filosofia, reconhecimento e direito · filosofia, reconhecimento e direito 3 agemir bavaresco...
Post on 18-Nov-2018
227 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 2
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS
Chanceler
D. Jayme Henrique Chemello
Reitor
Alencar Mello Proença
Pró-Reitora de Graduação
Myriam Siqueira da Cunha
Pró-Reitora de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão
Vini Rabassa da Silva
Pró-Reitor Administrativo
Carlos Ricardo Gass Sinnott
EDUCAT - EDITORA DA UCPel
Editor
Wallney Joelmir Hammes
CONSELHO EDITORIAL Wallney Joelmir Hammes- Presidente
Lino de Jesus Soares
Luciano Vitória Barboza
Luiz Roberto Bitar Real
Vilson José Leffa
EDUCAT
Editora da Universidade Católica de Pelotas - EDUCAT
Rua Félix da Cunha, 412
Fone (53)3284.8297 - FAX (53)3225.3105 - Pelotas - RS - Brasil
Filosofia, Reconhecimento e Direito 3
AGEMIR BAVARESCO
MANUEL MOREIRA DA SILVA
Organizadores
FILOSOFIA, RECONHECIMENTO
E DIREITO
EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas
Pelotas – 2006
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 4
© 2006 Agemir Bavaresco, Manuel Moreira da Silva
Direitos desta edição reservados à
Editora da Universidade Católica de Pelotas
Rua Félix da Cunha, 412
Fone (53)3284.8030 - Fax (53)3225.3105
Pelotas - RS - Brasil
E-mail: educat@phoenix.ucpel.tche.br
Loja virtual: http://educat.ucpel.tche.br
Editora filiada à ABEU
PROJETO EDITORIAL EDUCAT
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso
CAPA
Valder Valeirão Ilustração da capa: Fontana di Trevi
Contra-capa: G. W. F. Hegel
F478 Filosofia, reconhecimento e direito / [organizadores] Agemir
Bavaresco, Manuel Moreira da Silva. – Pelotas : EDUCAT,
2006.
182p.
ISBN 85-7590-077-3
1. Filosofia – direito. 2. Direito – Filosofia. I. Bavaresco,
Agemir. II. Silva, Manuel Moreira
CDD 340.1
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim
CRB 10/1233
Filosofia, Reconhecimento e Direito 5
SUMÁRIO
Apresentação .............................................................................. 7
A. Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da
influência de Fichte sobre Hegel ...................................... 13 Erick Calheiros de Lima
1. Intersubjetividade e direito em Fichte ................................... 13
2. A crítica de Hegel na Differenzschrift: dois modelos de
intersubjetividade .................................................................. 23
3. Intersubjetividade e Einssein: o Naturrechtaufsatz ............... 38
B. Reconhecimento Intersubjetivo no Viés Jusfilosófico
de Hegel e Kojève .............................................................. 67 Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino
1. Do precário conceito de intersubjetividade dos modernos ... 71
2. Intersubjetividade e Reconhecimento em Hegel .................. 73
2.1 Nos primeiros Escritos .................................................. 73
2.2 Na Fenomenologia do Espírito ...................................... 80
3. Reconhecimento e Intersubjetividade no Esboço de uma
Fenomenologia do Direito de Kojéve ................................... 82
3.1 Questão metodológica ................................................... 82
3.1.1 A dialética hegeliana .......................................... 83
3.1.2 Monismo sim, monismo não .............................. 84
3.1.3 A dialética Kojèviana ......................................... 85
3.2 O desejo antropogênico ................................................. 87
3.3 Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo
Kojéve ......................................................................... 95
3.3.1 A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático 96
3.3.2 A justiça da equivalência ou o Direito burguês .. 99
3.3.3 A justiça da eqüidade ou o Direito cidadão ...... 102
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 6
4. Modelos Metodológicos de Reconhecimento: do direito
subjetivo ao intersubjetivo ................................................ 108
C. O Idealismo Especulativo e o Problema da
Fundamentação Ético-Política da Mediação
Institucional e do Reconhecimento Intersubjetivo na
Filosofia Prática Contemporânea .................................. 117 Manuel Moreira da Silva
1. Posição do Problema ........................................................... 117
2.Limites e aporias de algumas considerações não-
especulativas em torno da mediação institucional e do
reconhecimento intersubjetivo ........................................... 127
1. O Realismo-naturalismo e a destranscendentalização
da Razão prática ............................................................ 131
2. O Idealismo relativo e a retranscendentalização da
Razão prática ................................................................ 139
3. Necessidade da Passagem a uma Concepção Especulativa
do Direito, Elementos para sua Retomada e
Desenvolvimento na Atualidade ......................................... 150
1. O que é o Especulativo puro? ....................................... 154
2. Nota sobre a Concepção especulativa do Direito e
sua atualidade ............................................................... 162
4. A guisa de conclusão: O Eu plural e a ordem normativo-
institucional ......................................................................... 176
Referências bibliográficas ...................................................... 178
Filosofia, Reconhecimento e Direito 7
Apresentação
Adentramos cada vez mais em um novo patamar da
existência humana, uma existência consciente não só de seus
próprios limites, mas também de estar para além dos mesmos, a
qual, contudo, ainda não é capaz de afirmar-se na plenitude da
efetividade espiritual que ela mesma se atribui. A dissolução do
Cosmos natural antigo e medieval, bem como da concepção
estritamente nomotética do Direito natural e da Antropologia
política nele fundada, aparece nos dias de hoje quase
completamente realizada; a sobrevivência desse Cosmos natural
em certas concepções atuais de algo como ―mundo da vida‖,
―formas de vida‖, etc., que dele ainda guardam resquícios, não
mais operam segundo o princípio de uma razão cósmica
abrangente e da comunidade ético-política que a reflete.
Outrossim, a fragmentação e os estilhaços da subjetividade
transcendental absolutamente fixada em si e por si mesma,
própria dos modernos e contemporâneos, bem como da
concepção estritamente hipotética de um Cosmos limitado à
transcrição matemática e da liberdade como reciprocamente
limitada, parecem estar em vias de perfazer a sua mais completa
aniquilação; portanto, levando às suas últimas conseqüências –
fazendo-a referir-se a si própria – a dissolução do Cosmos natural
por ela mesma instaurada. Isso, ainda que nos apareça como um
resultado meramente negativo, confirmando assim as posições
dos mais diversos niilismos, contudo, apresenta-se
positivamente; a saber, como resultado efetivo de um longo
processo de desenvolvimento espiritual que, como tal, só pode
ser compreendido em sua efetividade se o concebermos
especulativamente.
Eis aí o pano de fundo que, de certo modo, está na base e
constitui o estofo dos artigos que compõem a presente obra,
Filosofia, reconhecimento e Direito. São três estudos em torno
da concepção hegeliana do reconhecimento recíproco, os quais,
respectivamente, cada um a seu modo e os três em conjunto,
perfazem o arco e a envergadura mesma dessa que foi a primeira
tentativa de se pensar, em seu rigor histórico-sistemático, o lugar
e a função do que hoje se designa mediação institucional e
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 8
reconhecimento intersubjetivo. Mais que isso, embora cada um
considere o problema do reconhecimento em Hegel, a partir de
um aspecto específico e sob um viés distinto, a unidade
sistemática do todo que no conjunto da presente obra se perfaz é
garantida: (1) pela exigência do tempo presente no que tange ao
repensamento de nosso lugar no Cosmos – mas não mais
subordinados a ele, como no caso do Cosmos natural antigo e
medieval e do Mundo representado moderno e contemporâneo –
e da reestruturação de nossa vida comunitária como seres
espirituais livres. (2) Pela tentativa mesma de retomar e
desenvolver, ainda que em esferas distintas, os próprios
princípios motores da Concepção especulativa do Direito – de
fato, apenas esboçada em Hegel no que respeita ao elemento
intersubjetivo – nos quadros de seu ponto de partida histórico-
sistemático, de sua retomada fenomenológica e de seu
desenvolvimento propriamente especulativo puro. O que, de
certo modo, levando-se em conta certa dialética de atração e
repulsão que salvaguarda a liberdade das orientações que
presidem cada um dos textos apresentados a seguir, se constitui
como uma verdadeira reproposição do que Hegel chamara ponto
de vista especulativo.
No primeiro artigo, ―Eticidade e Intersubjetividade:
observações acerca da influência de Fichte sobre Hegel‖, Erick
Lima procura delinear a influência da doutrina fichteana da
intersubjetividade, tal como apresentada na Grundlage des
Naturrechts [Fundação do Direito Natural] (1796-1797), sobre a
formação do conceito hegeliano de Sittlichkeit [Vida ética ou
Eticidade]. Partindo da relação entre a concepção de
intersubjetividade e a filosofia social de Fichte, o autor expõe a
seguir a crítica do jovem Hegel ao conceito fichteano de
Comunidade política – onde, para Hegel, se conflitariam duas
concepções distintas em torno da Intersubjetividade – e,
finalmente, nos apresenta uma importante análise da famosa
crítica de Hegel à concepção do Direito em Fichte.
Respectivamente, Lima discute aí o chamado Differenzschrift
[Escrito da Diferença], de 1801, onde Hegel tematiza o sistema
fichteano da filosofia a partir de seu confronto com o de
Schelling, e o Naturrechtsaufsatz [Artigo sobre o Direito
Filosofia, Reconhecimento e Direito 9
Natural], publicado no Kritisches Journal der Philosophie
[Jornal Crítico de Filosofia] de 1802-1803; nesse artigo, tendo
como pano de fundo o próprio desdobramento de sua concepção
do Absoluto apresentada no Differenzschrift – a Identidade da
identidade e da não-identidade – Hegel lança mão de uma crítica
das tradições empirista e formalista do Direito natural moderno, a
fim de revelar a suprassunção de ambas como preâmbulo ao
delineamento do processo de auto-diferenciação do Absoluto no
plano de sua vida ética efetiva. Lima termina seu artigo
explicitando alguns pressupostos de sua leitura do
Naturrechtaufsatz, notadamente a subseqüente integração da
teoria fichteana da intersubjetividade operada por Hegel no
System der Sittlichkeit [Sistema da Vida Ética].
No segundo artigo, ―Reconhecimento intersubjetivo no
viés jus-filosófico de Hegel e Kojève‖, Agemir Bavaresco e
Sérgio Christino procuram retomar a leitura kojèviana da Luta
pelo reconhecimento em Hegel; leitura essa que, talvez por se
fixar nos limites estritos da esfera fenomenológica, se associa à
perspectiva da humanização pelo trabalho em Marx e à
contribuição existencialista em seu desenvolvimento do percurso
antropológico que conduz o homem de sua condição animal até à
condição de humanidade. Os autores mostram primeiramente o
desenvolvimento da teoria hegeliana do reconhecimento e, logo
depois, analisam o desejo antropológico de reconhecimento
como fonte da idéia de justiça em Kojève; isso, mediante a
distinção da dialética de Hegel [articulação negativa do imediato
no movimento de sua própria mediação] e a de Kojève [de
natureza dual-linear], de modo a retomar a recusa kojèviana do
dualismo ontológico e do monismo materialista como ponto de
partida para a compreensão de um processo de tipo reflexivo,
como é o caso do fenômeno jus-filosófico. Desse modo, a partir
do dualismo dialético linear instaurado com a luta pelo
reconhecimento, os autores justificam a introdução por Kojève
de um terceiro desinteressado (imparcial) como mediador das
posições litigantes, superando assim a dialética dualista linear do
senhorio e da escravidão, enquanto momento de superação do
antagonismo no embate entre os litigantes; com o que, segundo
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 10
os autores, teríamos um momento especulativo que seria o
mesmo da metodologia hegeliana.
Em seguida os autores nos apresentam a fenomenologia
da justiça, segundo Kojève, a partir do princípio de que o desejo,
conforme Hegel, quer o reconhecimento, sendo este a fonte
última da idéia de justiça. Retrata-se aí a exposição kojèviana da
idéia de justiça em sua delimitação fenomenológica, segundo os
momentos da justiça aristocrática ou a igualdade, da justiça
burguesa ou a equivalência e da justiça cidadã ou a eqüidade;
isso, em mostrando a evolução da idéia de justiça conforme uma
lógica do reconhecimento simétrico entre deveres e direitos,
entre universal e particular, bem como explicitando a
coincidência do universalismo do direito aristocrático e o
particularismo do direito burguês. O que, como tal, se funda na
compreensão dos direitos e dos deveres os mais pessoais,
enquanto exercidos pelo indivíduo, se mostrarem como os
direitos e deveres os mais universais, como direitos e deveres do
cidadão enquanto cidadão ou aqueles de todos e de cada um; daí
a conclusão segundo a qual o reconhecimento intersubjetivo se
dá em vários níveis de mediação sócio-jurídico-político e, por
isso, a necessidade da inserção, como complementar à de Hegel,
da teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés jus-filosófico
de Kojève, como uma referência incontornável na construção de
um Direito intersubjetivo capaz de enfrentar os desafios do
tempo presente. Enfim, se de um lado, no dizer dos autores, a
elaboração de uma hermenêutica jusfilosófica de viés
intersubjetivo na complexidade da sociedade mundializada
encontra, na teoria hegeliana do reconhecimento, um pressuposto
epistemológico fundamental; de outro, ainda que limitada à
aplicação da idéia de justiça e à descrição fenomenológica de sua
tipologia, a passagem de Kojève ao especulativo – expressa em
sua aplicação das três idéias de justiça para o Direito
internacional, Direito público, Direito penal e Direito privado –
também se mostrará fundamental no cenário ético-político atual.
No último artigo, ―O Idealismo especulativo e o
problema da fundamentação ético-política da mediação
institucional e do reconhecimento intersubjetivo na filosofia
prática contemporânea‖, Manuel Moreira da Silva tematiza o
Filosofia, Reconhecimento e Direito 11
papel das instituições como elemento mediador entre os
indivíduos, em situação de reconhecimento recíproco; isso, a
partir do que o autor considera a retomada e o desenvolvimento
da Concepção especulativa do Direito tal como estabelecida por
Hegel. O ponto de partida do artigo consiste no reconhecimento
de algumas insuficiências da filosofia hegeliana no tocante ao
problema da Intersubjetividade, sobretudo, como esfera lógico-
real da mediação dos sujeitos que não mais se circunscrevem à
esfera do Espírito subjetivo, mas que também ainda não
passaram à esfera do Espírito objetivo; os quais, embora já
tenham passado pelo reconhecimento fenomenológico, ainda não
se puseram como eus espirituais em si e para si, e uns para os
outros, perfeitamente livres – ao mesmo tempo não-idênticos e
idênticos: (1) autônomos, (2) absolutamente rígidos, (3) opondo-
se mútua resistência e, no entanto, (1) não-autônomos, (2) não
impenetráveis, (3) de certo modo confundidos – e, por isso, ainda
não se puseram em situação de reconhecimento intersubjetivo
como seres espirituais, reconhecendo-se a si mesmos como tais
no Absoluto. Neste sentido, o autor se propõe a elaborar um
esboço do que seria a esfera intermediária posterior ao Espírito
subjetivo e anterior ao Espírito objetivo, a qual se desenvolve no
plano de uma Filosofia do Espírito intersubjetivo ou das
Instituições, de onde o mesmo limitar-se aos problemas atinentes
à atividade prática do Espírito livre em seu vir-a-ser objetivo.
Bem entendido, não nos quadros da objetividade constituída – as
instituições instituídas ou objetivadas do Direito, da Moralidade
e da Eticidade, que, como tais, se apresentam como elementos
operativos ou constitutivos no interior dessas subesferas – e sim,
do Ato pelo qual a instituição do que quer que seja se instaura
como tal nesse Ato mesmo enquanto o próprio Instituir.
Partindo da questão fundamental segundo a qual a
solução dos problemas da mediação institucional e do
reconhecimento intersubjetivo não pode se limitar à revinculação
do Jurídico ao Político, mas tem que fundá-la em um plano
estritamente lógico-metafísico, o autor se põe a discutir com
Vittorio Hösle sobre os limites e as especificidades do tratamento
hegeliano da mesma. Para isso, o autor lança mão de um
desenvolvimento do que ele próprio designa os limites e
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 12
contradições das concepções não-especulativas do Direito e, mais
precisamente, da Razão prática, enquanto circunscrita ao
horizonte de sua destranscendentalização de um lado, e, de
outro, de sua retranscendentalização. Disso resulta o
reconhecimento, pelo autor, de pelo menos duas contribuições
dessas concepções para a Concepção especulativa do Direito tal
como ele mesmo pretende expô-la. De um lado, a dissolução
realista interna do dualismo kantiano de noumeno e fenômeno ou
de coisa em si e aparência tal como desenvolvida por Habermas;
de outro, a reproposição da postulação kantiana de ―eus
noumenais e atemporais‖, agora como constituintes de uma
estrutura intersubjetiva absoluta, que tomam decisões éticas,
sem que as mesmas estejam sujeitas à lei causal, desenvolvida
pelo Idealismo objetivo de Hösle. Enfim, o autor conclui seu
artigo, buscando esclarecer a efetivação do Espírito como
Universal ativo que se particulariza na multiplicidade dos
espíritos finitos, livres de determinações causais espácio-
temporais; pelos quais – em sua relação consigo e com os outros,
instituída no processo de mediação institucional e
reconhecimento intersubjetivo – ele concretiza sua própria
universalidade ativa, em se singularizando sob a forma de uma
Comunidade Ideal do Espírito.
Com esses três estudos em torno da concepção hegeliana
do reconhecimento recíproco, Filosofia, reconhecimento e
Direito insere-se na perspectiva da Filosofia do Direito ou,
melhor dito, pretende estabelecer um diálogo interdisciplinar
jusfilosófico. Neste livro, tendo por horizonte a problemática
contemporânea da luta pelo reconhecimento, nossa atenção
voltou-se, especificamente, à filosofia do Direito hegeliana,
expondo temas e problemas de sua elaboração teórico-prática,
conforme os enfoques dos autores. Esperamos, desta forma,
apontar para importância deste debate e o aprofundamento e
atualização do pensamento hegeliano para o Direito.
Os organizadores
Filosofia, Reconhecimento e Direito 13
A. Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da
influência de Fichte sobre Hegel
Erick Calheiros de Lima1
1. Intersubjetividade e direito em Fichte
No universo temático que forma a Wissenschaftslehre2,
Fichte parte de uma distinção entre espontaneidade e liberdade.
Para ele a diferença entre estes termos é que a liberdade supõe
consciência do agir livre, ao passo que a espontaneidade, como
condição de possibilidade de toda consciência, dela prescinde.
Enquanto há apenas a espontaneidade absoluta da pura
autoposição do eu, a absoluta identidade a si e a contínua
superação de todo limite, pelo intuir de si mesmo, não pode
haver autoconsciência propriamente dita da liberdade, a qual
requer separação entre sujeito e objeto e um movimento reflexivo
de retorno a si, a partir desta separação – ou, na terminologia
imortalizada por Fichte, a partir do choque (Anstoß). A faculdade
prática absoluta é mera espontaneidade sem consciência do seu
agir livre: somente mediante um outro independente de si o eu
pode pôr a si mesmo conscientemente como ser-para-si, somente
1 Doutorando em Filosofia pela Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas). 2 Nos referimos aqui não simplesmente à obra de Fichte publicada em 1794
com o título Grundlage des gesamten Wissenschaftslehre, mas também às
obras de filosofia prática publicadas com a designação nach den Prinzipien
der Wissenschaftslehre, isto é, a Grundlage des Naturrechts (1796/1797) e o
System der Sittenlehre (1798). O contexto sistemático da primeira
Wissenschaftslehre também é consideravelmente ampliado por textos
programáticos, como é o caso das Vorlesungen über die Bestimmung des
Gelehrten (1794) ou mesmo pelas Vorlesungen compaginadas como
Wissenschaftslehre nova methodo (1798). A citação das obras completas é
feita com base na edição Fichte, J. G Werke em 20 volumes, Editadas por
Immanuel H. Fichte, Walter De Gruyter, Berlin,1971. A partir de agora
utilizaremos a abreviação GNR para a Grundlage des Naturrecht nach den
Prizipien der Wissenchaftlehre, e Sittenlehre para o System der Sittenlehre
nach den Prizipien der Wissenchaftlehre, ambos presentes no volume 3 da
referida edição.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 14
sob a condição da posição de um não-eu se torna possível a
consciência-de-si da atividade como livre.
Fichte introduz uma importante modificação na
arquitetônica da filosofia prática ao localizar o ponto de partida
do sistema real de liberdade – e, por conseguinte, da ―ciência real
do direito‖3 – não na vontade pura, mas na vontade finita. Desta
maneira, o ponto de partida da concepção fichteana de
comunidade se vê vinculado à investigação ―transcendental‖ das
condições de possibilidade de consciência efetiva da liberdade.
Na medida em que a autoconsciência individual tem como uma
de suas condições a interação (Wechselwirkung) com outra
vontade, abre-se com isso um novo terreno para a teoria
liberdade, a saber: o terreno da constituição intersubjetiva da
liberdade individual4.
3 Quatro importantes comentadores de Fichte defendem, de maneira diversa, a
tese de que a Grundlage des Naturrechts contém rupturas na sistemática,
bem como divergências em relação à obra fichteana posterior. Enquanto
Baummans vê não somente ausência de rigor lógico na dedução do conceito
de direito, mas também uma ruptura intransponível entre a obra sobre o
direito e a doutrina-da-ciência de 1794, Schottky identifica, no procedimento
filosófico de Fichte após a dedução do conceito de direito nos §§ 1-4, um
retorno ao direito natural de Hobbes. Principalmente a visão de Baummans
quanto à incoerência entre o direito natural e a filosofia primeira é ratificada
pela obra de Verweyen, através do recurso às obras posteriores de Fichte
sobre o direito. Contra todas estas interpretações posiciona-se Ludwig Siep,
para quem as principais incoerências da obra de Fichte se tornam aparentes,
se se puder interpretar o método utilizado pelo filósofo desde a abertura da
obra como uma forma prototípica do método de exposição segundo
―experiências da consciência‖, mais tarde assimilado pelo próprio Hegel.
Verweyen, H. – Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre,
München, 1975; Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein
Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972 Siep, Ludwig – „Einheit
und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts――, in: Siep, Ludwig–
Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992,
41-64 4 Para Ludwig Siep, o método de dedução transcendental empregado na
dedução do conceito de direito se caracteriza por uma modificação tão
intensa deste conceito herdado por Kant que se deixa derivar desta
modificação um conceito de experiência da consciência. Ludwig Siep (1992).
Este método se caracteriza decerto pelo intento geral de fornecer as ações
cognitivas e volitivas que têm de ser pressupostas como condições de
possibilidade da consciência da eficiência livre. Entretanto, esta aplicação
Filosofia, Reconhecimento e Direito 15
O conceito de individualidade é... um conceito recíproco
(Wechselbegriff), isto é, um conceito que somente em
relação a um outro pensar pode ser pensado, e que é
condicionado, segundo a forma, pelo mesmo – e, na
verdade, por um igual – pensamento. Ele somente é
possível em um ser racional, na medida em que é posto
de maneira conclusa por um outro. Portanto, ele não é
nunca meu, e sim, segundo minha admissão (Geständnis)
e a admissão do outro, meu e seu, seu e meu. É um
conceito comunitário (ein gemeinschaftlicher Begriff),
no qual duas consciências são unificadas na unidade.5
É Fichte, portanto, que introduz a idéia de que o
indivíduo como tal, considerado isoladamente e apartado da
interação ―real‖ em que se encontra, desde sempre e que constitui
o ―a priori‖ que condiciona sua consciência-de-si como
indivíduo, nada mais é do que uma abstração. O ser humano é
um gênero, e o indivíduo somente é livre e consciente de si como
tal, em meio a outros seres humanos6. A posição de si é
condicionada pela posição do outro, de maneira que o eu não
pode existir como tal sem relação ao outro. Para Fichte, a
consciência da liberdade não é um estado em que a auto-reflexão
revela uma faculdade previamente dada, ou um fato da razão,
mas um processo de encontrar-se a si mesmo através de
―choque‖ com outros seres humanos. Estas concepções formam a
geral do intento transcendental da Wissenschaftslehre representa uma
extensão metodológica na medida em que passa do âmbito das condições de
uma unidade subjetiva e da consciência da objetividade na base de uma
espontaneidade absoluta para a unidade transcendental de um sujeito que é
um ser racional finito. 5 GNR, 47/48 6 ―O ser humano (da mesma forma que todos os seres finitos em geral) só se
torna ser humano entre seres humanos; e como ele não pode ser outra coisa a
não ser um ser humano – e não seria mais nada, se ele não fosse isto que ele é
– se devem haver de algum modo seres humanos, então tem de haver
muitos.‖ [GNR, 39] ―...isto é uma verdade que deve ser provada estritamente
a partir do conceito de ser humano. Tão logo se determina completamente
este conceito, é-se impelido do pensamento de um indivíduo à aceitação de
um segundo, a fim de se poder explicar o primeiro. O conceito de ser humano
não é, pois, o conceito de um indivíduo – pois um tal ser é impensável –, mas
o conceito de um gênero.‖ [GNR, 39]
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 16
gênese da teoria fichteana da intersubjetividade nos escritos de
1794 a 1798, baseada no modelo Aufforderung/Anerkennung.
Com sua ligação entre intersubjetividade e teoria da
consciência, Fichte antecipa a teoria hegeliana do
reconhecimento, especialmente em sua versão mais tardia, que se
notabiliza, justamente, por uma primazia na consideração do
papel do processo de reconhecimento para a teoria da
consciência7 em detrimento de uma discussão sobre temas
relativos à filosofia prática. Uma distinção que deve ser levada
em conta quando se aborda o problema do reconhecimento em
Fichte, desenvolvido em sua teoria do direito, é o fato, não
especialmente visível para a maioria dos comentadores8, de que
7 Segundo Wildt e Honneth, na compreensão fenomenológica da teoria do
reconhecimento desde a Fenomenologia, o processo de reconhecimento não
pode mais ser entendido simplesmente como um caminho para a apropriação
cognitiva de uma relação de reconhecimento originária prévia, pois, neste
novo âmbito em relação à teoria do reconhecimento em Jena, Hegel não
pressupõe mais uma ―eticidade natural‖ do amor na relação familiar. Ver
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im
Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 360 e Honneth, Axel–Kampf
um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1992, 73. Em sua crítica à compreensão fenomenológica
da teoria do reconhecimento, Honneth acredita que ela tenha, através de um
―re-direcionamento para a teoria da consciência‖, obstruído a possibilidade
de se pensar o processo de reconhecimento como um processo de formação
da autonomia pessoal, o que teria como decorrência um ―modelo
substancialista de eticidade‖. No entanto, há que se pensar se esta leitura não
poderia ser considerada equivocada. Somente através deste re-
direcionamento, no Systemenentwurf de 1803/1804, foi possível a Hegel a
superação da representação tradicional de natureza como essência das
conexões ordenadoras estruturadas teleologicamente e a ocupação paulatina
com a autonomia do indivíduo. Na verdade, a compreensão antiindividualista
da eticidade enquanto substância espinosana é muito mais ferrenha nos textos
políticos da primeira fase do período de Jena, como o Naturrechtaufsatz e o
System der Sittlichkeit. 8 Na vertente de comentadores especialmente atentos a este fato, são dignos de
nota Siep e Honneth. Siep lembra este fato em praticamente todos os seus
textos que fazem referência à teoria da intersubjetividade desenvolvida por
Fichte no Naturrecht. Já Honneth, ao considerar a apropriação hegeliana do
conceito de reconhecimento no System der Sittlichkeit de 1802, diz : ―em seu
escrito sobre a fundamentação do direito natural‖, Fichte compreendeu o
Filosofia, Reconhecimento e Direito 17
Fichte não concebe o direito como idêntico ao processo de
reconhecimento, mas concebe este processo como uma estrutura
intersubjetiva primária, no bojo da qual as relações jurídicas
entre arbítrios se tornam possíveis: ―a toda interação arbitrária de
seres livres jaz uma interação originária e necessária dos mesmos
como fundamento, a seguinte: o ser livre necessita, através de sua
simples presença no mundo sensível, sem mais, todo outro ser
livre a reconhecê-lo como uma pessoa ... Ambos conhecem
(erkennen) um ao outro em seu interior, mas estão isolados,
como antes.‖9 É no quadro deste fundamento intersubjetivo da
possibilidade da relação (jurídica) entre arbítrios que se deixa
compreender o desenvolvimento da Grundlage a partir do §8 na
forma de uma antinomia a ser solucionada.
Pessoas como tais devem ser absolutamente livres e
simplesmente dependentes de sua vontade. Pessoas
devem, tão certo quanto elas o são, estar em influência
recíproca e, portanto, não simplesmente dependentes de
si. Como ambas as coisas possam subsistir em conjunto,
responder a isso é a tarefa da ciência do direito
(Rechtswissenschaft); e a pergunta que jaz como seu
fundamento é esta: como é possível uma comunidade de
seres livres como tais?10
Fichte pretende resolver esta antinomia, demonstrando
que a interação com o outro é condição necessária da formação
prático-cognitiva da autoconsciência individual. É na interação
com o outro que a liberdade originariamente absoluta do eu é
limitada pela liberdade do outro, uma limitação que não é
exterior ao conceito de liberdade, mas que lhe é essencial, já que
sem a limitação da atividade em si infinita do eu não seria
possível nenhuma posição do não-eu. No entanto, chama atenção
a vinculação, declarada acima, da idéia de reconhecimento ao
isolamento do indivíduo, e nisto reside a verdadeira
reconhecimento como uma interação entre os indivíduos que subjaz à relação
jurídica.‖ Honneth (1992). 9 GNR, 85/86 10 GNR, 85
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 18
conseqüência da unilateralidade do desenvolvimento dado por
Fichte ao elemento intersubjetivo, isto é, o caráter propriamente
negativo de seu conceito intersubjetivo de liberdade, que o faz
compreender a relação ao outro como essencialmente limitativa,
apesar de constitutiva para a consciência individual. Fichte não
chega a conceber a mediação intersubjetiva da liberdade
individual de uma maneira ―solidária‖ e não excludente, mas
essencialmente limitativa. Isto é bastante notório na tese
fichteana acerca da durabilidade hipotética da obrigatoriedade,
mas se torna evidente numa declaração feita por Fichte em outro
contexto, a saber: a ―fundação do saber teórico‖ na
Wissenschaftslehre de 1794. Fichte diz que ―a forma da
interação (Wechselwirkung) consiste no excluir e ser-excluído
dos membros recíprocos um pelo outro.‖11
Fichte deduz o reconhecimento recíproco como relação
que subjaz às relações jurídicas e que é, como tal, condição de
possibilidade da consciência-de-si. A idéia de que a liberdade
originariamente infinita do sujeito tem de ser limitada na relação
11 WL 1794, 195. Deve-se notar que introduzimos uma modificação na
tradução desta passagem em relação à tradução de Rubens Rodrigues. No
original, Fichte diz: ―Die Form der Wechselwirkung besteht im gegenseitigen
Ausschliessen und Ausgeschlossenwerden der Wechselglieder
durcheinander.‖. R. R traduz Wechselwirkung por alternância. Sem dúvida,
existem boas razões para esta escolha, principalmente se se considera o
contexto eminentemente teórico da declaração. Não somos partidários da tese
defendida por Philonenko e aprofundada por Rénaut de que a primeira
Doutrina-da-Ciência contenha já uma teoria da intersubjetividade, o que,
segundo Rénaut, leva a considerar que a Grundlage des Naturrechts vem
justamente resolver, graças à sua discussão intersubjetivista da categoria
Wechselwirkung, a aporia deixada pela primeira versão da Doutrina-da-
Ciência no tocante ao problema da representação. No entanto, como este
trabalho tem como ponto específico de preocupação o registro prático da
filosofia do idealismo alemão, preferimos continuar a traduzir o termo pelo
seu equivalente mais apropriado no contexto da filosofia fichteana do direito.
Ver também Philonenko, A. – L’oeuvre de Fichte , J.Vrin , Paris , 1984;
Métaphysique et politique chez Kant et Fichte, Bibliothèque d'histoire de la
philosophie / Nouvelle série , J.Vrin, Paris, 1987; e Renaut, Alain – Système
du droit : philosophie et droit dans la pensee de fichte, P.U.F, Paris, 1986;
„Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz: §4)―, in: Merle, Jean-
Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts ,
Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 19
com um outro, a fim de poder se pôr como real, é, do ponto de
vista das premissas de Fichte, bastante consistente; pois todas as
determinações são em si, inicialmente, negações e, portanto,
limitações. No entanto, resta sempre a questão acerca da
necessidade de que a relação recíproca entre sujeitos seja um
excluir recíproco. Isto se deve ao fato de que Fichte põe como
fundamento de sua teoria um indivíduo atomizado, o qual não
entra com o outro em uma relação possivelmente solidária, nem
deixa que o outro ―participe‖ da formação de sua
individualidade, mas que apenas necessita da esfera exclusiva da
alteridade, para afirmar sua individualidade. ―Eu devo ser um eu
autônomo (ein selbständiges Ich), este é meu fim-término
(Endzweck); para tudo aquilo através do que as coisas fomentam
esta autonomia, eu devo utilizá-las, este é o seu fim-término.‖12
Na abertura da teoria da intersubjetividade no System der
Sittenlehre (§ 17), torna-se mais clara a relação que Fichte
pretende existir entre o eu e o outro. A existência do outro
assume a conotação de um instrumento ao restabelecimento da
minha liberdade originária. Se, por um lado, a existência de
outros seres racionais exteriores a mim possibilita a formação
cognitiva da consciência da liberdade; por outro lado, ela é
associada univocamente ao momento negativo da necessária
limitação de liberdade individual como condição para aquela
formação. A teoria fichteana da intersubjetividade parece se
converter num subterfúgio para a corroboração individual da
própria liberdade frente aos outros; e como isto, também para o
outro somente é possível pelo asseguramento de um espaço de
liberdade, o reconhecimento parece se tornar um processo para a
produção de um excluir recíproco. Este é o significado da
―repressão jurídica‖ do reconhecimento em Fichte. A relação de
direito, deduzida a partir do reconhecimento, é compreendida por
Fichte numa adesão ao programa kantiano13
da limitação
12 Sittenlehre, 208 13 Em GNR, 52, Fichte diz: ―Eu tenho que reconhecer o ser racional fora de
mim em todos os casos como tal, isto é, limitar minha liberdade pelo conceito
da possibilidade de sua liberdade.A deduzida relação entre seres racionais,
segundo a qual cada um limita sua liberdade pelo conceito da possibilidade
da liberdade do outro, sob a condição de que o primeiro limite da mesma
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 20
recíproca. Desta maneira, o ser racional reconhecido por mim
como livre permanece sempre um limite, para além do qual não
existe minha liberdade. Fichte constrói uma filosofia social
realmente baseada no direito estrito, e por isso chega a
compreender a lei, que deve ser o ―direito natural realizado‖14
,
somente como Zwangsrecht, o qual atua com ―necessidade
mecânica‖ contra o ―egoísmo universal‖ dos indivíduos15
.
Esta identificação da coerção jurídica com o ―direito
natural realizado‖ se baseia numa concepção negativa da
liberdade do indivíduo. ―O conceito de direito deve ser um
conceito originário da razão pura.‖16
Como se origina da razão
pura, o direito se constitui, para Fichte, como uma coerção
imanente17
à liberdade do indivíduo, a qual é por isso mesmo
compreendida como condição da consciência-de-si individual.
―Encontra-se na intenção deste conceito, que ele se torne
necessário, mediante o fato de que o ser racional não pode se pôr
como tal com consciência-de-si, sem se pôr como indivíduo,
como um dentre outros seres racionais, os quais ele supõe
estarem fora de si, da mesma forma como ele supõe a si
mesmo.‖18
Para Hegel, a compreensão atomística da relação
intersubjetiva, juridicamente reduzida, enquanto incapaz de
forma a sua pela do outro, denomina-se relação de direito (Rechtsverhältnis),
e a fórmula que foi agora apresentada é o princípio do direito (Rechtssatz).‖ 14 GNR, 149 15 GNR, 142/152 16 GNR, 7 17 ―Se os efeitos dos seres racionais devem poder coincidir no mesmo mundo,
ter, conseqüentemente, influência uns sobre os outros, estorvar-se e criar
impedimentos reciprocamente, então a liberdade nesta última significação
somente seria possível para pessoas, que estão nesta situação de uma
influência recíproca uns com os outros, sob a condição de que todos
encerrassem sua efetividade em certos limites e que dividissem de certa
maneira entre si o mundo como esfera de sua liberdade. Como eles são
postos livres, então um tal limite não poderia encontrar-se fora da liberdade,
pelo que ele seria suspenso (aufgehoben) e de forma alguma seria limitado
como liberdade. Antes, todos precisariam pôr-se a si mesmos este limite
através da liberdade, isto é, todos precisariam tomar-se como lei não causar
dano à liberdade daqueles com os quais se encontram em comunidade de
influência recíproca (in gegenseitiger Wechselwirkung) ‖[ GNR, 8/9] 18 GNR, 8
Filosofia, Reconhecimento e Direito 21
render uma liberdade individual positiva, torna-se tanto mais
evidente na própria intenção de compreender a ―relação
comunitária‖ como condição da liberdade individual.
Na concepção de uma gênese intersubjetiva da liberdade
individual está aglutinado o potencial ético para uma relação
positiva e mutuamente formadora das individualidades. Fichte
identifica no §3 o conceito de Aufforderung com a educação ou
formação dos indivíduos para se tornarem seres humanos. Se o
modelo de um striktes Recht conduz à investigação de condições
de realizabilidade do direito, não parece com isso ter sido tolhido
totalmente o potencial inclusivo da relação intersubjetiva. No
contexto dos §§ 8-1319
, que concerne à determinação da
realizabilidade do direito como lei coercitiva, Fichte declara que:
―a possibilidade da relação jurídica entre pessoas no âmbito do
direito natural é condicionada por fidelidade e crença (Treue
und Glauben). A crença e a fidelidade mútuas não são, no
entanto, dependentes da lei do direito: elas não se deixam coagir,
nem há um direito para tal. Não se pode coagir alguém a ter uma
crença interior na minha retidão, porque esta não se exterioriza, e
jaz, portanto, fora da esfera do direito natural.‖20
Apesar de
19 Siep vê nesta ruptura um retorno a Hobbes, na medida em que Fichte passa a
pressupor que não se encontra no indivíduo nenhuma moralidade, mas
somente amor próprio. Segundo Siep, entretanto, que a vontade de
autoconservação se contraponha à livre autolimitação não se deixa deduzir
nem do conceito de vontade, nem imediatamente como condição da
consciência-de-si.. Para Siep (1992), a ruptura que identificamos a partir do
§7 deixa-se dissipar, se se compreende o Naturrecht como baseado num
método de apresentação de experiências da consciência, de maneira que a
conexão entre livre autolimitação, egoísmo universal e lei de coerção
garantida pelo estado possa ser compreendida sem a tese de uma ruptura da
exposição e recaída no método ―pré-transcendental‖ do direito natural, isto é,
o abandono da dedução das condições de possibilidade da consciência-de-si e
do ponto de vista da consciência agente em nome de pressuposições
concernentes à antropologia, como a tese de um egoísmo universal. Para
nossa interpretação do direito natural de Fichte uma tal compreensão é sem
dúvida marcante, principalmente quando auxilia na manutenção da unidade
da obra. Entretanto, não nos parece ir contra a tese de que a repressão jurídica
do conceito de reconhecimento em Fichte acaba por limitar as
potencialidades ético-intersubjetivas do conceito de interpelação. 20 GNR, 138
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 22
Fichte ter insistido na independência do direito natural, em
relação a um vínculo ―moral‖ e positivo entre as vontades, a
possibilidade da relação jurídica é condicionada por uma relação
recíproca de confiança e de expectativa positiva de
comportamento, a qual jaz fora da esfera do direito natural, isto
é, não é realizável mediante coerção. Ora, se o reconhecimento,
enquanto relação intersubjetiva originária, fundamenta toda
relação entre arbítrios; e se toda relação jurídica tem, como
condição de possibilidade, um ―substrato‖ formado pela
inteligibilidade mútua, pela confiança e pela expectativa positiva
no comportamento do outro, é lícito supor que este estofo de
mútua compreensibilidade seja engendrado pelo – ou melhor,
seja uma outra designação para o – reconhecimento recíproco,
compreendido agora não em sua limitação jurídica, mas na
plenitude de seu potencial inclusivo como resposta à
interpelação21
. Este âmbito não pode ser coagido, ele é
originariamente engendrado como condição da
―individualização‖.
O adiantamento de confiança mutuamente atribuída
pressupõe uma comunidade de consciências, de tal maneira que o
agir, segundo esta orientação mutuamente estabelecida somente
se torna plausível, se as consciências não possuem motivos fortes
para deixar de proceder conforme uma autolimitação voluntária:
tem de se mostrar minimamente plausível para as mesmas a
opção preliminar por um respeito mútuo. Com efeito, o conceito
21 Sob o título de ―repressão jurídica do conceito de reconhecimento em
Fichte‖, espera-se aqui compreender, na linha de Ludwig Siep (1992), aquele
processo pelo qual, segundo Fichte, a relação de reconhecimento recíproco se
sobrepõe ao paradigma da interpelação, na medida em que ela, enquanto
resultado de uma limitação da liberdade por uma solicitação intersubjetiva,
não pode ser compreendida de imediato como educação em seu sentido mais
geral, como formação prática da individualidade em seu sentido mais
profundo. Eis porque, com a qualificação de uma repressão jurídica
pretendemos dar conta desta redução da intersubjetividade que Siep identifica
ao propor uma interpretação da passagem entre os §§ 3 e 4 como uma
reflexão da consciência interpelada, como uma conseqüência que a
consciência que se forma retira da experiência de interpelação, a qual
somente confere sentido à compreensão que propõe Fichte deste
desenvolvimento como educação.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 23
jurídico de reconhecimento parece limitar a riqueza e o potencial
de uma concepção participativa e inclusiva de intersubjetividade
que, entretanto, poderia ser percebida no escopo mais geral da
interpelação como formação ou educação. Não é difícil ver que
Hegel pretenderá reconhecer no potencial não excludente desta
compreensão da intersubjetividade, na mútua implicação de
unidade e diferenciação das consciências, a estrutura dialética do
espírito, o que o conduzirá, na consecução de seu conceito de
eticidade, a enunciar como preâmbulo, para o chegar-a-si da
individualidade um modo plenamente acabado de
intersubjetividade, um nexo de mútuo reconhecimento de que
ele, sob o nome de amor, atribui aos estágios ainda naturais de
uma existência comunitária. Neste sentido, quando pretendemos
que uma concepção não excludente de intersubjetividade se
sobreponha como um negativo da repressão jurídica do conceito
fichteano de reconhecimento, pretende-se com isto sustentar a
tese de que, em vista do problema de demonstrar aplicabilidade
do direito e de torná-lo um conceito real, o egoísmo fundamental,
cuja reversão é tarefa da coerção sob o estado, somente pode ser
introduzido na exposição fichteana, através de uma experiência
da perda de confiança. Por conseguinte, se este quadro geral de
uma expectativa positiva, com respeito ao comportamento do
outro for atribuída, em sua gênese e possibilidade, às
potencialidades não coercitivas da interpelação, resta ao conceito
de direito, fundado sobre o reconhecimento recíproco e cuja
aplicabilidade é o objetivo da teoria mostrar uma limitação das
potencialidades daquela relação intersubjetiva.
2. A crítica de Hegel na Differenzschrift: dois modelos de
intersubjetividade
Pretende-se, aqui, não promover um apanhado geral da
crítica hegeliana à concepção fichteana do estado, mas antes
chamar atenção para o fato de que, na constituição do conceito
hegeliano de eticidade, que se pode localizar nos primeiros anos
de Jena, um papel de suma importância é desempenhado pela sua
Auseinandersetzung com a concepção fichteana de
intersubjetividade. Pretende-se mostrar que a constituição do
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 24
conceito hegeliano de eticidade no Naturrechtaufsatz e no System
der Sittlichkeit, o qual se caracteriza, em primeiro lugar, por uma
decantação filosófico-especulativa das investigações sobre a
intersubjetividade em Frankfurt, tem seu impulso mais essencial
no que, num primeiro momento, é uma refutação da
intersubjetividade, ―juridicamente reprimida‖, da filosofia social
de Fichte; mas também que, por outro lado, o itinerário trilhado
pela filosofia social de Hegel, nos anos subseqüentes em Jena, e
que contém a prefiguração da forma definitiva da filosofia do
―espírito objetivo‖, somente se torna possível por uma re-
assimilação e revalorização do viés jurídico do conceito
fichteano de reconhecimento. Do ponto de vista do resultado das
investigações de Hegel sobre a intersubjetividade em Frankfurt,
este movimento de distanciamento e reaproximação em relação à
concepção fichteana de intersubjetividade, movimento que
contribuirá à amplitude normativa do conceito hegeliano de
eticidade, diz respeito sobretudo à possibilidade de aglutinar, por
um lado, a intuição frankfurtiana da intersubjetividade como
superação da dicotomia entre o universal da pura consciência-de-
si e o particular da consciência-de-si empírica ou individual; e,
por outro lado, a intuição propriamente fichteana de que os
momentos de formação das individualidades e de sua unificação
numa ―consciência universal‖ se condicionam reciprocamente22
.
Hegel pretende que Fichte, apesar de ter apreendido o
ponto de partida especulativo, propriamente dito na unidade de
ser e pensar, não procedeu, na construção do sistema, de maneira
condizente com este princípio; e isto porque, segundo Hegel,
manteve irredutivelmente separadas a atividade incondicionada
da consciência-de-si (Eu=Eu) e a consciência empírica, limitada
pelo não-eu23
. O elemento que desempenha um papel importante
22 Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie,
Freiburg/München, 1976, 52/53 23 Na Differenzschrift e em Glauben und Wissen, Hegel chega a discutir, sob a
luz de sua caracterização geral da auto-suspensão da reflexão na razão
especulativa, aspectos intrincados das filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, e
até mesmo a oferecer uma caracterização sistemática da ―completude de
formas‖ da filosofia da reflexão. Um estudo sobre a sua profundidade – e
mesmo plausibilidade – excederia o intento deste trabalho e talvez tivesse de
Filosofia, Reconhecimento e Direito 25
na crítica hegeliana à moral e ao direito formalistas, é a
dicotomia entre pura consciência-de-si e consciência-de-si
efetiva, pela qual se expressa o enunciado fichteano da dicotomia
absoluta entre subjetividade e objetividade, cujo desdobramento
é importante para as ―ciências reais‖ 24
. ―O ater-se firmemente à
subjetividade da intuição transcendental, por meio do qual [o] Eu
permanece um sujeito-objeto subjetivo, aparece de maneira que
mais salta aos olhos na relação do eu com a natureza, em parte
na dedução da mesma, em parte nas ciências que se fundam
sobre isso.‖(TWA 2, 72) Trata-se para Hegel, principalmente, de
oferecer, a partir da crítica ao subjetivismo em que permanece o
absoluto da filosofia fichteana, uma compreensão da gênese da
contraposição absoluta entre razão e natureza. ―Na apresentação
e dedução da natureza, tal como ela é fornecida no Sistema do
Direito Natural, mostra-se a contraposição absoluta da natureza e
da razão e a dominação da reflexão em toda a sua dureza‖(TWA
2, 79). Para Hegel, a relação da razão à natureza interior ou
exterior ao homem é uma ―síntese do dominar‖, e a natureza é,
em suas múltiplas formas, apenas algo ―determinado e morto‖. A
perseguir o fio condutor da crítica de Hegel em suas obras de maturidade,
onde diversos pontos estão melhor decantados. No entanto, na tentativa de
promover a passagem à crítica do ―formalismo do entendimento prático‖,
parece profícuo delimitar os contornos da crítica hegeliana ao primeiro
sistema de Fichte. Na medida em que Glauben und Wissen concentra-se, à
exceção de ataques à filosofia do direito de Fichte, muito mais na obra
Bestimmung des Menschen, de 1800, cabe aqui chamar antes a atenção para
os elementos contidos na Differenzschrift. Para a citação das obras de Hegel
estamos utilizando o seguinte texto. Hegel, G. W. F. Werke em 20 volumes –
Auf der Grundlage der Werke Von 1832-1845 neu ed. Ausg., Ausg. in
Schriftenreihe „Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft― / [Red. Eva
Moldenhauer und Karl Markus Michel] – Frankfurt am Main : Suhrkamp. A
referência a este texto ao longo do trabalho será feita através da sigla TWA e
o número da página. 24 Este itinerário é, de resto, o fio condutor da crítica hegeliana na
Differenzschrift. ―Na seguinte apresentação do sistema fichteano deve-se
tentar mostrar que a pura consciência, a identidade de sujeito e objeto
estabelecida no sistema como absoluta, é uma identidade subjetiva de sujeito
e objeto. A apresentação vai tomar o itinerário de provar o eu, o princípio do
sistema, como sujeito-objeto subjetivo, tanto imediatamente, quanto no modo
de dedução da natureza e, especialmente, nas relações da identidade nas
ciências particulares da moral e do direito natural‖ (TWA 2,50)
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 26
natureza é deduzida, segundo Hegel, no tocante à filosofia
teórica, apenas como condição da autoconsciência, enquanto que,
na filosofia moral e na filosofia social de Fichte, ela é deduzida
apenas como limitação, tanto como impedimento necessário ao
esforço infinito, quanto como condição exterior do agir livre.
