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  • Vastas confuses atendimentos imperfeitos

  • Ana Cristina Figueiredo

    Vastas confuses e atendimentos imperfeitos A CLNICA PSICANALTICA NO AMBULATRIO PBLICO

    3 3 E D I O

  • Copyright Ana Cristina Figueiredo, 1997 Direitos cedidos para esta edio DUMAR DISTRIBUIDORA DE PUBLICAES LTDA.

    www.relumedumara.com.br Travessa Juraci, 37 Penha Circular CEP 21020-220 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564-6869 Fax: (21) 2590-0135 E-mail : relume @ relumedumara. com.br

    Reviso Rosa do Prado

    Editorao

    Carlos Alberto Herszterg

    Capa Gustavo Meyer Desenho de Lula

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Figueiredo, Ana Cristina F488v Vastas confuses e atendimentos imperfeitos: a clnica psicana-

    ltica no ambulatrio pblico / Ana Cristina Figueiredo. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1997

    Inclui bibliografia ISBN 85-7316-128-0

    1. Psicanlise. 2. Assistncia em hospitais pblicos. I. Ttulo.

    CDD 616.8917 97-1389 CDU 159.964.2

    Todos os direitos reservados. A reproduo no autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violao da lei 5.988.

  • A meu pai que me deixou

    vontade de ensinar e o amor pela

    universidade

  • Sumrio

    Ao Leitor 9

    / O que feito da psicanlise 13

    1. A polmica da psicanlise 13 2. O campo psicanaltico em questo 17

    3. A psicanlise no ambulatr io: um novo contexto? 30

    / / Interrogando o ambulatrio 35

    1. Sobre a pesquisa: uma part icipao observante 35

    2. Sobre os servios 41 2.1 Recepo, triagem c encaminhamento 42 2.2 The dream team: o trabalho em equipe 57 2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 65 2.4 O jogo de trs PPPs: psiquiatras, psiclogos e psicanalistas 85

    3. Duas ou trs questes para a psicanlise no ambulatrio 97 3.1 Dinheiro, pra que dinheiro 97 3.2 Deitando o olhar sobre o div 108 3.3 Que tempo para tratar? 115

    / / / Por uma psicanlise possvel 123 1. Evocando a "bruxa metapsicologia" 123

    1.1 Sobre a realidade psquica 126 1.2 Sobre a transferencia 137 1.3 Sobre interpretao, temporalidade e cura 149 1.4 Sobre o desejo do analista 162

    2. Para concluir: o psicanalista que convm 168

    Bibliografia 179

  • Ao Leitor

    A proposta de tratar da clnica psicanaltica no ambulatrio pblico, que resultou em uma tese de doutoramento, fruto do trabalho desenvolvido no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que congrega as atividades de ensino, pesquisa e assistncia. Minha atuao como docente tem se pautado na formao de profissionais que se propem a desenvolver um trabalho clnico referido psicanlise voltado para o atendimento ambulatorial em instituies pblicas de sade. Minha funo transmitir os fundamentos tericos da psicanlise e acompanhar o cotidiano desse trabalho clnico realizado pelos alunos, prioritariamente no ambulatrio, podendo ser estendido para outros se-tores, como as enfermarias e o hospital-dia.

    A idia de desenvolver uma pesquisa junto aos profissionais psica-nalistas, psiclogos e psiquiatras, vinculados rede pblica de sade 'teve como objetivo ampliar o leque de informaes sobre as possibilida-des e limites do exerccio da psicanlise fora dos consultrios privados.

    De posse de um material heterogneo sobre a estrutura e o funciona-mento dos servios, sobre o perfil dos profissionais e seu trabalho clni-co, pude equacionar as diferenas. Apresento relatos de experincias e de casos clnicos como exemplares no duplo sentido de amostra e paradigma da complexidade da clnica, de seus impasses e solues em relao s possibilidades do trabalho psicanaltico.

    Minha proposta, no entanto, no se esgota em descrever e analisar as diferentes situaes clnicas mais ou menos caractersticas do trabalho psicanaltico. Antes, descrevo para prescrever e prescrevo descrevendo. Meu trabalho , a um s tempo, descritivo e prescritivo. Desse modo,

  • 10 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    articulo a pesquisa com o ensino, sabedora de que a transmisso da psicanlise no se reduz a seu ensino. O que prescrevo um modo de conceber a especificidade da psicanlise e da funo do psicanalista, para que se possa identific-la e pratic-la a partir do percurso da cada um, situando-a frente s demais modalidades do conjunto de psiquiatria, a saber: a psiquiatria mdica, as psicoterapias e as prticas em sade mental.

    Tomo a psiquiatria como um conjunto, porque entendo que ela deve comportar essas prticas distintas, incluindo a psicanlise como um de seus componentes. Em princpio, a psicanlise est includa na categoria das psicoterapias. Mas importante que se estabelea sua diferena para no dilu-la ou mescl-la com variaes que descaracterizem sua especi-ficidade. Assim, a questo no recusar psicanlise seu estatuto de psicoterapia, e sim diferenci-la das demais psicoterapias. Entretanto, considero que no imprescindvel instituir a psicanlise como mais uma especialidade na lista de ofertas dos servios.

    Primeiro, porque a clnica psicanaltica praticada por profissionais com diferentes designaes como psiclogos, psiquiatras e outros. Ao institu-la, como se s aqueles designados como psicanalistas pudes-sem pratic-la. Quem designaria? Segundo, porque, alm de no dizer quase nada sobre seus procedimentos, cria expectativas e idealizaes que, na melhor das hipteses, decepcionam e, na pior, aumentam a resistncia tanto de outros profissionais quanto da clientela. Uma certa atopia, um estar ' sombra', pode ser salutar como lugar para o psicana-lista no trabalho institucional. Acredito que, ao longo do texto, minha posio se explicitar melhor.

    Outro ponto a ser discutido a escolha do ambulatrio como local para o desenvolvimento da pesquisa. Todos os profissionais pesquisados desenvolvem seu trabalho nos ambulatrios. H alguns casos em que trabalham tambm em enfermarias, na psiquiatria ou no hospital geral, ou nas chamadas estruturas intermedirias na psiquiatria hospitais-dia e centros de ateno psicossocial. O ambulatrio , sem dvida, o local privilegiado para a prtica da psicanlise porque faculta o ir-e-vir, man-tm uma certa regularidade no atendimento pela marcao das consultas, preserva um certo sigilo e propicia uma certa autonomia de trabalho para o profissional.

    Uma das crticas feitas freqentemente ao ambulatrio, especialmen-te pelos idelogos da sade mental, que sua estrutura e modo de funcionamento so anlogos aos do consultrio, como se esta prtica, com seu carter privado, fosse indevidamente transposta para o servio

  • Ao Leitor I 11

    pblico. Penso justamente ao contrrio. O ambulatrio no um simu-lacro do consultrio; o prprio consultrio tornado pblico. Nesse sentido, o termo pblico adquire uma significao ampla. Primeiro, para designar a rede estatal de servios que oferece atendimento gratuito populao na rea da sade, o servio pblico. Segundo, como facultado ao pblico em geral, qualquer pessoa tem o direito de ser atendida. Terceiro, e mais importante, a idia de tornar pblico, visvel, e deixar transparecer o trabalho clnico por oposio ao termo privado como privativo de algum. Por mais privatizado que seja o funcionamento de um ambulatrio, o volume de pessoas que circulam, as formas de registro e as vrias relaes a estabelecidas tornam sua marca de pblico inapa-gvel. Devemos nos beneficiar disto tornando-o mais pblico.

    Se a clnica psicanaltica requer uma certa intimidade, discrio e sigilo, isto no quer dizer que sua prtica deva se perder no intransmis-svel. O tornar pblico a que me refiro, no que diz respeito psicanlise, fazer circular, entre os pares e profissionais afins, o cotidiano da clnica com seus impasses e sucessos. tambm produzir trabalhos, estudos de casos e pesquisas para redimensionar o alcance da teoria em relao experincia clnica, que traz desafios de todo tipo. O meio universitrio bem propcio, assim como as associaes dc psicanalistas.

    Definido o objetivo do trabalho, passo apresentao do seu contedo. O primeiro captulo "O que feito da psicanlise" apresenta

    uma breve discusso sobre a difuso da psicanlise, e, ao enfocar o ambulatrio, discute os obstculos psicanlise, por um lado, em relao clientela e, por outro, em relao s outras prticas na psiquiatria. Em seguida, apresenta a heterogeneidade do campo psicanaltico como pro-blemtica para sua definio. Na ltima parte, discute a psicanlise no contexto do ambulatrio, propondo uma redefinio do termo 'contexto'. Nesse ponto, recorro s concepes de contexto e recontextualizao propostas por Richard Rorty e Jacques Derrida para desfazer equvocos. O que devemos deduzir que no h duas psicanlises, uma para o consultrio e outra para o ambulatrio. Minha referncia primordial Freud, considerando que a psicanlise no pode ser dissociada do seu fundador. Tambm recorro leitura de Lacan e s suas contribuies conceituais para resolver impasses deixados por Freud, abrindo novas possibilidades de recontextualizao da psicanlise no prprio campo da teoria com nfase na funo do analista.

    O segundo captulo "Interrogando o ambulatrio" apresenta a pesquisa sobre o ambulatrio, recortando as principais etapas do trabalho

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    clnico como o atendimento inicial (recepo ou triagem) e o encaminha-mento, o trabalho em equipe e o tratamento propriamente dito. Em seguida, discuto as peculiaridades dos profissionais 'psi' (psiquiatras, psiclogos e psicanalistas) e proponho trs questes para a clnica psica-naltica no ambulatrio sobre os principais pontos em que este difere do consultrio: a questo do dinheiro, onde proibido cobrar; a questo do div, onde este praticamente no existe; e a questo do tempo, onde a burocracia dos servios e a peculiaridade da clientela podem gerar obs-tculos.

    O terceiro captulo "Por uma psicanlise possvel" apresenta o que considero as condies mnimas para se definir a clnica psicanalti-ca, em sua diferena para com as demais psicoterapias, como uma clnica da realidade psquica que condiciona a fala ao movimento da transfern-cia dirigida ao analista que, por sua vez, tem na interpretao e numa relao peculiar com o tempo instrumentos para o manejo do tratamento. Alm disso, apresento uma condio que marca fundamentalmente o trabalho do analista definida como seu desejo, que difere do desejo de um sujeito. Ao final, concluo traando o perfil do "psicanalista que convm" para levar adiante o trabalho psicanaltico nos servios pblicos de sade, esse mundo de vastas confuses e atendimentos imperfeitos.

