual. Mientras que al contrario, el TJCE154 lo más tarde en el caso

Thyssen declaraba la necessidad de constatar la culpabilidade”155.

Entre nós, não é admitida a responsabilidade contra-ordenacional

objectiva porquanto a própria definição de contra-ordenação contém o

elemento da censurabilidade (art. 1.º do RGCO) nem tal se nos afiguraria

admissível nas águas do Direito sancionatório.

Assim, é - parece-nos - a todos os títulos censurável a existência de

normas do nosso ordenamento jurídico que admitem ainda assim o

sancionamento de contra-ordenações sem pressuporem um juízo de

culpabilidade, violando o princípio da culpa, sobretudo a propósito de

responsabilidades solidárias e subsidiárias como pareciam insinuar v.g. os

arts. 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, art. 551.º do

Código do Trabalho ou art. 226.º do Código dos Regimes Contributivos do

Sistema Previdencial da Segurança Social.

Existiu até jurisprudência de certa maneira desvalorizadora da culpa nas

contra-ordenações, como, v.g., o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de

08.10.2012, Proc. n.º 196/11.6TTBCL.P1, no qual, a propósito do art. 551.º do

Código do Trabalho, se sumaria que “A responsabilidade dos administradores,

gerentes ou diretores relativamente a coima atribuída a pessoa coletiva ou

equiparada traduz-se apenas e tão só numa solidariedade pelo pagamento,

pelo que não é necessário provar-se a sua culpa.” Existe contudo e

compreensivelmente jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade

material de um tal entendimento. Neste sentido, cfr. Ac. do Tribunal da Relação

de Coimbra, de 20.12.2011, P. 356/11.0T4AVR.C1 em que se sumaria que “A

norma do nº 3 do art. 551º do Código do Trabalho de 2009 padece de

inconstitucionalidade material, por violar o disposto no nº 3 do art. 30º da CRP,

devendo, por esse motivo, ser recusada a sua aplicação”.

154

Actualmente Tribunal de Justiça da União Europeia.

155 KLAUS TIEDEMANN, «El Derecho Penal Económico» pp. 417-436;

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

93

Entendimentos inconstitucionais à parte, há que olhar o Direito das

contra-ordenações como um Direito sancionatório que não prescinde do

princípio da culpa, inexistindo, assim, responsabilidade contra-ordenacional

objectiva.

Em suma, e como se sintetiza de forma lapidar no Ac. do Tribunal da

Relação de Coimbra de 11.03.2009, Proc. n.º 529/08.2TBMGR.C1 “I. - Um dos

princípios basilares do direito contra-ordenacional é o princípio da culpa.

II. - Para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é

necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou

negligência, consistindo o dolo «no propósito de praticar o facto descrito na lei

contra-ordenacional» e a negligência na «falta do cuidado devido, que tem

como consequência a realização do facto proibido por lei.”

3.1.2. A pessoalidade e intransmissibilidade da sanção contra-

ordenacional

Se a culpa é fundamento da sanção, e se a culpa é analisada

relativamente a um específico agente, além de inexistir responsabiidade

objectiva, é ainda de extrair um outro corolário: a da pessoalidade e

intransmissibilidade da responsabilidade e da sanção aplicada.

Se aparentemente a questão parece linear, a linearidade fica-se por isso

mesmo: pela mera aparência…

Com efeito, na praxis judiciária vêm-se suscitando questões interessantes

a este propósito, designadamente quanto à transmissibilidade ou não de

sanções contra-ordenacionais através da responsabilidade solidária e

subsidiária relativa às mesmas. Vejamos.

O princípio da pessoalidade e da intransmissibilidade da sanção vem

plasmado, com referência à área penal, no art. 30.º, n.º 3 da CRP, que afirma

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

94

que “A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”, podendo

pensar-se na aplicabilidade desta norma ao direito contra-ordenacional156.

Que dizer então de algumas normas criadas pelo legislador ordinário

como o art. 8.º do RGIT que, sob a epígrafe de “responsabilidade civil pelas

multas e coimas” dispõe que “1- Os administradores, gerentes e outras

pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de Administração

em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e

outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:

a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no

período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido

por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou

insuficiente para o seu pagamento; b) Pelas multas ou coimas devidas por

factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada

durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de

pagamento. 2 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é

solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos

de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa. 3 - As

pessoas referidas no n.º 1, bem como os técnicos oficiais de contas, são ainda

subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas

devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser

apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem,

até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direcção-Geral

dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação

e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título. 4 - As

pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas,

cometerem infracções fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento

das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as

providências necessárias para os fazer observar a lei. 5 - O disposto no

número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores ou

156

Nesse sentido, TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade, p. 145, entende que é de aplicar o art. 30.º, n.º 3 da

CRP ao Direito contra-ordenacional. Veja-se que o art. 32.º da CRP dirigido ao Direito Criminal, refere-se, no seu n.º

10, ao Direito contra-ordenacional.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

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incapazes, quanto às infracções por estes cometidas. 6 - O disposto no n.º 4

aplica-se às pessoas singulares, às pessoas colectivas, às sociedades, ainda

que irregularmente constituídas, e a outras entidades fiscalmente equiparadas.

7 - Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é

solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da

infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando

for o caso. 8 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números

anteriores, é solidária a sua responsabilidade.”?

Já o art. 7.º-A do RJIFNA sob a epígrafe “responsabilidade civil

subsidiária” estatuía que “1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas

que exerçam funções de Administração em pessoas colectivas e entes

fiscalmente aquiparados são subsidiariamente responsáveis, em caso de

insufiência do património destas, por si culposamente causada, nas relações

de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas àquelas entidades

referentes às infracções praticadas no decurso do seu mandato. 2 - Se forem

várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a

sua responsabilidade.

Não beliscarão os referidos artigos, o princípio da culpa, o da igualdade

e o da proporcionalidade, bem como o princípio da pessoalidade e

intransmissiblidade da sanção designadamente ao consagrar

responsabilidades subsidiárias e solidárias pelo pagamento da coima, em

violação do disposto nos arts. 29.º e 30.º da CRP por referência ao Direito

Penal e que podem aqui ser extensíveis ao Direito Contra-ordenacional?

Não significam estas normas legais o sacrifício dos princípios inerentes

ao Direito sancionatório em homenagem à ideia de eficácia na cobrança de

receita económica para o Estado?

É que estando-se ainda no âmbito da ciência total do Direito Penal,

maxime no Direito Penal e contra-ordenacional tributário, sem prejuízo das

suas especificidades, não existem razões para se afastar a aplicabilidade dos

princípios constitucionais a este aplicáveis. Como bem afirma GERMANO

MARQUES DA SILVA “O Direito Penal tributário pressupõe um vínculo contínuo

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

96

com os princípios e categorias dogmáticas do Direito Penal comum, devendo,

em especial, ser constante a referência aos princípios constitucionais que

conformam o sistema penal português”157.

Os Tribunais vêm sendo convocados a pronunciar-se sobre tal matéria

por referência às penas mas com total aplicabilidade em sede de coimas. A

marioria da jurisprudência publicada respeita à responsabilidade subsidiária

pelo pagamento das multas pelas pessoas singulares aí previstas quando a

pessoa colectiva a não pagou, situação que vem prevista no art. 8.º, n.º1 do

RGIT.

Uma corrente jurisprudencial defende a constitucionalidade da previsão

legal do art. 8.º, n.º1 do RGIT alicerçando a sua motivação sobretudo no facto

de se tratar de responsabilidade civil pelo pagamento das penas e das coimas

e não de qualquer responsabilidade penal ou contra-ordenacional, pelo que a

questão da pessoalidade e intransmissibilidade da sanção ou violação de

princípios criminais não se coloca, sendo a predita norma conforme à

Constituição da Republica Portuguesa.

Referem essencialmente que o que tal preceito prevê é a necessidade

de aferir da responsabilidade civil das pessoas singulares aí previstas, sempre

com análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por

facto próprio (art. 483.º do CC), e não de forma automática ou sequer a título

de responsabilidade civil pelo risco. Entendem pois que o próprio pressuposto

da culpa não é eliminado e vem previsto nas normas em causa já que o art.

8.º, n.º1 al. a) do RGIT refere que tem de estar verificada a culpa da pessoa

singular relativamente ao facto de o património da sociedade se ter tornado

insuficiente para o pagamento da coima ou da multa, bem como a al. b) afirma

que lhe há-de ser imputável a falta de pagamento.

Por outro lado, e quanto ao requisito do dano, referem que se dá a

coincidência de o mesmo se reconduzir, em termos de montante

indemnizatório, em regra, ao valor da pena ou da coima não paga, mas sem

157

GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Tributário, sobre as responsabilidades das sociedades e dos seus

administradores conexas com o crime tributário, Universidade Católica Editora, citado em Ac. do Tribunal da Relação

do Porto, de 22.10.2007, Proc. n.º 0741672.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

97

que tal coincida com qualquer aproximação à responsabilidade criminal ou

contra-ordenacional.

Entende assim esta corrente que se trata de uma responsabilidade da

pessoa singular por facto próprio, sendo analisados todos os requisitos da

responsabilidade civil extracontratual, tendo que ficar provada, entre outros, a

culpa da pessoa singular no facto danoso para a Administração.

Esta é, aliás, a tese defendida no Acórdão n.º 129/2009 de 16.04.2009

do Tribunal Constitucional, que decidiu não julgar inconstitucional a

responsabilidade prevista no art. 8.º, n.º1 als. a) e b) do RGIT, sublinhando-se,

a certo ponto, que “o que está em causa não é, por conseguinte, a mera

transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era

originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva, mas antes a

imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que

é praticado pelo administrador ou gerente que constitui causa adequada que

resulta, para a Administração fiscal da não obtenção de receita em que se

traduzia o pagamento da multa ou coima que eram decididas. A simples

circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou

coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da

responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe

reparar.”

Em igual sentido e com idêntica fundamentação podem ainda analisar-

se, v.g., os Acórdãos do mesmo Tribunal Constitucional n.º 150/2009 de

18.05.2009 e 234/2009 de 12.05.2009 de 07.06.2011 ou ainda 437/2011 de

03.10.2011, 531/2011 de 09.11.2011.

Mais recentemente, no mesmo sentido, veja-se o Acórdão n.º 405/2013

em que se sumaria que “O TC, pelos fundamentos do Ac. n.º 561/2001 e

389/2013, tirados em Plenário, decide não julgar inconstitucional a norma

constante da alínea a) do n.º 1 do art. 8.º do Regime Geral das Infracções

Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na parte em

que se determina a responsabilidade subsidiária dos gerentes por multas

aplicadas por infracções criminais previstas no RGIT (cf. Ac. n.º 249/2012).”

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

98

Outra corrente jurisprudencial vai, porém, em sentido diverso,

entendendo, assim, que o preceito em causa (art. 8.º, n.º1 do RGIT) não

respeita os princípios constitucionais aplicáveis.

Alicerça-se essa desconformidade constitucional desde logo no

argumento de que a distinção feita na norma em causa entre responsabilidade

civil e penal ou contra-ordenacional é algo artificial.

Por um lado, porque separa duas relações de diferente fonte e natureza:

uma a da pessoa colectiva responsável pelo pagamento da coima (sanção que

aqui nos interessa) por violação de Lei tributária e outra da pessoa singular

representante daquela pessoa colectiva que apenas emerge do incumprimento

do pagamento da coima por esta última e que fica dependente de em processo

executivo se verificar haver impossibilidade de tal cobrança por facto imputável

à pessoa singular.

Não pode, em rigor, falar-se de uma modificação subjectiva da instância

porque a sucessão na titularidade de uma obrigação teria de ocorrer numa

relação que não perderia a sua identidade, e que, deveria assim ser, em

ambos os casos, meramente civilística, o que não sucede… daí que alguns

venham entendendo não haver que falar em fenómeno de transmissibilidade

da coima, reforçando-se que esta nova obrigação é civil e de ressarcimento do

dano e por isso diferente da sanção contra-ordenacional inicial.

Mas esta construção que separa totalmente a responsabilidade pela

violação do dever tributário da responsabilidade pelo não pagamento do

montante sancionatório pode apresentar-se como algo artificial sendo mesmo

qualificada por alguns autores como uma verdadeira “burla de etiquetas”.

Erguem-se assim vozes como a de NUNO BRANDÃO (ainda que por referência a

norma análoga – art. 11.º, n.º 9 do Código Penal-) considerando que “esta

distinção não é aceitável e constitui uma autêntica burla de etiquetas, ao

travestir de responsabilidade pelo cumprimento da sanção aquilo que na

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

99

realidade é uma autêntica transmissão da responsabilidade penal, ainda que

operada por via legal”158.

Há aqui uma responsabilidade da pessoa singular com dever de

indemnizar com base numa justificação de causalidade indirecta ou

consequencial de sujeito diferente do inicialmente acoimado e que tinha um

dever de prestar.

É que, ao contrário do que sucede com o pedido de indemnização civil

por adesão ao facto criminal imputado (art. 71.º ss. do CPP), estamos agora a

falar de uma responsabilidade subsidiária e não simultânea.

Mas não constituirá isto uma verdadeira transmissibilidade do

pagamento da coima? Não implicará esta responsabilidade subsidiária a

violação de princípios constitucionais?

Note-se que o artigo 8.º do RGIT, na sua própria epígrafe e ainda nas

suas várias normas, refere estabelecer directamente a responsabilidade civil

por multas ou coimas, sem a mediação de qualquer outro débito, de outra

natureza e objecto, sem quebra do nexo com o dever de pagar a coima.

Nesta senda há pois quem entenda que existe um quadro unitário da

relação que nasce com a imposição da coima e que o vínculo de

responsabilidade acompanha e garante, em estado de latência, a obrigação de

pagar a coima, desde o seu início. O incumprimento dessa obrigação apenas

activa essa responsabilidade, dando título à execução do património do

devedor (pessoa colectiva). A insuficiência do património deste, quando

imputável aos administradores, legitima, por sua vez, o seu chamamento à

responsabilidade, dando-se continuidade ao processo, através do mecanismo

da reversão fiscal, aliás sem necessidade de novo título executivo.

Mais argumentam que não é admissível esta responsabilidade

subsidiária das pessoas singulares pelo pagamento da coima aplicada já que

essa mesma coima, como consequência de Direito que é sancionatório, tem

158

NUNO BRANDÃO, «O regime sancionatório das pessoas colectivas na revisão do Código Penal», in AA. VV., Direito

Penal económico e europeu: textos doutrinários, III, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 461 e ss..

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

100

finalidades específicas de prevenção e que não serão atingidas em sede

meramente civilística.

Ou seja, não pode pretender-se que a responsabilidade civil (que visa o

ressarcimento de danos) seja subsidiária de uma realidade distinta que é a

responsabilidade contra-ordenacional (que não deve visar qualquer receita ou

ressarcimento mas antes o sancionamento de condutas). São assim

responsabilidades de natureza, fonte e finalidades distintas. Conforme afirma

JOÃO MATOS VIANA “Ainda que o produto da coima, actualmente, possa assumir

uma importância relevante nos orçamentos das autoridades administrativas (o

que é legítimo e tem cobertura legal), a “coima”, enquanto figura jurídico-

sancionatória (enquanto figura repressiva), com finalidades de advertência

social, legitimada pela censura de uma culpa funcional, deve estar desligada da

lógica economicista da mera garantia de obtenção de receita”159.

Não duvida esta corrente que por via desta responsabilidade subsidiária

a pessoa singular não é um qualquer outro sujeito, mas alguém umbilicalmente

ligado por vínculos de representação à pessoa colectiva, sendo que esta última

não deixa de ser um centro de imputação autónomo. E não se olvida que a

responsabilidade de tais pessoas singulares seja um modo auxiliar de alcançar

objectivos e finalidades associados às multas e coimas já que assim, ainda que

indirectamente, a pessoa colectiva será instigada mais facilmente ao

cumprimento das referidas sanções.

Também é certo que tal transmissão não é automática, ficando antes

dependente de dois pressupostos: o da insuficiência do património da pessoa

colectiva para o cumprimento da sanção imposta demonstrada em fase de

execução e ainda a causação culposa pela pessoa singular de tal insuficiência,

aqui se podendo ir fundamentar a responsabilidade subsidiária em facto próprio

de quem ora se pretenda responsabilizar.

Contudo, defende esta corrente jurisprudencial que tal não permite que

se converta o valor patrimonial da coima em “dano” e que assim se converta

159

JOÃO MATOS VIANA, «A inconstitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas

coima aplicadas à sociedade. Comentário ao Acórdão do STA, de 4 de Fevereiro (processo n.º 0829/08, e ao Acórdão

do Tribunal Constitucional n.º 129/2009, de 12 de Março», Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano II, 2009, pp. 199-206.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

101

esta responsabilidade em responsabilidade civil. De resto, ainda que referindo-

se a penas, referem JOÃO RICARDO CATARINO e NUNO VITORINO ainda que a

propósito da multa penal, que “a impossibilidade de cobrança coerciva de uma

pena de multa criminal não implica para a Administração fiscal qualquer dano

(…) esses montantes são devidos a entidade diversa da Administração

Fiscal”160.

Como se alerta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 150/2009, a

responsabilização do gerente ou administrador da pessoa colectiva sancionada

não tem na sua base os mesmos factores de imputação que conduziram à

responsabilidade da pessoa colectiva, acontecendo antes porque a pessoa

singular “incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a

sociedade efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente

condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou

insuficiente para assegurar a cobrança coerciva”.

Assim, esta corrente não entende que esteja posto em causa, de modo

decisivo, o princípio da pessoalidade e intransmissibilidade ou da culpa sob o

ponto de vista do fundamento da responsabilidade já que há esta conexão com

a conduta pessoal do gerente ou administrador da pessoa colectiva

sancionada. O que considera, isso sim, é que o mesmo não sucede quanto ao

objecto da responsabilidade já que se a culpa é um dos pressupostos que

originam a responsabilidade em causa nos termos previstos nas als. a) e b) do

art. 8.º, já tal culpa é completamente desconsiderada na determinação da

sanção aplicável.

De facto, através do mecanimo processual da reversão fiscal, não se

volta a graduar a sanção em função da nova pessoa jurídica responsável,

designadamente quanto à sua culpa (mas também à gravidade da sua

actuação concreta, a sua situação económica), sendo aplicado sem outras

considerações o montante sancionatório que havia sido aplicado à pessoa

colectiva.

160

JOÃO RICARDO CATARINO e NUNO VITORINO, Infracções Tributárias, anotações ao Regime Geral, Coimbra Editora,

Coimbra, citado em Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 22.10.2007, Proc. n.º 0741672.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

102

Deste ponto de vista, estamos perante uma responsabilidade por dívida

alheia, cuja quantia é fixada a montante e sem qualquer consideração pelas

circunstâncias do responsável subsidiário assim se substituindo as finalidades

sancionatórias por uma mera garantia adicional de receita para a

Administração Tributária, o que se traduz na violação dos princípios da culpa,

igualdade e da proporcionalidade.

Estes os argumentos essencialmente mobilizados no Ac. do Tribunal

Constitucional n.º 481/2010 de 09.12.2010 (relativamente ao antecedente do

art. 8.º do RGIT - art. 7.º do RJIFNA - mas com raciocínio no mesmo sentido)

em que se decidiu “julgar inconstitucional por violação dos princípios

constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do art.

7.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras na parte em que

se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos

montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em

processo de contra-ordenação fiscal”.

No mesmo sentido da inconstitucionalidade do art. 8.º, n.º 1 do RGIT na

parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e

gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas

colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, efectivada por via da

reversão, por violação dos supra referidos princípios, pugnaram ainda v.g., os

Acórdãos nºs 24/2011, 26/2011, 561/2011 do Tribunal Constitucional.

Ora, assentes as duas correntes jurisprudenciais, com efeito,

entendemos também que se o fundamento da responsabilidade subsidiária

contra-ordenacional prevista no art. 8.º, n.º 1 do RGIT não é violadora do

princípio da culpa já que exige que a análise da conduta culposa da pessoa

singular na criação da insolvabilidade da pessoa colectiva acoimada para o

cumprimento da sanção, já o mesmo não se pode dizer quanto à medida da

coima.

Não podemos esquecer que a responsabilidade subsidiária do gerente

ou administrador surge num segundo momento, já em fase executiva da

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

103

sanção, quando se conclui pela impossibilidade de cobrança coerciva à pessoa

colectiva inicialmente sancionada.

Não olvidando que a pessoa colectiva age “pelas mãos” dos seus

gerentes ou administradores, não podemos deixar de atender ao facto de

serem centros de imputação distintos e mesmo uma sanção pecuniária como a

coima não tem, em regra, iguais consequências para uma pessoa singular ou

para a pessoa colectiva (note-se que a própria lei está abundantemente

recheada de molduras sancionatórias bem mais elevadas para as pessoas

colectivas do que para as pessoas singulares).

Trata-se assim de uma responsabilidade subsidiária ainda a aferir mas

que, a verificar-se, tem já uma sanção fixa pré-determinada que pode aliás ser

desadequada ou desproporcional à qual é alheia qualquer consideração sobre

a culpa do responsável subsidiário.

É certo que o Tribunal Constitucional em Acórdão n.º 344/2007 já

defendeu que “Deste modo, não pondo em dúvida que os princípios da

proporcionalidade e da igualdade e mesmo o princípio da culpa também

vinculem o legislador na configuração dos ilícitos contravencionais (como nos

de contra-ordenação) e respectivas sanções (…) Designadamente, não ocorre

aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais em que se funda a

violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamentação da referida

Jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas

criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à

liberdade (artigo 27.º, n.º 1) porque a multa contravencional, diversamente da

multa criminal, não tem prisão sucedânea.(…) Assim entendido, o princípio da

culpa pode ser pressuposto da imposição da sanção (fundamento), mas não é

um factor constitucionalmente necessário da sua medida concreta (limite

individual), não significando a cominação de uma multa contravencional fixa,

por si só, a violação dos artigos 1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição”.

Contudo, já o dissemos antes, o Direito Penal total (e, por isso, o Direito

contra-ordenacional que nele se integra), tem natureza sancionatória, não

podendo por isso prescindir-se de uma responsabilização sem referência a

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

104

uma culpa dentro de uma moldura sancionatória concreta, pelo que

defendemos não serem admissíveis coimas fixas ou pré-determinadas para os

responsáveis subsidiários (independentemente de tal ser declarado por via do

mecanismo da reversão fiscal do art. 23.º da Lei Geral Tributária ou em

processo penal161 desde que tal constasse inicialmente na decisão como

entendem alguns162 ou ainda em despacho autónomo na fase executiva da

sanção como entendem ainda outros163).

Mesmo nas que vimos chamando de simples contra-ordenações (que

poderão ser vistas como indiferentes a uma culpa ética, ao contrário das

contra-ordenações axiologicamente relevantes) não há que falar em coimas

fixas, havendo sempre que atender a factores determinantes da medida da

coima dentro de uma moldura. É que, não podemos deixar de sublinhar a dupla

vertente do princípio da culpa: a culpa como fundamento da coima (que aqui

não estará violada) mas ainda a culpa como limite da coima (medida da coima),

que aqui se encontra violada.

Assim, nos termos presentemente legislados, entendemos que a

redacção actual do art. 8.º, n.º 1 do RGIT no sentido referido compromete de

forma inconstitucional, entre outros, o princípio da culpa.

Em suma, neste ponto parece-nos que a manter-se a responsabilidade

subsidiária dos gerentes e administradores de facto, e sem prescindir do

fundamento da culpa nos termos já existentes, haverá que resolver o problema,

por via legislativa, quanto à consideração dos diversos factos de graduação da

medida da coima (de entre eles a culpa) devendo a análise ser feita em função

161

Entendendo que a responsabilidade subsidiária ou solidária pode ser declarada em processo penal e não apenas no

âmbito dos processos de reversão fiscal (cfr. princípio da suficiência do processo penal consagrado no art. 7.º, n.º1 do

CPP), admitindo aliás que o juiz o faça oficiosamente em fase de execução da pena, sem impulso do MP, cfr. Ac. do

Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2011, Proc. n.º 243/05.0IDPRT-A..P1.No mesmo sentido veja-se também Ac. do

Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2011, Proc. n.º 36/02.7IDCBR-A.C1, na mesma base de dados. Já o

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2011, Proc. n.º 1453/07.1TAVCT.G2, na mesma base de

dados além de considerar não padecer o art. 8.º, n.º 7 do RGIT de qualquer insconstitucionalidade, esclarece que “Por

força do disposto no art. 49.º do RGIT é no processo penal e não em processo autónomo que deve ser proferida a

condenação dos responsáveis civis a que alude o art. 8.º do RGIT”.

162 Neste sentido cfr, v.g. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 13.02.2013, Proc. n.º 103/06.8TAMDL-A.p1.

163 Neste sentido cfr. v.g., ainda que para a responsabilidade solidária do n.º 7 do art. 8.º do RGIT, o Ac. do Tribunal da

Relação do Porto de 28.09.2011, Proc. n.º 1062/05.0TAPRD-B.P1.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

105

do concreto devedor subsidiário, sob pena de se manter a inconstitucionalidade

actualmente existente.

Mas há ainda outra controvérsia residente no mesmo artigo: a da

responsabilidade solidária prevista no n.º 7 do referido art. 8.º do RGIT.

Vimos já que tal norma prevê que “Quem colaborar dolosamente na

prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e

coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua

responsabilidade pela infracção, quando for o caso.”

Trata-se agora não de uma responsabilidade subsidiária mas sim

solidária, o que significa que o pagamento das multas e coimas aplicáveis à

pessoa colectiva no âmbito penal ou contra-ordenacional também possa ser

directamente exigido ao devedor solidário e que o pagamento feito por este a

todos exonera de acordo com a legislação civilista (cfr. art. 512.º do Código

Civil).

É inegável que se trata de um mecanimo que permite uma mais fácil

cobrança dos montantes em causa por parte do Estado. AUGUSTO SILVA DIAS

refere mesmo que esta “solução de responsabilidade civil solidária (…)

representa um hábil estratagema para proteger os cofres públicos da falta de

liquidez dos Autores”164.

