amanda quick -lavínia lake e tobias march 01 - relações perigosas

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    Relações erigosas

    “Slightly Shady” 

     AMANDA QUICK

    Desde que ele se introduziu na sua loja de antiguidades em Roma, Lavínia logo seapercebeu de que o intruso só lhe iria causar problemas. Ele bem dizia que andava a perseguirum perigoso assassino, jurara que queria apenas protegê-la, mas apesar do que eleproclamava, Lavínia estava convencida de que Tobias March queria era destruí-la.

    E quando o autoproclamado espião a expulsou, junto com a sobrinha, da loja de Roma, eas fez regressar a Inglaterra, tudo o que Lavínia desejava era poder, um dia, fazer March pagarcaro o que lhe fizera. Porém, Lavínia nunca imaginaria as circunstâncias chocantes em queiriam tornar a encontrar-se, nem tão-pouco que iria tornar-se sua aliada numa busca que, diaapós dia, se tornara mais mortífera e mais comprometedora.

    Na sua qualidade de detective privado, Tobias March fora contratado para perseguir umpoderoso malfeitor, o qual pretendia assumir o controle de uma vasta organização criminosa.Contudo, na sua investigação, nada mais encontrava do que becos sem saída. E justamentequando a investigação — uma vez mais— aquecia, viu a sua missão e a sua vida complicadaspela mulher mais incontrolável, imprevisível e exasperadora que alguma vez conhecera.Confrontado com uma intrincada rede de traições e perigos, Tobias viu-se obrigado a

    estabelecer uma aliança com Lavínia, uma mulher de cujo passado se podia apenas dizer queera ligeiramente obscuro.

    Porém, quando ele a persuadiu a aliarem-se, nenhum dos dois suspeitava que as suasacaloradas discussões iriam suscitar uma grande paixão, nem que, quanto mais escavavam

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    Os olhos do intruso tinham um brilho frio. Com mão vigorosa, o homem varreu mais umafila de vasos da prateleira: os objectos frágeis caíram no chão e partiram-se em cacos. Ohomem encaminhou-se para um escaparate de estatuetas.

    — Aviso-a de que deve despachar-se, Mrs. Lake — disse ele, fazendo incidir a sua acçãoviolenta num conjunto de frágeis Pãs, Afrodites e sátiros de barro. — A carruagem vai partirdentro de quinze minutos e garanto-lhe que a senhora e a sua sobrinha vão seguir nela, comou sem bagagem.

    Lavinia observava-o do fundo da escada, impotente para impedir a destruição da suamercadoria.

    — O senhor não tem o direito de fazer isso. Vai arruinar-me.

    — Pelo contrário, minha senhora, estou a salvar-lhe a vida — con trapôs ele, derribando,com a ponta da bota, uma urna decorada à etrusca. — Embora não espere que me agradeçapor isso.

    Lavinia estremeceu ao ouvir o impacto da urna no chão, apercebendo-se de que era inútilinvectivar o lunático. O homem estava decidido a destruir-lhe a loja e ela não dispunha de

    nenhum meio para o impedir. Há muito que aprendera a reconhecer os indícios queaconselhavam uma retirada táctica. Porém, nunca aprendera a suportar serenamente osarreliadores reveses da sorte.

    — Se estivéssemos em Inglaterra, Mr. March, mandá-lo-ia prender.

    — Sim, mas não estamos em Inglaterra, pois não, Mrs. Lake?

    Tobias March agarrou num centurião de pedra pelo escudo e puxou-o para a frente: oromano caiu sobre a espada. — Estamos em Itália e não pode deixar de fazer o que lhe digo.

    Era-lhe inútil discutir. Lavinia compreendeu que prolongar a discussão era perder o pouco

    tempo de que dispunha para fazer as malas, mas a infeliz tendência para a teimosia, a qualconstituía uma boa parte da sua natureza, não lhe permitia abandonar o campo de batalha semreagir.

    — Bastardo!— disse ela entre os dentes.

    — Não, em termos legais — March varreu outra fila de vasos de barro para o chão. — Mas eu compreendo o que quer dizer.

    — Obviamente, não é um cavalheiro, Tobias March.

    —  Não vou discutir essa questão consigo —  disse ele, empurrando um busto nu de

    Vénus.— Mas tão-pouco estou a tratar com uma grande senhora, pois não?Lavinia encolheu-se, quando o busto caiu: as Vénus nuas tinham muita saída com a

    clientela.

    —  Como pode atrever-se? O facto de eu e a minha sobrinha nos termos vistoabandonadas aqui em Roma e obrigadas a montar um negócio, para sobrevivermos, não érazão para nos insultar.