  • /

    O que feito da psicanlise

    1. A polmica da psicanlise

    A psicanlise, tal como Freud a concebeu, sempre foi praticada em con-sultrios privados, e os psicanalistas jamais dependeram de uma formao universitria ou de rgos oficiais de reconhecimento da profisso para exercerem sua clnica. Tudo sempre se passou de modo a manter a forma-o e a prtica psicanalticas numa espcie de extraterritorialidade, como ironizou Castel (1978), em relao s outras profisses liberais e s de-mais prticas mdico-psiquitricas. Essa peculiaridade, no entanto, no impediu que a psicanlise se difundisse, expandindo sua rea de influn-cia. A primeira vista, poderamos dizer que a psicanlise veio, viu e venceu. Ocupou parte do territrio das instituies psiquitricas como, por exemplo, as comunidades teraputicas; provocou mudanas nosogr-ficas, diagnosticas e de tratamento na psiquiatria sob a rubrica de psico-dinmica; instrumentou prticas psicoteraputicas diversas, difundiu-se para outros campos do saber e, ainda, tomou de assalto, atravs da mdia, a vida sexual-amorosa, familiar e social das classes mdias urbanas sob a forma de uma 'cultura psicanaltica'. Esse fenmeno se deu de modo desigual e em diferentes perodos, principalmente nos EUA (Nunes, 1984), na Frana (Turkle, 1970) e no Brasil (Martins, 1979; Santos, 1982; Figueiredo, 1984e 1988; Figueira, 1985; Russo, 1987). A psicanlise teria se tornado ubqua e sempre haveria um ponto de vista psicanaltico para tudo. Em parte, isso inegvel, e alguns estudiosos apontam para os efeitos, muitas vezes nefastos, dessa psicanalisao do cotidiano sobre a prpria clnica psicanaltica (Figueira, 1985b).

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    O que interessa, entretanto, no julgar se a difuso da psicanlise boa ou m em seus efeitos, mas atentar para o fato de que esse fenmeno no se deu de modo to efetivo no que diz respeito ao exerccio sistem-tico da clnica psicanaltica nas instituies mdico-psiquitricas. Refi-ro-me particularmente ao caso brasileiro, mas no creio que sejamos a exceo.

    Especulando sobre possveis causas, destaco das argumentaes cor-rentes dois aspectos distintos, porm complementares: o da demanda de atendimento e o dos prprios dispositivos de tratamento.

    Quanto ao primeiro, a demanda pode ser de atendimento mdico em geral ou de psicoterapia aqui costuma-se incluir a psicanlise. H vrios estudos discutindo a questo da diferena sociocultural e da con-seqente discrepncia entre os pontos de vista do terapeuta e do paciente sobre as representaes de doena, tratamento e cura. Alm de autores estrangeiros como Boltanski (1979) e Bernstein (1980), autores brasilei-ros como Lo Bianco (1981), Duarte & Ropa (1985), Duarte (1986), Bezerra (1987) e Costa (1989a) trataram da questo apontando para a necessidade de relativizar valores e concepes de subjetividade e cau-salidade psquica, quando se trata de atendimento psicoteraputico populao de baixa renda que aflui aos servios pblicos de sade.

    Em primeiro lugar, no devemos reduzir a complexidade do disposi-tivo psicanaltico isto talvez no sirva para outros modelos de psico-terapia aos ideais do terapeuta, enquanto representante da classe mdia escolarizada. Se os ideais de cura do terapeuta so pautados por seus prprios valores, sua funo, no entanto, no deve s-lo. O que ele acha que deve ser h que ser posto em suspenso e as condies de analisabilidade no devem se orientar exclusivamente pelos contedos mais ou menos psicologizados da fala do cliente. E claro que um certo patamar de individualizao deve ser atingido para que o sujeito possa desenvolver alguma reflexo sobre si, o que tambm parte do processo analtico. Isto sem mencionar os casos de pacientes psicticos de quem no podemos abrir mo de tratar, ou pelo menos tentar. Estes estariam bem mais distantes do ideal de analisando-padro.*

    Sobre o problema das diferenas socioculturais impeditivas para se estabelecer um processo psicanaltico temos, no limite, um curioso exemplo de algumas experincias bem sucedidas no trabalho de Ortigues, M.C. & E. (1989), realiza-do na dcada de 1960, no Senegal. Ali se viveu a experincia de ura entrecruza-mento de trs culturas: o tradicional sistema tribal, onde a possesso pelos ancestrais e a feitiaria marcam os rituais e as relaes intersubjetivas; a cultura

  • O que feito da psicanlise \ 15

    Em segundo lugar, importante frisar que o suposto modelo univer-salizante da psicanlise refere-se, que deve ser entendida como um con-junto de conceitos articulados como 'universais' algo que no em si um defeito terico mas pr-condio de um sistema suficientemente operacionalizveis para serem aplicados a uma demanda diversificada. No se trata de defender a posio ingnua de 'psicanlise para todos' , mas de apostar numa maior aplicao do dispositivo psicanaltico que permita seu exerccio alm dos consultrios privados com clientes estrei-tamente afeitos cultura 'psi ' . E, mais ainda: se fazer psicanlise produzir mais cultura psicanaltica, s nos resta a escolha de recuar diante dessa oferta em nome de uma idealizao purista das diferenas culturais ou assumir que esse atravessamento cultural pode ser benfico para todos aqueles que embarcam nessa aventura.

    O segundo aspecto refere-se aos dispositivos de tratamento que con-correm entre si, tornando-se mais ou menos hegemnicos, de acordo com variveis histrico-polticas que no sero discutidas aqui. O que temos observado, mais recentemente, o recrudescimento de uma ten-dncia na psiquiatria em privilegiar o tratamento medicamentoso em nome de uma maior rapidez e eficcia dos resultados. Os prprios crit-rios de classificao diagnostica apontam para uma fragmentao das grandes categorias clnicas de neurose e psicose para compor um mosai-co de sndromes variadas e de transtornos da personalidade. Produzem, assim, uma combinatria de sinais e sintomas, com base em substratos qumicos e neuro-anatmicos, rastreveis por aparelhos que detectam alteraes antes imperceptveis ao olhar clnico.

    Tudo isso pode ser muito bom para os tumores e leses do sistema nervoso central, mas mesmo os comportamentos acabam submetidos a essa varredura, e novas categorias nosolgicas so formuladas no intuito de ampliar o alcance do tratamento medicamentoso. Temos na fobia social, na sndrome do pnico e no distrbio obsessivo-compulsivo trs bons exemplos. Nesse cenrio, a psicoterapia ocupa um lugar secundrio ou acessrio, sendo que as psicoterapias cognitivas parecem atender melhor proposta de efeitos rpidos na remisso de sintomas, alm de

    islmica que pratica o monotesmo e o culto ao livro sagrado e se apresenta como mais evoluda em relao ao sistema tribal; e a cultura europia de lngua francesa que atua maciamente no processo de escolarizao e medicalizao, e representa a dominao estrangeira como um ideal de evoluo civilizatria.

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    serem consideradas mais objetivas, passveis de estudos de follow up, estatsticas etc. Se, de fato so mais eficazes, no nos compete responder. Mas, certamente, dependem de variveis que no so consideradas em seu prprio mtodo, ou seja, daquilo que Freud chamou de efeito da sugesto que est na base dos fenmenos da transferncia.

    O que interessa no comparar modelos, ou analisar um determinado modelo a partir de outro, mas apenas atentar para esses dispositivos que se apresentam com a bandeira da eficcia e da rapidez. A psicanlise, nessa viso, torna-se praticamente intil. Considerada um processo de-masiado longo, no-objetivvel, que exige uma formao de tcnicos muito complexa e igualmente prolongada, a soluo possvel foi encur-t-la na chamada psicoterapia breve. A meu ver, um breve contra a psicanlise. Da alquimia psicanaltica s bombas qumicas de rpidos efeitos (colaterais?) de longa durao. Eis o paradoxo: pacientes que permanecem freqentando os ambulatrios, por um longo tempo, em busca de receitas de ansiolticos e/ou antidepressivos. Por que no a longa durao de um tratamento psicanaltico?

    Quanto formao profissional, a dos psicanalistas no tarefa sim-ples. A universidade no o lugar recomendado ou suficiente, embora este no seja um bom motivo para se abandonar o projeto. A universidade no deve se furtar a este desafio, mesmo admitindo que estudar psican-lise e ter supervises clnicas no bastam para fazer do aluno um psica-nalista. Diramos que um bom caminho andado. Mas isso pode ser um desvio da questo. No me proponho a discutir a psicanlise na univer-sidade e sim as possibilidades e limites da clnica psicanaltica nos servios de sade da rede pblica em geral.

    Talvez parea uma pretenso ftil, uma veleidade de psicanalista, insistir na defesa de um aparato to sofisticado, quando as instituies de sade atravessam uma crise to sria, com sua existncia ameaada pelo descaso das autoridades pblicas, tanto pelo profissional quanto pela populao usuria. No entanto, no devemos recuar, uma vez que o trabalho de ensino, pesquisa e qualificao acadmica deve estar sempre frente das condies efetivas de sua realizao. Especialmente agora, quando se consolida uma ampla poltica de combate estrutura asilar de cronificao da doena mental, urge que mantenhamos viva a discusso sobre o tratamento psicoteraputico em regime ambulatorial, o que, cer-tamente, pode dar suporte ao projeto de desenclausuramento dos pacien-tes psiquitricos. Ao trabalho poltico e social deve-se somar o trabalho clnico. preciso revisitar o funcionamento inercial dos ambulatrios

  • O que feito da psicanlise | 17

    sem desfazer de seu potencial teraputico. Alm do mais, penso que o dispositivo psicanaltico no foi posto prova o suficiente para ser descartado como ineficaz ou imprprio para atender populao que procura os servios pblicos.

    2. O campo psicanaltico em questo

    Ao examinar os pressupostos tericos da psicanlise, logo me deparo com problemas em sua definio. Do que se trata quando se fala em psicanlise?

    Esta uma preocupao de vrios analistas de diferentes orientaes e h um certo consenso em admitir que a existncia de concepes diversas de psicanlise gera uma disperso irreversvel na produo con-ceituai e, conseqentemente, nas concepes do trabalho clnico.*

    So reconhecidos, pelo menos, trs modelos pregnantes que comp-em o mosaico do campo psicanaltico: o kleinianismo e suas variaes, conhecido como escola inglesa; a psicologia do ego como fruto de uma 'americanizao' da psicanlise liderada por imigrantes europeus; e o movimento lacaniano conhecido como escola francesa.

    Desenvolverei brevemente cada um, situando-os em seu aparecimen-to na histria e em seus fundamentos metapsicolgicos, nosolgicos, de tratamento e cura.

    A escola kleiniana, que se estabeleceu eminentemente na cultura britnica, herdeira do pensamento de Karl Abraham, mestre e analista de Melanie Klein, e inaugura a clnica infantil.

    Quanto metapsicologia, a referncia inicial em Abraham primei-ra fase da dmarche freudiana, especialmente dos textos de 1915; em seguida, ao ciclo manaco-depressivo, em particular melancolia, aos estdios pr-genitais e aos processos de incorporao e desenvolvimento da relao de objeto nas diversas modalidades genticas da ambivaln-cia. Seu pensamento centrado na dialtica da ambivalncia primitiva e

    Destaco aqui alguns autores como Mannoni (1982, 1989), Mezan (1988a, 1988b, 1988c), Bercherie (1988), Berlinck (1991), Bezerra (1991), Lo Bianco (1991), Kernberg (1994) que discutem o problema numa perspectiva histrico-poltica, seja priorizando o confronto entre modelos ou articulando-os com as especificidades socioculturais dos diferentes contextos em que se desen-volveram.