Fica contudo a obrigação solidária dependente do seguinte pressuposto:

haver o devedor solidário colaborado dolosamente na prática da infracção

tributária e, isto, independentemente da sua responsabilidade pessoal pela

infracção.

Alguma Jurisprudência entende que não há qualquer violação de

princípios constitucionais (designadamente de necessidade de sanção de

instransmissibilidade da sanção, da culpa, ou do ne bis in idem), tratando-se

de uma responsabilidade própria, solidária, ante uma colaboração dolosa na

prática de infracção tributária ainda que independente da responsabilidade

pela infracção.

164

AUGUSTO SILVA DIAS, «O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro», in AA.VV. Direito Penal Económico e Europeu,

Vol II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 250.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

106

Neste sentido veja-se v.g. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de

19.12.2012, Proc. n.º 131/10.9IDPRT.P1, em que se refere, no corpo do

Acórdão, que as sanções mantêm a sua autonomia. Escreve-se a tal propósito

que “a condenação solidária apenas implica que o credor pode exigir a

prestação integral de qualquer dos devedores (…) assim, as penas mantêm a

sua autonomia e não se verifica qualquer reversão de responsabilidade

sancionatória nem condenação duas vezes pelo mesmpo facto. Embora nas

relações externas o eventual cumprimento por um dos condenados libere

ambos da respectiva responsabilidade penal, certo é que nas respectivas

relações internas as sanções aplicadas mantêm-se juridicamente

autonomizadas porque integradas pelo direito de regresso (…) Nestes termos

(…) o .º 7 do art. 8.º do RGIT, não contende com qualquer dos princípios

constitucionais invocados, designadamente o que consagra o ne bis in idem

(artigo 29.º, n.º 5 CRP) e o da intransmissibilidade das penas (art. 30.º, n.º 3 da

CRP”)”. Também no sentido da inexistência de qualquer inconstitucionalidade

cfr., entre outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.05.2012,

Proc. n.º 98/07.IDACB-A.C1. ou Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de

16.03.2012, Proc. n.º 1407/09.3TAVCT.G1.

Contudo, para se concluir pela violação ou não de princípios

constitucionais, importa aferir o que quis a lei significar com “colaboração

dolosa na prática da infracção tributária” ou com “independentemente da sua

responsabilidade pela infracção”?

Colaborar significa auxiliar, cooperar, co-ajuduvar.

JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS165, ligam o conceito de

colaboração de tal norma aos de co-autoria ou cumplicidade.

O Ac. do Tribunal Constitucional 1/2013 de 22.02.2013 refere que “A

obrigação incide sobre aquele que presta colaboração dolosa, abrangendo

qualquer das situações de comparticipação na prática da infracção tributária, e

é cumulativa com a própria responsabilidade pessoal que dessa conduta possa

165

JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias, Áreas Editora, 2008, pp.

910 e ss..

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

107

resultar para o agente. Como se depreende, porém, do disposto no segmento

final do preceito, não é necessário que a conduta daquele que colabora na

infracção seja penal ou contraordenacionalmente punível (cf. Jorge Lopes de

Sousa/Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias

Anotado, 3.ª edição, Lisboa, págs. 102 -103.) O que significa que o devedor

pode apenas responder solidariamente pela multa ou coima que tenha sido

aplicada à pessoa coletiva ou responder solidariamente por essa multa ou

coima, em cumulação com a responsabilidade individual que lhe seja imputável

em função da sua própria comparticipação na infracção.”.

Em Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2011, Proc. n.º

1062/05.0TAPRD-B.P1 fala-se em situações de co-autoria na prática da

infracção tributária sumariando-se o seguinte “A responsabilidade solidária

pelas multas e coimas incidentes sobre o sócio-gerente e legal representante

da sociedade arguida, co-autores na infracção tributária (art.8.º/7 RGIT),

consubstancia uma pura responsabilidade civil e não uma repsonsabilidade

penal constituindo as multas ou coimas elemento de referência para a

quantificação do valor daquela responsabilidade.”

Note-se que tal colaboração dolosa na prática da infracção pode resultar

da intervenção de um titular de órgão ou representante da pessoa coletiva mas

não só… nada impede que seja, por exemplo, um trabalhador da empresa ou

de um prestador de serviços externo. Note-se igualmente que poderia até

haver causa de exclusão da sua responsabilidade pessoal mas continuaria a

ter responsabilidade solidária com a pessoa colectiva sancionada.

Tal corrente constitucional entende que há assim que separar as

situações do n.º 1 das do n.º 7 do art. 8.º do RGIT. É que se no n.º 1 podemos

assentar em que o fundamento da responsabilidade civil aí prevista é por facto

próprio e culposo, já no n.º 7 a própria lei assenta o fundamento na

colaboração no crime ou contra-ordenação tributária e não em qualquer

conduta própria anterior ou posterior, no que ora nos interessa, à contra-

ordenação.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

108

Daí que o Tribunal Constitucional, no referido Ac. n.º 1/2013 tenha

consignado que, nestes casos, pese embora a epígrafe do artigo 8.º do RGIT,

estamos perante uma verdadeira responsabilidade sancionatória por extensão.

Descreve assim que “Ainda que a obrigação solidária surja qualificada

formalmente como uma obrigação de natureza civil, com subordinação aos

princípios gerais da solidariedade passiva, ela não deixa de representar, na

prática, uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente

foi já punido, a título individual, através da aplicação direta de pena de multa.

Isso porque a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é

caracterizado como infracção, que é imputado ao agente a título de culpa, e

que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da

pessoa coletiva no interesse de quem agiu. A norma prevê, por conseguinte,

não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma

responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da

responsabilidade penal da pessoa coletiva.”

Há contudo que distinguir dois tipos de casos.

Num primeiro grupo de situações, em que tal responsabilidade solidária

da pessoa singular é cumulativa com a responsabilidade pessoal nos casos

previstos na referida norma, o sancionamento redundaria numa dupla

valoração do mesmo facto para efeitos sancionatórios (penais e contra-

ordenacionais).

É certo que, sendo diversos os responsáveis, nada impede que, pelo

mesmo facto, respondam duas ou mais pessoas, tanto que as condições de

imputação são diversas (v.g. quanto à culpa) e os efeitos da condenação são

diferentes (daí as previsões dos arts. 11.º, n.º 7 do CP e art. 7.º, n.º 3 do

RGIT). O que não se mostra admissível é que se cumule a responsabilidade

penal ou contra-ordenacional própria da pessoa singular com a

responsabilidade solidária pelo cumprimento de multa ou coima imposta à

pessoa colectiva (independentemente do direito de regresso que venha a

existir) já que, em tal caso, estamos perante uma uma dupla valoração jurídico-

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

109

criminal ou contra-ordenacional de um mesmo facto em violação do princípio

previsto no art. 29.º, n.º 5 da CRP.

O próprio Tribunal Constitucional se pronunciou, no referido Ac. n.º

1/2013 de 22.02.2013 decidindo julgar inconstitucional, por violação do art.

29.º, n.º 5 da CRP a norma do art. 8.º, n.º 7 do RGIT. Neste sentido, veja-se

ainda o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.05.2013, Proc. n.º

49/08.5IDVIS.C2, que decidiu que “É inconstitucional, por dupla valoração do

mesmo facto para efeitos penais, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral

das Infracções Tributárias, quando o responsável solidário é também

condenado, a título individual, pela prática da mesma infracção”.

Mas há ainda um segundo grupo de situações em que o devedor

solidário apenas é responsável solidário, não cumulando tal responsabilidade

com a responsabilidade pessoal.

Neste segundo grupo de situações, ou seja, aquelas em que, nos

termos da norma em causa o devedor solidário responde “independentemente

da sua responsabilidade pela infracção”, pode estar ainda em causa a violação

do princípio da pessoalidade e intransmissibilidade de sanção penal (e contra-

ordenacional) prevista no art. 30.º, n.º 3 da CRP, por via da solidariedade

passiva aí prevista.

Não é, pois, admissível a transmissibilidade da responsabilidade contra-

ordenacional já que a sua sanção é pessoal. Já KLAUS TIEDEMANN, referindo-se

precisamente ao nosso ordenamento jurídico, ressalta a propósito deste tipo

de responsabilização que “Esta teoria (discutida sobretudo em Portugal) é

rejeitada, com razão, pela maior parte dos ordenamentos jurídicos modernos

que assinalam o carácter retributivo e pessoal da multa. Este tipo de garantia

na execução da multa imposta contra os autores físicos não é pois, aceite,

entre outros países, pela Alemanha, Inglaterra, Grécia, Irlanda, Países Baixos,

Rússia, Japão e Austrália”166.

166

KLAUS TIEDEMANN, Derecho Penal y nuevas formas de criminalidade (trad. De Manuel A. Vasquez), editora jurídica

Grijley, Lima, 2007, p. 97 citado em Ac. do Tribunal da Relação de Évora de de 20.03.2012, Proc. n.º

213/09.0TAETZ.E1.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

110

Também a este propósito conclui TIAGO LOPES DE AZEVEDO que “o

Direito sancionatório obedece a princípios próprios, tem finalidades próprias.

Ora, é devido a essas finalidades próprias do Direito sancionatório contra-

ordenacional que as sanções não podem ser transmissíveis para outros

sujeitos. É que a haver tal transmissão, deixam de ter sentido as finalidades

das sanções no direito contra-ordenacional. Quer o legislador queira, quer não

queira, a aplicação de uma sanção contra-ordenacional implica a limitação de

direitos fundamentais. Por isso, essa limitação só pode ocorrer nos termos do

art. 18.º da CRP (…) Ao haver a transmissão da responsabilidade contra-

ordenacional, o indivíduo que vai suportar a sanção em questão não teve culpa

na conduta praticada pelo infractor e, por isso, vai responder por uma conduta

que não praticou. Há por isso uma evidente violação do princípio da culpa

sancionatório e da presunção de inocência”167.

De resto, além da questão da pessoalidade e intransmissibilidade

referidas, sempre nos parece que se colocaria para o art. 8.º, n.º 7 do RGIT o

mesmo óbice constitucional já referido quanto ao princípio da culpa no que

respeita ao art. 8.º, n.º 1, já que a referida solidariedade implicaria a assunção

pelo devedor solidário da mesma sanção da pessoa colectiva sancionada,

inclusive quanto ao quantum da sanção, sem considerações pessoais em

termos de medida ou graduação da mesma (designadamente quanto à culpa,

gravidade de actuação, situação económica, etc.), pelo que também aqui se

está perante a violação do princípio da culpa, da igualdade e da

proporcionalidade (como aliás se defende em declaração de voto no Ac. do

Tribunal de Constitucional 1/2013 subscrito pela Conselheira CATARINA

SARMENTO E CASTRO e ainda como se sumaria em Ac. do Tribunal da Relação

de Évora de 20.03.2012, Proc. n.º 213/09.0TAETZ.E1). De resto, com força

obrigatória geral, o Tribunal Constitucional decidiu no recente Ac. n.º 171/2014,

D.R. n.º 51, Série I de 13.03.2014 “Declarar a inconstitucionalidade, com força

obrigatória geral, da norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções

167

TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade, pp. 143-145.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

111

Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos

gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado

dolosamente na prática de infracção pelas multas aplicadas à sociedade”.

Assim, será a inconstitucionalidade em causa inevitável a menos que,

em tal responsabilidade cumulativa se apure a responsabilidade e a

determinação concreta da sanção para cada um dos responsáveis. ALEXANDRA

VILELA vai até mais longe rejeitando toda e qualquer ideia de subsidiariedade e

solidariedade neste campo. Refere aquela autora, socorrendo-se da previsão

normativa do art. 7.º, n.º 2 do RGCO ( que estabelece que “As pessoas

colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações

praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”) para dizer

“Assim sendo, estamos no âmbito de uma responsabilidade que se desenhou

cumulativa. Logo, se houver lugar a uma condenação dos dois entes, então

cada um responde pelas consequências jurídicas que lhe são assacadas e em

caso algum deverá existir responsabilidade subsidiária ou solidária, na medida

em que as consequências jurídicas são isso mesmo: consequências jurídicas

de factos próprios e não por causa de factos alheios – mesmo que

concatenados, ainda assim, alheios”168.

Pela sua frequência na prática judiciária detivemo-nos mais sobre o art.

8.º do RGIT. Contudo, não é a única norma que suscita os problemas supra

referidos.

Veja-se, v.g., o art. 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro

(regime das infracções antieconómicas e contra a saúde pública) que sob a

epígrafe de “responsabilidade por actuação em nome de outrem”, preceitua

que “As sociedades civis e comerciais e qualquer das outras entidades

referidas no n.º 1 respondem solidariamente, nos termos da lei civil, pelo

pagamento das multas, coimas, indemnizações e outras prestações em que

forem condenados os agentes das infracções previstas no presente diploma,

nos termos do número anterior.”

168

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação social, pp. 562 e 563.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

112

Também o art. 551.º do Código do Trabalho suscita questões de

inconstitucionalidade análogas às que vimos de descrever.

Preceitua tal artigo, sob a epígrafe de “sujeito responsável por contra-

ordenação laboral” que “1 - O empregador é o responsável pelas contra-

ordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no

exercício das respectivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida

por lei a outros sujeitos. 2 - Quando um tipo contra-ordenacional tiver por

agente o empregador abrange também a pessoa colectiva, a associação sem

personalidade jurídica ou a comissão especial. 3 - Se o infractor for pessoa

colectiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente

com aquela, os respectivos administradores, gerentes ou directores. 4 - O

contratante é responsável solidariamente pelo pagamento da coima aplicada

ao subcontratante que execute todo ou parte do contrato nas instalações

daquele ou sob responsabilidade do mesmo, pela violação de disposições a

que corresponda uma infracção muito grave, salvo se demonstrar que agiu

com a diligência devida.”

Como se extrai do n.º 3 do referido artigo, se o acoimado for pessoa

colectiva, estatui-se que são devedores solidários de tal coima as pessoas

singulares seus administradores, gerentes ou directores.

Mais uma vez estamos perante uma responsabilidade solidária da

pessoa colectiva e das pessoas singulares que a representem pelo

cumprimento da coima, independentemente da apreciação casuística da culpa

da pessoa singular concreta, operando assim de forma automática apenas em

função do cargo da pessoa singular na pessoa colectiva acoimada.

Valem assim aqui as questões suscitadas a propósito do art. 8.º, n.º 7

do RGIT quando a responsabilidade solidária não se cumula com a

responsabilidade pessoal da pessoa singular que é devedora solidária.

A propósito de tal responsabilidade solidária sumaria-se no Ac. do

Tribunal da Relação de Coimbra de 20.12.2011, Proc. n.º 356/11.0T4AVR.C1,

“A norma do n.º 3 do art. 551.º do Código do Trabalho de 2009 padece de

inconstitucionalidade material, por violar o disposto no n.º 3 do art. 30.º da

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

113

CRP, devendo, por isso, ser recusada a sua aplicação.”, referindo-se ainda na

fundamentação de tal Acórdão que “a imputação aos administradores,

gerentes ou directores, prescinde da verificação dos pressupostos gerais,

atinentes ao cometimento de um facto ilícito e culposo, bem como ao nexo de

causalidade adequada entre a acção e o dano produzido. Neste entendimento,

a norma em questão consagra a possibilidade de transmissão da

responsabilidade contra-ordenacional, que é equiparável à responsabilidade

penal, o que não é permitido pela Constituição (art. 30.º, n.º3 da CRP),

equivalento à punição dos administradores, gerentes ou directores em termos

de responsabilidade objectiva, sem necessidade de verificação da imputação

subjectiva a título de culpa”.

Outras normas se poderiam mencionar ainda cuja redacção e atribuição

de responsabilidades poderão violar os supra mencionados princípios,

avançando-se a título de exemplo, com o art. 135.º, n.º 3 al. b) e n.º 8 do

Código da Estrada.

Acresce referir que a subsidiariedade e a solidariedade legalmente

previstas e já mencionadas geram, além de problemas constitucionais, outros

problemas e perplexidades práticas que não são de pormenor.

Desde logo ao ao nível da prescrição. Com efeito, imagine-se ocorrer a

prescrição do procedimento contra-ordenacional ou a coima do devedor

originário mas já poder subsistir no tempo a obrigação do devedor

subsidiário…

TIAGO LOPES AZEVEDO refere, com efeito, outras questões que se podem

colocar na prática, referindo que o entendimento da responsabilidade civil

extracontratual como subsidiária ou solidária da responsabilidade contra-

ordenacional gera “graves entorses na interpretação sistemática da

responsabilidade contra-ordenacional, ao nível do conteúdo da subsidiariedade

e do direito de regresso, da extinção da obrigação civil e da obrigação

sancionatória e da prescrição. Senão vejamos. (…) se juridicamente estamos

perante uma dívida própria como é possível que haja direito de regresso? É

que como sabemos, o direito de regresso carcateriza-se precisamente pelo

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

114

pagamento por parte de outrem de uma dívida que não é sua, de uma dívida

que não lhe pertence (...) seguindo-se a argumentação deveras frágil de que

se está perante uma dívida própria, o simples pagamento dessa dívida nunca

extinguiria outra “dívida” contra-ordenacional de outro ente (…) Encarando-se

tal via como tecnicamente correcta, pelo menos quanto a esta parte, estará

aqui o Estado a abrir portas a um duplo pagamento? “169.

Em suma, não há que deixar impunes as condutas das pessoas

singulares (que serão por isso constituídas arguidas e num processo válido)

que, com culpa, contribuíram para que a sociedade não tenha património para

responder pela coima. Contudo, entendemos que tal deverá ser feito em

moldes diferentes dos actualmente legislados, já que importa que a conduta

das pessoas singulares (gerentes, administradores, técnicos oficias de contas

ou outros) mesmo que por referência à pessoa colectiva, seja apreciada

casuisticamente, quer como fundamento da sua responsabilidade quer como

limite e medida da mesma170.

Tudo normas e problemas práticos e de constitucionalidade que seriam

evitáveis, assim o legislador levasse a sério o facto de o Direito Contra-

ordenacional ser Direito sancionatório…

169

TIAGO LOPES AZEVEDO, «Uma nova e efectiva responsabilidade contra-ordenacional dos Administradores, gerentes

ou outras pessoas: distanciamento das visões tributárias e civilísticas», Março de 2012, disponível em

http://www.verbojuridico.com/doutrina/2012/tiagoazevedo_novaresponsabilidadecontraordenacional.pdf, consultado

pela última vez em 15.08.2013 (citado: «Uma nova e efectiva responsabilidade contra-ordenacional).

170 TIAGO LOPES AZEVEDO, em «Uma nova e efectiva responsabilidade contra-ordenacional», propõe uma solução

concreta: a tipificação contra-ordenacional autónoma de tais condutas dos administradores, gerentes ou outras

pessoas com funções de Administração de facto que tenham dissipado património societário para evitar o pagamento

das coimas. De modo telegráfico, tal Autor propõe que: a) o momento da prática do facto seja o do último acto

praticado que levou à situação de insuficiência patrimonial do agente primário; b) a tentativa não deverá ser punível; c)

deverá ser punível a comparticipação avaliando a medida de culpa de cada agente; d) mínimos e máximos de coima

em função do valor dos bens violados em montantes de 10% a 100% (exemplo: se o agrguido originário, numa coima

que oscilava entre €3.000,00 a €450.000,00 foi sancionado numa coima de €150.000,00 e a conduta do arguido

pessoa singular levou a que ficassem €75.000,00 por pagar, então a moldura para a pessoa singular é de €15.000,00

a €150.000,00.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

115

3.2. As causas de exclusão da culpa em sede contra-ordenacional

A culpa é, como vimos sublinhando, fundamento da sanção contra-

ordenacional, embora não seja o seu fundamento exclusivo. É-o a par com as

exigências de prevenção (ainda que com diferenças quanto ao processo penal

nas simples contra-ordenações já que nas mesmas a prevenção especial não

assume a importância que assume nas penas atento o especial conteúdo do

ilícito e de culpa em causa nesse tipo de contra-ordenações).

Para ser sancionado, o agente deverá ter tido uma conduta culposa, a

título doloso ou a título negligente e não se poderão verificar, em concreto,

causas de exclusão da culpa (note-se que, caso se afirmasse a

responsabilidade objectiva contra-ordenacional seria totalmente irrelevante, por

não aplicável, a análise das causas de desculpação).

Causas de exclusão da culpa, nesta sede, são causas que impedem que

se atribua culpa a quem praticou o que, pela lei, é considerado como um facto

ilícito típico contra-ordenacional, distinguindo-se, pois, das causas de exclusão

da ilicitude, onde a responsabilidade contra-ordenacional encontra um entrave

anterior à análise da culpa (já que para se analisar a culpa, ter-se-ia de afirmar

a ilicitude).

Quais então as causas de exclusão da culpa aplicáveis no seio do Direito

das Contra-ordenações? Estão previstas algumas, desde logo, no RGCO. É o

caso da inimputabilidade em razão da idade ou da anomalia psíquica (arts.

10.º e 11.º do RGCO), do erro (art. 8.º, n.º 2 do RGCO) e da falta de

consciência da ilicitude não censurável (art. 9.º, n.º 1 do RGCO).

Contudo, como vem sendo sublinhado por doutrina e jurisprudência,

poderão ainda ser mobilizáveis algumas causas de exclusão da culpa por

aplicação subsidiária da lei penal (art. 32.º do RGCO). Ora, o Código Penal

prevê ainda como causas de exclusão da culpa: o excesso de legítima defesa

do art. 33.º, n.º 2 do CP, o estado de necessidade desculpante do art. 35.º, n.º

1 do CP e a obediência indevida desculpante do art. 37.º do CP.

Façamos uma breve alusão às mesmas.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

116

3.2.1. Causas de exclusão da culpa previstas no RGCO

3.2.1.1. A inimputabilidade em razão da idade e de anomalia

psíquica (arts. 10.º e 11.º do RGCO)

A imputabilidade, também ao nível contra-ordenacional (quer nas simples

contra-ordenações quer nas contra-ordenações que protegem bens jurídico-

penais, sem haver contudo necessidade de pena mas havendo carência de

sanção contra-ordenacional) é o pressuposto mínimo de um juízo de culpa.

O legislador julgou adequado estabelecer como limiar de imputabilidade

contra-ordenacional os 16 anos de idade (art. 10.º do RGCO171) sucedendo

precisamente o mesmo no Direito Penal (art. 19.º do CP). Assim, mesmo que

ainda sejam incapazes à luz do Direito Civil antes dos 18 anos de idade (cfr.

arts. 122.º e 123.º CC), os maiores de 16 anos são já imputáveis para efeitos

contra-ordenacionais. Antes dos 16 anos presume-se que ainda não existe

uma capacidade de determinação e de decisão suficientemente desenvolvida

para haver responsabilidade contra-ordenacional, não sendo os mesmos

capazes de culpa (independentemente do tipo de contra-ordenação em causa).

Então, qual a solução legislativa para os menores de 16 anos que tenham

praticado um ilícito contra-ordenacional?

Não há norma expressa sobre tal questão.

Dispunha o art. 13.º al. c) da Organização Tutelar de Menores na versão

do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, que “Compete aos tribunais de

menores decretar medidas relativamente a menores que, tendo completado 12

anos e antes de perfazerem 16, se encontrem em alguma das seguintes

situações: (…) c) Sejam agentes de algum facto qualificado pela lei penal

como crime ou contravenção.” Não se refere, pois, o ilícito contra-ordenacional.

171

Quanto ao modo de contagem dos 16 anos esclarecem MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, in Contra-

ordenações – Anotações, p. 129., socorrendo-se dos ensinamentos de ANTUNES VARELA e de PIRES DE LIMA (Código

Civil anotado, I, p. 82), que impondo-se o recurso às regras do Código Civil, designadamente dos arts. 122.º e 279.º,

não se conta o dia do nascimento, pelo que no dia em que o jovem completa 16 anos ainda não é imputável.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

117

De resto, a Organização Tutelar de Menores é anterior à existência de leis

sobre contra-ordenações em Portugal.

Tal norma foi revogada pela Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14

de Setembro) cujo art. 1.º refere que a citada Lei se aplica aos menores entre

12 e 16 anos que tenham incorrido na “prática de facto qualificado pela lei

como crime”, não se referindo, mais uma vez, ao ilícito contra-ordenacional.

Ora, o legislador da Lei Tutelar Educativa já conhecia a existência do

ilícito contra-ordenacional e optou por o não referir. Aliás, como referem

ANABELA MIRANDA RODRIGUES e ANTÓNIO CARLOS DUARTE FONSECA “Primeiro

pressuposto da intervenção tutelar educativa é a verificação de uma ofensa a

bens jurídicos fundamentais traduzida na prática de um facto ilícito tipificado

em lei penal (…) Entende-se que este pressuposto deve ir buscar-se à lei

penal, uma vez que é neste ramo do direito que se reprimem as ofensas

intoleráveis aos bens jurídicos essenciais. (…) Segundo pressuposto – sendo

finalidade da intervenção a “educação do menor para o direito” e não a

retribuição pelo facto praticado (cfr. art. 2.º §1) – é a existência de necessidade

de correcção da personalidade do menor no plano do dever-ser jurídico

manifestada na prática do facto”172.

Assim, não se nos afigura curial pensar numa qualquer interpretação que

possa levar a aplicar a Lei Tutelar Educativa aos menores de 16 anos que

pratiquem ilícitos contra-ordenacionais já que a Lei Tutelar Educativa foi

pensada para as ofensas intoleráveis a bens jurídicos essenciais e ainda

porque foi pensada em função da prática de crimes (sendo certo que os ilícitos

penais pressupostos implicariam sempre que estivesse em causa a dignidade

penal e a necessidade de pena).

Nestes termos, tendo a actuação do menor provocado danos, sobra

apenas a tutela civil se se verificarem os pressupostos da responsabilidade

civil dos representantes legais do menor por culpa “in vigilando”.