Esta absoluta contraposição entre natureza e razão é o
que propriamente dá origem à crítica hegeliana às concepções
jurídico-morais de Fichte. Para Hegel, a concepção fichteana de
comunidade humana, compreendida como um sistema ético e
jurídico de autolimitações e de limitações recíprocas, subordina
tanto a natureza pulsional dos seres humanos considerados
individualmente, quanto suas relações espontâneas uns aos
outros. A absoluta contraposição de razão e natureza se
transforma numa relação de negação recíproca entre a liberdade
limitada dos direitos e deveres, e a liberdade absoluta do eu puro.
A idéia de comunidade como limitação implica a idéia de que,
em comunidade, a liberdade absoluta tem que ser renunciada.
Contra esta concepção, Hegel lança mão do substrato de todas as
suas intuições de juventude que se ligam ao caráter plenamente
livre da vida pública: o ideal de uma comunidade como a mais
elevada liberdade, uma comunidade viva enquanto uma ―relação
recíproca da vida, verdadeiramente livre e infinita, isto é, bela‖
(TWA 2, 82).
Portanto, para Hegel, as insuficiências especulativas de
Fichte se tornam ainda mais evidentes, na medida em que está
subjacente às suas contribuições à filosofia prática e à filosofia
da natureza aquela forma ―mais concreta‖ da contraposição
absoluta entre sujeito e objeto, a qual Hegel compreende como
―contraposição entre razão e natureza‖; e que, na medida em que
se funda na exterioridade intransponível da natureza em relação
ao conceito, converte-se numa relação de dependência. ―Esta
relação de dependência da natureza ao conceito, a contraposição
da razão sobressai mais ainda devido às conseqüências que se
seguem, daí em ambos os sistemas da comunidade dos seres
humanos.‖ (TWA 2, 81) O caráter funesto destas conseqüências
se revela sobretudo na renúncia a uma concepção não limitativa e
plenamente livre da comunidade humana – compreendida tanto
como relação intersubjetiva, quanto no que concerne à relação
Filosofia, Reconhecimento e Direito 27
entre indivíduo e estado – em nome da sua compreensão em
termos essencialmente individualistas e atomísticos.
Somente se a idéia é, primeiramente, finitizada através
disso: que ela é contraposta a uma esfera empírica e posta
enquanto [esfera] espiritual e, em seguida, esta esfera /
espiritual é, ela mesma, desmembrada qualitativamente,
mais uma vez, numa multidão infinita de átomos
espirituais, subjetividades, enquanto cidadãos de uma
coisa que se chama reino do espírito, pode se falar de
conseqüências espirituais. (TWA 2, 427/428)
É a partir deste diagrama geral que Hegel pretende
mostrar, nos primeiros escritos de Jena, que, na ―doutrina da
ciência aplicada‖, revelam-se as mesmas insuficiências que
acometem o arcabouço mais fundamental do pensamento
fichteano: o subjetivismo e o formalismo intransponíveis ao
princípio fichteano da identidade de sujeito e objeto.
Primeiramente, Hegel segue sua intuição do período de Frankfurt
de que a dominação do universal vazio sobre o particular, que
caracteriza o formalismo prático de Kant e Fichte, mostra-se
tanto no âmbito intra-subjetivo da consciência moral, quanto na
esfera intersubjetiva das relações de direito. Para Hegel, o que
diferencia a dominação do conceito formal na esfera moral da
dominação, na esfera do direito é que, neste caso, a exterioridade
mútua de universal e singular se revela como contraposição
absoluta da vontade universal e da vontade individual enquanto
exteriores uma à outra, ao passo que aquela contraposição é
considerada, na esfera moral, como devendo ser superada no
interior do indivíduo.
A doutrina dos costumes tem em comum com o direito
natural que a / idéia domine absolutamente o impulso, a
liberdade domine absolutamente a natureza. Entretanto,
eles se diferenciam em que, no direito natural, a sujeição
de seres livres sob o conceito é, em geral, absoluto
autofim (absoluter Selbstzweck), de maneira que o
abstraktum fixado da vontade comum esteja também fora
do indivíduo e tenha poder sobre ele. Na doutrina dos
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 28
costumes o conceito e a natureza têm de ser postos como
unificados numa e na mesma pessoa. No estado somente
o direito deve dominar, no reino da eticidade somente o
dever deve ter poder, na medida em que ele é reconhecido
pela razão do indivíduo enquanto lei. (TWA 2, 87/88)
Com efeito, o ponto comum entre ambas as ―realizações‖
práticas da dominação sob o universal vazio é uma ―absoluta e
fixa polaridade de liberdade e necessidade‖, a qual não permite
―pensar em nenhuma síntese e em nenhum ponto de indiferença‖
e pela qual ―a transcendentalidade se perde totalmente no
fenômeno e em sua faculdade, o entendimento.‖ Desta maneira,
diz Hegel, a identidade absoluta ―não pode se resolver
verdadeiramente nem para o indivíduo no ponto de indiferença
da beleza do ânimo e da obra, nem para a comunidade livre
completa dos indivíduos numa associação (Gemeinde).‖ (TWA
2, 90) Entretanto, esta concepção, que tem suas raízes na crítica
da filosofia prática ensaiada em Frankfurt, não mais é
considerada em sua indiferença para com a ―interiorização do
senhor‖, mas antes a relação de dominação sobre a natureza
pulsional do indivíduo, que se processa pela interiorização do
universal formal, revela, frente à exterioridade mútua de vontade
universal e vontade singular, seu caráter ―mais inatural‖25
; pois,
enquanto o direito formalista supõe que ―a crença na unicidade
do interior com o exterior não se dá‖; por outro lado, na moral,
se ... o mandante é transferido para o próprio ser humano,
e nele são absolutamente contrapostos um mandante e um
sujeitado, então a harmonia interior é destruída. Não-
unicidade e cisão absoluta constituem a essência do ser
humano. Ele tem de procurar por uma unidade, mas, no
25 ―Ser seu próprio senhor e escravo parece, na verdade, ter uma vantagem
diante do estado em que o ser humano é o escravo de um estranho.
Entretanto, a relação (Verhältnis) da liberdade e da natureza, se acaso, na
eticidade, ela deve se tornar uma dominação e escravidão subjetiva, uma
opressão própria da natureza, se torna muito mais inatural do que a relação
(Verhältnis) no direito natural, no qual o mandante e detentor do poder
aparece como um outro que se encontra fora do indivíduo vivo.‖ (TWA 2,
88)
Filosofia, Reconhecimento e Direito 29
caso de uma não-identidade que jaz no fundamento, resta-
lhe tão-somente uma unidade formal. (TWA 2, 88)
Para os propósitos do presente trabalho convém,
sobretudo, sublinhar que o programa da crítica hegeliana ao
direito natural de Fichte nos ―textos especulativos‖ dos primeiros
anos de Jena (Differenzschrift e Glauben und Wissen), não se
limita somente a uma crítica a um certo modelo de estado, ou
melhor, a um certo modelo de relação entre o indivíduo e o
estado, mas antes diz respeito fundamentalmente a um modelo
jurídico de intersubjetividade dos indivíduos em comunidade
política. Primeiramente, o problema para Hegel é que a
comunidade política é compreendida como uma rede de relações
limitativas e definidoras das esferas de ação e cuja finalidade é
propiciar a vida em comunidade de liberdade exterior: ―esta
comunidade de seres racionais, aparece enquanto condicionada /
pela limitação necessária da liberdade, a qual dá a si mesma a lei
de se limitar.‖ (TWA 1, 81/82) Que, no direito natural de Fichte,
a ―comunidade ... seja representada como uma comunidade de
seres racionais, a qual tem de pegar o atalho pela dominação do
conceito‖ (TWA 2, 81); e o estado, compreendido como
subsunção26
dos indivíduos sob o universal exterior, ―o inteiro
edifício da comunidade de seres vivos ... seja erguido pela
reflexão‖ (TWA 2, 81), tem seu fundamento, para Hegel, numa
compreensão limitativa da intersubjetividade social que torna
inviável a recuperação, na esfera comunitária, da identidade
originária da razão, enunciada como ponto de partida do sistema.
―Cada ser racional é um duplo para o outro: a) um ser racional,
livre; b) uma matéria modificável, um apto (ein Fähiges) a ser
tratado como mera coisa.‖ (TWA 2, 81) É nestes termos que
Hegel compreende que a matriz intersubjetiva da teoria fichteana
do direito dilacera de maneira irreconciliável a unidade da razão
viva e livre e a transforma numa multidão atomística de seres
racionais que revelam, cada um em si mesmo e para o outro, a
26 ―O direito deve acontecer, mas não enquanto liberdade interior, mas sim
enquanto liberdade exterior dos indivíduos, a qual é um ser-subsumido dos
mesmos sob o conceito, que lhes é estranho.‖(TWA 2, 425)
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 30
heterogeneidade absoluta da liberdade e da matéria modificável
que os ―compõem‖ individualmente. ―Esta separação é absoluta
e, desta maneira, assim como ela uma vez jaz no fundamento da
sua inaturalidade, nenhuma relação pura (reine Beziehung)
[deles] um em face do outro é mais possível, e toda relação é um
dominar e ser-dominado conforme leis de um entendimento
conseqüente.‖ (TWA 2, 81)
Para Hegel, o estado fichteano se constitui pela
ampliação ―vertical‖ de uma estrutura limitativa de relação
intersubjetiva ou horizontal às diferentes esferas da interação
social, uma estrutura que Hegel compreende, seguindo sua
investigação em Frankfurt, como tributária da racionalidade,
fundada na reflexão, e que se depara com o outro tal como se
defronta com um objeto manipulável, e cujo exercício
intrasubjetivo aparece no embate virtuoso entre o impulso ético e
a natureza impulsiva. ―O direito natural se torna, através da
oposição absoluta do impulso puro e do impulso natural, uma
apresentação da completa dominação do entendimento e
escravidão do vivo‖ (TWA 2, 87) A contraposição absoluta e
irreconciliável no interior do indivíduo entre o impulso vazio
para a liberdade e para a autodeterminação e o impulso natural
ou Naturtrieb, estão, para Hegel, necessariamente conectadas à
compreensão fichteana de comunidade, como um ordenamento
jurídico que, muito embora se veja impelido ao melhoramento,
conforme a razão, vê-se condenado a permanecer eternamente no
âmbito de um Notstaat, numa esfera da ampliação indefinida da
matriz jurídica de uma intersubjetividade individualista e
atomística (Verhältnis) a toda e qualquer relação comunitária
(Beziehung), pelo quê se faz renúncia a ter que ―tornar
prescindíveis as leis através dos costumes‖ (TWA 2, 83/84).
―Este estado (Stand) da necessidade é afirmado como direito
natural e, na verdade, não de maneira que seu fim supremo fosse
suspendê-lo e, no lugar desta comunidade conseqüente
(verständig) e irracional, construir, pela razão, uma organização /
da vida livre de toda escravidão sob o conceito; mas antes o
estado da necessidade (Notstand) e sua extensão infinita sobre
todos os estímulos (Regungen) da vida valem, enquanto
necessidade absoluta.‖ (TWA 2, 83/84)
Filosofia, Reconhecimento e Direito 31
É neste sentido, portanto, que Hegel constata, na
compreensão fichteana de comunidade, que uma compreensão
essencialmente limitativa da intersubjetividade implica a total
ausência de relações (Beziehungen) que caracterizam uma
comunidade bela e livre, mas acima de tudo viva, dotada de uma
constituição orgânica. A comunidade política de Fichte é, para
Hegel, ―um edifício no qual a razão não tem nenhuma
participação e o qual ela, portanto, censura, porque ela tem de se
encontrar, de maneira mais expressa, na organização mais
perfeita que pode conferir a si mesma: na configuração de si
mesmo em um povo.‖ (TWA 2, 87) Para Hegel, a matriz da
intersubjetividade jurídica, que se caracteriza sobretudo pela
necessidade prática de limitação interior ou exteriormente
motivada da liberdade exterior do indivíduo, em nome da
liberdade exterior dos outros, reverte-se em dominação do
conceito e escravidão da natureza, isto é, em violação da beleza
da unificação vital originária dos indivíduos pelo cálculo
intelectual das condições de possibilidade de uma comunidade
em liberdade exterior. ―A liberdade é o caráter da racionalidade,
ela é o que em si suspende toda limitação e o mais elevado do
sistema fichteano. Na comunidade com os outros, entretanto, ela
tem de ser renunciada, para que a liberdade de todos os seres
racionais que estão em comunidade seja possível; e a
comunidade é, novamente, uma condição da liberdade.‖ (TWA 1,
81/82) É por trás desta violação da vida pela fixação das
limitações da liberdade que se esconde, para Hegel, o caráter
desumano e tirânico das leis reguladoras da vida comum dos
indivíduos. ―Se a comunidade dos seres racionais fosse,
essencialmente, um limitar da verdadeira liberdade, então ela
seria em si e / para si a suprema tirania.‖ (TWA 2, 82/83) Desta
consideração essencialmente negativa do teor ―jurídico‖ do
conceito fichteano de comunidade política é que se segue, para
Hegel, a transformação do princípio de liberdade absoluta numa
compreensão do estado como máquina, como construção do
entendimento, que reduz tanto relações éticas intersubjetivas,
quanto a relação entre indivíduo e estado a um ―dominar e ser-
dominado segundo regras de um intelecto conseqüente‖.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 32
Mas aquele estado do entendimento não é uma
organização, mas uma máquina, o povo não [é o corpo
orgânico de uma vida comum e rica, mas uma pluralidade
atomística e pobre de vida, cujos elementos são
substâncias absolutamente contrapostas, em parte uma
porção de pontos, de seres racionais, em parte matérias
multiplamente modificáveis pela razão – isto é, nesta
forma: pelo entendimento – elementos cuja unidade é um
conceito, cuja ligação é um dominar sem-fim. (TWA 2,
87)
Com efeito, para Hegel, o colapso formalista da
identidade originária da razão pela sua fixação na ―metade‖
supra-sensível do sujeito transforma a liberdade verdadeira, que
se objetiva em relações intersubjetivas ―solidárias‖ ou ―não-
excludentes‖, numa liberdade subjetivizada e apenas negativa,
exercida em relações intersubjetivas empobrecidas pelo caráter
essencialmente limitativo:
o conceito do limitar constitui o reino da liberdade, no
qual cada relação recíproca (Wechselverhältnis)
verdadeiramente livre, para si mesma infinita e ilimitada,
isto é, bela da vida, é aniquilada por meio disso: que o
vivo no conceito e matéria é lacerado, e a natureza é
posta em sujeição (Botmässigkeit). (TWA 1, 81/82)
A partir desta concepção negativa da liberdade do
indivíduo que faz valer sua esfera de um agir, de acordo com a
razão, pode-se reconduzir a crítica hegeliana à filosofia social de
Fichte ao embate entre duas concepções de liberdade. A partir de
Jena, o princípio fundamental da filosofia prática de Hegel é o
princípio da unidade de liberdade objetiva e subjetiva, ao passo
que a Fichte se reprova a fixação em um conceito eminentemente
subjetivo de liberdade. ―A liberdade tem de suspender a si
própria para ser liberdade. Evidencia-se novamente a partir disso
que liberdade aqui é somente um mero negativo, a saber:
indeterminidade absoluta, ou seja, assim como foi mostrado a
respeito do pôr-se a si mesmo, é um fator ideal – a liberdade
considerada do ponto de vista da reflexão.‖ (TWA 1, 81/82)
Filosofia, Reconhecimento e Direito 33
Obviamente, ambos são herdeiros diretos da compreensão
kantiana de que a autodeterminação perfaz a essência da
liberdade. Entretanto, enquanto Fichte se prende à idéia da
indeterminidade do ―pôr-se a si mesmo‖, Hegel pretende que a
unidade entre sujeito e objeto somente seja plenamente racional,
quando compreendida como totalidade, isto é, na medida em que
se entenda por liberdade o configurar-se a si mesma da razão
numa totalidade, objetivação da livre autodeterminação, a qual,
caso contrário, permanece apenas subjetiva e formal. Neste
embate se encontra o sentido maior daquela célebre sentença pela
qual Hegel, no Naturrechtaufsatz, marca a gênese de seu
conceito de liberdade absoluta a partir da crítica especulativa ao
livre-arbítrio e à compreensão jurídico-formalista do problema da
coerção: ―uma liberdade para a qual houvesse algo realmente
exterior e estranho, não é nenhuma liberdade: a essência dela e
sua definição formal são, justamente, que nada há de
absolutamente exterior.‖ (TWA 2, 476) Um tal conceito de
liberdade se distingue completamente do conceito formal de
liberdade como independência, justamente porque a concepção
desta autodeterminação formal concebe como exterior a si aquilo
de que quer se fazer independente, de maneira que, segundo
Hegel, a independência ou autonomia não satisfazem a uma
caracterização plenamente racional da liberdade, mas consistem
antes numa determinação da reflexão para a qual subsiste algo
exterior à racionalidade. Eis porque a liberdade racional de Hegel
se constitui em embate ferrenho contra a concepção reflexiva da
liberdade como inapelavelmente imersa na contradição, isto é,
contra o livre arbítrio, o conceito negativo de liberdade, a
indeterminidade. Para Hegel, o arbítrio, ―a contingência tal como
é enquanto vontade‖, ou ―a vontade enquanto
contradição‖(LFFD §15)27
, nada mais é do que a decantação
desta compreensão formal e finitizada da liberdade que é
somente engendrada pela autonomização do momento unitário da
27 Tradução de Marcos Lutz Müller: ―Linhas Fundamentais da Filosofia do
Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado no seu Traçado
Fundamental‖. Texto completo em fase de publicação. Versão gentilmente
cedida pelo tradutor. A partir daqui, LFFD.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 34
razão concreta, uma compreensão à qual Hegel opõe a acepção
verdadeira da liberdade enquanto unidade dialética da identidade
ou do ser-um e da não-identidade ou do contrapor.
Por conseguinte, diante desta teoria inovadora da
verdadeira liberdade, torna-se possível um conceito não
limitativo da liberdade individual, isto é, a do indivíduo que se
objetiva em relações intersubjetivas ―solidárias‖ ou ―não-
excludentes‖ como constitutiva de relações vitais, relações éticas
plenamente racionais e, por isso mesmo, condições da identidade
dos indivíduos. Se, no quadro geral da matriz intersubjetiva da
concepção fichteana de interação social, ―o direito tem de
acontecer, mesmo que, para isso, confiança, prazer e amor, todas
as potências de uma identidade genuinamente ética, tenham de
ser, como se diz, completamente extirpadas‖ (TWA 2, 87); para
Hegel, um outro tipo de intersubjetividade é mais condizente
com sua compreensão não limitativa de liberdade individual: ―a
comunidade da pessoa com outra tem, por isso, de ser vista não
como uma limitação da verdadeira liberdade do indivíduo, mas
antes como uma ampliação da mesma.‖ (TWA 2, 82) Para Hegel,
é, justamente, no âmbito de uma relação intersubjetiva solidária,
não-excludente, não-limitativa, não-individualista que a
liberdade individual encontra sua verdade e, pela suspensão de
sua fixação na subjetividade da independência e da
indeterminação, encontra-se objetivada no mundo. ―Através de
uma comunidade genuinamente livre de relações vivas
(Beziehungen) o indivíduo renunciou à sua indeterminidade, que
se compreendia como liberdade. Na relação viva (in der
lebendigen Beziehung) somente há liberdade, na medida em que
ela encerra em si a possibilidade de suspender a si mesma e de
travar outras relações (Beziehungen), isto é, a liberdade é,
enquanto fator ideal, nulificada.‖ (TWA 2, 83)
É verdade que Hegel permite, na Differenzschrift e em
Glauben und Wissen, que se compreenda apenas muito
indiretamente, a partir de sua crítica à intersubjetividade e à
compreensão de comunidade política em Fichte, o que ele
mesmo compreende como sendo o genuinamente livre e
Filosofia, Reconhecimento e Direito 35
verdadeiro conceito de comunidade28
. Em tais escritos, Hegel
não deixa claro como deve se configurar politicamente esta
28 Baumanns (1972) compreende a crítica hegeliana à filosofia social e política
de Fichte, especialmente em sua forma apresentada na Differenzschrift, no
registro geral da refutação daquela tese acerca do desenvolvimento do
idealismo alemão imortalizada por Richard Kroner e segundo a qual as
filosofias de Fichte e Schelling deveriam ser consideradas como estágios no
desenvolvimento da concepção de filosofia do idealismo absoluto de Hegel.
Kroner, Richard – Von Kant bis Hegel, Tübingen, 1961. Neste sentido, a
crítica hegeliana tanto aos princípios fundamentais do idealismo fichteano
como à sua filosofia social são marcadas, para Baumanns, por uma tentativa
mais ou menos manifesta de Hegel de encontrar em Fichte os prenúncios
tanto de sua concepção de filosofia especulativa, quanto de seu conceito de
liberdade absoluta.(Baumanns, 141). Entretanto, segundo Baumanns,
enquanto a crítica da Differenzschrift à doutrina-da-ciência é desferida a
partir de uma posição que Hegel não mais abandona no desenvolvimento
subseqüente de seu sistema – qual seja, a dialética da razão absoluta –, a
crítica hegeliana à filosofia político-jurídica de Fichte se baseia sobretudo
numa concepção ético-política que, ao contrário, Hegel abandonaria no
desenvolvimento posterior (Baumanns, 143). Aquilo que aqui nós
gostaríamos de perceber como uma re-aproximação de Fichte e uma absorção
da estrutura intersubjetividade jurídica no quadro mais amplo de uma teoria
dos estágios de intersubjetividade que contribuem para a gênese da
identidade entre o indivíduo e a comunidade na eticidade absoluta – processo
que, sem dúvida, encontra ecos tanto nos Jenaer Systementwürfe, quanto nas
versões da Enciclopédia, assim como na própria teoria da eticidade moderna
nas Grundlinien – Baumanns vê apenas como o sinal de que Hegel vai
paulatinamente abandonando, pela absorção da gewalthabendes Gesetz ou
mesmo da Rechtspflege no quadro mais amplo do desenvolvimento da
eticidade, o projeto inicial que se vincula à Differenzschrift: a concepção
excessivamente ligada à idealização juvenil da polis grega de uma
comunidade bela, livre e viva. Neste sentido, para Baumanns, o próprio
desenvolvimento da filosofia política de Hegel em Jena já marca este
processo pelo qual a idéia jenense original de substituir leis pela imediatidade
mediatizada dos costumes é simplesmente abandonada por uma revalorização
do papel a ser desempenhado pela estrutura da intersubjetividade jurídica na
construção do conceito de eticidade (Baumanns, 144 e seg.). Por outro lado,
o presente trabalho se filia a uma concepção deste desenvolvimento que
remonta aos trabalhos de Ludwig Siep (1976) e Axel Honneth (1992). O fato
de que a estrutura formal da intersubjetividade jurídica tenha sido
paulatinamente incorporada ao processo de gênese da eticidade absoluta não
significa, de maneira nenhuma, que o projeto de uma compreensão não
individualista de comunidade tenha sido abandonado. O direito e os modos
de ação recíproca associados ao paradigma jurídico-moral de
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 36
interação viva dos indivíduos uns aos outros, ou entre os mesmos
e a vontade comum da comunidade. Entretanto, Hegel já antecipa
que, primeiramente, a razão se encontra mais expressamente a si
mesma em sua autoconfiguração em um povo (TWA 2, 87); em
segundo lugar, que, nesta totalidade ética orgânica do povo, a
comunidade humana encontra, politicamente, sua expressão
plenamente racional, que nadifica as contraposições da reflexão:
―a mais elevada comunidade é a mais elevada liberdade, tanto
segundo o poder, quanto segundo a execução – a mais elevada
comunidade, na qual, contudo, justamente a liberdade, enquanto
fator ideal, e a razão, enquanto contraposta à natureza, são
inteiramente anuladas.‖ (TWA 2, 82). Finalmente, para Hegel,
nesta totalidade orgânica, a natureza ética tem sua ―efetividade,
intersubjetividade são compreendidos por Hegel como um estágio de
desenvolvimento da totalidade ética e parecem estar nela conservados
enquanto garantia institucionalizada de proteção à identidade da pessoa. Por
outro lado, o estágio da relação intersubjetiva efetivada na totalidade ética do
povo traz em seu bojo não somente esta garantia institucionalizada de
respeito universal à pessoa na forma de direitos individuais e que se funda na
limitação recíproca da liberdade de ação, mas sobretudo o reconhecimento e
reafirmação por parte do outro e da comunidade como um todo de aspectos
singulares da formação da identidade individual. É neste sentido que
interpretamos aqui a tese de Honneth segundo a qual o estágio de
intersubjetividade que se efetiva ao nível da eticidade absoluta contém, além
dos aspectos eminentemente negativos e limitativos da intersubjetividade
jurídica, também a afirmação de possibilidades individualizadas de formação
das identidades, cujo espectro é considerado em geral como a esfera ética de
uma ―solidariedade social‖. No System der Sittlichkeit, Honneth pretende ver
alcançado este estágio de relação intersubjetiva no início do capítulo sobre
eticidade absoluta com a consideração acerca da wechselseitige Anschauung
dos indivíduos. ―Em sua apresentação da ―eticidade absoluta‖, que se segue
ao capítulo sobre o crime, é afirmado, como fundamento intersubjetivo de
uma futura comunidade, uma relação específica entre os sujeitos, para a qual
se encontra aqui a categoria de ―intuição recíproca‖: o indivíduo ―vê-se‖ em
todo outro como a si mesmo. Com esta formulação, Hegel... tentou
caracterizar uma forma superior de relação recíproca entre os sujeitos. Tais
modelos de um reconhecimento que chega até o elemento afetivo, para a
qual se oferece sobretudo a categoria de ―solidariedade‖, devem
manifestamente fornecer a base comunicativa sobre a qual os indivíduos
isolados uns dos outros pela relação de direito, possam se reencontrar mais
uma vez no quadro mais amplo de uma comunidade ética.‖
Filosofia, Reconhecimento e Direito 37
na qual o eticamente infinito, ou o conceito, e o eticamente finito,
ou a individualidade, são pura e simplesmente um.‖ (TWA 2,
425)
A relação genuinamente ética entre o indivíduo e o
universal é abordada com considerável amplitude já no
Naturrechtaufsatz, numa discussão que tem seu cume na
decantação, sob a forma de uma Ständelehre de forte inspiração
platônica, da compreensão da relação entre a eticidade absoluta
do povo e a eticidade na perspectiva do singular, o momento
inorgânico da vida ética na esfera econômica da persecução dos
interesses particulares regulada pelas relações de direito privado.
Entretanto, se o objeto privilegiado do Naturrechtaufsatz é esta
absorção da eticidade na perspectiva da singularidade à
totalidade ética do povo, o processo mesmo de como esta
eticidade absoluta da comunidade política se constitui como
resultado do desenvolvimento da perspectiva individual, o qual
perpassa diversos níveis intersubjetivos de relação que são
conservados na totalidade do povo – dentre os quais a própria
dimensão jurídica do contato entre pessoas dotadas de direito –
jaz fora de seu interesse essencialmente crítico e programático.
Também em System der Sittlichkeit, a organicidade da eticidade
absoluta converge para uma Ständelehre similar àquela do
Naturrechtaufsatz e de forte inspiração platônica, em que a
relação do indivíduo à comunidade se vê atrelada à tese geral da
―tragédia no ético‖, isto é, ao auto-sacrifício do absoluto ao
inorgânico com vistas a se reconciliar, abarcando em si o
individualismo e a eticidade relativa da esfera jurídico-
econômica, com o destino engendrado, na história universal, pelo
destacamento do ―burguês‖ da eticidade imediata da polis antiga
e a elevação do Privatleben à categoria de modus vivendi
tipicamente moderno. Contudo, no System der Sittlichkeit, Hegel
se, vê pela primeira vez, envolvido, no registro da filosofia
social, com a tarefa traçada na Differenzschrift para a filosofia de
construir o absoluto, a partir da reflexão: no System der
Sittlichkeit, Hegel descreve o processo da gênese da eticidade
absoluta na totalidade do povo tendo como ponto de partida a
subjetividade singular do sentimento prático que se contrapõe ao
mundo, como esfera da satisfação de suas carências. Este
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 38
processo se desenvolve também, segundo estágios prévios de
relação intersubjetiva entre os seres humanos e que, ao fim e ao
cabo, são conservadas em sua ―verdade relativa‖ e incompleta na
totalidade ética do povo. É justamente, neste contexto, que se
abre com System der Sittlichkeit que tem início a reaproximação
de Hegel com a concepção ―juridicamente reprimida‖ do
reconhecimento em Fichte: a limitação recíproca e o
reconhecimento omnilateral da liberdade de ação dos indivíduos,
seja no que concerne ao estofo originário de inteligibilidade que
as torna possível, seja em seu papel imprescindível na efetivação
ética da orientação universal pela persecução dos interesses
privados, ou ainda no potencial normativo inerente às
possibilidades de seu rompimento efetivo, é assimilado ao
processo de gênese intersubjetiva da plena reconciliação entre o
universal da comunidade e o indivíduo. De maneira geral, este
movimento de revalorização da intersubjetividade fundacional do
direito natural de Fichte29
, bem como sua ―generalização‖ na
forma da vinculação de suas condições de possibilidade e de
efetivação a outros níveis do Zusammenleben humano, é a tônica
dos ―esboços de sistema‖ do período jenense anterior à
Fenomenologia, os quais, em sua compreensão da relação entre
direito e eticidade, prenunciam o esquema geral do sistema
tardio, segundo o qual a unidade ética da eticidade natural da
família, cindida em seus momentos pelo advento do ethos
individualista da sociedade moderna, é recuperada no âmbito
político-público da cidadania do estado ético.
3. Intersubjetividade e Einssein: o Naturrechtaufsatz
A peculiaridade e a percepção fundamental do programa
para a construção do ―sistema da eticidade‖, lançado com o
Naturrechtaufsatz está sobretudo em que a compreensão
verdadeira da eticidade somente pode ser alcançada, se a
perspectiva do absoluto organicamente efetivado em um povo se
sobrepõe à existência social em sua perspectiva individualista,
29 Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts― in: Studien zu Hegels
Rechtsphilosophie, Frankfurt am Main, 1969, 42-74
Filosofia, Reconhecimento e Direito 39
nadifica-a e a reintegra em si como um momento seu. Esta
percepção fundamental se concretizará, como já mencionado,
numa Ständelehre de inspiração platônica, pela qual Hegel
espera absorver na totalidade ética do povo, como fundamento
para sua concepção de reconciliação ou integração política, a
dilaceramento da vida ética imediata pela intensificação do
modus vivendi próprio às sociedades modernas. Numa
perspectiva histórica, este dilaceramento se processa pelo
destacamento, a partir da vida plenamente pública, de um âmbito
eminentemente individualista de realização da liberdade, de uma
esfera da vida econômica regulada pelos princípios jurídico-
privados, na qual os indivíduos, contrapondo-se entre si como
pessoas privadas, são ―liberados‖ para a persecução de seus fins
e interesses particulares. Para Hegel, é somente nesta esfera
destacada e reabsorvida na totalidade ética do povo, nesta cisão
do absoluto consigo mesmo e reintegração (a)dentro de si de seu
momento de diferença, que a ―eticidade do singular‖ obtém –
quer como um sistema de ―virtudes públicas‖, quer como um
sistema de prescrições jurídico-morais que reflete as exigências
normativas dos dispositivos jurídicos reguladores da atividade
econômica – sua verdade. Neste movimento, a ―eticidade do
singular‖ tem expostas as condições do amortecimento de suas
tendências político-comunitárias desagregadoras.
Resta muito pouco a fazer no que diz respeito a
promover uma compreensão adequada das reflexões presentes no
texto de 1802/180330
. O alvo privilegiado deste trabalho no que
30 Na análise de temas discutidos no Naturrechtaufsatz, o presente trabalho se
encontra numa situação mais ―complicada‖ do que aquela que M. L. Müller
retrata na introdução de seu brilhante artigo sobre o importante texto
hegeliano. ver Müller, Marcos L. –―O direito natural de Hegel:
pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo‖, in: Filosofia
Política. Rio de Janeiro, RJ: , n.5, p.41 - 66, 2003. Esta situação se explica
pelo fato de que, além da interpretação genial fornecida por Bernard
Bourgois ver Bourgeois, Bernard – Le Droit Naturel de Hegel (1892-1803)-
Commentaire: Contribuition à l´étude de la genèse de la spéculation
hégélienne à Iéna, Paris, 1986, a qual, para além da discussão precisa do
texto, confere ao artigo de Hegel importante papel não só na solidificação e
tematização de suas principais teses ético-políticas, mas ainda na elaboração
de sua filosofia especulativa como um todo, temos também diante dos olhos a
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 40
concerne ao Naturrechtaufsatz não é tanto aquilo que poderia ser
compreendido sob o tópico geral do ―processo de auto-
diferenciação do absoluto prático‖(Müller 2002), o qual
direciona a crítica especulativa ao ―formalismo do entendimento
prático‖ e à sua compreensão do nexo social, fundado na coerção
como preâmbulo para a ―demonstração‖ especulativa da pertença
do indivíduo à totalidade ética do povo, bem como para a
recuperação na modernidade do teor sócio-integrador próprio à
tese aristotélica da ―anterioridade da polis sobre o indivíduo‖.
Pretende-se, aqui, lançar bases para a conexão, nos dois
primeiros textos de filosofia prática em Jena, o Naturrechtaufsatz
e System der Sittlichkeit, entre a relação indivíduo-comunidade,
recente, concisa e excepcional interpretação de Müller acerca da articulação
entre a crítica do formalismo, empreendida na segunda parte do artigo, e a
parte propriamente positiva, a terceira parte, na qual Hegel delineia pela
primeira vez seu programa para um ―sistema da eticidade‖. Na medida em
que Müller se ocupa principalmente da gênese do processo de
―autodiferenciação do absoluto prático‖ enquanto totalidade ética a partir da
crítica ao formalismo da concepção fichteana de comunidade política e da
suspensão da infinitude absolutamente negativa da filosofia da reflexão – e
isto com vistas a tematizar, pela via da consideração dos conceitos de
liberdade absoluta e de pertença do indivíduo à comunidade ética, o resgate
hegeliano da tese aristotélica da ―anterioridade da polis sobre o indivíduo‖
em face do individualismo e atomismos próprios às doutrinas modernas do
direito natural – torna-se com isso, aliado à amplitude da obra de Bourgeois,
o fundamento da interpretação que aqui desejamos utilizar acerca do ―direito
natural‖. Outrossim, vinculada a esta interpretação principal, há que se
mencionar também a obra de Kimmerle, que se constitui, enquanto resultado
de um trabalho especialmente importante de datação dos escritos de Jena,
como um marco dentro da Hegelforschung ver Kimmerle, Heinz – Das
Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der
Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST), bem
como o recente e competente artigo de Cruysberghs ver Cruysbergs, Paul –
―Hegel´s critique of modern natural law‖ ‖, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel
on the ethical life, religion and philosophy , 1793 – 1807, 81-117. Para
além destes trabalhos, deve-se incluir ainda o formidável livro de
Schnädelbach, o qual permite a visualização das conexões que podem ser
estabelecidas entre o Naturrechtaufsatz e os demais textos hegelianos sobre
filosofia prática, especialmente o System der Sittlichkeit, os Jenaer
Systementwürfe e as Grundlinien. ver Schnädelbach, Herbert – Hegels
praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer
Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000
Filosofia, Reconhecimento e Direito 41
compreendida segundo o ―processo de autodiferenciação do
absoluto prático‖ e a questão, que já faz parte de System der
Sittlichkeit, de que modo e como esta relação de
autodiferenciação da substância ética suscita uma compreensão
do processo de apresentação da totalidade ética como contendo
níveis de intersubjetividade, dentre os quais se constituem a
intersubjetividade íntima e afetiva dos membros da família, a
relação jurídica do respeito recíproco à esfera de ação da pessoa
e o pleno reconhecimento ―solidário‖ dos cidadãos no âmbito
público da comunidade. O intuito geral desta investigação seria o
aprofundamento da tese segundo a qual os primeiros textos de
filosofia prática de Jena propiciariam a integração da filosofia
política clássica e do direito natural moderno na forma de uma
unificação entre a concepção aristotélica da ―anterioridade da
polis‖ e a concepção jusnaturalista hobbesiana-espinosana31
. Tal
31 Ilting, Karl-Heinz – „Hegels Auseinandersetzung mit der aristotelischen
Politik―, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die
wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer
Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,
Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 759-785 Neste célebre artigo, Ilting
sustenta conexões interessantes capazes de indicar o teor da integração
promovida por Hegel entre a filosofia política clássica e as teorias modernas
do direito natural. Em primeiro lugar, segundo Ilting, o programa de um
―sistema da eticidade‖, delineado no Naturrechtaufsatz e levado a termo
graças ao alinhamento de Hegel à Potenzenmethode de Schelling no System
der Sittlichkeit, caracteriza-se sobretudo por uma equiparação da doutrina
espinosana da substância infinita, à qual Hegel adere imediatamente depois
da Seinsmetaphysik do período de Frankfurt graças à influência do projeto
schellingniano de mediação entre Kant e Espinosa, com a doutrina
aristotélica da comunidade política. Esta equiparação permite a Hegel
fundamentar a primazia do positivo ou do povo no fato de que este, enquanto
substância que se diferencia, é primordial em relação ao negativo ou ao
indivíduo. Segundo Ilting, esta intenção hegeliana de recuperar a
determinação espinosana da relação entre a substância e suas modificações
no interior da discussão político-filosófica definida pela relação aristotélica
entre indivíduo e estado, se processa na contramão da própria intenção
espinosana: esta equiparação ultrapassa a compreensão espinosana do direito
natural, na medida em que Espinosa não compreende, em nítida vinculação
às concepções jusnaturalistas de Hobbes, o estado segundo o paradigma
aristotélico de uma efetividade primordial da comunidade em face do
indivíduo. Neste sentido, Ilting compreende o projeto hegeliano traçado nos
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 42
aprofundamento consistiria na percepção da importância do
conceito fichteano de intersubjetividade, o qual se liga,
principalmente, à dedução da Rechtsverhältnis, para este projeto
de integração. Lançar bases para que se possa futuramente fazer
ver na consecução, por parte de Hegel, do programa geral de
desenvolvimento conceitual da eticidade segundo níveis de
intersubjetividade, uma integração de Aristóteles e Fichte32
seria
o objetivo primordial do presente artigo.
primeiros textos de filosofia prática em Jena como uma tentativa de unificar
visceralmente a política de Aristóteles com o direito natural tal como ele é
compreendido pelo pensamento político que se inicia com Maquiavel, passa
por Hobbes e chega até Espinosa. Esta tese de leitura Ilting pretende
confirmar sobretudo apelando à estrutura tripartite de System der Sittlichkeit.
Para Ilting, nesta chave de leitura, três autores teriam sido significativos para
Hegel. Primeiramente Maquiavel, cujas teses políticas pragmáticas incapazes
de ultrapassar os limites da prudência política somente com Hobbes
adquiriram fundamentação filosófica rigorosa (Honneth 1992). À
incontestável influência de Hobbes nas concepções hegelianas desta fase em
Jena e que se vinculam à luta por reconhecimento já se aludiu de maneira
bastante consistente. ver Siep, Ludwig –„Der Kampf um Anerkennung. Zu
Hegels Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer Schriften―, in: Hegel-
Studien (1974), 155-209 32 Uma tal tendência interpretativa encontra respaldo na mais recente pesquisa
sobre a datação dos manuscritos jenenses de Hegel. Em 2002, foi reeditado
na Alemanha aquele manuscrito hegeliano de 1802-1803, copiado por Karl
Rosenkranz, publicado por Georg Lasson com o título de ―System der
Sittlichkeit‖ [in G.W.F Hegel, Sämtliche Werke, Band 7, Schriften zur Politik
und Rechtsphilosophie,Leipzig, 1913, 415-499]. Nesta nova edição,
preparada por Horst D. Brandt e prefaciada por Kurt Rainer Meist, defende-
se, com excelente embasamento técnico, a tese de que não só a presumida
data de composição está errada, mas que, possivelmente, não se trata no texto
de um trabalho preparatório de Hegel acerca daquilo que depois seria
apresentado, de maneira completa, como a filosofia do espírito objetivo, e
sim de uma crítica sistemática da teoria fichteana do direito natural, ou pelo
menos de parte de uma obra projetada por Hegel com este objeto. Em vista
das pesquisas técnicas levadas a termo com o fim de confirmar esta tese,
Brandt publica a reedição do texto com o seguinte título: G.W.F Hegel,
System der Sittlichkeit [Critik der Fichteschen Naturrechts], Hamburg:
Meiner, 2002. O System der Sittlichkeit representaria este interessante híbrido
na trajetória do desenvolvimento de Hegel, no qual a correção do
individualismo e atomismo próprios ao direito natural moderno, cuja forma
melhor acabada é o ―formalismo do entendimento prático‖, através do
recurso às concepções aristotélicas a respeito da ―anterioridade da pólis‖ –
Filosofia, Reconhecimento e Direito 43
A concepção do absoluto em voga no Naturrechtaufsatz
é decerto tributária da crítica hegeliana à filosofia da reflexão nos
primeiros anos em Jena, mas diferentemente matizada33
; e isto
tanto em virtude da intenção de promover a visualização do
absoluto ético em seu processo de autodiferenciação, quanto no
que concerne à progressiva adesão à filosofia de Schelling,
adesão que não é ainda completa na Differenzschrift ou em
Glauben und Wissen34
, mas se aprofunda nos textos de filosofia
correção que se realiza certamente pelo itinerário de uma equiparação da
polis aristotélica com a substância espinosana e se condensa na teoria da
autodiferenciação do absoluto prático –, encontra a possibilidade, suscitada
pela teoria fichteana da intersubjetividade, de apresentar o desdobramento da
totalidade ética na forma de uma superposição de paradigmas de relação
intersubjetiva que são conservados na efetivação da liberdade como
comunidade. Neste processo pelo qual a teoria fichteana da intersubjetividade
é absorvida na constituição da eticidade, também a importância dada por
Hegel à relação dos indivíduos que, no momento da reprodução material da
vida social, deparam-se como proprietários é consideravelmente aumentada,
ao passo que também as teses herdadas de Aristóteles com respeito à
eticidade natural da família também são reintegradas ao desdobramento da
comunidade ética na forma de um estágio de relação intersubjetiva. Não seria
um exagero, portanto, ver nesta integração de Fichte e Aristóteles o
nascedouro do plano definitivo de desdobramento da eticidade, e nem o
estabelecimento da conexão propriamente hegeliana entre eticidade e direito. 33 Não convém aqui tecer uma consideração pormenorizada das continuidades e
descontinuidades entre a Differenzschrift e o Naturrechtaufsatz. Para uma
compreensão segura deste tópico, indicamos os seguintes trabalhos:
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels
„System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der
HST); Horstmann, R – „Problem der Wandlung in Hegels Jenaer
Systemkonzeption― in: Philosophische Rundschau, 19, 1973, pp. 87-118;
Meist, Kurt – „Hegels Systemkonzeption in der frühen Jenaerzeit―, in: Hegel
in Jena, pp 59-79. Especialmente no que diz respeito à relação entre Hegel,
Schelling e a ―administração‖ de sua herança espinosana, ver: Cruysbergs,
Paul – ―Hegel´s critique of modern natural law‖ ‖, in: Wylleman, A. (ed.) –
Hegel on the ethical life, religion and philosophy , 1793 – 1807, 81-117 34 Para uma consideração das principais divergências nas concepções do
absoluto em Hegel e Schelling, principalmente naquilo que, nos primeiros
anos da estadia de Hegel em Jena, fora costumeiramente considerado desde
o século XIX como uma adesão total, ver: Düsing, Klaus – „Die Entstehung
des Spekulativen Idealismus―, in: Transzendentalphilosophie und
Spekulation, hg. v. Walter Jaeschke, Hamburg, 1994, 144-163; Düsing, Klaus
– „Spekulation und Reflexion. Zur Zusammenarbeit Schellings und Hegels in
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 44
prática, na forma de um alinhamento mais direto de Hegel com a
metafísica espinosana da substância – como expediente para a
compreensão da relação comunidade/indivíduo enquanto relação
substância/modificações 35
–; e alcança seu apogeu na utilização
do método das potências de Schelling, tanto na gênese da
liberdade absoluta no Naturrechtaufsatz, como na tentativa mais
ou menos artificial36
de submeter o desdobramento da
Jena―, in: Hegel-Studien 5 (1969), 95-128. No contexto em que estamos
trabalhando, é especialmente notável a consideração de que, ao contrário de
Hegel, que concebe como acesso apropriado ao absoluto a unidade de
reflexão e intuição, Schelling continua a se vincular ao privilégio do acesso
pela via da intuição intelectual. Ver: Siep, Ludwig – Der Weg der
Phänomenologie des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels
„Differenzschrift“ und „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000 35 Ver a penúltima nota sobre artigo de Ilting 36 Schnädelbach (2000) atribui o caráter fragmentário do System der Sittlichkeit
não simplesmente ao caráter inacabado do texto, mas sobretudo à tomada de
consciência por parte de Hegel da impossibilidade de utilizar o método das
potências de Schelling como princípio de construção da filosofia prática. Para
Schnädelbach, esta impressão é suscitada no leitor principalmente na parte
destinada à tentativa de sistematização segundo as potências dos motivos e
elementos da concepção da eticidade absoluta, onde o material parece
simplesmente não mais querer se submeter ao esquematismo do método.
Acerca de certas artificialidades na exposição, Schnädelbach diz: ―o que
Hegel pratica aqui metodicamente é a cunhagem particular de um apriorismo
conseqüente, segundo o qual tudo que nós podemos saber seriamente nós
sabemos a priori. As formulações diretivas deste método se encontram em
Schelling ... na introdução ao Esboço de um sistema de filosofia da natureza.
‖(111) Schnädelbach identifica, nestas insuficiências de método, o abandono
por parte de Hegel da tentativa de construir sua filosofia prática a partir da
subsunção alternada de conceito e intuição. Para ele, ―o Sistema da Eticidade
é o resultado problemático da tentativa de Hegel de repetir, na filosofia
prática, a concepção schellingniana de uma física especulativa. Mas sempre
se apresenta novamente que os dados empíricos não queiram se mobilizar em
favor do construído a priori. Isto tem início já com a construção do ―povo‖
enquanto intuição da totalidade do ético. Empiricamente restituível é isto
apenas com o recurso a um helenismo estilizado de maneira classicista no
mais alto grau e às auto-imagens que se encontram disto em Platão,
Aristóteles e no trágicos.‖(112) A virulência desta colocação certamente
impõe limites à tentativa de resgatar elementos pertinentes à concepção
hegeliana de intersubjetividade forjada a partir da assimilação da teoria
fichteana do reconhecimento. Neste ponto, entretanto, seguimos a
Filosofia, Reconhecimento e Direito 45
comunidade ética ao método de subsunção recíproca de conceito
e intuição. Assim, o projeto jenense de oferecer uma correção do
exacerbado individualismo em que incorrem as modernas teorias
do direito natural, através do recurso à filosofia política clássica
tem que ser compreendido dentro do desenvolvimento geral do
pensamento de Hegel: tem suas raízes na adesão frankfurtiana ao
ideário da Vereinigungsphilosophie e na posterior identificação
com a filosofia da identidade de Schelling, de maneira que se
enquadra no projeto de conhecimento absoluto do absoluto.
Diante da crítica hegeliana à filosofia da reflexão, pode-se dizer
que o objetivo desta correção não é uma ―restauração‖ pura e
simples do ideal político-comunitário da polis grega, mas antes a
demonstração da negatividade intrínseca à absolutização da
liberdade individual e do elemento social em que esta se realiza:
a atividade econômica juridicamente regulada. De acordo com a
tese jenense da ―cisão como fator da vida‖, se a negatividade da
esfera de exercício da liberdade individual tem de ser relativizada
em face do positivo da plena realização da liberdade na
comunidade, isto somente pode ocorrer não pela supressão pura e
simples deste momento, mas apenas pela demonstração de seu
caráter de momento do todo – um momento ao qual,
especialmente em circunstâncias modernas, cabe um devido
direito de existência.