  • 18 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    da totalizao do objeto, e essa a matriz de Melanie Klein. Num segundo momento, a nova dualidade pulsional e a segunda tpica freu-diana constituem os conceitos de base do modelo kleiniano. Um certo antropomorfismo presente em Freud fundamenta a concepo do con-junto da atividade psquica como um mundo interno de fantasias atemo-rizantes, que fomentam o conflito ambivalente, a partir do inatismo das pulses de vida e morte, da precocidade do superego sdico e avassala-dor, da pregnncia das imagens corporais e dos processos de incorpora-o e rejeio dos objetos parciais.

    As diferentes modalidades pulsionais que constituem o funcionamen-to psquico e seus objetos internos sucederiam-se assim: inicialmente, h a posio esquizo-paranide, dominada pelo dio, pela retaliao perse-cutria e pela idealizao; em seguida, vem o equilbrio entre a culpabi-lidade depressiva autodestrutiva e a onipotncia reparadora da defesa manaca; e, por fim, o predomnio da integrao objetai com os meca-nismos de reparao, a assuno do dipo e a instaurao da sade mental. Para um estudo mais detalhado, remeto o leitor ao trabalho de Jean-Michel Petot (1988).

    Segundo Bercherie (1988), apesar de este encadeamento de posies remeter a uma reconstruo gentica da vida infantil adulta, sua apre-sentao fenomnica tem um carter atemporal e mesmo transcendental, em que se destaca a simbiose do sujeito com o objeto como um estado de confuso de limites entre o interior e o exterior. A personalizao do vivido da fantasia do seio e do falo, por exemplo, se apresenta mais como uma fantasmagoria, na qual o objeto externo no passa da externalizao do objeto interno. O objeto real tem um papel subsidirio de agravao ou correo da fantasia.

    Quanto nosologa, Klein no produz exatamente um modelo. Vrios crticos encontram nela uma tendncia psicotizao da estrutura subje-tiva da fase esquizoparanide, a partir da noo de ambivalncia em sua forma mais primitiva. Para Bercherie, o kleinismo considera a totalidade da estruturao subjetiva e sua patologia mais luz da fenomenologia dos mecanismos de introjeo, rejeio, denegao, onipotncia, cliva-gem etc., do ciclo manaco-depressivo, enfatizando o aspecto fundamen-talmente dual do funcionamento psquico. A fora inata das pulses de vida e morte contradiz em parte sua prpria formulao da presena precoce do conflito edpico que, pelo menos em Freud, tem uma compo-sio tridica.

  • O que feito cia psicanlise | 19

    Quanto ao tratamento e cura, a tica kleiniana enfatiza o amor como fator positivo (pulso de vida) e o dio como fator negativo (pulso de morte/destrutiva) no remanejamento do universo da fantasia, concebido como interno, endgeno, e desemboca numa postura clnica extrema-mente crtica, culpabilizante, pondo o analisando, de certa forma, sob suspeita. A transferncia seria a cxternalizao do mundo interno do sujeito que revela sua profunda dependncia regressiva e ambivalente. Cabe ao analista, em sua perspiccia, exercer uma atividade quer expli-cativa, para aliviar os estados de angstia emergentes, quer descritiva da prpria situao transferencial, numa espcie de traduo simultnea do discurso no 'aqui e agora' para o referencial terico que subsidia a interpretao. A ttica principal explicitar para o analisando suas defe-sas narcsicas contra a integrao de sua ambivalncia e a assuno de sua dependncia dos bons objetos. Essa espcie de vigilncia constante submete o funcionamento psquico a uma certa censura moral, dificul-tando uma mudana subjetiva frente ao analista e, conseqentemente, a dissoluo da transferncia (Little 1951; Figueiredo 1992).

    Numa etapa posterior, o kleinismo alado a um nvel mais sofisti-cado de metapsicologia e criatividade clnica. Entre seus discpulos, destacam-se Bion, o nome principal, e Meltzer, seu epistemlogo, que do uma especial ateno ao conceito de identificao projetiva, formu-lado desde 1946. Privilegiam seu aspecto interacional como instrumento de clarificao da comunicao inconsciente do paciente com o analista, nunca ao contrrio, e ampliam a explorao dos fenmenos da contra-transferncia e da psicose. A contratransferncia passa a ser uma refern-cia central para a interpretao, a bssola do analista. Este se coloca mais como um continente das projees do analisando que o afetariam 'inter-namente' e no apenas como uma suporte dessas projees. A tcnica interpretativa adquire uma colorao subjetiva, onde a expresso do vivido pessoal do analista tem mais peso do que o material clnico propriamente dito (Garrigues e cois. 1987). Na observao de Bercheric, por um lado, esse vis de intuio do analista atingido diretamente pelas projees do analisando, pode ter a funo de esvaziar o excesso de saber do analista presente nas interpretaes-tradues do primeiro momento do kleinismo. Por outro, transformar o vivido do analista em sua bssola para interpretao, pode gerar distores ainda mais graves.

    De um modo geral, a teoria kleiniana atinge um nvel de conceituali-zao interacional no campo dos processos de simbolizao, mas ainda deixa de lado a relao desses processos com a linguagem como institui-

  • 20 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    o social, mantendo a mo nica das produes psquicas da criana para o adulto e do paciente para o analista.

    A psicologia do ego, patrocinada, em seus primrdios, por Freud atravs de sua filha, Anna Freud, e dos membros mais influentes do grupo vienense, se desenvolveu principalmente nos EUA. Desdobrando-se a partir do modelo freudiano, acentua a inspirao funcionalista do ego adaptativo. Heinz Hartmann considerado seu fundador, com o livro Psicologia do eu e o problema da adaptao, publicado em 1939. Seu trabalho desenvolve a proposta de Anna Freud em O ego e seus mecanis-mos de defesa, de 1936. Posteriormente, so absorvidas certas concep-es kleinianas dando origem a um modelo hbrido.

    Quanto metapsicologia, suas principais caractersticas so a rejeio do conceito de pulso de morte, substitudo por uma pulso de agresso (uma espcie de segunda pulso de vida com carter um tanto negativo); a apreenso bastante biologizante da atividade psquica com nfase num modelo gentico; e o contato com a psicologia cognitiva experimental. Da a valorizao da observao de bebs. O livro O primeiro ano de vida do beb de Ren Spitz, publicado em 1958, uma referncia.

    O ego concebido como uma instncia de adaptao externa e sntese interna que se diferencia funcionalmente do id pelos aparelhos perceptivo, motor e cognitivo, canalizando as energias pulsionais selvagens do id em descargas regradas, adaptadas s necessidades da realidade-ambiente. Essa realidade se define como sendo de ordem relacional e social, indu-zindo o analista a um interesse constante pelas especificidades sociohis-tricas do ambiente, pelo culturalismo e disciplinas sociolgicas afins. As publicaes de Erik Erikson no incio da dcada de 50, como Identidade, juventude e crise e Infncia e sociedade, so um bom exemplo.

    Quanto nosologia, esta assenta-se sobre um trip. A neurose, onde um ego estvel tenta se adaptar s exigncias de um superego sdico, pr-genital, ou s pulses do id que o transbordam. Os estados borderli-ne, em que ego e objeto esto separados, mas submetidos aos golpes de uma dinmica pulsional, ameaadora e incontrolvel, clivada em amor idealizado versus hostilidade persecutria (nesse ponto, o recurso a Me-laine Klein incontestvel). E a psicose, onde h uma desagregao das estruturas psicolgicas e de suas representaes de objeto, principalmen-te por uma liberao de agresso livre desneutralizada, vitria da violn-cia pulsional sobre o ego, do plo autstico ao plo fusionai simbitico de estrutura oral.

  • O que feito da psicanlise \ 21

    Quanto ao tratamento, a transferncia constitui seu meio fundamental como uma dinmica psquica em suas modalidades patolgicas e arcai-cas, que provocam uma distoro projetiva da relao analtica. Em contrapartida, surgem as noes de "aliana teraputica", "aliana com a parte sadia do ego", "aliana de trabalho", para redefinir o pacto teraputico proposto por Freud. O insight, processo cognitivo o que o paciente aprende de seus conflitos e sintomas aliado ao processo afetivo a identificao com o analista que vai adquirindo formas mais sutis e abstratas o caminho da cura. O analista funciona como personificao da objetividade e da maturidade racional, egica, para enfrentar o irracional projetivo e arcaico da transferncia, utilizando-se exclusivamente da interpretao. Seu ponto cego reside na contratrans-ferncia, em seu 'irracional' no analisado, que ameaa romper o equil-brio do setting analtico.

    Este modelo, com sua aspirao racionalista, objetivista e evolucio-nista, parece bastante compatvel com os ideais mdico-cientficos que do sustentao a uma determinada concepo de psiquiatria, e se presta instituio de uma ortodoxia que ultrapassa em rigor tcnico a postura um pouco mais livre do prprio Freud.

    H, ainda, o grupo dos heterodoxos, cujos principais representantes so Winnicott, Balint, Ferenczi, Searles e Kohut, a quem Bercherie se refere como a "nebulosa marginal". Seu ponto comum seria a alteridade em sua dimenso fundadora. A 'realidade psquica' no seria mais do que um efeito, sombra do real histrico.

    Bercherie esclarece a designao como pertinente tanto situao de seus representantes na organizao institucional da psicanlise quanto sua ideologia e valores. Essa corrente no constitui propriamente um modelo. So trajetrias individuais que tm como ponto comum a busca de uma maior eficcia da clnica atravs de novas formas de interveno. Da tcnica ativa de Ferenczi ao holding de Winnicott, transgride-se a tcnica clssica difundida pelas correntes ortodoxas, considerada insufi-ciente e muito limitada.

    As diferentes tendncias ordenam-se sobre variaes balizadas, de um lado, pela referncia ao trauma como fator patognico, retomando a teoria da seduo freudiana num sentido mais amplo e, de outro, pela modificao do conceito e do manejo da regresso na anlise. Em Fe-renczi, por exemplo, o tratamento catrtico revalorizado e a escuta analtica deve tornar-se menos neutra e mais participante, incentivando

  • 22 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    a compreenso e o dilogo como uma funo simblica reparadora do vivido traumtico infantil.

    A metapsicologia e o tratamento se aliam a certas referncias noso-lgicas centradas no conceito de narcisismo primrio com Winnicott e Balint, por exemplo, em que o interesse terico e clnico do analista recai sobre a relao primria do analista com a me. Com Ferenczi, Searles e outros, a nfase dada incorporao patognica das comunicaes inconscientes intrafamiliares, onde a criana tomada como depositria das perturbaes e desejos mais secretos dos pais, especialmente nas psicoses.* Mas tambm valorizada a funo paterna aliada aos proces-sos de aculturao e socializao.

    Nesse cenrio, a ortodoxia condenada como cmplice da negao e da mistificao da realidade dos fatos e das interaes vividas pelo paciente em sua histria. A funo do analista no tratamento a de um facilitador do desenvolvimento vital, do processo de maturao, prejudi-cado pelas relaes patognicas. A contratransferncia funciona mais como guia para o analista e menos como perigo. As interpretaes no devem ter a insistncia intrusiva presente no kleinismo. O dispositivo analtico opera como uma dinmica intersubjetiva, aberta c imprevisvel em seu trajeto, em oposio ao enquadramento concebido como cienti-ficista-objetivista e inteleetualista dos ortodoxos. O pensamento incons-ciente criativo e a experincia de si, do verdadeiro self, se d uma vez que so levantadas as barreiras defensivas de um ego clivado que intro-jetou o ambiente patognico. Seguindo a referncia freudiana, a realiza-o aloplstica deve sobrevir inverso autoplstica da libido narcsica.