172

ANABELA MIRANDA RODRIGUES e ANTÓNIO CARLOS DUARTE FONSECA, Comentário da Lei Tutelar Educativa, Coimbra

Editora, Coimbra, 2003, p. 57.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

118

Veja-se, v.g. (e ainda que se possa equacionar haver em tal caso

cumulação de responsabilidade criminal com responsabilidade contra-

ordenacional) o caso do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.12.2006,

Proc. n.º 2000/03.0TBVIS.C1, em que se deixa sumariado que “I – O art. 491º

do C.Civ. ao cominar a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de

outrem, prevendo uma presunção de culpa (presunção juris tantum), contempla

uma situação especifica de responsabilidade pela omissão, assentando na

ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano,

por omissão do dever de vigilância. II – Trata-se não de uma responsabilidade

objectiva ou por facto de outrem, mas por facto próprio, baseada na presunção

ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando). III – A presunção

de culpa contém simultaneamente uma presunção de causalidade. IV – Ao

lesado apenas compete provar a existência do dever de vigilância e do dano

causado pelo acto antijurídico da pessoa a vigiar. V – Com vista à prova

liberatória, o dever de vigilância deve ser apreciado em termos casuísticos, em

face do padrão de conduta exigível. VI – Em acidente de viação, causado

por culpa exclusiva de um menor de 14 anos de idade, que ao circular com um

ciclomotor do pai provocou a morte de outrem, não é suficiente para ilidir a

presunção de culpa dos pais apenas o facto do local do acidente distar cerca

de 2 km da residência destes, com quem o menor vivia.”

Ademais da referida responsabilização civil, poderemos ainda estar

perante casos de eventual intervenção de promoção e protecção por via da

aplicação da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro se se entender que o menor

que praticou a contra-ordenação se encontra ele próprio numa situação de

perigo (por exemplo imagine-se que o menor praticou a contra-ordenação num

contexto em que se encontra permanentemente votado aos seus próprios

cuidados e sem qualquer orientação parental), situação em que a prática da

contra-ordenação é meramente instrumental à necessária situação de perigo.

No que tange à inimputabilidade em razão da anomalia psíquica, rege o

art. 11.º do RGCO em termos iguais aos do disposto nos n.ºs 1, 2 e 4 do art.

20.º do CP referindo que “1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

119

psíquica, é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste

ou de se determinar de acordo com essa avaliação. 2 - Pode ser declarado

inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave não acidental e

cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tem no

momento da prática do facto a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para

se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída. 3 - A

imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada

pelo próprio agente com intenção de cometer o facto.”

A anomalia psíquica pode afectar a compreensão do carácter ilícito de

uma conduta e o modo de actuação do agente SIMAS SANTOS e LOPES DE

SOUSA, em anotação ao artigo 11.º do RGCO, lembram que “A determinação

da inimputabilidade está condicionada à existência de dois pressupostos: 1.º

biológico (anomalia psíquica) é indispensável que o agente sofra de um mal

psíquico, preferindo o legislador utilizar a designação ampla de anomalia

psíquica do que fazer uma enumeração, sempre precária, das doenças e

estados psíquicos anómalos susceptíveis de fundamentar a inimputabilidade. É

de notar que o conceito de anomalia psíquica ultrapassa os casos de doença

mental, abrangendo, v.g., as perturbações de consciência, as oligofrenias, as

psicopatias, as neuroses, as pulsões, etc.; 2.º psicológico ou normativo

(incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia

com essa avaliação) é indispensável também que o agente, em virtude do mal

de que padece, não possa avaliar intelectualmente o conteúdo normativo

(portanto ilícito) dos seus comportamentos, nem tenha liberdade para agir de

modo diferente”173.

À semelhança do que sucede no Direito Penal, também no Direito contra-

ordenacional se prevê não apenas a inimputabilidade total mas ainda as

situações de imputabilidade diminuída (n.º 2).

Na imputabilidade diminuída não se impõe automaticamente a exclusão

da culpa do agente. Antes se impõe um juízo casuístico (frequentemente

173

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, pp. 130 e 131.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

120

sustentado em prova pericial) sobre a possibilidade de tal suceder, já que a

incapacidade de culpa não é permanente174.

Demonstrativo de que a imputabilidade diminuída não é de aplicação

automática mas antes dependente de um juízo casuístico, é o facto de se ter

previsto no art. 20.º, n.º 3 do Código Penal um índice da incapacidade

necessária a tal imputabilidade diminuída. Ora, esse índice reconduz-se à

“comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas”.

Esta norma inexiste ao nível contra-ordenacional o que estará, de algum

modo, relacionado com as diferenças que tradicionalmente se assinalavam,

entre a pena e a sanção contra-ordenacional e os diferentes fins das mesmas.

É que, tradicionalmente entendia-se que, à sanção contra-ordenacional faltaria

o pathos ético e análise da personalidade que existe na censura penal, pelo

que, em coerência, mal se compreenderia que se retirasse de uma

incapacidade do agente para ser influenciado pelas coimas ou sanções

acessórias um índice de imputabilidade diminuída.

Ora, se é verdade que tal regime poderá ser adequado ao que vimos

chamando de simples contra-ordenações, já tal segmento de norma (que

existe no CP e não no RGCO) poderia fazer sentido quanto às contra-

ordenações que protegem bens jurídico-penais embora sem necessidade de

pena e apenas com carência de sanção contra-ordenacional.

174

Paradigmáticos de tais situações são os arguidos com diagnóstico de personalidade “borderline”. Nesse sentido,

ainda que no domínio criminal, veja-se o Acórdão do STJ de 19.03.2009, Proc. n.º 09P0315, onde se consigna que “I-

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV-TR) define o transtorno de personalidade

“borderline” como «um padrão inerente de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, auto-imagem e afectos e

acentuada impulsividade». II - «O quadro engloba algumas manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos

como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, mas em geral os pacientes não saíram totalmente do estado

considerado normal para serem enquadrados em tais classificações. A síndrome “borderline” é, portanto, um mosaico

de sintomas menos acentuados de diversos transtornos» (cf. Arch. Gen. Psychiatry, 2001 58(6): 590-596 – The

Prevalence of Personality Disorders in a Community Sample– Torgersen Svenn, in www.cienciasecognição.org).(…) IV

- O facto de o arguido ter uma personalidade de estrutura borderline não significa que, aquando da prática dos factos

dados como provados, não tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e

consciente, pois das características daquele tipo de personalidade, por si só, não resulta sempre e desde logo uma

diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente.”

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

121

No fundo, o previsto no RGCO, como já fomos aflorando, fará sentido

para as simples contra-ordenações (em que a prevenção especial de

ressocialização não joga um papel relevante), mas, em coerência, a adoptar-se

um critério dual de contra-ordenações, seria de rever o regime legal na medida

em que nem todas as contra-ordenações, como vimos, estão a salvo de um

juízo ético relevante.

Por outro lado, o RGCO também não resolve a questão de saber se,

extraindo-se dos factos provados a imputabilidade diminuída do agente, se há-

de necessariamente atenuar a moldura da coima.

Sobre este ponto referem SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA que “Se o

agente não for declarado inimputável, por ainda ter capacidade para avaliar a

ilicitude do facto e para se determinar de acordo com essa avaliação, não

sensivelmente diminuída, mas em todo o caso de algum modo diminuída, não

diz o RGCO se essa imputabilidade diminuída deve ou não obrigatoriamente

conduzir a uma pena atenuada. E parece que o não deverá, sendo cada caso

apreciado dentro das determinantes gerais dos fins e da medida da sanção.

Sobre este ponto específico escreveu Figueiredo Dias: não diz a lei se a

imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena

atenuada. Não o dizendo parece, porém, não querer obstar à doutrina também

entre nós defendida por Eduardo Correia que eu próprio me tenho ligado de

que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não

atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isso sucederá, do meu ponto

de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto

se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente

desvaliosas e censuráveis, v.g., em casos como os da brutalidade e da

crueldade que acompanham muitos dos psicopatas insensíveis, dos da

inconstância dos lábeis ou dos da pertinácia dos fanáticos”175.

Uma nota ainda para afirmar que, em matéria de inimputabilidade em

razão de anomalia psíquica, porque são iguais os seus fundamentos, não é de

estranhar que o n.º 3 do art. 11.º do RGCO coincida com o disposto no art.

175

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, p.131.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

122

20.º, n.º 4 do Código Penal, estatuindo-se que “A imputabilidade não é

excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo próprio agente

com intenção de cometer o facto”, o que se reconduz à doutrinalmente

designada actio libera in causa que, seja na forma de acção ou omissão, não

exclui a imputabilidade a quem pratica uma contra-ordenação, salvo, como

alerta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE176, nos casos de dolo eventual ou

negligência inconsciente por não haver no regime contra-ordenacional norma

equivalente ao art. 295.º do Código Penal (embriaguez e intoxicação).

3.2.1.2. O erro sobre a factualidade típica (em especial, o erro

sobre as proibições) e o erro sobre a ilicitude

Como referimos antes, a acção contra-ordenacional, para ser sancionada,

além de ser típica e ilícita há-de ser culposa pelo que há que estabelecer um

nexo de imputação subjectiva da acção ao agente a título de dolo ou (quando a

lei assim preveja) a título de negligência.

A matéria do erro, em sede contra-ordenacional, vem regulada nos arts.

8.º, n.º2 e 3 e 9.º do RGCO.

Com efeito, dispõe o art. 8.º, n.ºs 2 e 3 do RGCO que “ 2-O erro sobre os

elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a

existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo. 3- Fica

ressalvada a punibilidade da negligência em termos gerais”.

Já o paralelo penal - art. 16.º do CP - estatui que “1- O erro sobre os

elementos de facto ou direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo

conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar

consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo. 2- O preceituado no número

anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a

ilicitude do facto ou a culpa do agente. 3- Fica ressalvada a punibilidade nos

termos gerais.”.

176

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p. 69.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

123

Dispõe ainda o art. 9.º do RGCO “1-Age sem culpa quem actua sem

consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável. 2- Se o erro

lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada”. Por seu turno o

art. 17.º do Código Penal estabelece que “1. Age sem culpa quem actuar sem

consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável. 2- Se o erro

lhe for censurável, o agente é punido com pena aplicável ao crime doloso

respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”

Para efeitos legais, erro é a ignorância ou má representação de uma

realidade. Mas em que se distingue o regime do erro no RGCO quando

comparado com o regime do erro penal?

Entendem alguns que, no que é essencial, não se distingue em muito.

FIGUEIREDO DIAS alerta que “Ainda dentro do tema da culpa, quem compare os

artigos 8.º-2 e 3 e 9.º com os artigos 16.º e 17.º do Código Penal poderia ser

levado a pensar que existiria uma regulamentação específica do erro sobre a

proibição e da falta de consciência do ilícito no Direito das Contra-ordenações

– e, na verdade, no sentido de que neste valeria uma “estrita teoria do dolo”.

Esta impressão não seria exacta: a regulamentação da matéria do Direito

Penal e no das contra-ordenações é unitária. Só que o Decreto-Lei n.º 433/82

considerou – e muito bem – que no domínio do ilícito de mera ordenação o

conhecimento da proibição é sempre “razoavelmente indispensável” à

orientação do agente para o problema da ilicitude, pelo que o erro que sobre

aquela proibição recaia exclui sempre o dolo. Isto não retira espaço, porém, à

existência de casos em que, apesar do conhecimento da proibição legal, o

agente incorra num verdadeiro erro sobre a ilicitude: este erro, tal como no

Direito Penal, não exclui o dolo, ou pelo menos a punição a esse título, mas

exclui a culpa quando não seja censurável”177.

Com efeito, o regime do erro no RGCO e no Código Penal é

efectivamente, em termos normativos, muito parecido.

177

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», pp. 29 e 30.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

124

Ainda assim, vale a pena um olhar de relance sobre o regime do erro no

RGCO, detendo-nos um pouco mais apenas no erro sobre as proibições já que

é aí, como facilmente se antevê, que as diferenças serão mais avultadas.

Uma primeira modalidade que se pode extrair do disposto no art. 8.º, n.º2,

1ª parte do RGCO é o erro sobre os elementos do tipo. O art. 8.º, n.ºs 2 e 3 do

RGCO tem grandes afinidades com o disposto no art. 16.º do CP.

No que se refere a esta modalidade de erro, da mera leitura de tais

normas, constatamos a seguinte diferença: onde no art. 8.º do RGCO se refere

“erro sobre os elementos do tipo”, no art. 16.º do CP refere-se “erro sobre

elementos de facto ou de direito de um tipo de crime”. Trata-se de uma mera

diferença de redacção, e não de uma efectiva diferença de regime já que os

elementos do tipo podem consabidamente ser de facto ou de direito ou, noutra

terminologia, descritivos ou normativos.

Com efeito, o agente deverá conhecer todas as circunstâncias de facto

que pertencem ao tipo legal de contra-ordenação para que a sua conduta se

possa reputar de dolosa. Daí que, na súmula empreendida por SIMAS SANTOS e

LOPES DE SOUSA, “está excluído o dolo quando o erro recai sobre: elementos

que já existem no momento em que o agente inicia a sua conduta, elementos

produzidos pela sua conduta, o processo causal quando elemento constitutivo

da contra-ordenação, os elementos jurídicos utilizados pela lei, os elementos

modificativos agravantes em relação às contra-ordenações qualificadas”178.

Restará ainda assim a possibilidade de o agente ser sancionado por

negligência nos termos gerais (art. 8.º, n.º 3 do RGCO), sendo que, tal

punibilidade abstracta da negligência é assaz frequente nos regimes especiais

contra-ordenacionais.

Prevê-se ainda o erro sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria

a ilicitude do facto ou a culpa do agente (art. 8.º n.º2, in fine do RGCO). Pense-

se nos erros sobre os pressupostos de causas de exclusão da ilicitude ou da

culpa (v.g. um consentimento que, afinal, não existia).

178

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, p.123.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

125

Como havíamos dito, o legislador considera erro não apenas uma errada

representação da realidade mas ainda a ausência de representação dessa

realidade, o que nos leva ao erro sobre a ilicitude previsto no art. 9.º do RGCO

(sendo que o art. 9.º do RGCO é bastante similar ao que dispõe o art. 17.º do

Código Penal).

Entre o erro sobre os elementos do tipo (art. 8.º, n.º 2 do RGCO) e o erro

sobre a ilicitude (art. 9.º do RGCO) há, contudo, zonas cinzentas (pelo que

iremos analisar desde já o erro do art. 9.º para depois voltarmos ao art. 8.º com

um olhar mais focado no erro sobre as proibições que aqui assume especial

relevância). A título exemplificativo das dificuldades de delimitação prática,

veja-se o caso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.03.2011,

Proc. n.º 800/10.3TBVLG.P1 em que se sumaria que “I - Se, no

desconhecimento de que o terreno estava classificado como área de Reserva

Ecológica Nacional, o agente, autorizado pelo proprietário daquele, que

também desconhece tal classificação, lança nele um camião de terra, não age

em erro sobre a ilicitude, age em erro sobre as circunstâncias de facto. II -

Sendo aquele desconhecimento imputável a uma falta de informação a uma

falta de informação ou de esclarecimento, conforma o mesmo, quando

censurável, o específico tipo de censura da negligência.”

De todo o modo, podemos dizer que enquanto no erro sobre os

elementos do tipo falta ao agente o conhecimento dos elementos de facto ou

Direito que eram indispensáveis para que norteasse a sua conduta licitamente,

já no erro sobre a ilicitude o agente tem o conhecimento dos elementos do tipo

mas não valora tais elementos no sentido de apreender a ilicitude da conduta.

Assim, o primeiro é um erro de conhecimento e o segundo um erro de

valoração. Por exemplo, o erro sobre os pressupostos de causas de exclusão

da ilicitude ou da culpa é um erro sobre elementos do tipo, já o erro sobre a

existência ou limites de tais causas é um erro sobre a ilicitude.

Sublinhe-se ainda que o erro sobre a ilicitude pode ser censurável ou não.

FIGUEIREDO DIAS enuncia os critérios de apreciação de tal censurabilidade

dizendo que se se lograr provar que a falta de consciência da ilicitude resulta

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

126

de modo imediato e directo de uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente

relevante do agente, aquela dever-se-á considerar censurável. Já se tal não

resultar provado, continuar-se-á a entender essa falta de consciência da

ilicitude como censurável excepto se se verificar que apesar da falta concreta,

o agente ainda detém uma recta consciência ético-jurídica baseada numa

atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de

valor juridicamente relevantes179. Na senda de tais ensinamentos, Refere o Ac.

da Relação de Coimbra de 19.10.1983, CJ, ano VIII, 4, p. 83 que “Há

censurabilidade do erro sobre a ilicitude quando o agente não actuou com o

cuidado de uma pessoa portadora duma recta consciência ético-jurídica teria,

informando-se e esclarecendo-se convenientemente sobre a proibição

legal”180.

Operando um tal juízo de censurabilidade e concluindo-se pela mesma,

o agente é sancionado com coima especialmente atenuada nos termos do art.

18.º, n.º 3 do RGCO. Ao invés, concluindo-se pela inexistência de

censurabilidade, então sim, estamos perante uma causa de exclusão da culpa

do agente, sendo que, para quem adopte um critério dual de tipo de contra-

ordenações com inerente critério dual de culpa nas contra-ordenações, terá de,

entender o art. 9.º do RGCO com crivos mais estreitos.

A Jurisprudência é elucidativa, aliás, da rara procedência de tal defesa.

FREDERICO LACERDA COSTA PINTO181, pese embora não adopte tal critério

dual de culpa em análise da jurisprudência contra-ordenacional em matéria de

mercado de valores mobiliários, afirma que não obstante ser recorrente a

defesa com base na falta de consciência da ilicitude e de erro sobre as

proibições, a mesma não costuma proceder.

179

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, O Problema da Consciência da Ilicitude, 5ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp.

362 e 363.

180 citado em MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, p.127 e por ANTÓNIO

BEÇA PEREIRA, Regime Geral, p. 42.

181 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, «Tendências da Jurisprudência no âmbito dos Mercados de Valores

mobiliários,: estatuto processual da CMVM na fase de impugnação judicial e critérios de censurabilidade do erro sobre

a ilicitude», CMVM, 8, 2000, pp 17 ss.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

127

Analisando decisões concretas refere que os Tribunais, ao conhecerem

de tal questão, usaram três tipos de critérios: um primeiro relativo a uma ideia

de exigibilidade do conhecimento de obrigações legais que se intensifica pelo

nível de profissionalismo de alguns agentes, um segundo critério que passa

pela falta de diligência na obtenção de informação (v.g. agentes com acesso

fácil a consultores jurídicos) e, por fim um terceiro critério que passa por uma

apreciação ética da indiferença do arguido perante os valores protegidos pela

norma, assim estando ausente uma recta consciência ético-jurídica.

O referido Autor, aceitando o acerto das decisões quanto ao uso dos dois

primeiros critérios, rejeita porém o último em coerência com a ideia que

defende de que as contra-ordenações não está em causa uma “culpa ética”

mas uma mera imputação do facto à responsabilidade do seu autor.

Permitimo-nos, contudo, discordar, pelo menos em parte das situações. É que,

e como já referimos, a nosso ver nem todas as contra-ordenações são

axiologicamente irrelevantes, e, nas que defendem inclusivamente bens

jurídico-penais, não será de afastar uma análise à luz da culpa de um ponto de

vista de valoração da ética vigente em cada momento histórico e social.

Detenhamo-nos agora, com maior acuidade, no erro sobre as proibições

(que inclui o erro sobre a ilicitude da acção; o erro sobre a existência de um

dever de garante e o erro sobre o significado dos elementos normativos do

tipo) que é uma figura conhecida quer do Direito Penal quer do Direito contra-

ordenacional (art. 8.º, n.º 2 do RGCO e 16.º, n.º 1 do CP).

Muitos AA. assentam a grande especialidade do regime do erro sobre as

proibições em sede contra-ordenacional relativamente ao regime penal com

base na ideia da irrelevância axiológica do ilícito contra-ordenacional.

Refere a tal propósito PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que “o erro sobre a

proibição é a especialidade do regime do erro no Direito das Contra-

ordenações, pois supõe o tratamento logo ao nível do dolo do tipo de situações

de erro que o Direito Penal trata, em regra, ao nível do dolo da culpa. Isto

deve-se à natureza eticamente neutral do objecto do ilícito contra-

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

128

ordenacional, sendo o conhecimento da proibição indispensável para que o

agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”182.

Também EDUARDO CORREIA referia que “a neutralidade ou indiferença aos

valores éticos dos imperativos violados criará uma especial problemática em

matéria de erro”183.

A doutrina assume diferentes entendimentos quanto ao erro sobre

proibições relevante em termos de excluir o dolo nas contra-ordenações,

designadamente quanto à amplitude da sua aplicação.

Numa perspectiva de amplíssima aplicação desta modalidade de erro,

CAVALEIRO FERREIRA entende que, ao contrário do domínio criminal onde na

maioria das vezes o erro sobre proibições é irrelevante porque conhecimento

da ilicitude anda a par com o conhecimento do facto, já no domínio contra-

ordenacional o erro sobre proibições será sempre relevante.

Também TAIPA DE CARVALHO entende que, pela própria natureza do ilícito

contra-ordenacional, é expectável que este erro ocorra com maior frequência

que no ilícito criminal184.

Numa outra perspectiva, mais restritiva do âmbito de relevância do erro

sobre proibições no seio contra-ordenacional, FREDERICO LACERDA DA COSTA

PINTO, apenas insere no erro das proibições a pura ignorância/ausência de

informação e já não a errada suposição do agente sobre os limites da

proibição/defeito de informação, esta última podendo ficar a dever-se a uma

falta de diligência do destinatário da norma185.

Concorde-se ou não com alguns dos referidos Autores quanto ao critério

da irrelevância ética da contra-ordenação, podemos de todo o modo assentar

que o erro sobre as proibições é um local dogmático que pode ajudar na

perspectiva do Direito das contra-ordenações como autónomo desde logo

182

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p. 63.

183 EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e de Mera ordenação», p. 265.

184 Isto relembra, v.g., TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal-Parte Geral, pp. 171 e 172.

185 Neste sentido veja-se a tese defendida por TERESA PIZARRO BELEZA e FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO na

obra “O regime legal do erro e as normas penais em branco (ubi lex distinguit…), Almedina, Coimbra, 2001.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

129

porque mesmo com o critério dual de culpa que se vem referindo, há, de facto,

na prática, um leque muito mais amplo de aplicação deste tipo de erro.

Certo é que, nesta modalidade de erro, o foco das atenções é o elemento

intelectual do dolo: o conhecimento da proibição (dos seus elementos de facto

e de direito). Ora, como bem salienta JOÃO DA COSTA ANDRADE “se na

esmagadora maioria dos casos, o elemento intelectual do dolo do tipo é

configurado através da exigência de conhecimento, há, porém, outros casos,

em que para que se possa afirmar existir dolo do tipo se torna ainda

indispensável, ou seja, há aqui uma exigência adicional, que o agente tenha

actuado com conhecimento da proibição legal. Quais os casos em que se

verifica esta exigência? O entendimento dogmático doutrinal identifica-os com

aquelas situações em que o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja

relevância axiológica ou não existe ou é pouco significativa e onde, por

consequência, o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem

tanto pela matéria probida, como também pela proibição legal. Por isso, em

rigor, a relevância do erro sobre proibições legais não opera única e

exclusivamente no ilícito de mera ordenação social, relevando ainda (…) em

certos crimes de perigo abstracto (…) e ainda nos crimes de perigo

concreto”186.

Assim, no erro sobre as proibições, a proibição assume-se como um

elemento do tipo, e, assim sendo, é indispensável o conhecimento da proibição

para que o agente se possa motivar. Exige-se pois este quid adicional: o

conhecimento da proibição. Sem tal conhecimento não há conduta dolosa, o

que, como parece clarividente, sucederá com muito maior frequência no

domínio contra-ordenacional do que no domínio penal (sobretudo nas simples

contra-ordenações em que a conduta quer ao nível da ilicitude quer ao nível da

culpa é analisada sob o foco da prévia proibição legal).

186

JOÃO DA COSTA ANDRADE, «O erro sobre a proibição e a problemática da legitimação em Direito Penal (elemento

diferenciador entre o Direito Penal Económico e o Direito Penal de Justiça)», in AA.VV., Temas de Direito Penal

Económico, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 56.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

130

Com efeito, se não é fácil elencar situações de erro sobre proibições no

domínio penal187 já será mais fácil no domínio contra-ordenacional em que a

ilicitude e a culpa, pelo menos nas simples contra-ordenações, são

sustentadas na proibição legal (daí talvez o art. 8.º, n.º 2 do RGCO não ter de

conter a seguinte expressão existente no art. 16.º do CP: “cujo conhecimento

for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência

da ilicitude do facto”).

Mas admitir a maior frequência na ocorrência do erro sobre proibições no

domínio contra-ordenacional, não pode levar a uma concepção próxima da

presunção judiciária de desconhecimento de uma proibição legal…

Efectivamente, num largo leque de contra-ordenações, aos que as

praticam exige-se que tenham um dever de cuidado no conhecimento das

normas que os regulam superior ao normal cidadão. Dificilmente se aceitará

que um condutor invoque o desconhecimento de regras estradais ou que um

construtor civil invoque o desconhecimento das regras que regem a sua

actividade. Há, por assim dizer, um mais intenso dever de conhecimento das

normas em tais casos, o que torna mais rara a aplicação do regime do erro

sobre as proibições. Neste sentido, refere REBOLLO PUIG “cabe hablar de un

muy estrecho campo de error invencible en cualquier profesional de una

actividad alimentaria com respecto a las normas que regulan su actividade”188.

Refere-se ainda, nessa linha de pensamento, que “Por tanto, no cabe imponer

sanciones administrativas cuando concurre alguna causa que excluya la

culpabidad; por ejemplo el error invencible o el princípio de confianza legítima.

187

MÁRIO FERREIRA MONTE, em Lineamentos, Capt. III, 1.2.1. c) refere a tal propósito que “Para se perceber melhor a

intensidade com que o problema se pode colocar no direito de mera ordenação social, basta atender ao facto de no

Direito Penal, apesar do art. 16.º, n.º 1, tais situações se verificarem em três tipos de casos: os crimes de perigo

abstracto, onde a proibição vem a ser relevante para orientar a consciência ética do agente apara o desvalor da

ilicitude; uma grande parte dos crimes de Direito Penal secundário, onde, apesar da relevância axiológica da conduta, a

proibição joga um papel fundamental na orientação do agente para o desvalor da ilicitude; os casos do Direito Penal de

justiça que, pela sua novidade, ainda carecem de maior sensibilidade, de um maior conhecimento por parte da

comunidade para que perceba o relevo do bem jurídico-penal em causa, reivindicando, por isso, uma proibição pelo

legislador. Fora destes casos é praticamente inaplicável o erro sobre proibições. Ora, no ilícito de mera ordenação

social (…) o conhecimento da proibição, substrato do ilícito, vem a ser em regra indispensável para a afirmação do dolo

do tipo.”