Quaisquer que sejam as inovações introduzidas pela
concepção hegeliana do absoluto no Naturrechtaufsatz, em
relação à adesão anterior, à filosofia da identidade de Schelling,
elas devem ser consideradas como pano de fundo diante do
objetivo primordial do artigo: lançar mão de uma crítica das
tradições empirista e formalista do direito natural moderno, que
as procura relativizar pela concepção de absoluto, a fim de
revelar a suspensão de ambas como preâmbulo ao delineamento
do processo de autodiferenciação do absoluto ético. Portanto, a
interpretação de Honneth, para quem ―Hegel utiliza no System der
Sittlichkeit, enquanto forma de sua exposição, o método da subsunção
recíproca de conceito e intuição.... Entretanto, ao teor filosófico-social do
escrito o procedimento metódico permanece, se acaso eu vejo corretamente,
amplamente exterior.‖ (Honneth 1992)
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 46
medida utilizada na crítica do direito natural é o que Hegel
chama de idéia da eticidade absoluta e que corresponde ao modo
do aparecimento do absoluto, enquanto natureza ética, isto é,
enquanto unidade absoluta da indiferença e do momento
relacional no qual há primazia da unidade sobre a multiplicidade.
O destaque dado ao formalismo reside em que este eleva o
procedimento do empirismo ao seu conceito, de maneira que,
tomando como ponto de partida o conceito absoluto, torna-se
mais simples ―complementar‖ a concepção de absoluto em toda
sua envergadura; pois ―se nós isolássemos agora este lado da
identidade relativa e não reconhecêssemos, para a essência da
natureza ética, a unidade absoluta da indiferença e desta
identidade relativa, mas antes, o lado da relação ou da
necessidade, então nós estaríamos no mesmo ponto no qual a
essência da razão prática... é determinada... e o absoluto é
apreendido (begriffen) somente, enquanto negativamente
absoluto, ou seja, enquanto infinito.‖ (TWA 2, 457) Assim, pode-
se dizer que o ponto fundamental da crítica hegeliana a ambas
vertentes jusnaturalistas é que elas se encontram estagnadas no
momento relacional, no momento da oposição fixa entre unidade
e multiplicidade. As duas se distinguem, de acordo com Hegel,
pelo fato de o empirismo é presa de uma espécie de ―dogmatismo
dos fatos‖, de maneira que não toma consciência de que seu
proceder se caracteriza pela elevação de um momento particular
do múltiplo ao status de absoluto; o formalismo absolutiza, por
sua vez, o momento da unidade pura, da infinitude e, por meio
disso, toma consciência da relação como tal, mas, ao permanecer
nesta posição fixa e unilateral, não é capaz de mover-se até a
indiferença como momento essencial do absoluto.
Princípio e fim do formalismo é a infinitude como
negatividade absoluta, a unidade resultante do processo de
negação de toda multiplicidade finita, o absoluto negativo. Para
Hegel, esta posição é insuficiente, pois o absoluto é, ao lado de
sua unidade puramente negativa no conceito, também unidade
positiva da intuição, não somente forma absoluta, mas também
substância absoluta: o absoluto não é somente oposição de
unidade e multiplicidade, mas totalidade absoluta, unidade como
indiferença de ambos. De posse de seu princípio na unidade
Filosofia, Reconhecimento e Direito 47
puramente formal e ao abstrair da multiplicidade, o formalismo
abstrai também da indiferença entre uno e múltiplo, impede a si
mesmo de vislumbrar a nulidade da oposição destes dois termos
enquanto opostos. ―Esta ciência do ético, que fala sobre a
identidade absoluta do ideal e do real, não procede, portanto,
segundo suas palavras, mas antes a razão ética da mesma é, na
verdade e em sua essência, uma não-identidade do ideal e do
real.‖ (TWA 2, 456) O Fazit hegeliano com respeito à posição
formalista é a fixação da oposição como absoluta e a redução da
realidade ao momento relacional da causalidade recíproca
(teórica ou prática) entre unidade e multiplicidade (TWA 2,
455/456).
Esta compreensão da atitude formalista, que recupera
toda a crítica hegeliana ao universal vazio desde Frankfurt e dos
primeiros textos de Jena, está na base de sua posição de que uma
moral da razão pura prática construída formalmente, é
impossível: como o conteúdo é o que, por definição, é
absolutamente apartado da forma racional, uma determinidade
qualquer somente pode ser assimilada à forma pura de uma
maneira puramente contingente ou empírica, o que, de certa
maneira, já fora o procedimento do empirismo, ainda que
inconscientemente.
Este real está posto essencialmente fora da razão, e
somente na diferença em face do mesmo há a razão
prática, cuja essência é apreendida (begriffen) como uma
relação de causalidade sobre o múltiplo - como uma
identidade que é afetada absolutamente por uma diferença
e que não escapa para fora do aparecimento
(Erscheinung). (TWA 2, 456)
Hegel mostra, primeiramente, esta impossibilidade numa
crítica ácida da moral kantiana, a qual, apesar de não considerar
com inteira isenção à posição de Kant, é retomada, em suas
linhas gerais, no desenvolvimento subseqüente da filosofia
hegeliana. De qualquer forma, no Naturrechtaufsatz, a baliza
crítica é sempre o fato de que a absolutização da unidade vazia
traz consigo a impossibilidade da compreensão da nulidade da
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 48
oposição entre forma e conteúdo, o que implica a fixação da
eticidade individual como uma relação de dominação da unidade
sobre a multiplicidade. Para Hegel, a razão pura prática de Kant,
―ao ser desta maneira isolada, ela própria é somente a forma sem
força, abandonada pelo poder verdadeiramente nadificador da
razão, forma que assimila a si as determinidades e as abriga
sem nadificá-las, mas antes as pereniza em seu contrário.‖ (TWA
2, 468/469)
A consideração de Fichte é, decerto, mais fiel ao espírito
do direito natural fichteano e retoma questões presentes na
Differenzschrift. Mas no Naturrechtaufsatz a concepção
unilateral da comunidade política atribuída a Fichte é referida
diretamente à inobservância do momento da indiferença. Tal
como na relação interior ao indivíduo, que caracteriza a moral
kantiana, a absolutização do momento da infinitude negativa
conduz Fichte a uma compreensão do estado como um sistema
coercitivo, como uma vontade universal que se realiza enquanto
unidade coagida das múltiplas vontades dos indivíduos. Não se
pretende aqui percorrer toda a crítica de Hegel ao estado
fichteano, o que conduziria a um exame da crítica da concepção
de Eforado, bem como sua demonstração da impossibilidade de
funcionamento de um estado assim concebido37
. Mais uma vez o
que nos interessa aqui é, propriamente, a crítica hegeliana a uma
certa concepção de intersubjetividade que está por trás da
possibilidade de dominação social institucionalizada da unidade
sobre a multiplicidade. A crítica de Hegel não se dirige apenas ao
fato de que as vontades individuais têm de ser subsumidas, sob a
vontade universal da comunidade política, mas ainda mais
fundamentalmente ao fato de que devem ser coagidas pela
vontade universal a estabelecerem um ambiente intersubjetivo de
mútuo respeito aos direitos do outro.
No Naturrechtaufsatz, Hegel se ocupa, ainda que de
maneira implícita, com a compreensão fichteana de
intersubjetividade, na medida em que esta diz respeito à
constituição da comunidade, segundo os preceitos individualistas
37 Para uma leitura pormenorizada sobre a crítica hegeliana ao Eforado, ver
Müller (2002) e Bourgeois (1986)
Filosofia, Reconhecimento e Direito 49
de uma intersubjetividade ―excludente‖. Curiosamente, isto se dá
em íntima conexão com uma crítica à separação entre moral e
direito. Compreender o caráter exclusivamente conceitual que,
segundo Hegel, reveste a passagem entre a discussão da moral
universalista e o jusracionalismo fichteano, não é tão simples.
Conforme Hegel, operante nesta ―relação ulterior‖ (nähere
Beziehung) continua sendo a ―contraposição insuperável posta‖
(gesetzte unüberwindliche Trennung) que consiste na sua fixação
como uma identidade relativa (TWA 2, 468). Entretanto, assim
pensa Hegel, a discussão passa de um nível geral para um âmbito
em que a contraposição aparece em sua maneira peculiar.
O que pode facilitar a compreensão do difícil parágrafo
inicial da crítica a Fichte, no Naturrechtaufsatz, é a interpretação
que Hegel faz da separação fichteana entre moralidade e
legalidade, tendo como pano de fundo o movimento dialético do
ser-para-si, que marca a passagem da qualidade à quantidade na
lógica do ser, desenvolvida por Hegel de maneira pormenorizada,
no primeiro livro da Ciência da Lógica (TWA 5, 174 e seg) e,
resumidamente, nos §§ 96 a 98 da Enciclopédia. O ser-para-si é,
segundo Hegel, o resultado da dialética da alteração, da
passagem incessante de algo ao outro, a restauração do ser como
negação da negação. O sendo-para-si, a consumação da
qualidade, é, na medida em que contém o ser como
suprassumido, a imediatez da relação a si mesmo; mas, na
medida em que contém como suprassumidos o ser-aí e a
determinidade, é, enquanto relação do negativo para consigo
mesmo, o uno, que, pela suspensão da diferença em sua
determinidade infinita, é em si mesmo carente-de-diferença, isto
é, exclui o outro. Mas o uno é, para Hegel, não carente-de-
relação como o ser, mas relação negativa a si mesmo e, por
conseguinte, o pressuposto do múltiplo, e está incluído no
pensamento do uno o pôr-se como múltiplos. Portanto, o ser-
para-si contém em si o duplo movimento: na relação negativa do
uno consigo mesmo é sua diferenciação de si mesmo, que Hegel
compreende como repulsão ou pôr de muitos unos que se
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 50
excluem reciprocamente (Enciclopédia §97)38
; por outro lado, o
―comportar-se negativo dos muitos unos entre si‖ é, de qualquer
forma, também relação recíproca de uns com os outros, isto é,
relação do uno a si mesmo, ou atração. Se, por um lado, segundo
Hegel, a igualdade da atração e repulsão suspende o uno
exclusivo ou o ser-para-si e constitui a passagem para a
quantidade enquanto determinidade indiferente e não mais
idêntica com o ser, a asserção unilateral da repulsão do uno como
posição dos muitos unos constitui, por outro lado, o ponto de
vista da filosofia atomística, que, em geral, afirma a contingência
da atração. À compreensão, calcada na reflexão, de que os
muitos unos se comportam de maneira exclusiva e mutuamente
excludente e segundo a qual o uno ―é o repelente e o múltiplo o
repelido‖, Hegel contrapõe o progredir imanente do ser-para-si:
―é antes o uno... que é justamente isto: excluir-se de si mesmo e
pôr-se como muitos; mas cada um dos muitos é ele mesmo uno, e
por isso, ao comportar-se como tal, essa repulsão de todos os
lados se converte, assim, em seu contrário: a
atração.‖(Enciclopédia §97 adendo)
É o próprio Hegel que chama a atenção para as
ressonâncias prático-políticas de sua crítica especulativa à
compreensão atomística da matéria. O ―exemplo mais próximo
do ser para si‖ é o eu como relação infinita e negativa a si
mesmo, a ―autoconsciência como ser-para-si posto e consumado‖
(TWA 5, 175). Na Ciência da Lógica, a independência
(Selbständigkeit), ―impelida ao ápice do uno sendo-para-si‖, é
compreendida como ―independência formal que se destrói a si
mesma, o engano mais elevado e renitente que se toma pela mais
elevada verdade‖. Segundo Hegel, suas formas mais concretas
aparecem como liberdade abstrata, eu puro e então como o mal.
Esta liberdade abstrata é o ―comportamento negativo para
consigo mesmo, o qual, ao querer obter seu próprio ser, destrói o
mesmo‖. Em uma digressão que retoma o tema da reconciliação
38 Refiro-me aqui à Enciclopédia de 1830. G.W.F Hegel – Enciclopédia das
Ciências Filosóficas em compêndio: 1830; texto completo, com os adendos
orais, traduzido por Paulo Meneses, com a colaboração de José Machado. –
São Paulo: Loyola, 1995.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 51
do indivíduo criminoso com as relações vitais lesadas pela sua
posição exclusivista, tão presente nos escritos de Frankfurt, de
Jena e assimilado à discussão sobre o perdão na Fenomenologia,
Hegel diz que ―este seu fazer é somente a manifestação da
nadidade deste fazer‖ e que ―a reconciliação é o reconhecimento
daquilo contra o que o comportar-se negativo se dirige, antes
como reconhecimento de sua essência.‖(TWA 5, 192/193). Por
outro lado, a asserção unilateral da repulsão, que se mantém
numa compreensão da atração como contingente e exterior,
caracteriza a ―visão atomística‖(Enciclopédia §98), que, diz
Hegel, tornou-se ―nos tempos modernos ...ainda mais importante
no campo político do que no campo físico. Segundo esta
visão, a vontade dos singulares, como tal, é o princípio do
estado; o que atrai é a particularidade das necessidades,
inclinações; e o universal, o próprio estado, é a relação externa
do contrato.‖(Enciclopédia §98).
Para Hegel, a compreensão de que o uno forma o
pressuposto do múltiplo e de que está contida na asserção do uno
exclusivo sua necessária dispersão e diferenciação de si – e que,
por isso, a dispersão desemboca no reencontro do uno consigo
mesmo – somente é acessível ―segundo o conceito‖. Já na
representação que dá vida à ―visão atomística‖, os muitos unos
são considerados como ―imediatamente presentes‖ (Enciclopédia
§97). É justamente no sulco desta compreensão do movimento do
―conceito absoluto‖, de sua posição da multiplicidade (TWA 2,
469) e do retorno dele a si mesmo nesta multiplicidade, enquanto
contrapostos à concepção contingente e exterior da atração, que
Hegel critica a gênese da perspectiva jurídica em Fichte, que,
segundo Hegel, supõe a separação irrecuperável entre direito e
moral (TWA 2, 509).
O conceito absoluto, enquanto ele mesmo é uma
diversidade, é uma porção de sujeitos, e a estes ele é, na
forma da pura unidade, enquanto quantidade absoluta,
contraposto em face deste seu ser-posto qualitativo. Então
ambos são postos, um ser-um interior (ein inneres
Einssein) dos contrapostos, o que é a essência de ambos,
o conceito absoluto; e um estar-saparado dos mesmos,
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 52
primeiro sob a forma da unidade, na qual ele é direito e
dever, segundo sob a forma da diversidade, na qual ele
é sujeito que quer e pensa. (TWA 2, 469)
A estrutura dialético-especulativa do ―conceito absoluto‖
no Naturrechtaufsatz suporta, como seus momentos que podem
ser fixados em separado, por um lado, o ser-um qualitativo ou
intrínseco aos sujeitos particulares, a identidade interior dos
mesmos e do conceito absoluto pela qual eles, em sua dispersão,
reencontram o uno como sua essência; e, por outro lado, a
contraposição quantitativa do próprio uno, a determinidade
indiferente aos singulares, que o cinde em unidade pura e
multiplicidade, direito e dever de um lado, vontades singulares
do outro. ―Aquele primeiro lado do ser um interior E.C.L,
segundo o qual a essência do direito e do dever e a essência do
sujeito que pensa e / quer são pura e simplesmente um uno, é –
assim como em geral a abstração superior da infinitude – o lado
grandioso da filosofia kantiana e fichteana.‖ (TWA 2, 469/470)
Antecipando o teor normativo de sua concepção de eticidade
absoluta, Hegel interpreta o conceito kantiano-fichteano de
moralidade segundo o momento da indiferença, a indiferença ou
identidade absoluta dos sujeitos e do normativo. O problema para
Hegel é que este expediente, pelo qual Kant e Fichte poderiam
ter-se alçado à perspectiva da verdadeira eticidade – tal como a
razão pura ou o Eu=Eu em sua absolutidade constituíra o ponto
de partida da filosofia especulativa não resgatado pela filosofia
da reflexão – não é compreendido como momento da indiferença,
mas é, antes, fixado em seu movimento e separado da identidade
relativa, que é compreendida como relação de subsunção da
dispersividade das vontades particulares sob a unidade do
normativo, ou legalidade. Para Hegel, a posição formalista ―não
permaneceu fiel a este ser-uno, mas antes, ao reconhecer, na
verdade, o mesmo enquanto a essência e enquanto o absoluto, ela
põe da mesma maneira a separação em uno e múltiplo
absolutamente e um ao lado do outro, com a mesma dignidade.‖
(TWA 2, 470) Assim, para Hegel, diz respeito propriamente não
tanto à concepção da moralidade, mas à contraposição irredutível
da mesma à legalidade, o que se reverte também sobre ela, na
Filosofia, Reconhecimento e Direito 53
medida em que a torna extremamente unilateral, uma disposição
de ânimo ideal dos sujeitos: ao invés de ser reconhecida como o
momento de indiferença, para onde se faz reconduzir toda a
perspectiva relacional, segundo a qual as vontades particulares
são subsumidas sob a unidade vazia do dever e do direito –
perspectiva em que se dão desvios de conduta, crime e coerção –
o momento da unidade vital, a moralidade, é posta como esfera
isolada em relação à esfera isolada da legalidade. Para Hegel, o
resultado deste isolamento intransponível é a idealidade tanto do
ser-um do uno e do múltiplo, quanto de sua relação ou separação
na identidade apenas relativa, o que leva à compreensão de
ambos como apenas possíveis:
tanto não é o absoluto positivo, o que constituiria a
essência de ambos e em que eles seriam um, mas antes o
absoluto negativo ou o conceito absoluto; como ainda
aquele necessário ser-uno se torna formal, e ambas as
determinidades contrapostas, enquanto postas
absolutamente, caem em seu subsistir sob a idealidade, a
qual é, nesta medida, a mera possibilidade de
ambos.(TWA 2, 470)
Para o formalismo jurídico-moral de Kant e Fichte, os
momentos de indiferença e da relação se tornam simples
possibilidades. Tanto é possível a moralidade, enquanto unidade
essencial de direito e dever, por um lado, e das vontades
singulares, por outro; quanto é possível que ambos os lados
estejam somente em relação, isto é, que os diversos agentes se
deparem, em sua dispersão particularizada, com a unidade
normativa pura como com um particular, que os unifica apenas
exteriormente. O formalismo resulta em duas ciências do prático:
a ciência da moral, ―a qual diz respeito ao ser-uno do conceito
puro e dos sujeitos ou à moralidade das ações‖; e a ciência do
direito, ―a qual diz respeito ao não-ser-uno ou à legalidade‖. E
isto ocorre de tal forma que, ―nessa separação do ético em
moralidade e legalidade, ambos se tornam simples possibilidades
... Não é que uma seja o absolutamente positivo e a outra o
absolutamente o negativo, mas antes cada uma é ambas as coisas
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 54
na relação de uma à outra; e, por meio de que ... ambas somente
são relativamente positivas, nem a legalidade nem a moralidade
são absolutamente positivas ou verdadeiramente éticas.‖ (TWA
2, 470)
O formalismo concebe uma unidade formal de dever e
direito no sujeito ou conceito absoluto, mas, ao postular esta
unidade na moralidade das intenções e estabelecer a
possibilidade do não-ser-um desta unidade e dos sujeitos
empíricos em sua multiplicidade, contrapõe-na a eles como um
dever: faltou-lhe conceber o momento relacional como imanente
ao absoluto. Desta maneira, Hegel se vê em condições de
promover uma crítica da concepção fichteana da esfera político-
jurídica, compreendida como irreconciliavelmente apartada
daquilo que, segundo Hegel, é o momento da unidade essencial e
interior entre a razão e as vontades particulares. Para Hegel, a
conseqüência fundamental deste caráter, relativamente positivo
de legalidade e moralidade, está justamente em que a
―possibilidade de que o conceito puro e o sujeito do dever e do
direito não sejam um tem pura e simplesmente de ser posta de
maneira inapelável.‖ (TWA 2, 470) Hegel se revela um bom
leitor da obra fichteana de 1796/97, ao declarar que o direito
natural de Fichte, enquanto ciência do âmbito da legalidade, tem
a gênese de seus ―conceitos fundamentais‖ na passagem entre
autoconsciência pura e a autoconsciência empírica ou individual
(TWA 2, 470/471), passagem que, segundo Fichte, é condição
daquela autoconsciência absoluta e essencial: a espontaneidade
absoluta do eu tem de se efetivar na consciência individual da
liberdade como impulso limitado pelo mundo objetivo. Ora,
Fichte concebe assim, para Hegel, a condicionalidade do que era,
por princípio, absoluto. O resultado desta manobra é, por
conseguinte, a exterioridade de ambas: ―aquela pura
autoconsciência, a pura unidade ou a lei ética vazia, a liberdade
universal de todos, é contraposta à consciência real, isto é, ao
sujeito, ao ser racional, à liberdade singular‖ (TWA 2, 471) Para
Hegel, esta separação irreconciliável está na base da
compreensão do ético como reduzido ao momento da relação, da
separação entre sujeito e conceito da eticidade, ao âmbito legal
da razão que se contrapõe ao sujeito agente, como um Sollen:
Filosofia, Reconhecimento e Direito 55
sobre esta separação ―é fundado um sistema através do qual,
apesar da separação do conceito e do sujeito da eticidade, e,
contudo, justamente por isso, ambos devem ser unificados apenas
formal e exteriormente – e esta relação (Verhältnis) se chama
coerção.‖ (TWA 2, 471) Em vista da exterioridade mútua da
autoconsciência pura e autoconsciência efetiva, a racionalidade
das relações sociais éticas somente pode ser compreendida sob o
título geral de coerção ou subordinação do indivíduo ao
universal.
Compreender a autoconsciência universal como exterior
à autoconsciência individual é compreender, na verdade, as
vontades individuais como recíproca e irredutivelmente
exteriores entre si. Elas não constituem a partir de si uma vontade
de todos que as permeia, mas esta sua unificação lhes é antes
exterior e, por isso, representa uma coerção, uma subordinação
sob o universal. O próprio Fichte já fundamentara a necessidade
da coerção na pressuposição de um rompimento inelutável da
relação intersubjetiva, não necessariamente excludente, pela qual
se torna primeiramente possível o ponto de vista individualista
das relações jurídicas que é o ponto de vista do contratualismo: a
perspectiva das vontades individualizadas e mutuamente
exteriores. Nisto residia propriamente o potencial ético do
conceito fichteano de reconhecimento. Entretanto, o pressuposto
de uma perda inexorável daquele estofo intersubjetivo, que
responderia por um vínculo orgânico e integrador entre os
indivíduos, capaz de engendrar uma unidade sócio-política
imanente às vontades singulares e, por isso, genuinamente ética,
denuncia como a compreensão fichteana da intersubjetividade
jurídica, único paradigma de relação que se oferece à
compreensão fichteana da intersubjetividade numa comunidade
política, vê-se incapaz de vislumbrar aquela unidade que ela
mesma presume ter existido e cuja falta suscita a coerção. Para
Hegel, esta idéia geral é expressa por Fichte de uma maneira
―popular‖. O sistema coercitivo, isto é, o sistema que deve
garantir uma unificação exterior das vontades singulares é
construído sobre ―a pressuposição de que fidelidade e crença se
perderam‖ (TWA 2, 471), isto é, sob a pressuposição de que uma
relação intersubjetiva solidária e não-excludente não mais é
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 56
possível e de que as vontades singulares se encontram numa
perspectiva de mútua e completa exterioridade que, não podendo
retroceder sob condições de uma individualização plenamente
acabada, constitui o ponto de partida do direito natural. Portanto,
a compreensão fichteana da exterioridade e do caráter
necessariamente coercitivo da unificação das vontades
individuais subjaz uma concepção excludente e limitativa de
intersubjetividade, a qual não alcança os nexos de uma
intersubjetividade originária mediante a qual Hegel pretende que
se constitua a verdadeira unidade política: ―ao ser pura e
simplesmente fixada esta exterioridade do ser-uno e posta como
algo absoluto sendo-em-si, então a interioridade, a reconstrução
da fidelidade e crença perdidas, o ser um da liberdade universal e
individual e a eticidade são tornadas impossíveis.‖ (TWA 2, 471)
Para Hegel, é somente a pressuposição de uma exterioridade
fundamental entre as vontades singulares que conduz Fichte à
compreensão da unificação socialmente efetiva das vontades
singulares como exterior às mesmas, isto é, como não alcançando
uma identidade originária, a qual, entretanto, é
inconscientemente pressuposta como tecido social que torna
possível o ponto de vista jusnaturalista centrado na
―individualização plena, acabada e fundamental‖, isto é, que
toma como arcabouço das relações sócio-políticas a vontade
singular.
O reverso da exterioridade mútua das individualidades,
desta sociabilidade excludente tomada como princípio do direito,
é este ―dispositivo atuante com necessidade / mecânica‖, cuja
tarefa, ―à qual é pressuposta a contraposição da vontade singular
em face da vontade universal‖, consiste em que ―a eficiência de
cada singular seja coagida pela vontade universal‖ (TWA 2,
471/472). O que realmente fica vetado a esta compreensão da
vida comunitária centrada na exterioridade mútua de vontade
singular e vontade universal é justamente a imanência do
universal com respeito às vontades singulares, pelo que as
mesmas, para além de um agregado, poderiam revelar sua
unidade universal absoluta e originária: o universal verdadeiro da
vida ética ou o ser-um do universal e dos singulares. ―O ser-uno
com a vontade universal não pode, com isso, ser apreendido e
Filosofia, Reconhecimento e Direito 57
posto enquanto majestade interior absoluta, mas antes como algo
que deve ser produzido pela relação exterior ou coerção‖ (TWA
2, 471/472). Se a eticidade se reduz somente a esta relação de
coerção do universal sobre os singulares, e a dupla exterioridade
– dos singulares entre si, e por isso, da unidade coercitiva e da
vontade singular – é compreendida como totalidade da existência
social, o que há é a supressão da eticidade enquanto vínculo
orgânico entre os singulares: ―o ético, o qual é posto apenas
segundo a relação (nach dem Verhältnis), ou a exterioridade e a
coerção, pensadas como totalidade, se suprimem.‖ (TWA 475)
O que particularmente nos interessa notar é a implicação
recíproca entre, por um lado, a exterioridade do universal em
relação às liberdades singulares, e, por outro, a mútua
exterioridade dos indivíduos concebidos como átomos
subsistentes por si, na medida em que esta implicação recíproca
se conecta com a percepção, por parte de Hegel, da exigência de
expor conceitualmente o desenvolvimento da eticidade moderna.
Segundo interpretamos, o intento programático
Naturrechtaufsatz se deixa principalmente perceber no fato de
que não se ocupa com a questão de como, enquanto condição
para o ser-um de liberdade universal e liberdade singular, os
indivíduos vão paulatinamente rompendo sua exterioridade
mútua. Conforme atesta o feixe de questões discutidas sob o
tópico da ―tragédia no ético‖, o Naturrechtaufsatz privilegia, com
sua tentativa de articulação da assimilação da eticidade relativa à
eticidade absoluta, a relação entre universal e singular, mas não a
relação intersubjetiva propriamente dita, cujo desenvolvimento
até um ponto em que se rompe a exterioridade mútua dos
indivíduos é o que pode constituir o tecido social da totalidade
ética como povo. Entretanto, Hegel parece indicar, em sua
referência crítica à tese fichteana da necessidade da coerção sob
condições incontornáveis de rompimento de uma relação
intersubjetiva que se pode caracterizar como ―solidária‖ ou ―não
excludente‖, que somente o paulatino rompimento da
exterioridade recíproca entre os indivíduos poderia desembocar
numa apresentação conceitual da constituição do ser-um do
universal e dos singulares.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 58
Alguma indicação neste sentido parece estar presente na
―tipologia das ciências práticas‖ oferecida pelo
Naturrechtaufsatz. Hegel compreende o direito natural como
ciência da eticidade absoluta real. Em face desta ciência prática
primordial39
, moral e ética constituem ciências associadas à
subjetividade do indivíduo e possuem um objeto que, por
conseguinte, tem de ser compreendido como algo negativo.
Entretanto, a ética é relacionada à descrição da natureza das
virtudes enquanto aparecem nos indivíduos do primeiro
estamento, ao passo que a moral em sentido kantiano é
compreendida como ciência da eticidade do indivíduo do
segundo estamento, isto é, como potencial para expressão da
eticidade universal na vida do burguês. A educação tem em
comum com ambas a referência à subjetividade do indivíduo.
―Assim como... a ética tem relação (Beziehung) ao subjetivo ou
negativo, então o negativo em geral tem de ser diferenciado
enquanto subsistir da diferença e enquanto falta (Mangel) da
mesma... a falta (Mangel) de diferença representa a totalidade
enquanto um encoberto e não desdobrado (Eingehülltes und
Unentfaltetes), no qual o movimento e infinitude não são em sua
realidade.‖ (TWA 2, 507/508) Desta maneira, enquanto na moral
e na ética a negatividade aparece, especificamente, como
diferença existente, como existência de um indivíduo
39 Para Hegel, ―a partir desta idéia da natureza da eticidade absoluta resulta ... a
relação da eticidade do indivíduo à eticidade absoluta real, a relação das
ciências das mesmas, da moral e do direito natural.‖ (TWA 2, 504). Com
efeito, enquanto a eticidade absoluta real ―compreende (begreift) em si a
infinitude ou o conceito absoluto, a pura e simples singularidade como
unificada em sua suprema abstração‖, ela é ―imediatamente eticidade do
singular‖, de forma que, inversamente, ―a essência da eticidade do singular é
o pulsação do sistema inteiro e mesmo o sistema inteiro.‖ (TWA 2, 504)
Segundo Hegel, o direito natural, co-extensivo à sua teoria da eticidade
absoluta, é responsável por uma inversão na relação tradicional entre moral e
direito, de maneira que ―à moral somente cabe propriamente o âmbito do em
si negativo, mas ao direito natural o verdadeiramente positivo, segundo seu
nome, que ele deva construir a maneira como a natureza ética chega a seu
verdadeiro direito.‖ (TWA 2, 505). Desta forma, o objeto da moral são as
―virtudes que são em si possibilidades e que estão em um significado
negativo‖ (TWA 2, 505)
Filosofia, Reconhecimento e Direito 59
diferenciado que parece ser subsistente por si como elemento
dotado de propriedades éticas ou de disposição moral, na
educação a negatividade aparece, ao contrário, como falta de
diferença, isto é, como uma diferença não-desenvolvida entre
indivíduo e totalidade, uma indiferença imediata, já que se trata
da não realidade da infinitude, mas apenas da possibilidade do
movimento que a põe. ―A criança é, enquanto forma da
possibilidade de um indivíduo ético, um subjetivo ou negativo,
cujo tornar-se humanizável (Mannbarwerden) é o cessar desta
forma e cuja educação é a disciplina ou o subjugar da mesma.‖
(TWA 2, 507) Para Hegel, a criança a ser educada não se
destacou ainda da totalidade como aquele indivíduo que parece
existir por si mesmo como um átomo. Na criança, a disposição
moral e as virtudes têm que ser desenvolvidas, pois a eticidade
ainda não se manifesta como o espírito do indivíduo. ―O positivo
e a essência é que ela, sorvendo o seio da eticidade universal,
primeiramente viva em sua intuição absoluta como um ser
estranho, compreenda-a (begreift) cada vez mais e assim passe
para o espírito universal.‖ (TWA 2, 507) Num significativo
paralelo às formas paradigmáticas do processo de
reconhecimento desenvolvidas em Nuremberg e Berlim, Hegel
compreende este processo de educação como o aprendizado
gradual pela criança de suspensão da exclusividade de sua
própria subjetividade40
. Esta compreensão da educação como
processo de gradual manifestação da eticidade no indivíduo
40 Ao fim de sua pequena mas ilustrativa digressão a respeito da relação da
educação à eticidade absoluta, Hegel declara o devir das virtudes e da
―indiferença mediatizada‖ entre indivíduo e totalidade ética assumem o
caráter oposto à tentativa de estabelecer um ethos peculiar a um indivíduo ou
a um grupo específico dentro do povo. Para Hegel, as virtudes, bem como o
seu desenvolvimento pela educação, somente obtêm sua significância
genuína pela imersão que permitem do indivíduo no ethos comunitário.
―Esclarece-se aqui a partir de si mesmo que tanto aquelas virtudes, quanto a
eticidade absoluta são tampouco um empenho por uma eticidade peculiar e
apartada como / o devir das mesmas pela educação, e que o esforço por uma
eticidade peculiar positiva é algo em si mesmo impossível e, com respeito à
eticidade, somente as palavras dos homens mais sábios da antiguidade são o
verdadeiro: ser ético é viver de acordo com os costumes de seu país.‖ (TWA
2, 507/508)
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 60
originariamente indiferente até o ponto de uma ―indiferença
mediatizada‖ entre o indivíduo e os costumes, suscita as mesmas
questões que se dirigem à concepção fichteana da Aufforderung
como educação. Em vista desta necessidade de elevar o indivíduo
não plenamente diferenciado ao patamar da manifestação da
eticidade, como se poderia compreender este processo resultante
apenas de uma relação limitativa e excludente aos outros
indivíduos, se o indivíduo que se forma, não é propriamente
capaz de se defrontar aos outros enquanto subjetividade
exclusiva e engajada pela observância de seus direitos ? Uma tal
compreensão da educação requer a participação dos outros
indivíduos na formação da identidade e na individualização
daquele sujeito que, originariamente, é imediatamente
indiferente. Mas uma tal participação ativa só pode ser pensada
num paradigma de sociabilidade positiva e não excludente. A
uma compreensão do processo de formação do indivíduo como
se efetivando apenas no círculo de uma intersubjetividade
limitativa, individualista e excludente, como a que possibilita as
relações de direito privado, poder-se-ia objetar o mesmo que
Hegel objetara à tentativa fichteana de compreender a relação de
coerção como unificação da vontade universal e da vontade
singular: tratar-se ia com isso de tornar o singular absoluto
através de algo que em si mesmo não é absoluto. Ao
compreender a educação como ―subjugar‖ da ―forma da
possibilidade de um indivíduo ético‖, Hegel parece indicar que
aqui sua filosofia prática se abre para compreender a natureza
deste processo de formação do indivíduo, contendo em si, além
da forma de intersubjetividade própria ao defrontamento jurídico
das pessoas, formas positivas da sociabilidade.
Sob a pressuposição do povo como configuração
concreta do absoluto prático, o Naturrechtaufsatz enfatiza o
processo de autodiferenciação desta totalidade que subjaz à sua
tese primordial de reconciliação entre política e economia,
articulada na reintegração da esfera econômico-jurídica pela
eticidade absoluta. Contudo, o desafio de uma exposição
conceitual da eticidade moderna parece estar ao menos indicado:
mostrar como a intersubjetividade excludente que se efetiva na
esfera econômico-jurídica constitui-se como um estágio
Filosofia, Reconhecimento e Direito 61
insuficiente no itinerário que conduz a uma intersubjetividade
solidária, a qual representaria a constituição de uma vontade
universal como ―identidade especulativamente estruturada‖ das
vontades singulares, mas que possui, ainda assim, seu momento
de verdade no itinerário de rompimento da exterioridade mútua.
O que se quer é indicar que o problema da constituição da
vontade universal, a partir dos singulares, é o problema da
intersubjetividade, ou melhor, da constituição conceitual da
comunidade ética, a partir do indivíduo como sobreposição de
níveis de intersubjetividade que integram os singulares em níveis
crescentes de existência ética e de autoconsciência universal. Se
no Naturrechtaufsatz, a ênfase recai sobre a prioridade de
eticidade absoluta sobre a relativa, o System der Sittlichkeit
articula pela primeira vez sua teoria da eticidade moderna na
forma de esferas efetivação comunitária da liberdade.
Nossa tese de leitura do Naturrechtaufsatz deixa-se
determinar pela subseqüente integração da teoria fichteana da
intersubjetividade, operada por Hegel no System der Sittlichkeit.
Segundo nossa interpretação, Hegel baseia sua recuperação
moderna da tese aristotélica da anterioridade da comunidade
política em relação ao indivíduo no princípio da unidade primeira
e originária das vontades singulares que constituem a
comunidade, concepção à qual ele opõe justamente a constituição
individualista desta comunidade segundo os preceitos atomistas
do contratualismo. Mas se é assim, se à recuperação moderna da
tese aristotélica, a qual fornece o sentido da autodiferenciação
interna do absoluto ético em eticidade relativa e eticidade
absoluta, subjaz uma compreensão da constituição originária e
―pré-política‖ da comunidade, isto é, da unidade pré-política das
vontades singulares, trata-se com isso fundamentalmente de uma
concepção de intersubjetividade que se pretende radicalmente
diferente da intersubjetividade limitativa e excludente que é o
ponto de partida geral do jusnaturalismo contratualista. Na última
parte do Naturrechtaufsatz, Hegel menciona que o formalismo,
enquanto fruto da dissolução da eticidade viva, isto é,
mentalidade que, em sua expressão filosófica mais bem acabada,
é responsável pela consolidação do individualismo e do
atomismo como produtos mais tardios do destacamento das
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 62
individualidades de sua unidade vital, na medida em que
dissemina a figura jurídica do contrato civil como o paradigma
das relações intersubjetivas, destrói aquela unidade orgânica em
que lei e costume não se diferenciavam. Entretanto, a consciência
de que a recuperação da anterioridade da comunidade política em
relação ao indivíduo singular, tem que passar pela elaboração de
uma teoria do desenvolvimento de níveis de intersubjetividade
somente alcança Hegel no texto subseqüente: o System der
Sittlichkeit, certamente sugerida pela proximidade em relação à
concepção aristotélica de formas societárias pré-políticas que se
completam na comunidade política, proximidade que é, por sua
vez, modernamente recuperada por influência do estudo dos
economistas políticos. Por outro lado, é a própria tese segundo a
qual, em favor da reconciliação política, a eticidade relativa tem
que ser integrada como momento da eticidade absoluta, conduz
esta teoria dos níveis de intersubjetividade a incorporar como um
de seus momentos a ―defrontação‖ dos indivíduos enquanto
proprietários e pessoas jurídicas.
Sugeriu-se acima que todo este itinerário que doravante
se apresenta a Hegel como desafio de uma exposição conceitual
da eticidade pode ser compreendido como uma tentativa de
mediação entre Aristóteles e Fichte. Pretende-se com isso dizer
que o desafio consiste em articular a tese de que ―o povo é,
segundo a natureza, anterior ao indivíduo‖ com uma teoria
segundo a qual a consciência universal é formada pela relação de
reconhecimento entre as consciências singulares. Elaborando sua
própria teoria do desenvolvimento da eticidade, segundo estágios
de intersubjetividade, Hegel pretende justamente reconciliar as
duas posições: por um lado, a mediação intersubjetiva da
autoconsciência universal é de tal forma dinamizada que se
constitui como unidade conceitualmente superior aos indivíduos,
de maneira que o todo é superior à soma das partes; por outro
lado, o engendramento da comunidade política na forma de uma
sobreposição de estágios de comunidade ética correspondentes a
graus diferencidados de autoconsciência comum faz justiça ao
momento de constituição ética da identidade do sujeito no solo
de uma intersubjetividade não excludente, pelo quê não se cai no
Filosofia, Reconhecimento e Direito 63
elemento modernamente inviável de uma dissolução da
identidade individual na substância ética.
Referências Bibliográficas
BAUMANNS, P. Fichtes ursprüngliches System. Sein Standort
zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972.
BOURGEOIS, B. Le Droit Naturel de Hegel (1892-1803)-
Commentaire: Contribuition à l´étude de la genèse de la spéculation
hégélienne à Iéna, Paris, 1986.
CRUYSBERGS, P. ―Hegel´s critique of modern natural law‖ ‖, in:
Wylleman, A. (ed.) – Hegel on the ethical life, religion and philosophy
1793 – 1807, 81-117
DÜSING, Klaus „Die Entstehung des Spekulativen Idealismus―, in:
Transzendentalphilosophie und Spekulation, hg. v. Walter Jaeschke,
Hamburg, 1994, 144-163.
________________ „Spekulation und Reflexion. Zur Zusammenarbeit
Schellings und Hegels in Jena―, in: Hegel-Studien 5 (1969), 95-128.
FICHTE, J.G Werke em 20 volumes, Editadas por Immanuel H. Fichte,
Walter De Gruyter, Berlin,1971
HEGEL, G.W.F Werke em 20 volumes – Auf der Grundlage der Werke
Von 1832-1845 neu ed. Ausg., Ausg. in Schriftenreihe „Suhrkamp-
Taschenbuch Wissenschaft― / [Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus
Michel] – Frankfurt am Main, 1970
HONNETH, A. Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik
sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992.
HORSTMANN, R „Problem der Wandlung in Hegels Jenaer
Systemkonzeption― in: Philosophische Rundschau, 19, 1973, pp. 87-
118.
ILTING, K. „Hegels Auseinandersetzung mit der aristotelischen
Politik―, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die
wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 64
Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,
Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 759-785.
KIMMERLE, Heinz Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens.
Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST).
MEIST, K. „Hegels Systemkonzeption in der frühen Jenaerzeit―, in:
Hegel in Jena, pp 59-79.
MÜLLER, M. ―O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos
da crítica ao contratualismo‖, in: Filosofia Política. Rio de Janeiro, RJ:
, n.5, p.41 - 66, 2003.
PHILONENKO, A. L’oeuvre de Fichte , J.Vrin , Paris , 1984;
Métaphysique et politique chez Kant et Fichte, Bibliothèque d'histoire
de la philosophie / Nouvelle série , J.Vrin, Paris, 1987
RÉNAUT, A. Système du droit : philosophie et droit dans la pensee de
fichte, P.U.F, Paris, 1986; „Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz:
§4)―, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte,
Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95
RIEDEL, M. „Hegels Kritik des Naturrechts― in: Studien zu Hegels
Rechtsphilosophie, Frankfurt am Main, 1969, 42-74
SCHNÄDELBACH, H. Hegels praktische Philosophie: Ein
Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 2000
SIEP, L. „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des
Naturrechts――, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen
Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64
______________ „Der Kampf um Anerkennung. Zu Hegels
Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer Schriften―, in: Hegel-
Studien (1974), 155-209
Filosofia, Reconhecimento e Direito 65
______________ Der Weg der Phänomenologie des Geistes. Ein
einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und
„Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000
VERWEYEN, H. Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes
Gesellschaftslehre, München, 1975;
WILDT, A. Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im
Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 360
B. Reconhecimento Intersubjetivo no Viés Jusfilosófico de
Hegel e Kojève
Agemir Bavaresco
1
Sérgio B. Christino 2
Referências atuais a respeito de Kojève buscam coligir o
legado intelectual deste pensador em pelo menos duas direções,
por um lado a capacidade de pensar a geopolítica, isto
correspondendo ao final de sua carreira, quando, em desempenho
junto ao Ministério de assuntos econômicos da França, foi o
principal representante deste país nas negociações internacionais,
que desenharam o atual sistema aduaneiro da Comunidade
Econômica Européia. Neste particular - do pensamento
geopolítico - merece destacar excerto divinatório de um
memorando de aconselhamento assinado por Kojève e dirigido a
Charles De Gaulle em fins da Segunda Guerra Mundial :
A Era onde toda a humanidade junta será uma realidade
política ainda remanesce no futuro distante. O período de
realidades políticas nacionais esta ultrapassado. Este é a
época dos impérios, diga-se de unidades políticas
transnacionais, mas formada por nações associadas
(Kojève, 1945).
Nada mais atual; e por aí a preocupação em resgatar-se a
riqueza desta face do pensamento de Kojève, que, no entanto,
não será o objeto precípuo do presente trabalho.
Por outro lado, reputa-se igualmente notória atualidade
ao pensamento deste autor, desde a leitura que faz da luta por
reconhecimento — a partir da Fenomenologia do Espírito —
associada à perspectiva da humanização pelo trabalho em Marx
e associada ainda à contribuição existencialista, mediante a qual
conecta a abordagem marxista citada à noção de que o homem
1 Doutor pela Universidade de Paris 1, Professor de Filosofia da UCPel, Pós-
Graduação/MPS e Diretor ISF. 2 Advogado e pós-graduado em Filosofia pela UFPel.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 68
trabalha em uma atitude de rebelião, para debelar a
irrefutabilidade da morte.
Aqui, conforme veremos a seguir, Kojève trata de
desenvolver o percurso antropológico que conduz o homem
desde sua condição animal até uma condição de humanidade:
... o homem é também um animal (da espécie Homo
sapiens). Para existir como homem, ele deve então existir
enquanto homem assim como ele existe enquanto animal:
ele deve se realizar em sua qualidade de homem no
mesmo plano ontológico sobre o qual ele existe em sua
qualidade de animal. Ora duas entidades estão no mesmo
plano ontológico quando elas entram em interação, quer
dizer — no limite — quando uma pode anular a outra. O
homem que é reconhecimento deve, portanto, poder
anular-se enquanto animal: seu desejo do desejo deve
poder anular seu desejo animal ou natural. O desejo
natural sendo, em última análise, ―instinto de
conservação‖, o desejo de conservar sua vida animal, o
desejo antropológico deve poder anular este ―instinto‖.
Dito de outra forma, para realizar-se enquanto ser
humano, o homem deve poder arriscar sua vida pelo
reconhecimento (Kojève, 1981, 240).
Dada esta condição proto-humana, que caracteriza o
homem em sua animalidade, na qual os desejos são de ordem
instintiva, bem como dela não se pode inferir qualquer espécie de
direitos, impõe-se outra aproximação de caráter extremamente
atual, qual seja a pesquisa que vem sendo implementada por
Giorgio Agamben no corpus por ele mesmo denominado Homo
Sacer, que trata de examinar as condições em que se verifica a
produção do humano, a partir do animal, e ainda de apontar
quando esta humanidade acha-se suspensa, remetendo a uma
condição subhumana, em que os direitos fundamentais,
definidores da condição humana, são também suspensos, assim
ensejando, por um estado de exceção, o advento de seres que,
por estarem fora da proteção e dos deveres do mundo jurídico,
são passíveis de serem mortos, sem que nenhuma conseqüência
venha a ser posta, pois estes estão fora da perspectiva de serem
Filosofia, Reconhecimento e Direito 69
reconhecidos. Aqueles que numa visão kojèviana são retornados
à proto-humanidade, e que, na atualidade, nada mais são do que
os elencados pela política de Bush, como constituindo o eixo do
mal, ou os frutos da imigração, os povos economicamente
excluídos, cuja condição de matabilidade, que se lhes é
unilateralmente imputada, favorece o musulmanismo3 praticado
nos campos de concentração.
Neste sentido, é que, também atualmente, Axel Honneth,
em seu Luta por Reconhecimento, procura expandir o conceito
do reconhecimento, para abranger o aspecto ético de todo o
conflito social (Honneth, 2003).
A conjuntura atual, conflituosa, com seu acentuado nível
de exclusão social, com sua redefinição de nacionalidades e de
blocos regionais, tende novamente a clamar pela aplicação do
reconhecimento, enquanto conceito ético, de maneira a
possibilitar uma interação entre os sujeitos internacionais, em
que sejam respeitadas as diferenças e identidades num plano de
interação justa e eqüitativa, quer do ponto de vista cultural, quer
do ponto de vista econômico.
A relevância e a ubiqüidade do tema do reconhecimento
na obra de Hegel é indiscutível, por outro lado, é igualmente
verdade que o esforço mais contundente, no sentido de
estabelecer uma teoria do reconhecimento, enquanto conceito
ético, foi realizado por Alexander Kojève, em seu Esboço de
uma Fenomenologia do Direito. Livro este, em que o filósofo
russo, radicado em Paris, elaborou um instrumental de
3 Der Muselmann, o mussulmano designa, no jargão dos campos de
concentração, o homem-múmia, a morte que vive, aquele que cessou de lutar,
que perdeu toda consciência e toda vontade. Este termo remete
provavelmente ao sentido literal do termo árabe muslim, significando aquele
que se submete sem reserva à vontade divina (Ce qui reste d’Auschwitz,
Bibliothèque Rivages, p. 53). De acordo com o Encyclopedia Judaïca, a
expressão poderia ser proveniente « da postura típica destes prisioneiros,
encolhidos absolutamente sós, as pernas curvadas à maneira oriental, o rosto
rígido como uma máscara. ». Segundo Giorgio Agamben (Homo sacer – o
poder soberano e a vida nua, Editora UFMG, 190-191), para o muçulmano
que passou para um outro mundo, sem memória e sem comiseração, (...) vale
literalmente a afirmação de Hölderlin, segundo a qual, « no limite extremo
da dor não subsiste nada além das condições de tempo e de espaço ».
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 70
interpretação lógico-histórico cuja base conceitual é,
declaradamente, inspirada na Fenomenologia do Espírito, de
Hegel, de 1807.
O tema do reconhecimento na obra de G. W. F. Hegel é
central, como se disse, porque tenciona um dos pilares da
filosofia política da modernidade: a questão do sujeito de direito4
e seus corolários; dentre estes a intersubjetividade. No tocante à
abordagem dos comentadores, há uma dupla possibilidade
hermenêutica: de um lado, situa-se, classicamente, este tema do
reconhecimento na figura da luta entre o senhor e o escravo na
Fenomenologia do Espírito; de outro, estuda-se esta figura na
Enciclopédia. A intersubjetividade, e, portanto, o
reconhecimento, na obra hegeliana, coloca o problema: Como é
possível construir uma interpretação que supere o conceito de
subjetividade moderna, positivado pela prática jusfilosófica,
garantindo um novo paradigma, fundado na intersubjetividade,
portanto, pressupondo a teoria hegeliana do reconhecimento?