    Diferentemente da psicologia do ego, a cura depende mais da auten-ticidade do vivido, da espontaneidade do processo maturativo, do que da fora ou estabilidade do ego. Para Winnicott, por exemplo, o chamado 'ego forte' no passa de um falso self. Esse processo diz respeito presena da ordem objetai como fundadora da subjetividade em seu carter interacional. A adaptao realidade cede lugar inventividade prpria, espontaneidade criadora do self.

    Ao analista, resta a postura emptica, receptiva, devotada e acessvel, c a humildade tcnica que chega a admitir que h uma ajuda teraputica

    Destaco dois textos de referncia sobre esse tema: "Confuso de lnguas entre os adultos e as crianas" de Sndor Ferenczi e "O esforo para enlouquecer o outro: um elemento na etiologia e na psicoterapia da esquizofrenia", de Harold Searles.

  • O que feito da psicanlise I 23

    inconsciente constante do paciente ao analista. H posies crticas entre os 'marginais' do exagero dessa tendncia procurando retomar a regra fundamental freudiana e um certo rigor tcnico.

    No essencial, interessa destacar a filiao da antipsiquiatria a essa concepo da clnica em contraste com a psiquiatra eminentemente mdica Esta ltima se afina mais com os psiclogos do ego e com os kleinianos.

    O ltimo e mais recente modelo se constitui a partir do nome e do ensino de Lacan, mais precisamente a partir da ciso na Sociedade Psicanaltica de Paris em 1953 (Roudinesco, 1986). O famoso Discurso de Roma "Fonction et champ de la parole et du langage en psychana-lyse" o marco terico e poltico de uma nova 'ortodoxia'.

    A partir de uma fuso dos dois estruturalismos a antropologia de Lvi-Strauss com a lingstica de Saussure revisitada e do recurso aos conceitos de metfora e metonimia de Jakobson, Lacan inaugura o estru-turalismo na psicanlise. O conceito de simblico de Lvi-Strauss se funde com o conceito de significante extrado da equao saussureana do signo. A ordem do significante transcende e instaura o sujeito por sua inscrio na linguagem.

    O recurso ao materna anlogo ao mitema de Lvi-Strauss aos esquemas e grafos, teoria dos conjuntos e topologia, complementa e reafirma o modelo lacaniano lanando-o para alm do estruturalismo clssico.

    O 'retorno a Freud' toma como referncia a formulao da primeira tpica do inconsciente sexual recalcado e estabelece uma certa homolo-ga, guardando as devidas diferenas entre o associacionismo e o estru-turalismo. Quanto ao primeiro, critica seu carter psicolgico, represen-tacional e mecanicista e, quanto ao segundo, afirma seu carter lgico e relacional. Os significantes no so representaes de sensaes ou ima-gens de objetos e, apesar de serem unidades discretas, s produzem sentido enquanto articulados entre si numa cadeia linear constituda por metforas e metonimias. A fala, por sua vez, j sintomtica no sentido em que h sempre um hiato entre o que se diz e o que se quer dizer, e a significao se produz, em ltima instncia, no Outro. Posteriormente, com o n borromeano, Lacan vai situar a significao na interseo entre imaginrio (outro) e simblico (Outro).

    Lacan nunca pretendeu fazer uma teoria da comunicao. O Outro guarda sua dimenso terceira, de alteridade, sobre o outro como interlo-

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    * Para um estudo mais detalhado da topologia de Lacan, remeto o leitor ao traba-lho de Jeanne Granon-Lafont, A topologia de Jacques Lacan. Quanto formu-lao do nome-do-pai como o quarto n que constitui o sintoma fundamental, ver Le sinthome, seminrio de 18 de novembro de 1975, publicado em Joyce avec Lacan, sob a coordenao de Jacques Aubert.

    ** A concepo do estdio do espelho foi apresentada pela primeira vez no Con-gresso de Marienbad em 1936, e, posteriormente, foi reapresentada no Congres-so Internacional de Psicanlise de Zurique cm 17 de julho de 1949. Esta segunda verso est publicada nos crits.

    cutor da conversa de modo diverso da concepo interacional dos 'mar-ginais' apoiada nas relaes intersubjetivas. O modelo estrutural do di-po um bom exemplo. O nome-do-pai uma funo da linguagem, a metfora paterna, como uma operao de substituio (recalque prim-rio) que possibilita o advento da fantasia como resposta ao enigma do desejo da me (Outro primordial) e instaura a diviso do sujeito em conjuno e disjuno com seu objeto. Eis a definio bsica da fantasia, formulada j na dcada de 1960. Este o modelo da neurose.

    A dmarche lacaniana redefine tanto a dinmica subjetiva quanto a nosologa, o diagnstico e a funo do analista na clnica. Apresento brevemente cada um desses pontos.

    Quanto metapsicologia, ou sobre a constituio do sujeito, Lacan postula o entrelaamento dos trs registros: imaginrio, simblico e real. No decorrer de sua teorizao, estes vo sendo redefinidos, variando em precedncia, at a formulao do n borromeano que os articula a um quarto n, que ser finalmente definido como o nome-do-pai, tendo a funo de sintoma fundamental que amarra os trs registros. A estrutura edpica, portanto, o sintoma fundamental do neurtico.*

    O imaginrio definido, primeiramente, como imago, matriz do simblico na formao do eu (je do sujeito e moi como o ego narcsico ou o ego ideal) no conhecido texto sobre o estdio do espelho.** Na dcada de 1950, passa a ser um precipitado do simblico, consistente como imagem do corpo e dos objetos pulsionais, e totalizante como uma Gestalt. A se do a circulao dos afetos (amor-dio etc.) e as relaes interpessoais como relaes entre semelhantes.

    O simblico regido pelas leis do significante, em que o processo primrio opera constitudo como uma linguagem no desdobrar da met-fora (substituio) e da metonimia (deslocamento). Na primeira formu-lao de Lacan, o simblico organizado a partir da metfora paterna primeira operao de substituio como um ponto de ancoragem para

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    o sujeito, entrelaando-o ao eu imaginrio e funcionando como barreira ao desejo enigmtico e caprichoso do Outro representado pelo desejo da me. O significante flico registra a falta impossibilidade de acesso ao desejo do Outro por diferena da completude imaginria. Entre-tanto, a constituio do eu, como projeo de uma imagem, s possvel pela sustentao simblica do Outro. O esquema L formulado no Semi-nrio 2 (1954-55) mostra como os dois eixos, imaginrio e simblico, se articulam.

    O real, em sua primeira formulao, o inefvel, no captado na estrutura significante, o ser perdido do sujeito a partir da castrao sim-blica, ou seja, da incidncia da metfora paterna. Lacan, posteriormen-te, o define como seu prprio sintoma e, ao mesmo tempo, como sua contribuio psicanlise atravs do conceito de objeto a aquilo que se perde do ser pela marcao do simblico e constitui, mticamente, a falta primordial do objeto.*

    A realidade seria o efeito da conjuno do simblico com o imaginrio que encobre o real em sua ex-sistance. Uma outra significao para o real a de 'partes sem todo', contrariando a ordem do mundo, em sua absoluta ausncia de sentido. Na dcada de 1970, o real vai comportar a letra em sua materialidade como suporte do significante e uma dimenso do gozo que escapa ordem flica e, paradoxalmente, s pode ser pensado a partir dessa ordem como um efeito da marcao do significante.

    Quanto nosologa, so definidas trs estruturas: neurose (sujeito dividido); psicose (foracluso rejeio primordial da metfora pater-na); e perverso (desmentido da castrao). O diagnstico feito na transferncia, ou seja, no modo como o sujeito se apresenta ao analista (o Outro do sujeito): o neurtico como faltoso e demandante em sua queixa; o psictico como invadido pelo Outro, ou anulando-o; e o p i verso (quando se apresenta!) como objeto para o Outro, no para o Ou> o absoluto do psictico, mas para o sujeito dividido. A clnica lacaniana exige uma distino entre neurose e psicose, sendo que a perverso

    O conceito de objeto a bastante complexo e no cabe desenvolv-lo em toda a sua extenso. A partir do Seminrio, livro 11 Os quatro conceitos fundamen-tais da psicanlise, de 1964, Lacan formula este conceito articulando-o com a pulso escpica. J na dcada de 1970, tendo desenvolvido sua topologia, Lacan lhe atribui uma funo que perpassa os trs registros deixando-o retido no centro do n borromeano e, portanto, no se reduzindo ao registro do real. No imagi-nrio tem a funo de objeto parcial as vestimentas imaginrias; no simblico designado pelos significantes; e, no real, como objeto perdido.

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    mais problemtica. Muitas vezes, localizam-se traos perversos na estru-tura neurtica.

    Quanto funo do analista, Lacan introduz uma virada fundamental no conceito de transferncia. Em sua diatribe contra os psiclogos do ego, denuncia mais a resistncia do analista do que a do analisando. O analista resiste com seu ego, seu sintoma, suas interpretaes plenas de significado, seu saber que, ao ser suposto, no deve ser encarnado num ego ideal. A transferncia no para ser interpretada. Ela constitui o dispositivo analtico. O conceito de 'sujeito suposto saber' central para definir o estatuto da transferncia. O analista, ao ser autorizado a escutar um sujeito, est suposto, no como aquele que sabe, mas como aquele que deve receber a fala do sujeito como produo de saber, para dar-lhe um destino pela via da interpretao. O sujeito, por sua vez, s fala porque supe que isso ir lev-lo a algum lugar ainda no sabido. Se-ria uma espcie de prova de f no inconsciente como promessa de signi-ficao.*

    A tcnica deve dar lugar, por um lado, tica, centrada no que Lacan conceitua como o desejo do analista, e, por outro, ao estilo, o savoirfaire do analista, com toda a carga semntica do termo, por diferena ao know how mais tecnolgico. O desejo do analista um conceito cuja fora enigmtica o transforma em legado e desafio permanente para a psica-nlise lacaniana. Pode-se defini-lo como o desejo de pura diferena, sustentando na transferncia o lugar de objeto perdido (objeto a) como causa de desejo. O lugar do analista no pode ser o de um outro sujeito a intersubjetividade est fora de questo, apesar de ter constado de seus primeiros escritos deve ser o do objeto que falta, lanando o sujeito ao desejo. Simplificando, trata-se de reduzir ao mnimo a pessoa do analista em suas intenes, seu ego; portanto seu sintoma; mas, para-doxalmente, deixando-o livre quanto s possibilidades de sua interven-o. O analista se faz ao final de sua prpria anlise.

    Podemos situar em Lacan dois tempos na concepo do tratamento em francs, cure por oposio a gurison (Miller, 1987 e Bercherie, 1988). O primeiro, na dcada de 1950, enfatiza a funo central da fala como reveladora da verdade censurada da histria e dos sintomas do sujeito, guiando a interveno do analista sobre a emergncia das forma-

    Sobre o conceito de 'sujeito suposto saber', remeto o leitor ao trabalho de Jacques-Alain Miller, Percurso de Lacan, uma introduo, que o sistematiza de modo didtico no captulo "A transferncia. O 'sujeito suposto saber'".