188 Citado por MARIA LOURDES RAMÍREZ TORRADO, «Consideraciones de la Corte Constitucional», p. 170.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

131

En general se exige un extenso deber de diligencia – que incluye un amplio

deber de saber e informarse – a muchos de los sujetos que pueden cometer

infracciones administrativas (entidades de credito, fabricantes de productos,

etc..). Lo que origina que, en la mayoria de los casos en los que se alega falta

de culpabilidad, acabe imponiéndo-se la sanción por entenderse que no se

habia cumplido plenamente este deber de diligencia”189.

Contudo, e mais uma vez sublinhamos que, para quem adopte um critério

dual de tipo de contra-ordenações com inerente critério dual de culpa nas

contra-ordenações, terá de entender o erro sobre as proibições de forma

igualmente dual: para as contra-ordenações axiologicamente neutras, existindo

erro sobre as proibições, deverá o mesmo excluir o dolo, mantendo-se o

sancionabilidade a título de negligência. Já quanto às contra-ordenações

axiologicamente relevantes e protectoras de bens jurídico-penais talvez já não

faça tanto sentido o afastamento do dolo nos termos actualmente previstos (o

que, porém, implicaria uma nova redacção do art. 8.º do RGCO)190.

3.2.2. Causas de exclusão da culpa previstas no Código Penal

aplicáveis subsidiariamente ao Direito das Contra-ordenações

Como tínhamos avançado, ademais das causas de exclusão da culpa

previstas expressamente no RGCO, podem ainda ser de aplicar no domínio

contra-ordenacional causas de exclusão da culpa por aplicação subsidiária do

Código Penal191. É o caso do excesso de legítima defesa e do estado de

necessidade desculpante.

189

MANUEL REBOLLO PUIG, MANUEL IZQUIERDO CARRASCO, LÚCIA ALARCÓN SOTOMAYOR, ANTÓNIO BUENO ARMIJO,

«Panorama del derecho administrativo sancionador en España», Estúdios Sócio-Juridicos., Bogotá (Colômbia), 7(1),

enero-junio de 2005, p. 37

190 Neste sentido, ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera Ordenação Social, p. 567.

191 Apenas nos referimos a causas que excluem a culpa e já não às que atenuam a mesma (essas são as previstas nos

arts. 17.º, n.º2, 33.º, n.º1 e 35.º, n.º2 do Código Penal). Como exemplo de um caso de atenuação da coima, veja-se o

interessante caso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19.03.1997, no Proc. n.º 970117 “ I - Tendo a

arguida iniciado a construção dum edifício de habitação e comércio sem esperar pela competente licença municipal, já

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

132

Com efeito, havendo excesso de legítima defesa, pode a culpa ser

excluída, quando o excesso resulte de perturbação medo ou susto não

censurável (art. 33.º, n.º2 do CP ex vi art. 32.º do RGCO). SIMAS SANTOS e

LOPES DE SOUSA referem que “Se o excesso não for censurável conduzirá,

como deve, à não punição do agente (cfr. art. 33.º, n.º 2). Têm aqui inteiro

cabimento as considerações tecidas antes quanto à necessidade de defesa e à

impossibilidade de recurso à força pública. Assim, se, v.g., circular com

velocidade superior à permitida basta para assegurar a rápida chegada de um

doente em estado crítico ao hospital, não deve cumulativamente, circular-se

numa via em sentido proibido; se se podem utilizar meios públicos adequados

para aquele fim, não devem usar-se meios próprios. Mas, deve ter-se em

atenção que “muitas vezes só depois de utilizado um meio é que se ficará a

saber se ele bastaria, e não haverá tempo para uma comprovação mental de

todos os meios disponíveis”192.

Sabemos, de todo o modo, que não se trata de uma qualquer

perturbação, medo ou susto. Com efeito, apenas relevam os casos em que tais

situações não sejam censuráveis, sendo ainda certo que a necessidade da

defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre

a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da

perigosidade do agressor e da sua forma de agir.

Imaginemos uma situação em que o agente é portador ilegalmente de

uma arma, nos termos sancionáveis contra-ordenacionalmente pelos arts. 97.º

e 99.º do Regime Juridico de armas e munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de

Fevereiro) e a usa em excesso de legitima defesa (ainda que em face das

circunstâncias concretas do caso se tenha concluído pela sua inexistência-

veja-se tal caso no Ac. do STJ de 18.04.2002, Proc. n.º 02P854).

requerida, para evitar que uma oficina, pertencente a terceiro, ruisse totalmente, em consequência do desaterro

(devidamente licenciado) que originara já um desabamento de terras que determinou o desmoronamento duma parede

da oficina, verifica-se uma situação de inexigibilidade, da previsão do n.2 do artigo 35 do Código Penal, merecedora da

atenuação especial da coima”.

192 MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, pp. 66 e 67.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

133

Pode ainda verificar-se um estado de necessidade desculpante. Estatui o

art. 35.º, n.º1 do CP ex vi art. 32.º do RGCO que “Age sem culpa quem praticar

um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro

modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do

agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as

circunstâncias do caso, comportamento diferente.” São, assim, casos em que

estão em causa interesses eminentemente pessoais, e em que o interesse

protegido é igual ou inferior ao interesse sacrificado, mas em que existia uma

situação de inexigibilidade.

É relativamente frequente, na prática, a invocação desta causa de

exclusão da culpa. Veja-se, v.g., nas contra-ordenações fiscais, a frequência

com que se invocam dificuldades financeiras ou necessidades específicas

empresariais para tentar excluir a culpa na prática da contra-ordenação.

Vejamos alguns exemplos.

No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.02.2009, Proc. nº

0846813, entendeu-se que “Também as características e a natureza da obra

não são afectadas pelo facto de ela se mostrar necessária ao adequado

desempenho da actividade da recorrente. Temos, por isso, alguma dificuldade

em descortinar o sentido e alcance da alegação contida nas conclusões e) e f)

[e, de certo modo, também na conclusão c)]. Se, com ela, a recorrente

pretende que se considere a “justificação” da conduta, haverá que dizer que

não é o facto de a obra realizada responder às necessidades do exercício da

sua actividade que pode dispensar a recorrente de, para a sua execução, se

submeter à regulamentação legal pertinente. Por outro lado, na matéria de

facto que a recorrente destaca não se encontram factos adequados a afastar a

ilicitude da conduta ou, mesmo, a culpa da recorrente pelo facto. Daí que

também uma discussão jurídica congruente da pretensão de isenção de

punição – sem prejuízo de a recorrente não concretizar a norma jurídica em

que se apoia para a formular –, se mostre prejudicada.”

Em sede de contra-ordenações fiscais tem-se mesmo entendido que o

estado de necessidade não é compatível com a natureza das contra-

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

134

ordenações tributárias. Referindo-o expressamente veja-se o Acórdão do TCA-

Sul, de 04.10.1989. A ideia é ainda afirmada casuisticamente noutros arestos

jurisprudenciais. Assim, no Acórdão do TCA-Sul de 12.09.2006, Proc. n.º

01237/06, entendeu-se que «Sendo aplicada coima por infracção ao disposto

no art. 26.°, n.° 1, do CIVA, ou seja, por falta de remessa com a declaração

periódica do montante do imposto exigível, a alegação da Arguida, de que foi

por facto ilícito do Estado que deixou de poder cumprir as suas obrigações

fiscais e que o cumprimento destas agravaria a sua "calamitosa situação

económica e financeira", é irrelevante quer como causa de exclusão da culpa

quer como causa de exclusão da ilicitude da falta de entrega do IVA, pois não

se trata de imposto cujo pagamento fosse ela a suportar, antes tendo cobrado

o mesmo dos seus clientes para entregar nos cofres do Estado, motivo por que

se não fez essa entrega é porque deu outro destino ao respectivo montante,

que estava à sua guarda». No mesmo sentido veja-se ainda, v.g., o Acórdão

do TCA -Sul de 01.03.2005, Proc. n.º 05802/01.

Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE alude à improcedência da

invocação desta causa de desculpação aquando do incumprimento de

prestações tributárias do empregador com dificuldades em pagar salários193.

Importa ainda referir, brevemente, como causa de exclusão da culpa, a

obediência indevida desculpante (art. 37.º do Código Penal), com rara ou nula

expressividade na prática judiciária contra-ordenacional.

Dispõe o art. 37.º do Código Penal que “Age sem culpa, o funcionário que

cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não

sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas.”

Sobre esta causa de exclusão da culpa, referem SIMAS SANTOS e LOPES DE

SOUSA que “Estão aqui em causa, porém, as situações em que a ordem

conduz a um crime o facto praticado pelo subordinado, e se pondera a

censurabilidade da sua prática, pelo que se está fora do âmbito das contra-

ordenações”194.

193

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p. 64

194 MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, p. 68.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

135

3.3. Modalidades de imputação da culpa: a negligência e o dolo nas

contra-ordenações

3.3.1. O dolo

O legislador contra-ordenacional consagrou não apenas o carácter

censurável da contra-ordenação (art. 1.º do RGCO), como dedicou normas

específicas à culpa no mesmo regime geral.

O coração do regime da culpa nas contra-ordenações pulsa nos arts. 8.º a

11.º, 18.º e 21.º do RGCO. Existem contudo outras normas que se referem à

culpa no RGCO (cfr., v.g., arts. 16.º, n.º 2, 26.º al. a) e 51.º), além de que

podemos sempre pensar nos reflexos da especial concepção de culpa em

institutos penais que poderiam ser aplicáveis subsidiariamente às contra-

ordenações (v.g. a figura da contra-ordenação continuada)195.

O artigo 8.º, n.º 1 do RGCO, reproduzindo o art. 13.º do Código Penal,

consagra que “1- Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos

especialmente previstos na lei, com negligência (…)”196.

195

JOSÉ DE FARIA COSTA rejeita a existência da figura da contra-ordenação continuada precisamente com base na

especial caracterização da culpa contra-ordenacional, dizendo que “Por outras palavras e colocando a matéria em

termos intencionalmente secos e cortantes: é ou não possível uma contra-ordenação continuada? Inclinamo-nos

manifestamente para a inexistência de uma tal figura dogmática. Em primeiro lugar, a inexistência legislativamente

propositada (…) a percepção intra-sistemática e cruzada das normas do CP e da Lei Geral do Regime das contra-

ordenações só nos pode conduzir à ideia firme de que uma tal ausência não pode deixar de ser fruto de uma

ponderada, assumida e querida decisão legislativa. (…) Em segundo lugar (…) todos sabemos, e é a própria lei a dizê-

lo de modo inequivocamente claro, que há um só crime continuado quando, entre outros pressupostos, a realização

plúrima for executada dentro do quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua sensivelmente a

sua culpa (…) o juízo de censura que se faz ao agente nas contra-ordenações não é sustentado, nem sequer como

limite, na ideia de culpa. (…) Por outro lado, tentar fazer uma inferência analógica afigura-se-nos absolutamente

insustentável.” - in «Crimes e contra-ordenações», pp. 9 e 10. De todo o modo, damos conta que existe jurisprudência

a admitir a figura da contra-ordenação continuada conforme se extrai do Acórdão do STA de 04.10.1989, Proc. n.º

005538, quando refere expressamente que “É admissível a figura da contra-ordenação continuada no domínio do

Contencioso Aduaneiro”.

196 É certo que, sendo o Código Penal legislação subsidiária do RGCO, nos podemos perguntar da necessidade de o

legislador contra-ordenacional ter reproduzido o artigo 13.º do Código Penal. Julgamos que tal se fica a dever ao facto

de se ter querido dar alguma sistematização a um regime de culpa contra-ordenacional que, bebendo do Direito Penal,

ainda assim se autonomizará daquele.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

136

Assim, o princípio geral estabelecido no art. 8.º, n.º1 do RGCO é o de que

só são puníveis os factos praticados com dolo, depois se prevendo o erro

excludente do dolo, no n.º 2 do mesmo artigo.

Contudo, em nenhum momento se define, no RGCO, o que é o dolo.

Face a tal silêncio, a questão que se poderá suscitar é a de se é de pedir

de empréstimo a noção penal de dolo do art. 14.º do Código Penal197 ou se o

dolo contra-ordenacional assume características específicas.

Mais uma vez, do ponto de vista de iure constituto não parece existir

grande alternativa a ter de pedir o auxílio do Código Penal quando se queira

buscar a noção de dolo e as suas diferentes modalidades.

De resto, nesse sentido parece ir novamente ANTÓNIO BEÇA PEREIRA

quando em anotação ao art. 8.º do RGCO remete expressamente para o

conceito e modalidades de dolo do art. 14.º do Código Penal198. SIMAS SANTOS

E LOPES DE SOUSA também afirmam que “Os tipos de dolo estão previstos no

art. 14.º do Código Penal, aplicável por força do preceituado no art. 32.º do

RGCO”199.

Mas em que consistirá o dolo nas contra-ordenações?

Em Acórdão de 24.05.2005, do Tribunal da Relação de Coimbra, no

Proc n.º 665/05-1, relativamente a uma contra-ordenação prevista nos arts. 4.º,

n.º 2 al. c) e 98.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 do Regime Jurídico da Edificação e

Urbanização, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na

redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 04 de Junho (atinente

à falta de licença de construção), suscitava-se a questão de saber se a arguida

deveria ser punida por dolo, conforme se sancionou na decisão administrativa.

Nesse aresto consigna-se acerca de tal questão que “No ilícito de mera

197

Estatui o art. 14.º do CP (sobre o dolo directo, dolo necessário e dolo eventual, respectivamente, em cada um dos

seus números): “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção

de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como

consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for

representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela

realização.”

198 ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral, p. 39

199 MANUEL SIMAS SANTOS E JORGE M. LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – anotações, p. 117

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

137

ordenação social a culpa (elemento moral da contra-ordenação e critério da

individualização judicial da coima) não radica na formulação de uma censura

de tipo ético-pessoal, mas tão-só na imputação do facto à responsabilidade

social do agente. (…) Pertencendo ao foro interno do agente, o dolo é

insusceptível de directa apreensão, apenas sendo possível captar a sua

existência através de factos materiais que lhe dêem expressão plástica,

segundo as regras da experiência comum”.

Tal decisão jurisprudencial, pese embora parta do entendimento

tradicional – que não comungamos - da irrelevância ética de qualquer conduta

contra-ordenacional, não deixa de alinhar desde logo uma ideia essencial: a de

que o dolo, sendo uma modalidade de culpa, está ligado ao foro interno do

agente, pelo que a sua apreensão terá de decorrer da própria materialidade

dos factos analisada à luz das regras de experiência comum.

Mas conceptualmente, do que estamos a falar?

A doutrina vem auxiliando na delimitação do conceito de dolo ao nível

contra-ordenacional.

Veja-se, v.g., PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE afirmando que “o dolo contra-

ordenacional reside no conhecimento intelectual dos elementos do tipo e no

desrespeito pelas proibições ou obrigações tuteladas pelas normas contra-

ordenacionais”200.

Mas podemos ainda assim questionar-nos se não existem algumas

especialidades de regime, v.g., podemos perguntar se serão admissíveis

presunções de dolo no domínio contra-ordenacional.

No sentido, inevitável, da negação de uma qualquer presunção de dolo

nas contra-ordenações no RGCO vejam-se os peremptórios dizeres do

Acórdão do TCA Sul, de 26.11.2002, proferido no âmbito do P. 5428/01, ao

referir “Com efeito, a infracção tributária assenta num juízo de censura ao seu

agente, tendo como pressuposto a culpa, a qual abrange o dolo ou a simples

negligência. E o dolo supõe a intenção ou o propósito de praticar a infracção.

Daí que, para que no caso se verificasse uma conduta dolosa, se tornasse

200

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p. 62

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

138

necessário dar como provado que a arguida tinha querido deixado de entregar

o IVA, se tinha propositadamente furtado à entrega desse imposto nos Cofres

do Estado, praticando intencionalmente a infracção. Ora, nenhuma prova foi

produzida que indiciasse esse elemento volitivo, razão porque ele não consta

do quadro factual fixado”, sumariando-se nesse Acórdão que “O dolo não se

presume, sendo necessário que se verifique a intenção ou o propósito de

praticar a infracção. Não existindo qualquer elemento factual que permita

concluir que a conduta da arguida tenha sido dolosa, não podia o Juiz "a quo"

qualificá-la como tal, ao arrepio do julgado na decisão administrativa.”

Assim, como decorrência lógica e necessária da inexistência de uma

presunção de dolo no RGCO temos que a decisão (administrativa ou judicial)

que puna por dolo, não o poderá fazer sem ter dado como provados os factos

em que tal dolo se materializa.

Isto por referência ao RGCO. Poderá, no entanto, equacionar-se a

hipótese de haver presunções de dolo em regimes sectoriais de contra-

ordenações (independentemente da bondade ou não de uma tal solução).

Vejamos.

Em sede de contra-ordenações fiscais, chegou a defender-se a

presunção do dolo e, nalguns casos, até inilidívelmente201.

Aliás, nalguns países, as presunções de culpa (abrangendo o dolo) em

matéria contra-ordenacional tributária são até aceites expressamente pelo

Tribunal Constitucional respectivo. É o que sucede, v.g., na Colômbia. Nos

Acórdãos C-690/1996 e C-506/2002 o Tribunal Constitucional colombiano

decidiu que na não apresentação da declaração fiscal deve presumir-se a

culpa (admitindo-se que possa ser a título de dolo), sem que com isso se viole

a presunção de inocência, tratando-se antes de “una diminución de la actividad

probatória exigida al Estado, pues ante la evidencia del incomplimiento del

deber de presentar la declaratión tributária, la administración ya tiene la prueba

que hace razonable presumir la culpabilidad del contribuynte.”. Expressivos

201

ELIANA GERSÃO, «Violação de deveres tributários Criminalmente sancionados”, Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 173 e

174, Maio-Junho de 1973, pp. 23 a 27.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

139

são os dizeres do Acórdão C-690/1996 do mesmo Tribunal Constitucional

quando refere “En general es razonable suponer que há actuado de manera

dolosa ou negligente quien há incumplido un dever tributário tan claro como es

la presentación de la declaración tributária en debida forma (…) una vez

probado por la Administración que la persona fácticamente no há presentado

su declaración fiscal, entonces es admissible que la ley presuma que la

actuación há sido culpable, esto es dolosa o negligente. Lo anterior no implica

una negación de la presunción de inocência, la cual seria inconstitucional”202.

Também no domínio laboral a questão se suscita, sobretudo a propósito

das condutas do agente posteriores ao auto de advertência.

Pese embora o RGCO em nenhuma das suas normas preveja o auto de

advertência (embora antes de 1995 tenha, no seu art. 51.º, previsto um

processo de advertência), certo é que tal figura tem já tradição no processo

contra-ordenacional laboral. Com efeito, já no art. 19.º do Regime Geral das

contra-ordenações laborais (Lei n.º 116/99, de 04 de Agosto) se previa essa

mesma figura jurídica, figura que foi ainda consagrada no art. 632.º do Código

de Trabalho de 2003 (Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto). No Código de

Trabalho que viu a luz do dia com a Lei n.º 7/2009, de 12 de Setembro,

constata-se que não se consagrou qualquer norma quanto ao procedimento

contra-ordenacional. No entanto, o procedimento anteriormente consagrado

ainda era de atender face ao disposto no art. 12.º, al. e) do diploma preambular

da Lei n.º 7/2009, de 12 de Setembro. Com efeito, as questões procedimentais

que antes se suscitavam, continuaram a suscitar-se já que a revogação dos

arts. 630.º a 640.º do Código de Trabalho só produziria efeitos a partir da

entrada em vigor de legislação que regulasse esta matéria. Ora, pela mão da

Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro (depois alterada pela Lei n.º 63/2013, de

27 de Agosto), nasceu um novo regime processual aplicável às contra-

ordenações laborais e de segurança social.

202

MARIA LOURDES RAMÍREZ TORRADO, «Consideraciones de la Corte Constitucional», pp. 161-163.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

140

Em tal diploma, no art. 10.º, n.º 1 al. d) e no n.º 4, a propósito dos

procedimentos inspectivos, estatui-se que “1 - No exercício das suas funções

profissionais o inspector do trabalho efectua, sem prejuízo do disposto em

legislação específica, os seguintes procedimentos: (…) d) Levantar autos de

notícia e participações, relativamente a infracções constatadas no exercício

das respectivas competências, podendo ainda levantar autos de advertência

em caso de infracções classificadas como leves e das quais ainda não tenha

resultado prejuízo grave para os trabalhadores, para a Administração do

trabalho ou para a segurança social. 4 - A notificação ou a entrega deve ser

feita com a indicação da contra-ordenação verificada, das medidas

recomendadas ao infractor e do prazo para o seu cumprimento, avisando-o de

que o incumprimento das medidas recomendadas influi na determinação da

medida da coima.”

Já anteriormente também se previa no art. 632.º do Código de Trabalho

de 2003 que “Quando a contra-ordenação consistir em irregularidade sanável e

da qual ainda não tenha resultado prejuízo grave para os trabalhadores, para a

Administração do trabalho ou para a segurança social, o inspector do trabalho

pode levantar auto de advertência, com a indicação da infracção verificada,

das medidas recomendadas ao infractor e do prazo para o seu cumprimento.”

Trata-se, a nosso ver, de uma faculdade203 que o inspector de trabalho

poderá exercer verificados que estejam determinados pressupostos: um

203

Uma das questões que se levanta a propósito do auto de advertência está relacionado com o binómio legalidade/

oportunidade. Com efeito, e não raras vezes, os arguidos recorrem para instâncias superiores defendendo que a

Autoridade para as Condições de Trabalho em vez de um auto de notícia deveria ter levantado um auto de advertência.

Balizemos a questão: trata-se de saber se o levantamento do auto de advertência é um poder-dever do inspector ou

se, ao invés, se trata de uma mera faculdade a ser usada de acordo com um juízo de oportunidade. A opção entre uma

e outra tese tem relevantes efeitos práticos e, com o devido respeito por tese contrária, não podemos deixar de abraçar

o entendimento segundo o qual se trata de uma mera faculdade.Com efeito, poder-se-ia pensar que, a ser uma mera

faculdade, tal levaria a uma violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado já que um inspector

poderá entender ser de levantar auto de notícia assim dando início a procedimento contra-ordenacional e outro, em

situação perfeitamente análoga, se bastar com o levantamento do auto de advertência (art. 13.º da Constituição da

República Portuguesa). Neste sentido vejam-se os peremptórios dizeres do Acórdão da Relação de Évora de

12.10.2004, no âmbito do Proc. n.º 1686/04-3, “Existindo da parte do I.D.I.C.T. um critério definido relativamente ao

levantamento do auto de advertência, não sendo o mesmo utilizado no caso de contra-ordenações legalmente

qualificadas de graves e muito graves, parece-nos que em abstracto não se pode invocar qualquer violação do

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

141

primeiro relativo a que se trate de infracção classificada de leve e um segundo

pelo qual se impõe que ainda não tenha resultado prejuízo grave para os

trabalhadores, para a Administração do trabalho ou para a Segurança Social.

Em suma, na medida em que este tipo de auto, ao invés de sancionar de

imediato, se limita a advertir, esta face do auto de advertência é vista, pelos

arguidos, com “bons olhos”.

Não obstante, existe a outra face que apenas de quando em vez se

assoma na discussão, e que, pode eventualmente ser encarada pelo arguido

como algo menos positivo. Encontramos essa outra face no regime do

pagamento voluntário da coima (art. 19.º do regime processual aplicável às

contra-ordenações laborais e de segurança social e a que já correspondia o

anterior art. 636.º do Código do Trabalho).

Refere, a este propósito J. SOARES RIBEIRO «É sabido que no domínio

do regime de 1999, em caso de auto de advertência cujas medidas nele

recomendadas não fossem cumpridas, em sede de pagamento voluntário da

coima era obrigatoriamente liquidada pelo valor mínimo do grau

correspondente à infracção praticada com dolo. Era uma disposição que

claramente apontava para a existência, nesse caso, de uma presunção de

dolo. O que poderia, naturalmente, suscitar dúvidas de constitucionalidade

relativas à violação do princípio de presunção de inocência do arguido

constante do n.º 2 do art. 32.º da CRP. (…) E era uma presunção que poderia,

princípio da igualdade quanto a esta matéria.”Contudo, e iniciando desde logo pelo argumento literal, não podemos

escamotear o facto de o art. 632.º do Código do Trabalho utilizar o verbo “poder” e não o verbo “dever”. Ora, as

palavras são o que são, têm os significados que têm, e o que é certo é que nos termos do art. 9.º do Código Civil se

há-de presumir que o legislador “(…) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”. De resto, não é

apenas no processo contra-ordenacional que existem soluções de oportunidade. No próprio processo penal (legislação

subsidiária em matéria de contra-ordenações nos termos do disposto no art. 41.º do RGCO) se consagram, em

matérias-crime, soluções de diversão em homenagem ao princípio da oportunidade. Disso são exemplos a suspensão

provisória do processo e o arquivamento em caso de dispensa de pena (cfr. arts. 280.º e 281.º do Código de Processo

Penal), sem que se levantem vozes relativas à violação do princípio da igualdade… O auto de advertência é pois um

espelho do princípio da oportunidade. Há assim uma margem de discricionariedade quanto à opção do inspector pelo

auto de advertência sendo que discricionariedade não significa o mesmo que arbitrariedade, importando analisar os

parâmetros de exercício de tal discricionariedade.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

142

face à letra do preceito: “a coima será liquidada”, ser entendida como

inilidível»204.

Por ser, além do mais, constitucionalmente contestável a existência de

presunções inilídiveis de dolo ao nível do Direito sancionatório, e para obviar a

tais críticas, a redacção do art. 636.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Trabalho passou

então a ser a seguinte: “3- No pagamento voluntário, a coima é liquidada pelo

valor mínimo que corresponda à infracção praticada com negligência, devendo

ter em conta o agravamento a título de reincidência; 4- Nos casos referidos no

número anterior, se o infractor agir com desrespeito das medidas

recomendadas no auto de advertência, a coima pode ser elevada até ao valor

mínimo do grau que corresponda à infracção praticada com dolo.”