Neste estudo, mostra-se primeiramente, o
desenvolvimento da teoria do reconhecimento em Hegel. Depois,
analisa-se o desejo antropológico de reconhecimento como fonte
da idéia de justiça em A. Kojève. Em seguida, apresenta-se a
fenomenologia da justiça, segundo o mesmo autor, que parte do
princípio de que o desejo, conforme Hegel, quer o
reconhecimento, sendo este a fonte última da idéia de justiça.
Kojève expõe, fenomenologicamente, a idéia de justiça em três
momentos: a justiça aristocrática ou a igualdade, a justiça
burguesa ou a equivalência e a justiça cidadã ou a eqüidade.
Enfim, a análise fenomenológica, feita por Kojève, prova que a
4 No que concerne à importância da invenção do sujeito de direito para a
compreensão da modernidade, merece colacionar um pouco do que expõe
Yves Charles Zarka (1997), em seu artigo A Invenção do Sujeito de
Direito:...essa definição de homem como ser de direito não é atemporal, pois
foi inventada pela filosofia moral e política moderna, da qual ela constitui
uma das principais inovações. É possível apresentar várias formulações
sobre a importância dessa inovação. (...) apenas uma : a transformação da
noção renascentista de dignidade humana na noção de homem como
portador de direitos na século XVII. Que, prossegue: remete o homem à sua
própria liberdade de se fazer a si mesmo o que é ...(pp. 9/10).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 71
idéia de justiça evolui, segundo uma lógica do reconhecimento
simétrico entre deveres e direitos, entre universal e particular. O
universalismo do direito aristocrático e o particularismo (ou o
individualismo) do direito burguês coincidirão, pois os direitos e
os deveres os mais pessoais, exercidos pelo indivíduo, serão os
direitos e deveres os mais universais, isto é, aqueles do cidadão
tomado, enquanto cidadão, ou aqueles de todos e de cada um.
Enfim, conclui-se que o reconhecimento intersubjetivo se dá em
vários níveis de mediação sócio-jurídico-político.
Assim, produzir na complexidade da sociedade
mundializada, uma hermenêutica jusfilosófica de viés
intersubjetivo, encontra na teoria do reconhecimento hegeliano
um pressuposto epistemológico fundamental.
1. Do Precário Conceito de Intersubjetividade dos Modernos
Temos pugnado pela ubiqüidade de um esboço do
reconhecimento na obra de Hegel, asseverando que a feição
precoce desta noção é suprassumida ao longo das diferentes
etapas da démarche hegeliana, sem perder, no entanto, sua
essencialidade; até mesmo como uma ferramenta inerente à
própria perspectiva relacional do método especulativo,
desenvolvido pelo filósofo do espírito.
A primeira vista, parece totalmente inadequado aceitar-
se, na esteira do pensamento hegeliano, que a idéia da
autoconsciência de um sujeito promanasse de circunstância em
que não estivessem pressupostas as determinações do meio
social. Não que não se possa conceber um tal sujeito atomizado e
quase ficcional, hobbesiano, somente que este figuraria como o
negativo. O que precisaria ser progressivamente suprassumido,
posto que constitui a singularidade, aquilo que com seus valores
de ordem moral nega a vida ética absoluta, em nada obstante o
fato de que nesta singularidade esteja presente o absoluto em sua
diferenciação. Esta determinidade negativa da vida ética absoluta
somente alcançará a verdade, ou seja, somente será
suprassumida, através do reconhecimento. Mas o que importa,
aos propósitos deste estudo, é reafirmar tanto a precocidade,
quanto a ubiqüidade desta noção da intersubjetividade, mediante
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 72
a figura do reconhecimento, na linha evolutiva do pensamento
hegeliano.
O primeiro ponto que temos destacado como referencial
do pensamento de Hegel, e até mesmo referencial a todo o
chamado idealismo alemão, é a necessidade de superar os limites
positivados pela abordagem crítico-transcendental, que cindira a
realidade em dois mundos: o da natureza física e o da liberdade.
Nessa linha, se o comportamento humano, enquanto fenômeno
espaço-temporal, está afeto, como as demais coisas existentes, à
causalidade da natureza física, tornava-se inviável delimitar um
comportamento humano livre, moral, infenso ao bordão da
necessidade. Inexistindo mediação, o homem estaria sempre sob
os ditames ou da obrigação natural (müssen) ou da obrigação
especificamente humana (sollen). Era preciso, pois, para o
criticismo, pensar a liberdade como estando fora do mundo dos
fatos, apartada do mundo da causalidade física. E necessitava
admiti-la efetiva apenas, quando aquele a quem se diz livre, fosse
ele próprio a causa única e suficiente de sua ação, vale dizer, a
liberdade sendo viável somente mediante o pressuposto da
autonomia. E a liberdade jurídica era, na verdade, uma mônada
alheia ao mundo dos fatos. E mais, com a exigência de que cada
pessoa fosse considerada como um fim em si mesma
(selbstzweck), que nunca poderia ser posta a serviço dos fins de
outra pessoa, estabeleceu-se a pedra angular da filosofia do
direito transcendental, da qual todo o resto dos direitos era
derivado. É a partir desta precária autonomia jurídica que se vai
estabelecer a divergência fundamental entre o direito que está
antes de Hegel e o pensamento jurídico e político deste.
No caso específico de Hegel, como já se apontou antes, o
reconhecimento será a categoria chave para a compreensão do
sujeito de direito. Mas, antes, a visão precária do criticismo
transcendental jurídico, baseada na autonomia, já fora objeto de
tentativa de superação no seio do idealismo alemão, tanto em
Jacobi, quanto em Fichte, contribuições estas que foram
refutadas por Hegel já em Iena, por exemplo em Fé e Saber
(Glauben und Wissen):
Filosofia, Reconhecimento e Direito 73
Assim, de um lado encontra-se a pura razão integrada.
Quando ela se afirma como pura vontade, ela é na sua
afirmação uma vã declamação. Se ela se dá um conteúdo,
é preciso que o tome, empiricamente, e logo que lhe deu a
forma da idealidade prática, ou se ela o tornou uma lei e
um dever, então ele se encontra em conflito absoluto,
privado da totalidade deste conteúdo que suprime toda
ciência (Hegel, 1988, 192).
Em contraposição, do outro lado, prossegue Hegel,
[....] está a natureza que foi feita pelo ato da vontade pura
enquanto realidade empírica. O que o lado idealista
negava, porque se decretava, absolutamente, ele mesmo,
deve de novo emergir. Se a realidade empírica (ou o
mundo dos sentidos) não estivesse em toda força de sua
oposição, então o eu cessaria de ser eu, ele não poderia
agir e sua elevada destinação seria perdida. [....] Com
efeito, a essência do eu consiste na ação‖ (Hegel, 1988,
192-193).
E este agir é um agir no mundo, logo, a contraposição
ativa entre a subjetividade proposta pelo viés transcendental
crítico e perseverante em alguns seguidores, mesmo dentro do
idealismo alemão, terá que se submeter ao crivo da ação, descer
das alturas, para conceber uma outra liberdade, que
necessariamente virá à luz na forma da intersubjetividade.
2. Intersubjetividade e Reconhecimento em Hegel
2.1 Nos primeiros Escritos
Tem sido apontado pelos comentadores que o germe da
noção do reconhecimento se encontra mesmo nos escritos
anteriores a Iena, Religião e Amor e O Espírito do Cristianismo e
seu Destino, por exemplo. Ainda que, nestes estudos iniciais, o
que era apresentado por Hegel não constituísse uma formulação
minimamente acabada do que viria a ser, posteriormente,
consolidado a respeito do reconhecimento, as idéias contidas
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 74
nestes fragmentos espelham a potência de um devir conceitual.
Por exemplo, a idéia de reconciliação (veremos a seguir) e
aquela da relação do particular com o todo (universal) – de
inspiração aristotélica.
Assim, enquanto no viés kantiano-fichteano, o direito é a
propriedade de emenda do criminoso, no jovem Hegel, do O
Espírito do Cristianismo e seu Destino, há uma inconciliável
diferença entre o amor e o direito, de tal forma que, se aquele que
for agredido reclamar justiça pela via do direito, esta não se
realizaria e não haveria possibilidade de emenda porque o direito
que é um ser pensado, por conseguinte um universal, está no
agressor como um outro ser pensado; assim haveria dois
universais que se destruiriam e que, não obstante, persistem
(Hegel, 1988, 55). Não haveria aí conciliação, cada um
defenderia o seu direito como sendo o mais justo e mesmo que o
Estado viesse a punir o agressor, este, uma vez punido, não se
haveria de reconciliar com o absoluto. A reconciliação
verdadeira somente se realizaria através do destino e do amor,
quando aí sim, ambos envolvidos, agressor e vítima,
descobririam que com a contenda destruíram sua unidade com o
todo da vida a que ambos pertencem. Ou seja, só com o
sentimento interno de ruptura com o absoluto seria possível a
reconciliação, pois aí haveria uma boa ação do destino, enquanto
algo que se o criminoso se impunha a si próprio e não através de
uma coerção externa. Neste sentido, observa Habermas que,
ainda no Espírito do cristianismo e seu destino, Hegel vai
contrapor às leis da moral, leis que surgem em decorrência da
culpa que sente o transgressor, pela consciência que tem de ter
cindido uma totalidade ética pressuposta.
A dinâmica do destino resulta antes da desordem das
condições de simetria e das relações recíprocas de
reconhecimento de um contexto de vida constituído
intersubjetivamente do qual se isolou uma parte, tendo-se
assim todas as outras também alienado de si mesmas e da
sua vida coletiva (Habermas, 1998, 38).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 75
Esta noção inicial se afeiçoa ao Novo Testamento; ela
segue na direção da mensagem cristã, mediante a qual o Cristo
pregara aos discípulos o despojamento de seus direitos e
propriedades, para com isso evitar a ruptura com a bela unidade
da vida: "e àquele que quer pleitear contigo, para tormar-te a
túnica, deixa-lhe também a veste (Mt 5,40)”, e "caso a tua mão
direita te leve a pecar, corta-a (Mt. 5,30). E, por outro lado, está
presa à evocação da polis grega, enquanto ideal de vida coletiva.
Haveria aí, na órbita da reconciliação, um
reconhecimento que se impunha ao delinqüente, precedendo ao
ato criminoso, qual seja o da existência de uma bela ordem que
veio a ser rompida pela perpetração da conduta indesejada.
Já no fragmento Amor e Religião, Hegel expõe o que
intui como imprescindível para pautar uma relação ética, quer
dizer, uma relação que reflita, portanto, as condições de
identidade com o ideal infinito, em que não esteja presente a
cisão sujeito/objeto, destruidora da bela unidade — logo, em que
os envolvidos nela se reconheçam:
Há união verdadeira, de amor propriamente dita, apenas
entre seres vivos iguais em poderes e que são de fato
vivos uns para os outros e de nenhum modo mortos uns
para os outros; ela exclui todas as oposições, ela não é o
entendimento no qual as relações deixam sempre subsistir
o múltiplo enquanto múltiplo e cuja própria unidade é
feita apenas de oposições; ela não é a razão que opõe seu
ato determinador ao determinado; não é nada que limita,
nada de limitado, nada de finito. (Hegel, 1988, p. 142)
(tradução dos autores)
Conforme acentuado, até os escritos de Frankfurt, em
relação ao tema do reconhecimento, o que se tem são idéias
fragmentárias que delineiam de maneira tênue este instrumental
teórico e que não tem a complexidade e acabamento alcançados,
a partir de Iena, conforme veremos a seguir.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 76
No Sistema da Vida Ética a concepção de relação
jurídica de Fichte5, pautada na intersubjetividade, será
valorizada, suprassumida, constituindo ferramenta importante
para a descrição da liberdade, efetivada na forma da luta pelo
reconhecimento. A partir dela, Hegel extrai um modelo de
abordagem explicativa para a relação padrão ocorrida nas
interações de reconhecimento entre os indivíduos, a qual se
resume em que: (...) na medida em que se sabe reconhecido por
um outro sujeito em algumas de suas capacidades e
propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito
sempre virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua
identidade inconfundível e, desse modo, também estará
contraposto ao outro novamente como um particular (Honneth,
2003, 47).
Este desenvolvimento se dará na forma da efetivação da
liberdade que, segundo Axel Honneth, ganha a figuração
múltipla de uma luta por reconhecimento que o indivíduo realiza,
de maneira ascendente, em três esferas: na da família, a que
corresponde o reconhecimento afetivo; na da sociedade civil, a
que corresponde o reconhecimento legal (pela igualdade de
direitos) e, por fim, no do reconhecimento ético (pela
solidariedade social).
Honneth, no primeiro capítulo de seu livro Luta por
reconhecimento examina com profundidade o escrito de Hegel,
chamado System der Sittlichkeit (1802-03), extraindo dali a
fundamentação para sua atual teoria da luta pelo reconhecimento,
cujo modelo, de confessada inspiração hegeliana, comporta
aquelas três esferas de reconhecimento, que asseguram as
condições para os indivíduos virem a ser bem sucedidos, do
ponto de vista da realização pessoal, nas sociedades modernas. A
esfera do amor, que supõe a relação de reconhecimento ligada à
existência de outras pessoas físicas, com as quais a pessoa realiza
5 Segundo a qual: A relação entre os seres racionais que se deduziu, a saber,
que cada um limite sua liberdade pelo conceito da possibilidade da liberdade
do outro, à condição que este limite igualmente a sua por aquela do outro,
chama-se a relação jurídica; e a fórmula que acaba de ser enunciada é a
proposição do direito (Fichte, 1984, p. 67 – Tradução dos autores).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 77
a experiência de um reconhecimento de natureza afetiva, que lhe
permitirá desenvolver uma atitude de autoconfiança, traduzida
por uma segurança emocional na expressão de suas necessidades.
A esfera do direito, que julga poder uma pessoa sentir-se
portadora dos mesmos direitos que outras, e desenvolver, assim,
um sentimento de respeito social. Aqui, a relação de
reconhecimento baseia-se em direitos iguais entre indivíduos e
repousa sobre um saber compartilhado das normas que regulam
direitos e deveres iguais. Por último, a esfera da contribuição à
sociedade, a esfera da solidariedade, que considera a contribuição
dos sujeitos para o coletivo, cujas particularidades individuais
construíram-se através de uma história de vida singular, ou seja,
em que cada um foi tratado sem discriminação e, por aí, pôde
desenvolver um sentimento de ter sido considerado pelos demais.
Portanto, o caminho percorrido pelo indivíduo através
das esferas mencionadas, já desde o Sistema da Vida Ética, deixa
antever que as condições para se reconhecer a efetivação
concreta da justiça é, antes de tudo, a verificabilidade das
condições concretas para o indivíduo poder ser reconhecido em
qualquer uma de tais esferas.
Aquela mesma concepção do injusto que, em Frankfurt
era suprassumida pelo amor, é retomada no período de Iena,
sendo a pena como a única maneira de restituição da objetividade
do direito quando a integridade da pessoa tenha sido prejudicada.
É a partir do System der Sittlichkeit que Hegel aborda, de
maneira mais metódica, a questão do crime como rompimento da
vida social e, embora esta questão apareça problematizada num
capítulo intermediário, entre a vida ética natural e a vida ética
absoluta, é na terceira seção do livro, que trata da eticidade, no
subtítulo O segundo sistema de governo. Sistema da justiça, que
a questão da conduta delituosa recebe tratamento mais acabado.
Nesta parte do Sistema da Vida Ética, Hegel estabelece a
divisão entre ilícito de ordem civil e de ordem penal, divisão cujo
critério será mantido até mesmo nas obras maduras, posto que
regrada pela lógica especulativa. E aqui é elucidativo o recurso,
por exemplo, à Enciclopédia, para se apresentar uma concepção
esmerada daquilo já contido no pensamento juvenil. Ao analisar
o juízo, no § 166 e seguintes da Enciclopédia – 1830, Hegel se
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 78
vale da analogia com a referida tipificação dos delitos, inclusive
mencionando, exemplificativamente, uma e outra das ordens de
delito como correspondendo a um e outro tipo de juízo.
Cotejemos, rapidamente, os dois textos: no Sistema da
Vida Ética, conforme referido, Hegel estabelece a seguinte linha
de considerações:
A negação da singularidade, que é uma negação
mediante a singularidade — e não por meio do
absolutamente universal — é também puramente negação
da posse enquanto tal; ou a negação de uma singularidade
no indivíduo; ou a negação da totalidade do indivíduo
vivo; o segundo caso é um ato de violência; o terceiro é
um assassínio.
(...) Na jurisdição civil, só a determinidade como tal é que
é absolutamente negada no litígio, e determinidade pode
tornar-se a atividade viva, o trabalho, o que é pessoal.
Na jurisdição penal, porém, não é a determinidade, mas a
individualidade, a indiferença do todo, a vitalidade, a
personalidade. Aquela negação é no direito civil uma
negação puramente ideal; no direito penal, é uma negação
real; com efeito, a negação que visa a uma totalidade é
por isso mesmo real. Estou na posse da propriedade de
um outro, não por rapina ou por roubo, mas porque a
reivindico como minha e de um modo legal. Reconheço
assim a capacidade de posse do outro; mas a violência, o
roubo opõem-se a semelhante reconhecimento. São
constringentes, visam ao todo; suprimem a liberdade e a
realidade do ser-universal, do ser-reconhecido (Hegel,
1991, 82-83).
E, por fim, acrescenta:
A justiça civil visa, simplesmente, à determinidade; a
justiça penal, além da determinidade, deve também
suprimir a negação da universalidade e suprimir a
universalidade que se pôs no seu lugar, a oposição à
oposição.
Semelhante supressão é a pena, e esta é justamente
determinada segundo a determinidade em que a
universalidade foi suprimida (Hegel, 1991, 84).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 79
E na Enciclopédia 1830, nos parágrafos acima
mencionados, Hegel no exame do juízo, explica que o juízo
imediato, ou do ser-aí, pode ser classificado como
negativamente-infinito ou, simplesmente, negativo. No adendo
ao § 173, Hegel dirá:
Como exemplo objetivo do juízo negativamente infinito,
pode-se considerar o crime. Quem comete um crime,
digamos, mais precisamente um roubo, não nega,
simplesmente, como no litígio civil o direito particular de
um Outro sobre tal coisa determinada, mas [nega] o seu
direito em geral, e por esse motivo também não é
simplesmente obrigado a restituir a coisa que roubou, mas
é além disso punido porque violou o direito como tal, isto
é, o direito em geral. O litígio civil, ao contrário, é um
exemplo do juízo simplesmente negativo, pois nele se
nega simplesmente este direito particular, e assim se
reconhece o direito em geral (Hegel, 1995, v.1, 309).
Deste modo pode-se ver que a concepção numa e noutra
das obras é a mesma, ou seja, a diferença de grau quanto ao
reconhecimento perante o direito é que determina a esfera da
lesão. A conduta humana lesiva pode constituir uma negação do
direito meramente ideal (abstrato) ou real: enquanto no primeiro
caso, a capacidade jurídica (pessoa) do outro é reconhecida, no
segundo, (esfera penal) não.
Aparece, assim, a centralidade da pessoa no
desenvolvimento histórico da liberdade, e, portanto, do modelo
de justiça em Hegel pois, se a pessoa se equipara ao direito, todo
aquele que, desde a condição de pessoa que o direito lhe atribui,
ofende alguém, ofende o direito e, por sua vez, a si próprio.
O direito é concebido por Hegel como um sistema social,
em que o reconhecimento universal da liberdade da vontade
expresso, na categoria da pessoa, é uma relação de justiça com
outras pessoas, compreendidas dentro do movimento
intersubjetivo em que ocorre o reconhecimento das
autoconsciências tanto no desenvolvimento fenomenológico,
como no lógico.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 80
2.2 Na Fenomenologia do Espírito
Hegel situa o aparecimento mais evidente da figura da
pessoa, do ponto de vista lógico, na conhecidíssima dialética que
envolve a relação do senhor e do escravo, após ter afirmado que
só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova],
Hegel acrescenta: O indivíduo que não arriscou a vida pode bem
ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade
desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente
(Hegel, 2002, 146). O teor desta afirmação permite pensar que a
célebre dialética do senhor e do escravo aponta um modelo de
relação social em que a intersubjetividade é perpassada pela
assimetria, pois trata de uma relação de submissão, em nada
obstante à sutileza de que nem um, nem outro dos pólos da
relação possam ser tomados como figuras auto-subsistentes. Há,
do ponto de vista lógico, estreita dependência entre ambos. E
somente na coincidência da autodeterminação da vontade (a
verdade da certeza de si sem dependência do outro) e da negação
da exterioridade (pelo trabalho e fruição) num mesmo sujeito é
que se poderia acolher um sentido superior de pessoa. Esta figura
das pessoas, envolvidas na dialética do senhor e do escravo,
permite ver, primeiro, que é absurdo pensar, unilateralmente, um
conceito de pessoa, entendida como átomo de uma
universalidade que se repatriou nos indivíduos. E, segundo, que o
verdadeiro conceito de pessoa se determinará em uma relação
intersubjetiva sem as precariedades da relação do senhor e do
escravo, ou seja, verificar-se-á, somente, quando a relação
intersubjetiva atingir o reconhecimento, porém desde uma
relação simétrica.
Esta relação simétrica de reconhecimento, do ponto de
vista histórico, unicamente será possível onde cada homem seja
livre, e, portanto, só no mundo da modernidade isto será factível,
pois, conforme observa Hegel, no comentário feito ao § 21 da
FD: O escravo não tem conhecimento de sua essência, de sua
infinitude, da liberdade, não se conhece como essência; - e ele
não se conhece, quer dizer [:] ele não se pensa (Hegel, 1998,
113).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 81
Entretanto, a relação de reconhecimento justo pode ser
conformada ao modelo hegeliano da figura do ―senhor e do
escravo‖ (Hegel, 2002, 142ss). A figura do senhor e do escravo
hegeliana conduz a um reconhecimento bipolar entre as duas
autoconsciências. O movimento lógico do reconhecimento opera-
se por ambas as consciências. Trata-se da bipolaridade essencial
a toda consciência que, segundo a Ciência da Lógica, na
Doutrina da Essência, o movimento da reflexão acontece em três
momentos: reflexão que se põe, reflexão exterior e reflexão
determinante que se distinguem em momento subjetivo e
objetivo. Desse modo, a ação do reconhecimento de cada uma
das autoconsciências obedece à seguinte lógica: aquilo que,
individualmente, como sujeito uma realiza na outra como objeto,
ela o faz, ao mesmo tempo, nela mesma, de tal modo que há uma
conjunção de um agir na própria autoconsciência e de um agir na
outra.
Nós temos duas autoconsciências – Autoconsciência ¹ e
Autoconsciência ² – e distinguimos em cada uma delas o
momento da subjetividade e o da objetividade – A¹s e A¹o; A²s e
A²o – conforme o esquema lógico abaixo, o qual constitui o
estatuto lógico de todo o reconhecimento (Jarczyk e Labarrière,
1996, 75-76):
Autoconsciência¹ [s] Autoconsciência ² [s]
Autoconsciência ¹ [o] Autoconsciência ² [o]
No entanto, tal processo de reconhecimento pode passar
pelo combate de vida e morte que resulta no fracasso da
unilateralidade, na qual apenas uma autoconsciência é auto-
subsistente, no caso, o senhor. A relação dissimétrica entre
senhor/escravo encontra-se num impasse, embora o escravo pelo
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 82
medo e pelo trabalho – serviço e cultura – introduza os elementos
para a conquista de sua liberdade. Porém a superação da
contradição não pode ser efetivada apenas por um lado dos pólos,
no caso, o escravo. Ela precisa engajar ambas as
autoconsciências, para alcançar o verdadeiro reconhecimento.
Por isso, a contradição da figura do senhor/escravo evolui para a
autoconsciência estóica e a céptica que encontram já na
―consciência infeliz‖ uma expressão da razão. A aventura do
reconhecimento continua seu caminho. Os protagonistas da
figura encontrarão somente, no momento da ―razão‖, a resolução
da experiência contraditória, que gera a dissimetria entre
senhor/escravo (Jarczyk e Labarrière, 1996, 80-81).
3. Reconhecimento e Intersubjetividade no Esboço de uma
Fenomenologia do Direito de Kojève
Alexandre Kojève (1902-1968) é russo por nascimento,
alemão por formação e francês por escolha, contribuiu na
introdução do pensamento de Hegel na França. O livro Esboço
de uma fenomenologia do Direito de Alexandre Kojève, foi
redigido em 1943 em Gramat (França), afirma o editor da edição
francesa, por ocasião de uma visita à família de Éric Weil, não
obstante, a primeira página do texto fazer referência à cidade
mediterrânea de Marseille. Este trabalho permaneceu inédito,
embora o autor tenha se declarado satisfeito, guardando sua
forma original.
3.1 Questão metodológica
Antes de ingressarmos na interpretação kojèviana de
Hegel sobre o fenômeno do Direito, elucidaremos a diferença
metodológica entre a dialética hegeliana e kojèviana. Isto é muito
importante para compreendermos o que nos interessa na
metodologia kojèviana e em que medida ela pode ser aproveitada
para o nosso estudo.
Primeiramente, o que é a dialética hegeliana? A resposta
a esta pergunta remete ao problema central, subjacente, do
monismo e do dualismo na filosofia hegeliana. Vejamos.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 83
3.1.1 A dialética hegeliana
O termo dialética vem de uma longa tradição histórica,
na qual Hegel se insere, dando-lhe porém, amplidão e uma
posição específica no seu sistema: A dialética para Hegel,
designa um dos momentos do processo total do conhecimento –
ou um dos momentos do processo total da efetividade -;
exatamente, o segundo, aquele que articula negativamente o
imediato no movimento de sua própria mediação (Jarczyk-
Labarrière, 1986, 88).
a) O segundo momento do processo: No Prefácio da
Ciência da Lógica, O Ser, assim se entendem os três momentos
do processo: O entendimento determina e fixa as determinações;
a razão é negativa e dialética, porque ela reduz a nada as
determinações do entendimento; ela é positiva porque produz o
universal e subsume nele o particular. O termo dialética aparece
aqui, somente no segundo momento, e não como uma entidade
subsistindo por si, fora do todo. A razão, sob a forma negativa,
depois sob a forma positiva, concerne o segundo e o terceiro
momentos do processo do conhecimento. No momento dialético,
realiza-se a mediação do imediato, em que o particular se
determina dialeticamente como idêntico ao universal.
b) Motor da filosofia especulativa: Na Enciclopédia das
Ciências Filosóficas, no fim do Conceito preliminar, é dito: A
lógica tem, segundo a forma, três lados: a) o abstrato ou do
entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o
especulativo ou positivamente racional (Hegel, 1995, § 79). Em
relação ao texto anterior da Ciência da Lógica, aqui, aparecem
dois termos novos: abstrato e especulativo. A dialética está
situada no meio deste processo, pois ela é o meio-termo,
carregando o movimento da negação e da mediação, daí que esse
processo se realiza especulativamente. ―Em Hegel o processo do
conhecer e da efetividade dá-se sempre a conhecer de modo
recapitulado no seu acabamento – uma vez que igualmente esse
terceiro momento, é aquele do espírito, termo integrativo – seria
mais fundado caracterizar o sistema de Hegel como uma filosofia
especulativa do que uma filosofia dialética‖ (Jarczyk-Labarrière,
1986, 90).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 84
c) Um movimento dialético-especulativo: A dialética
hegeliana está ligada a uma henologia, pois se propõe a unidade
como uma tarefa da liberdade, uma unidade plural, como
veremos abaixo, de articulação interna de termos diferentes.
Trata-se ainda de uma ontologia, pergunta Labarrière? ―Não, se
entendermos por aí alguma ciência do ser, que seria pensado
como subsistindo por si, totalmente realizado, no seu objetivismo
imediato, anterior à inteligência de sua significação relacional.
Sim, se a ontologia é tomada como a exposição desta história
compreendida, que nasce no ponto de encontro e de
pressuposição mútua do interior e do exterior, da idéia e de sua
efetivação. Esta ontologia é uma doutrina da liberdade‖ (id. p.
100-101).
Pelo exposto, constatamos que para Hegel a dialética é
um momento de sua metodologia especulativa, como ficou
provado em sua Ciência da Lógica e na Enciclopédia das
Ciências Filosóficas.
3.1.2 Monismo sim, monismo não
O que é o dualismo? Para responder a esta pergunta,
Denise Souche-Dagues, distingue o dualismo metafísico do
ontológico. O dualismo ontológico opõe-se ao monismo e ao
pluralismo. Então, ele engloba as doutrinas do ser que admitem
duas fontes, duas figuras irredutíveis uma a outra: a matéria e o
espírito. O dualismo metafísico tem um caráter puramente formal
que apresenta as seguintes oposições: mundo sensível e mundo
suprasensível, fenômenos e noumeno, contingente e necessário,
relativo e absoluto, tempo e eternidade, ser e aparência etc. Ora,
o hegelianismo é um idealismo absoluto, daí ser caracterizado
como uma ontologia monista, ou seja, uma interpretação una do
ser, superando as expressões do dualismo metafísico (Souche-
Dagues, 1990, 9-10).
Para Gwendoline Jarczyk, o modo como Hegel se
posiciona em relação ao dualismo, tal como se apresenta, de um
lado, no empirismo ou no transcendentalismo, e de outro, o
monismo, quer seja de Leibniz, de Spinoza ou de Schelling,
revela o que ele entende por unidade e por infinitude em nível
Filosofia, Reconhecimento e Direito 85
propriamente especulativo. As críticas que Hegel endereça, de
uma parte, a Leibniz e a Spinoza, e de outra, a Kant e a Fichte
mostram que Hegel não defende uma passagem do monismo ao
dualismo e vice-versa. Isso equivaleria a passagem entre dois
extremos inertes, próprio do juízo. Somente, a economia do
silogismo, que assume os extremos na sua negação, impõe-se
aqui. Nesse sentido, a filosofia de Hegel poderia ser
caracterizada de monismo articulado, ou dualidade relacional da
unidade (Jarczyk-Labarrière, 1986, 352-353).
O monismo articulado, no entender do Jarczyk, é um
processo de mediação reflexivo cuja forma elaborada é o
processo silogístico, que ela também denomina uma ―articulação
evolutiva – evolução ao mesmo tempo linerar e circular – de três
momentos ou determinações da realidade que são a
universalidade, a particularidade e a singularidade. Processo
silogístico cujas diferentes etapas ou figuras marcam as
diferentes dimensões em profundidade de uma afirmação única‖
(id. p. 358-359).
3.1.3 A dialética Kojèviana
Na Introdução à leitura de Hegel, Kojève em uma nota
(id. p. 485, nota 1) descreve seu modo de compreender a
dialética, partindo da tese em que a totalidade da realidade é
dialética. Então, tem-se o seguinte:
a) Monismo ontológico: Os gregos descobriram, sob o
ponto de vista filosófico, a Natureza e aplicaram ao ser humano
sua ontologia naturalista, determinando-o por uma única
categoria, a identidade.
b) A dialética da Natureza e do ser humano (= História):
Hegel, afirma Kojève, descobriu as categorias da Negatividade e
da Totalidade, analisando o ser humano na perspectiva da
tradição pré-filosófica judeu-cristã. De posse desta ontologia
dialética antropológica, ele a aplica à natureza. Tem-se, assim,
em Hegel a aplicação de uma única ontologia dialética ao ser
humano e à natureza.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 86
Ora, a ação (= Negatividade) tem uma dinâmica diferente
que o ser (= Identidade), ou seja, há uma diferença essencial
entre a natureza que é revelada pelo discurso do ser humano, e o
homem que revela a realidade própria e àquela outra da natureza.
Kojève acentua que é preciso distinguir na ontologia dialética do
ser revelado ou o do espírito (dominada pela totalidade), uma
ontologia não-dialética da natureza de inspiração grega e
tradicional (dominada pela identidade); e uma ontologia dialética
(de inspiração hegeliana) do homem ou da história (dominada
pela negatividade).
Segundo, Kojève, o erro monista de Hegel é o seguinte:
Baseado sobre a ontologia dialética única, Hegel elabora uma
metafísica e uma fenomenologia dialéticas da natureza, para
substituir a ciência vulgar (a antiga e a de Newton). Admitindo a
dialeticidade de tudo o que existe, Hegel vê na circularidade do
saber o único critério da verdade. Ora, para Kojève, a
circularidade do saber só é possível no fim da história. Então,
Kojève afirma ―que um dualismo ontológico é indispensável para
explicar o fenômeno da história‖ (id. p. 486).
G. Jarczyk e P-J. Labarrière escreveram o livro que traz
por título: De Kojève a Hegel, tratando da recepção do
pensamento hegeliano nos últimos 150 anos na França. Nesta
obra, os autores fazem uma apreciação crítica de como Kojève
interpreta Hegel. Os traços dominantes, no entender de Jarczyk e
Labarrière, da leitura de Kojève são os seguintes: Há uma
antropologização do sistema, em que o homem toma o lugar do
Espírito, quando se trata da liberdade e de suas realizações. Éric
Weil de um lado, Gérard Lebrun de outro, sublinharam que esta
abordagem, embora inspiradora, carece do que constitui uma das
tensões fundamentais entre singularidade e universalidade no
pensamento hegeliano. Kojève persegue a origem desse homem,
no gesto antropogênico capital que é a submissão de um dos dois
antagonistas, fechando provisoriamente a luta de vida e morte,
no começo de nossa história. Esta dialética, entre dois
humanóides no exercício da liberdade, torna-se o paradigma da
leitura da história em que, sistematicamente, o oprimido torna-se
vitorioso. Esta figura, sob o nome de dialética do senhor e do
escravo, determina-se no percurso trágico-revolucionário, ao
Filosofia, Reconhecimento e Direito 87
longo do caminho, em direção ao reconhecimento de ambos. Há,
afirmam Jarczyk e Labarrière, uma extrema violência que
atravessa a vida dos homens, donde surge a necessidade de
pensar o desenvolvimento histórico como fim da história,
efetivamente acontecido. Ora, esta figura terminal foi inaugurada
pela revolução de 1917, concretizada na pessoa e na obra de
Staline.
Porém, no entender dos autores, o mais original no
pensamento de Kojève encontra-se na recusa que este faz tanto
do dualismo ontológico como do monismo materialista. Embora
defenda um dualismo dialético linear, é uma porta de entrada
possível para a compreensão de um processo de tipo reflexivo
(Jarczyk e Labarrière, 1996, 30) 6. É esta chave hermenêutica que
nos interessa na recepção do pensamento kojèviano em nosso
estudo, e que nós consideramos importante para compreender o
fenômeno jus-filosófico, que passamos, agora, a expor.
3.2 O desejo antropogênico
Definir o Direito, para Kojève, é encontrar a essência e o
modo de sua realização para, assim, por comparação com outras
atividades humanas, demonstrar sua especificidade e autonomia.
A via de acesso à essência do direito seria aquela
inaugurada por Platão: encontrar a Idéia. Caminho este que
corresponde na démarche weberiana ao tipo Ideal e em Husserl
ao Fenômeno. Deve-se descobrir, em outras palavras, o
conteúdo que faz com que o caso dado é um caso de direito por
exemplo, e não de religião ou de arte, etc. De maneira que para
definir o direito, é preciso primeiro encontrar sua essência,
enquanto fenômeno; e porque este é um fenômeno humano, é
6 Reconhecem, os autores, os méritos de Kojève sob este ponto de vista, sem,
no entanto, aceitar as conseqüências que o filósofo russo, deduz disto, tais
como: a entrada numa fase da história, sem possibilidade de mudança, ou
seja, o fim da história e o ateísmo total desta visão de mundo. Esta posição,
reiteram os filósofos, conduz a espoliar a imagem essencial de Hegel que é a
plasticidade de seu pensamento levado até o fim de sua vida. Trata-se, de
uma interpretação de um sistema fechado, esgotando suas potencialidades e
sem possibilidades de inovação, concluem Jarczyk e Labarrière.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 88
preciso mostrar inicialmente, no ato que engendra o homem
enquanto tal através dos tempos, o aspecto que faz nascer no
mesmo o fenômeno jurídico (Kojève, 1981, 10-11).
Assim, na segunda seção do Esquisse, denominada
L’origine et l’évolution du droit, Kojève trata de mostrar que o
desejo antropogênico de reconhecimento pode ser a fonte da
idéia de Justiça de uma maneira geral, e, assim, fonte de tudo o
que é autenticamente o Direito.
Nos §§ 35 a 38, Kojève reconstitui sua chave de leitura
da Fenomenologia do espírito, anteriormente consagrada nos
seminários, por si ditados em presença daqueles que,
posteriormente, viriam a ser o escol da intelectualidade européia,
tais como Lacan, Bataille, Merleau-Ponty, etc.
Nestes parágrafos Kojève esquadrinha as seções A e B
do capítulo IV (A verdade da certeza de si mesmo) da
Fenomenologia, respectivamente, Independência e dependência
da consciência de si: Dominação e Escravidão e Liberdade da
consciência de si: Estoicismo, cepticismo e Consciência Infeliz.
Todo o núcleo desta parte da obra em comentário afirma-
se sobre o que Kojève reivindica para si, como sendo uma teoria
do desejo do desejo, a propósito da qual, convém invocar os
termos utilizados pelo próprio filósofo, quando em
correspondência endereçada a Tran-Duc-Thao, autor de um
artigo publicado no ano seguinte ao aparecimento da
Introduction à la lecture de Hegel:
... minha teoria do "desejo do desejo", também não está
em Hegel e não estou certo de que ele efetivamente a
tenha visto. Introduzi esta noção porque tinha a intenção
de fazer, não um comentário da fenomenologia, mas uma
interpretação; em outros termos, tentei reencontrar as
premissas profundas da doutrina hegeliana e construir
deduzindo-a logicamente destas premissas. O "desejo do
desejo" parece-me ser uma das premissas fundamentais
em questão, e se Hegel mesmo não o desenvolveu
claramente, considero que, formulando-o expressamente,
realizei certo progresso filosófico. É, talvez, o único
progresso filosófico que realizei, sendo, o resto, mais ou
menos filologia, ou seja precisamente uma explicação de
Filosofia, Reconhecimento e Direito 89
textos (Jarczyk e Labarrière, 1996, 64-65).
O § 35 começa por uma grande definição do ser
especificamente humano, dizendo que este é criado a partir do
animal Homo sapiens no e pelo ato (livre por definição) que
satisfaz um desejo (Begierde), portanto sobre um outro desejo
tomado enquanto desejo. Melhor ainda, o homem cria-se
enquanto este ato, e seu ser especificamente humano é apenas
este ato mesmo: o ser verdadeiro do homem é sua ação. (Kojève,
1981, 237).
Embora esta primeira abordagem traga em si uma
oposição primordial — homem e animal, o conteúdo mais
importante é o que extrema a consciência de si do sentimento de
si, ambos concernindo, respectivamente, ao desejo humano e ao
desejo animal.
Ao longo do § 35 e até meados do § 36 da Esquisse,
grosso modo, Kojève reprisa, de maneira sintética e aplicada à
questão jurídica, a supracitada chave de leitura da
Fenomenologia que discorre sobre o desejo, para então desaguar
na consideração de que é o ato antropogênico — aquele que
satisfaz um desejo puramente humano — que engendra a
consciência de si (Selbstbewusstsein, a partir do sentimento de si
animal, do Selbstgefühl), o reconhecimento por outro sendo
também o reconhecimento por si, o conhecimento de si ou a
tomada de consciência de si por si mesmo (Kojève, 1981, 246).
A partir do que, segundo o autor, o homem pode opor ao animal,
que também o constitui, tanto sua condição de ―sujeito
religioso‖, quanto sua condição de ―sujeito moral‖, quanto sua
condição de sujeito de direito.
A esta altura, resulta proveitoso esquadrinhar-se a
questão do lugar e do papel do desejo na antropogênese ora
focalizada; para tanto, favorece o recurso à Introdution à la
lecture de Hegel, na qual a interpretação dada por Kojève à
Fenomenologia do Espírito é revelada em sua plenitude.
Ainda em sede introdutória à leitura que faz da
Fenomenologia, Kojève assenta com clareza que, embora a
diferença entre o homem e o animal trespasse a distinção entre
consciência de si e sentimento de si, isto não importa em que o
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 90
elemento cognitivo seja a combustão da antropogênese, mas sim
o Desejo:
... a análise do ―pensamento‖, da ―razão‖, do
―entendimento‖, etc. — de uma maneira geral: do
comportamento cognitivo, contemplativo, passivo de um
ser ou de um ―sujeito cognoscente‖, não descobre jamais
o porquê ou o como do nascimento da palavra ―Eu‖, e,
portanto, da consciência de si, isto é, da realidade
humana. O homem que contempla é ―absorvido‖ por
aquilo que ele contempla; o ―sujeito cognoscente‖ se
―perde‖ no objeto conhecido (Kojève, 1994, 11).
Desta atividade absorta, segundo Kojève, não é possível
resultar qualquer referência ao sujeito que contempla a si mesmo.
Somente o Desejo pode levar este sujeito a dizer ―Eu‖.
Esta consideração inicial será posteriormente retomada,
no resumo que faz dos seis primeiros capítulos da
Fenomenologia, às páginas 161 a 195 da obra ora comentada,
onde, em uma reflexão posta a partir do referencial cartesiano,
situa a questão do desejo do desejo, enquanto instância
ontológica do homem.
Diz Kojève, a resposta cartesiana: eu sou um ser
pensante, à questão: ―Eu penso, logo sou; mas o que eu sou?‖
não satisfaz Hegel. Eu não sou somente um ser pensante, (...) eu
sou ainda - antes de tudo – Hegel. (Kojève, 1994, 163) E este
Hegel é um homem de carne e osso, que se sabe ser tal e que,
sentado em uma cadeira, diante de uma mesa, munido de papel e
caneta escreve, enquanto ouve ruídos vindos de longe e que os
reconhece como sendo o barulho proveniente dos tiros de
canhão, usados por Napoleão na batalha de Iena.
Assim, partindo do eu penso, Descartes teria fixado sua
atenção apenas sobre o penso, negligenciando completamente o
eu, tendo, pois, obtido uma resposta, não só sumária quanto falsa,
posto que parcial e unilateral. O homem, e, portanto o filósofo,
não é somente Consciência (Kojève, 1994, 165), mas
Consciência de si e, levar-se em conta tão-somente o penso, joga
o homem naquela condição contemplativa, em que ele se
Filosofia, Reconhecimento e Direito 91
confunde com a coisa contemplada, é absorvido por ela.
Então, para que o homem venha a pronunciar a palavra
Eu, é necessário a existência do desejo; com isso Kojève opõe ao
conhecimento a ação, enquanto elemento genético do ser do
homem:
Ao contrário do conhecimento que mantém o homem em
uma quietude passiva, o Desejo o torna in-quieto e põe-
no em ação. Sendo nascido do Desejo, a ação tende a
satisfaze-lo... (Kojève, 1994, 12).
A forma como ser humano age é essencialmente
histórico, e não é possível defini-lo a partir de um a identidade
estática como a do cogito, apenas.
Característica da ação constituinte do homem é a
negação; ou seja, desejar é destruir o objeto, é torna-lo uma
posse, assimila-lo, negando-o enquanto não-eu. Mas a ação não é
puramente destruidora, ao desejar aquilo que não é o eu, o
homem constitui-se como um ser no mundo em separado daquilo
que deseja; porém esta caracterização da ação negadora ainda
não distingue o homem do animal, que também luta pela posse e
assimilação de um objeto alheio a si para a satisfação de um
desejo. Esta espécie de desejo incide sobre um objeto exterior
natural é satisfeito pela assimilação, transformando-se no sujeito
que o negou pela assimilação, portanto este sujeito é, da mesma
forma, um sujeito natural, ou na acepção de Kojève: O eu criado
pela satisfação ativa de um tal desejo terá a mesma natureza que
as coisas sobres as quais ele incide: será um eu coisista, um eu
somente vivo, um eu animal (Kojève, 1994, 12). A conseqüência
disto é que este eu natural, apenas poderá auto revelar-se e
revelar-se aos outros, enquanto sentimento de si, ele não se
tornará jamais consciência de Si (Kojève, 1994, p.12).
O desejo que ensejará a consciência de si, é o desejo
tipicamente humano; é o desejo que incide sobre um objeto não-
natural, sobre algo que ultrapasse a realidade dada. Logo, como o
único que supera a realidade natural dada, é o próprio desejo, ou
seja, o desejo antes da satisfação, apenas o desejo de outro desejo
preenche a exigência de um desejo tipicamente humano, vale
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 92
dizer, capaz de viabilizar a consciência de si. Diz Kojéve: O
desejo que incide sobre outro desejo, enquanto desejo, criará,
pois, pela ação negadora e assimiladora que o satisfaz, um eu
essencialmente diferente do eu animal. (...) Este eu não será,
como o eu animal, identidade ou igualdade consigo, senão
“negatividade-negadora”. Dito de outra forma, o ser mesmo
deste eu será devir, e a forma universal deste ser não será
espaço, mas tempo (Kojève, 1994, 12).
Aquela condição de sujeito de direito, acima
mencionada, é a negação substancializada da base animal do
homem. Havendo casos em que o sujeito de direito
corresponderá a uma ―pessoa moral‖ individual, coletiva ou
abstrata. É esta negação que autorizará a distinção entre ação
puramente humana e ação puramente animal, sendo que a
primeira é possível, mesmo onde a segunda não esteja presente, o
que dá vez a que se obtenha a noção de ―Fundação‖ a partir da
noção de ―pessoa moral abstrata‖ e a de ―Sociedade‖ a partir da
noção de ―pessoa moral coletiva‖ (Kojève, 1981, 247).
Ainda que de passagem, Kojève registra que,
independentemente do que possam propor diferentes teorias a
respeito da pessoa moral, o que importa é que a realidade ideal
da “pessoa moral” deve sempre remeter a um animal Homo
sapiens que lhe serve de suporte; em suma, sendo uma realidade
especificamente humana, a pessoa moral só pode ser proveniente
de um ato antropogênico, o qual, por ser uma negação da
animalidade, implica na condição não física da personalidade
moral jurídica.
Mais, dirá o autor, esta oposição entre o homem e o
animal se pode dar tanto na esfera do ser, quanto na esfera do
agir; portanto do que é e do que devesse ser. Entre o que se faz e
o que se deve fazer. Assim, o animal, pelo instinto de
conservação faz o que é necessário, para não arriscar a vida que
tem, ele recusa o risco; porém, para que este mesmo animal se
torne homem ele deve arriscar sua vida; nesse sentido é que a
humanidade é um horizonte a ser implementado por um ato livre,
o ato antropogênico, o qual, além do atributo da reflexão,
enquanto realidade consciente, caracteriza-se ainda por ser um
ato valorado positivamente, que deve ser. Em nota explicativa,
Filosofia, Reconhecimento e Direito 93
Kojève esclarece que o dever-ser é, ao fim e ao cabo, o dever-
ser-reconhecido, que é uma tomada de consciência do querer-
ser-reconhecido, ou do próprio ato antropogênico. Que o aspecto
do dever, revela apenas o fato de que o desejo ou o querer
antropogênico implica necessariamente uma negação do dado
natural ou animal que é a base da existência de quem deseja
(Kojève, 1981, 248).
Mas é no § 37, após retomar a noção de que a luta por
reconhecimento é, por excelência, o ato instaurador do advento
do especificamente humano, que Kojève vai situar a imanência
da intersubjetividade na constituição do humano. Neste desejo de
reconhecimento, diz o autor, está a fonte última da idéia de
existência da Justiça (Kojève, 1981, 250). Porque sendo travada a
luta por reconhecimento, a partir de um ato de vontade mútua
entre os contendores, qualquer lesão a pretendidos direitos daí
decorrentes não se pode dizer injusta, haja vista mesmo a
chancela do consentimento decorrente da vontade livre
manifestada pelo contendor lesado. Não há mais como se falar
meramente do emprego da força de um sobre o outro, posto que
houve mútuo consentimento7 (Kojève, 1981, 250).
Porém, alerta, Kojéve, o consentimento afasta a injustiça,
mas nem por isso vai promover de imediato a justiça. É preciso ir
além do consentimento para encontrar o conteúdo da idéia de
Justiça (Kojève, 1981, 252). Ou seja, somente se houver
igualdade de risco na luta é que se fará presente a idéia de
Justiça. O consentimento e a mutualidade são índices de justiça,
no entanto, a objetividade da justiça está no elemento igualdade,
o que permite a Kojéve declinar que toda interação será dita
justa, na medida em que ela implique consentimento mútuo e
igualdade dos participantes (Kojève, 1981, 253). E ainda, que se
a luta foi justa seu resultado, da mesma forma, será aceito como
justo. Assim, se a luta antropogênica, a luta por reconhecimento,
7 Esta mesma base de consensualidade mútua presente na luta é que será
depois a fonte da idéia da contratualidade no sentido propriamente jurídico,
para tanto, porém, será preciso a presença de um terceiro, de um árbitro.