    —  Basta! —  O homem voltou-se para a encarar. À luz da lanterna, a cara dele,

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    ameaçadora, era mais fria do que os traços de qualquer das estátuas de pedra. — E agradeçao facto de eu ter chegado à conclusão de que não passa de uma ingénua e involuntáriacúmplice do criminoso que eu persigo, e não um membro do gangue de ladrões e assassinos.

    —  Eu tenho apenas a sua palavra quanto aos malfeitores utilizarem a minha loja paratrocarem mensagens e, francamente, Mr. March, dado o seu comportamento grosseiro, sinto-me inclinada a não acreditar no que me diz.

    O homem tirou uma folha de papel do bolso.

    — Nega que isto estava escondido num dos seus vasos?

    Lavinia olhou para o pedaço de papel. Pouco antes, pasmada, observara o homem apartir um belo vaso grego e a retirar dele uma mensagem que parecia ser o relatório de ummeliante para o seu criminoso patrão, qualquer coisa a respeito de um negócio com uns pirataster sido levado a cabo com êxito.

    —  Não é, decerto, culpa minha se um dos meus clientes depositou uma mensagempessoal nesse vaso— disse Lavinia, erguendo o queixo.

    — Não apenas um cliente, Mrs. Lake. Há muito tempo que os criminosos utilizavam a sualoja.

    — E como é que sabe disso?

    — Há cerca de um mês que eu vigio este local e as suas próprias movimentações, Mrs.Lake.

    Lavinia ficou com um olhar espantado, claramente chocada com a revelação, expressaem tom casual.

    — Quer dizer que passou o último mês a espiar-me?

    —  No início, assumi que a senhora era uma activa participante da rede que Carlislemontara aqui em Roma. Só mais tarde, após aturada observação, é que cheguei à conclusãode que, provavelmente, desconhecia o que os seus pretensos clientes tramavam.

    — Isso é ultrajante.

    O homem fitou-a com ar irónico.

    — Quer dizer que, afinal, sabia o que eles andavam a fazer nas suas frequentes visitas?

    — Não estou a dizer nada disso — Lavinia apercebia-se de que estava a elevar a voz,mas nada podia fazer quanto a isso. Nunca na sua vida se sentira tão cheia de raiva e tão

    assustada.— Eu acreditava que eles eram honestos coleccionadores de antiguidades.

    — Acreditava, deveras? — O olhar dele pousou num conjunto de potes de vidro, de umverde baço, perfeitamente alinhados numa estante alta. — E a senhora, Mrs. Lake, é honesta?

    Lavinia ficou hirta.

    — O que é que quer significar com isso?

    — Nada em especial. Só que noto que a maior parte dos artigos expostos nesta loja são

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    imitações baratas de artefactos antigos. Pouco há aqui realmente antigo.

    — Como é que pode saber? — disparou ela.— Nada me induz a acreditar que o senhor éum perito em antiguidades. Essa sua afirmação é grotesca. Não se queira fazer passar porconhecedor, depois de tudo o que fez ao meu estabelecimento.

    — Tem toda a razão, Mrs. Lake. Eu não sou um perito em antiguidades, sou um simpleshomem que presta serviços.

    — Conversa fiada. Por que é que um simples homem que presta serviços haveria de vir aRoma em perseguição de um criminoso chamado Carlisle?

    — Eu estou aqui a mando de um dos meus clientes, o qual me encarregou de investigar oque se passou com um homem chamado Bennett Ruckland.

    — E o que é que se passou com esse homem chamado Bennett Ruckland?

    Tobias fitou-a fixamente.

    — Foi assassinado aqui em Roma. O meu cliente acredita que isso aconteceu porque elesabia demasiado a respeito da organização secreta controlada por Carlisle.

    — Uma história inverosímil!

    — De qualquer modo, é a minha história e é a única que interessa por ora. — disse ele,atirando outro vaso ao chão.— E só lhe restam dez minutos, Mrs. Lake.

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    Não havia escapatória. Lavinia agarrou num conjunto de saias e começou a subir asescadas, mas parou a meio, detida por uma interrogação.

    —  O negócio de investigar assassínios por conta de clientes parece-me uma profissão

    muito estranha— disse ela.

    March escaqueirou uma lamparina romana.

    — Não mais estranha do que a de vender antiguidades falsas.

    Lavinia ficou inflamada.

    — Já lhe disse que não são falsas. Trata-se apenas de reproduções para serem vendidascomo recordações.

    — Chame-lhes o que quiser. Para mim, não passam de imitações fraudulentas.

    Lavinia sorriu ligeiramente.