Introduziu-se assim a palavra “pode”, o que, em termos jurídicos, faz toda

a diferença, sendo que tal expressão se manteve e é hoje a consagrada no art.

19.º, n.º 4 do regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de

segurança social.

É que, assim sendo, quando muito, há uma presunção ilidível de dolo.

Neste sentido vejam-se os ensinamentos de J. SOARES RIBEIRO que, face a

esta redacção da lei, não deixou de referir, num outro escrito que «A existência

de um prévio auto de advertência cujas medidas recomendadas foram

desrespeitadas legitima a presunção, naturalmente “tantum iuris”, de existência

de dolo pelo que o autuante deverá, nesse caso, graduar a coima pela moldura

do dolo. O que não obsta, como é óbvio, que, em sede de instrução se venha a

concluir pela existência de mera negligência ou até pela falta de culpa»205. De

resto, provando-se que o arguido recebeu e entendeu o auto de advertência é

tanto quanto baste para preencher desde logo o elemento intelectual do dolo

pelo que já “só” estaria em causa a prova do elemento volitivo do dolo.

De todo o modo, não se pode deixar de acrescentar que os óbices

constitucionais que se poderiam levantar a uma presunção de dolo (mesmo

que ilidível) estão aqui algo diluídos. É que, não esqueçamos, estamos em

204

JOÃO SOARES RIBEIRO, «Contra-ordenações no Código do Trabalho», Questões Laborais, 23, ano XI-2004, Coimbra

Editora, 2004, p. 26.

205 J. SOARES RIBEIRO, Questões, p. 130.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

143

sede de pagamento voluntário da coima. Ou seja, apenas é mobilizada tal

norma porque o próprio arguido pretende pagar voluntariamente a coima.

Assim esta questão atinente ao auto de advertência, que na óptica do arguido

será menos positiva, está mitigada por se tratar de uma fase que só se inicia

de forma voluntária pelo agente.

3.3.2. A negligência

3.3.2.1. Noção de negligência nas contra-ordenações

Ante o já citado art. 8.º, n.º 1 do RGCO importa, antes de mais, aferir do

que falamos quando falamos de negligência nas contra-ordenações.

Em nenhum momento se define, no RGCO, o que é a negligência.

Face a tal silêncio, a questão que (mais uma vez) se poderá suscitar é a

de saber se se há-de pedir de empréstimo a noção penal de negligência e

suas modalidades do art. 15.º do Código Penal ou se a negligência contra-

ordenacional, por si só, assume características específicas.

O legislador do RGCO não criou nenhum conceito contra-ordenacional de

negligência, bem sabendo que o legislador penal o havia feito no art. 15.º do

Código Penal aplicável subsidiariamente nos termos do art. art. 32.º do RGCO.

Assim, somos levados a pensar que, mais uma vez, do ponto de vista de

iure constituto, não parece existir alternativa a ter de pedir o auxílio do Código

Penal quando se queira buscar a noção de negligência e suas diferentes

modalidades.

Nesse sentido parece ir quer a doutrina quer a jurisprudência.

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA em anotação ao art. 8.º do RGCO remete

expressamente para o conceito e modalidades de negligência do art. 15.º do

Código Penal206. SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA afirmam que “Mesmo que se

mostre excluído o dolo, ainda será possível censurar o agente pelo facto, se

206

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral, p. 40.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

144

tiverem sido omitidos os deveres de diligência a que se era obrigado segundo

as circunstâncias e os conhecimentos e capacidades pessoais. Temos então a

negligência, sobre a qual o art. 15.º do CP estabelece o seguinte207”. Também

ANTÓNIO JOAQUIM FERNANDES expressamente afirma, em anotação ao art. 8.º

do RGCO, que “O conceito de negligência – que consiste na omissão de um

dever objectivo de cuidado ou diligência – decorre do artigo 1.º do Código

Penal nas suas duas vertentes: negligência consciente (alínea a)) e

negligência inconsciente (alínea b))”208.

Chegando-se à conclusão que se aplica o conceito penal de negligência,

não se nos afigura útil dissertarmos sobre tal conceito já tão sobejamente

desenvolvido doutrinalmente, pelo que nos limitaremos a relembrar o

essencial.

A negligência supõe a prática de um facto ilícito típico que resulte da

violação de um dever de cuidado ou diligência de que resulte um facto, sendo

previsível tal facto ilícito à luz de um homem médio naquelas circunstâncias

concretas. Refere SELMA PEREIRA DE SANTANA a propósito do critério de

aferição da conduta negligente que «é recomendável o abandono da utilização

de figuras fictícias na aferição da ocorrência tipicamente negligente, cabíveis

elas em qualquer tipo de circunstância. A composição do “homem médio”, que

venha a funcionar, como figura-modelo, para a determinação do dever

objectivo de cuidado, deve levar em consideração que ele tem de estar

inserido nas condições concretas do agente, ou seja, pertencer à sua categoria

intelectual e social, bem como ao seu círculo de vida»209.

Nos termos do art. 15.º do CP estar-se-á perante negligência consciente

quando o agente, com falta de cuidado, represente como possível a realização

de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com

essa realização (al. a)), ao invés da negligência inconsciente que se

207

MANUEL SIMAS SANTOS E JORGE M. LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – anotações, p. 120.

208 ANTÓNIO JOAQUIM FERNANDES, Regime Geral das Contra-ordenações – notas práticas -, 2ª edição, Ediforum, Lisboa,

2002, p. 39. (citado: Regime Geral das Contra-ordenações – notas práticas).

209 SELMA PEREIRA DE SANTANA, Negligência grosseira – autonomia material, Quid Iuris, Lisboa, 2005, p. 146

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

145

consubstancia em o agente, com falta de cuidado, não chegar sequer a

representar a possibilidade de realização do facto ilícito típico (al. b)).

Assim, também no domínio contra-ordenacional se distinguirá a

negligência consciente da inconsciente, o que não se confunde com aquela

terminologia que distingue negligência leve, grave e grosseira. Conforme refere

o Acórdão da Relação do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.11.1988,

Boletim do Ministério da Justiça n.º 381, p. 758, citado por ANTÓNIO BEÇA

PEREIRA210, “A negligência qualificada ou negligência grosseira é um conceito

independente da distinção entre negligência consciente e negligência

inconsciente, pois pode haver negligência grosseira na negligência

inconsciente como pode haver culpa leve ou levíssima na negligência

consciente.”

É ainda de sublinhar que não se pode confundir a actuação com

negligência grosseira com o facto de se ter praticado uma contra-ordenação

qualificada pela lei como grave ou muito grave. Conforme refere, a tal

propósito, o Acórdão do STJ de 13.12.2007, no Proc. n.º 07S3655, “1. A

negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, ou seja, à

chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só

uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de

observar. 2. O facto de uma infracção estradal ser classificada por lei como

muito grave ou como grave não é suficiente, só por si, para integrar o conceito

de negligência grosseira para efeitos de descaracterização do acidente de

trabalho, uma vez que o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama

mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária,

pois, sendo nesta mais premente o interesse da prevenção geral – com

recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo –

não se podem transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade

adoptados naquela legislação. 3. Desconhecendo-se as razões que levaram o

sinistrado a transpor a linha longitudinal contínua do eixo da via, quando

descrevia uma curva para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, e a ir

210

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral, p. 41.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

146

embater de frente no veículo automóvel que, então, circulava pela outra faixa

de rodagem, em sentido contrário ao seu, não é possível qualificar aquela sua

conduta de negligentemente grosseira, apesar da mesma constituir uma

contra-ordenação grave, à luz da legislação estradal.”

Esclarecidos tais pontos, importa ainda sublinhar que se constata que, no

domínio contra-ordenacional, em muitas situações, quando comparada com a

imputação penal, torna-se mais frequente imputar a contra-ordenação a título

de negligência ao arguido. Isto sucede, além do mais, porque, em muitas

contra-ordenações, o agente actua numa veste funcional, sendo que essa sua

roupagem funcional tem a si inerente o dever de cuidado de conhecer

determinadas regras e de se actuar em conformidade com as mesmas, o que

nem sempre observa por descuido ou desatenção.

O caso do condutor é paradigmático. A menos que se alegue e prove

uma causa de exclusão da culpa, o condutor deve ter conhecimento das regras

estradais (aliás, há-de ter sido bem sucedido em exame que versa sobre o

Código da Estrada para ter título que o habilite a conduzir) e de se pautar pelas

mesmas.

Imaginemos também um suinicultor que despeja resíduos dessa

actividade, directamente para um rio, sem qualquer tratamento. Assumindo a

veste funcional de suinicultor, e mais uma vez caso não se alegue nem prova

uma causa de exclusão da culpa, exige-se-lhe que tenha o cuidado de

conhecer as regras jurídicas básicas do sector em que labora e que se paute

pelas mesmas.

Como se refere no Acórdão do STJ de 06 de Julho de 2000, no âmbito do

Proc. n.º 104/2000, citado no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de

21.03.2007, Proc. n.º 0647068: “Em certos casos – como na circulação

rodoviária – o juízo de imputação subjectiva a título de negligência encontra-se

intimamente ligado, não só com a violação de deveres de cuidado genéricos,

mas também com a omissão de cuidados específicos especialmente definidos

e directamente impostos pela lei, os quais têm em vista a regulação de

actividades perigosas (sendo-o a condução automóvel)”.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

147

No sentido que dizíamos, veja-se também o Acórdão do Tribunal da

Relação de Évora, de 09.09.2008, no âmbito do Proc. n.º 1680/08.1, quando

afirma que “Sendo que a autorização prévia assume um carácter deveras

importante no âmbito das operações de gestão de resíduos, consubstanciando

tal falta de autorização uma infracção grave, atendendo também à medida da

coima, que é significativamente elevada, pelo que estamos perante uma

conduta particularmente perigosa, ela implica, além das regras gerais de

cuidado, o cumprimento de regras especiais de cuidado, que se traduzem na

observância ou proibição de violação das normas. Tendo em conta o que

supra ficou consignado, ficou demonstrada a negligência inconsciente da

arguida/recorrente.

Ainda no mesmo sentido, embora usando outra terminologia quanto à

graduação da negligência, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães

de 20.10.2008, no âmbito do Proc. n.º 2508/07.2, afirmando que: “A sociedade

recorrente podia e devia ter obtido a necessária licença, já que estamos num

daqueles domínios em que a existência da norma está perfeitamente

interiorizada pelo ente social. Toda a gente sabe que há que tirar licenças para

certas coisas e que uma delas é a afixação de anúncios, tabuletas e

publicidade em geral, que tenham expressão pública. Não se trata de uma

excepção da câmara municipal aqui em causa, de uma exigência excepcional

ou inesperada. A recorrente é uma pessoa colectiva, uma sociedade

comercial, que como tal, deve saber que, desde a própria constituição, todo o

seu exercício, está normativamente regulado. Isto deveria alertá-la – de forma

mais intensa do que aquela que se impõe a uma pessoa física comum – para o

dever de se manter informada das normas aplicáveis à sua actividade ou às

actividades complementares a que a satisfação do seu escopo social dê lugar.

Ao não observar este cuidado, numa questão tão simples como a obtenção de

uma simples licença camarária de acções publicitárias, exibiu um desinteresse

que configura uma negligência grosseira.”

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

148

3.3.2.2. O princípio da excepcionalidade da sancionabilidade por

negligência nas contra-ordenações: perspectiva de iure

constituto e de iure condendo

Balizado sobre o que falamos quando falamos sobre a negligência nas

contra-ordenações (que, conceptualmente, não se afasta muito do

entendimento penal), impõe-se uma reflexão em torno do princípio da

excepcionalidade da punição a título de negligência nas contra-ordenações.

Com efeito, se bem se analisar, confirmar-se-á que o art. 8.º n.º 1 do

RGCO reproduziu integralmente o estatuído no art.13.º do Código Penal,

consagrando o carácter excepcional da punibilidade por negligência.

Significa isto que, de iure constituto, em concreto, importará atentar na

norma que tipifica a contra-ordenação em causa e ver se aí consta a

sancionabilidade por negligência pois ela terá de estar, à luz do art. 8.º, n.º 1

do RGCO, expressamente prevista na lei. Assim, no silêncio sobre a

sancionabilidade de uma concreta contra-ordenação a título de negligência,

não poderá o intérprete retirar outra conclusão que não seja a de que a

concreta contra-ordenação só é sancionável a título de dolo.

Parece ser essa a interpretação possível da lei. Disso faz, aliás, eco a

doutrina. Assim ANTÓNIO BEÇA PEREIRA quando diz que “A negligência não é,

em regra, punida. Só haverá punição para o facto praticado com negligência

quando aquela estiver expressamente prevista, à semelhança do que sucede

no Direito Penal”211. OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL, no mesmo sentido,

aludem que “Para determinar se a contra-ordenação é punível por negligência

há que examinar a norma contra-ordenacionalizadora, só havendo lugar a

punição por negligência quando a mesma conste expressamente do texto

legal”212. De igual modo os ilustres juízes conselheiros SIMAS SANTOS e LOPES

DE SOUSA quando afirmam que “Como resulta do n.º1, a punição a título de

negligência tem de estar especialmente prevista na lei que prevê a infracção.

211

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral, p. 39.

212 ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Notas, p 39

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

149

Assim, para determinar, diante de um caso concreto, se a contra-ordenação é

punida por negligência basta analisar a norma incriminadora, pois que quando

é admitida esta modalidade de culpa, ela é expressamente referida e, quando

é silenciada essa referência, só é admitida a punição a título de dolo”213.

Também é vasta a jurisprudência que afirma, nos casos concretos, o

aludido princípio.

A título exemplificativo veja-se o Acórdão do STJ de 22.01.2003, proferido

no âmbito do Proc. n.º 02P3204, onde estava em causa uma contra-ordenação

p. e p. nos termos dos arts. 46.º e 209.º da Lei eleitoral dos órgãos das

autarquias locais (Lei orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto). Prevê o art. 46.º

de tal Lei que "1 - A partir da publicação do decreto que marque a data da

eleição é proibida a propaganda política feita directa ou indirectamente através

dos meios de publicidade comercial. 2 - São permitidos os anúncios

publicitários, como tal identificados, em publicações periódicas, desde que não

ultrapassem um quarto de página e se limitem a utilizar a denominação,

símbolo e sigla do partido, coligação ou grupo de cidadãos e as informações

referentes à realização anunciada". Nos termos do art. 203.º do mesmo

diploma"1 - Compete à Comissão Nacional de Eleições, com recurso para a

secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, aplicar as coimas

correspondentes a contra-ordenações praticadas por partidos políticos,

coligações ou grupos de cidadãos, por empresas de comunicação social, de

publicidade, de sondagens ou proprietárias de salas de espectáculos. (…)”,

prescrevendo ainda o art. 209.º que "Quem promover ou encomendar bem

como a empresa que fizer propaganda comercial com violação do disposto na

presente lei é punido com coima de 1.000.000$00 a 3.000.000$00". Face a tais

normas forçoso se tornava concluir, como o fez o Acórdão, que “a contra-

ordenação que seria imputada aos arguidos não era punível a título de

negligência, só sendo punível o facto praticado a título de dolo. Do diploma

incriminador não consta a punição a título de negligência - em contrário do que

213

MANUEL SIMAS SANTOS E JORGE M. LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – anotações, p. 122.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

150

sucede, v.g., nos artigos 215º e 218º - pelo que a conduta dos arguidos não é

punível”.

Exactamente sobre a mesma questão, e ainda a título exemplificativo,

reitera o STJ em Acórdão de 11.06.2003, Proc. n.º 02P3090, que “Não importa

averiguar da verificação, porventura provável, da prática dos factos com

negligência, considerando que nenhuma disposição legal prevê a punibilidade

da prática com negligência de factualidade integrante da previsão do citado art.

46º, como seria indispensável, conforme resulta expressamente do disposto no

art. 8º, nº 1, do referido DL nº 433/82. Assim, só sendo punível o facto se

praticado com dolo e não podendo concluir-se pela sua verificação, a

condenação não pode subsistir, procedendo este fundamento do recurso.”

Apesar desta clarividência, certo é que já houve necessidade de

uniformizar jurisprudência precisamente a propósito da aplicação do princípio

em análise a um caso concreto. Assim, no Acórdão Uniformizador de

Jurisprudência do STJ de 14.01.2009, proferido no âmbito do Proc. n.º

07P0605, suscitava-se a seguinte questão: havia sido aplicada à arguida uma

coima no valor de €2.490,00, por decisão da autoridade administrativa Instituto

Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola, porquanto se havia considerado

que a mesma havia praticado uma contra-ordenação P. e P. pelos arts. 3.º e

7.º do Decreto-Lei n.º 197/2002 de 25 de Setembro. A arguida impugnou

judicialmente tal decisão administrativa para o Tribunal de primeira instância

que julgou o recurso improcedente e manteve a coima aplicada. A arguida

recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que absolveu a arguida, ainda

que por razões diferentes das que ora se discutem. A arguida interpôs recurso

extraordinário no sentido de ser uniformizada a jurisprudência já que, no

Tribunal da Relação de Lisboa, já se tinha decidido, tanto a admissibilidade

como a inadmissibilidade da punição por negligência da contra-ordenação

prevista no art. 7.º do Decreto-Lei n.º 197/2002, de 25 de Setembro. Ora, tal

Decreto-Lei não previa, expressamente, a punibilidade por negligência pelo

que, sem surpresas, o STJ, neste interessante Acórdão, firmou a seguinte

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

151

jurisprudência: “Os factos previstos pelo artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 197/2002,

de 25 de Setembro, apenas são puníveis quando praticados com dolo.”

Não se trata pois, de questão teórica estéril, mas antes de um princípio

com importantes repercussões na prática, como aí estão para o demonstrar os

Acórdãos exemplificativamente citados a este propósito. De todo o modo, na

senda do que a lei, doutrina e maioria da jurisprudência afirmam, não se

duvidará de que o ordenamento contra-ordenacional da negligência se pauta

pela excepcionalidade desta.

Mas se assim é do ponto de vista do Direito positivado, somos livres para

pensar na perspectiva do Direito a constituir. Importa pois analisar se o

carácter excepcional da punição por negligência se adequa a um autónomo

Direito das contra-ordenações ou se se trata de uma importação penal que

deverá ser alterada de iure condendo.

A questão não é virgem na discussão doutrinal.

TAIPA DE CARVALHO, v.g., entende que princípio da excepcionalidade da

punição por negligência deveria ser abolido do domínio contra-ordenacional.

Refere, significativamente, a este propósito, que “Esta transposição, para o

domínio da responsabilidade contraordenacional, da regra da exigência do

dolo (que, no âmbito criminal-penal, é razoável) é, em minha opinião, de

rejeitar. A razão fundamental é a seguinte: tendo a generalidade das normas

jurídicas contraordenacionais destinatários específicos (por exemplo,

empresas, condutores), é-lhes exigível uma especial diligência nas suas

actividades. Donde resulta que o seu descuido, negligência ou violação do

dever objectivo de cuidado deve-lhe ser sempre censurado e, portanto, o

respectivo facto deve sempre ser punível (a título de negligência), embora, é

certo, menos gravemente do que se houver dolo. Ora, restringir-se, em

princípio, a punibilidade à existência de dolo, conduzirá a uma de duas

situações: ou o legislador, na sua actividade de definição das específicas

contra-ordenações, estabelecerá, quase sempre, a expressa punibilidade da

negligência, ou só o fará em casos excepcionais. Na primeira hipótese, a

excepção transformar-se-á, na realidade, em regra, contradizendo o princípio

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

152

geral estabelecido no referido art. 8.º-1; na segunda hipótese, ter-se-á como

resultado prático uma eventual impunidade generalizada, pondo-se, assim, em

causa a eficácia prática preventiva das normas jurídicas contraordenacionais.

Nesta segunda hipótese, esta crítica sai reforçada com o facto de o legislador,

num domínio onde a relevância axiológico-social e a ressonância ético-social

não são tão profundas como no domínio das infracções criminais, também ter

atribuído ao erro sobre a proibição legal o efeito de exclusão do dolo (art. 8.º-

2)”214. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE fala mesmo de uma “regra geral da

punibilidade da negligência” ao nível da legislação contra-ordenacional

especial215.

Também TERESA PIZARRO BELEZA parece insinuar o carácter acrítico da

importação legislativa penal do princípio da excepcionalidade da punição por

negligência ao dizer que “O art. 8.º declara, à semelhança do Código Penal

(art. 13.º), o carácter excepcional da punição por negligência. Aliás, este é

apenas um de uma mera série de aspectos em que o D.L. 433/83, se

aproxima, em vez de se afastar, do Direito Penal”216.

Aliás, alguma doutrina e Jurisprudência fora das nossas fronteiras (já

meramente virtuais) também defendem que a negligência assume um papel

preponderante em sede de contra-ordenações. Assim, MARIA LOURDES RAMIREZ

TORRADO, não hesita em afirmar que “en el derecho administrativo

sancionador, la imprudência es la protagonista”217. Também A. DE PALMA

pugna no sentido de que ao nível do ilícito de mera ordenação social o dolo

assume um papel meramente secundário218.

Aliás, ao nível da jurisprudência comunitária, o Tribunal de Justiça da

União Europeia (anteriormente designado de TJCE) vem dando

preponderância à negligência. Na verdade, como nos informa KLAUS

TIEDEMANN «En la praxis, frecuentemente, al TJCE le há bastado com la

214

TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal-Parte Geral, pp. 171-172.

215 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p. 62.

216 TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, p. 122.

217 MARIA LOURDES RAMÍREZ TORRADO, «Consideraciones de la Corte Constitucional», p.157

218 A. DE PALMA, perpassando esta ideia em toda a obra El princípio de culpabilidade en el derecho administrativo

sancionador,Tecnos, Madrid, 1996.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

153

declaración de que existia “al menos negligencia”, dejando de lado la

constatatión del dolo y la imprudência, incluso a la hora de calcular la sanción.

Esta equiparación del dolo y la imprudência deve ser aclarada dentro de la

singularidad de este sector jurídico, en el cual, como en general ocurre en el

derecho penal económico, no nos encontramos tanto ante delitos materiales

como ante infracciones de deber»219.

Com efeito, não é de estranhar que a regra passe a ser a de sancionar

contra-ordenacionalmente condutas negligentes atento o facto de se tratarem

de delitos ligados a deveres de cuidado extensos e de inúmeras fontes.

Bastará um mero vôo de águia sobre os regimes sectoriais de contra-

ordenações para se constatar que, na sua esmagadora maioria, se consagrou

expressamente a punibilidade por negligência (o que, de resto, também

sucede quanto à punibilidade da tentativa).

No fundo, o que a prática legislativa tem demonstrado é que, por via da

consagração sectorial da sancionabilidade a título de negligência, se converteu

a regra do art. 8.º, n.º1 do RGCO em excepção, como bem previu TAIPA DE

CARVALHO.

De resto, de uma qualquer consulta apressada de bases de dados

jurisprudenciais também se extrairá essa conclusão já que a larga maioria das

contra-ordenações nas decisões aí em causa são sancionadas a título de

negligência (o que significa que a mesma tinha que estar expressamente

prevista).

Assim, o que no RGCO é a regra, sectorialmente (onde se tipificam as

concretas contra-ordenações) passa a ser a excepção.

Mas não sem que tal traga problemas acrescidos.

É que muitas das previsões sectoriais da punibilidade da negligência, em

virtude da sua redacção, adensam os problemas.

Com efeito, não raras vezes na previsão dos tipos contra-ordenacionais

nos regimes sectoriais nada se diz, havendo apenas norma que remete para a

219

KLAUS TIEDEMANN, «El Derecho Penal Económico», p. 7.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

154

aplicação de outra lei em tudo que não esteja especialmente regulado (e já não

para um diploma concreto que preveja a sancionabilidade da negligência).

TIAGO LOPES DE AZEVEDO partindo de exemplos como o do Decreto-Lei n.º

267/2009, de 29 de Setembro (que não prevê a punibilidade por negligência

mas que remete, no seu art. 21.º e quanto à gestão de resíduos para o

Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05 de Setembro) coloca o dedo na ferida da

inconstitucionalidade e da violação do princípio da legalidade acentuando que,

em sua perspectiva “os diplomas que nada digam quanto à negligência e

contenham remissões que não são caras nem inequívocas, são ilegais e

insconstitucionais, uma vez que violam o essencial e fundamental do princípio

da legalidade. Não temos dúvidas que para uma norma contra-ordenacional

em branco ser aplicada de acordo com a Constituição da República e de

acordo com os princípios do Direito sancionatório, tem de haver uma remissão

clara e inequívoca para outro diploma legislativo. Além disso, pensamos que

aquela remissão-conexão deve delimitar de uma forma clara a matéria da

remissão. Se é relativa à consuta do agente e se engloba a negligência ou

apenas o dolo; se se refere a questões de concurso de sanções; se a remissão

incorpora as sanções acessórias, etc.”220.

Por todo o exposto, talvez fosse mais curial a consagração de que a

contra-ordenação é punível (mais rigorosamente, sancionável) quer a título de

dolo quer de negligência, tudo ficando pois a depender dos factos e da prova

que sustentem uma ou outra conclusão. Mas ainda que tal não se venha a

consagrar, e estando-se perante Direito sancionatório, exige-se de todo o

modo ao legislador um maior rigor e clareza quanto à consagração e

remissões sobre a modalidade de culpa sancionável em cada caso nos

regimes sectoriais.

220

TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade, pp. 90 e 91.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

155

3.3.2.3. A admissibilidade ou inadmissibilidade de presunções

de negligência nas contra-ordenações

Questão mais polémica é a de saber se serão admissíveis presunções de

negligência no domínio contra-ordenacional.

A prova por presunção redunda em partir de determinado facto e chegar,

por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um outro facto.

Existem presunções legais ou de direito e presunções naturais ou

judiciais ou de facto.