  • O que feito da psicanlise I 27

    es do inconsciente {Discurso de Roma, 1953). O 'sujeito suposto saber' refere-se tanto posio do analista na transferncia quanto suposio de saber atribuda ao inconsciente como o Outro do sujeito que pe o processo associativo em marcha. Deve-se evitar a confrontao imaginria ou ego-narcsica analista identificando-se com o saber, confronto de sentimentos ou expectativas etc tpica da anlise das defesas, para permitir a emergncia do sujeito do desejo. O analista busca localizar-se como o Outro, o terceiro da funo paterna.

    O segundo tempo, a partir da dcada de 1960, Lacan enfatiza o real. O analista deve ser o piv do processo, fazendo as vezes (semblante) do objeto a, o objeto que falta e, por isso, causa desejo. No fim da anlise, o analista deve se reduzir a um resto da operao simblica. A anlise deve conduzir o analisando a assumir sua determinao significante para ultrapass-la at o ponto em que toda a significao, toda a produo analtica se lana num sem sentido esvaziado de gozo. E um processo exaustivo de desidentificaes (travessia da fantasia) que desemboca numa posio vazia (destituio do sujeito do inconsciente) onde se encontra o lugar do analista (des-ser). A fantasia deve-se opor o enigma do desejo como um real opaco onde se situa o sujeito. No o sujeito do inconsciente alienado ao discurso do Outro ou do Mestre, mas em seu movimento de separao. O recurso cada vez mais incisivo aos cortes nas sesses, que tendem a ser curtas, seria um meio de promover esse curto-circuito. Este o ponto mais controvertido da clnica lacaniana. Hoje, temos uma variedade de leituras de Lacan nas quais podemos reconhecer um divisor de guas esses dois momentos de sua teoria.

    Apresentados os diferentes modelos que compem o campo psicana-ltico, a questo no se reduz a reconhecer essas tendncias em sua disputa pela ortodoxia. Deve-se tentar encontrar um ponto comum sobre o qual esses modelos se edificam sob a rubrica de psicanlise. E possvel pensar em uma unidade diante de tanta diversidade? Ou o campo psica-naltico pode explodir numa babelizao de discursos incompatveis? Embora existam conceitos comuns, como inconsciente, recalque, pul-ses, transferncia, interpretao e, last but not least, associao livre, suas definies e seus usos diferem significativamente.

    O pior destino para a psicanlise seria a soluo ecltica que poderia transformar o sujeito psicanaltico numa espcie de ornitorrinco dotado de um ego forte e adaptado a uma iluso, de um inconsciente interno c abissal, resultante de relaes de duplo vnculo com pais perversos, que

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    no passam de significantes ambulantes, e de uma forte tendncia agres-siva, advinda das primitivas pulses de morte que, por sua vez, resultam de um superego cultural, ora forte, ora fraco, que se vinga de um ego narcsico.

    Apresento algumas propostas de interesse: Kernberg (1994), muito preocupado com a queda do prestgio da

    formao profissional e da prpria clnica psicanaltica nos EUA, lamen-ta o grande desconhecimento, atribudo ao preconceito e barreira lin-gstica, do que se passa na Europa, especialmente na Frana, e destaca os pontos positivos das "teorias alternativas" que incluem os novos de-senvolvimentos da psicologia do ego, da teoria das relaes de objeto, da psicologia do self, da anlise interpessoal e, at mesmo, de algumas referncias teoria lacaniana. Prope uma investigao emprica que ultrapasse a discusso terica e uma abertura para as diferenas visando engrandecer o movimento cientfico sem a ingenuidade de assimilar modismos ou fundir modelos incompatveis. Acrescenta que o candidato a analista deve ter acesso a abordagens diversificadas, mas alerta as instituies contra o "terrorismo intelectual" decorrente do proselitismo carismtico de qualquer abordagem nova. Quanto clnica, defende a multiplicidade de tcnicas sob a gide de alguma trama terica, com o objetivo explcito de diminuir os ndices de evaso (que parece ocorrer) entre os pacientes da chamada psicanlise ortodoxa.

    Mezan (1988a,b,c) aponta os "monlogos cruzados" entre kleinianos e lacanianos por se situarem apenas no plano das respostas, ignorando que as teses no passam de respostas a perguntas diferentes. Da sua constatao perplexa de que "os psicanalistas no falam a mesma lngua" (1988b p. 15). Tal disperso manifesta-se no que denominou uma "trpli-ce dispora": disperso geogrfica (contexto sociocultural europeu, nor-te-americano e latino-americano); disperso doutrinria (campo concei-tuai); e disperso institucional (poltica da psicanlise como produo de verdade avessa relativizao). Nesse ponto, Mezan enfatiza o caso brasileiro atravs daquilo que denomina "vulnerabilidade ao dogmatis-mo": na impossibilidade de reconstituir a gnese do que nos apresen-tado, resta-nos acatar ou recusar cegamente o que est escrito (1988a, p. 11). Sua proposta que se faa uma histria epistemolgica da psica-nlise rastreando as perguntas que cada autor pretende responder, uma vez que o que pode ser frtil para a psicanlise reside no nas afirmaes mas nas novas questes que podem ser formuladas. Para isso, constri

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    um mtodo com base no conceito freudiano de sobredeterminao. Deve-se considerar os desdobramentos de quatro dimenses epistemol-gicas da obra de Freud como pontos de isomorfismo ou homologia entre as trs principais escolas ps-freudianas kleiniana, lacaniana e psico-logia do ego. Essas dimenses so: uma teoria geral da psique (topologia, dinmica e economia do aparelho psquico); uma teoria da gnese e do desenvolvimento da psique (histria concreta do sujeito referida a um modelo esquemtico universal); como resultante das duas primeiras, uma teoria do funcionamento normal e patolgico da psique (solues neurticas, perversas ou psicticas para os conflitos fundamentais); e, por fim, uma concepo do processo psicanaltico (modalidades de in-terveno visando modificar o funcionamento psquico [1988c]).

    Lo Bianco (1991), por sua vez, abandona a epistemologia e relativiza os processos de legitimao das diferentes verdades psicanalticas, his-toricamente construdas para ressaltar o problema da importao de idias na cultura brasileira. Destaca duas reas problemticas na contex-tualizao da clnica psicanaltica: a cultura psicanaltica que grassa nos extratos mdios urbanos psicologizados e seu avesso, a distncia sociocultural da psicanlise que os extratos de baixa renda da popula-o apresentam nos atendimentos ambulatoriais. Prope, ento, que os prprios psicanalistas faam um exame mais criterioso do contexto sociocultural em que se d sua experincia analtica, a partir de sua clnica, a fim de avanar na elaborao terica de seus conceitos, no deixando essa tarefa apenas aos tericos da psicanlise nem aos socilo-gos ou antroplogos.

    Bezerra (1991) prope uma rediscusso tica do problema, a partir da concepo pragmtica do conhecimento em oposio concepo metafsica. Ao invs de se tentar saber quem o detentor da verdade ltima da psicanlise em seus fundamentos, em sua essncia, deve-se fomentar uma discusso sobre o que h de convergente e contrastante nas diversas formas do pensar psicanaltico em sua capacidade descritiva e produtora de sentido segundo as urgncias clnicas e determinaes pes-soais, polticas e culturais de cada um.

    Bercherie (1988) considera que no pela via terico-conceitual que se vai resolver o problema. Se Freud fazia questo da cincia, preciso repens-la num outro patamar. Por um lado, a necessidade de uma lngua comum, de um consenso conceituai de base, limitaria o avano que poderia se dar nos diferentes setores do campo psicanaltico. Por outro, a questo da filiao, seja de grupos ou pessoal, a determinado modelo

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    revestida de interdies, idealizaes e excluses pelo prprio poder da transferncia que agencia fidelidades esterilizantes ao oferecer o que h de mais precioso ao futuro analista. Sua proposta para integrar a histria c o estado atual do movimento freudiano a de um atravessamento subjetivo como resoluo da transferncia dirigida teoria, aos mestres e instituio analtica e como assuno de uma nova relao do sujeito com o real, marcada pela passagem de um quadro claro e evidente hincia de uma confuso, ao menos temporria, e de uma relativizao permanente do conhecimento.

    A tica evocada como um novo posicionamento, uma vez que saberes e conceitos sempre podem ser apropriados, partilhados ou inte-grados. A postura do sujeito seria unvoca, e ela que comanda suas escolhas prticas e tericas. Ao analista, portanto, cabe ultrapassar sua filiao, no sentido radical do termo, no s teoria e aos mestres, mas, principalmente, sua prpria anlise para se engajar na aventura de refazei" a psicanlise. A opo de Bercherie pelo referencial lacaniano explcita. Ele defende que foi Lacan, com seu ensino peculiar, quem produziu uma dissimetria em relao s outras correntes psicanalticas introduzindo a pluralidade do real frente s realidades subjetivas unit-rias e coerentes e a dimenso do desejo em sua obscuridade subjetiva mas tambm, em sua fecundidade simblica.

    Permanece, entretanto, o problema de como inventar permanente-mente a psicanlise sem ameaar romper com o que a caracteriza e delimita. Seria, em ltima instncia algo comum ao nome de Freud? Apenas um nome prprio vazio de significao? (Derrida, 1980; Forres-ter, 1989).

    3. A psicanlise no ambulatrio: um novo contexto?

    A primeira questo de que devo me ocupar so as condies mnimas, necessrias, para que a psicanlise seja vivel no ambulatrio. Se tomar-mos as condies como contextos, esta pode ser uma falsa questo. Para discutir a noo de contexto apio-me nas concepes de Richard Rorty e Jacques Derrida.

    Rorty (1991) sustenta que todos os objetos j so contextualizados. Portanto, a questo no retirar o objeto de seu velho contexto e exami-n-lo em si mesmo para ver qual o contexto que lhe mais apropriado. O que est sendo posto em contexto apenas "boringly and trvially" uma crena. Falar sobre o objeto falar sobre os efeitos prticos desse

  • O que efeito da psicanlise \ 3 1

    objeto sobre nossa conduta. Indagar sobre o objeto antes retecer cren-as do que descobrir a natureza do objeto, que pode ser, na melhor das hipteses um "focas imaginarius". E uma crena no passa de uma posio na teia da linguagem. O ato de descrever alguma coisa relacio-n-la com outras, e no h nada que preceda a contextualizao (p. 98-100). Nesse sentido, descrever a psicanlise, seja atravs dos relatos obtidos na pesquisa ou das definies que a caracterizam, retece a teia onde vai se evidenciar uma concepo de psicanlise que, ao mesmo tempo que se reconhece no contexto da obra freudiana, se altera em novas recontextualizaes.

    Devemos, contudo, estar atentos para no' reificarmos a noo de contexto, erigindo-o categoria de fundamento ltimo das coisas. Rorty, em seu estilo desconcertante, nos tranqiliza: um contexto pode ser uma nova teoria explicativa, uma nova classe comparativa, um novo vocabu-lrio descritivo, um novo propsito particular ou poltico, o ltimo livro que se leu, a ltima pessoa com quem se falou, as possibilidades so infindveis (op. cit. p. 94).