Nada obstando, na luta por reconhecimento haver apenas duas partes, duas
vontades independentes, dois adversários em confronto deliberado.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 94
a luta que permite o advento do homem dentro da
intersubjetividade, se realiza pelo reconhecimento do mestre-
vencedor pelo escravo-vencido, há então uma desigualdade justa,
que remete a uma igualdade primordial, aquela de que ambos
arriscaram igualmente a vida e a morte no embate.
Kojéve identifica no consentimento o elemento subjetivo
da justiça e, na igualdade de contendores, o elemento objetivo da
justiça; remetendo então estes corolários à questão da luta por
reconhecimento, dirá o filósofo que esta luta começa num
patamar de igualdade mas, ela culmina na injustiça, e diz: (...) é
porque a justiça é ainda outra coisa além do que a igualdade
(Kojève, 1981, 254).
A injustiça em que culmina a luta pelo reconhecimento,
dá-se em face do reconhecimento unilateral do senhor–vencedor
pelo escravo-vencido, o que revela uma desigualdade total dos
participantes, no entanto se a luta foi justa, igualmente justo
haverá de ser o resultado, o que conduz a uma desigualdade
justa, que somente é justa, porque remete a uma igualdade
primordial. Surge, portanto, uma Justiça da desigualdade, que se
caracteriza fenomenologicamente pelo fato de a desigualdade,
que no caso é o reconhecimento unilateral, nasce em razão de
que um dos adversários abandona a luta, rendendo-se ao outro
pelo medo da morte, rendição esta oferecida de maneira
consciente e voluntária, tanto quanto fora o engajamento na luta;
sendo a rendição aceita também de maneira livre, presente está o
consentimento mútuo no resultado da luta. É assim que uma
situação aparentemente injusta, pode então ser justa, muito
embora desigual (Kojève, 1981, 255). Se, em presença da
mutualidade consensual, cabe ainda este pode, como uma
potência, é o consenso ainda apenas indício da justiça.
Uma análise qualitativa das conseqüências deste
consenso mútuo será, pois, reveladora da idéia de justiça aí
encerrada. Primeiro, sendo o reconhecimento unilateral, não há,
objetivamente, igualdade propriamente dita e, segundo, não
haverá igualdade propriamente dita como subjetiva porque:
(...) um [adversário] posto no lugar do outro não agiria
como este: o Senhor no lugar do Escravo não se renderia,
Filosofia, Reconhecimento e Direito 95
e o Escravo no lugar do Senhor não teria continuado na
luta até o fim. O Escravo, tanto quanto o Senhor, sabe
que não há igualdade entre o Senhor e o Escravo, entre a
atitude de um e de outro. Mas se não há igualdade de
condição e de atitude, há equivalência (Kojève, 1981,
255).
Qual a materialidade desta equivalência? Que elementos
são aí cotejados? A segurança, desde o ponto de vista do escravo,
equivale à dominação. Desde o ponto de vista do senhor, a
dominação equivale à segurança. Como a desvantagem do risco é
compensada pela dominação para o senhor, e como a vantagem
da segurança compensa, para o escravo, a desvantagem da
servidão, diz Kojéve que há equivalência entre as duas posições e
que é esta equivalência que constitui a nova idéia de justiça; e
assim: À justiça igualitária primordial vem acrescer-se a justiça
da equivalência (Kojève, 1981, 255).
Ainda, enquanto corolário, ao final do § 37 Kojéve faz
ver que se nem o Escravo pode ser senhor e nem o senhor pode
ser escravo, por este jogo de equivalências das vantagens e
desvantagens que o resultado da luta apresenta, ambos podem ser
cidadãos. E que, a evolução histórica da justiça não é nada mais
do que a efetivação gradual no tempo da síntese, ou pelo menos
de um compromisso entre a justiça aristocrática da igualdade e a
justiça burguesa da equivalência, resultando em uma justiça da
equidade.
3.3 Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo
Kojève
Para Kojève o Direito é apenas a aplicação de um ideal
de Justiça às interações sociais dadas, sendo esta aplicação feita
por um terceiro imparcial e desinteressado, isto é, agindo,
unicamente, em função de seu ideal de justiça (Kojève, 1981,
267).
O senhorio e a escravidão são fenômenos ―sociais‖ e não
fenômenos jurídicos ―primários‖. Assim, o terceiro, enquanto
terceiro pode fazer abstração do fato de ele ser senhor ou
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 96
escravo. Um senhor pode aplicar os princípios da justiça
burguesa de equivalência, da mesma forma que um escravo pode
aplicar os princípios da justiça aristocrática de igualdade, de tal
sorte que os senhores podem realizar o Direito burguês e os
escravos – o Direito aristocrático (Kojève, 1981, 271).
As duas fontes da justiça e do Direito são independentes.
Os dois adversários adotam, porém, uma relação dialética: O
escravo renuncia a igualdade aceitando a equivalência; o senhor
não considera a equivalência, mantendo a igualdade, pois ele está
quase indo à morte, que não levaria a nada. A dialética sócio-
política do senhorio e da escravidão que alcança a cidadania,
coincidem a grosso modo com a dialética jurídica do Direito
aristocrático e burguês, levando ao Direito sintético do cidadão.
Este direito é uma síntese de dois elementos autônomos,
efetivando-se progressivamente: um Direito do cidadão em
estado de devir.
O Direito nasce duplo e no fim, torna-se uno, ou seja, sua
evolução vai da oposição antitética à unidade sintética. Kojève,
descreve esta antítese pura como uma construção teórica, que
será apresentada, brevemente, abaixo.
3.3.1 A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático
O ser humano nasce do ser animal pela negação deste
último, isto é, pelo risco de vida em função do desejo de
reconhecimento. Ele nasce pela interação entre dois agentes
iguais, colocados nas mesmas condições em relação à luta e ao
risco. Esta é a existência humana realizada pelo senhor, situando-
se do ponto de vista aristocrático, pressupõe a igualdade do risco.
Sem esta igualdade primordial, não se teria o ser humano: a
humanidade criou-se na igualdade (Kojève, 1981, 274).
O senhorio consiste no risco da vida para o
reconhecimento, em vista da honra pura e simples. Ora, ser
homem é ser senhor. Este é o fato, que é um dever-ser,
realizando a justiça no sentido aristocrático, ou seja, a igualdade
de condições humanas no senhorio sob os diversos aspectos: a)
Do ponto de vista, sócio-político, o aristocrata considera justas as
instituições que garantem a igualdade com os outros aristocratas,
Filosofia, Reconhecimento e Direito 97
recusando toda submissão; b) A justiça, do lado econômico,
alcança um comunismo descrito em utopias mitológicas de
origem aristocrata. Enfim, ser “justo” para o senhor, é tratar os
senhores como senhores, isto é, como iguais: primus inter pares
(Kojève, 1981, 277).
Porém, uma sociedade aristocrática, um grupo de
senhores, não é jamais igualitária, no sentido moderno da
palavra, pois implica ter escravos. Isso, não provoca contradição,
pois para o senhor o escravo não é um ser humano e sua relação
com o escravo não tem nada haver com a justiça. A contradição
aparece, apenas, no momento em que o escravo é considerado
um ser humano e o Direito trata-o como sujeito de direito, pessoa
jurídica. Então, do ponto de vista da justiça aristocrática, toda a
injustiça entre senhor e escravo será considerada como injusta
(Kojève, 1981, 278).
Um senhor que reconhece a humanidade do escravo não
é mais um senhor integral, pois ele se coloca do ponto de vista do
escravo. Ele sintetiza seu senhorio com a escravidão e ele é mais
ou menos um cidadão, adotando o ideal burguês de justiça. Ora,
esta justiça de equivalência, não exige a igualdade, podendo-se
reconhecer a humanidade do escravo sem afirmar sua igualdade
com o senhor. Assim, as revoluções igualitárias, inspiradas pela
justiça aristocrática, se aburguesam, isto é, aceitam a justiça
burguesa da equivalência de condições políticas, sociais e
econômicas que implicam uma desigualdade fundamental, aquela
da propriedade, por exemplo. No início da revolução, a
desigualdade é considerada como injusta, porque os
revolucionários aplicam o ideal da justiça aristocrática, porém, ao
conquistarem o poder, eles impõem também sua justiça burguesa,
então, a desigualdade pode cessar de ser considerada como
injusta pelas revoluções (id. p. 278).
As sociedades aristocráticas são hierarquizadas,
implicando desigualdades, além daquela do senhor-escravo. Isso
é inegável, porém não existem sociedades puramente
aristocráticas, pois, para que exista o Estado, são necessários
cidadãos. Ora, o cidadão é sempre uma síntese do senhor-
escravo. Há uma acomodação, de uma certa desigualdade,
sobretudo, entre governantes e governados. Desigualdades estas,
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 98
que não são injustas, porque o ideal de justiça cidadão aplicado é
mais ou menos sintético, ou seja, mais ou menos contraditório.
O senhorio constitui-se como uma situação ―justa‖ do
ponto de vista da justiça aristocrática da igualdade. O Direito
aristocrático afirma que o senhor, enquanto sujeito de direito ou
pessoa jurídica, possui todos os direitos subjetivos e não tem
nenhum dever ou obrigação jurídica. Então, cada senhor possui a
plenitude dos direitos, sendo os senhores iguais do ponto de vista
jurídico. Logo, toda pessoa jurídica, ou seja, o senhor aristocrata
pode exercer os seus direitos à condição de não lesar aqueles dos
outros. Caso contrário, o terceiro intervém para restabelecer a
igualdade. Porém, esse princípio do senhorio é difícil de ser
aplicado, quase impossível, pois a maioria das interações sociais
pressupõe uma desigualdade ou aí acaba chegando. Esse ideal
não existe em ato, isto é, não se aplica. Ele apenas é chamado a
eliminar as ações e reações que lesem a igualdade, sendo
sobretudo um Direito criminal.
O Direito aristocrático, fundado sobre a igualdade,
portanto, sobre o estatuto estatal, tem a tendência de se confundir
com o Direito criminal, ao contrário, o Direito burguês, funda-se
sobre o princípio da equivalência, portanto, do contrato, porque
admite uma validade jurídica infinita de interações sociais,
sendo, assim, um Direito civil. Nas sociedades ―primitivas‖, isto
é, verdadeiramente aristocráticas, as interações sociais são
sobretudo criminais. Aí as pessoas vivem isoladas, não tendo
necessidade umas das outras, entrando em interação, sobretudo
para se lesarem mutuamente, através do roubo, o rapto ou a
morte, ao invés de realizarem trocas comerciais pelo contrato de
colaboração.
Na sua relação com o escravo, o senhor tem todos os
direitos, ou quase direitos pois essa relação não é, propriamente
falando, jurídica, pois ele não tem nenhum dever. O senhor tem o
direito de propriedade sobre seu escravo e suas terras. Este é um
direito aristocrático, enquanto o Direito civil é o do contrato e
das obrigações (Kojève, 1981, 281-291). Enfim, se os animais
lutam entre eles pela posse de uma coisa, os homens lutam
também, para que uma coisa seja reconhecida como
exclusivamente sua pelo outro.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 99
Kojève analisa o modelo de justiça da igualdade
descrevendo, fenomenologicamente, o direito aristocrático. Este
é um direito de iguais, em que o reconhecimento passa pelo risco
de vida, buscando a honra pura e simples. O reconhecimento dá-
se pelo escravo, enquanto submissão, e pelos outros senhores, na
medida da igualdade.
3.3.2 A justiça da equivalência ou o Direito burguês
Assim, como a justiça aristocrática, a justiça burguesa
reflete a luta antropogênica. A luta se refletia, antes, na
consciência do senhor, agora na do escravo. O senhorio constitui-
se pelo risco, ou seja, na e pela luta enquanto tal, enquanto que a
escravidão é o resultado desta luta, determinado pela negação
do risco e da luta, pela recusa de continuar até à morte (Kojève,
1981, 291). A justiça aristocrática corresponde à luta, enquanto
que a justiça burguesa corresponde a sua saída, o resultado. Ora,
se a luta se efetua na igualdade absoluta de condições, isto é, do
risco, o resultado é uma negação total desta igualdade, pois o
escravo não é o senhor e inversamente. Assim, está excluída a
igualdade, pois ela implica a diferença do senhor e do escravo.
Para o senhor o escravo não é humano, e mantém seu ideal de
igualdade, todavia, para o escravo, a humanidade é desigual.
Essa igualdade não é justa para o escravo. Este justifica a
desigualdade entre ele e o senhor pelo fato de ter aceitado
livremente. O escravo renunciou o risco da luta e submeteu-se ao
senhor. Aquele é humano, porque arriscou sua vida na luta pelo
reconhecimento, porém, como ele não a levou até o fim,
recusando o risco de atualizá-la na e pela morte, ele não atualizou
sua humanidade. Por isso, o escravo é um ser humano em
potência, daí, a necessidade de mudar, para se atualizar, ou seja,
ele deve deixar de ser escravo e tornar-se cidadão, para existir em
ato, enquanto ser humano.
Tanto para o senhor como para o escravo, ser humano é
um dever-ser, porém, o primeiro se realiza, permanecendo
idêntico a si mesmo, ou sendo igual a si, enquanto que o último
realiza seu dever-ser homem mudando, tornando-se outro. Ele
torna-se outro, negando-se, enquanto escravo. Sua humanidade
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 100
atual de cidadão pressupõe sua humanidade virtual de escravo, e
esta última implica desigualdade e pressupõe a equivalência.
Para o escravo, o dever-ser funda-se sobre a equivalência e não
sobre a igualdade. A equivalência é, pois, um “dever-ser”, e o
“dever-ser” enquanto equivalência é “justo”, mesmo se ele
implica a desigualdade. A justiça burguesa do escravo é uma
justiça de equivalência (Kojève, 1981, 294).
Na história, encontramos sistemas sociais e jurídicos
fundados sobre o princípio da equivalência, justificando e
reconhecendo a desigualdade. Por exemplo, o sistema cristão de
Santo Tomás de Aquino, em sua teoria da justiça social e
jurídica, afirma a possibilidade para cada um viver segundo sua
categoria. A diferença de categoria é aceita e justificada pela
equivalência de condições; em cada condição os encargos são
equivalentes aos benefícios. Hoje, vive-se, em grande parte,
segundo o ideal da justiça burguesa de equivalência, admite-se a
desigualdade, por exemplo, econômica. Assim, o salário de um
diretor de empresa é considerado equivalente ao salário do
trabalhador, porque exige mais esforço intelectual ou moral (a
responsabilidade), ou por ser ele o proprietário. Ainda, do ideal
de equivalência nasceu a idéia de imposto progressivo sobre a
renda, pois parece justo que aquele que ganha mais que os
outros, pague mais que eles. No entanto, o mesmo burguês, que
reconhece que esse sistema de imposto é justo, recusa-se,
absolutamente, a admitir que seria justo igualar as fortunas,
recusando-se ao projeto de imposto sobre o capital (Kojève,
1981, 296-297).
A justiça de equivalência realiza-se pelo Direito burguês,
sendo aplicada por um terceiro imparcial e desinteressado. O
Direito burguês reconhece desde o começo uma estrita
equivalência entre os deveres e os direitos, ou seja, a cada dever
equivale um direito e vice-versa. Por exemplo, se o escravo tem
o direito e o dever de trabalhar, o senhor tem o dever e o direito
de fazer a guerra. O princípio fundamental do Direito burguês é
a equivalência dos direitos e dos deveres junto a cada pessoa
jurídica. Todo sujeito de direitos tem direitos que são,
rigorosamente, equivalentes a seus deveres, ou seja, deveres que
são equivalentes a seus direitos (Kojève, 1981, 300). Vê-se que
Filosofia, Reconhecimento e Direito 101
há uma diferença entre o Direito burguês e o Direito
aristocrático, este atribui a cada pessoa jurídica a plenitude de
direitos sem nenhum dever, enquanto que aquele, ao contrário,
exige uma equivalência rigorosa entre direitos e deveres.
O conceito de propriedade para Kojève de estático torna-
se dinâmico, uma perpétua “mudança”. Contrariamente, ao
princípio aristocrático, a propriedade não se mantém, portanto,
na sua “igualdade” ou identidade consigo. Ela permanece
“equivalente” a ela, mudando de natureza. E pode-se dizer
também que do ponto de vista do Direito burguês a propriedade
não é mais um “estatuto” eterno e imutável, mas uma simples
“função” (Kojève, 1981, 301). A propriedade será uma função
de seu trabalho e o resultado de um contrato, ou seja, toda
mudança de propriedade se reduzirá a uma troca de trabalho. O
Direito de propriedade é substituído por um Direito de contrato,
que regulará as trocas de trabalho. A propriedade deixa de ser um
estatuto para tornar-se um simples termo de contrato (Kojève,
1981, 301-302, nota nº 2). Enfim, o Direito burguês substitui o
conceito aristocrático de estatuto, por aquele de função,
tornando-se um Direito de contrato.
O contrato sanciona trocas de propriedade e prestações,
pressupondo a desigualdade nas trocas, pelo fato que uns não têm
ou não fazem o que têm e fazem os outros. Ora, se o Direito
aristocrático condena a desigualdade, o Direito burguês o
reconhece, pois o princípio aqui é o da equivalência de
condições, de direitos e deveres. Kojève considera dois exemplos
de equivalência:
a) O princípio de herança jurídico-aristocrática é o
estatuto da igualdade em que o herdeiro sucede o morto, sem que
a sucessão modifique em nada o estatuto, tornando-o imutável. O
princípio do contrato burguês é, ao contrário, o da equivalência
de condições, implicando mudanças após a morte da pessoa que
deixa a herança.
b) No Direito Penal, anular o crime é restabelecer a
equivalência lesada. No crime é lesada a equivalência de
condições entre o criminoso e a vítima, daí o restabelecimento da
equivalência operar-se na pessoa da vítima e do criminoso. Ou
seja, a pena deve compensar o crime, ela deve contrabalançar as
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 102
vantagens que o crime teria produzido. Pois, aqui, não se trata
mais de restituir a igualdade, pelo princípio do talião, mas a
equivalência pela compensação, considerando a intenção e o
aspecto subjetivo do criminoso (Kojève, 1981, 303-306).
3.3.3 A justiça da eqüidade ou o Direito cidadão
A justiça e o Direito nascem sob duas formas autônomas:
como justiça de igualdade e como justiça de equivalência. Essas
duas justiças, segundo Kojève, nascem, simultaneamente, da
mesma fonte: da luta antropológica entre o senhor e o escravo. A
justiça e o Direito aristocrático de igualdade (igualdade de risco)
refletem esta luta e o resultado é segundo a opinião do senhor,
enquanto que a justiça e o Direito burguês de equivalência
(equivalência de condições) refletem a opinião do escravo. Esse
dualismo jurídico, aristocrático e burguês, mostra o dualismo
humano entre senhor e escravo, sendo a evolução jurídica um
aspecto da evolução histórica do ser humano. Esta evolução vai
do dualismo à unidade, como as relações de senhor e escravo se
sintetizam na existência do cidadão, o Direito aristocrático e
burguês se unem no Direito cidadão. Kojève entende que o devir
do cidadão é o sentido da história da humanidade.
As duas justiças, no começo da vida jurídica da
humanidade, são autônomas, de maneira que se pode realizar a
igualdade, sem levar em conta o princípio da equivalência,
porém elas não se excluem. Na origem, o Direito considera a
pessoa, enquanto senhor, de tal modo que coincidem o conceito
de senhor e o de pessoa jurídica, pois todos os senhores são
iguais, enquanto senhores. Todos os seres humanos, porém, não
podem ser senhores, pois não há senhorio sem servidão, de tal
sorte que a sociedade aristocrática implica ter escravos.
O Direito aristocrático evolui para uma extensão
progressiva da igualdade, na medida em que um senhor
reconhece um não-senhor, sem luta. Então, não é mais um senhor
verdadeiro, e o Direito aristocrático não se aplicará mais a esse
tipo de reconhecimento. Nesse caso, será aplicado o Direito
burguês, admitindo a equivalência jurídica dos senhores com os
não-senhores e não, sua igualdade. O senhor reconhecerá os
Filosofia, Reconhecimento e Direito 103
direitos do não-senhor, mas não admitirá a igualdade de seus
direitos com os dele, mas apenas sua equivalência.
O reconhecimento de novas pessoas jurídicas se faz por
razões extra-jurídicas, e o Direito se satisfaz em aplicar seu
princípio de igualdade a todos os sujeitos de direito. O Direito
reconhece a igualdade jurídica de todas as pessoas jurídicas, isto
é, dos seres reconhecidos como humanos. Ora, não há razões
extra-jurídicas para o senhor reconhecer a humanidade de um
não-senhor (escravo, mulher ou criança). O não-senhor é para o
senhor, o escravo. O senhor não quer ser não-senhor realmente, e
nem idealmente, isto é, na sua consciência, colocando-se do
ponto de vista do não-senhor, assumindo mentalmente seu lugar.
O senhor não quer tornar-se realmente um não-senhor, pois ele
prefere morrer.
Outra é a opinião do escravo e de seu Direito burguês,
pois o escravo reconhece desde o início a humanidade do senhor.
O escravo elabora um Direito, considerando-se como uma pessoa
jurídica, um ser humano, portanto, reconhecerá o senhor como
uma pessoa jurídica. No entanto, o escravo admite sua
desigualdade com o senhor, daí criar um Direito baseado no
princípio da equivalência. Ora, se o escravo é uma pessoa
jurídica, um ser humano, então, ele não é mais, somente, um
escravo, mas também um não-escravo, ou seja, um senhor.
Então, ele toma o ponto de vista de um senhor, e mentalmente
toma o seu lugar. Ele aceita, pois, o princípio fundamental do
Direito e da justiça aristocrática. Haverá uma evolução do Direito
burguês e uma síntese com o princípio do Direito aristocrático.
Há uma razão jurídica desta evolução do Direito burguês,
uma vez que os dois se reconhecem como sujeitos de direito.
Esta igualdade é puramente formal ou abstrata: o conteúdo dos
direitos dos respectivos sujeitos podem ser diferentes. Porém
toda a forma tende a tornar-se semelhante ao seu conteúdo, pode-
se dizer que toda igualdade formal tende a transformar-se igual
ao conteúdo. Portanto, a justiça e o Direito de equivalência
tendem a tornar-se uma justiça e um Direito de igualdade. O
escravo é inclinado a querer a igualdade por razões sociais. Se o
senhor não quer tornar-se escravo, este, sim, quer tornar-se
sempre senhor. Por razões tanto sociais quanto jurídicas, o
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 104
escravo não quer realizar seu Direito burguês no estado puro,
mas tenderá reuni-lo com o Direito aristocrático num Direito de
eqüidade.
O senhor que se torna senhor, é outra coisa que o senhor
que nasceu como tal: Ele é cidadão. A evolução do Direito
burguês implica uma revolução igualitária. Não é alcançada a
simples igualdade do Direito aristocrático. O Direito que se torna
igualitário é um Direito cidadão, em que a igualdade se reúne
com a equivalência na eqüidade. O Direito burguês não existe em
ato, é necessário atualizá-lo no Direito do cidadão. Este é um
direito fundado na justiça da eqüidade, isto é, na síntese do
princípio burguês de equivalência com o princípio aristocrático
de igualdade.
Esta é a lógica da evolução do fenômeno do Direito e da
idéia de justiça: segue a lógica da contradição imanente. O
Direito organiza-se, como vimos acima, em dois princípios
jurídicos: a igualdade (em ato) e a equivalência (em potência).
Estes dois princípios, convivendo num mesmo sistema jurídico,
são contraditórios. Esse conflito interno, entre o Direito
aristocrático e o burguês, mostra que os mesmos direitos não têm
o mesmo valor, quando referidos a sujeitos diferentes: sendo
iguais do ponto de vista formal, eles podem não ser equivalentes
de fato. Por isso, o Direito burguês modificará a igualdade formal
para torná-la conforme a equivalência. A suprassunção dos dois
modelos de Direito conduzirá segundo, Kojève, ―à última forma
de Direito (do cidadão), um Direito absoluto. Ora, esse Direito
absoluto, em que a equivalência dos direitos e dos deveres de
cada um se acompanha de uma igualdade de direitos e deveres de
todos, pode ser atual apenas lá onde todos são iguais e
equivalentes, não somente sob o aspecto jurídico ―diante da lei‖,
mas também política e socialmente, isto é, de fato‖ (Kojève,
1981, 313-314).
A justiça de eqüidade será satisfeita, quando reinar a
maior igualdade possível. Porém, a realização da igualdade não
suprimirá a equivalência. A equivalência interna não pode ser
constatada e fixada objetivamente, senão houver crescimento de
vantagens e inconvenientes de uns em relação aos outros. O
crescimento de interesses estimula as trocas, e aquelas,
Filosofia, Reconhecimento e Direito 105
verdadeiramente, equivalentes estabelecem a igualdade. Cabe
ressaltar que a igualdade de todos é uma idéia limitada, pois, as
diferenças biológicas (homem/mulher), de personalidade etc.,
exigirão a aplicação do princípio da equivalência junto ao da
igualdade. E assim, a preponderância da equivalência gerará uma
extensão da igualdade, e vice-versa. A idéia de justiça evolui no
sentido de ampliar os dois princípios e estabelecer uma relação
entre ambos. De um modo geral, o Direito de uma época estará
de acordo com a idéia de justiça desta mesma época. Porém,
aqui, ainda se pode encontrar um desnível e, então, temos o
estímulo da justiça pelo Direito, ou do Direito pela justiça. E nos
dois casos o Direito será um intermediário entre a idéia de justiça
e a evolução da realidade social, pois o Direito aplica tal idéia a
esta realidade. Vejamos as características do Direito do cidadão,
que realiza a justiça de eqüidade.
No Direito aristocrático, sob o ponto de vista puramente
teórico, a pessoa jurídica possui a plenitude de direitos, sem ter
nenhum dever. O Direito burguês, ao contrário, em seu nível
puro, ou apenas teórico, põe o princípio da equivalência entre
direitos e deveres em relação a cada pessoa jurídica. Há, aqui,
uma desigualdade das pessoas que se reflete nas diferenças entre
os direitos e deveres de uma pessoa e aqueles de uma outra.
O Direito do cidadão, fundado sobre a justiça da
eqüidade, combina os direitos e deveres anteriores. Assim, face
ao Direito aristocrático, não se admitirá a existência de direitos
não compensados pelos deveres, nem de deveres sem direitos
correspondentes, mas haverá uma interação entre direitos e
deveres.
Aqui, afirma Kojève, temos uma síntese do
universalismo (ou do coletivismo) do Direito aristocrático e do
particularismo (ou do individualismo) do Direito burguês. Assim
como o senhor, o cidadão terá direitos e deveres universais. Os
direitos de todos sendo iguais, decorrem da pertença à sociedade
e ao Estado, bem como os deveres em relação a todos. É,
enquanto cidadão, membro do Estado e indivíduo que a pessoa
será portadora de direitos e deveres. Isto significa que o
individualismo e o universalismo coincidem, ou seja, os direitos
e os deveres mais pessoais, que podem ser exercidos apenas pelo
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 106
indivíduo, serão os direitos e os deveres mais universais, isto é,
aqueles do cidadão tomado enquanto cidadão, ou aqueles de
todos e de cada um (Kojève, 1981, 320).
A liberdade jurídica consistirá na possibilidade de cada
um fazer tudo o que quiser, com a condição de permanecer de
acordo com a igualdade de direitos e deveres e sua equivalência
respectiva. E igualdade jurídica será garantida pelo fato de que o
valor jurídico de uma interação não será modificado, se
invertidos os seus membros. Ora, quando acontece esse
intercruzamento de direitos e deveres, deve-se admitir a interação
social. Nisso o Direito do cidadão é conforme ao Direito burguês
e contrário ao Direito aristocrático, que admite o estatuto e exclui
o contrato. O estatuto aristocrático se caracteriza por se isolar,
foge da interação com os outros, permanece idêntico a si mesmo.
O contrato do cidadão, ao invés, realiza o estatuto aristocrático,
pois ele une os princípios da igualdade e da equivalência. Os
contratos com a sociedade, com o Estado fixam o estatuto de
pessoas jurídicas. Porém, o estatuto cidadão difere do estatuto
aristocrático, porque ele será o resultado de interações sociais. O
estatuto será pois um contrato, e o contrato um estatuto. É assim
que não se terá mais nem estatuto no sentido aristocrático do
termo, nem contratos no sentido burguês (Kojève, 1981, 321).
Os estatutos cessam de ser hereditários e vitalícios, pois se pode
mudar de trabalho, de classe social, de família e mesmo de
nacionalidade. E cada pertença é uma atividade voluntária e
consciente, em interação com o Estado ou a sociedade: Agora,
cada um é o que faz, ou seja, a atividade não é mais fixada pelo
ser.
O Direito do cidadão adota o conceito funcional de
propriedade. Ela é o resultado do trabalho em obtê-la e, depois,
fixada juridicamente, sendo sua fonte última a interação, ou seja,
o contrato.
Assim, vimos os três modelos de idéia de justiça, sendo
que a última, de eqüidade, a única real, admite muitas aplicações
da idéia de justiça e suas interações sociais.
Após a apresentação das três idéias de justiça,
correspondendo a três modelos de Direito perecebe-se que
Kojève expõe a idéia do Direito como que parafraseando a obra
Filosofia, Reconhecimento e Direito 107
de Hegel sobre os Princípios Fundamentais da Filosofia do
Direito. Hegel afirma logo no início de sua obra: A ciência
filosófica do Direito tem por objeto a idéia do direito, o conceito
do direito e sua efetivação (§ 1º). E no parágrafo 4º diz: O
sistema do Direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do
espírito produzido a partir de si mesmo como uma segunda
natureza (Hegel, 1998). Ora, idéia e sistema são também os
conceitos principais de Kojève para determinar o Direito sob o
conteúdo da justiça.
O desejo de reconhecimento é, para Kojève, a fonte da
idéia de justiça. É este ato antropogênico que dá conteúdo à idéia
de justiça e se torna efetivo na história, regulando as relações
entre os indivíduos e os grupos, de modo simétrico e assimétrico.
Disto resulta os três tipos de justiça, acima expostos, os quais
suscitam diversos modelos de relações sócio-políticas.
O ato antropogênico determina-se pela luta do
reconhecimento, modificando a idéia de justiça e do Direito, no
qual ela se realiza. Assim, o que determina a relação jurídica é o
consentimento mútuo, em primeiro lugar, baseado no
reconhecimento da igualdade. Todavia, esta cessa de existir,
quando um dos combatentes pede para terminar a luta,
oferecendo em contra-partida sua submissão. Vê-se que a luta
antropogênica começa na igualdade e termina na injustiça.
Depois, esta injustiça em relação à justiça da igualdade provoca
um novo consentimento mútuo, que pode ser constatado e
garantido por um terceiro desinteressado, engendrando uma
nova idéia de justiça que é a equivalência. Aqui, a situação pode
ser justa, sendo porém, desigual. Kojève, após ter reconhecido
que estas duas justiças se opõem como uma justiça do senhor e
uma justiça de escravo, conclui que o homem nasce de um ato
único (duplo, mas recíproco), portanto ele só pode atualizar-se
completamente pela síntese do senhor e do escravo. Enfim, tem-
se um novo processo, o último na luta antropogênica: a idéia de
uma justiça de eqüidade, suscita o nascimento na história da
figura do cidadão (cf. Labarrière, 2001, 558).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 108
4. Modelos Metodológicos de Reconhecimento: do direito
subjetivo ao intersubjetivo
Conforme se viu acima, a passagem de uma perspectiva
auto-referencial de sujeito de direito para uma perspectiva
intersubjetiva veio a ser promovida, primeiramente pela noção de
relação jurídica esboçada por Fichte; mas, será em Hegel que
esta intersubjetividade fichteana precária alcançará o status de
instrumentação metodológica capaz de abordar, de maneira
eficaz e conseqüente, as aporias apresentadas pela realidade
social, posta à luz pela modernidade, para as quais a filosofia
social moderna não está em condições de explicar (...) já que
permanece presa a premissas atomísticas...(Honneth, 2003, 42).
Tais aporias, e elas são muitas, Hegel as examina nas
duas primeiras partes do artigo sobre o Direito Natural, de
maneira crítica e refutadora, para a seguir, na terceira e quarta
partes, resgatar das teorias, ditas, empíricas e formalistas, o que
de universal era pelas mesmas aportado. Mas, sem dúvida, é na
abordagem do conceito de pessoa jurídica, feita por Hegel, que
situamos o ponto de inflexão entre uma perspectiva auto-
referencial e uma perspectiva intersubjetiva (ou relacional) do
Direito.
Se a todo o momento o Direito Natural afirmara, até
então, a liberdade do ponto de vista do indivíduo, na questão
específica da pessoa jurídica, esta noção era exacerbada no
jusnaturalismo de corte racionalista da ilustração. Assim, Hegel,
apontando as características produtivas da concepção moderna de
pessoa jurídica, a coloca no devido lugar, mesmo constatando
que o direito abstrato (jusnaturalismo da ilustração) é formal,
aproveita ainda, a concepção de pessoa jurídica aí formulada,
situando-a, porém, no direito abstrato, §§ 35, 36 e 37 da Filosofia
do Direito; portanto, numa situação de passagem para o direito
da eticidade.
Inobstante, duas constatações devem ser consignadas:
que, conforme tem sido apontado por Bobbio, por exemplo,
também na perspectiva jusfilosófica o pensamento da ilustração
limitou-se em definir a sociedade civil, tomando-a pelo Estado; e
que, em nada obstante o alertado por Hegel, esta necessidade de
Filosofia, Reconhecimento e Direito 109
superação do direito abstrato, com sua visão exacerbada do
indivíduo, não foi contemplada.
De tal maneira que, mesmo na Alemanha, toda a doutrina
jurídica permaneceria acolhendo, como pessoa jurídica, a este
indivíduo livre, que não reconhece nenhuma norma acima dele,
autônomo — no sentido pobre do termo — e que concebe o
ordenamento jurídico como sendo criado a partir de acordos
livremente pactuados entre si e os demais que a ele se
assemelham. Ora, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser
intersubjetiva, constitui a superação do modelo subjetivista
moderno do Direito.
Pelo exposto em Hegel e Kojève, percebemos que
existem modelos metodológicos diferenciados de
reconhecimento e da idéia de Direito. No que se refere ao
problema da metodologia como vimos acima, Hegel inclui a
dialética como um dos momentos fundamentais do método
especulativo. Enquanto que, para Kojève, a dialética é o fim de
sua metodologia. Mais ainda, seu modelo tem, como pressuposto,
um dualismo originário, enquanto que para Hegel, há uma
constituição monista que se movimenta, especulativamente, em
seus diversos conteúdos e momentos do sistema.
Em nada obstando o fato de terem sido já levantadas
argüições, no sentido de apontar como abusivamente
antropologizante, a leitura kojeviana da Fenomenologia do
Espírito, e, assim, inadequada, concordamos com a perspectiva
de Labarrière (1996), segundo a qual a leitura de Kojève não
caracteriza um mau uso da obra de Hegel. Esta leitura constitui
íntima conexão entre a dialética idealista e [a dialética]
materialista, conforme Marcuse (1978, 409), em seu suplemento
bibliográfico à Razão e Revolução.
Na Esquisse d’une phénoménologie du Droit, Kojève, ad
perpetuam rei memoriam, repisa que a especificidade do Direito
reside, precisamente, na presença do terceiro desinteressado
(imparcial); diz ainda que a dominação e a servidão são
fenômenos sociais e que, portanto, para compreender o fenômeno
jurídico é necessário centrar-se no estudo deste terceiro
(Kojève,1981, 191).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 110
Por esta senda, é do desempenho deste terceiro imparcial
que se chega ao Direito, enquanto aplicação de uma idéia de
justiça às interações sociais dadas, e mesmo que caibam outros
atores neste desempenho (tais como o legislador e o
administrador público) é, especialmente, a atividade do Juiz que
a ele corresponde (Kojève1981, 192).
Mesmo que na Esquisse venha tão afirmativamente
destacada figura deste terceiro imparcial, não resta claro o lugar
que é por ele ocupado metodologicamente, na estrutura da
dialética esposada por Kojève.
No entanto, se nos socorremos da Introduction à la
lecture de Hegel, veremos que se pode evidenciar uma
aproximação entre o desempenho do terceiro desinteressado e a
categoria da mediação. Nesta obra, diz Kojève que:
Hegel expressa a diferença entre o Ser e o Real ―téticos‖
(Identidade) e o Ser e o Real ―sintéticos‖ (Totalidade)
dizendo que os primeiro são imediatos (unmittelbar),
enquanto que os segundos são mediatizados (vermittelt)
pela ação ―antitética‖ (Negatividade) que os nega
enquanto ―imediatos‖. E pode-se dizer que as categorias
fundamentais da Imediatidade (Unmitterlbarkeit) e da
Mediação (Vermittlung) resumem toda a dialética real
que Hegel tem em vista (Kojève, 1994, 481).
Vistas, assim, as posições dos litigantes em uma relação
social, como entidades imediatas, como realidades estáticas
dadas, a entidade mediatizada, que as porá em movimento é a
ação do Juiz que as suprassume, ou seja que, pela aplicação da
equidade, reconhecerá, em cada uma das posições, suas
especificidades, expressando assim na decisão a identidade da
identidade e da diferença.
A substância jurídica própria da decisão deste terceiro é
imanente à ordem concreta em que ele e os litigantes se inserem,
ou seja, é a Idéia de Justiça ai posta, isto é, o conceito jurídico
concreto e nunca um direito abstrato qualquer, uma vez que,
conforme Carl Schmitt, sem o sistema de coordenadas da ordem
concreta, o positivismo jurídico não saberia distinguir entre
Filosofia, Reconhecimento e Direito 111
direito e não direito, entre objetividade e arbitrariedade subjetiva
(Schmitt,1995, 92).
Em Hegel, o Direito tem seu estatuto na determinação da
idéia de liberdade nos diversos momentos que compõem a
Filosofia do Direito. O reconhecimento simétrico de direitos e
deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e
da eticidade. Ora, a metodologia hegeliana implica que a pessoa
garanta o reconhecimento de seus direitos e deveres no direito
abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de agir
intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou
seja, participando do Estado.
Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária
pelo desejo de reconhecimento entre o senhor e o escravo. Disto
decorre uma tríplice tipologia da idéia de Direito, configurando-
se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência
burguesa e idéia de eqüidade cidadã. O Direito é, então, a
determinação da idéia de justiça.
Sabe-se que Kojève em sua análise da Fenomenologia do
Espírito de Hegel aplica, permanentemente, a metodologia
dialética do senhor e do escravo. Ora, será que Kojève mantém a
mesma metodologia para analisar o fenômeno do Direito? Pode-
se defender duas hipóteses: a) Kojève manteria a mesma
metodologia dialética na determinação da idéia de justiça; b)
Porém, na descrição fenomenológica da tipologia, ele introduz
um terceiro imparcial e desinteressado, ou seja, quando o autor
aplica a idéia de justiça para o Direito, haveria uma superação da
dialética pela mediação do terceiro, enquanto momento de
superação do antagonismo no embate entre os litigantes.
Teríamos assim, um momento especulativo que seria o mesmo da
metodologia hegeliana. Isto fica explícito já na segunda seção
(Origem e evolução do Direito) e comprova-se na terceira (O
sistema do Direito) em que Kojève faz uma aplicação das três
idéias de justiça para o Direito internacional, Direito público,
Direito penal e Direito privado.
Em que medida esses modelos metodológicos são
importantes para compreender o fenômeno jurídico? Qual é a
vantagem de um e de outro, ou ainda, como podem ser
complementares para a superação do Direito moderno, centrado
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 112
na garantia subjetiva dos direitos?
A metodologia de Kojève descreve o desejo de
reconhecimento, enquanto uma idéia de justiça na sua polaridade
máxima do senhor e do escravo. Essa tipologia permite
compreender o fenômeno jurídico na sua constituição sócio-
histórica. Nesse sentido, a reflexividade entre os sujeitos que
buscam o reconhecimento constitui um momento fundamental
para a constituição intersubjetiva do Direito. Tem-se a posição de
sujeitos que determinam os seus desejos pela idéia de igualdade-
equivalência-eqüidade, na superação dos conflitos advindos de
interesses contraditórios. O terceiro imparcial e desinteressado
que atravessa todo o Esboço de Kojève insere o momento
intersubjetivo na constituição do Direito.
Em Hegel o reconhecimento passa pela mediação da
eticidade, enquanto momento garantidor de um Direito
intersubjetivo. Então, pode-se afirmar que os modelos são
complementares, na medida, em que Kojève acentua o momento
dialético e a idéia de justiça, e Hegel, o momento especulativo e
a idéia de liberdade. Assim, ambos os modelos são importantes,
para a constituição do Direito intersubjetivo.
Nosso propósito inicial, foi encontrar referenciais
teórico-práticos, para superar o modelo subjetivista do Direito e
construir uma metodologia da intersubjetividade jusfilosófica.
Para isso, descrevemos a arqueologia da teoria hegeliana do
reconhecimento, fixando-nos, sobretudo, na Fenomenologia,
onde encontramos na figura do senhor e do escravo a luta pelo
reconhecimento. Ora, esta é a figura paradigmática que Kojève
utiliza para construir sua metodologia dialética, partindo do
desejo antropogênico como fonte originante do reconhecimento.
As metodologias de Hegel e Kojève, embora tenham suas
especificidades, ambas são importantes para fundamentar um
Direito intersubjetivo.
Pressupondo que a metodologia hegeliana desenvolvida
na Filosofia do Direito já é assaz conhecida, enquanto
desenvolvimento da idéia de liberdade intersubjetiva, expomos a
determinação da idéia de justiça em Kojève na sua tríplice
tipologia: Igualdade, equivalência e eqüidade, constituindo-se,
atualmente, num referencial teórico-prático da intersubjetividade
Filosofia, Reconhecimento e Direito 113
jusfilosófica em três níveis, aqui enunciados, e que permanecem
como abertura para futuros estudos:
1°) A idéia de justiça como igualdade determinando-se
no reconhecimento do Direito nas esferas global, nacional e
local, garantindo identidades e diversificação cultural.
2°) A idéia de justiça como equivalência de direitos e
deveres na redefinição do Estado de Direito e a organização de
blocos regionais no início deste novo milênio.
3°) Enfim, a idéia de justiça como eqüidade, enquanto
síntese cidadã intersubjetiva, em nível sócio-econômico
sustentável e inovação político-tecnológica.
A teoria do reconhecimento hegeliano e a fenomenologia
do Direito, baseada na determinação da idéia de justiça de
Kojève, ratifica o movimento por um Direito intersubjetivo, ou
seja, ratifica a tese comunitarista jusfilosófica. Trata-se de uma
concepção pluralista da justiça fundada na idéia de igualdade
complexa (Walzer); um maior cuidado no que concerne ao
problema da distribuição dos bens culturais, bem como às
questões relacionadas aos grupos vulneráveis (Young); dos
aspectos importantes da relação entre justiça e democracia
deliberativa (Habermas); por fim, da análise do princípio de
imparcialidade como base eqüitativa para o acordo entre as
diferentes concepções do bem que coexistem nas sociedades
plurais e democráticas (Barry) (Rabenhorst, 2006, 494-495 In:
Barreto, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito).
Assim, postos estes desafios de atualização, tanto em
nível sócio-jurídico, bem como no debate comunitarista, insere-
se a teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés jusfilosófico
de Hegel e Kojève, como uma referência incontornável na
construção de um Direito intersubjetivo.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 114
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder e a vida nua I (Trad.
Henrique Burigo). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de excepción (Trad. Flavia Costa e Ivana
Costa). Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2004.
BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de Filosofia do
Direito. São Leopoldo. UNISINOS, 2006.
BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel. Direito, Sociedade Civil,
Estado. 2ªed., São Paulo: UNESP/Brasiliense, 1991.
BOURGEOIS, Bernard. Études Hégéliennes. Raison et Décision. Paris:
PUF, 1992.
BOURGEOIS, Bernard. Hegel. Os atos do espírito. São Leopoldo:
UNISINOS, 2004.
BOURGEOIS, Bernard. Le Droit Naturel de Hegel (1802-1803).
Commentaire. Contribution à l‘étude de la genèse de la spéculation
hégélienne à Iéna. Paris: Vrin, 1986.
BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político de Hegel. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2000.
FICHTE, J. G. Fondement du droit naturel selon les príncipes de la
doctrine de la science (Trad. Alain Renaut). Paris, PUF, 1984.
HABERMAS. J. O Discurso filosófico da modernidade. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1998.
HEGEL, G. W. F. Des manières de traiter scientifiquement du droit
naturel, de sa place dans la philosophie pratique, et de son rapport aux
sciences positives du droit. (Trad. B. Bourgeois). Paris: Vrin, 1990.
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas (1830). v. I.
São Paulo: Loyola, 1995.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 115
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas (1830). v. III.
São Paulo: Loyola, 1995.
HEGEL, G. W. F. Principes de la philosophie du droit. Trad. de Jean-
François Kervégan. Paris: PUF, 1998.
HEGEL, G. W. F. Principios de la Filosofía del Derecho. Trad. de Juan
Luis Vermal. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1975.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito Trad. Paulo Meneses.
Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Universidade São Francisco, 2002.
HEGEL, G.W.F. O Sistema da vida ética. Lisboa: Edições 70, 1991.
HEGEL, G.W.F. L’esprit du christianisme et son destin. Paris: Vrin,
1988.
HEGEL, G.W.F. Foi et Savoir. Kant-Jacobi-Fichte. Paris: Vrin, 1988.
HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos
conflitos sociais (Trad. Luiz Repa). São Paulo: Editora 34, 2003)
JARCZYK, Gwendoline e LABARRIÈRE, Pierre-Jean. De Kojève a
Hegel. 150 anos do pensamento hegeliano na França. Paris: Ed. Albin
Michel, 1996.
JARCZYK, Gwendoline e LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Hegeliana.
Paris: PUF, 1986.
KOJÈVE, Alexandre. Esquisse d’une phénoménologie du Droit. Paris:
Gallimard, 1981.
KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel, Paris:
Gallimard, 1994.
KOJÈVE, Alexandre. Outline of a Doctrine of French Policy,
http://www.policyreview.org/aug04/kojeve.html Acessado em 13 de
junho de 2006.
MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria
social (Trad. Marília Barroso) 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 116
LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Esquisse d‘une phénoménologie du droit.
In Dictionnaire des oeuvres politiques. Organizado por François
Châtelet, Olivier Duhamel, Evelyne Pisier. Paris: PUF, 2001.
SCHMITT, Carl. Les trois types de pensée juridique. Paris: PUF, 1995.
SOUCHE-DAGUES, Denise. Hégélianisme et Dualisme. Paris: Vrin,
1990.
C. O Idealismo Especulativo e o Problema da
Fundamentação Ético-Política da Mediação Institucional
e do Reconhecimento Intersubjetivo na Filosofia Prática
Contemporânea
Manuel Moreira da Silva
1
1. Posição do Problema
Trata-se de uma consideração especulativa – nos limites
de uma primeira aproximação – em torno do problema da
fundamentação estritamente filosófica do Direito
contemporâneo; de modo mais específico, do problema da
constituição de sua natureza a um tempo mediativo-institucional
e intersubjetivo-recognoscível. Nosso esforço consiste numa
tentativa de se pensar o papel das instituições, enquanto elemento
mediador das relações entre os indivíduos que se colocam em
situação de reconhecimento recíproco; isso, a partir da retomada
e desenvolvimento da Concepção especulativa do Direito, tal
como estabelecida por G. W. F. Hegel em suas Grundlinien der
Philosophie des Rechts2, agora no âmbito da mediação entre os
sujeitos que não mais se circunscrevem à esfera do Espírito
1 Guarapuava – UNICENTRO/PR 2 Veja-se, G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder
Naturrechts und Staatswissenschaft im Grundrisse, neu herausgegeben von
Hermann Glockner. Stuttgart: Frommans Verlag, 1952 [SW, 7]. Esse texto
será doravante citado com a sigla ‗GPhR‘, seguida de ‗§‘ para os parágrafos,
‗A.‘ para as respectivas anotações e ‗Ad.‘ para os adendos por ventura
existentes. No caso do Vorrede e quando mais for necessário, indicar-se-á a
página antecedida de J (do Jubileu). A versão brasileira dessa obra (a partir
da edição de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, v. 7, das Werke,
Surhkamp, Frankfurt a. M., 1970), a cargo de Marcos Lutz Müller, está em
progresso – vejam-se as publicações do IFCS da UNICAMP: Clássicos da
Filosofia: Cadernos de Tradução, no. 10, no. 5, no. 6, respectivamente para a
Introdução, O Direito Abstrato e A Sociedade Civil; bem como, Idéias, no. 2,
para A Moralidade, e Textos Didáticos, no. 32, para O Estado. Seguiremos de
perto a referida versão em nossas citações do texto em questão, mas sem nos
prendermos a todas as preferências do tradutor; isso, em geral, sem especial
indicação, o que faremos quando necessário – como no caso de conceitos
chave ou passagens especialmente recalcitrantes.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 118
subjetivo, mas que também ainda não passaram à esfera do
Espírito objetivo. Esses, embora já tenham passado pelo
reconhecimento fenomenológico, mais epistêmico que prático ou
espiritual, ainda não se puseram como eus espirituais que ―em si
e para si, e uns para os outros, são perfeitamente livres,
autônomos, absolutamente rígidos, opondo resistência – e, no
entanto, ao mesmo tempo idênticos – uns aos outros, e assim
não-autônomos, não impenetráveis, mas de certo modo
confundidos‖3; portanto, ainda não se puseram em situação de
reconhecimento intersubjetivo como seres espirituais. Vamos
proceder a um primeiro esboço da esfera intermediária posterior
ao Espírito subjetivo e anterior ao Espírito objetivo – a rigor, não
tematizada por Hegel – que, como tal, se põe no plano de uma
Filosofia do Espírito intersubjetivo ou, como se tem
desenvolvido na filosofia mais recente, Filosofia das Instituições;
bem entendido, que pretendemos desenvolver, das Instituições
como Ato de instituir e, assim, objetivar o próprio Eu espiritual
no âmbito de uma Comunidade ideal do Espírito, efetiva em si e
para si, em seu Conceito e em sua Objetividade.