As presunções legais, passe-se o pleonasmo, são as que vêm previstas

na lei, podendo o legislador ter admitido prova em contrário (presunções

ilidíveis ou iuris tantum) ou ter consagrado a irrefutabilidade da presunção

(presunções inilidíveis ou iuris et de iure.). Tais presunções legais podem

ocupar-se da culpa, o que sucede, designadamente, no domínio civilístico.

Conforme refere JOÃO BAPTISTA MACHADO “Dadas as dificuldades de prova de

certos factos constitutivos de direitos em determinadas situações, a lei vem em

socorro de uma das partes estabelecendo a seu favor uma presunção legal (é

o que acontece, por ex., na presunção legal de culpa estabelecida nos arts.

492.º e 493.º). É o que o ónus da prova tem muitas vezes influência decisiva

sobre a relação jurídica material – sobre o direito substantivo. Daí que o

legislador utilize esta técnica também como meio de regular e compor da

maneira que considera mais justa ou mais acertada um conflito de

interesses”221.

Coisa diversa são as presunções naturais ou judiciais ou de facto, ou

seja, aquelas que se fundam nas regras práticas de experiência, nos

“ensinamentos hauridos através da observação (empírica) dos factos. É nesse

saber de experiência feito que mergulham as suas raízes as presunções

221

JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2002, p. 112.

(citado: Introdução ao Direito).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

156

continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto”222.

Essas presunções não são admissíveis em toda a linha. Com efeito, as

presunções judiciais “só são admitidas nos casos e termos em que é admitida

a prova testemunhal e podem, como esta, ser infirmadas por simples

contraprova ou seja, por provas que, abalando a convicção do juiz, criem no

espírito deste um estado de incerteza acerca do facto que importa provar (ao

passo que as presunções legais só podem ser ilididas – quando o possam ser

– através da prova do contrário, conforme diz o art. 350.º, n.º 2)”223.

Vejamos.

Com efeito, já no domínio das contravenções existia doutrina que se

inclinava a aceitar presunções de negligência, assumindo que este era, de

resto, um dos desvios dogmáticos reveladores da especificidade do ilícito

penal administrativo. Note-se que, à data, um dos elementos legais definidores

de contravenção era o seguinte “independentemente de toda a intenção

maléfica”224 (cfr. art. 3.º da Código Penal de 1886) o que foi sendo fruto de

222

ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora,

Coimbra, 1985, pp. 501 e 502. Sobre presunções cfr.ainda MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo

Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, pp. 215 e 216.

223 JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito, p. 112.

224 EDUARDO CORREIA, em Direito Criminal, p. 221, explica as três interpetações possíveis sobre a expressão

“independentemente de toda a intenção maléfica”: “Seríamos tentados a dizer “primo conspectu, que esta formulação

legal traduz o recurso do legislador ao elemento subjectivo, que apontámos como elemento de diferenciação entre

crimes e contravenções: ao contrário do que se passaria nos crimes, não seria essencial o dolo como elemento de

punição nas contravenções. A interpretação seria, porém, errada. É sabido, com efeito, que a lei prevê a imputação

subjectiva dos crimes por negligência. Pode então pensar-se em dizer que a intenção maléfica é irrelevante nas

contravenções. Não importaria que o agente procedesse com dolo ou não, ou que este fosse mais ou menos grave. A

verdade, porém, é que não há nenhuma razoa para não graduar a culpa consoante os seus elementos e graus – tanto

nos crimes como nas contravenções. Uma outra interpretação possível é a de que a segunda parte do artigo significar

a consagração, pelo legislador, de um certo critério ético. As contravenções seriam eticamente indiferentes, e, por

consequência, não seria possível, na sua imputação a título de dolo, encontrar qualquer referência a elementos éticos.

Esta nos parece ser a opinião de Beleza dos Santos. E, a ser assim, teríamos na definição do legislador dois

elementos – um traduzindo-se no grau da ofensa; outro ético. Aparentemente heterogéneos, estes elementos poderiam

coincidir em grande escala. O segundo critério – ético – seria até de utilizar para fixar os interesses relativamente aos

quais se põe a questão do grau de ofensa prevista na primeira parte do artigo”

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

157

várias interpretações e abriu caminho para entendimentos mais flexibilizadores

da culpa, conforme referido por ELIANA GERSÃO225.

Desde logo CAVALEIRO FERREIRA rejeitava a opinião de que as

contravenções são um mero acto material sem objectividade ilícita ou sem

vontade culpável já que subsiste o desvalor da acção, como acção imprudente.

Assim, referia que “é sempre exigível a vontade culpável do agente e,

consequentemente, relevante o grau de culpa para efeito de punição226”.

Contudo, admitia presunções de negligência227.

Também EDUARDO CORREIA, referindo-se às contravenções, admitia tais

presunções conquanto fossem ilidíveis, fazendo-o com a seguinte justificação

“A punição por negligência nas contravenções está ligada à necessidade de

evitar uma fuga à punição com base na falta de consciência da ilicitude, certo

como é que não corresponde às disposições contravencionais qualquer juízo

ético que possa supor-se conhecido pelo agente. E a isto acresce, por outro

lado, que a punição da negligência obriga a uma maior precaução dos agentes

e supõe uma intimidação mais extensa. O que claramente se torna necessário,

dado o grande número de contravenções e a impossibilidade de as prevenir

com a ameaça de uma pena muito forte, considerada a sua pequena gravidade

na generalidade dos casos. O que pode até conduzir a que se aceite uma

presunção de negligência, embora admitindo sempre uma prova em

contrário”228.

De resto, já no Parecer n.º 4/81 da Comissão constitucional se piscava o

olho à futura estatuição de presunções de negligência na área contra-

ordenacional.

Mas elemento histórico à parte, e cientes que a contravenção se situava

ainda no domínio penal mas que é vista por muitos como o antecedente

225

ELIANA GERSÃO, «Revisão do Sistema Jurídico relativo à infracção fiscal», Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º

112, Centro de Estudos Fiscais da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, 1976, pp. 15 e 16.

226 CAVALEIRO FERREIRA, Direito Penal Português – Parte Geral I, Verbo, Lisboa, 1982, pp. 218 e ss.

227 CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal, Tomo I, Verbo, Lisboa, 1987, p. 50.

228 EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, p. 223.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

158

histórico das contra-ordenações, fará hoje sentido presumir a negligência no

domínio contra-ordenacional?

Doutrina e jurisprudência pronunciaram-se já sobre tal questão.

Alguma jurisprudência parece decidir como se existissem presunções

legais de negligência, o que sucede, sobretudo, em matéria tributária, mas não

exclusivamente.

Veja-se, v.g., o Ac. da Relação de Évora de 06.12.2005, Proc. n.º

2212/05, em que se sumaria: “é de presumir a culpa resultante da omissão de

um dever de cuidado ínsito à violação de uma norma estradal já que é exigível

aos condutores de veículos automóveis que cumpram as disposições legais

reguladoras do trânsito”, ou ainda Ac. do Tribunal da Relação do Porto de

04.11.2012, P. 2122/11.3TBPVZ.P1, em que também se consigna “Na decisão

da autoridade administrativa, o elemento subjetivo da conduta pode presumir-

se da descrição do elemento objetivo”.

Também no recente Ac. do Tribunal Constitucional n.º 45/2014 de 09 de

Janeiro parecem admitir-se presunções iuris tantum de negligência baseadas

no incumprimento de deveres.

Na doutrina há também defesas frontais de presunções de negligência

em Direito sancionatório.

Veja-se, v.g., MARGARIDA ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA (ainda que a

propósito do Direito Administrativo sancionador mas referindo-se também ao

domínio contra-ordenacional) que refere que “Com efeito, a culpa, ou melhor, a

negligência do administrado, é presumida na ausência de defesa por parte

deste, com fundamento na violação do dever geral de cuidado que a prática

por si só consubstancia. O elemento subjectivo acaba por se presumir,

influindo na determinação da medida da sanção (…) Assim, a culpa não é

afastada do direito sancionador administrativo, apenas é presumida nalguns

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

159

casos, presunção necessariamente iuris tantum para a disponibilidade do

sujeito passivo da sanção alegar e provar o seu afastamento ou atenuação”229.

Aliás, essa posição é-nos dada a conhecer, de modo crítico, por ISABEL

MARQUES DA SILVA, que debruçando-se sobre dois Acórdãos do Tribunal

Central Administrativo de 2001, escreve “Surpreendeu-nos e alarmou-nos,

porém, a tese contida na fundamentação do Acórdão, expendida a propósito

da culpabilidade na infracção fiscal pela qual a recorrente havia sido

sancionada, segundo a qual naquela infracção fiscal haveria uma presunção

de negligência, cuja ilisão caberia ao infractor através da prova de que agiu

sob a pressão de uma situação exterior tal que não era possível exigir-lhe

comportamento diverso.” Esta jurisprudência alicerça-se em dois tipos de

argumentos: em primeiro lugar afirma, tout court, que existe uma presunção de

negligência, cujo afastamento caberia ao infractor através da prova de que

agiu sob a pressão de uma situação exterior tal que não era possível exigir-lhe

comportamento diverso. Por outro, invoca a autoridade da doutrina nesse

sentido (v.g. de CAVALEIRO FERREIRA que perfilhava o entendimento de que as

contra-ordenações eram infracções puníveis independentemente de culpa, de

resto, conforme estabelecia o art. 1.º, n.º2 do RGCO até ao Decreto-Lei n.º

244/95 de 14 de Setembro)230.

Ora, concordamos com ISABEL MARQUES DA SILVA quando, naquele

escrito, refere que não se vislumbra a existência de uma presunção legal de

negligência nem no RJIFNA nem no RGCO, pelo que não se pode afirmar a

mesma.

Coisa diferente é equacionar a existência de presunções judiciais de

negligência, como o faz outra jurisprudência. Em Acórdão do TCA Sul de

28.10.2008, proferido no âmbito do Proc. n.º 02485/08, firmou-se o seguinte

entendimento: “Na falta de qualquer prova em contrário, é de presumir

229

MARGARIDA ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA, O Sistema das Sanções e os princípios do Direito Administrativo

sancionador, Universidade de Aveiro, 2007, Proc. 118 e 119, disponível em

http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Ermelinda.pdf, consultado pela última vez em 03.09.2013.

230 ISABEL MARQUES DA SILVA, «Reflexões acerca da culpabilidade nas contra-ordenações fiscais – a propósito de dois

Acórdãos do Tribunal Central Administrativo», Direito e Justiça, vol. XVI, Tomo 2, 2002, pp. 105 e ss.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

160

(presunção de facto, natural), que o agente que praticou certos factos que

consubstanciam uma contra-ordenação tributária, teve uma representação

imperfeita ou uma não representação da realização do tipo de ilícito, sendo de

lhe imputar subjectivamente o mesmo a título de mera negligência”.

Exactamente no mesmo sentido vai o Acórdão do TCA Sul, de 20.05.2009,

Proc. n.º 02317/085.

Numa linguagem mais ambígua, refere o Acórdão do STA de 10.11.2004,

proferido no âmbito do Proc. n.º 0705/04, diz-se que “A culpa que não se

presume mas que por ser algo que, em regra, se liga ao carácter ilícito-típico

do facto respectivo está, em princípio, ínsita na descrição desse facto pelo que

nos casos em que se prevêem tipos legais de infracção cometida com dolo e

com negligência preenchidos pela mesma materialidade, a descrição factual

terá implícita uma afirmação da existência de culpa. Na falta de referência

explícita ao dolo deverá entender-se o facto como negligente como forma

mínima de imputação subjectiva de uma conduta a uma actuação.”

Importa distinguir dois planos: o plano do Direito constituído e do Direito

a constituir.

Com efeito, situando-nos no plano do Direito constituído a lei é clara: a

culpa é elemento do tipo contra-ordenacional, podendo assumir as

modalidades de dolo e de negligência, nenhuma norma havendo que permita

extrair presunções de negligência (arts. 1.º e 8.º do RGCO). Sendo

propositadamente lapidares, diremos que não existem, no RGCO, presunções

legais de negligência.

Em suma, a defender-se a existência de presunções de negligência nesta

sede apenas poderão ser presunções naturais ou presunções legais de iure

condendo já que inexiste qualquer presunção legal no actual ordenamento

jurídico contra-ordenacional.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

161

4. Segunda vertente do princípio da culpa: A culpa como limite da

coima e sanções acessórias nas contra-ordenações

4.1. A culpa na moldura da sanção aplicável

Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.03.2004,

Proc. n.º 504/04, que “Como sanção que é a coima só é explicável enquanto

resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se

dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever

que decorrer das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de

protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma violada,

pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita,

fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral,

sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.”

Serve este Acórdão de mote para falarmos da outra vertente do princípio

da culpa nas contra-ordenações: é que, já o dissemos antes, a culpa, ademais

de fundamento, operará ainda, a nosso ver, como limite da coima e das

sanções acessórias aplicáveis.

É certo que nem toda a doutrina concorda que o limite máximo da coima

e da sanção acessória seja um limite estabelecido em termos de culpa. Neste

sentido veja-se, ANTÓNIO LEONES DANTAS quando refere “é esta acepção de

culpa que leva a que a mesma seja ponderada apenas como um dos

elementos que fundamenta o juízo de proporcionalidade relativo à

determinação da coima e não surja como limite de uma sanção concretamente

aplicada ao agente, como sucede na responsabilidade criminal. Não tem

aplicação aqui o princípio da culpa, com o conteúdo que o caracteriza no

Direito Penal (…)”231. Tal afirmação será coerente com a posição dos que

afirmam (como o afirma o invocado Autor) que no domínio contra-ordenacional

a conduta é axiológica e eticamente irrelevante, o que, como já sublinhámos,

não é o nosso caso (pelo menos, não em toda a linha).

231

ANTÓNIO LEONES DANTAS, Direito das Contra-ordenações, pp. 81 e 82;

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

162

Mas vejamos o regime legal previsto neste ponto e o que se entende com

base nas premissas anteriores do presente escrito.

A este propósito importa atentar no disposto nos arts. 17.º, 18.º e 21.º do

RGCO.

Dispõe ao art. 17.º do RGCO que “1 - Se o contrário não resultar de lei, o

montante mínimo da coima aplicável às pessoas singulares é de (euro) 3,74 e

o máximo de (euro) 3740,98. 2 - Se o contrário não resultar de lei, o montante

máximo da coima aplicável às pessoas colectivas é de (euro) 44891,81. 3 - Em

caso de negligência, se o contrário não resultar de lei, os montantes máximos

previstos nos números anteriores são, respectivamente, de (euro) 1870,49 e

de (euro) 22445,91. 4 - Em qualquer caso, se a lei, relativamente ao montante

máximo, não distinguir o comportamento doloso do negligente, este só pode

ser sancionado até metade daquele montante.”

À semelhança do que sucede nos arts. 41.º e 47.º do Código Penal

quanto à pena de multa, também no Direito das contra-ordenações está o

aplicador da coima limitado a molduras de sanção estabelecidas legalmente232,

sendo esta a primeira operação de determinação da sanção a que deverá

proceder.

Decorre pois deste artigo que o legislador estabeleceu molduras de coima

num modelo dual: diferenciando as pessoas singulares e as pessoas colectivas

e diferenciando ainda o dolo da negligência.

De um modo sistemático dir-se-á que, em princípio:

- quanto ao limite mínimo da coima, o mesmo é de €3,74. E isto quer em

caso de negligência quer de dolo, quer de pessoas singulares quer

colectivas233;

232

As molduras da coima previstas no RGCO só podem ser alteradas por lei da Assembleia da República ou por acto

legislativo por ela autorizado - cfr. art. 165.º, n.º1 al. d) da CRP.

233 Na verdade, a lei não estabelece expressamente limite mínimo para as pessoas colectivas. No entanto, não terá o

legislador querido um limite mínimo para as pessoas colectivas abaixo do aplicável às pessoas singulares e

associações sem personalidade jurídica. Nessa medida, o limite mínimo para a moldura de coima aplicável às pessoas

colectivas é de €3,74. Neste sentido cfr. ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral, p. 53

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

163

- quanto ao limite máximo da coima: a) se for pessoa singular: tratando-se

de dolo, o limite máximo da coima é de €3.740,98, tratando-se de negligência o

limite máximo é de €1.870,49; b) se for pessoa colectiva: tratando-se de dolo o

limite máximo da coima é de €44.891,81, já se for por negligência é de

€22.445,91.

Estamos perante molduras de coimas que operam, assim, por referência

à diferença entre negligência e dolo e cujos limites máximos serão o tecto

permitido pela culpa.

Mas esta não é uma regra imutável.

Por um lado, porque no próprio RGCO se prevêem casos em que o limite

máximo pode ser superior ao previsto no seu art. 17.º. É o que sucede nos

arts. 18.º, n.º 2 e 19.º, n.º2 do RGCO (casos em que houve benefício

económico calculável superior ao limite máximo da coima e casos de concurso

de infracções em que a coima aplicável tem como tecto o dobro do limite

máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso, respectivamente).

E, por outro lado, porque nalguns regimes sectoriais se adoptam outros

critérios ou outros limites para as molduras da coima.

Um exemplo da adopção sectorial de outros critérios é, v.g., o previsto no

art. 26.º do RGIT (veja-se ainda o caso do que se previa nas contra-

ordenações por violação de posturas e regulamentos de natureza genérica e

execução permanente das autarquias locais cujas coimas “não podem ser

superiores a 10 vezes a retribuição mínima mensal garantida para pessoas

singulares e 100 vezes aquele valor para pessoas colectivas, nem exceder o

montante dos que sejam impostos pelo Estado para contra-ordenação do

mesmo tipo.” - cfr. o então art. 55.º, n.º2 da Lei de Finanças Locais - Lei n.º

2/2007, de 15 de Janeiro ora revogada pela Lei n.º 73/2013, de 03 de

Setembro).

De sublinhar que muitas das molduras de coima aplicáveis são o espelho

da afirmação de que o Direito das contra-ordenações não pode ser visto como

o Direito das bagatelas ou um Direito Penal menor como vimos afirmando.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

164

Com efeito, muitos são os casos de molduras de coima que ascendem a

valores muito elevados, quer no seu mínimo quer no seu máximo, sendo ainda

certo que as sanções acessórias abstractamente previstas são igualmente

bastante gravosas.

4.2. A culpa no quantum concreto de coima e sanção acessória

Encontrada que esteja a moldura legal da coima nos termos do disposto

no art. 17.º do RGCO segue-se a aplicação de um quantum concreto de coima.

Pretendendo-se, dentro das balizas da moldura da coima aplicável, encontrar

um montante concreto de coima, haverá, num segundo momento, que atender

aos critérios estabelecidos pelo art. 18.º do RGCO.

Nos termos do art. 18.º do RGCO “1 - A determinação da medida da

coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da

situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da

prática da contra-ordenação. 2 - Se o agente retirou da infracção um benefício

económico calculável superior ao limite máximo da coima, e não existirem

outros meios de o eliminar, pode este elevar-se até ao montante do benefício,

não devendo todavia a elevação exceder um terço do limite máximo

legalmente estabelecido. 3 - Quando houver lugar à atenuação especial da

punição por contra-ordenação, os limites máximo e mínimo da coima são

reduzidos para metade.”

Note-se que nos regimes especiais ou sectoriais de contra-ordenações

são muitas vezes consagradas - como já referido - regras especiais sobre os

critérios de determinação concreta da coima (uns mais outros menos

coincidentes com o art. 18.º do RGCO).

Por outro lado, conforme alerta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, não raras

vezes, as autoridades administrativas orientam-se por grelhas mais detalhadas

de uso interno. Conforme afirma aquele Autor «Por vezes, a autoridade

administrativa define uma “grelha” de critérios para a determinação concreta da

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

165

sanção em face da grande distância entre o limite máximo e o limite mínimo da

coima, como sucede no artigo 113.º da Lei n.º 5/2004, de 10.02. Esta “grelha”

umas vezes é pública, outras vezes é apenas do conhecimento dos serviços

internos. Em ambos os casos, a autoridade administrativa autovincula-se ao

respeito desta grelha. Nada obsta a esta prática desde que ela tenha em conta

os critérios do artigo 18.º do RGCO e não frustre a apreciação das

circunstâncias concretas do caso, isto é, não represente uma forma de

aplicação “automática” dos referidos critérios»234.

De todo o modo, em todo este quadro, quando comparada a coima com a

sanção penal de si mais próxima (pena de multa), se num primeiro momento

de determinação da sanção se actua em termos muito análogos (no sentido

em que se procura a moldura da coima embora com as especialidades

decorrentes do art. 17.º do RGCO), já neste segundo momento são notórias as

diferenças.

Com efeito, enquanto que na pena de multa foi consagrado o sistema de

dias de multa (determinando-se primeiro o numero de dias em função de

exigências de culpa e prevenção e depois um quantitativo diário em função da

situação económica – cfr. art. 47.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal), já na

determinação da coima tudo é ponderado conjuntamente nos termos do art.

18.º, n.º 1 do RGCO.

Nessa ponderação conjunta, relevam, nos termos do predito artigo, a

gravidade da contra-ordenação, a culpa, a situação económica do agente e o

benefício económico retirado da infracção.

Vejamos os critérios em causa de relance, sendo que, como se

compreenderá, apenas aprofundaremos um pouco mais o da culpa.

No que se refere à gravidade da contra-ordenação, importa sublinhar que

a mesma se “afere pelo modo de execução da infracção, pela gravidade das

suas consequências, pela natureza dos deveres violados, enfim, pelas

234

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, p.37.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

166

circunstâncias que a antecederam, envolveram e se seguiram ao cometimento

da infracção”235.

Importante ainda é olhar à situação económica e benefício económico

que o agente retirou da coima. Pretende-se “por um lado, a eliminação ou, pelo

menos, o esbatimento das diferenças de sacrifício que o pagamento da coima

implica entre os infractores possuidores de diferentes meios de a solver e, por

outro lado, a eliminação do eventual benefício económico retirado da contra-

ordenação”236.

O critério do benefício económico é um critério a que o legislador

empresta alguma importância já que permite que se ultrapassasse o limite

máximo das coimas estabelecidos no art. 17.º do RGCO se o agente tiver

retirado da infracção um benefício económico calculável superior ao limite

máximo da coima e não existirem outros meios de o eliminar, sendo certo que

se poderá elevar a coima até ao montante do benefício mas não podendo a

elevação exceder um terço do limite máximo estabelecido) – cfr. art. 18.º, n.º 2

do RGCO.

Concluindo-se pela aplicabilidade da moldura de coima agravada nos

termos do art. 18.º, n.º 2, a lei não refere a que critérios haverá que atender

para determinação do quantum concreto da mesma. Ora, uma vez que o

benefício económico retirado da infracção já funcionou num primeiro momento

de construção da moldura não poderá constituir critério de determinação da

medida da coima dentro de tal moldura agravada. Assim entendem, v.g.,

OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL que referem a este propósito que “Perante

o silêncio da lei e tendo em vista o seu texto, entendemos que o benefício

económico resultante da contra-ordenação quando funciona como

circunstância modificativa agravante, deixa de constituir critério de

determinação da medida da coima.”.

Contudo, num primeiro momento de determinação da moldura da coima

importará atender se se trata de um caso de dolo e negligência que são

235

LOPES ROCHA, GOMES DIAS e ATAÍDE FERREIRA, Contra-ordenações, Escola Superior de Polícia, Lisboa, 1994, p. 30

citados em ANTÓNIO JOAQUIM FERNANDES, Regime das Contra-ordenações – notas práticas, p. 49.

236 ANTÓNIO JORGE FERNANDES DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Notas, p. 61.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

167

modalidades de imputação de culpa (cfr. art. 17.º do RGCO) e isso não

invalida que, num segundo momento de determinação do quantum concreto da

coima se volte a atender à culpa. Não se trata de avaliar duas vezes a mesma

coisa, mas antes de graduar variações de culpa e de benefício económico

dentro de uma moldura.

E quanto ao critério da culpa? Como opera?

SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA referem, em anotação ao artigo 18.º do

RGCO que, no que respeita à culpa, e dentro da margem de liberdade, a

fixação do concreto montante de coima deverá levar em linha de conta: o grau

de violação dos deveres impostos pelo agente, o grau de intensidade da

vontade de praticar a infracção, os sentimentos manifestados no cometimento

da contra-ordenação, os fins ou motivos determinantes, a conduta anterior e

posterior e a personalidade do agente237.

Porque um dos critérios elencados é precisamente a conduta anterior do

agente ao nível contra-ordenacional, concorda-se com o Acórdão do Tribunal

da Relação do Porto, de 01.04.2009, Proc. n.º 159/08.9TPPRT, em que se

entendeu que “É correcta a decisão de, em processo de contra-ordenação,

ponderar na operação de determinação da medida da coima os antecedentes

do arguido no âmbito das contra-ordenações.”

Aliás, nalguns regimes sectoriais, como no das contra-ordenações

estradais, em que há norma própria relativamente aos critérios de

determinação do montante da coima, prevê-se a atendibilidade dos

antecedentes existindo um registo próprio para consulta dos mesmos (cfr. art.

144.º do Código da Estrada).

E falando-se de culpa e de antecedentes contra-ordenacionais, poder-se-

à falar-se de reincidência no domínio contra-ordenacional?

Note-se que a questão assume especial interesse na economia do

presente trabalho porquanto a reincidência é mais gravemente punida em

virtude de se considerar que há uma maior culpa da conduta que esteja em

causa.

237

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, p. 170.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

168

Para a questão formulada, não encontramos resposta em norma

expressa no RGCO. Contudo, atento o disposto no art. 32.º de tal diploma,

podemos sempre perguntar-nos se faz sentido ir beber tal figura aos arts. 75.º

e 76.º do Código Penal238.

Uma resposta afirmativa depara desde logo com o óbice na letra do art.

76.º do Código Penal já que a reincidência apenas está prevista para crimes

dolosos puníveis com pena de prisão, pelo que a doutrina se vem inclinando

para apenas aceitar a reincidência quando prevista nos regimes sectoriais mas

já não por aplicação subsidiária do Código Penal239.