    Para Derrida (1991), no h um contexto absolutamente determinvel ou um conceito rigoroso e cientfico de contexto. Desse modo, recontex-tualizar a psicanlise pode ser entendido como uma reviso conceituai, no campo prprio da teoria, como uma relocalizao de sua prtica no campo da clnica em suas variaes. A dicotomia consultrio privado versus ambulatrio pblico no pode ser tratada como confronto entre dois contextos, radicalmente diferentes, que supem duas psicanlises, pois estaramos tomando o local e suas condies como o contexto por excelncia, o que , no mnimo, uma diferena grosseira, seno uma falsa questo. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer o jogo das identidades e diferenas, visando pulveriz-la para ampliar as possibilidades do exerccio da psicanlise.

    A questo, contudo, permanece: at onde essas possibilidades podem ser ampliadas? Se o contexto pode referir-se a uma nova teoria explica-tiva, o que garante que novas recontextualizaes, ao produzirem novos objetos, no nos lanariam no paradoxo de no estarmos mais falando de psicanlise? Ou pior, poderamos redescrever ou redefinir a psicanlise num movimento infindvel, onde tudo pode ser psicanlise. Tudo ou nada so duas faces da mesma moeda. Algo deve permanecer como identidade na diferena.

    Para no cair no atoleiro do sofisma, reafirmando a psicanlise como a medida de todas as coisas, valho-me novamente das concepes de

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    Derrida e Rorty para estancar uma dvida que remonta discusso dos filsofos pr-socrticos sobre o que muda ou permanece igual a si mes-mo no cosmos.

    Com Derrida, apio-me no conceito de rstance o que resta e resiste para assegurar que algo do signo permanece para que seja reconhecido como tal. Staten (1985), seu comentador, esclarece:

    "Uma vez que o contexto no 'exaustivamente determinvel', no h como traar um limite at onde ele possa transformar o signo; tudo o que sabemos que h um 'resto mnimo' {rstance) que nos permite reconhecer o signo o suficiente para que continue funcionando como um signo. Ao mesmo tempo que diferentes ocorrncias de um signo so reconhecidamente as mesmas, todavia, tambm so diferentes porque novos contextos mostram novos aspectos de suas possibilidades de sig-nificao. (...) Contudo, esse no um fenmeno arbitrrio ou indiscipli-nvel; sabemos bem sobre como ativar e delimitar a variao das funes de uma palavra numa sintaxe construda com engenho e arte. (...) Sabe-mos a priori que essa variao se estender num sem fim para alm de nossas intenes conscientes. Mas a ausncia de um limite determinvel ou conhecvel no significa que toda e qualquer coisa seja possvel em todo e qualquer tempo; ao contrrio, a variao da ativao futura do significado ocorrer em contextos futuros, e cada contexto vai mostrar aspectos correspondentes do significado" (p. 122, traduo minha).

    Esta afirmao apresenta o conceito de rstance no corno uma pro-priedade inerente ao signo; mas, antes, como o que determinado numa sintaxe especfica cuja variao remete ao tempo futuro na proliferao de novos contextos. Logo, podemos supor que teve e tem seu limite nos tempos passado e presente. Estes tempos no so pura cronologia, so tempos que recortam costumes e crenas, por exemplo.

    Com Rorty, sustento sua defesa de um certo 'etnocentrismo', o qual preconiza que no nos cabe ir alm das determinaes da cultura, das contingncias histricas que nos constituem com suas palavras e crenas. Devemos nos contentar em estabelecer a controvrsia entre as partes de nossas prprias convices (op. cit. p. 14).

    Tomando a psicanlise como uma cultura que produz psicanalistas e determina sua ao, cabe problematiz-la no seu interior ao invs de apreci-la 'de fora', ao modo do observador neutro. Ao tomarmos dis-tncia de nosso objeto para apreend-lo de outro modo, no devemos abandonar nosso vocabulrio, mas sim ampli-lo e modific-lo em novas

  • O que feito da psicanlise I 33

    contextualizaes para que no se perca a referncia ao ethnos psicana-ltico.

    Tomando o termo psicanlise como nosso "signo", o que resta e resiste remete de imediato ao nome e obra de Freud. Entretanto, na atual disperso do campo psicanaltico, j se alardeia em certos meios psicanalticos que o freudismo virou histria. passado e ultrapassado. No meu entender, o ethnos psicanaltico s faz sentido a partir de Freud e com Freud. Mas essa atualizao ou recontextualizao de Freud tem como contexto uma nova teoria explicativa que, como tal, lana-se pelo mote de um retorno a Freud. Como j mencionei, o nome de Lacan e sua teorizao seu ensino por transmisso oral e transcrio que vem se constituindo como obra na ltima dcada, redimensiona o futuro da psicanlise. O texto de Lacan , ento, um novo contexto para a psican-lise. Cito aqui um comentrio prosaico de Thomas Ktihn que, ao discutir a tradio e a inovao na investigao cientfica, define-a como uma tenso essencial: "Nas cincias, (...) muitas vezes melhor fazer o que se pode com as ferramentas disposio, do que fazer uma pausa para contemplar abordagens diferentes." (Kuhn, 1989, p. 275-6).

    Lacan, a meu ver, situa-se nessa tenso essencial entre o "pensamento divergente", como "a liberdade de ir em direes diferentes, (...) rejei-tando a velha direo e arrancando numa nova direo qualquer"; e o "pensamento convergente", que mantm a tradio do "consenso estabe-lecido, adquirido na educao cientfica e reforado na vida subseqente na profisso." (ibid. p. 276-8).

    Lacan rompe com a poltica, a teoria e a clnica institudas em seu tempo, arrancando na direo paradoxalmente retroativa a Freud, ao mesmo tempo que 'redefine' a psicanlise. Hoje, tornou-se uma "ferra-menta disposio" exatamente porque no se limitou aos encantos da "revoluo cientfica" que promoveu, e tratou de restabelecer o terreno do consenso na "educao" dos psicanalistas, fazendo escola. Convm a ressalva do termo 'cientfico', posto que Kuhn refere-se exclusivamente s cincias naturais, uma vez que no tenho a pretenso de discutir o estatuto cientfico da psicanlise nesses termos. O uso da palavra tem aqui o sentido da teoria como um sistema conceituai, suficientemente operacionalizvel e aplicvel na clnica. Esta sim, o elemento-surpresa que provoca a teoria em seu alcance explicativo e resolutivo. Nesse ponto, retorno a Derrida para reafirmar minha concepo de teoria: "No h conceito metafsico em si. H um trabalho metafsico ou no sobre sistemas conceituais" (op. cit. p. 37).

  • Interrogando o ambulatrio

    1. Sobre a pesquisa: uma participao observante

    Ao fazer uma pesquisa emprica para dar suporte minha argumenta-o, tomo a experincia como um campo comum onde se turvam os limites entre o subjetivo e o objetivo, situando-me na realidade da pala-vra, e reproduzo os relatos dos sujeitos pesquisados como fatos de lin-guagem. No se trata de comprovar a veracidade de cada dito, mas de citar, o mais literalmente possvel, segmentos de falas, de enunciados, considerando o contexto em que se d a enunciao. Isto , no que se refere ao lugar de onde falam, para quem falam, e ao encadeamento da fala na seqncia. No me limito a ser a ouvinte, mas falo com eles, atravs deles e para alm deles, querendo dizer mais do que foi dito. Sabedora de que ao citar repito e modifico os relatos orais e escritos a que tive acesso, dando-lhes um destino peculiar em um novo contexto, conduzi essa empreitada.

    Desse modo, valho-me taticamente desses relatos, como dados dos quais me aproprio, para construir minha argumentao que pretende ser mais do que tendenciosa. Pretendo apontar-lhes novos sentidos, transfor-m-los mesmo, segundo meu propsito de fundamentar a psicanlise possvel fora do consultrio privado. Aqui, para definir meu mtodo, tomo emprestada a expresso "participao observante" de Eunice Dur-ham em sua crtica bem humorada tendenciosidade das pesquisas antropolgicas que "resvalam para a militncia" (Durham, 1986, p. 27). Ao me propor conviver e conversar com um meio to familiar, entrego-

  • 36 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    me possibilidade de estranh-lo, mas no abro mo da militncia, da crena que aponta para o desejo de afirmar a psicanlise.

    Os procedimentos da pesquisa se desdobraram a partir de trs mo-mentos de meu trabalho que se sucedem e se complementam. Detalho cada um:

    1) Em minha experincia como docente do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB), convivo com diferentes profissionais e seus paradigmas de doena, tratamento e cura. Registrei falas, atitudes e situaes presenciadas no trabalho dirio do ambulatrio e na interao com outros setores, como a enfermar'a e o hospital-dia. Obtive, tambm, material oral e escrito mais detalhado sobre o funcio-namento das diferentes modalidades de recepo e encaminhamento de pacientes no ambulatrio.* Alm disso, mantenho um trabalho de super-viso e acompanhamento dos casos atendidos pelos pesquisadores (psi-quiatras, psiclogos e psicanalistas) do Projeto de Assistncia Sade Mental do Trabalhador (PRASMET).** Recolhi alguns casos que consi-derei relevantes a partir do registro oral e escrito das sesses.

    Deliberadamente, no inclu material obtido na superviso de casos atendidos por alunos, salvo uma ou outra exceo, j que sua posio ambgua na instituio: so aprendizes ao mesmo tempo em que so profissionais e esto de passagem nos servios. Seu trabalho tem a designao escolar de estgio e a responsabilidade pela clnica dividida com o professor cuja autoridade remete o aluno a um lugar de submisso, no sem conseqncias para a clnica (Figueiredo, 1996b).

    2) Organizei um grupo de trabalho no Crculo Psicanaltico do Rio de Janeiro no perodo de maro de 1993 a julho de 1994 com o tema 'Clnica Psicanaltica no Ambulatrio Pblico'. A participao era facul-

    * A partir de 1994 foi implantado no ambulatrio o sistema de recepo em grupos sob a coordenao de Sergio Levcovitz, psiquiatra e um dos idealizadores desse projeto. Acompanhei o trabalho e obtive material escrito produzido por ocasio do I Seminrio sobre os Grupos de Recepo do IPUB realizado em abril de 1995 pelos membros da equipe multiprofissional responsvel pelo trabalho.

    ** O Projeto de Assistncia Sade Mental do Trabalhador (PRASMET) coor-denado por Silvia Rodrigues Jardim, psiquiatra e pesquisadora vinculada ao Programa de Pesquisa em Organizao do Trabalho e Sade Mental coordenado pelos professores Joo Ferreira da Silva Filho e Maria da Glria Ribeiro da Silva.

  • Interrogando o ambulatrio | 37

    tada a quaisquer profissionais vinculados rede pblica que tivessem uma afinidade direta com o tema proposto.*

    As discusses, inicialmente, se faziam em torno da descrio e ava-liao desses servios, dos seus problemas e de suas possibilidades em propiciar um trabalho psicanaltico. Posteriormente passamos apresen-tao e discusso de casos, etapa mais difcil e delicada, pois envolvia um esforo maior de construo dos casos, fazendo surgir os impasses propriamente clnicos de cada um. O registro foi feito com anotaes minhas e com o material fornecido sobre os casos e o percurso dos participantes tanto nos servios e na formao em psicanlise.