Assim, não discutiremos aqui nenhuma problemática
referente ao Direito stricto sensu, tal como ele se faz valer nos
dias de hoje, ou o que é o mesmo, no âmbito restrito da ciência
positiva particular voltada para o fenômeno ou para a teoria pura
do Direito. Tomaremos, em questão, o Direito lato sensu – no
âmbito da Idéia mesma do Direito, da Identidade negativa de seu
Conceito e sua efetividade – portanto, da esfera total da Ciência
do Direito, como realização da Filosofia prática e seus momentos
constitutivos. Mas isso nos quadros da atividade prática do
3 Ver, G.W.F. HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio
(1830). III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e José Machado,
São Paulo: Loyola, 1995, pp. 207. [De ora avante citada pela inicial ‗E‘,
seguida de ‗§§‘, para os parágrafos correspondentes, e, se for o caso, de ‗A‘,
para a respectiva Anotação (Anmerkung) ou ‗Ad.‘, para o adendo (Zusatz) do
―§‖ correspondente. No caso: E, § 436 Ad. Sempre que não houver
indicações especiais, estaremos utilizando a Enzyklopädie der
philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), herausgegeben von
Wolfgang Bonsiepen und Hans-Christian Lucas. Hamburg: Felix Meiner,
1992; para os adendos, faremos uso da edição Glockner; no caso dos
―Prefácios‖ e dos adendos, sempre se indicará a versão utilizada.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 119
Espírito livre, em seu vir-a-ser objetivo, não nos quadros de uma
objetividade, enquanto já constituída como tal. Portanto, não,
enquanto o conjunto das instituições instituídas ou objetivadas,
próprias do Direito abstrato, da Moralidade ou da Eticidade, que
como tais se apresentam como elementos operativos ou
constitutivos no interior dessas subesferas e sim, do Ato pelo
qual a instituição do que quer que seja se instaura como tal nesse
Ato, mesmo enquanto o próprio instituir. Isso,
fundamentalmente, consiste na explicitação dos elementos
ativamente constituintes da mediação efetiva da instituição da
Moral – como esfera da práxis individual – e da instituição da
Ética, enquanto âmbito da práxis coletiva e social, de modo a
pensar o Espírito intersubjetivo – em sua efetividade lógico-real
– como o elemento atuante e instituinte de si mesmo, da
subjetividade e da objetividade, bem como das respectivas
esferas que, a partir de cada uma dessas determinações, se
tornam emergentes no interior do próprio Absoluto e em seu
autodesenvolvimento manente4. Em suma, trata-se de mostrar
como o próprio indivíduo – subjetividade finita e particular que
age consciente de sua liberdade e das instituições (como
subjetividades transfinitas, mas ainda particulares); nas quais, e
pelas quais essa ação livre e consciente se plasma em seus mais
4 Autodesenvolvimento manente, aqui, diz respeito à Manência ou à Monè, o
permanecer do princípio na própria causa enquanto aquilo que, a um tempo,
torna imutável e dinâmica cada uma das esferas nas quais ele se desdobra;
bem como, ao mesmo tempo, engendra o processo de cada esfera – henádica
ou monádica – ou a processão de seus derivados e os faz retornar ao seu
ponto de partida. Veja-se: PROCLUS, Éléments de théologie, trad. Jean
Trouillard, Paris: Aubier-Montaigne, 1965, pp. 67-90 ss.; 100-120 ss.; 127-
159 ss.; 162-166 ss. [De ora avante citada conforme se segue: ETh, §§ 11-44
ss.; 64-100 ss.; 113-165 ss.; 171-175 ss.]. Veja-se também, W.
BEIERWALTES, Proclo: I fondamenti della sua metafísica, trad. Nicoletta
Scotti, – Seconda edizione – Milano: Vita e Pensiero, 1988. p. 161 ss. Sobre
a identidade do Manente e do Especulativo puro, isso discutiremos em outra
oportunidade; para o momento, veja-se: G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über
die Geschichte der Philosophie, III, Glockner, pp. 71-92 [citado de ora
avante conforme se segue: (VGPh, III, J, pp. 71-92)]; sobretudo, p. 84; p. 72.
Versão espanhola: G. W. F. HEGEL, Lecciones sobre la História de la
Filosofia, III, traducción de Wenceslao Roces, Mexico: FCE, 1997, pp. 54-
68; sobretudo, p. 63; p. 67; compare-se com E., § 82 Ad.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 120
diversos planos e níveis de objetividade – não é, senão (a) uma
instituição instituída cuja instauração (b) só pode ter lugar
mediante um Instituir tal que, por sua vez, só pode ser atividade
espiritual em si e para si, una e absoluta.
Contudo, como boa parte das teorias científicas e
filosóficas do presente não só tem se resignado a certo
naturalismo – orientação hoje dominante em todas as esferas do
ser e do pensar; mas também, sobretudo, tem recaído em formas
de mediação que, embora segundo determinados pontos de vista
não sejam reconhecidas como naturalistas, são comuns tanto às
filosofias naturalistas quanto às filosofias que se opõem ao
naturalismo5. O ponto de vista aqui a ser desenvolvido não só
não se mostra evidente ao sensus communis, como caminha na
própria contracorrente deste. Prova disso é o fato mesmo da
postulação – pela quase totalidade das correntes da filosofia mais
recente – da Linguagem como medium universal, e da
Intersubjetividade, enquanto princípio fundante não só das
ciências em geral, mas também, a rigor, da Ética e da Metafísica;
mas isso tão só em vista de uma justificação do estado presente,
em que se encontra o Ser-autoconsciente do Espírito em nossa
época. Esse, ainda imerso na fragmentação operada pela
hipertrofia das faculdades cognitivas humanas, cada uma
exclusiva por si e, portanto, pela dissolução da Cidade subjetiva,
na qual cada indivíduo é, para si não só uma pluralidade de eus
integrados num Eu infrapessoal ou transpessoal6; mas uma
totalidade absoluta que, como Espírito livre, media-se
5 No caso de Hegel, no âmbito de sua retomada na filosofia mais recente, isso
é representado entre outros, de um lado, por A. HONNETH, Luta por
reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, trad. Luiz Repa,
Rio de Janeiro: Editora 34, 2003, pp. 23-24; 122-123 ss.; de outro, V.
HÖSLE, Moral und Politik: Grundlagen einer Politischen Ethik für das 21.
Jahrhundert. München: Beck, 1997, p. 422 ss. 6 Ver, entre outros, F. GUATTARI, Restauração da Cidade Subjetiva, in:
Caosmose: Um novo paradigma estético, trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia
Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 167-179; B. LAHIRE, ‚
Homem plural: Os determinantes da ação, trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis:
Vozes, 2002; K. WILBER, Transformações da consciência: o espectro do
desenvolvimento humano, trad. Sônia Maria Christopher. São Paulo: Cultrix,
2000.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 121
negativamente consigo mesma no âmbito da mediação positiva
com seu oposto – a totalidade das totalidades absolutas que são
cada espírito livre7 – sob o horizonte da Cidade objetiva, na qual
e a partir da qual todos os indivíduos são compreendidos e se
compreendem, reciprocamente, como membros de uma
Comunidade ideal do Espírito. Eis aí, pois, o escopo e o desafio
maior que aqui nos propomos: não só restaurar a Cidade
subjetiva, mas, precipuamente, estabelecer os limites e o alcance
da Idéia da Comunidade ideal do Espírito, como horizonte último
de toda mediação institucional e de todo reconhecimento
intersubjetivo; com isso, pensamos estar contribuindo para a
retomada e o desenvolvimento daquilo que outrora foi
denominada Concepção especulativa do Direito.
Em sua expressão clássica, essa concepção foi levada a
cabo tão somente nas Grundlinien der Philosophie des Rechts,
sobretudo na Einleitung, por G. W. F. Hegel. Essa tentativa,
entretanto, fazendo nossas as palavras de Lima Vaz, apesar de
seu intento em ―unificar, numa superior Filosofia do Espírito
objetivo, praxis individual e praxis social, reintegrando num
campo mais abrangente de significação Ética e Moral, não
encontrou herdeiros à altura das suas ambições teóricas‖8. Ainda
que Lima Vaz se limite às relações entre Ética e Moral –
respectivamente, entre a defesa da realidade histórica e social dos
costumes e o privilégio da subjetividade do agir – não se
voltando, portanto, para os problemas do Direito stricto sensu,
em especial, para o problema de como aí a praxis individual e a
praxis social se constituem legitimamente como tais; na medida
em que a subjetividade do agir e a realidade histórica e social dos
costumes se põem como problema para o Direito lato sensu, isso
acarreta graves conseqüências quanto à aplicação da Lei e sua
legitimação9 – sobretudo para o próprio Direito stricto sensu –,
7 Ver, E, §§ 436 Ad.; 441 Ad.; 481 ss. 8 Ver, H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética
Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999, p. 15. 9 Para uma primeira aproximação em torno do problema da Lei na perspectiva
que fazemos nossa, veja-se, M. M. SILVA, Introdução ao problema da
fundamentação especificamente filosófica do Direito Contemporâneo. In:
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 122
extrapolando assim os limites do procedimentalismo estrito até
agora vigente10
. É interessante notar que, justamente, a partir das
últimas décadas, ao contrário da dicotomia cada vez mais
crescente no plano das relações entre Ética e Moral; no plano do
Direito lato sensu e do Direito stricto sensu, essa dicotomia não
só se torna cada vez menos significativa, mas aquela relação
mais acima referida; entre a defesa da realidade histórica e social
dos costumes e o privilégio da subjetividade do agir – ainda que
em se invertendo em relação ao modo como se dá no caso da
Ética e da Moral; torna-se como que o âmago das relações entre
o Direito lato sensu e o Direito stricto sensu. Se, de um lado, a
Moral parece encarnar-se no Direito lato sensu, justificando
assim a subjetividade do agir, mesmo no âmbito de sua
compreensão pelo Direito stricto sensu como ilegal, e pela Ética
como destituída de eticidade; de outro lado, por conseguinte,
embora pareçam ainda permanecer em campos opostos, Ética e
Direito stricto sensu aproximam-se cada vez mais; justamente em
função de ambos se fundarem, em última instância, na defesa da
realidade histórica e social dos costumes. De onde, enfim, aquela
dicotomia inicial começar a se dissolver, à medida mesma que o
Direito a absorve, terminando assim também por absorver a Ética
e a Moral; fazendo, portanto, com que o programa especulativo
de uma Ciência rigorosa do Direito se mostre mais uma vez
como algo efetivo.
Temos, portanto, um exemplo concreto daquilo que
Hegel designou como a Idéia do Direito, isto é, o Conceito do
Direito e sua efetivação11
. Porém, para que possamos
compreender o que se pretenderá desenvolver, há que se ter em
conta que os termos ‗Idéia‘ e ‗Conceito‘ não designam o que
comumente se entende pelos mesmos; mas, respectivamente, ―a
Guairacá, Guarapuava/PR, no. 21, (2005): 103-121. [Revista impressa em
2006/1]. 10 Exemplo disso é o caso recente de processos pró ou contra o aborto, veja-se,
a respeito, a decisão do ministro Edson Vidigal em torno do HABEAS
CORPUS Nº. 51.982 - SP (2005/0215644-4), sobre o direito de interrupção
de gravidez. URL=< http://www.stj.gov.br/webstj/Noticias/imprime_noticia.
asp?seq_noticia=16127>, acesso em abril de 2006. 11 GPhR, § 1.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 123
efetividade dos homens, por isso, não a Idéia que eles têm, mas a
que eles são‖12
e ―o que unicamente tem efetividade e que a tem
de modo tal, que ele mesmo se dá essa efetividade‖13
. Essa
efetividade, por conseguinte, põe-se como ―a configuração que o
Conceito se dá na sua efetivação‖14
; o que significa, em suma,
que o Conceito aqui não é senão o próprio homem compreendido
enquanto Espírito livre ou Vontade livre que é para si mesma
como Vontade livre; uma vontade livre como tal efetiva, mas não
ainda perfeitamente efetivada ou desenvolvida em sua
objetividade15
, que ainda se limita, portanto, a uma atividade
formal que, como Infinitude, se funda no que Hegel designa
―Negatividade que se reporta a si‖ (sich auf beziehender
Negativität)16
; cujo phulchrum é o mediar-se de si consigo
mesma dessa atividade e seu retorno adentro de si, como
Vontade17
. De onde, enfim – ainda que isso não seja explícito
para Hegel ele mesmo –, a fundação da própria Idéia no que em
outro lugar denominamos primeiro princípio motor do
Especulativo puro18
, a saber: no Juízo infinito; pois, como ele
próprio nos diz, enquanto ―síntese do Infinito e do Finito‖19
ou
como ―o Juízo infinito cujos lados são, cada um, a totalidade
autônoma, e, justamente, porque cada um nela se implementa, [e
12 E, § 482 A. 13 GPhR, § 1, A. 14 Ibid. 15 E, §§ 481-482. 16 GPhR, § 7, A. Esse termo é traduzido por Müller como ―Negatividade se
relacionando a si mesma‖. 17 Ibid. 18 Sobre esse ponto, veja-se, M. M. SILVA, O problema da fundação
especulativa do Especulativo puro no Sistema de Hegel e a determinação
especulativa dos princípios motores da Lógica especulativa, in: Revista
Eletrônica Estudos Hegelianos, Recife/PR, v. 02, n. 03, (2005): URL =
<http://www.hegelbrasil.org/rev03e.htm>, Seção III. 19 Ver, G. W. F. HEGEL, Habilitationsthesen, in: Werke, 2. Jenaer Schriften
(1801-1807), neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl
Markus Michel, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 533. Veja-se, ainda,
a versão espanhola: G. W. F. HEGEL, Essencia de la Filosofia y otros
escritos, seleccion, traduccion y notas de Dalmacio Negro Pavon, Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1980, p. 160; nota 7, pp. 232-233.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 124
assim] passa para o outro lado‖20
, a Idéia é a totalidade
consumada; à qual nenhum conceito determinado pode se elevar,
em seus dois lados, fora do Conceito mesmo e da Objetividade.
Esse, contudo, parece-nos o ponto mais problemático,
tanto da consideração hegeliana em torno do que hoje em dia
designamos mediação institucional e reconhecimento
intersubjetivo quanto do lugar sistemático dessas determinações
no âmbito da Ciência do Direito na atualidade. De modo mais
rigoroso, é preciso reconhecer que a complexidade a que chegou
o Direito chamado positivo, na época atual, apresenta ao
estudioso, interessado na sua consideração especificamente
filosófica, alguns paradoxos que a pura teoria jurídica
contemporânea ou deixa intocados, ou resolve de modo apenas
dogmático e, por isso mesmo, anacrônico21
. Exemplo disso,
ainda que reconheça ao Direito contemporâneo o título de
Ciência do Espírito e mesmo supere o dualismo entre Direito e
Estado, é que a Teoria pura do Direito – nomeadamente segundo
sua elaboração por Hans Kelsen22
– não é capaz de reconciliar
Filosofia do Direito e Ciência jurídica; de onde cada uma ser
compreendida sob formas as mais diversas, quase sempre ficando
para a primeira tão somente a explicitação do sentido e o
significado das normas jurídicas como tais e das proposições
teóricas que a segunda tem, por tarefa, demonstrar; do que resulta
a mais completa dissociação entre o trabalho do jus-filósofo, o do
cientista do direito e o do jurista propriamente dito. Por isso, a
objetividade postulada pela Teoria pura do Direito, ao limitar-se
à objetividade meramente metodológica e/ou epistemológica –
em última instância: procedimental – não só se mostra incapaz de
compreender organicamente o fenômeno do Espírito objetivo
como tal, como também não ignora que os problemas da
mediação institucional e do reconhecimento intersubjetivo
20 E, § 214 A. 21 Para uma discussão introdutória desses paradoxos no âmbito da
fundamentação filosófica do Direito contemporâneo, ver: M. M. SILVA,
Introdução ao problema da fundamentação especificamente filosófica do
Direito contemporâneo, in: op. cit., pp. 103-121. 22 Veja-se, H. KELSEN. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado.
‗São Paulo: Martins Fontes, 2000. [Edição original, 1960].
Filosofia, Reconhecimento e Direito 125
exigem fundamentalmente sua assunção em um plano
ontológico, mais precisamente: ontoprático; o que, devido ao seu
ponto de partida – a desvinculação do Jurídico em relação ao
Político –, a Teoria pura do Direito não pode realizar.
A questão fundamental é que a exigência ontoprática da
solução dos problemas da mediação institucional e do
reconhecimento intersubjetivo não pode se limitar à revinculação
do Jurídico ao Político, mas, nessa revinculação, mediante a qual
se produz o que designamos Instituições, tem que fundá-la em
um plano estritamente lógico-metafísico; pelo menos no que diz
respeito ao conceito de Instituições, como afirma Vittorio
Hösle23
, nem mesmo Hegel – em sua obra maior, a Wissenschaft
der Logik – foi capaz de realizar24
. Ora, do ponto de vista
especulativo, o problema que se põe não é o de uma fundação
meramente a priori do que é principiado, como tal distinta do a
posteriori, mas a exigência da fundação especulativa do próprio
princípio fundante e levá-la a cabo em um plano que suprassuma
tanto o princípio fundante quanto o principiado nele
distintamente fundado; por isso, ao contrário do ponto de vista do
Idealismo objetivo hösliano25
, o que caracteriza o ponto de vista
23 Veja-se, a respeito, V. HÖSLE, Die Stellung Hegels Philosophie des
objektiven Geistes in seinen System und ihre Aporie, in: Ch. JERMANN
(Hg.), Anspruch und Leistung von Hegels Rechtsphilosophie, Stuttgart-Bad
Cannstatt: Frommann-Hozsboog, 1987, p. 49 ss. 24 Para uma primeira tentativa de retomada e desenvolvimento especulativo
dessa questão, sobretudo em resposta à crítica contemporânea ao Idealismo
absoluto hegeliano, ver: M. M. SILVA, A natureza especulativa da
objetividade no Idealismo absoluto da Subjetividade e o formalismo do
Idealismo objetivo da Intersubjetividade, in: Revista Eletrônica Estudos
Hegelianos, Recife/PR, v. 01, n. 01, (2004): URL =
<http://www.hegelbrasil.org/rev01c.htm>; veja-se, em especial, Seção III. O
conceito hegeliano da Objetividade e sua função no Mundo do espírito, o “a
priori objetivo” e a Intersubjetividade. 25 Ver, V. HÖSLE, Hegel e la fondazione dell’idealismo oggetivo, traduzione
dal tedesco e cura di Giovanni Stelli, Milano: Guerini e Associati, 1991; ver
também: V. HÖSLE, Begründungsfragen des objektiven Idealismus, in:
Forum für Philosophie Bad Homburg (hrsg), Philosophie und Begründung,
Frankfurt, 1987, pp. 212-267. O último texto aparece também na primeira
parte de Hegel e la fondazione dell’idealismo oggetivo (pp. 13-69), cuja
segunda parte é publicada originalmente em italiano; assim, o mesmo será
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 126
especulativo é justamente a unidade do fundamento e do
fundado, aqui, a unidade da Ciência filosófica do Direito e a
Ciência positiva do Direito, antes, da Filosofia do Espírito
intersubjetivo (do Instituir) e a Filosofia das Instituições (do
instituinte ou instituído). No caso da objeção de Vittorio Hösle,
isto é, o fato de não ser possível interpretar as instituições como
conceito integrativo normativo, regulador das relações
intersubjetivas, a partir da Wissenschaft der Logik; além de não
considerar o que é próprio do Elemento especulativo, a unidade
do fundamento e do fundado, mas posicionando-se justamente
contra o mesmo – tal como e juntamente com Theunissen –
Hösle concebe as instituições como um terceiro ao lado de
Sujeito e Objeto – portanto, como elemento exterior a estes – ao
qual, não obstante, estará a cargo a mediação dos mesmos26
.
Dessa forma, Hösle termina por conceber a mediação
institucional e o reconhecimento intersubjetivo de modo apenas
formal e, por isso, como elementos exteriores (tomados em
última instância meramente como justapostos) entre si27
e à
Identidade negativa de Sujeito e Objeto à qual ele substitui pela
Relação Sujeito-Sujeito28
, mas, não obstante, de um ponto de
vista especulativo, aquelas têm que ser concebidas enquanto
momentos.
Embora reconhecendo os limites da elaboração hegeliana
da Concepção especulativa do Direito e, portanto, as
contradições que essa elaboração encerra, se levada às suas
últimas conseqüências – com isso, considerando a sério as
objeções acima indicadas, tentaremos aqui retomar e desenvolver
o que há de específico na Concepção especulativa do Direito e
citado de ora avante pela expressão ‗Begründungsfragen‘, segundo a
numeração por capítulos, seções e parágrafos, que se encontra tanto no
original como na tradução, bem como, quando for o caso, das paginações
correspondentes [por ex.: Begründungsfragen, I, 2, 2, p. 217 (ed. it., p. 20)].
Veja-se ainda, do mesmo autor, Hegels System. Der Idealismus der
Subjektivität und das Problem der Intersubjektivität, 2 Bde, Hamburg: Felix
Meiner, 1987. 26 Veja-se, V. HÖSLE, Die Stellung, op. cit., p. 49 ss. 27 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 422-431. 28 V. HÖSLE, Begründungsfragen, III, 2, p. 264 (ed. it., p. 66).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 127
que a torna não só a concepção mais propriamente atual e efetiva
no que tange ao Conteúdo próprio disso que no Direito
contemporâneo está em jogo, mas também, sobretudo, a forma
mesma imanente a esse Conteúdo. Por isso, a seguir,
discutiremos inicialmente, sob a forma de breves anotações –
rigorosamente pontuais – alguns dos principais elementos
constituintes dos problemas circunscritos à fundamentação ético-
política da mediação institucional e do reconhecimento
intersubjetivo na atualidade; os quais, de um modo ou de outro,
ao serem deixados de lado e mesmo ao serem negligenciados
pelos diversos pontos de vista não-especulativos, fazem com que
esses pontos de vista entrem em aporia e ou se dissolvam
enquanto tais ou permaneçam existentes tão só em função de sua
oposição determinada ou de sua indiferença entre si. Feito isso,
procederemos à proposição das linhas gerais da solução dessas
aporias a partir do ponto de vista especulativo, a qual, sob a
forma de breves anotações, pensamos ser capaz de apresentar-
nos o arcabouço de uma nova Ciência especulativa do Direito a
ser perseguida de ora avante.
2. Limites e aporias de algumas considerações não-
especulativas em torno da mediação institucional e do
reconhecimento intersubjetivo
A postulação das instituições como um terceiro ao lado
de Sujeito e Objeto resolve o problema da mediação positiva do
Si-mesmo e seu Outro, afirmando positivamente um e outro
como outro Si-mesmo; todavia, as instituições elas mesmas –
enquanto um terceiro – permanecem exteriores aos elementos por
elas mediados, na medida em que elas mesmas se constituem
como um Si-mesmo ele mesmo carente de mediação e
reconhecimento. Ainda que se postule algo como a Linguagem e
a Intersubjetividade – sob quaisquer de suas formas e fórmulas –
enquanto estrutura exemplar do conceito de Instituição, aqui em
jogo, a questão permanece; deixa-se de lado, justamente, o modo
como a Linguagem e a Intersubjetividade se estruturam e se
constituem enquanto instituições – o mesmo valendo para
instituições instituídas como Família, Direito, Estado, e assim
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 128
por diante. Isso nos impõe o problema da Instituição, não apenas,
enquanto uma determinada estrutura instituída e como tal
institucionalizada que cumpre funções reguladoras, constituintes
ou mesmo instituintes de outras estruturas dela distintas, mas
também como Ato instituinte ou processo de instituição de si
mesma enquanto Instituição e de seu Si-mesmo; de onde, mais
que princípio, as Instituições se nos mostrarem como resultado –
a rigor, como resultado de um processo de mediação que, por seu
turno, poderíamos designar mediação institucional. Daí que as
instituições não possam constituir-se como um terceiro ao lado
de Sujeito e Objeto, nem como princípio ou elemento mediador
das relações entre os indivíduos que se colocam em situação de
reconhecimento recíproco em sendo exterior a essas mesmas
relações; pois, as próprias Instituições não se mostram senão,
enquanto primeiro momento de um processo tal de
reconhecimento intersubjetivo – vale dizer, no plano efetivo de
uma Comunidade ideal do Espírito – que tem por seu horizonte a
Objetividade mesma, com a qual a Subjetividade se identifica,
negativamente, por meio de seu desenvolvimento e conseqüente
reconhecimento intersubjetivo, como tais mediados parcialmente
pelas Instituições. Estas, aqui, se identificam com a
Intersubjetividade e, por isso mesmo, se colocam a meio
caminho ou enquanto meio termo – mas não como um terceiro –
entre a Subjetividade e a Objetividade; do contrário, mediação
institucional e reconhecimento intersubjetivo, bem como
Instituições e Intersubjetividade, pouco se diferenciarão das
diversas e contraditórias formas de mediação que desde Hobbes
têm imposto o modelo do terceiro como fundante de algo como a
própria autonomia do Eu e do reconhecimento da mesma pelo
seu Outro.
Ainda que mediação institucional e reconhecimento
intersubjetivo sejam conceitos relativamente novos – de fato, não
se tem ainda clareza sobre o que está em jogo, quando se trata de
problemas cujo conteúdo esteja relacionado com um deles a cada
vez ou com ambos ao mesmo tempo; não se mostra plausível
pensá-los enquanto reduzidos a procedimentos formais ou
funções regulatórias meramente universalizáveis e mesmo como
certo tipo de pressuposto intranscendível. Tal é o que está na
Filosofia, Reconhecimento e Direito 129
base – a título de fundamento – de alguns discursos em torno da
Linguagem como medium universal e da Intersubjetividade
enquanto princípio fundante não só das ciências em geral, mas
também, sobretudo, da Ética e da Metafísica; com o que, não
obstante, no âmbito desse princípio fundante – enquanto
princípio fundante – e no âmbito do fundado – enquanto fundado
– põe-se o problema de como a própria Intersubjetividade se
determina, enquanto princípio e de como a mesma determina
aquilo que dela principia. Algo que aos defensores da Linguagem
e da Intersubjetividade não é lícito perceber é que, embora uma e
outra pressuponham – lógica e ontologicamente – a
Subjetividade como seu elemento constitutivo, a defesa e a
instauração que delas eles realizam terminam por dissolver
justamente aquele elemento que permite a uma e a outra mostrar-
se em sua efetividade e em sua efetivação; de onde, portanto, a
redução de algumas posições ao meramente empírico (também
chamado a posteriori) em suas múltiplas formas e em seus mais
variados níveis e modos, bem como a redução de outras ao
meramente formal (por seu turno também designado a priori) –
também em suas múltiplas formas e em seus mais variados níveis
e modos. Essa dissolução, em grande parte, está ligada ao
abandono do elemento da Objetividade, com o qual a
Subjetividade como tal se media e pelo qual se torna efetiva,
pelos defensores da Linguagem e da Intersubjetividade; o que
resulta na crescente exigência – cada vez mais evidente segundo
as mais diversas orientações – da constituição de uma ontologia
da Linguagem, de uma fundação última ontológico-metafísica da
Intersubjetividade ou da redução da Filosofia da Linguagem (e,
portanto, também da Intersubjetividade) a algo como uma
filosofia da mente (ou da Subjetividade) ontologicamente
consistente – como afirmação do caráter objetivo da
Subjetividade. Infelizmente, enfim, na medida em que essas
perspectivas permanecem ainda circunscritas a dicotomias como
―a priori versus a posteriori‖ ou ―Idealismo relativo versus
Realismo-naturalismo‖29
, elas não avançam para o Elemento
especulativo propriamente dito.
29 No âmbito da problemática de uma classificação dos sistemas filosóficos e ou
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 130
Desse modo, enquanto inúmeras posturas filosóficas do
presente – aqui tomadas em conjunto sob a designação de
Realismo-naturalismo – põem-se como tarefa a chamada
destranscendentalização da Razão prática, duramente erguida e
da fundação de uma tipologia filosófica consistente, considero as seguintes
posições fundamentais, as quais, na maioria dos casos, integram também
subdivisões ou subclassificações: (1) Realismo-Naturalismo, posição monista
circunscrita ao espaço-tempo e que se manifesta sob as mais variadas formas
de descrição e interpretação da realidade espácio-temporal. (2) Idealismo
relativo, posição que de um modo ou de outro distingue o ideal (não espácio-
temporal) do real (espácio-temporal) e vice-versa, integra várias outras
posições distintas entre si e mesmo opostas como: (a) Realismo
transcendental, que defende como reais, em si e por si, propriedades
transcendentais como idéias e universais, acessíveis mediante intuições
abstrativas, em oposição à realidade empírica; (b) Idealismo subjetivo, que
por sua vez integra várias outras e defende a idealidade das categorias e
significados em face à realidade das coisas reais (circunscritas ao espaço-
tempo) a que elas se aplicam; (c) Idealismo objetivo, posição que identifica
as leis do conhecimento a priori e as leis da realidade empírica em admitindo
categorias aprióricas e juízos sintéticos a priori com validade ontológica
enquanto distintas da realidade empírica ou a posteriori. (3) Idealismo
absoluto, posição que assume a realidade empírica ou sensível (espácio-
temporal) enquanto manifestação aparente do desenvolvimento especulativo
ou lógico-real da Idéia que cada Eu livre se concebe como sendo o que é e
que se efetiva intersubjetivamente como ser espiritual (ao mesmo tempo
subjetivo e objetivo) tão somente através de sua automediação especulativa
(não espácio-temporal); razão pela qual, em seu desenvolvimento histórico-
sistemático, se reconhece mais determinadamente como Idealismo
especulativo. Para uma aproximação aos fundamentos dessa classificação,
ver, M. M. SILVA, O conceito de paradigma metodológico-especulativo e a
fundação de uma tipologia filosófica consistente em metafísica, in: Analecta,
Guarapuava/PR, V. 6, No. 2, (2005): 113-124; para uma outra leitura a
respeito desse ponto, veja-se, V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 1, p. 234
ss. (ed. it., p. 38 ss.). Na verdade, ainda que não seja muito claro quanto a
esse ponto e, portanto, não sistematize seu ponto de vista a respeito,
Schelling parece ter sido o primeiro – na Quinta Carta sobre o Dogmatismo e
o Criticismo (1795) – a utilizar os termos ‗idealismo subjetivo‘ (associada ao
realismo objetivo ou ao dogmatismo) e ‗idealismo objetivo‘ (associada ao
realismo subjetivo ou ao criticismo); bem como – no apêndice da Introdução
às Idéias para uma filosofia da natureza (1803) – a ter se referido ao
idealismo oposto ao realismo enquanto Idealismo relativo, do qual distingue
o seu Idealismo absoluto. Veja-se, F. J. W. SCHELLING, Obras escolhidas,
seleção, tradução e notas de Rubens T. Torres Filho, – 3. ed. – São Paulo:
Nova Cultural, 1989, pp. 14-15, nota 4; 52.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 131
alicerçada sobre o plano transcendental e desenvolvida a partir
do plano especulativo, e a sua conseqüente naturalização; outras
se colocam a tarefa contrária de sua retranscendentalização, mas
isso – apesar de seus propósitos completamente distintos – em
grande parte utilizando-se dos mesmos instrumentos que as
posturas anteriores. Embora esses dois movimentos não digam
respeito exclusivamente ao Especulativo puro, a ser tematizado
na terceira seção deste trabalho, ambos constituem-se como
fundamentais para a compreensão adequada de uma distinção
entre o que está em jogo no plano rigorosamente especulativo
puro e o que se apresenta como determinante no Transcendental
e no Real-natural; a rigor, (1) na recusa realístico-naturalista do
Transcendental e na dissolução espácio-temporal de suas
oposições originárias, bem como (2) na retomada idealístico-
relativista do Transcendental sob novas formas de oposição em
grande parte resultantes da idealização formal de categorias e
significados que constituem tão só os limites mesmos em que o
espaço-tempo está circunscrito. A seguir, tentaremos explicitar
ambos os movimentos no âmbito da contribuição de cada um na
resolução do problema aqui em tela.
1. O Realismo-naturalismo e a destranscendentalização
da Razão prática
Consideremos inicialmente, a título de exemplo, dois
pontos de vista dentre os mais significativos no âmbito da
discussão atual entre liberalismo e comunitarismo e sua
respectiva fundamentação nos quadros da mediação institucional
e do reconhecimento intersubjetivo. Comecemos com a já
clássica formulação de justiça de John Rawls30
, posteriormente
reformulada31
, segundo a qual ―uma concepção liberal de justiça
como modus vivendi pode, ao longo do tempo, transformar-se
30 Ver, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, trad. Vamireh Chacon, Brasília:
EdUnB, 1981, passim. [Original, 1971]. 31 Ver, J. RAWLS, Justiça como eqüidade: Uma Reformulação, trad. Cláudia
Berliner, São Paulo: Martins Fontes, 2003. [Original, 2002].
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 132
num consenso sobreposto estável‖32
. Rawls considera isso como
uma possibilidade real, fundada em premissas psicológicas
subjacentes ao modo pelo qual ―aqueles que afirmam as várias
visões que sustentam a concepção política não retirarão seu
apoio, se o peso relativo de suas visões na sociedade aumentar e
vier a se tornar dominante‖33
. Utópico ou real, e ainda que
limitado a uma interpretação processual, o ―real‖ dessa
possibilidade continua mais próximo do ideal regulativo
kantiano, agora destranscendentralizado34
; com o que Rawls
mantém a visão de fundo apresentada em Uma Teoria da Justiça,
em relação ao fato de que ―os princípios de justiça são também
imperativos categóricos no sentido de Kant‖35
, no que tange à
―moralidade dos princípios‖ e aos ―princípios da psicologia
moral‖36
; do que da pretendida ―idéia de que a justificação de
uma concepção da justiça é mais uma tarefa social prática do que
um problema epistemológico ou metafísico‖37
, no sentido de uma
teoria realista da justiça38
. Aqui parece ser Rawls que se enrola
em sua própria distinção entre ―teoria moral‖ e ―filosofia
política‖, reconhecidamente obscura em Uma Teoria da Justiça,
mas também não esclarecida posteriormente, sobretudo porque o
autor evita se pronunciar sobre as questões suscitadas em vista de
tal distinção39
; o que se complica devido ao conceito central de
ambas as doutrinas não ser senão a concepção de pessoa (livre e
igual), em cujo papel ―a ênfase é posta de maneira mais
explícita‖40
.
Ora, não existe um conceito estritamente político de
pessoa, mesmo quando se toma o cidadão como pessoa livre e
32 Veja-se, J. RAWLS, Justiça como eqüidade, op. cit., § 59.1, p. 278. 33 Veja-se, J. RAWLS, Justiça como eqüidade, op. cit., § 58.4, p. 278. 34 Veja-se, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., § 40, pp. 200-201. 35 Veja-se, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., § 40, pp. 197-201. 36 Veja-se, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., §§ 03-04, 11-13, 19,
39-40, 45, 72, 75. 37 Ver, J. RAWLS, Justiça e Democracia, trad. Irene A Paternot, São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 202, nota 1. 38 Veja-se, J. RAWLS, Justiça como eqüidade, op. cit., §§ 11.1, pp. 44-45;
55.5, pp. 266-267. 39 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., pp. 201-213ss. 40 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., p. 202, nota 01.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 133
igual, está-se aí a pressupor ao menos três conceitos
fundamentais que transcendem à filosofia política stricto sensu:
(1) a consciência de si em cada Eu como ser livre, o que,
necessariamente, não é ainda consciência moral, (2) o
reconhecimento mútuo entre as diversas consciências de si,
(auto) determinando-se cada uma como Eu livre, e (3) a
necessidade prática (e, portanto, moral) da mediação de cada
particular pelo universal da comunidade ou da sociedade em
questão. Do contrário, a noção de cidadania não só se reduz a
uma abstração, mas, precisamente, dá ensejo a um sem número
de confusões e ambigüidades, algumas delas experimentadas
pelo próprio Rawls; por exemplo, em que sentido, em se tratando
de filosofia, podemos dizer que determinado objetivo ―não é
metafísico nem epistemológico, mas prático‖ senão na medida
em que tal objetivo pertence ao âmbito da filosofia prática,
portanto, integrando junto à Política, a Ética (ou a Moral), o
Direito e a Economia? Ora, Rawls começa afirmando que a
―teoria da justiça como eqüidade está concebida como uma
concepção política da justiça‖41
ao mesmo tempo em que
reconhece a evidência de uma concepção política da justiça como
uma concepção moral; todavia, ele deixa em aberto ―se a teoria
da justiça como eqüidade poder ser uma concepção política geral,
(...) ou se ela pode ampliar-se e tornar-se uma concepção moral
geral, ou pelo menos uma parte importante dessa última‖42
.
Apesar dessa indefinição, podemos dizer que Rawls distingue
entre ―uma concepção política geral‖ e ―uma concepção moral
geral‖; entretanto, sem discutir a primeira, que se estende ―a
diferentes tipos de sociedade, em condições históricas e sociais
diferentes‖, ele como que concebe essa última apenas de modo
epistemológico e metafísico, isto é, segundo suas palavras, como
algo que se aplica a um dado objeto (no caso a estrutura básica
da sociedade), como se esse fosse apenas um caso entre outros43
.
Porém, como também ele diz que a sua teoria da justiça é uma
teoria moral, ainda que esta não represente ―a aplicação de uma
41 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., p. 203. 42 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., pp. 203-204. 43 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., pp. 204; 211.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 134
concepção moral geral à estrutura básica da sociedade, como se
essa estrutura fosse apenas um caso entre outros aos quais ela se
aplicaria‖; devendo, pois, ―apoiar-se apenas nas idéias intuitivas
que estão na base das instituições políticas de um regime
constitucional e nas tradições públicas que regem a sua
interpretação‖44
, voltamos como que ao ponto de partida, qual
seja, a ambigüidade no tocante ao conceito de pessoa e ao
estatuto propriamente dito de sua ―teoria política da justiça como
eqüidade‖.
Na verdade, Rawls não precisa de algo mais que uma
estrita filosofia política, pois, como já o mostrou Otfried Höffe45
,
ele ―já pressupõe a perspectiva de justiça como postura
normativa básica e procura apenas explicitá-la de um modo
capaz de receber uma concordância universal‖. Tal é o que, em
outro registro, Charles Taylor chamou de liberalismo
procedimental, que, para este, consiste fundamentalmente numa
visão da ―sociedade como uma associação de indivíduos‖; onde
―cada um dos quais tem uma concepção de uma vida boa ou
válida e, correspondentemente, um plano de vida‖ fundada mais
em uma ética do direito que em uma ética do bem, na qual o
fundamental ―são os procedimentos de decisão‖46
. Além dessa
posição, melhor determinada como individualista atomista,
também advinda de Nozick, Taylor ainda nos mostra três outras
determinações possíveis das posições passíveis de se encontrar
no âmbito da discussão liberalismo-comunitarismo: (1) o
coletivismo holista advindo de Karl Marx, (2) o coletivismo
atomista de B. F. Skinner e, por fim, (3) a posição com a qual ele
afirma identificar-se, o individualismo holista advindo de
Humboldt, algo a meio caminho do individualismo atomista e do
coletivismo holista; o coletivismo atomista é considerado como
44 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., p. 205. 45 Veja-se, O. HOFFE, Justiça política: Fundamentação de uma filosofia
crítica do Direito e do Estado, trad. Ernildo Stein, Petrópolis: Vozes, 1991,
p. 18. 46 Veja-se, C. TAYLOR, Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário,
in: C. TAYLOR, Argumentos filosóficos, trad. Adail Ubirajara Sobral, São
Paulo: Loyola, 2000, pp. 202-203.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 135
destituído de interesse no que toca ao referido debate47
. Segundo
seu próprio ponto de vista, o individualismo holista, Taylor
defende a necessidade de uma adesão comum a uma comunidade
histórica particular para que o bem comum possa realmente
efetivar-se, o que se dá, politicamente, através do patriotismo,
que ―é uma identificação comum com uma comunidade histórica
fundada em certos valores‖48
; os quais, filosoficamente,
encontram sua compreensão adequada no que ele chama de
política do reconhecimento, entendida como força propulsora dos
movimentos políticos nacionalistas49
. Infelizmente, nesse caso,
embora retome o elemento ideal de todo e qualquer
reconhecimento real (não fictício e não falso), o autor não o
desenvolve, limitando-se a descrevê-lo como algo meramente
formal nos limites da esfera ―íntima‖ ou privada e da esfera
pública no que tange ao reconhecimento real.
Ao passo que J. Rawls reivindica uma razão
destranscendentalizada, seguindo o mesmo caminho de
Habermas entre outros, ainda que se distinga de Habermas em
função da afirmação de um modelo estritamente monológico ao
invés de dialógico50
. Taylor reivindica-se herdeiro do
pensamento transcendental; mas isso de modo que em sua
concepção os argumentos transcendentais apareçam como
paradoxais, ainda que válidos, e passem a se fundar justamente
naquilo que deviam fundar: a experiência51
. Todavia, na medida
em que Taylor compreende sua retomada e sua reconstrução do
Transcendental segundo a argumentação de Merleau-Ponty ―em
favor da tese da ação corporificada a partir da natureza da
percepção‖ e, portanto, a partir de ―uma concepção do sujeito
47 Veja-se, C. TAYLOR, Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário,
op. cit., pp. 201-202. 48 Veja-se, C. TAYLOR, A política do reconhecimento, op. cit., pp. 241-274. 49 Veja-se, C. TAYLOR, Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário,
op. cit., pp. 201-202. 50 Sobre esse ponto, que será discutido mais adiante, veja-se: J. HABERMAS,
A Ética da Discussão e a Questão da Verdade, trad. Marcelo Brandão
Cipola, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 3 ss. 51 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,
pp. 33-45.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 136
como um agente essencialmente personificado, engajado no
mundo‖52
; podemos dizer que também Taylor, a rigor,
participaria do esforço de transformação da Razão pura numa
razão situada, enquanto razão corporificada, e, portanto, do
projeto de destranscendentalização dos sujeitos cognoscentes53
.
Mas, na medida em que permanece no âmbito da fenomenologia
merleau-pontiana, Taylor parece não assumir a mudança –
afirmada por Habermas – da tensão transcendental entre o Ideal e
o Real ou entre o domínio dos inteligíveis e o das aparências para
a realidade social das coordenações de ações e das instituições;
de fato, esses dois planos se revelam apenas justapostos em
Taylor na medida em que ele não afirma completamente os
argumentos transcendentais como tais e nem a noção mesma de
destranscendentalização, mas permanece a meio caminho de uma
e outra dessas vias. Enfim, não é senão o próprio Taylor quem
reconhece, por um lado, o caráter indubitável de um argumento
transcendental válido; mas isso, por outro lado, com a ressalva de
que ―é difícil saber quando se tem um, ao menos um que tenha
uma conclusão interessante‖54
; razão pela qual, a nosso ver, ele
nem avança para uma reproposição efetiva dos mesmos no
sentido de uma continuação do empreendimento iniciado por
Kant55
nem os nega de modo exclusivo, ainda que os mesmos
não se apliquem de modo rigoroso às suas tematizações dos
problemas que aqui nos interessam56
.
Neste sentido, embora diagnostique de modo correto os
limites de posições como as de Rawls (que a rigor não consegue
avançar para a tematização de problemas como os da mediação
institucional e do reconhecimento intersubjetivo), e mesmo que
52 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,
p. 35. 53 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, trad. Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2002, [Original, 2001], p. 31 ss. 54 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,
p. 45. 55 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,
p. 35. 56 Veja-se, C. TAYLOR, Seguir uma regra, op. cit., p. 181-195; bem como, C.
TAYLOR, A política do reconhecimento, op. cit., p. 241-274.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 137
tome como ponto de partida de sua consideração justamente
esses problemas, Taylor termina por tematizá-los de modo
simplesmente empírico e histórico, colocando-se assim, portanto,
limitado a uma concepção empírico-subjetiva – e por isso
meramente exterior – do reconhecimento intersubjetivo e da
mediação institucional. Isso ocorre devido, justamente, ao fato
daqueles valores em que a comunidade histórica se funda não
serem rigorosamente tematizados, pois, ainda que se exija para
eles um reconhecimento igual, afirma-se, categoricamente, que
―se o juízo de valor pretende registrar algo independente de nossa
própria vontade e desejo, ele não pode ser ditado por um
princípio de ética‖57
; de onde, para além de uma perspectiva
como a de Taylor, a necessidade da passagem a uma concepção
de comunidade ideal ou, de modo mais preciso, do
reconhecimento da mesma enquanto comunidade de
comunicação a priori58
; portanto, a um tempo, como condição
transcendental de possibilidade de todo discurso com sentido e,
por conseguinte, como fundamento da Ética e, mais
precisamente, da Ética política59
. Tal é o que, ainda nos limites
de nossa breve observação em torno das considerações não-
especulativas da mediação institucional e do reconhecimento
intersubjetivo, pretendemos averiguar; contudo, limitar-nos-emos
às linhas gerais dos argumentos principais de Habermas, Apel e
Hösle em torno do Transcendental e do que, com Habermas e
contra Habermas, Apel designa Fundação última da Ética em
geral e da Ética política em particular.
Habermas se afirma um realista nas questões epistêmicas
e um construtivista nas questões morais, mais precisamente, um
realista segundo o viés pragmático60
e um construtivista no
sentido de que ―o discurso prático-moral representa uma
57 Veja-se, C. TAYLOR, A política do reconhecimento, op. cit., p. 271. 58 K-O. APEL, Transformação da filosofia II: O a priori da comunidade de
comunicação, trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo: Loyola, 2000. [Edição
original, 1973]. 59 Ver, K-O. APEL, Estudos de Moral Moderna, trad. Benno Dischinger.
Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 163-192. 60 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., pp. 46-47.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 138
ampliação ideal de nossa comunidade de comunicação a partir da
perspectiva interior‖61
. O que, no primeiro caso, se exprime sob a
forma de um realismo interno segundo o qual ―é ‗real‘ tudo que
possa ser representado em expressões verdadeiras, ainda que os
fatos sejam interpretados em uma linguagem que é a cada vez a
‗nossa‘ linguagem‖62
; mas um realismo interno tal que se mostra
destituído de representações e que, por isso, implica na afirmação
da existência de um mundo percebido independentemente de
nossas descrições e visto como o mesmo para todos nós63
. De
onde, no segundo caso, a possibilidade da conciliação entre
realismo epistemológico e construtivismo moral64
; como tal,
fundada de um lado na afirmação de que ―não existe uma
linguagem do mundo – um livro da natureza que se imporia aos
nossos espíritos‖, mas tão somente ―as linguagens que
inventamos a partir de diversos pontos de vista‖65
e, de outro, na
afirmação segundo a qual ―a razão prática é uma faculdade de
cognição moral sem representação‖66
; o que, em última instância,
implica num certo tipo de mediação entre linguagem e realidade
ou entre agir comunicativo e mundo da vida que, por sua
exigência universalista, ao evitar reduzir-se a um tipo de
mediação simplesmente histórico-cultural – considerado
unilateral – recai perigosamente, na unilateralidade oposta, a
saber, de uma mediação puramente lingüístico-pragmática ou
pragmático-social que – enquanto simples componente do mundo
da vida – se mostra mais como algo a ser mediado que como
61 Veja-se, JÜRGEN HABERMAS, Para o uso pragmático, ético e moral da
razão prática. In: E. STEIN e L. A. DE BONI (Org.), Dialética e Liberdade,
Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, p. 299. 62 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., p. 41. 63 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., p. 55 ss. 64 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., p. 55. 65 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., p. 58. 66 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., p. 64.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 139
elemento mediador67
. Disso resulta uma fundamentação da Ética
que se limita a uma argumentação meramente hipotético-formal
e, por conseguinte, a uma confirmação, a princípio, empírico-
psicológica e, enfim, idealizionista-performativa da mesma68
.