Para quem defenda, como ALEXANDRA VILELA, a existência de dois tipos

de contra-ordenações nos termos expendidos no competente capítulo, sendo

um deles o conjunto das contra-ordenações que protegem bens jurídico penais

sem necessidade de pena mas com carência de sanção contra-ordenacional, a

figura fará sentido pelo menos quanto a estas, pelo que o RGCO a deveria

prever240. Já quanto às meras contra-ordenações, ou contra-ordenações que

sancionam meras desobediências eticamente mais neutras a comandos legais,

não faria sentido falar de reincidência ou habitualidade ou de maior culpa pela

desconsideração do sancionamento anterior.

Certo é que, independentemente da eventual construção dual do regime

de contra-ordenações, sectorialmente a figura não é desconhecida, embora

sem a desejável uniformidade de pressupostos materiais e formais, uns

238

Estabelece esse artigo que “1- É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de

comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter

sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime

doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações

anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. 2 - O crime anterior por que o agente tenha

sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5

anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou

medida de segurança privativas da liberdade. 3 - As condenações proferidas por tribunais estrangeiros contam para a

reincidência nos termos dos números anteriores, desde que o facto constitua crime segundo a lei portuguesa. 4 - A

prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência.”

239 MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações, p. 168 (nota 82 e 84);

Assumindo a posição contrária veja-se ANTÓNIO JOAQUIM FERNANDES, Regime Geral das Contra-ordenações – Notas

Práticas -, p. 49.

240 ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação social, p. 542.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

169

apelando ao tipo de culpa como sendo de negligência ou dolo, outros à

classificação das contra-ordenações como graves ou muito graves, outros por

referência às sanções acessórias, sendo que o prazo que medeia entre cada

conduta também encontra critérios díspares.

Refere o art. 143.º do Código Penal que “1 - É sancionado como

reincidente o infracctor que cometa contra-ordenação cominada com sanção

acessória, depois de ter sido condenado por outra contra-ordenação ao

mesmo diploma legal ou seus regulamentos, praticada há menos de cinco

anos e também sancionada com sanção acessória. 2 - No prazo previsto no

número anterior não é contado o tempo durante o qual o infractor cumpriu a

sanção acessória ou a proibição de conduzir, ou foi sujeito à interdição de

concessão de título de condução. 3 - No caso de reincidência, os limites

mínimos de duração da sanção acessória previstos para a respectiva contra-

ordenação são elevados para o dobro.”

Estabelece também, v.g., o art. 26.º da Lei Quadro das contra-ordenações

ambientais “1- É punido como reincidente quem cometer uma infracção muito

grave ou uma infracção grave praticada com dolo, depois de ter sido

condenado por qualquer outra infracção. 2 - É igualmente punido como

reincidente quem cometer qualquer infracção depois de ter sido condenado por

uma infracção muito grave ou por uma infracção grave praticada com dolo. 3 -

A infracção pela qual o agente tenha sido condenado não releva para efeitos

de reincidência se entre as duas infracções tiver decorrido o prazo de

prescrição da primeira. 4 - Em caso de reincidência, os limites mínimo e

máximo da coima são elevados em um terço do respectivo valor.”

Também o art. 9.º do Regime Quadro das contra-ordenações do sector

das comunicações prevê que “1 — É punido como reincidente quem cometer

uma infracção depois de ter sido condenado, por decisão definitiva ou

transitada em julgado, por outra infracção do mesmo tipo, se entre as duas

infracções não tiver decorrido um prazo superior ao da prescrição da primeira.

2 — Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo da coima são

elevados em um terço do respectivo valor, não podendo o montante da coima

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

170

concretamente aplicada ser inferior ao valor da coima aplicada pela infracção

anterior, excepto se os limites mínimo e máximo da coima aplicável pela

prática da infracção anterior forem superiores aos daquela. 3 — Em caso de

reincidência, os limites máximos de duração da sanção acessória previstos nas

alíneas b), c) e d) do n.º 1 do artigo 11.º são elevados para o dobro”.

Como se compreenderá, a jurisprudência vem aplicando as normas pré-

fornecidas pelo legislador, pelo que a disparidade de critérios não deixa de se

reflectir nas decisões judiciais por referência às diferentes normas que fixam,

como visto, diferentes pressupostos formais e materiais.

Seguro é que, havendo previsão expressa em regime contra-ordenacional

sectorial, está vedado ao aplicador e intérprete da lei socorrer-se de legislação

subsidiária, designadamente do Código Penal por remissão do 32.º do RGCO.

Nesse sentido veja-se, v.g., Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de

06.11.2008, Proc. n.º 0841968, quando se afirma, a propósito de uma contra-

ordenação rodoviária que “Abordemos, agora, a quarta questão: não se verifica

a reincidência (art. 143º, n.º 1, do C. da Estrada) (…)? É claro que o arguido,

em mais uma tentativa de fuga à sua responsabilidade, veio defender tese sem

fundamento jurídico, pois pretendeu construir a reincidência nos moldes

previstos no art. 75º, n.º 1, do C. Penal, quando não estamos nesse domínio,

mas, sim, no contra-ordenacional (ver o que acima se disse sobre a culpa).

Assim, sem mais considerações por ociosas, a reincidência é situação que o

arguido, por mais que lhe custe, tem de aceitar (é, mais uma vez, uma questão

de responsabilidade).”.

Concordamos, de todo o modo, com ALEXANDRA VILELA quando entende

que o RGCO deveria assim eliminar esta disparidade de critérios ao definir, em

primeira linha, quais as contra-ordenações a levar em conta para efeitos de

reincidência e, depois, uniformizar os pressupostos materiais e formais em que

a mesma assentaria, com inerente necessidade de um registo de tais

infracções241.

241

ALEXANDRA VILELA, O Direito de mera ordenação social, p. 544.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

171

V. BREVES NOTAS SOBRE A FUNDAMENTAÇÃO DA CULPA NAS

DECISÕES (ADMINISTRATIVA/JUDICIAL) RELATIVAS ÀS CONTRA-

ORDENAÇÕES

Ponhamos em relevo uma nota prévia: o problema da fundamentação da

sentença lato sensu (e não apenas da penal), é questão que deve preocupar

os juristas não apenas de um ponto de vista dito endoprocessual (de

persuasão dos destinatários e de racionalidade do sistema, sobretudo quanto

aos recursos) mas também como problema dito extraprocessual, no sentido de

ser factor de legitimação do poder judicial.

Ao nível contra-ordenacional, a culpa terá de ser apreciada e

fundamentada na decisão administrativa e, havendo impugnação judicial dessa

decisão em que se ponha em causa a culpa, será novamente apreciada na

sentença do respectivo recurso de contra-ordenação.

Mas qual o grau de fundamentação exigível?

O dever de fundamentação na decisão administrativa será igual ao da

sentença penal que constitui a sentença em sede de recurso de contra-

ordenação?

Este é talvez um dos pontos mais sensíveis no seio da nossa

Jurisprudência.

De um ponto de vista constitucional, a fundamentação das decisões é,

desde logo, um imperativo que decorre do art. 205.º, n.º 1 da Constituição da

República Portuguesa.

No que respeita ao grau de fundamentação exigível à sentença penal

incidente sobre a impugnação judicial da decisão administrativa, não existem

especialidades quanto ao dever existente em qualquer outra sentença penal

(cfr. arts. 374.º e 375.º sobre os requisitos da sentença penal).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

172

Da estrutura da sentença penal referida no art. 374.º do CPP (relatório,

fundamentação, decisão) importa-nos, como é bom de ver, o segundo

segmento, quer na sua vertente de fundamentação de facto quer de Direito242.

Não se ignore, no entanto, que onde os problemas ganham especial

densidade é quanto à fundamentação de facto.

Com efeito, em termos jurisprudenciais, vêm-se suscitando variadas

questões: terão de estar na sentença todos os factos seja para dar como

provados ou como não provados ou poder-se-á limitar a dar como provado ou

não provada a factualidade que se tenha por relevantes para a decisão a

proferir (não se pronunciando a sentença sobre os factos que a tanto se

mostrem inócuos)? E que exigência ter quanto ao exame crítico da prova? É

necessário fundamentar facto por facto que elemento de prova foi relevante243?

O próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a

constitucionalidade das diversas interpretações sobre a fundamentação exigida

pelo art. 374.º do CPP244.

No fundo, e no que diz respeito à fundamentação da matéria de facto,

sendo a sentença penal feita por um ser humano, importa conhecer as suas

242

Veja-se a útil síntese sobre o que o dever de fundamentação exige em concreto, o que não exige, e ainda o que é

ou não compatível com tal dever de fundamentação, em PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, pp. 925 e ss.

243 Sobre tal questão dos factos não provados veja-se, v.g., o Ac. do STJ de 26.06.1995 (Proc. 048194), Ac. da

Relação do Porto de 30.06.1999, Proc. n.º 9940546 e quanto ao exame crítico da prova, v.g., Ac. do S.T.J. de

01.03.2000, Proc. n.º 99P1179.

244 Na súmula empreendida sobre tal questão no Acórdão do STJ de 12.05.2005, Proc. n.º 05P657, refere-se o

seguinte “E a norma que desenhou o dever de fundamentação no processo penal cumpre todas estas funções, como

vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional já se pronunciou

sobre a constitucionalidade desta norma nos seguintes Acórdãos: - n.º 680/98 e 636/99: é inconstitucional a norma do

n.º 2 do art. 374.º do CPP na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se

basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, não exigindo a explicitação do

processo de formação da convicção do Tribunal; n.º 102/99: não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do

CPP quando interpretada no sentido de que, sendo vários os arguidos que, em co-autoria, praticaram os factos

delituosos, o tribunal não tem que fazer uma fundamentação totalmente distinta para cada um deles; n.º 258/2001: não

é inconstitucional a norma do n.º2 do art. 374.º do CPP quando interpretada em termos de não determinar a indicação

individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente; n.º 382/98; não são

inconstitucionais as normas do n.º 2 do art. 374.º (arts. 361.º, 368.º, n.º2), enquanto neste complexo normativo se não

prevê a prévia quesitação de factos alegados pela acusação e pela defesa resultantes da discussão da causa e,

consequentemente, a sua reclamação.”

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

173

motivações, o seu processo de formação de convicção, o processo lógico e

racional pelo qual acedeu a uma concreta decisão quanto aos factos (em

suma, conhecer os factos provados, não provados e o exame crítico da prova),

pois só desta forma a sentença pode ser legítima, convencer e ser sindicável.

Percebe-se, por isso, que o legislador tenha ferido as decisões com falta

de fundamentação com a nulidade. Com efeito, querendo indagar da sanção

para o desrespeito dos requisitos previstos no art. 374.º do CPP, logo

esbarraremos com o previsto no art. 379.º do mesmo Código, que estatui a

nulidade da sentença penal com falta ou insuficiente fundamentação nos

termos que a norma melhor explicita.

Isto quanto à sentença a proferir em sede de impugnação judicial da

decisão administrativa contra-ordenacional.

Vejamos agora, brevemente, os requisitos de fundamentação exigíveis

quanto à decisão administrativa que aplique uma sanção pela prática de uma

contra-ordenação (sendo certo que o direito à fundamentação das decisões

administrativas é um corolário do direito de audiência e que se aplica a todas

as decisões, inclusive, as de arquivamento que ora nos não ocuparão).

O RGCO estatui, no seu art. 58.º, sob a epígrafe “decisão condenatória”

que: “1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) A identificação dos arguidos; b) A descrição dos factos imputados, com

indicação das provas obtidas; c) A indicação das normas segundo as quais se

pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias. 2 -

Da decisão deve ainda constar a informação de que: a) A condenação se torna

definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo

59.º; b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante

audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante

simples despacho. 3 – A decisão conterá ainda: a) A ordem de pagamento da

coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em

julgado da decisão; b) A indicação de que em caso de impossibilidade de

pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que

aplicou a coima”.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

174

Face a este enquadramento legal, será de exigir o mesmo grau de

fundamentação na decisão administrativa que expendemos quanto à sentença

penal, designadamente, face ao objecto do presente escrito, ao nível da culpa?

Sob a aparência de questão simples, a verdade é que tal questão vem

agitando o pensamento quer na doutrina quer na jurisprudência, e, como é

bom de ver, com importantes repercussões práticas.

Num dos extremos, poder-se-á, desde logo, entender que o grau de

fundamentação da decisão administrativa será igual ou, pelo menos, análogo

ao da sentença penal. Quem assim entende, ancora-se na aplicabilidade

subsidiária do Código de Processo Penal em matéria de contra-ordenações,

assim entendendo que se deverão exigir os requisitos de fundamentação

previstos no art. 374.º do CPP ex vi art. 41.º do RGCO. Ainda que

mitigadamente, já que apenas se referem à equiparação em termos de

estrutura, entendem OLIVEIRA MENDES E SANTOS CABRAL245

que

“Circunscrevendo-se o campo de aplicação ao processo contra-ordenacional

também aqui a decisão segue a estrutura da sentença em processo penal –

definida no artigo 374.º do Código de Processo Penal – embora de uma forma

simplificada e proporcionada à fase administrativa daquele processo. Assim,

teremos um relatório com a identificação dos arguidos: descrição do facto e

das provas obtidas. Segue-se a fundamentação da decisão com indicação dos

factos provados e a sua subsunção à norma contra-ordenacional. Por último a

decisão termina com o dispositivo. (…) Importa, porém, salientar que nos

encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características

de celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação

deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à

sentença penal. O que de qualquer forma deve ser patente para o arguido são

as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao

arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial

e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal

conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa.”

245

Notas, pp.157 e ss

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

175

Significa isto que, embora por referência à autonóma realidade contra-

ordenacional, a fundamentação terá de ser a bastante para que o arguido

possa exercer de modo conveniente os seus direitos de defesa, o mesmo

sendo dizer que terá que ter descritos os factos relativos à culpa na prática da

contra-ordenação e a apreciação crítica da prova que determinou a que os

mesmos fossem dados como provados numa determinada modalidade (dando

conta do caso Alemanha vs Comissão 24/62, a este propósito, PAULO PINTO DE

ALBUQUERQUE246 não deixa de sublinhar que as decisões administrativas hão-

de ser precisas nos seus fundamentos de modo a permitir o exercício dos

direitos de impugnação. No mesmo sentido se pronuncia ANTÓNIO LEONES

DANTAS referindo que, na decisão administrativa não basta indicar as provas

mas sim indicar as bases do juízo de prova que conduziram a uma determina

decisão. Tal autor alicerça esta interpretação na seguinte premissa: “Acresce

que, nos encontramos num processo de natureza sancionatória, sendo

fundamental para um exercício efectivo da defesa que quem é condenado

conheça os fundamentos dessa condenação e saiba das razões pelas quais a

entidade que decidiu o processo fixou os factos num determinado sentido. Só

desta forma pode contrariar esse juízo em sede de recurso de impugnação”247.

Noutro dos extremos estão os que entendem que o grau de

fundamentação - designadamente da culpa - da decisão administrativa é muito

menor ao da sentença penal já que os requisitos do art. 58.º do RGCO são

menos exigentes que os previstos no art. 374.º do CPP, sendo que, nestas

teses menos exigentes se inserem aqueles que admitem mesmo que a

decisão administrativa se possa reconduzir a uma remissão para outra peça

processual.

Que dizer?

No que tange à primeira das posições que defende um grau de

fundamentação da decisão administrativa análogo ao da sentença penal por

força da aplicabilidade subsidiária do art. 374.º do CPP ex vi do art. 41.º do

246

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, pp.18 e 19.

247 ANTÓNIO LEONES DANTAS, Direito das Contra-ordenações, p. 75

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

176

RGCO, salvo o devido respeito, parece-nos que parte de uma premissa errada:

a da existência de lacuna.

Com efeito, na ausência de um Regime Geral das Contra-ordenações

mais completo neste ponto (que, de iure condendo, nos pareceria preferível),

em termos adjectivos, estabeleceu o legislador no art. 41.º do RGCO que “1 -

Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis,

devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. 2 - No

processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades

administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos

deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o

contrário não resulte do presente diploma”.

Dir-se-á, ainda que óbvio, que apenas será de recorrer à legislação

subsidiária (processo penal) quando constatemos estar perante uma lacuna e

uma lacuna pressupõe sempre um vazio legal.

Ora, no caso dos requisitos da decisão administrativa, existindo norma

expressa (art. 58.º do RGCO), não se vê que seja necessário - ou sequer

permitido - socorrermo-nos do regime processual penal248.

Sobre tanto, vejam-se os ilustrativos dizeres do Ac. do Tribunal da

Relação do Porto de 04.06.2008, Proc. n.º 0842856, quando sublinha que “No

art. 58.º do Dec.-Lei n.º 433/82 estão especificados todos os requisitos que a

decisão condenatória deve conter. A autoridade administrativa está obrigada

ao cumprimento dessas especificações mas só ao cumprimento dessas. Se os

requisitos da decisão administrativa condenatória estão enunciados no art.

58.º, não há lacuna pelo que não há que chamar à colação, nesta matéria, os

requisitos do art. 374.º do CPP Por isso, a decisão da autoridade

administrativa não tem que conter o esclarecimento do processo racional e

248

Concordamos pois com J. SOARES RIBEIRO quando refere “temos a sensação que nem sempre se equaciona

devidamente esta realidade “sui generis” que é, ou deve ser, o processo de contra-ordenação na sua fase

administrativa, fazendo-se por vezes, a nosso ver, um uso demasiado primário do princípio da aplicação subsidiária do

processo penal consagrado no art. 41.º da lei-quadro, para não dizer uma errada equiparação da estrutura do processo

de contra-ordenação na fase administrativa à estrutura processual penal.” – in «Questões», p. 122.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

177

lógico subjacente à imputação dos factos que descreve (motivação da decisão

de facto)”.

Com efeito, o recurso ao processo penal quando há norma expressa no

RGCO poderá desvirtuar a diferente natureza que se quis imprimir às contra-

ordenações, com prejuízo para a sua autonomia.

Mas o facto de haver norma expressa e não haver assim que aplicar o

Código de Processo Penal leva-nos automaticamente à consideração de uma

menor exigência quanto à fundamentação (designadamente da culpa) na

decisão administrativa?

Não necessariamente…

Decisivamente a sentença penal e a decisão administrativa têm naturezas

distintas e não se deve pretender equipará-las como se esta última fosse uma

“sentença penal menor”249, mas o diferente é isso mesmo… diferente, e não

menor ou menos exigente.

Há ainda quem defenda que a fundamentação da decisão administrativa

é norteada não apenas pelos critérios do art. 58.º do RGCO mas ainda, por ser

decisão de natureza administrativa, pelo art. 125.º do Código de Procedimento

Administrativo (que admite decisões administrativas por remissão para outra

peça processual, designadamente, para as propostas de decisão dos

instrutores de processos contra-ordenacionais). Poder-se-á assim dizer que,

sendo uma decisão administrativa, se lhe aplica subsidiariamente o art. 125.º

do CPA na redacção ainda vigente.

Sem razão, a nosso ver.

Com efeito, sendo certo que se trata de uma decisão administrativa

inserida numa fase administrativa, não é menos certo que o mesmo legislador

que criou as fases administrativas e jurisdicional no processo contra-

ordenacional, não consagrou regimes subsidiários distintos para cada fase,

antes remetendo, em bloco, para o Código de Processo Penal (cfr. art. 41.º do

RGCO).

249

A expressão não é nossa mas antes a utilizada no Ac. do Tribunal da Relação do Porto 09.02.2004, no Proc. n.º

0345075, “Não podem transformar-se as decisões das autoridades administrativos em sentenças penais, pois a

natureza dos ilícitos é diferente, não sendo o direito contra-ordenacional um Direito Penal de grau menor”.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

178

Significa isto que não se aceite que a decisão administrativa seja feita por

remissão nos termos supra expostos? Não exactamente. Aceita-se, ainda que

com diferente raciocínio.

De um ponto de vista formal, e se transpusermos as ideias processuais

penais para o processo contra-ordenacional, enquanto que no processo penal

temos uma magistratura do Ministério Público que investiga os factos e uma

Magistratura Judicial que decide os factos, poder-se-á pensar que seria errado

permitir que o instrutor que tem a seu cargo a recolha da prova quanto ao

processo, seja a mesma pessoa que depois propõe a decisão, à qual só há

uma adesão. No entanto, a Administração e os Tribunais, o processo penal e

as contra-ordenações, são realidades distintas. No domínio contra-

ordenacional não há duas magistraturas, o que há é um instrutor de um

processo, na dependência hierárquica de quem adere à sua proposta, sendo

certo que é esse instrutor quem teve a imediação com eventuais testemunhas,

arguido, etc.

Por outro lado, pugnar pela não remissão para a proposta do instrutor por

banda do decisor administrativo quando este concorda integralmente com a

mesma, na era informática em que vivemos, apenas levará a exercícios de

“copy/paste”, que em nada aumentarão as garantias dos arguidos.

Tal como refere J. SOARES RIBEIRO, aqui seguido de perto, “Obrigar a

decisão a repetir literalmente considerações já expressas noutra peça

processual é uma imposição vazia de sentido que apenas tem por resultado o

desperdício de tempo”250.

Ademais, e do ponto de vista dos direitos e garantias dos arguidos, não

vemos que tal decisão por remissão diminua as garantias e direitos do mesmo,

desde que (e esta nota sim é importante!) a proposta do instrutor, que lhe foi

notificada, tenha todos os elementos a que se refere o art. 58.º do RGCO.

Aliás esta é a linha de pensamento mais consonante inclusivamente com

jurisprudência uniformizada. Com efeito, refere o Acórdão Uniformizador de

Jurisprudência (Assento) n.º 1/2003, publicado no D.R., IA, n.º21, de

250

In Questões, p. 134.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

179

25.01.2003, pp. 547 ss., que “Quando em cumprimento do disposto no art.

150.º do Regime Geral das Contra-ordenações o órgão instrutor optar, no

termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido,

mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos

necessários para que este fique a conhecer da totalidade dos aspectos

relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará

doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo

interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a

própria Administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da

subsequente decisão/acusação administrativa.”

De resto, a técnica legislativa da decisão por remissão não é algo

completamente estranho mesmo ao Processo Penal.

Veja-se a redacção do art. 425.º, n.º 5 do CPP, ainda que relativamente a

Acórdãos absolutórios, quando refere que “Os Acórdãos absolutórios

enunciados no art. 400.º, n.º1 al. d), que confirmem decisão de 1.ª instância

sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento,

remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.”. Note-se que apenas

nos referimos a este artigo do CPP para sublinhar que a técnica legislativa da

decisão por remissão também existe no Código de Processo Penal e não por

entendermos que são situações equiparáveis. Efectivamente, não deixamos de

reconhecer que num caso se está a falar de um Acórdão absolutório e no outro

se está a falar de uma decisão administrativa condenatória.

No sentido de não ser válida a decisão administrativa por remissão, veja-

se SIMAS SANTOS E LOPES DE SOUSA quando referem “Como resulta dos

próprios termos da al. b) do n.º 1 deste artigo, é necessário incluir na decisão a

descrição factual e a indicação das normas violadas e punitivas, não bastando

uma mera remissão para qualquer outra peça processual, mesmo que se trate

de auto de notícia” 251.

Outros autores, como é o caso de ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, defendem

mesmo a inexistência de tais decisões por remissão, assinalando, a este

251

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – anotações, p. 387.

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

180

propósito, que “No caso de ser proferido apenas despacho de concordo,

reportando-se a um parecer que o anteceda estar-se-á perante uma verdadeira

inexistência de decisão, visto que desrespeitou em absoluto os requisitos

estabelecidos nesta norma” 252.

A propósito de tal questão expendem ainda OLIVEIRA MENDES E SANTOS

CABRAL as seguintes considerações: “Relativamente à legitimidade da

remissão feita na decisão para a proposta elaborada por um instrutor, entidade

que continua legalmente encarregada de elaborar a instrução e que esteve em

contacto directo com a defesa, pois que presidiu à audição do arguido e à

inquirição das testemunhas por aquele apresentadas ou constantes da

acusação perfilhamos o entendimento de Soares Ribeiro no sentido de que os

preceitos do processo penal deverão ser “devidamente adaptados” o que não

pode ter outro sentido senão o de considerar que é diferente a natureza da

decisão porque é diversa a estrutura organizatória e funcional da

Administração. Por um lado é preciso ter em conta que a estrutura do processo

de contra-ordenação na sua fase administrativa não é uma estrutura acusatória

baseada em duas magistraturas autónomas e independentes, como se disse,

ao contrário do que sucede com os processos judiciais. Na fase administrativa

o processo obedece a uma estrutura inquisitória, tanto mais que quem instrui

está na dependência hierárquica de quem decide. Por outro lado a função

jurisdicional do juiz não é rigorosamente a mesma da autoridade administrativa

quando decide aplicar a coima. Se mais diferenças não houvesse aí está a lei

a dispor que a decisão administrativa é revogável em caso de invalidade

relativa, ao passo que a função do juiz se esgota na sentença,

salvaguardando-se apenas a correcção de erros materiais”253.

Em suma, o regime adjectivo é instrumental do substantivo e não um fim

em si mesmo e, se a proposta do decisor continha todos os elementos a que

alude o art. 58.º do RGCO, a fundamentação a ter em conta é a que daí resulte

(posto que, claro, se tenha dado a mesma por integralmente reproduzida para

252

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime geral, p. 110.

253 Notas., pp. 157 e ss

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

181

todos os efeitos, não se consignando apenas um “Concordo” ou expressão

equivalente) e é essa que deve ser apreciada em caso de impugnação judicial

da decisão administrativa.

Coisa diferente da decisão por remissão (que apesar de tudo terá que

ter subjacente a alegação e apreciação da culpa do agente) é ir ainda mais

longe e admitir que sejam máquinas a processar a fase administrativa e até a

elaborar decisões.

É inevitável (e é até agilizador) que o mundo administrativo e judicial

seja inundado pelas tecnologias de informação. Contudo, não pode a

Administração pretender, em nome da celeridade e eficácia, desligar-se da

ideia de Direito sancionatório, e processar informaticamente o procedimento

contra-ordenacional e inclusivamente fazer a decisão administrativa, tabelada,

sem intermédio da apreciação subjectiva humana, como sucede, por vezes,

com o sistema de contra-ordenações ao nível tributário (sistema de contra-

ordenações – SCO) e com algumas decisões estradais (“o jurista virtual”).