    3) Elaborei entrevistas roteirizadas realizadas com 28 profissionais da rede pblica entre psiquiatras, psiclogos e psicanalistas que se dispuse-ram a conversar sobre seu trabalho.** Entrevistei-os uma ou duas vezes,

    * Tomaram parte nesse grupo cerca de quinze profissionais com vnculo empre-gatcio nas seguintes unidades: Centro de Sade Carlos Antnio da Silva (Nite-ri); Centro Municipal de Sade Heitor Beltro (Tijuca); Instituto de Cardiologia Aluysio de Castro (Humait); Hospital Infantil Ismlia Silveira (Caxias); Hospi-tal Jurandir Manfredini da Colnia Juliano Moreira (Jacarepagu); Hospital Gafre Guinle ambulatrio de adultos (Tijuca); Servio de Sade Mental de Cabo Frio; IASERJ ambulatrio Maracan; Hospital Cardoso Fontes/Hospi-tal Geral de Jacarepagu Servio de Adolescentes; Servio de Psicologia Aplicada da UERJ e Posto de Sade do Municpio de Cantagalo. Estes profis-sionais, todos graduados em psicologia, tinham percursos bem diferenciados na psicanlise. Alguns vinham de instituies psicanalticas onde receberam uma formao regular, e outros estavam iniciando seu contato com a formao atra-vs do Crculo, embora j tivessem uma experincia pessoal em grupos de estudo, superviso e anlise. Somente duas pessoas eram membros efetivos do Crculo.

    ** As unidades enfocadas foram: Postos de Atendimento Mdico PAM Bangu (emergncia e ambulatrio); PAM Iraj (servio de psiquiatria); PAM 13 de Maio Centro (servios de psicologia, psiquiatria e adolescentes); PAM So Francisco Xavier (atualmente Policlnica Piquet Carneiro) e PAM Venezue-la/Centro Psiquitrico do Rio de Janeiro (emergncia); Centro de Sade de Duque de Caxias (servio de sade mental); Centro Municipal de Sade Manoel Jos Ferreira Catete (servio de psicologia); Centro de Sade Santa Rosa Niteri (servio de sade mental); Centro de Sade Dr. Washington Lus Lopes So Gonalo (servio de sade mental); Programa Especial de Sade Mental de Barra do Pirai (ambulatrio); Posto Municipal de Sade Dr. Cndido de Freitas Duque de Caxias (servio de psicologia); Posto de Sade do Munic-pio de Cantagalo (servio de psicologia); Posto de Sade Santa Isabel So Gonalo (servio de psicologia); Posto de Sade de Volta Redonda (servio de

  • 38 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    sade mental); Hospital Estadual Psiquitrico de Jurujuba Niteri (ambulat-rio); Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho do Centro Psiquitrico Pedro II Engenho de Dentro; Hospital Phillipe Pinel Botafogo [Ncleo de As-sistncia Intensiva Criana Autista c Psictica (NAICAP)]; Instituto de Assis-tncia aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ) Maracan e Gvea (servio de psicologia); Hospital dos Servidores do Estado (servio de psicologia); Hospital da Polcia Militar (servio de psicologia); Hospital Pedro Ernesto/UERJ Ncleo de Estudos do Adolescente (NESA).

    de acordo com minha necessidade e a disponibilidade de cada um, levan-do em conta as informaes de que dispunham e o tempo necessrio para abrang-las. Houve casos em que entrevistei vrias pessoas ligadas ao mesmo servio, ou apenas uma de determinado servio. O critrio se deu a partir do tamanho e da complexidade dos servios e/ou da unidade a que estavam vinculados, sempre privilegiando o trabalho ambulatorial.

    As entrevistas foram gravadas e transcritas por mim, de modo que pude fazer da transcrio um bom momento para elaborar as informa-es e perceber sutilezas que me escaparam enquanto entrevistadora. Ao ouvir a repetio literal da conversa estando posicionada como ouvin-te de mim mesma e do outro, efeito da magia do gravador deparei-me com novos sentidos, novas possibilidades de traduo, a partir de deta-lhes de alguns ditos, de determinada entonao, pausas, uma certa mo-dulao da voz, enfim, uma maneira de 'ouvir' nas entrelinhas que lanava questes e desafios no previstos. O efeito-surpresa deu-se a de modo contundente.

    A escolha dos entrevistados no foi feita atravs dos servios e, sim, por indicao de colegas psicanalistas mais prximos atendendo meu pedido de entrar em contato com profissionais que tivessem alguma ligao com a psicanlise e se propusessem a pratic-la nos ambulatrios pblicos. Iniciei as entrevistas pelos meus colegas, claro! Afinal, esse o meio mais agradvel e menos sujeito a resistncias em fornecer informaes. Da em diante, obtive outros nomes e fui diversificando a amostra. No me preocupei em definir a priori o nmero de sujeitos, seu perfil ou sua funo nos servios alm da atividade clnica. Meu objetivo era fazer falar aqueles que tinham um percurso de no mnimo dois anos no servio pblico, para melhor localizar os impasses e questes premen-tes que advm do seu trabalho clnico. No se tratava de mapear os servios nem de fazer uma avaliao mais rigorosa de seu funcionamento ou das polticas pblicas que lhes deram origem. Essas informaes foram acessrias e no constituem material expressivo para minha an-

  • Interrogando o ambulatrio I 39

    lise. Tinha uma escolha a fazer: ou bem tratava de traar um perfil da rede pblica ou me dedicava a pensar sobre as questes mais sutis do exerccio da psicanlise, em sua feio peculiar, nos ambulatrios. Desde o incio, a escolha j estava feita. O que precisava saber dizia respeito diversidade ou semelhana das experincias de profissionais que, de alguma maneira, remetiam seu trabalho clnico psicanlise.

    Obtive informaes sobre diferentes tipos de servios de acordo com o percurso dos entrevistados. Houve casos em que o entrevistado era procurado para falar de seu trabalho em determinado servio e acabava falando de outro onde havia estado por um perodo maior, ou onde trabalhou melhor ou pior. Da, travamos comparaes, discutamos modelos, formas de reconhecimento e validao da psicanlise que va-riavam significativamente de um servio para outro etc.

    Minha pesquisa, portanto, trilhou mais ou menos aleatoriamente ser-vios heterogneos visitei alguns quanto a local e populao aten-dida, proposta de trabalho clnico, poltica da direo das unidades e sua articulao com as polticas mais amplas de sade mental e formao das equipes. Deixei de lado os servios universitrios diretamente ligados formao de alunos, mas inclu um cuja caracterstica era ter apenas tcnicos e/ou pesquisadores frente do trabalho clnico. No me preocu-pei quanto ao nmero total de entrevistas, considerando que em determi-nado ponto haveria um basta. A premncia do tempo no foi o fator menor, mas a recorrncia de dados que incidiam sobre problemas seme-lhantes foi a medida.

    Preparei um roteiro dividido em trs partes: formao e percurso na psicanlise; modo de insero e relao com o servio; trabalho clnico com diferenas e aproximaes do modelo do consultrio. Para minha surpresa, a ordem no foi seguida, mas os tpicos entrelaavam-se es-pontaneamente como se fossem conseqncia natural um do outro. Con-clu que esse era o caminho e engavetei as cpias do roteiro.

    As entrevistas decorreram num processo anlogo ao da associao livre at onde podemos entend-la como livre e minhas perguntas foram a reboque das informaes obtidas. Com freqncia, as entrevistas se iniciavam a partir de questes propostas pelos prprios entrevistados, que revelavam suas preocupaes mais imediatas, como crticas ao fun-cionamento dos servios, projetos e idias para sua melhoria, um caso clnico de difcil manejo, ou mesmo sua trajetria peculiar no servio ou na psicanlise. Minha participao muitas vezes resultava em discutir os temas pensando solues, emitindo opinies, comentando os casos, en-fim, trabalhando sobre as informaes no decorrer das entrevistas de

  • 40 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    modo que resultassem em alguma contribuio para os entrevistados. Encontrei pessoas entusiasmadas com suas conquistas, outras descrentes de qualquer possibilidade de renovao e, ainda, outras, temerosas po-rm esperanosas, com prazer em reavivar suas idias a partir de nossas conversas, que, espero sinceramente, tenham tomado novo flego para continuar.

    Concluda a pesquisa, obtenho anotaes dispersas, um vasto mate-rial de entrevistas transcritas e comentadas, e escritos diversos sobre casos clnicos e temas afins. Resta organiz-los metodicamente para deles extrair os fios com os quais devo tecer meu argumento. Do emara-nhado de dados comeo a agrupar os pontos comuns e contrastantes para dar-lhes uma coerncia mnima.

    Meu mtodo fundamenta-se na argumentao por exemplo, particu-larizando as situaes caso a caso. E, curiosamente, ao pedir que meus entrevistados dessem exemplos de sua clnica ou de situaes que pode-riam ilustrar suas afirmaes gerais, adotei o modo de argumentao por exemplo no ato mesmo das entrevistas, entendendo que essa era a melhor maneira de me aproximar da clnica. Trabalho com segmentos de enun-ciados, retirando-os dos contextos em que foram apresentados, transfor-mando-os em citaes para dar-lhes novos sentidos e extrair-lhes sua fora exemplar.

    Ao exemplificar, recorro citao, e citar recontextualizar. E, ao citar as citaes contidas nos relatos, refao mais uma vez seu sentido. Mas no devemos entender que se tratam dc duas realidades ou dois nveis distintos de linguagem: a citao e o texto propriamente dito. Todo o meu trabalho na escrita constri a argumentao nesse registro, diga-mos, citacional. Aproveito e cito o argumento de Derrida:

    "Todo signo, lingstico ou no lingstico, falado ou escrito (no sentido corrente dessa oposio), em pequena ou grande escala, pode ser citado, posto entre aspas; por isso ele pode romper com todo contexto dado, engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente no saturvel. Isso supe no que a marca valha fora do contexto mas, ao contrrio, que s existam contextos sem nenhum centro absoluto de ancoragem. Essa citacionalidade, essa duplicao ou duplicabilidade, essa iterabilidade da marca no um acidente ou uma anomalia, aquilo (normal/anormal) sem o que uma marca j no poderia sequer ter fun-cionamento dito 'normal ' . Que seria de uma marca que no se pudesse citar? E cuja origem no pudesse ser perdida no meio do caminho?" (Derrida, 1991, p. 25-26).

  • Interrogando o ambulatrio I 41

    Essa iterabilidade de que fala Derrida a possibilidade de a marca, a palavra, ter sua identidade repetida ao mesmo tempo em que alterada, revelando sua opacidade em relao inteno do dito. Logo, o uso que fao dos relatos orais e escritos separa-os da inteno e do contexto originais em que foram colhidos para relan-los ao leitor. Este, por sua vez, deles se apropria numa nova interpretao que promove um novo hiato entre o que eu disse e o que quis dizer. E isso que interdita a saturao do contexto. Mas preciso dizer o melhor possvel aquilo que se quer dizer num movimento onde o sujeito total est ausente, em inteno e memria. Escrever consiste nesse incessante trabalho de en-contrar as palavras e aloc-las numa sintaxe que traa o sentido.