2. O Idealismo relativo e a retranscendentalização da
Razão prática
A perspectiva da destranscendentalização e do realismo
interno – embora dissolva o Transcendental no Realístico-
naturalístico, na medida em que nos apresenta como seu ponto de
partida a dissolução do dualismo kantiano entre noumeno e
fenômeno ou de coisa em si e aparência, bem como enquanto
liberta os conteúdos particulares de pensamento em relação à
representação – ainda que os aprisione na malha dos
significados; permite-nos também dissolver a oposição entre a
priori e a posteriori ou entre real e ideal em que recaem Apel e
Hösle. Contudo, por seu caráter ao mesmo tempo hipotético-
formal e idealizionista-performista, bem como universalista,
segundo o procedimento, mas pluralista, segundo a concepção,
impede-nos de manter as conquistas e avançar para além do
Transcendental; ainda que mantenha traços do Transcendental,
agora enfraquecido69
, à medida que transfere o sujeito agente do
reino dos seres inteligíveis para o mundo da vida articulado
lingüisticamente dos sujeitos socializados70
, perde de vista o
conteúdo racional que (pressuposto no princípio da
universalização) possibilita não só o discurso real com sentido,
67 Veja-se, J. HABERMAS, Escritos sobre moralidad y eticidad. Traducción
y introducción de Manuel Jiménez Redondo. Barcelona; Buenos Aires;
México: Paidós, 1991, pp. 67-95; ver também, p. 128 ss. 68 Nesse caso, compare-se J. HABERMAS, Consciência moral e agir
comunicativo (trad. Guido A. de Almeida. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003 [Original, 1983], p. 143 ss.) e J. HABERMAS, Agir
Comunicativo e Razão destranscendentalizada, op. cit., [Original, 2001], p.
38 ss. 69 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., p. 53; p. 55. 70 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., p. 52.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 140
mas também o caráter regulativo da verdade aí pretendida. Ora,
esse conteúdo racional, determinado enquanto conteúdo
normativo pressuposto no princípio da universalização, embora
não possa ―assumir o valor posicional de uma fundamentação
última‖ ou não tenha que reclamar esse status71
, ao mostrar-se a
um tempo hipotético-formal e idealizionista-performista, termina
por aproximar-se – a despeito de Habermas72
– do que Apel
designara ―o a priori da comunidade de comunicação‖73
; o qual,
justamente no plano da ‗letzte Begründung‘ – explicitação
pragmático-transcendental da estrutura a priori que em cada caso
está em jogo – é tomado como uma condição transcendental de
possibilidade que, mesmo em sendo negada é ainda
[supostamente] pressuposta por aquele que a nega74
. Mas, enfim,
como já lembrara Habermas75
, isso não quer dizer que o
argumento último da Fundamentação última levada a cabo pela
Pragmática transcendental de Apel seja o último argumento
especificamente filosófico possível, ele não é nem mesmo o
primeiro76
.
Como já lembrara Ivan Domingues77
, esse argumento de
Apel – apresentado segundo o método da chamada contradição
pragmática – já aparece ―avant la lettre‖ em Aristóteles sob a
forma do Princípio de Não-Contradição, ―cuja refutação leva a
quem o nega simplesmente a desdizer o que diz e a dizer o que
71 Veja-se, J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, op. cit.,
pp. 104-105 ss. 72 Veja-se, K. O. APEL, Fundamentação última não-metafísica? In: E. STEIN
e L. A. DE BONI (Org.), Dialética e Liberdade, Petrópolis: Vozes; Porto
Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, pp. 305-326, aqui, pp. 305-306. 73 Veja-se, K. O. APEL, O a priori da comunidade de comunicação e os
fundamentos da Ética, in: Transformação da Filosofia II, op. cit., p. 407 ss. 74 Sobre o significado estrito de ‗condição transcendental de possibilidade‘ e
sua fundamentação na perspectiva apeliana, veja-se, F. J. HERRERO, O
problema da fundamentação última. In: Kritérion, Belo Horizonte, XXXV,
no. 91, jan-jul, 1995, pp. 7-16; aqui, pp. 8-9. 75 J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, op. cit., p. 107 ss. 76 J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, op. cit., pp. 104-
105 ss. 77 Veja-se, I. DOMINGUES, A questão da fundamentação última na filosofia.
In: Kritérion, Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 29-44.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 141
desdiz, por força da contradição entre o falar e o pensar‖78
. Se
isso é realmente assim, pode-se dirigir ao argumento de Apel a
mesma objeção que Jan Lukasievicz dirige ao princípio
aristotélico: a saber, que o mesmo não foi rigorosamente
demonstrado – pois Aristóteles se limita a tentar provar tão
somente sua formulação psicológica79
; isso talvez em razão de o
próprio Aristóteles compreender que a necessidade do Princípio
de Não-Contradição não é nem meramente lógica nem puramente
ontológica80
– de um lado simplesmente por não haver prova, de
outro pelo fato da noção de objetos contraditórios não ser
absurda81
– mas, como pensa Lukasiewicz, fundamentalmente
uma necessidade ética82
. Essa é a mesma necessidade que, a
rigor, está na base das condições transcendentais de
possibilidade de Apel e de Hösle – o princípio a priori da
Comunidade ideal de Comunicação no primeiro e o
conhecimento a priori não-hipotético no segundo; os quais, no
entanto, ao limitarem a ―contradição a ser evitada‖ a um simples
método apagógico para a fundamentação de tais condições,
terminam por cair nas mesmas confusões de Aristóteles entre o
plano dos julgamentos acerca dos objetos e suas propriedades e o
das convicções humanas em torno dos mesmos83
. Com isso,
78 Veja-se, I. DOMINGUES, A questão da fundamentação última na filosofia,
op. cit., pp. 34-35. 79 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, trad.
Dorota Sikora, préface de Roger Pouivet, Paris; L‘Éclat, 2000 [original,
1910], pp. 56-61 e seguintes. 80 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, op.
cit., pp. 73-76. 81 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, op.
cit., pp. 156-163. 82 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, op.
cit., p. 168 ss. 83 Exemplos disso são a ―evidência para mim‖ e o discurso como medium
intranscendível em Apel [ver, K. O. APEL, Fundamentação última não-
metafísica? op. cit., pp. 321-322; K. O. APEL, El problema de la
fundamentación filosófica última desde uma pragmática transcendental del
lenguage, in: Estúdios filosóficos, Valladolid, XXXVI, 102, mayo-agosto
(1987): 251-299, aqui, p. 283 ss.; F. J. HERRERO, O problema da
fundamentação última, op. cit., pp. 9-10]; bem como as crenças, evidências
e pressuposições que se quer de provar, de um lado, e, de outro, a
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 142
embora não reduzam o Ético ao Transcendental, tomam-no por
algo real ou a posteriori oposto ao seu fundamento ideal ou a
priori; o que, em geral, se põe como a conseqüência mesma de
sua limitação à ―contradição a ser evitada‖.
Com efeito, Apel e Hösle não percebem que – se a
contradição pragmática tem que ser real e necessariamente
evitada – nem o princípio a priori da Comunidade ideal de
Comunicação poderá ser lógico-transcendental e
performativamente demonstrado nem o conhecimento a priori
não-hipotético será pragmático-transcendental e ontologicamente
provado. Se o fossem realmente, isso implicaria que somente
aquele que já partisse desses fundamentos assim estabelecidos –
embora tão só no âmbito de sua convicção pessoal – poderia
evitar esse tipo de contradição, o que contradiz o cerne mesmo
do argumento que se quer demonstrar [e, com isso, a própria
contradição pragmática enquanto método]; pois, se o que se quer
provar são justamente os fundamentos que já têm que estar
estabelecidos para que se evite a contradição, de duas uma, ou a
lezte Begründung pressuposta não é necessária ou incorre em
petitio principii ou em círculo vicioso. De fato, vemos repetir-se
aqui o mesmo processo da contradição perenemente posta, que
Hegel já constatara, quando de sua crítica especulativa à filosofia
transcendental kantiana e ao resultado da introdução de um
terceiro onde a oposição entre Universalidade e Singularidade ou
entre Subjetividade e Objetividade são dissolvidas84
; de certo
modo a mesma que a das filosofias de Apel e Hösle quando da
respectiva instauração do princípio a priori da Comunidade ideal
de Comunicação em um e o conhecimento a priori não-
hipotético em outro segundo o método da Contradição
identificação das categorias e significados com o reino das entidades ideais
(em última instância subjetivo ou intersubjetivo) e com o conteúdo das
proposições em Hösle [ver, Begründungsfragen, II, 2, 2, p. 250-259 ss. (ed.
it., p. 52-61 ss.); Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista
da ética. In: STEIN, E.; DE BONI L. A. (Org.). Dialética e Liberdade.
Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, pp. 588-609, aqui,
pp. 597-599, 604-606; Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der
Philosophie, München: Beck, 1987, pp. 220ss; 229-230ss.]. 84 E, §§ 59-60.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 143
pragmática ou da ―contradição a ser evitada‖. Essas filosofias, ao
se fundarem sobre uma ―estrutura reflexiva transcendental‖ e ao
se limitarem à reflexividade das proposições sintéticas a priori
pelas quais buscam fundamentar essa estrutura, não se
distinguem substancialmente das filosofias do entendimento
fundadas meramente no Princípio de Não-Contradição; pois, para
utilizarmos aqui as palavras de Hegel85
, ao evitarem a
contradição, elas mesmas terminam por cometê-la – e isso por
não reconhecerem que a reflexão é fundamentalmente a esfera da
contradição posta86
, a qual deve ser antes assumida que evitada.
O que terá por conseqüência que a esfera do Pragmático não é
necessariamente a mesma que a do Ético e do Prático; essa, por
conseguinte, exige uma outra forma de fundação e
fundamentação em relação àquela.
Da mesma forma, ainda que se incorra em contradição
pragmática, isso não quer dizer que se foi lógico-transcendental,
performativa e ontologicamente reduzido ao absurdo; pois, se tal
contradição pragmática se apresenta de modo rigoroso mais
como princípio ético que como princípio lógico-transcendental
ou ontológico, ela será transgredida assim como o Princípio de
Não-Contradição o é. Todavia, se distinguirmos em geral a esfera
pragmática da esfera prática87
– e com isso, em particular, o
Pragmático-transcendental do Prático-transcendental – e se
concordarmos que a esfera prática é mais abrangente que a
pragmática; mesmo que todo falante aceite de imediato, em seu
uso lingüístico da razão prática, a inevitabilidade dos
pressupostos pragmáticos de toda argumentação com sentido,
isso não quer dizer que não se possam transgredir tais
pressupostos. Isso porque, em última instância, embora todo e
qualquer uso lingüístico, bem como todo e qualquer sentido que
se queira dar a tal ou tal determinação de pensamento, só possa
ser considerado nos limites de sua própria esfera – no primeiro
caso a esfera pragmática ou do fazer, no segundo a esfera das
85 E, § 119, A. 86 E, § 114. 87 Veja-se, a respeito, J. HABERMAS, Para o uso pragmático, ético e moral
da razão prática, op. cit., pp. 288-304.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 144
crenças ou das convicções pessoais; a fundamentação desse uso e
desse sentido em algo como um meta-discurso só poderá valer de
modo incondicional para a esfera na qual o uso lingüístico e seu
sentido estão circunscritos, a saber, para a esfera pragmática e
para as crenças e convicções daqueles que as têm. Neste sentido,
ao imputar que todos sem exceção pressupõem tais pressupostos,
Apel e Hösle terminam por realizar um salto ilegítimo, como
lembrado por Margutti Pinto para o caso de Apel88
e por Hans
Albert para o de Hösle89
; pois eles mesmos não consideram que
os pressupostos daqueles com os quais discutem são outros e que
eles mesmos não partem dos pressupostos deles e nem os
assumem; com isso, também não avançam para o Prático-
transcendental ou para a unidade daquilo que Kant chamara
Razão pura prática e seu desenvolvimento especulativo no
âmbito da efetivação lógico-real da Vontade livre. Essa aqui
concebida como independente de toda a esfera espácio-temporal
e dos diversos usos da razão prática que aí têm lugar, mas
assumindo-os e dissolvendo-os como formas aparentes ou
figurações espácio-temporais de tal efetivação, o que vale tanto
para o caso da vontade livre individual como para o caso da
vontade livre coletiva; as quais, nessa efetivação, processam-se
nos planos da Universalidade, da Particularidade e da
Singularidade ou da Subjetividade, da Intersubjetividade e da
Objetividade90
. Enfim, para lembrarmos Hegel, e por deixarem
de lado – sem tematização – justamente o Prático-transcendental
e seu desenvolvimento especulativo, Apel e Hösle não realizam
uma verdadeira refutação das posições por eles criticadas –
deixando-as intactas –, mas uma mera justaposição ou uma
simples paratese; o que torna a própria tese da letzte Begründung
uma simples tese entre outras.
88 Ver, P. R. MARGUTTI PINTO, O problema da necessidade da
fundamentação última não-metafísica em Karl-Otto Apel. In: Kritérion,
Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 17-28. 89 Ver, H. ALBERT, Hösles Sprung in den objektiven Idealismus, in:
Zeitschrift für allgemeine Wissenschaftstheorie, XX, 1 (1999): 124-131. 90 Esse ponto será desenvolvimento mais adiante, na terceira seção do
presente trabalho.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 145
O interessante a se notar em nossos autores é a oposição
mesma do Empírico e do Transcendental, ou do a posteriori e do
a priori, bem como a permanência da justaposição de um
defronte o outro; e isso, sobretudo, nos limites daquilo que mais
nos interessa: no elemento da mediação institucional e do
reconhecimento intersubjetivo. Em Apel, o princípio a priori da
Comunidade de comunicação permanece pressuposto subjetivo e
não acompanha de modo necessário e efetivo nem o processo da
mediação institucional (que termina por ser concebido como
simples ideal regulativo dos processos subjetivo-intersubjetivos
de reconhecimento), nem o reconhecimento intersubjetivo; o
qual, ao se limitar à esfera real, tomada como distinta da esfera
ideal, impõe tanto a Si quanto à mediação institucional um
simples dever-ser91
– como tal fundado de modo meramente
negativo –, cuja consistência limita-se ao Empírico ou ao
Pragmático enquanto tal92
. Isso se agrava devido a que, segundo
os defensores do ponto de vista de Apel, a condição
transcendental de possibilidade, da qual a existência do fato
depende e sem a qual o mesmo não existiria, ―não pode, por sua
vez, ser objetivada, pois toda objetivação já supõe a mesma
condição‖93
; de onde, portanto, a implicação de que o acesso a tal
condição por aqueles que a pressupõem e, com isso, a sua
efetivação enquanto princípio a priori que permite tal acesso,
permanecerão para sempre uma simples pressuposição – como
tal inefetiva; ou, esse acesso e essa efetivação, uma vez
realizados, tal como exigido pelo processo da mediação
institucional e pelo reconhecimento intersubjetivo, implicarão na
dissolução mesma dos postulados dualistas da Pragmática
Transcendental e seu a priori da Comunidade de comunicação.
O que, de um modo ou de outro, se mostra na própria adesão de
Apel à Teoria dos Estágios lógicos de desenvolvimento da
Consciência moral segundo Kohlberg, bem como na sua
91 Veja-se, K. O. APEL, O a priori da comunidade de comunicação e os
fundamentos da Ética, op. cit., p. 485 ss. 92 Veja-se, K. O. APEL, O a priori da comunidade de comunicação e os
fundamentos da Ética, op. cit., p. 491. 93 Ver, F. J. HERRERO, O problema da fundamentação última, op. cit., p. 9.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 146
retomada e desenvolvimento dessa teoria no âmbito da
reconsideração de um sétimo estágio da Consciência moral,
como tal identificado com a Ética da Responsabilidade94
.
No caso de Hösle, que se reivindica o âmbito da Razão
objetiva concebida como Intersubjetividade, ainda que para ele
não possa haver nenhuma verdadeira diferença entre os sujeitos
[por definição: finitos ou relativos] que constituem a chamada
Estrutura intersubjetiva absoluta e que, portanto, Subjetividade e
Intersubjetividade sejam no medium da idealidade; onde não
pode haver diferença real entre elas ou um sacrifício da primeira
em relação à segunda, mas apenas a prioridade desta em relação
àquela95
; aqui, tal como em Apel, torna-se fundamental a
distinção da esfera da Idealität e a da Realität, o único modo –
segundo Hösle – de tornar possível a ação moral96
. Ora, pois, se
não há diferença real entre Subjetividade e Intersubjetividade no
medium da idealidade, ou elas são apenas uma e mesma Coisa
real ou não são reais; se ocorre o primeiro caso, a
Intersubjetividade não pode ser mais que uma determinação entre
outras da própria Subjetividade; se ocorre o segundo, mesmo que
Subjetividade e Intersubjetividade não se reduzam às
representações finitas que se apresentam nos estados de
consciência subjetivos97
, reduzir-se-ão a meras categorias
ontológicas passíveis de uma simples manifestação fenomênica –
portanto, ainda permanecendo abstratas ou simplesmente ideais,
sem nenhuma concreção real ou efetividade (Wirklichkeit)98
.
Exemplo disso é a ambigüidade da ação moral propriamente dita
enquanto concebida nos limites estreitos do ―a priori objetivo‖, a
qual, embora se apresente no âmbito da Realität (enquanto esfera
fenomênica), como uma das determinações ou um dos momentos
da realização da Idealität (sob a forma de um mandamento
incondicionado); o que aí de fato está em jogo não são apenas
atos subjetivo-intersubjetivos ou processos de reconhecimento
94 Ver, K-O. APEL, Estudos de Moral Moderna, trad. Benno Dischinger.
Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 223-294; sobretudo, p. 281 ss. 95 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 96 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 221-222. 97 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 3, pp. 261-262 (ed. it., p. 63). 98 Ibid.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 147
intersubjetivos – como, a rigor, deveria ser o caso nessa esfera –,
mas, ao contrário, a Idéia da Intersubjetividade racional como
determinação suprema do Absoluto; precisamente, sob a forma
de uma luta prática pelo retorno ao Absoluto99
. Em suma, em
sendo isso assim, e se isto não é incompatível com a afirmação
segundo a qual o Idealismo objetivo tem que ser monístico, bem
como com a de que o mundo (no qual vivemos e no qual o
Absoluto se realiza) se apresenta em sua totalidade como
necessário, desdobrando-se sempre em graus superiores100
; em
que medida, de fato, Hösle pode argumentar em favor de um
ponto de vista no qual ―em primeiro lugar, se admite categorias
aprióricas e juízos sintéticos a priori e, em segundo lugar, lhes dá
uma dignidade ontológica‖101
; negando justamente o reportar-se
da esfera dessas categorias e juízos ao a posteriori, ―a entidades
naturais, estados de consciência subjetivos ou processos
intersubjetivos de reconhecimento‖?102
Consideremos melhor essa contradição, ou melhor, essa
ambigüidade, entre o fenomenológico ou empírico-sensível e o
lógico-real ou efetivo. Embora proponha uma filosofia real a
priori enquanto desdobramento de seu Idealismo objetivo, (1)
Hösle não reconhece o desenvolvimento efetivo desse a priori em
uma esfera outra que a do a posteriori, do fenomenológico ou do
empírico-sensível103
; isso, ao mesmo tempo em que (2) nega o
reportar-se do ―a priori objetivo‖ e da Razão absoluta – seu
princípio, que não pode ser reificado104
– a entidades naturais,
99 Ver V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 239-240; V. HÖSLE, Moral und
Politik, op. cit., pp. 165 ss.; 175 ss. 100 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 232. 101 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 1, 3, p. 242 (ed. it., p. 45). 102 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 3, pp. 261-262 (ed. it., p. 63).
Para uma crítica especulativa desse ponto de vista, veja-se M. M. SILVA, A
natureza especulativa da objetividade no Idealismo absoluto da
Subjetividade e o formalismo do Idealismo objetivo da Intersubjetividade,
in: Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, Recife/PR, v. 01, n. 01, (2004):
URL = <http://www.hegelbrasil.org/rev01c.htm>; veja-se, em especial,
Seção III. O conceito hegeliano da Objetividade e sua função no Mundo do
espírito, o “a priori objetivo” e a Intersubjetividade. 103 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., p. 165 ss. 104 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 3, pp. 261-262 (ed. it., p. 63).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 148
estados de consciência subjetivos ou processos intersubjetivos de
reconhecimento; enfim, (3) termina por reconhecer, a rigor, tão
só a exteriorização das categorias e significados próprios do que
chama ―reino ideal dos conceitos puros‖ no plano real da
natureza e da razão finita105
. O que, não obstante, acarreta
conseqüências imprevisíveis para sua concepção da Ética em
geral e das instituições como de um terceiro ao lado de Sujeito e
Objeto em particular; com efeito, a primeira conseqüência não é
senão a dissolução da própria relação ou identidade de Sujeito e
Objeto – que fica reduzida a uma racionalidade técnica cujo
fundamento é dado pelas ciências naturais106
– e sua substituição
pela relação ou identidade Sujeito-Sujeito107
, surgida no âmbito
da racionalidade estratégica fundada nas ciências sociais e
reivindicada pela racionalidade comunicativa daí emergente.
Identidade Sujeito-Sujeito essa, no entanto, concebida
dicotomicamente108
: por um lado, entendida como estrutura
intersubjetiva absoluta, ideal, a priori e objetiva109
, e, por outro,
como estrutura intersubjetiva relativa – as instituições –, real, a
posteriori e subjetiva110
. De acordo com essa concepção, as
instituições se constituem como um terceiro que se interpõe entre
o Ego e o Alter modificando a relação originariamente dual entre
ambos na perspectiva de sua universalização111
; mas isso nos
limites de uma compreensão da própria pessoa [o Ego e o Alter]
como cindida em um lado interior ideal e um lado exterior real,
portanto, em Sujeito e Objeto, ou em Fim e Meio112
. O que,
enfim, ao apelar para ―o reino ideal das categorias e dos
significados, cuja exteriorização é a natureza‖, como ―o
105 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista
da ética, in; op. cit., pp. 605-606. 106 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., p. 171 ss; V. HÖSLE, Hegels
System, 1, op. cit., pp. 259, nota 194. 107 Ver, V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 219. 108 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 175-177 ss; V. HÖSLE,
Die Krise, op. cit., pp. 221-222. 109 Ver, V. HÖSLE, Begründungsfragen, III, 2, p. 264 (ed. it., p. 66). 110 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 422-431. 111 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., p. 427. 112 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 165-171.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 149
verdadeiro ser‖113
e que, como tal, só contempla o lado interior e
subjetivo, termina por contradizer o monismo reivindicado pelo
Idealismo objetivo da Intersubjetividade e por transformá-lo,
enfim, a exemplo de Platão, numa simples forma de Idealismo
relativo114
.
Diante disso, parece-nos pertinente a crítica de H. Albert
ao modo intuitivo e direto, com que Hösle alça-se ao Idealismo
objetivo – através de uma pseudo-mediação das posições a ele
opostas115
. Sem entrar no mérito dessa crítica, que se concentra
no uso que Hösle faz do método proposto pela Pragmática
transcendental, há que se convir que pelo menos em um ponto ela
seja certeira: ―Com efeito, ele [Hösle] não estabeleceu sua tese –
sua versão do Idealismo objetivo – através de uma prova, mas, de
certo modo, a alcançou por meio de um salto espiritual, que ele,
por pseudo-provas, tentou ocultar‖116
. Essas pseudo-provas,
como já observado anteriormente, mostram-se assim, sobretudo
em função de não partirem da força mesma do argumento
adversário e, antes de tudo, de o desqualificarem no sentido de
lhe imputar aceitação de teses – como a das condições
transcendentais de possibilidade – que em nenhum momento são
nele ou por ele explicitamente pressupostas; de onde não haver
uma verdadeira refutação das posições supostamente refutadas.
Além disso, como também se observou mais acima, em
desenvolvendo unicamente o método da contradição pragmática
no sentido de uma contradição a ser evitada, o máximo a que a
113 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista
da ética, in; op. cit., pp. 605-606. 114 Sobre o Idealismo relativo em Platão, veja-se, H. GLOCKNER, Hegel 1:
Schwierigkeiten und Voraussetzungen der hegelschen Philosophie,
Stuttgart: Frommans Verlag, 1954 [SW, 21], pp. 311-312., 115 Ver, H. ALBERT, Hösles Sprung in den objektiven Idealismus, in:
Zeitschrift für allgemeine Wissenschaftstheorie, XX, 1 (1999): 124-131.
Confronte-se com V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 2, 1, pp. 245-249
(ed. it., pp. 47-52). 116 No original: ―Tatsächlich hat er seine These – seine Version des objektiven
Idealismus – nicht durch einen Beweis etabliert, sondern er hat sie
gewissermassen durch einen geistigen Sprung erreicht, den er durch
Scheinbeweise zu kaschieren versucht hat‖ (cf. H. ALBERT, Hösles
Sprung, in: op. cit., p. 131).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 150
tentativa hösliana (o que também vale para a tentativa de Apel)
consegue chegar é à explicitação analítica de uma intuição; de
algo que, antes de tudo, é tomado ou pressuposto pelo filósofo
como imposto à razão finita como um dever moral e um
mandamento incondicional117
. Por conseguinte, a distinção de
Hösle entre o ―a priori objetivo‖ – as leis do pensamento que são
elas mesmas reais – e o a posteriori – a realidade cujas leis se
identificam com as leis do pensamento – não só se apresenta
como estranha; mas, para de novo lembrarmos Albert, mostra-se,
sobretudo, como ilegítima118
.
3. Necessidade da Passagem a uma Concepção Especulativa
do Direito, Elementos para sua Retomada e
Desenvolvimento na Atualidade
Há que se reconhecer de saída pelo menos duas
contribuições fundamentais dos pontos de vista discutidos no
passo anterior para a Concepção especulativa do Direito aqui a
ser exposta. Por mais paradoxal que isso se apresente à
consciência ordinária; tais contribuições são: (1) a dissolução do
dualismo kantiano entre noumeno e fenômeno ou de coisa em si
e aparência pelo Realismo interno de Habermas119
e (2) a
reproposição da postulação kantiana de ―eus noumenais e
atemporais‖, agora como constituintes de uma estrutura
intersubjetiva absoluta120
, ―que tomam decisões éticas sem que
estas sejam sujeitas à lei causal‖121
pelo Idealismo objetivo de
Hösle. Enquanto a primeira, a rigor, consiste na libertação dos
conteúdos particulares de pensamento em relação à representação
e com isso, se levarmos a sério a posição de Schopenhauer
117 Ver, V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 118 Veja-se, H. ALBERT, Hösles Sprung, in: op. cit., p. 130. 119 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., p. 41. 120 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 121 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista
da ética, in; op. cit., pp. 593.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 151
segundo a qual ―o mundo é minha representação‖122
, também
destrói a ordem cosmológica na qual o fenômeno e a experiência
se punham ao Idealismo transcendental kantiano como a única
esfera cognoscível do Ser; a segunda repropõe justamente a
existência objetiva, noumenal e atemporal, dos eus ou das
pessoas enquanto habitantes de um reino para além do espaço-
tempo no qual elas não só agem eticamente livres dos limites
causais circunscritos ao espaço-tempo, mas, também, constituem
parte de uma comunidade do espírito123
. Não obstante, porém,
essas duas posições não se mantêm firmes nas conquistas a que
acederam e terminam por recaírem, sob distintas formas e
modos, na esfera espácio-temporal.
A dissolução habermasiana do dualismo kantiano entre
noumeno e fenômeno ou de coisa em si e aparência, embora
liberte os conteúdos particulares de pensamento em relação à
representação, e com isso a totalidade dos objetos
experimentáveis da concepção que a restringe a um mundo ―para
nós‖; ao aprisionar os conteúdos de pensamento na malha dos
significados lingüísticos cujos limites constituirão de ora avante
os limites do mundo enquanto ―sistema de referências
possíveis‖124
e, por conseguinte, ao transferir o sujeito agente do
reino dos seres inteligíveis para o mundo da vida articulado
lingüisticamente dos sujeitos socializados125
; termina por
identificar as representações subjetivas com as expressões
lingüísticas consideradas verdadeiras e assim, ainda que negando
―o ‗ser veritativo‘ dos acontecimentos representados em
expressões verdadeiras e interpretados em uma linguagem que é
a cada vez a ‗nossa‘ linguagem‖ como ―realidade
122 Ver, A. SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como
representação, trad. M. F. Sá Correia, Rio de Janeiro: Contraponto, 2001
[Original, 1819], § 1, p. 9. 123 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 240. 124 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., p. 58. 125 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., p. 52.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 152
representada‖126
, tão só por instaurar uma nova dimensão do
espaço-tempo como ―aquela ‗existência‘ experimentada na
relação prática como resistente a tudo aquilo com que ‗nos
chocamos‘ no mundo perigoso e com que devemos ‗lidar‘‖127
.
Ao contrário disso, por um lado, a reproposição hösliana de ―eus
noumenais e atemporais que tomam decisões éticas sem que
estas sejam sujeitas à lei causal‖128
peca justamente por
identificar esses eus noumenais e suas decisões éticas livres a um
abstrato ―verdadeiro ser‖ ou ―ser absoluto ideal‖ que se
desenvolve na natureza concebida como realidade objetiva
relativa a uma consciência finita; melhor, por confundir esses
―eus noumenais e atemporais‖ e essas ―decisões éticas livres da
lei causal‖ como membros de um ―reino ideal das categorias e
significados, cuja exteriorização é a natureza, que segue,
entretanto, suas determinações objetivas e imanentes sem que
haja qualquer ruptura‖129
. Se levarmos em conta o já dito a
respeito das representações (sejam elas subjetivas ou objetivas) e
dos significados no âmbito da perspectiva habermasiana, cujo
conteúdo como tal exprime o núcleo duro de todas as concepções
fundadas na linguagem ou que a tomam enquanto medium
intranscendível de todo discurso e de toda argumentação com
sentido; não pode ser tomado a rigor enquanto existindo
objetivamente para além do espaço-tempo e do dualismo de um
―a priori objetivo‖ formal e de um a posteriori subjetivo que se
assenta numa base material objetiva, mas indiferente ao que nela
ocorre. Por outro lado, em conseqüência do que foi até agora
constatado, tanto os ―eus noumenais e atemporais‖ quanto as
suas ―decisões éticas livres da lei causal‖ – fazendo abstração de
seu caráter meramente postulado pelo Idealismo objetivo – só
podem existir como tais; a saber, enquanto postulados ou como
126 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., p. 41. 127 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão
destranscendentalizada, op. cit., pp. 41-42. 128 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista
da ética, in: op. cit., p. 593. 129 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista
da ética, in: op. cit., pp. 605-606.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 153
existindo realmente em um reino ideal tal qual descrito pela
posição aqui em questão, se e somente se ambos possuem
referentes em um reino contrafaticamente concebido como real
ou, melhor, fenomenal; no caso, o da natureza objetiva exterior
concebida como um mundo ―para nós‖ e o da razão finita com a
qual ela se põe em relação enquanto reino dos eus fenomenais e
suas decisões circunscritas à lei causal; o que implica na
reposição de problemas como o da relação entre corpo (eu
fenomenal) e alma (eu noumenal) ou o da confusão da linguagem
e dos significados, juntamente com as representações aí
expressas e das quais as categorias são tipos particulares; cujo
estatuto ontológico é rigorosamente circunscrito ao plano
espácio-temporal, em suas mais diversas dimensões e aos
fenômenos de toda ordem que aí têm lugar, e cuja resolução
metodológica impõe tal ou tal delimitação ao chamado mundo
segundo a diversidade dos tipos e formas de representação que se
exprimem lingüisticamente como este ou aquele mundo;
respectivamente, como um ideal oposto a um real. O que, enfim,
no afã de mediar os extremos que em cada caso se mostram
como unilaterais, termina por unilateralizar o elemento mediador
ele mesmo – no caso o Absoluto – em o subordinando a um
desenvolvimento circunscrito a um dos extremos da esfera finita,
justamente o concebido como necessário ao seu próprio
desenvolvimento e que, não obstante, a ele permanece
indiferente.
Enfim, de acordo com Kant, ―quando nos pensamos
livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus
membros e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente
com a sua conseqüência – a moralidade; mas quando nos
pensamos como obrigados, consideramo-nos como pertencentes
ao mundo sensível e, contudo, ao mesmo tempo também ao
mundo inteligível‖130
. Isso, a rigor, deveria implicar no
reconhecimento da obrigação moral não como limitação ao
sensível e, assim, como um dever do Eu circunscrito em sua
130 Veja-se, I. KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, in: I.
KANT, Textos selecionados, trad. Tânia Maria Bernkopf, Paulo Quintela,
Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 154.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 154
aparência para consigo enquanto um Eu inteligível que se põe
nos limites do espaço-tempo. Ao contrário, como exigência do
autodesenvolvimento lógico-real da Vontade livre – inclusive na
forma de múltiplos eus livres que se contrapõem e se reconhecem
mutuamente como tais a partir da divisão do espírito nos
mesmos131
– em sua própria esfera. Essa, a esfera em que o
espírito se desenvolve em sua efetividade propriamente espiritual
como despojado de suas aparências contingentes e das figuras
espácio-temporais pelas quais ele pode vir a tornar-se objeto de
representação quando fixado em quaisquer de seus níveis ou sob
quaisquer dos pontos de vista que aí têm lugar. Tal é o que se põe
como problema para o Especulativo puro em geral e para a
Concepção especulativa do Direito em particular.
1.O que é o Especulativo puro?
O ponto de partida e o ponto de vista que aqui fazemos o
nosso consiste na afirmação segundo a qual o Especulativo puro
– embora contenha dentro de si o Transcendental em geral e o
Prático-transcendental em particular, em suma, a chamada
―estrutura reflexiva transcendental absoluta‖ – não se reduz a
uma Filosofia transcendental, ainda que absoluta. A diferença
entre esses pontos de vista está em que o Transcendental se opõe
ao Empírico enquanto distingue o que é ―a priori‖ do ―a
posteriori‖, o plano das condições transcendentais de
possibilidade da experiência da experiência mesma; ao passo que
o Especulativo puro não faz essa distinção e nem opõe o
Transcendental ao Empírico, mas, ao invés, compreende-os no
ato pelo qual, de um lado, o Espírito se manifesta como Ser-
consciente e, de outro, se concebe além do ser e da essência
meramente reflexivos e da simples Inteligência-que-se-pensa-a-
si-mesma in abstractu. O que, segundo a constatação de Hegel,
implica na descoberta de si do Absoluto como essência espiritual
que se põe a si mesma em movimento e que retorna a si enquanto
131 Ao que tudo indica, antes de Hegel (E., § 436 Ad.), Proclus foi o primeiro a
se colocar essa questão (ETh, § 160 ss.).
Filosofia, Reconhecimento e Direito 155
essência consciente132
; mas isso, sobretudo em função do
reconhecimento do Espírito como além da Razão e da
Substância133
, não pode a rigor ser considerado ao modo da
relação entre essência e aparência ou – como querem os
comentadores – a título de um monismo imanentista; mas, ao
contrário, enquanto o despertar-se do próprio Uno em seu
desenvolvimento henádico no âmbito do que se poderia chamar
Experiência pura134
. Algo que, no caso de Hegel, embora
tematizado na Fenomenologia do Espírito como Ciência da
experiência do Ser-consciente, na Ciência da Lógica como
Filosofia especulativa pura e na Filosofia real enquanto
realização metafísica da Efetividade espiritual do Especulativo
puro, jamais fora explicitado.
132 Veja-se, a respeito, G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807),
Stuttgart, 1951, p. 321 ss. [ed. Glockner (SW, 2)]. Para facilitar a leitura,
além da paginação dessa edição original, também lançaremos mão da
numeração dos parágrafos utilizada na versão de Paulo Meneses
[Fenomenologia do Espírito, São Paulo: Loyola, 1992 (2 vols.)], baseada na
edição crítica de Hans Friedrich Wessels e Heinrich Clairmont (GW, 9), e
na versão de A. V. Miller (Phenomenology of Spirit, Oxford: Oxford
University Press, 1977) baseada na edição de J. Hoffmeister
(Philosophische Bibliothek, 114). Assim, de ora avante, citaremos a referida
obra pelas iniciais ‗PhG‘, seguida de ‗§‘ e do número dos respectivos
parágrafos, remetendo às referidas versões e (entre parêntesis) do número
da página correspondente na edição Glockner, precedida pela maiúscula ‗J‘
(de Jubiläumausgabe). De onde, para o caso em questão: PhG, § 418 ss. (J
321 ss.). 133 Ver, PhG, § 438 ss. [J 335 ss.]; ver também, E. § 159. 134 Para o desenvolvimento henádico do Uno, veja-se PROCLUS, ETh, §§ 21,
64, 114 ss., 119, 133 ss., 162 ss.; D. PSEUDO-AREOPAGITA, Dos nomes
divinos. Introdução, tradução e notas de Bento Silva Santos. São Paulo:
Attar, 2004, passim, sobretudo, p. 69 ss.; 171 ss. Para a origem da noção de
Experiência pura aqui a ser desenvolvida, ver PROCLUS, Commentary on
Plato’s Parmenides, trans. Glenn R. Morrow and John M. Dillon, – first
Princeton Paperback printing, with corrections – Princeton: Princeton
University Press, 1992, VII, 1233 ss. (p. 573 ss.); N. CUSA, A visão de
Deus. Tradução e introdução de João Maria André. Lisboa: FCG, 1988.
Confronte-se ainda: PhG, §§ 800-802 (J 611-614) e Eth, §§ 49-56.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 156
No primeiro caso, Hegel nos diz que o Ser-consciente é o
Espírito-que-aparece135
e que esse é o Saber em devir136
a ser
apresentado pela Ciência da experiência do Ser-consciente; o
que significa dizer que o objeto da Fenomenologia do Espírito –
como Ciência autêntica do Espírito – não é senão a Experiência,
ou o Saber em devir, do Espírito mesmo enquanto esse aparece
ou devém a si e se reconhece a si mesmo como Ser-
autoconsciente; ocasião em que, ainda como Espírito-que-
aparece, mas cumprindo o programa fenomenológico em sua
inteireza, ele então se despojará de sua aparência em tornando-a
igual à essência; portanto, apreendendo a sua verdadeira essência
e, assim, designando a natureza do próprio Saber absoluto137
–
isto é, da Filosofia especulativa pura. No segundo caso, em
conseqüência do primeiro, não estamos mais nos limites da
experiência do Ser-consciente ou do Saber em devir – que como
tais se apresentam sob a forma de figuras espácio-temporais
evanescentes ou, ainda, por si mesmas inefetivas; mas sim –
como é forçoso reconhecer – no âmbito da experiência do Ser-
autoconsciente do Espírito, – do Saber puro que, como Saber
absoluto do Absoluto, não devém –, onde as simples figurações
fenomenológicas cedem lugar à configuração lógico-real do
Lógico puro e, por conseguinte, à Realidade espiritual como sua
efetividade. O que, embora num primeiro momento se apresente
como que no âmbito de uma estrutura reflexiva transcendental
absoluta, e por isso sob a forma de um ―a priori objetivo‖; na
medida em que esse ―objetivo‖ não se mostra aí meramente
135 Veja-se, Wissenschaft der Logik. Erster Band: Die objektive Logik
(1812/1813), herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke.
Hamburg: Felix Meiner, 1978 [GW, Band 12], p. 8, (de ora avante, citar-se-
á esse texto como segue: [para Erstes Buch: Die Lehre vom Sein (1812)]:
WL, I, 1, 1812, p. IX). Para Zweites Buch: Die Lehre vom Wesen (1813),
quando for o caso, seguiremos o mesmo procedimento: WL, I, 2, 1813, p.
xx. 136 No original, das werdende Wissen. Expressão utilizada apenas no Hegels
Selbstanzeige der Phänomenologie des Geistes, de junho-novembro de
1807: HEGEL, G. W. F. Phänomenologie des Geistes. Neu hrsg. von Hans-
Friedrich Wessels und Heirinch Clairmont. Mit e. Einl. von Wolfgang
Bonsiepen. Hamburg: Meiner, 1988, pp. 549-550. 137 PhG, § 89 [J 80].
Filosofia, Reconhecimento e Direito 157
como ―o que é em si e por si‖, um Universal abstrato ou em
geral, mas como ―o que é em si e para si‖, um Universal ativo138
,
que, como tal, ao se autoproduzir sob a forma de um ―a posteriori
objetivo‖, torna o racional efetivo e o efetivo racional139
; faz
emergir um novo plano do Real – o Real mesmo em sua
totalidade – que, como Realidade espiritual, não é mais a priori
ou a posteriori, transcendental ou empírico-formal, transcendente
ou imanente, mas tão só especulativo puro ou manente140
. Por
tudo isso, é inegável que haja experiência nesse plano
Especulativo puro, mas essa é aí Experiência pura; a experiência
real do Espírito consigo mesmo no plano das puras
determinidades de seu Ser-autoconsciente ou de sua divisão
imperiosa em ―diversos eus que em si e para si, e uns para os
outros, são perfeitamente livres‖141
.
Embora muito se tenha comentado sobre a relação entre
especulação e experiência em Hegel, até agora pouco se tem
avançado para além de um ponto de vista exterior à Coisa mesma
e que ainda é predominante nas pesquisas sobre o chamado
Sistema hegeliano; o qual, antes de tudo, constitui-se na
emergência mesma dos Conceitos da Filosofia especulativa pura
e do Elemento especulativo. Comecemos então, em um nível
extremamente introdutório, por considerar o que o próprio Hegel
nos diz a respeito; limitar-nos-emos às duas indicações que aqui
consideramos fundamentais – apresentadas respectivamente nas
Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie142
e no
Vorrede às Grundlinien der Philosophie des Rechts, repetida na
Einführung da Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften
im Grundrisse143
. Quando apresenta o Sistema do Idealismo
transcendental schellinguiano, Hegel o felicita por fazer emergir
mais uma vez a forma especulativa do pensamento – por captar a
unidade das determinações diferenciadas de infinito e finito,
causa e efeito, positivo e negativo, em cuja diferença o Ser-
138 E., §§ 20-24. 139 GPhR, J, p. 33; E, § 6. 140 Para a origem do conceito de Manência, veja-se, mais acima, nota 3. 141 E, § 436, Ad. 142 VGPh, III, J, p. 656 (ed. esp., p. 493). 143 Respectivamente: GphR, J, p. 33; E., § 6, A.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 158
consciente reflexivo ou natural inclinado ao metafísico
permanece144
. Infelizmente, para Hegel, Schelling não é
conseqüente – pois, em se fixando no ponto da indiferença do
subjetivo e do objetivo, se limita a pressupor o Conceito da razão
de um modo absoluto, sem demonstrar que isso é o verdadeiro e,
portanto, sem fundar a Identidade absoluta aí pressuposta no Eu
mesmo145
. Ora, Hegel nos diz que ―o especulativo é: ter a
oposição diante de si e dissolvê-la‖146
; isso implica numa
atividade permanente do Especulativo no sentido de dissolver
tudo que a ele se opõe (o que é reconhecido por Schelling), mas
como tudo o que se lhe opõe são as determinações dele próprio –
como tais, produzidas por ele mesmo –, essas tem que ser da
mesma forma por ele assumidas como tais (algo não reconhecido
pela filosofia schellinguiana); a qual, ainda para Hegel, coincide
com a filosofia de Platão e a de Plotino na medida em que se
limita a formular o princípio absoluto, sem nenhuma mediação
ou desenvolvimento147
. Desse modo, se levarmos em conta o que
se afirma na Doutrina da Essência148
, que no Absoluto mesmo
não há devir; pois ele é a Identidade absoluta – entendida como
identidade do interior e do exterior, ato de assumir as diferenças,
as determinações variadas e seu movimento ao mesmo tempo em
que as fazem desaparecer; a rigor, não poderemos considerar
especulação e experiência como dimensões separadas, mas tão
somente enquanto uma única e mesma realidade: a Realidade
espiritual.
Essa, como foi discutida mais acima, consiste na
efetividade mesma do Lógico puro; de onde apresentar-se como
Lógico-real. Por isso, como desenvolvimento especulativo do
próprio Especulativo puro, a Realidade espiritual embora se
mostre no tempo – de um lado como Espírito-que-aparece ou
Ser-consciente, de outro como Saber em devir ou Experiência do
Ser-consciente – é nela mesma sem devir; razão pela qual, a um
144 VGPh, III, J, p. 656 (ed. esp., pp. 493-494). 145 VGPh, III, J, p. 659 (ed. esp., p. 495 ss.). 146 VGPh, III, J, p. 656 (ed. esp., pp. 493): ―Das spekulative ist: den Gegensatz
vor sich zu haben und ihn aufzulösen‖. 147 VGPh, III, J, p. 667 (ed. esp., p. 498. 148 WL, I, 2, 1813, p. 217.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 159
tempo, em suas puras determinadades conceituais, nem passa
nem aparece – mas, no âmbito de suas puras determinadades
conceituais, apenas se desenvolve. De onde, a partir de tal
realidade, não mais haver como tais aquelas determinações
diferenciadas próprias do Ser-consciente reflexivo ou natural
circunscrito a figuras espácio-temporais; ou mesmo a oposição
entre a priori e a posteriori (ainda que esse último seja
considerado segundo seu resultado próprio ou enquanto
dissolvido pelo primeiro), como ocorre na chamada Filosofia
transcendental absoluta. Eis aí, pois, o que Hegel exige de
Schelling quando da formulação da Identidade absoluta como
Indiferença por esse, o desenvolvimento da própria noção de
Experiência imediata149
; de modo a que, mais propriamente, o
que é aí concebido como Transcendental absoluto se conceba a
si mesmo como Especulativo puro e, assim, se realize como tal;
não apenas como figura espácio-temporal ou uma sorte qualquer
de ―a posteriori reflexivo‖, esse mero derivado da reflexão
exterior, mas como configuração lógico-real do que é, a um
tempo e desde sempre, racional e efetivo em si e para si. Se,
como quer Schelling, o princípio absoluto absolutamente idêntico
é não-objetivo; se o acesso ao mesmo, que é não-objetivo, é
inconcebível e inexprimível conceitualmente, só pode ser via
Intuição intelectual – que, para além da oposição entre Noumeno
e Fenômeno, consiste na Experiência imediata logo acima
aludida; ―de que modo é possível tornar a fazer objetiva esta
intuição, isto é, como é possível pôr fora de dúvida que não
descansa em um engano subjetivo, desde o momento em que não
existe uma objetividade geral daquela intuição, reconhecida por
todos os homens?‖150
. Esse, o problema que desde seus inícios
Hegel se propôs e que, não obstante, permaneceu sem solução;
de onde o seu repensar – na unidade da Especulação e da
Experiência – para além do limite fenômeno-lógico, no âmbito
do Lógico puro e seu desenvolvimento real ou efetivo.
A Experiência imediata de Schelling, como Intuição
intelectual, é já Experiência pura ou, igualmente, Intuição pura;
149 VGPh, III, J, p. 660 (ed. esp., p. 495). 150 VGPh, III, J, p. 660 (ed. esp., p. 495).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 160
como experiência pura do não-objetivo, essa experiência só pode
ser experiência de si mesma – bem entendido, experiência pura
de si mesma da Razão absoluta; a qual, por assim dizer, se intui
como Subjetividade absoluta ou como Espírito, de onde a
referida Intuição pura apresentar-se agora como Intuição
espiritual ou, ainda, como Experiência ativa151
. Desse modo,
como foi dito mais acima, o racional e o efetivo – o lógico e o
real –, mostram-se como um e apenas um e mesmo plano onde se
concentra todo o desenvolvimento especulativo do Especulativo
puro; do Um que é sem devir – e que é, portanto, além do ser e
da essência – mas que, ao fazer principiar o Real em suas puras
determinações conceituais, descobre-se, pois, a si mesmo nesse
real assim efetivo configurando-se como Realidade espiritual.