Trata-se, evidentemente, de uma perspectiva economicista, desligada

do carácter sancionatório do Direito contra-ordenacional, violando frontalmente

o princípio da culpa e por isso, a nosso ver, uma solução inaceitável.

Conforme descreve TIAGO LOPES DE AZEVEDO “Com vista a uma eficaz

cobrança de tributos, a Administração tributária tem vindo a modernizar todo o

procedimento tributário, desde a determinação objectiva e subjectiva de

sujeição a pagamento tributário, à cobrança coercitiva do Tributo passando

pela liquidação e pagamento voluntário. Ora, também a detecção de infracções

tributárias está sujeita a esta modernização. Falamos do sistema de contra-

ordenações (SCO), o qual detecta as infracções, envia notificação para que o

arguido apresente a sua defesa, recebe as notificações das cartas enviadas ao

arguido conta os prazos, determina em cada caso concreto o valor das coimas

e por fim labora a decisão condenatória e notifica o arguido. Caso este não

pague as coimas segue-se a cobrança executiva, igualmente automática. (…)

Mas que tem o referido sistema de contra-ordenações que ver com o princípio

da culpa? Tem tudo, senão vejamos. (…) A informática pode e deve ajudar o

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

182

Estado na busca de receitas, através da liquidação e cobrança de tributos, mas

já não pode comprometer princípios basilares do Direito sancionatório, até

porque a sanção não é um tributo – tem finalidades (sancionatórias) de

prevenção geral e especial e não, finalidades económicas de receita. (…)

Também no âmbito do direito contra-ordenacional estradal há um novo sujeito

processual – “o jurista virtual”. (…) No fundo há quase uma delegação de

poderes das autoridades administrativas decisórias num jurista virtual, que

deve, qualquer que seja a tipologia e gravidade da contra-ordenação em

análise, desde que o acesso a (…) bases de sados se processe de uma forma

“on-line”, é necessário que o sistema informático (jurista virtual) vá “compondo”

a decisão através de frases chaves associadas a realidades inerentes à

contra-ordenação, ao cadastro do condutor, à circunstância de a coima ter ido

ou não paga voluntariamente, e assim sucessivamente até que a decisão

esteja completa, sem que o jurista tenha editado o que quer que seja “254.

Com efeito, se se pode admitir que a detecção, as notificações, entre

outras, sejam feitos automaticamente, não se vê como pode uma sanção ser

fixada de modo automático, sendo certo que não se trata nem de um tributo ou

de mera obrigação, mas sim de sanção. Não se vê como pode uma máquina

analisar a culpa de um agente e adaptá-la à sanção (sendo que mesmo dentro

do dolo e dentro da negligência há gradações e circunstâncias concretas a

atentar). Note-se que nem sequer se trata de uma exigência adicional mas

antes o de atentar no regime legal existe já que quer o art. 18.º do RGCO, quer

v.g. o art. 27.º, n.º1 do RGIT quer art. 139.º do Código da Estrada referem que

a culpa é um dos elementos a atentar na medida da sanção a aplicar (sendo

ainda de sublinhar que se trata igualmente de uma violação do disposto nos

arts. 14.º, n.º2 do PIDCP e 6.º da CEDH).

Posto isto, se quisermos aquilatar da sanção prevista para o

incumprimento dos requisitos estatuídos no art. 58.º do RGCO quanto à

decisão administrativa, maxime quanto à fundamentação da culpa do agente,

254

TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade, pp.111 a 117.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

183

aí sim ter-se-á de concluir pelo indesejável silêncio legal em sede de regime de

contra-ordenações.

O cardápio das consequências extraídas oscila assim, na Doutrina e na

Jurisprudência entre a mera irregularidade e a nulidade insanável.

Nas águas de uma tese menos exigente navega ANTÓNIO BEÇA PEREIRA

que entende que uma vez que a decisão administrativa, quando impugnada,

valerá como acusação (art. 62.º do RGCO) não se podendo aplicar o disposto

no art. 379.º do CPP. Mas entende igualmente que não é de aplicar o previsto

no CPP quanto à acusação (art. 283.º, n.º 3 do CPP), pelo que, caso não se

cumpram os requisitos de fundamentação (designadamente da culpa)

estaremos perante mera irregularidade255.

Neste mesmo sentido, veja-se v.g. o sumariado pelo Ac. do Tribunal da

Relação do Porto, de 04.12.2013, Proc. n.º 1080/12.1TBSJM.P1 afirmando que

“I- A autonomia do processo de mera ordenação social face ao processo penal

leva a que a aplicação subsidiária deste último não seja automática, nem

conformadora ou dominante do processo contraordenacional.II

A fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve respeitar o

preceituado no art. 58º do RGCO, não fazendo sentido importar do CPP as

exigências formais atinentes às sentenças. III– A falta

de fundamentação da decisão da autoridade administrativa constitui uma

irregularidade.”

Contudo, como explica de forma estruturada VITOR SEQUINHO DOS SANTOS,

a impugnação judicial da decisão administratuva condenatória não converte

uma decisão em acusação (o art. 62.º, n.º1 do RGCO refere que o Ministério

Público apresenta os autos ao juiz “valendo este acto como acusação” sem se

prever qualquer alteração da natureza jurídica de decisão) pelo que, como o

mesmo afirma “não existe o obstáculo que António Beça Pereira encontra para

não aplicar subsidiariamente o regime da nulidade da sentença”256).

255

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime geral, pp. 141 a 143.

256 VITOR SEQUINHO DOS SANTOS, «O dever de fundamentação da decisão administrativa condenatória em processo

contra-ordenacional», Revista do CEJ, 2.º semestre 2010, número 14, Almedina, 2010, p. 378 (citado: O dever de

fundamentação da decisão administrativa).

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

184

Pensamos assim estar perante uma nulidade sanável (pelo que, em sede

de impugnação judicial, após declaração da mesma, não há uma absolvição

imediata, antes se devolvendo os autos à autoridade administrativa

competente para que sane o vício).

Com efeito, estando-se perante uma decisão de Direito sancionatório,

importa relembrar as garantias e os direitos do arguido (cfr. art. 32.º da CRP),

e, concordar-se-á, que é de suma importância a descrição dos factos provados

e não provados relativos à culpa do agente, sua modalidade e apreciação

crítica dos elementos de prova.

Note-se que a regra (pelo menos legal e formal) será a da

sancionabilidade a título de dolo, pelo que se mostra indispensável que o

arguido consiga perceber a decisão quanto aos factos e a apreciação da prova

quanto à sua conduta em termos dolosos já que, a não ser assim, recair-se-ia,

quando muito na negligência e o arguido seria absolvido.

Por outro lado, mesmo nas contra-ordenações sancionáveis a título de

negligência, há-de o facto respectivo estar descrito e motivado de molde a que

o arguido se possa defender, contra-argumentar, alegar causas de

desculpação que possam em concreto verificar-se e a que se não tenha

atendido, etc (e note-se que tal se aplica quer aos factos relativos à culpa de

um arguido pessoa singular quer de um arguido pessoa colectiva).

Não é, pois, uma questão de somenos importância.

Concordamos assim com TIAGO LOPES DE AZEVEDO quando, precisamente

a propósito do vício para a ausência de fundamentação da culpa refere que

“relegar para mera irregularidade tais omissões essenciais, correndo o risco de

tal omissão a cargo do arguido, não é proporcional, uma vez que viola

frontalmente os direitos do arguido, sem com isso implicar qualquer melhoria

da prossecução do interesse público. Pensamos por isso que com a omissão

de factos que revelem o grau de culpa do agente está-se perante uma nulidade

sanável, devendo a autoridade administrativa anular todos os actos

processuais daí em diante e voltar à fase em que devia ter existido a referência

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

185

à culpa do agente. E se é certo que alguma Jurisprudência já referida aponta

esta mesma solução através do direito processual criminal como direito

subsidiário, sempre nos parece que devemos estar perante uma nulidade

processual em virtude da violação dos direitos de defesa do arguido no Direito

das Contra-ordenações, como área pertencente ao direito público

sancionatório. Desta forma, entendemos que está implícita no art. 32.º, n.º10

da CRP a sanção do arguido no âmbito do Direito das contra-ordenações com

base na culpa e na medida da culpa”257.

Neste sentido também a a Jurisprudência quando afirma, v.g., que “Se

a decisão administrativa se limita a descrever os factos objectivos que

materializam o ilícito contra-ordenacional, omitindo completamente os factos

que haveriam de preencher o elemento subjectivo do mesmo ilícito, esta

omissão gera a nulidade da decisão administrativa, que o tribunal, no exercício

dos seus poderes de controlo da legalidade, pode declarar e ordenar a

remessa dos autos à autoridade administrativa competente para sanação do

vício.”- cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.02.2013, Proc. n.º

854/11.5TAPDL.L1-5.

De todo o modo, e embora muita jurisprudência realce que a decisão

administrativa não demanda uma exigência de fundamentação tão rigorosa

sentença penal (cfr.exemplificativamente Ac. do Tribunal da Relação de

Coimbra, de 20.06.2012, Proc. n.º 2297/11.1TBPBL.C1), não colocaríamos a

questão de tal forma.

Na esteira de VITOR SEQUINHO DOS SANTOS258, entendemos que se trata

antes de reconhecer que é uma decisão proferida por uma entidade diferente

de um Tribunal, numa fase diferente da fase jurisdicional, mas sem que deixe

de ser Direito sancionatório, pelo que, mais ou menos extensa, mais ou menos

pormenorizada, o rigor e apreensão do sentido e fundamentos da decisão, e

designadamente quanto à culpa, não pode ser posto em causa com base na

257

TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade, pp.104 e 105.

258 VITOR SEQUINHO DOS SANTOS, «O dever de fundamentação da decisão administrativa», pp. 333 ss..

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

186

ideia – quanto a nós ultrapassada – que o Direito contra-ordenacional é um

Direito Penal menor.

Trata-se assim de, também aqui, reconhecermos que estamos perante

Direito sancionatório e de empreendermos um esforço crescente na

densificação e na autonomização de um cada vez mais sólido Direito das

Contra-ordenações.

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

187

CONCLUSÕES

1. Sobretudo após a Revolução Francesa e após as Guerras Mundiais, a

Administração Estadual tornou-se bastante interventiva nos mais variados

sectores, pretendendo o “bem-estar social”. Tal intervenção, para ser eficaz

carecia de normas e sanções, tendo encontrado, num primeiro momento, os

seus quadros normativos no seio do Direito Penal de polícia contravencional e

depois no Direito Penal Administrativo. Contudo, percebendo-se que se havia

caído numa “hipertrofia do Direito Criminal”, sucedeu-se um movimento de

descriminalização, movimento esse que serviu de pano de fundo à criação da

figura da contra-ordenação. Em Portugal, o primeiro ímpeto foi dado com o

Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho sendo que o RGCO, ainda que com as

sucessivas alterações, nasceu por via do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de

Outubro, coexistindo actualmente com os múltiplos regimes especiais de

contra-ordenações sectoriais. Desde a sua génese à actualidade, a história

das contra-ordenações é uma história de crescimento e expansão

inimaginável aquando do seu surgimento;

2. Pese embora o tempo decorrido desde o seu surgimento, ainda não está

consolidada a noção material da figura da contra-ordenação. Existe, de

facto, um critério nominal formal que delimita a figura da contra-ordenação

nos termos previsto no art. 1.º do RGCO (se se cominar uma conduta com

coima, é contra-ordenação). Contudo, continua por definir o que, a montante,

levou o legislador a optar por contra-ordenação e não v.g. por crime e vice-

versa, ou seja, continua por delimitar o que é materialmente a contra-

ordenação. De todo o modo, partindo da noção legal de contra-ordenação

(art. 1.º do RGCO) podemos decompor a mesma e, explorar as

características próprias que existem ao nível do ilícito típico, da culpa e da

sanção, podendo ainda atentar-se nas suas especificidades processuais;

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

188

3. No que tange ao primeiro elemento da noção legal de contra-

ordenação, é sabido que a mesma há-de estar tipificada, prevista em lei

anterior à prática do facto, lei essa que deverá ser certa e precisa – cfr. arts. 1.º

e 2.º do RGCO e ainda 29.º da CRP; Não se trata de um elemento da noção

com características próprias ou distintivas que autonomize este ramo jurídico;

4. Coisa diferente sucede com o segundo elemento da noção legal de

contra-ordenação: a ilicitude. Tendo como referência a comparação entre a

ilicitude penal e a ilicitude contra-ordenacional perfilam-se teses quantitativas,

qualitativas, teses mistas. Nas teses quantitativas afirma-se que há uma

diferença de grau quanto à gravidade na violação do bem jurídico e que é

maior no Direito Penal e menor no Direito das Contra-ordenações. As teses

qualitativas, refutam tratar-se apenas de uma diferença de grau ou de

quantidade pelo que a diferenciação material há-de passar pela análise de

outros critérios, de entre os quais, se vêm destacando o critério do bem jurídico

protegido e o da irrelevância ética associada às condutas subsumíveis a

contra-ordenações. Existem ainda teses mistas que entendem que há que

conjugar a quantidade e transformá-la numa diferença de qualidade e ainda

outras teses, das quais mais nos aproximamos, que, quanto às contra-

ordenações, atendem a critérios combinados de falta de dignidade penal e falta

de necessidade de pena e de eventual carência de sanção contra-

ordenacional, tudo analisado à luz dos valores e política criminal de cada

momento histórico-social. Nos termos destes últimos critérios conjugados,

poder-se-ão, de acordo com tal tese, distinguir as simples contra-ordenações

(não protectoras de bens jurídico-penais, sem conteúdo ético-social por si) e as

contra-ordenações que protegem bens jurídicos com dignidade penal, com

conteúdo ético-social;

5. O terceiro elemento da noção de contra-ordenação é o da

“censurabilidade” ou da culpa (art. 1.º do RGCO), que, pelas características

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

189

próprias, ajuda a autonomizar o Direito das contra-ordenações, como infra se

concluirá.

6. Como relevante elemento da noção de contra-ordenação temos ainda

a sanção principal prevista: coima, ou seja, uma sanção puramente

patrimonial, que, ao contrário do referente comparativo da pena de multa, não é

averbada ao registo criminal nem é convertível em prisão subsidiária.

Auxiliares ainda da delimitação da figura das contra-ordenações são as

especificidades processuais do ordenamento jurídico ao nível contra-

ordenacional;

7. O Direito das contra-ordenações vem traçando um caminho no sentido da

sua autonomização. As relações com o Direito Constitucional são desde logo

alavanca dessa autonomização. De todo o modo, joga-se ainda tal

autonomização nas suas relações com o Direito Civil e sobretudo no

movimento pendular do Direito das Contra-ordenações, ora se aproximando

do Direito e Procedimento Administrativo ora do Direito Penal e

Processual Penal. Entende-se que o Direito das Contra-ordenações, como

Direito Público Sancionatório, está mais próximo do Direito Penal que do

Direito Administrativo, sendo aliás o Direito Penal e processual penal a sua

legislação subsidiária (art. 32.ºe 41.º do RGCO), o que terá reflexos no

entendimento que se adopte ao nível da culpa. De todo o modo, o Direito das

contra-ordenações é algo distinto do Direito Penal e processual penal, tendo

uma crescente autonomia dogmática, sancionatória e processual.

8. O princípio da culpa, em sede contra-ordenacional (imposto a nosso ver

não só legislador ordinário mas decorrente ainda da CRP), é igualmente um

princípio basilar e do qual não devemos prescindir. A específica e dual

ilicitude traçada para as contra-ordenações tem consequências num critério

igualmente dual de culpa. Assim, na análise da culpa nas simples contra-

ordenações vale não tanto a ideia da análise da conduta interna ou da

personalidade do agente reflectida nos factos mas antes ideias de imputação,

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

190

de responsabilidade social do concreto agente, não raras vezes numa veste

funcional, face à violação de proibições legais pré-existentes. Por outro lado, na

análise da culpa nas contra-ordenações com conteúdo ético-social e até

protectoras de bens jurídico-penais ainda que sem necessidade de pena mas

com carência de sanção contra-ordenacional usar-se-ão os cânones penais da

culpa, analisando assim a conduta interna e personalidade do agente.

9. O princípio da culpa nas contra-ordenações pode ser enunciado nos

seguintes termos: “não há coima ou sanção acessória sem culpa e a

medida da coima ou da sanção acessória não pode ultrapassar a medida

da culpa”.;

10. Numa primeira vertente de tal princípio, a culpa é fundamento da

sanção contra-ordenacional. Como corolários lógicos de tal vertente do

princípio, há assim que afirmar que:

o não pode aceitar-se uma qualquer responsabilidade contra-

ordenacional objectiva;

o há igualmente que concluir pela pessoalidade e intransmissibilidade

da sanção contra-ordenacional (o que pode levar a juízos de

inconstitucionalidade relativamente a normas que estabeleçam

responsabilidades solidárias ou subsidiárias, com sanções

transmissíveis automaticamente, sem aferição e da situação pessoal

concreta do responsável solidário ou subsidiário, como acontece com

algumas normas contra-ordenacionais sectoriais);

o Há que negar a responsabilidade contra-ordenacional quando se

verifiquem causas de exclusão da culpa:

inimputabilidade em razão da idade ou de anomalia psíquica:

Estabeleceu-se como limiar de imputabilidade contra-ordenacional

os 16 anos de idade (art. 10.º do RGCO). Entende-se não ser de

aplicar a Lei Tutelar Educativa aos menores de tal idade que

pratiquem ilícitos contra-ordenacionais (sobrando a tutela civilística

e de eventual promoção e protecção); Poderá ainda ser excluída a

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

191

culpa em caso de anomalia psíquica do agente que praticou o ilícito

contra-ordenacional, assim esteja verificado quer o critério biológico

e o critério normativo elencados (cfr. art. 11.º, n.º1 do RGCO);

Poderão ainda existir casos de imputabilidade diminuída (art. 11.º,

n.º2 do RGCO). De fora da exclusão da culpa ficam os casos em

que o agente que pratica o ilícito contra-ordenacional é que

provocou a situação com a intenção de praticar tal ilícito (art. 11.º,

n.º3 do RGCO); Note-se, contudo, que, em função das suas

características próprias e sua autonomia, no RGCO inexiste igual

expressão à usada no art. 23.º, n.º3 do CP relativo ao índice da

incapacidade necessária à imputabilidade diminuída (“comprovada

incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas”). Tal

segmento poder-se-á não justificar nas simples contra-ordenações

mas já poderá ser de introduzir expressão análoga relativamente ao

outro tipo de contra-ordenações;

erro: O regime do erro no RGCO e no Código Penal é, em termos

normativos, muito semelhante. Está previsto, no RGCO, desde logo

o erro sobre elementos do tipo que afasta o dolo, ficando

ressalvada a punibilidade por negligência (art. 8.º, n.º2 1ª parte e

n.º3), sendo que há que ter em conta a maior frequência da

previsão da negligência contra-ordenacional comparativamente

com a penal. Prevê-se ainda o erro sobre um estado de coisas que,

a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente (art. 8.º

n.º2, in fine do RGCO) e, bem assim, o erro sobre a ilicitude

previsto no art. 9.º do RGCO (se censurável determinante de

atenuação especial da coima nos termos do art. 18.º, n.º3 do

RGCO; se não censurável, excludente da culpa). O erro sobre as

proibições (art. 8.º, n.º2 do RGCO e 16.º, n.º1 do CP) é um local

dogmático que pode ajudar na perspectiva do Direito das Contra-

ordenações como autónomo desde logo porque mesmo com o

critério dual de culpa que se vem referindo, há, de facto, um leque

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

192

mais amplo de aplicação deste tipo de erro, certo como é que,

nesta modalidade de erro, o foco das atenções é o elemento

intelectual do dolo na perspectiva do conhecimento da proibição

(dos seus elementos de facto e de direito). De todo o modo, para

quem adopte um critério dual de tipo de contra-ordenações com

inerente critério dual de culpa nas contra-ordenações, terá que

entender o erro sobre as proibições de modo igualmente dual: para

as contra-ordenações axiologicamente neutras, existindo erro sobre

as proibições, deverá o mesmo excluir o dolo, mantendo-se o

sancionamento a título de negligência. Já quanto às contra-

ordenações axiologicamente relevantes ou com conteúdo ético-

social já não fará tanto sentido que a ignorância da lei afaste o dolo

(o que implicar4ia nova redacção do art. 8.º do RGCO);

excesso de legítima defesa: havendo excesso de legítima defesa

pode a culpa ser excluída, quando o excesso resulte de

perturbação medo ou susto não censurável (art. 33.º, n.º2 do CP ex

vi art. 32.º do RGCO);

estado de necessidade: Pode ainda verificar-se um estado de

necessidade desculpante- art. 35.º, n.º1 do CP ex vi art. 32.º do

RGCO. É relativamente frequente, na prática, a invocação desta

causa de exclusão da culpa. Veja-se, v.g., nas contra-ordenações

fiscais, a frequência com que se invocam (improcedentemente)

dificuldades financeiras ou necessidades específicas empresariais

para tentar excluir a culpa na prática da contra-ordenação.

Obediência indevida desculpante: tem-se entendido não ser

aplicável no direito contra-ordenacional;

o Modalidades de imputação da culpa contra-ordenacional:

O Dolo: o princípio geral estabelecido no art. 8.º, n.º1 do RGCO é o

de que só são puníveis os factos praticados com dolo (nas

modalidades previstas no art. 14.º do CP); Não existe qualquer

presunção legal de dolo no RGCO, pelo que, a decisão

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

193

(administrativa ou judicial) que puna por dolo, não o poderá fazer

sem ter dado como provados os factos em que tal dolo se

materializa; Nalguns regimes sectoriais, contudo, tem-se

equacionado a existência de tais presunções (v.g. nas contra-

ordenações tributárias e ainda nas laborais quanto a condutas

posteriores a autos de advertência) que, mesmo que ilidíveis, são

contestáveis do ponto de vista constitucional;

A negligência: o princípio geral estabelecido no art. 8.º, n.º1 do

RGCO é a da excepcionalidade da punibilidade da contra-

ordenação por negligência (nas modalidades definidas no art. 15.º

do CP). A negligência assume um papel preponderante em sede de

contra-ordenações, sendo que o que a prática legislativa tem

demonstrado é que, por via da consagração sectorial da

punibilidade a título de negligência, se converteu a regra do art. 8.º,

n.º1 do RGCO em excepção, pelo que se pugna pelo que se pugna

pela alteração legal neste ponto; Não se vislumbra a existência de

uma presunção legal de negligência no RGCO, pelo que não se

pode afirmar a mesma, podendo, no entanto, equacionar-se a

existência de presunções judiciais de negligência, como sucede,

muitas vezes, jurisprudencialmente.

11. Numa segunda vertente do princípio da culpa, a culpa funciona

como limite da coima e da sanção acessória (arts. 17.º, 18.º e 21.º do

RGCO);

a. Também no Direito das Contra-ordenações está o aplicador da

coima limitado a molduras estabelecidas legalmente sendo esta

a primeira operação de determinação da sanção a que deverá

proceder; O legislador estabeleceu molduras de coima num

modelo dual: diferenciando as pessoas singulares e as pessoas

colectivas e diferenciando ainda o dolo da negligência - cfr. art.

17º sendo que o limites máximos aí previstos são, em regra, o

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Algumas considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de

autonomização do Direito das Contra-ordenações

194

tecto permitido pela culpa (ressalvadas excepções legalmente

previstas, como, v.g., arts. 18.º, n.º2 e 19.º, n.º2 do RGCO ou art.

26.º do RGIT); Muitas das molduras de coima aplicáveis são o

espelho da afirmação de que o Direito das Contra-ordenações

não pode ser visto como o Direito das bagatelas ou um Direito

Penal menor;

b. O quantum concreto da sanção: quando comparada a coima

com a sanção penal de si mais próxima (pena de multa), neste

segundo momento são notórias as diferenças. Com efeito,

enquanto que na pena de multa foi consagrado o sistema de dias

de multa (determinando-se primeiro o numero de dias em função

de exigências de culpa e prevenção e depois um quantitativo

diário em função da situação económica – cfr. art. 47.º, n.º s 1 e 2

do Código Penal), já na determinação da coima tudo é ponderado

conjuntamente nos termos do art. 18.º, n.º1 do RGCO (a

gravidade da contra-ordenação, a culpa, a situação económica

do agente e o benefício económico retirado da infracção); Quanto

à culpa há que analisar, designadamente, como vem sendo

entendido, o grau de violação dos deveres impostos pelo agente,

o grau de intensidade da vontade de praticar a infracção, os

sentimentos manifestados no cometimento da contra-ordenação,

os fins ou motivos determinantes, a conduta anterior e posterior e

a personalidade do agente (sendo que, a propósito das condutas

anteriores seria de equacionar a previsão da figura da

reincidência para as contra-ordenações que protegem bens

jurídico penais sem necessidade de pena mas com carência de

sanção contra-ordenacional);

12. A culpa terá de ser apreciada e fundamentada na decisão

administrativa e, havendo impugnação judicial dessa decisão em

que se ponha em causa a culpa, será novamente apreciada na

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autonomização do Direito das Contra-ordenações

195

sentença do respectivo recurso de contra-ordenação. Mas qual o grau

de fundamentação exigível? No que respeita ao grau de fundamentação

exigível à sentença incidente sobre a impugnação judicial da decisão

administrativa, não existem especialidades quanto ao dever existente

em qualquer outra sentença penal (arts. 374.º e 375.º sobre os

requisitos da sentença penal sob pena do previsto no art. 379.º do

mesmo Código). Quanto aos requisitos de fundamentação exigíveis na

decisão administrativa que aplique uma sanção pela prática de uma

contra-ordenação, existem várias teses, umas mais outras menos

exigentes. A nosso ver, em matéria de requisitos de tal decisão

administrativa contra-ordenacional não existe qualquer lacuna, pelo que

está vedado o recurso a outros regimes (CPP ou CPA), havendo que

respeitar os requisitos previstos no art. 58.º do RGCO (sem prejuízo de

decisões por remissão que dêem por integralmente reproduzidos

projectos de decisão respeitadores do mesmo artigo). O cardápio das

consequências extraídas oscila assim, na Doutrina e na Jurisprudência

entre a mera irregularidade e a nulidade insanável, sendo que, a nosso

ver, estar-se-á perante nulidade sanável.

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