    No recurso aos exemplos, procuro realar seu valor explicativo no sentido usual de que 'os exemplos falam por si ' . Mas no h como exauri-los, pois podem infinitizar-se em tantos quanto as situaes pos-sveis na clnica. H uma outra dimenso que d ao exemplo sua quali-dade paradigmtica de ser exemplar, tanto no sentido de um 'bom exem-plo' , quanto no de uma amostra passvel de generalizao parte extensiva a um todo por projeo ou probabilidade. Assim, um nico exemplo pode falar para alm de si.

    Os relatos so citados em diferentes modalidades de exemplificao. Destaco as trs mais freqentes:

    Segmentos de fala colhidos em entrevista com a mesma pessoa podem ilustrar temas e argumentos diferentes;

    Segmentos de falas semelhantes de diferentes entrevistados que convergem para a mesma idia podem ilustrar o mesmo tema ou argu-mento;

    Segmentos de fala ou texto partidos ou em fragmentos no-se-qenciados, podem ser usados mais de uma vez ou para ilustrar mais de um tema ou argumento. Nesse caso, o encadeamento inicial se perde na produo de uma nova seqncia.

    Convido o leitor a percorrer este texto, no qual indico as citaes recorrendo s aspas, como referncia mnima suficiente, e tomo a palavra no como alheia ou prpria, mas como nica possibilidade de passar adiante minha proposta.

    2. Sobre os servios

    Conforme j indiquei, minha pesquisa trilhou servios bastante hetero-gneos em sua organizao, funcionamento e objetivos. Ao todo foram 30 unidades entre postos de atendimento mdico, centros e postos de

  • 42 I Vastas confuses e atendimentos imperfeitos

    sade, hospitais gerais, hospitais psiquitricos e hospitais universitrios. Com exceo de duas unidades cujo atendimento reservado aos funcio-nrios e familiares Hospital do IASERJ e Hospital da Polcia Militar as demais esto ligadas ao Sistema nico de Sade (SUS) implantado pelo Ministrio da Sade em regime de municipalizao. Isto significa que o atendimento deve ser dado a toda e qualquer pessoa que o deman-de, respeitando, tanto quanto possvel, a regionalizao por reas progra-mticas.

    Para preservar o sigilo, no identifico esta ou aquela unidade, nem seus respectivos funcionrios, uma vez que no se trata de exp-los, e sim discutir seus impasses e sucessos para melhor fundamentar minha proposta de exerccio da clnica psicanaltica nas instituies pblicas. Na maioria das vezes, entretanto, inevitvel recorrer ao tipo de servio ou unidade para exemplificar certas situaes clnicas.

    Para discorrer sobre os aspectos mais relevantes para minha proposta, inicio a abordagem dos servios recortando em seu funcionamento os mecanismos de recepo, triagem e encaminhamento dos pacientes. Mi-nha preocupao aqui indagar sobre as condies de viabilizao da psicanlise, a partir do modo como se do os primeiros contatos do paciente com a instituio. Suponho que estes procedimentos iniciais podem facilitar ou dificultar o trabalho do psicanalista a partir da deman-da que lhe encaminhada.

    Mais adiante, trato dos problemas relativos ao trabalho em equipe e sua formao para, em seguida, discutir as modalidades de tratamento mais ou menos referidas psicanlise. Por fim, apresento um perfil dos profissionais 'psi ' que revela suas posies, muitas vezes ambguas e confusas, em relao identidade de psicanalista e suas conseqncias na clnica.

    2.1 Recepo, triagem e encaminhamento

    Sobre a recepo, o termo designa genericamente o primeiro atendimen-to, em geral em grupos, e usado muitas vezes no lugar do termo triagem, que d uma idia mais burocrtica e menos acolhedora do atendimento. Em alguns servios pretende-se caracterizar uma disponi-bilidade permanente da equipe para os pacientes que retornam ou so encaminhados de outras unidades ou de outros setores da mesma unida-de. Nesse caso, a recepo funciona como o eixo central da clnica

  • Interrogando o ambulatrio I 43

    decidindo o destino de cada caso no duplo sentido de destinao (enca-minhamento) e desgnio (futuro).

    Tomo como referencia os trabalhos de Corbisier (1992), Levcovitz e cois. (1995) e Tenorio (1996) que fundamentam a proposta de atendi-mento no modelo de recepo em grupos coordenados por equipe mul-tiprofissional. Destaco duas experincias bem sucedidas de implantao desse modelo no ambulatorio de hospitais psiquitricos, sendo um deles um servio de emergncia. Os autores versam sobre pontos comuns quanto concepo do adoecer psquico e do tratamento. Quem adoece e sofre , antes de tudo, um sujeito e no um corpo. Logo, a fala deve ser privilegiada no como manifestao patolgica que exige correo ou resposta imediata, mas como possibilidade de fazer aparecer uma outra dimenso da queixa que singulariza o pedido de ajuda. Conseqente-mente, o tratamento consiste, nessa etapa inicial, em acolher e escutar ao invs de ver e conter (Corbisier, p. 12). O que e quem se deve escutar o ponto nodal para se fazer a diferena entre uma psiquiatria apressada em remitir o sintoma e uma abordagem que visa "desmedicalizar a demanda e subjetivar a queixa do paciente" (Tenrio, p. 5). A psicanlise a referncia fundamental na formulao dessa proposta. Enfatiza-se a importncia do trabalho em equipe e sua disponibilidade para tratar situaes singulares e inventar solues no-previstas.

    Outro ponto comum a crena que a recepo em grupo no deve ser apenas um meio de reduzir as filas de espera, mas sim de propiciar um acolhimento constante e provocar efeitos teraputicos. O grupo deve funcionar atendendo no s os pacientes que chegam ao ambulatrio, mas tambm os que so encaminhados de outros setores da instituio, ou os que retornam aps algum tempo de interrupo ou, ainda, os que demandam outro tipo de tratamento. Para isso, preciso contar com o empenho da equipe num trabalho coeso e permanentemente avaliado para evitar a burocratizao do atendimento que pode transform-lo em mera 'triagem' e construir formas de encaminhamento a partir de premissas que envolvam a participao direta do paciente.

    Definido o modelo, a primeira questo saber se s os psicanalistas, ou pessoas referidas psicanlise, estariam aptos para a tarefa. Penso que no s estes, mas, sem dvida, o paradigma que sustenta a proposta psicanaltico. Entretanto, o que pode ser decisivo para sua viabilizao, ou no, depende muito mais do modo de funcionamento da equipe, do exerccio permanente de discusso e avaliao das condutas e, principal-mente, da responsabilidade dos profissionais frente aos pacientes, seja

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    qual for o tipo de tratamento oferecido. Desse modo, o trabalho implica um contato direto e permanente com os diferentes profissionais que atuam no servio, dos atendentes aos mdicos, atravessando as hierar-quias funcionais e burocrticas. A recepo pode ser um bom termme-tro da instituio ao tornar mais pblicos, portanto mais transparentes, seus procedimentos clnicos, seus problemas e solues no percurso de cada paciente.

    Os autores do exemplos de casos que ilustram sua argumentao. desnecessrio reproduzi-los aqui. Como no devo me furtar aos exem-plos, descrevo cenas que se sucederam em um grupo de recepo numa sesso agitada e cheia de imprevistos, relatada por um dos membros de uma equipe:

    "Nesse dia, ramos trs psiclogos na equipe, eu e mais duas inician-tes no trabalho. Atendemos duas pacientes que nos pareceram neurticas, uma mais histrica e a outra mais obsessiva, cuja apresentao sintom-tica era, digamos, enlouquecida, a ponto de nos confundir num primeiro momento. Alm delas havia um rapaz psictico que tinha dado baixa no exrcito por conta de um surto, uma senhora acompanhada de sua filha que falava por ela e pedia um tratamento gcritrico, e mais umas trs pessoas...

    "A primeira a ser ouvida foi uma das duas primeiras pacientes. Tinha uns vinte e poucos anos, era grande e bonita, vinha do norte, de classe baixa, e comeou a falar numa modulao meio delirante com um olhar perdido, dizendo que 'Deus no est s no bem... est no mal e tenta a gente com o mal ' . Estava acompanhada do irmo e da cunhada, vestia saia e ficava passando a mo na perna e a cunhada ficava abaixando sua saia... Ela repetia continuamente 'as carcias de Deus...' e ficava nisso. O irmo pediu a palavra para contar que ela fazia um cursinho e se apaixo-nou pelo professor de biologia, que a seduziu. Eles tiveram um envolvi-mento e, quando ela resolveu contar em casa, o irmo foi com ela at a casa do professor para matar o cara ou obrig-lo a casar. Ele negou que tivesse havido relao sexual e ela foi levada ao ginecologista para um exame que constatou sua virgindade. 'Ela ainda pura' , disse o irmo. Nisso, ela diz: 'O problema que eu gostei... gostei mesmo e faria de novo... voc no entende nada', diz para o irmo. Mas continua meio desarticulada sem falar coisa com coisa. Decidimos, eu e mais outra pessoa da equipe, lev-la ao planto para ser medicada, mas no interna-da, e aps tranqilizar a famlia, encaminhamos para psicoterapia indi-vidual com essa mesma colega que a acompanhou.

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    "De volta ao grupo, ouvimos a outra paciente, uma senhora magri-nha, mida, envelhecida, que dizia muito aflita... 'Estou com um proble-ma de limpeza, tenho que limpar tudo... se algum entra na minha casa tenho que limpar o cho muitas vezes... s uso o sabonete uma vez, fico horas tomando banho, lavando a mo... sei que estou me sentindo suja porque tive uma relao ilegtima com um homem casado... minha filha no quer mais saber de mim'. Ela chorava muito, a coisa transborda e contagia todo mundo... Ela segue implorando... 'pelo amor de Deus, promete, por favor, que o senhor vai telefonar para minha filha quando terminar aqui e vai dizer a ela que eu vou ficar boa para ela no me abandonar... me d um remdio pelo amor de Deus' . . . Eu tentava intervenes mais serenas, mas ela foi crescendo, aumentando o tom, at dizer 'eu preciso de algum que me diga assim... chega, pra,... no faz mais isso!... Como num ato reflexo, eu disse enftico: 'Ento pra!' Ela tomou um susto e parou. A outra psicloga assumiu o caso na hora e pedimos a um mdico que a atendesse naquele dia para tranqiliz-la e talvez medic-la, se fosse o caso, explicando o episdio e nossa deciso de encaminhar para psicoterapia.

    "Ainda ouvimos a outra senhora que pouco falava, muito reticente, se deixando representar por sua filha que insistia em obter um atendimento na geriatria porque tinha ouvido falar nisso... Tentamos faz-la retornar ao grupo na outra semana para conversar e esclarecer melhor esse pedi-do. Solicitamos a opinio da senhora que dizia que o grupo era bom, o mdico tambm seria bom... e a filha dizia: 'Eu conheo ela. Marca logo um mdico porque se o senhor disser para ela voltar, ela no volta'. Apostamos em tentar um retor