Tal é o que, como dito acima, Hegel sumarizou na segunda
indicação aludida – com a qual se sintetiza a relação entre
especulação e experiência segundo a qual o Ser-autoconsciente
do Espírito conhece a si mesmo no âmbito de suas puras
determinidades, cito: ―o que é racional é efetivo e o que é efetivo
é racional‖152
; onde por ‗efetivo‘ não devemos entender apenas o
Institucional – como a ―primazia da subjetividade de alto grau do
Estado face à liberdade subjetiva do indivíduo‖ ou como a
justificação da segunda tão só enquanto ela está inteiramente
integrada na ordem das instituições em sua contingência histórica
ou em sua positividade representada –, como querem autores do
porte de um Habermas e um Henrich entre outros153
; mas sim, e
sobretudo, o elemento ativo – atuante ou efetuante – do Racional
mesmo, que não seja senão o desenvolvimento lógico-real
daquilo que o próprio Habermas – no caso, a concepção kantiana
da Razão prática – designou como ―cognição sem
representação‖154
. Não simplesmente o produto da atividade
humana em contraposição à potencialidade aparente da matéria-
prima que se esconde por detrás do movimento das forças
151 PhG, §§ 801-802 (J 611-614); E., § 449 Ad. 152 GphR, J, p. 33; E., § 6, A. 153 Ver, J. HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, trad. Ana
Maria Bernardo [et al.]. Lisboa: Dom Quixote, 1998, p. 48 ss. 154 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,
op. cit., p. 64.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 161
naturais – pois, a simples atividade humana como tal não é ainda
por si mesma efetiva; mas tão somente o atuar da Razão sobre si
mesma produzindo-se a si mesma enquanto Efetividade do
Espírito, o que tende sim a conformar o que há de ativo na
atividade humana, mas isso apenas quando do reconhecimento de
si mesmo de cada Ser-consciente como Ser-autoconsciente do
Espírito que nele atua, o que implica a distinção dos dois planos
onde a Experiência imediata pode ser desenvolvida: o Fenômeno
e a Efetividade, o Reflexivo e o a Especulativo puro.
Talvez, por isso, Hegel visse por bem explicitar a
referida indicação – por seu ―caráter chocante‖ a muitos; razão
pela qual deve ser considerada como a expressão mais acabada
com a qual o filósofo de Berlim pretendeu dar conta do caráter
efetivo da vida do Espírito enquanto atuação do Lógico puro.
Com ela, Hegel pretendera esclarecer o caput do § 6 da
Enzyklopädie, onde distingue rigorosamente o Fenômeno – o que
é transitório e insignificante – e a Efetividade; essa, único e
idêntico conteúdo de toda forma de conscientizar-se, é o
conteúdo originariamente produzido – e produzindo-se – no
âmbito do espírito vivo, com o qual a experiência não só
concorda, mas constitui o elo fundamental – mediante o
desenvolvimento do conhecimento de sua concordância com a
Efetividade – da própria reconciliação da Razão autoconsciente
com a Razão essente, a Efetividade mesma. De acordo com
Hegel, quem separa a Efetividade (esse conteúdo da filosofia do
qual a experiência é o Ser-consciente mais próximo) e a Idéia (a
substância uma e universal) termina reduzindo a primeira à mera
realidade sensível e contingente, e a segunda a simples quimeras;
não percebendo que só no racional a efetividade é verdadeira e
que só a Efetividade verdadeira, desenvolvida, é Ser como
Sujeito, como Espírito. De onde, enfim, podermos distinguir a
experiência ligada ao mero fenômeno e a experiência como Ser-
consciente da Efetividade do Espírito; ou, o que é o mesmo,
respectivamente, a experiência da efetividade separada da Idéia e
a experiência da Identidade da Efetividade e da Idéia; em suma, a
experiência sensível ou formal e a Experiência pura, real e ativa.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 162
2.Nota sobre a Concepção especulativa do Direito e sua
atualidade
Se, como foi dito mais acima, por ‗efetivo‘ não devemos
entender apenas o Institucional enquanto limitado espácio-
temporalmente ou em sua contingência natural e histórica e sim,
sobretudo, o elemento ativo – atuante ou efetuante – do Racional
mesmo; o Institucional não poderá ser mais que o resultado da
atuação e da efetuação do Especulativo puro ele mesmo e, desse
modo, algo efetivamente livre, portanto capaz de informar o
conteúdo próprio das diversas representações institucionais que
tornam possível o convívio humano nos limites do espaço-tempo
e a relação dos homens com a natureza em seus distintos níveis e
modos. Disso também resulta que a mediação institucional e o
reconhecimento intersubjetivo não sejam meros produtos da
atividade humana socialmente organizada ou lingüisticamente
mediada em contraposição à simples atividade humana
individual como tal, consciente ou autoconsciente; pois, em
qualquer um desses casos já se está pressupondo a mediação
institucional e o reconhecimento intersubjetivo enquanto
condições da figuração fenomenológica e da expansão espácio-
temporal de algo como indivíduos, linguagem e sociedade –
tornados possíveis tão só enquanto representações institucionais
tanto nos limites subjetivos do mundo da vida quanto nos limites
objetivos do mundo ―para nós‖. De fato, a tarefa da mediação
institucional e do reconhecimento intersubjetivo não é senão a
mediação dessas duas esferas finitas – respectivamente, daquilo
que nelas há de idêntico e de diferente – em dotando-as dos
mesmos mecanismos, procedimentos e meios mais adequados ao
pleno cumprimento de seus fins.
Pois bem, se a tarefa da mediação institucional e do
reconhecimento intersubjetivo se põe real e não apenas
formalmente enquanto mediação dessas duas esferas finitas – a
saber, o mundo da vida de cada um e seu alargamento em um
mundo como ―sistema de referências possíveis‖, de um lado, e,
de outro, o mundo como realidade representada ou ―para nós‖;
então se colocam de imediato as seguintes questões em torno dos
limites e do alcance dessa mediação. (1) Se mediação
Filosofia, Reconhecimento e Direito 163
institucional e reconhecimento intersubjetivo não são produtos
da atividade humana socialmente organizada ou lingüisticamente
mediada, mas seus pressupostos – em que consistem tais
pressupostos: são eles (a) concomitantes às esferas mediadas e
nelas se mostram sob o modo de sua forma imanente; (b)
anteriores lógica e ontologicamente a elas e se põem como seu
princípio a priori e objetivo sob a forma de uma estrutura
intersubjetiva absoluta; ou (c) se constituem a posteriori como
uma espécie de ideal a ser perseguido a partir da perspectiva
aberta pelo mundo da vida de cada um e de seu alargamento em
um mundo como ―sistema de referências possíveis‖? Poderiam
eles (d) consistirem numa atividade espiritual determinada em si
e para si – livre de determinações causais; cujo desenvolvimento
necessário se diferencia em múltiplos eus livres, positivo-
racionais ou lógico-reais que, em seu aparecer consciente, tomam
consciência do mundo como realidade representada ―por nós‖ e
―para nós‖ na medida mesma em que o instituem e o mostram
como representação institucional e nele a si mesmos enquanto
seres representados institucionalmente e assim reconhecidos
como livres e iguais; mundo esse – natural e cultural ou
individual e social – possível apenas enquanto circunscrito
espácio-temporal e lingüisticamente a instituições histórica e
comunitariamente legitimadas? (2) Se, a despeito das anteriores,
essa última opção pode ser afirmada, caberia ainda interrogar
pela medida mesma pela qual a mediação institucional e o
reconhecimento intersubjetivo se põem enquanto condições da
figuração fenomenológica e da expansão espácio-temporal de
algo como indivíduos, linguagem e sociedade; bem como da
possibilidade desses enquanto representações institucionais tanto
nos limites subjetivos do mundo da vida quanto nos limites
objetivos do mundo ―para nós‖?
Para explicitar melhor esse ponto, um excurso pela
origem do conceito de Instituição aqui posto em cena e seu
desdobramento na noção de representação institucional se faz
necessário. A rigor, o conceito de Instituição aqui em jogo,
embora tenha sua origem nos diversos modos pelos quais Hegel
termina por lidar com esse conceito e sua efetividade, não pode
ser dito ou tomado como algo desenvolvido pela filosofia
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 164
hegeliana ou que essa dele tenha se tornado consciente; exemplo
disso, conforme nos relata Riedel, é o fato de Hegel se limitar ao
uso corriqueiro da palavra ‗instituição‘ tal como ela ocorre na
língua155
. De acordo com Riedel, podemos aí distinguir duas
acepções do termo ‗instituição‘: (a) uma, a mais restrita, que tem
a ver com as determinações do direito romano – no caso,
segundo seu contexto originalmente jurídico, "a pátria potestade
romana, o matrimônio romano", enquanto fundamentos dos
conceitos do direito privado romano; essa acepção, para Riedel,
nasce deste contexto de exemplos que compreende o âmbito do
"direito abstrato" e, assim, no processo sistemático da formação
conceitual da filosofia do direito, efetiva-se nas determinações de
propriedade e contrato como instituições fundamentais156
. A
outra acepção, a mais ampla (b), apresenta-se para Riedel no
contexto lingüístico da Eticidade e da sua relação com o "direito
do Estado"; onde, talvez por seu significado mais vasto, Hegel
não usa mais a expressão latinizante [Institutas], mas a substitui
com o equivalente alemão "Einrichtung" (ordenamento ou
Instituição), cujas referências são justamente os "conteúdos
consolidados" do Ético e as "potências éticas" que escapam às
preferências e opiniões subjetivas de cada um e se constituem
como "leis e Instituições (Einrichtungen) que são em si e para
si"157
. Riedel parece compreender a passagem da primeira
acepção à segunda ou a mediação entre elas a partir da Idéia
mesma da Liberdade, que, segundo ele, para Hegel, é "real"
apenas após a crítica ao direito historicamente delimitado das
instituições ou dos elementos operativos do Direito privado (na
Moralidade) e após a sua suprassunção no Conceito e no ser-aí
155 Ver, M. RIEDEL, Dialética nas instituições. Sobre a estrutura histórica e
sistemática da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução portuguesa de
Selvino José Assmann da versão italiana: Dialettica nelle istituzioni. Sulla
struttura storica e sistematica della Filosofia del Diritto di Hegel. In:
CHIEREGHIN, Franco (org.) Filosofia e società in Hegel. Trento, Quaderni
di Verifiche 2, 1977, pp. 35-60. Versão eletrônica, URL =
<http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/riedel.htm>, disponível desde agosto de
2001, acessada em março de 2006, seção I. 156 Ibid. 157 Ibid.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 165
da Eticidade; a qual, não obstante sua consideração ―como o
‗bem vivente, que tem na sua autoconsciência a sua realidade, e
como tal encontra no ser ético o seu fundamento em si e para si e
o fim motor‘ (§142), tem necessidade da configuração histórica‖
e de uma expressão lingüística que ―nada mais é que um
‗desenvolvimento das relações que são necessárias [enquanto
elementos constitutivos] no Estado para efeito da Idéia da
Liberdade, e, portanto, reais em toda a sua amplidão‘"158
. O que,
embora extremamente alvissareiro, ao limitar-se à esfera do
Espírito objetivo deixa como que na sombra o modo como aí –
no Espírito objetivo – as Instituições vieram a instituírem-se a si
mesmas, ainda que nos limites das acepções aludidas; bem como
a mediação entre as mesmas e a distinção da última e de seu
aparecer fenomênico ou espácio-temporal.
Desse modo, há que se reconhecer que no
desenvolvimento hegeliano do conceito de Instituições falta
justamente a perspectiva da autonomia das mesmas enquanto tais
primeiramente levada a cabo por Arnold Gehlen; cujo ponto de
partida, como Apel já reconhecera159
, é justamente a tematização
hegeliana. Segundo Gehlen, citado por Apel, uma Instituição é
―toda cristalização e autonomização de nosso trato
comportamental com o mundo exterior e com os outros,
adequadas para atribuir a nosso comportamento uma consistência
externa capaz de estabelecer compromissos‖ que, de um simples
meio ou instrumento para elaboração de algo, ―acaba por se
transformar em um fim de si mesma‖160
. De modo mais estrito,
retomando Ilse Schwidetzki, no verbete Antropologia da
Enciclopédia Fischer, Gehlen afirma que as Instituições são
modelos de comportamento que (1) se fixam como tais de modo
a aliviar o indivíduo da sobrecarga das decisões e a orientá-lo
através das impressões e estímulos que inundam seu ser aberto ao
158 Ibid. 159 Veja-se, A. GEHLEN, Urmensch und Spätkultur, Bonn, 1956, p. 9; pp. 21 e
233. Apud, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica,
semiótica, hermenêutica, trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo: Loyola,
2000, p. 243. 160 Veja-se, A. GEHLEN, Urmensch und Spätkultur, Bonn, 1956, p. 9; p. 68.
Apud, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 233.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 166
mundo; (2) se constituem como a lei de nossa vida de modo a
estreitar possibilidades e a constituir-se em um ponto de apoio
mútuo para a realização das mesmas, bem como de modo a
desencarregar o indivíduo para sua maior liberdade de
movimentação dentro de uma estrutura limitada; (3) se
determinam como o ethos da reciprocidade, que não é senão ―a
obrigatoriedade do convívio ordenado e as idéias orientadoras
pelas quais os homens estabelecem mais ou menos seu ambiente
e a si mesmos dentro deste obedecem à sua própria lei‖161
. Pois
bem, abstração feita dos limites ontológicos e epistemológicos da
postura de Gehlen, há que se reconhecer o grande mérito de seu
alargamento do conceito de Instituições para além de sua mera
aplicação nos limites do Direito stricto sensu e de seu esforço
para desenvolver a reciprocidade do comportamento como
fundamento da atitude humana; isso, de certo modo, a partir da
problemática moderna do Direito natural como Direito filosófico
ideal e de sua relação com o Direito positivo como tal enquanto
Ciência do Estado162
– em sentido diverso do de Hegel –
entendendo-se de ora avante como Instituições toda e qualquer
atividade passível de se tornar auto-referente e que, desse modo,
possa tornar-se autoconsciente; o que se funda na própria
retomada do problema da conexão entre as Instituições e a
constituição biológica do homem no sentido de que só as
Instituições são capazes de tornar possível ―a segurança e a
regulamentação recíproca do comportamento – que os resíduos
inseguros dos instintos não podem dar –, de maneira que se vive
dentro de estruturas estáveis, tal como o animal dentro de seu
ambiente‖163
. Para além das reflexões de Gehlen – e de sua
interpretação apeliana, que para salvar a Linguagem do âmbito
das instituições instituídas a toma como uma metainstituição164
–,
mas em se retomando a perspectiva hegeliana, agora assumindo
também o ponto de vista da autonomia das Instituições; isso
161 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, trad. Margit Martincic, Rio de
Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 97 ss. 162 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, op. cit., p. 49 ss.; p. 104 ss. 163 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, op. cit., p. 97. 164 Veja-se, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 257 ss.
Voltaremos a esse ponto mais adiante.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 167
implica no reconhecimento que as Instituições consistem no
resultado efetivo da atividade do Espírito livre e são, por
conseguinte, positividades racionais a um tempo lógicas e reais
nas quais o Espírito se cinde em múltiplos eus autoconscientes –
por isso mesmo noumenais e atemporais efetivamente existentes
– e se mantém a si mesmo sob a forma de uma comunidade ideal
que, como tal, prescinde de suas figurações espácio-temporais.
Ora, abstraindo-se aqui do ―nível mais realista‖165
de
Gehlen e do caráter meramente empírico-formal de suas
considerações, as quais, embora tenham como ponto de partida a
conexão entre as Instituições e a constituição biológica do
homem166
, na medida em que reduzem o Institucional ao
meramente cultural e tomam esse último como condição da
própria constituição natural do homem, terminam mais por opor
essas duas esferas que por dar conta de sua mediação real. Pois
bem, se as Instituições – mesmo que reduzidas ao cultural –
constituem-se como autônomas, ainda que essa autonomia se
limite ao ―nosso trato comportamental com o mundo exterior e
com os outros‖; o fato de se transformarem em um fim de si
mesmas implica que (1) a posição desse fim – das próprias
Instituições enquanto pressupostas geneticamente ou de seu
Conceito – e (2) sua realização como tal – a efetivação do seu
próprio Conceito anteriormente posto – não se constituam senão
como aquela estrutura intersubjetiva absoluta de um lado
pressuposta por Gehlen no plano de sua hipótese de trabalho do
homem enquanto ―ser atuante‖167
e, de outro lado, posta por V.
Hösle como a priori e objetiva; a qual, no entanto – para além da
Intersubjetividade e da Linguagem, que se apresentam a rigor
apenas enquanto instituições instituídas –, aqui se determina
como o Espírito intersubjetivo ele mesmo tanto em seu Conceito
quanto em sua efetividade. Isso porque, de um lado, se tem que
haver alguma conexão entre as instituições [tomadas enquanto
simples determinações culturais] e a constituição biológica do
homem, de duas uma: ou ambas as esferas são concebidas desde
165 Veja-se, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 243. 166 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, op. cit., p. 97. 167 Veja-se, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 235.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 168
o início como opostas, situação em que sua conexão seria
meramente exterior ou empírico-formal, ou essa conexão se
funda em algo comum a ambas, que justamente por isso as
institui; de outro lado, em se partindo da segunda opção, isso que
institui a um tempo tanto a natureza quanto a cultura e faz delas
mesmas instituições – no caso, instituições instituídas –, se for
concebido como sendo algo a priori oposto ao a posteriori, algo
como um reino ideal de categorias e significados que se
manifesta na natureza e na cultura ou uma metainstituição,
respectivamente, a Intersubjetividade absoluta em Hösle e a
Linguagem enquanto medium intranscendível em Apel, as quais,
a rigor, como dito acima, se apresentam apenas enquanto
instituições instituídas – ou seu fenômeno, as representações
institucionais –, de fato, se confundirá com aquilo que ele próprio
institui e, assim, entrará em contradição consigo mesmo. Essa
confusão [das Instituições como Atos instituintes (o Conceito) e
das instituições como instituídas (a Efetividade)] não só
prescinde da distinção entre o a priori e o a posteriori ou do
Transcendental e o Empírico ou entre o pressuposto e o posto –
pois se mantém independente dela; como também e, sobretudo, a
instaura como um ponto de vista meramente limitante ou
circunscrito aos limites espácio-temporais.
De fato, se nos ativermos aos pontos de vista limitantes
fundamentais de toda a História da Filosofia – que como tais
sintetizam pelo menos o pensamento moderno e o
contemporâneo – segundo os quais (1) ―o homem é a medida de
todas as coisas‖, (2) ―o mundo é minha representação‖, (3)
―somente onde há linguagem, há mundo‖ e (4) ―os limites da
linguagem significam os limites de meu mundo‖168
; de modo
algum poderemos aceder ao plano Especulativo puro e à sua
168 Veja-se, respectivamente, (1) PROTAGORAS, apud D. LAERTIOS, Vidas
e doutrinas dos filósofos ilustres, trad. Mário da Gama Kuri, Brasília: UnB,
1988, p. 264 [cap. 8, 51]; (2) A. SCHOPENHAUER, O mundo como
vontade e como representação, op. cit., § 1, p. 9; (3) M. HEIDEGGER,
Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, – vierte, erweiterte Auflage –
Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1971, p. 38; (4) L.
WITTGENSTEIN, Tractatus Logicu-philosophicus, trad. Luiz H. Lopes
dos Santos, São Paulo: Edusp, 1994, p. 244 (245) [P 5.6].
Filosofia, Reconhecimento e Direito 169
efetividade lógico-real – ao plano da liberdade efetiva, livre de
determinações causais –, que permanecerá para sempre um
postulado e, no melhor dos casos, objeto da crença subjetiva ou
de demonstrações meramente formais e abstratas. Pois bem, se
levarmos a sério o que esses enunciados enunciam, não
poderemos objetar seriamente contra o fato da Intersubjetividade
e da Linguagem, bem como aquilo que nelas têm lugar – as
representações, as categorias e os significados –, constituírem-se
apenas enquanto algo limítrofe entre o Ilimitado ou o Infinito e o
Limitado ou o Finito; no caso o mundo – tanto como
representado ou para nós quanto como sistema de referências
possíveis – e, dentro dele, a natureza e a cultura; isso quer dizer
que se a Linguagem é realmente um medium intranscendível, ela
só o poderá ser para aqueles que a pressupõem como medida
absoluta ou em si mesma como algo para nós, mas indiferente em
relação a si mesma como espírito vivo. Nesse caso, ainda que se
tome a Linguagem como metainstituição, ela só se apresentará
como uma instituição instituída entre outras no âmbito de uma
esfera determinada – no melhor dos casos, a esfera limitante – ela
mesma subordinada ao Ato que institui, ou limita e delimita; o
qual, ainda que se exprima linguisticamente, não é ou se torna
como tal subordinado ou dependente com relação à sua
expressão na Linguagem – ou, o que não é o mesmo, em
linguagem169
–, mas mantém a si mesmo livre das determinações
que – respectivamente – aí têm lugar ou ele mesmo produz.
Enfim, se a Linguagem é um medium, ela não poderá ser nem
superior nem inferior a isso que ela media; porém, justamente
por constituir-se em um médium, portanto como algo
intermediário entre dois extremos, ela será ao mesmo tempo
superior a um extremo e inferior ao outro – de onde, a um tempo,
seu duplo caráter de instituição instituída e de Instituição
instituinte ou, respectivamente, fato resultante de um processo de
instituição ou de um Instituir a ela superior e ato instituidor de
instituições derivadas.
Da mesma forma, agora para o caso da
Intersubjetividade, em levando a sério o que os enunciados acima
169 Sobre esse ponto difícil e ambíguo, veja-se, PhG, §§ 508 ss.; 520 ss.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 170
aludidos enunciam; ainda que a tomemos, juntamente com as
categorias e os significados, no âmbito de um reino ideal
ontologicamente real; isso não quer dizer que essas
determinações – como tais – constituam-se para além do limite
mesmo entre o Ilimitado ou o Infinito e o Limitado ou o Finito. A
posição de uma Razão objetiva – concebida como
Intersubjetividade ou identificada à Comunidade ideal dos
sujeitos constituintes de uma estrutura intersubjetiva absoluta –
que, como tal, se funda em um medium da idealidade; ao
implicar que, nesse medium, entre Subjetividade e
Intersubjetividade não possa haver diferença real ou sacrifício da
primeira em relação à segunda, mas apenas a prioridade desta em
relação àquela170
; não só dissolve o problema da mediação
institucional e do reconhecimento intersubjetivo em seu caráter
propriamente real, mas antes, dissolve também os próprios
sujeitos reais (mas não meramente naturais) em destituindo-os de
sua realidade constitutiva, a saber, de sua diferença como opostos
reais no interior mesmo da Estrutura intersubjetiva absoluta; por
fim, reduzindo-os, como seres ideais, àquilo que Schelling
denominara Indiferença absoluta171
, como tal, distinta e oposta à
oposição real. Neste sentido, ainda que o medium da idealidade
possa mediar as diferenças reais entre os sujeitos, o que se põe
com a distinção da esfera da Idealität e a da Realität como o
único modo de tornar possível a ação moral172
, surge um novo
dualismo – entre a esfera ideal que media e a esfera real na qual
estão os elementos mediados – que por seu turno não pode ter
lugar numa filosofia que se afirma enquanto monista; o que,
justamente por isso, torna o Idealismo objetivo da
Intersubjetividade tão somente uma posição que, embora afirme
uma realidade objetiva para além da consciência finita, ao
afirmar essa realidade objetiva apenas enquanto ideal, em
contrapondo-a à natureza como realidade objetiva real e à razão
finita como realidade subjetiva real, as quais se conformam em
170 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 171 Veja-se, F. J. W. SCHELLING, Obras escolhidas, op. cit., pp. 48-49 ss.;
103-104 ss. 172 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 221-222.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 171
um mundo como totalidade finita necessária, põe-se meramente
como um dever-ser lógico-ideal e não já como ser efetivo lógico-
real. Enfim, se o mundo (no qual vivemos e no qual o Absoluto
se realiza) se apresenta em sua totalidade como necessário,
desdobrando-se sempre em graus superiores173
; o Absoluto que
nele se realiza não será mais que um Absoluto relativo174
, ele
mesmo oposto ao mundo e, portanto, carente de mediação.
Aqui se impõe o problema mais difícil de como se
mediam o Absoluto em sua absolutidade ou em sua liberdade
absoluta e o Relativo em sua relatividade ou em sua necessidade
e contingência relativas. Por exemplo, mesmo que o Absoluto se
realize no mundo contingente em que vivemos e que, exatamente
por isso, esse mundo se mostre como necessário – de modo
algum o Absoluto mesmo se tornará contingente ao passo que o
mundo deixará de sê-lo; afirmar isso ou aquilo não implicará
somente no necessitarismo do mundo, mas também no
relativismo mesmo do Absoluto. Se o Absoluto é absoluto e se o
mundo é necessário, então o mundo tem que estar no interior do
Absoluto não só a título ideal, no sentido de um princípio a priori
objetivo, mas também a título real – fazendo valer aí as
diferenças reais entre natureza, espírito subjetivo, espírito
intersubjetivo e espírito objetivo –, no sentido de um
autodesenvolvimento interior do próprio Absoluto, do lógico-real
ou do Especulativo puro, a um tempo: Sujeito-Objeto ou Ser-
autoconsciente e Sujeito-Sujeito ou Comunidade ideal do
Espírito; por isso, em sendo assim, o Absoluto tem que se
apresentar como unidade absoluta da Idéia e do Espírito – mais
precisamente, da Idéia absoluta e do Espírito absoluto – ou como
a perfeição absoluta do que é livre e do que aparece livremente,
para além de toda a imperfeição circunscrita no dever-ser e na
aparência. Esses, dever-ser e aparência, embora possam se
mostrar como necessários, só o são em função da necessidade da
contingência ou do aparecer; nos quais as determinações lógico-
reais do Absoluto se refletem ou se dão a conhecer enquanto
representações institucionais que, como tais, nos permitem
173 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 232. 174 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 218-219.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 172
distinguir algo como o Finito e o Infinito, o Limitado e o
Ilimitado, o fenomenal e o noumenal e assim por diante, ao
infinito; mas isso, sem que os reflexos ou as aparências do
desenvolvimento lógico-real do Absoluto interfiram nesse
desenvolvimento. Eis aí o ponto exato em que não só tocamos o
limite do Limitado ou Finito, chamado Real, e o Ilimitado ou
Infinito, por seu turno designado Ideal – em constatando, ao
mesmo tempo, a identidade formal entre o Real e o Ideal,
enquanto os opostos que nele se opõem, e a oposição pura dos
mesmos enquanto apenas nesse limite estão postos; mas também
o ponto em que o suprassumimos juntamente com a identidade
formal e a oposição pura – em ultrapassando-o, assumindo-o,
retomando-o e desenvolvendo-o tal como o medium
propriamente dito ou a identidade real dos opostos nele postos,
inclusive a identidade formal e a oposição pura – no interior do
próprio Absoluto. O que, já em seus Jenaer Schriften, Hegel ele
mesmo já se pusera como tarefa explicitar; isso, no sentido da
afirmação da Identidade absoluta que suprassume ou põe os
opostos como reais no interior do próprio Absoluto175
, tal como
aqui reivindicada.
Pois bem, se o Absoluto é realmente absoluto e se em seu
interior o Ideal e o Real estão postos como opostos reais numa
Identidade absoluta ela mesma real, onde a oposição real é
suprassumida de modo que, segundo sua mediação, os opostos
estão postos como reais no Absoluto mesmo e o Absoluto neles;
então, não há um terceiro ao lado de Sujeito e Objeto que deles
seja distinto a título de um ideal em oposição a um real ou que,
como elemento mediador das relações entre os indivíduos, se
constitua como algo para além dos próprios indivíduos e deles
também seja distinto a título de medium ideal oposto aos
extremos reais por ele mediados. A necessidade de um mediador
que se distinga dos elementos mediados não só destrói a
autonomia desses enquanto opostos reais, mas também, a um
tempo, destrói a própria unidade perfeita resultante do processo
175 Veja-se, G. W. F. HEGEL, Differenz des Fichteschen und Schellingschen
Systems der Philosophie, in: Werke, 2. Jenaer Schriften (1801-1807), op.
cit., p. 96 ss.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 173
de mediação e a mediação mesma como resultado do
reconhecimento recíproco dos opostos como tais entre si em sua
automediação ou em sua mediação recíproca; o que implica no
fato de, se os opostos reais mediam-se a si mesmos, eles não só
mantêm a sua realidade a um tempo real e ideal, bem como a sua
liberdade em relação às determinações causais e à sua limitação
espácio-temporal, como também, sobretudo, se reconhecem a si
mesmos – cada um por seu turno a si mesmo e ao outro ao
mesmo tempo – como desenvolvimento lógico-real do próprio
Absoluto no qual ambos têm e mantêm sua realidade efetiva
(Wirklichkeit) para além de sua realidade aparente (Realität).
Neste sentido, se a mediação dos opostos reais se processa
mediante o reconhecimento recíproco puro entre si dos próprios
opostos reais no Absoluto, então essa mediação – enquanto
medium absoluto– não será senão o Ato mesmo pelo qual o
reconhecimento recíproco puro se institui como tal,
estabelecendo-se, por fim, como Ato de instituir ou como a
própria Instituição em ato; a mediação institucional que, como
tal, identifica-se com o reconhecimento recíproco na medida em
que, como uma e a mesma Coisa ou, o que é o mesmo, enquanto
momentos lógico-reais – a forma e o conteúdo de uma única e
mesma atividade – da atividade do Especulativo puro. Essa
atividade, enfim, como positividade racional, institui os
indivíduos como tais no ato mesmo de seu reconhecimento
recíproco, concebendo-se assim como Universalidade ativa – ao
mesmo tempo: Universal, Particular e Singular; com isso, ela não
só os permitem conceberem a si mesmos como livres, mas
também os determina – assim como à linguagem, à sociedade,
etc. – enquanto representações institucionais que, como tais, os
limitam subjetivamente no âmbito do mundo da vida e
objetivamente no plano do mundo ―para nós‖; de onde sua
figuração fenomênica e sua expansão espácio-temporal.
Independente do estado de consciência do indivíduo
que as representa em relação a elas mesmas, ‗mundo da vida‘ e
‗mundo representado‘ ou ‗mundo para nós‘ são casos típicos de
representações institucionais: a primeira, embora existente desde
os gregos, só se torna consciente para o indivíduo – mas não
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 174
enquanto representação institucional – a partir de Husserl176
; a
segunda, por sua vez, mas nos mesmos termos da primeira, ainda
que atuante desde Bacon e Descartes, só se torna plenamente
consciente em Hegel e Schopenhauer. Enquanto representações
inconscientes, o ‗mundo da vida‘ e o ‗mundo representado‘ ou o
‗mundo para nós‘ mostraram-se respectivamente como o
fundamento e o modelo das duas concepções de universalidade a
que até hoje o homem acedeu; as quais, apesar de permanecerem
atualmente opostas e em crise, fundaram por seu turno – cada
uma em seu tempo – a forma do pensamento político-jurídico à
qual o Direito deveria se esforçar por desenvolver: a saber, nas
palavras de Lima Vaz, a universalidade nomotética e a
universalidade hipotética177
. Ora, se o mundo da vida antigo e
medieval se identificara como o Cosmos natural, apresentado sob
a forma de uma ordem supostamente manifesta e na qual o
nómos ou a lei da cidade se apresenta como ―o modo de vida do
homem que reflete a ordem cósmica contemplada pela razão‖178
;
e se o mundo ―para nós‖ dos modernos e contemporâneos se
identifica com uma construção do sujeito –transcendental,
fenomenológico, etc. – que, como tal, pouco a pouco vai
liquidando definitivamente o Cosmos natural do homem antigo,
mas em seu lugar põe apenas os fenômenos naturais e suas leis
formais ―cujo fundamento permanece oculto e requer uma
explicação a título de hipótese inicial não verificada
empiricamente e que deve ser confirmada dedutivamente pelas
suas conseqüências‖179
; então, a universalidade nomotética e a
universalidade hipotética – na medida em que permanecem
opostas e em crise – não podem ser senão suprassumidas em um
176 Veja-se, E. HUSSERL, A crise da humanidade européia e a filosofia,
Introdução e tradução de Urbano Zilles, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p.
76 ss. 177 Veja-se, a respeito, LIMA VAZ, H. Cláudio. ―Ética e Direito‖, in: LIMA
VAZ, H. Cláudio. Escritos de filosofia II: Ética e Cultura, São Paulo:
Loyola, 1988, pp. 135-180. 178 Veja-se, a respeito, LIMA VAZ, H. Cláudio. ―Ética e Direito‖, in: op. cit.,
p. 146. 179 Veja-se, a respeito, LIMA VAZ, H. Cláudio. ―Ética e Direito‖, in: op. cit.,
pp. 146-147.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 175
plano mais elevado que o Cosmos natural antigo e medieval e o
mundo representado moderno e contemporâneo. Contudo, para
isso, não basta aceder à consciência do mundo enquanto ―minha
representação‖ ou enquanto ―sistema de referências possíveis‖
dadas na e a partir da linguagem, etc.; há que se determinarem os
limites do mundo enquanto representação institucional,
delimitando-se aí, clara e rigorosamente, o Cosmos natural, a
Totalidade dos objetos representados e o Sistema de referências
possíveis – em sua necessidade intrínseca – enquanto momentos
da própria atividade do Espírito como Universalidade ativa que
compreende em si mesma a universalidade nomotética e a
universalidade hipotética.
O vir-a-ser-consciente de representações como ‗mundo
da vida‘ e ‗mundo representado‘ ou ‗mundo para nós‘ enquanto
representações pelos indivíduos que as representam ainda não é
algo comum mesmo nos dias de hoje; contudo, em se abstraindo
do mero senso comum, pode-se afirmar que o homem médio
contemporâneo vive naturalmente segundo representações, já
desligado quase que completamente do Cosmos natural antigo e
medieval. Essas representações – sejam elas expressões da
linguagem ou figurações espácio-temporais –, na medida em que
instituem uma determinada ordem natural, social, etc., que se
impõe como comum a certo número de sujeitos, justamente por
isso, instituem também os próprios sujeitos enquanto os põem
como tais nessa ordem comum; de onde a ordem aqui em questão
não ser nem anterior nem posterior a tais sujeitos, mas
concomitante com eles e, como eles, o resultado de uma e mesma
representação institucional. Isso significa que o mero ser-aí ou a
simples presença do que quer que seja só se constitui como
alguma coisa – seja um objeto, seja um sujeito, etc. – na medida
em que essa presença se tornar claramente delimitada e fixada
em seus limites constitutivos; portanto, distinta de outras
presenças mediante as quais e em relação às quais ela se limita e
se diferencia ao mesmo tempo em que reconhece isso nas outras
presenças e é reconhecida como tal pelas mesmas nesses limites
que são os seus. Tal é o que, doravante, enquanto
desenvolvimento interior da Efetividade do Espírito em seu
desdobramento intersubjetivo e em seu atuar instituinte, poderá
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 176
designar-se rigorosamente mediação institucional e
reconhecimento intersubjetivo.
4. A guisa de conclusão: O Eu plural e a ordem normativo-
institucional
Apesar da multiplicidade das concepções e propostas
ético-políticas existentes nos dias de hoje, as quais disputam seu
lugar e seu direito à cidadania nos limites do pensamento pós-
metafísico, bem como dos esforços de cada uma para ir além do
hiato entre a autonomia individual e a necessidade de uma
comunidade ética universal; salta aos olhos a ignorância e
mesmo a desconsideração da verdadeira causa de fragmentação
do Espírito em nossa Época. Na verdade, a fragmentação do
Espírito e a afirmação de um pensamento pós-metafísico
parecem constituir os dois lados de uma mesma moeda e, por
isso, se mostram solidárias no que diz respeito à causa e à
conseqüência que lhes são comuns; respectivamente, a
hipertrofia das faculdades cognitivas humanas cada uma
exclusiva por si e a dissolução da Cidade subjetiva na qual cada
indivíduo é para si uma totalidade absoluta. Essa, como Espírito
livre, media-se negativamente consigo mesma no âmbito da
mediação institucional com o seu oposto – concebido como a
totalidade das totalidades absolutas que são cada espírito livre –
sob o horizonte da Cidade objetiva na qual e a partir da qual
todos os indivíduos são reconhecidos e se reconhecem
reciprocamente como membros da Comunidade ideal do
Espírito; a qual, ao mantê-los em sua integridade constitutiva
como pessoa, não dissolve a diferença existente entre os mesmos
nem a subordina a uma identidade formal meramente positiva ou
regulativa. Ao contrário, enquanto esfera lógico-real – como a
Idéia da Liberdade em si e para si, em seu Conceito e efetividade
–, apresenta-se a um tempo como normativa e constitutiva,
racional e institucional, como horizonte último de toda mediação
institucional e de todo reconhecimento intersubjetivo.
Por isso, ao determinarmos o lugar e a função de uma
Filosofia do Espírito intersubjetivo ou de uma Filosofia das
Instituições no âmbito da mediação entre o Espírito subjetivo e o
Filosofia, Reconhecimento e Direito 177
Espírito objetivo, concebemo-la como o vir-a-ser do Particular
ou a particularização mesma da Subjetividade absoluta nos
diversos Sujeitos relativos que, cada um a seu modo, se mostram
a um tempo como universais e particulares na relação infinita
consigo mesmo e na relação finita com os outros. Desse modo,
não só assumimos o elemento natural ―sem representação‖ que se
afirma como a realidade interna do Eu em sua expressão
lingüística; mas também o elemento natural representado, que se
afirma tanto no âmbito da natureza – interior e exterior – em
categorias objetivas epistêmica e ontologicamente validadas ou
em figuras fenomênicas a um tempo subjetiva e objetivamente
experimentadas, quanto na esfera exterior do Eu em sua
determinação extrínseca e em sua alteridade intersubjetiva. O
que, no entanto, não deixa de se constituir como simples
aparência contingente ou mero fenômeno – seja como
linguagem, representação, conhecimento a priori, etc., seja como
qualquer atividade levada a cabo no plano da distinção entre real
e ideal – da efetivação do Espírito enquanto Universal ativo; o
qual – Universal – se particulariza na multiplicidade dos espíritos
finitos livres de determinações causais espácio-temporais,
mediante os quais – em sua relação consigo e com os outros,
instituída pelo processo de mediação institucional e
reconhecimento intersubjetivo – concretiza sua própria
universalidade ativa em se singularizando sob a forma de uma
Comunidade ideal do Espírito; essa, ao se compreender como
Idéia da Liberdade, seu Conceito e sua efetividade, põe-se como
Cidade subjetiva que tem por horizonte de sua efetivação seu
retorno a si mesma enquanto Cidade objetiva, reintegrando-se em
si mesma como Espírito absoluto. Daí a necessidade da passagem
à esfera do Espírito objetivo, enquanto nela o Espírito subjetivo –
em sua pluralidade de Eus finitos livres – se suprassume a si
mesmo mediante o Espírito intersubjetivo, e se eleva ao Espírito
absoluto ou à sua comunidade absoluta consigo.
Essa elevação, enfim, ao se pôr como a tarefa e a obra
mesma do Espírito de uma época, na medida em que é
compreendida e expressa filosoficamente em toda a sua
profundidade e extensão, impõe que tal época se autocompreenda
como tal e se mostre assim precisamente determinada;
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 178
avançando, portanto, para o Ser-autoconsciente do Espírito que
nela se exprime. Entretanto, como a época presente ainda não
atingiu esse estágio, o que permanece na ordem do dia ainda é,
sobretudo, o problema do reconhecimento intersubjetivo; esse
que nos dias atuais, ao exigir para isso não mais uma mediação
indeterminada ou em geral, mas, mais precisamente, uma
mediação institucional determinada, não só exige o pleno
delineamento de seu princípio, mas, mais rigorosamente, que
esse se medeie a si mesmo e a época da qual é o princípio. O que,
embora se objetivando na esfera do Espírito objetivo – no
Direito, pelo Direito e a partir do Direito; ao se apresentar como
princípio dessa esfera, instaura-se como tal em uma esfera
própria – no caso, a esfera das Instituições como Ato de instituir
ou do Espírito intersubjetivo.
Referências bibliográficas
ALBERT, Hans. Hösles Sprung in den objektiven Idealismus, in:
Zeitschrift für allgemeine Wissenschaftstheorie, XX, 1 (1999): 124-131.
APEL, Karl-Otto. Transformação da filosofia. Trad. Paulo Astor
Soethe, São Paulo: Loyola, 2000. [Edição original, 1973]. (2 Vols.).
___. Estudos de Moral Moderna. Trad. Benno Dischinger. Petrópolis:
Vozes, 1994.
___. ―Fundamentação última não-metafísica?‖. In: E. STEIN e L. A.
DE BONI (Org.), Dialética e Liberdade, Petrópolis: Vozes; Porto
Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, pp. 305-326.
___. ―El problema de la fundamentación filosófica última desde uma
pragmática transcendental del lenguage‖, in: Estúdios filosóficos,
Valladolid, XXXVI, 102, mayo-agosto (1987): 251-299.
BEIERWALTES, Werner. Proclo: I fondamenti della sua metafísica.
Trad. Nicoletta Scotti, – Seconda edizione – Milano: Vita e Pensiero,
1988.
CUSA, Nicolau. A visão de Deus. Tradução e introdução de João Maria
André. Lisboa: FCG, 1988.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 179
DOMINGUES, Ivan. A questão da fundamentação última na filosofia.
In: Kritérion, Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 29-44.
GEHLEN, Arnold. Moral e hipermoral. Trad. Margit Martincic, Rio de
Janeiro: Tempo brasileiro, 1984.
GLOCKNER, Hermann. Hegel 1: Schwierigkeiten und
Voraussetzungen der hegelschen Philosophie, Stuttgart: Frommans
Verlag, 1954 [SW, 21].
GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. Trad. Ana
Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade.
Trad. Marcelo Brandão Cipola, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
___. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de
Almeida. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 [Original,
1983].
___. Agir Comunicativo e Razão destranscendentalizada. Trad. Lúcia
Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, [Original, 2001].
___. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo
[et al.]. Lisboa: Dom Quixote, 1998.
___. ―Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática‖. In: E.
STEIN e L. A. DE BONI (Org.), Dialética e Liberdade, Petrópolis:
Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, p. 299.
___. Escritos sobre moralidad y eticidad. Traducción y introducción de
Manuel Jiménez Redondo. Barcelona; Buenos Aires; México: Paidós,
1991.
HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la História de la Filosofia, I,
traducción de Wenceslao Roces, Mexico: FCE, 1997.
___. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830).
Trad. Paulo Meneses e José Machado, São Paulo: Loyola, 1995. (3
Vols.).
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 180
___. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse
(1830), herausgegeben von Wolfgang Bonsiepen und Hans-Christian
Lucas. Hamburg: Felix Meiner, 1992.
___. Phänomenologie des Geistes. Neu hrsg. von Hans-Friedrich
Wessels und Heirinch Clairmont. Mit e. Einl. von Wolfgang Bonsiepen.
Hamburg: Meiner, 1988.
___. Essencia de la Filosofia y otros escritos. Seleccion, traduccion y
notas de Dalmacio Negro Pavon, Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1980.
___. Wissenschaft der Logik. Erster Band: Die objektive Logik
(1812/1813), herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter
Jaeschke. Hamburg: Felix Meiner, 1978 [GW, Band 12].
___. Werke, 2. Jenaer Schriften (1801-1807), neu edierte Ausgabe.
Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel, Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1970.
___. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Dritter Band.
Neu herausgegeben von Hermann Glockner. Stuttgart: Frommans
Verlag, 1959 [SW, 19].
___. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrechts und
Staatswissenschaft im Grundrisse, neu herausgegeben von Hermann
Glockner. Stuttgart: Frommans Verlag, 1952 [SW, 7].
___. Phänomenologie des Geistes. Neu herausgegeben von Hermann
Glockner. Stuttgart: Frommans Verlag, 1951 [SW, 2].
HEIDEGGER, Martin. Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung. – vierte,
erweiterte Auflage – Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1971.
HERRERO, Francisco Javier. O problema da fundamentação última. In:
Kritérion, Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 7-16.
HOFFE, Ötfried. Justiça política: Fundamentação de uma filosofia
crítica do Direito e do Estado. Trad. Ernildo Stein, Petrópolis: Vozes,
1991.
Filosofia, Reconhecimento e Direito 181
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos
conflitos sociais. Trad. Luiz Repa, Rio de Janeiro: Editora 34, 2003.
HÖSLE, Vittorio. Moral und Politik: Grundlagen einer Politischen
Ethik für das 21. Jahrhundert. München: Beck, 1997.
___. Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista da
ética. In: STEIN, E.; DE BONI L. A. (Org.). Dialética e Liberdade.
Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, pp. 588-609.
___. Hegel e la fondazione dell’idealismo oggetivo, traduzione dal
tedesco e cura di Giovanni Stelli, Milano: Guerini e Associati, 1991.
___. Begründungsfragen des objektiven Idealismus, in: Forum für
Philosophie Bad Homburg (hrsg), Philosophie und Begründung,
Frankfurt, 1987, pp. 212-267.
___. Hegels System. Der Idealismus der Subjektivität und das Problem
der Intersubjektivität, 2 Bde, Hamburg: Felix Meiner, 1987.
___. Die Stellung Hegels Philosophie des objektiven Geistes in seinen
System und ihre Aporie, in: JERMANN, Christoph (Hg.). Anspruch
und Leistung von Hegels Rechtsphilosophie, Stuttgart-Bad Cannstatt:
Frommann-Hozsboog, 1987.
___. Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der Philosophie,
München: Beck, 1987.
HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia.
Introdução e tradução de Urbano Zilles, Porto Alegre: EDIPUCRS,
1996.
KANT, Immanuel. Textos selecionados, trad. Tânia Maria Bernkopf,
Paulo Quintela, Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
KELSEN. Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. [Edição original, 1960].
LAERTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad.
Mário da Gama Kuri, Brasília: UnB, 1988.
Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 182
LAHIRE, Bernard. Homem plural: Os determinantes da ação. Trad.
Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2002.
LIMA VAZ, Henrique Cláudio. Escritos de Filosofia IV. Introdução à
Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999.
___. Escritos de filosofia II: Ética e Cultura, São Paulo: Loyola, 1988.
LUKASIEWICZ, Jan. Du principe de contradiction chez Aristote, trad.
Dorota Sikora, préface de Roger Pouivet, Paris; L‘Éclat, 2000 [original,
1910].
MARGUTTI PINTO, Paulo Roberto. O problema da necessidade da
fundamentação última não-metafísica em Karl-Otto Apel. In: Kritérion,
Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 17-28.
PROCLUS, Commentary on Plato’s Parmenides, trans. Glenn R.
Morrow and John M. Dillon, – first Princeton Paperback printing, with
corrections – Princeton: Princeton University Press, 1992.
___. Éléments de théologie. Trad. Jean Trouillard, Paris: Aubier-
Montaigne, 1965.
PSEUDO-AREOPAGITA, Dionísio. Dos nomes divinos. Introdução,
tradução e notas de Bento Silva Santos. São Paulo: Attar, 2004.
RAWLS, John. Justiça como eqüidade: Uma Reformulação, trad.
Cláudia Berliner, São Paulo: Martins Fontes, 2003. [Original, 2002].
___. Justiça e Democracia, trad. Irene A Paternot, São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
___. Uma Teoria da Justiça, trad. Vamireh Chacon, Brasília: EdUnB,
1981, passim. [Original, 1971].
RIEDEL, Manfred. Dialética nas instituições. Sobre a estrutura
histórica e sistemática da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução
portuguesa de Selvino José Assmann da versão italiana: Dialettica nelle
istituzioni. Sulla struttura storica e sistematica della Filosofia del Diritto
di Hegel. In: CHIEREGHIN, Franco (org.) Filosofia e società in Hegel.
Trento, Quaderni di Verifiche 2, 1977, pp. 35-60. Versão eletrônica,
Filosofia, Reconhecimento e Direito 183
URL = <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/riedel.htm>, disponível desde
agosto de 2001, acessada em março de 2006.
SCHELLING, F. J. W. Obras escolhidas. Seleção, tradução e notas de
Rubens T. Torres Filho, – 3. ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1989.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como
representação. Trad. M. F. Sá Correia, Rio de Janeiro: Contraponto,
2001 [Original, 1819].
SILVA, Manuel Moreira. Introdução ao problema da fundamentação
especificamente filosófica do Direito Contemporâneo. In: Guairacá,
Guarapuava/PR, no. 21, (2005): 103-121. [Revista impressa em
2006/1].
___. O problema da fundação especulativa do Especulativo puro no
Sistema de Hegel e a determinação especulativa dos princípios motores
da Lógica especulativa, in: Revista Eletrônica Estudos Hegelianos,
Recife/PR, v. 02, n. 03, (2005): URL =
<http://www.hegelbrasil.org/rev03e.htm>.
___. O conceito de paradigma metodológico-especulativo e a fundação
de uma tipologia filosófica consistente em metafísica, in: Analecta,
Guarapuava/PR, V. 6, No. 2, (2005): 113-124.
___. A natureza especulativa da objetividade no Idealismo absoluto da
Subjetividade e o formalismo do Idealismo objetivo da
Intersubjetividade, in: Revista Eletrônica Estudos Hegelianos,
Recife/PR, v. 01, n. 01, (2004): URL =
<http://www.hegelbrasil.org/rev01c.htm>.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. Trad. Adail Ubirajara
Sobral, São Paulo: Loyola, 2000.
WILBER, Ken. Transformações da consciência: o espectro do
desenvolvimento humano. Trad. Sônia Maria Christopher. São Paulo:
Cultrix, 2000.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. Trad.
Luiz H. Lopes dos Santos, São Paulo: Edusp, 1994.
top related