    —  Mas acabou de dizer que não é perito neste tipo de artefactos e que é um simpleshomem que presta serviços!

    — Restam-lhe apenas oito minutos, Mrs. Lake.

    Lavinia segurou no pendente de prata que tinha ao pescoço, como fazia sempre que osseus nervos eram sujeitos a grande pressão.

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    — Não consigo decidir se é um monstro ou apenas um loucoexclamou ela.

    Ele fitou-a com um sorriso frio, mordaz.

    — Acha que há grande diferença?

    — Não.

    Era uma situação impossível: Lavinia tinha de lhe conceder a vitória. Com uma abafadaexclamação de raiva e de frustração, voltou-se e correu pela escada acima. Quando chegou aopequeno quarto, iluminado por um candeeiro, viu que, ao contrário dela, Emeline aproveitarabem o tempo que lhes fora concedido. Havia duas malas grandes abertas, bem como umaenorme. As malas mais pequenas já se encontravam abarrotadas.

    —  Ainda bem que aparece —  soou a voz abafada de Emeline, a cabeça enfiada noguarda-vestidos. — Por que é que demorou tanto?

    — Estive a tentar convencer Mr. March de que não tinha o direito de nos pôr na rua ameio da noite.

    — Ele não nos está a pôr no meio da rua — Emeline afastou-se do guarda-vestidos, comum pequeno vaso antigo nos braços. — Até tem uma carruagem preparada, com dois homensarmados, para nos retirar sãs e salvas de Roma e nos conduzir a Inglaterra. É um gestogeneroso da parte dele.

    —  Isso não quer dizer nada. A atitude dele nada tem de generoso. Garanto-te que eleestá metido num grande conluio e tudo o que quer é ver-se livre de nós.

    Emeline atarefava-se a embrulhar o vaso num vestido de bombazina.

    —  Ele está convencido de que nos encontramos em grande perigo, por via desse talCarlisle que tem utilizado a nossa loja para enviar e receber mensagens dos seus acólitos.

    — Não sejas tola. Só dispomos da palavra dele a afirmar que existe tal criminoso a operaraqui em Roma. — Lavinia abriu um armário: um belo e bem constituído Apolo olhou para ela láde dentro. — Pela minha parte, não acredito muito no que este homem nos diz. E desconfioque o que ele pretende é utilizar este local para os seus desígnios obscuros.

    —  Estou convencida de que o que ele diz é verdade —  Emeline meteu o vasoembrulhado numa das malas. —  E se for verdade, ele tem razão: estamos realmente emperigo.

    — Se houver um gangue de malfeitores implicado neste caso, não me surpreenderia queeste Tobias March fosse o chefe. Ele afirma ser um simples homem que presta serviços, mas,

    para mim, há algo nele claramente diabólico.— O seu temperamento, tia Lavinia, está a dar largas à sua imagi nação. E sabe bem

    como avalia mal as coisas quando se deixa dominar pela imaginação.

    O som de barros partidos ecoava pela escada acima.

    — Diabo do homem! — exclamou Lavinia.

    Emeline interrompeu a sua tarefa e inclinou a cabeça, escutando.

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    — Parece ser intenção dele dar a entender que fomos vítimas de vândalos e de ladrões,não acha?

    — Ele referiu que mais valia destruir a loja toda para o Carlisle não suspeitar que tinhasido descoberto — Lavinia esforçava-se por retirar o Apolo do armário -, mas desconfio de quese trata de mais uma das suas mentiras. Se queres que te diga, o homem está a divertir-se láem baixo. É completamente louco!

    —  Não acredito nisso —  Emeline foi buscar outro vaso ao guarda—  vestidos. —  Dequalquer modo, ainda bem que guardámos as verdadeiras antiguidades cá em cima, para asresguardar dos ladrões.

    — É a nossa única sorte, neste verdadeiro pesadelo — Lavinia envolveu o Apolo com osbraços e retirou-o do armário. — Tremo toda quando penso o que lhes poderia ter acontecidose as tivéssemos expostas lá em baixo. March tê-las-ia, decerto, destruído.

    — Se quer saber, acho que o aspecto mais feliz de tudo isto é o facto de Mr. March se terapercebido de que não pertencemos à rede de Carlisle. —  Emeline embrulhou um pequenovaso numa toalha e meteu-o na mala grande. —  Tremo ao pensar o que nos teria feito seachasse que nós éramos cúmplices dos verdadeiros meliantes e não simples ingénuasinocentes.

    — Dificilmente nos poderia fazer pior do que destruir a nossa única fonte de rendimento eescorraçar-nos de casa.

    Emeline olhou para as velhas paredes de pedra que as rodeavam e comentou, com umligeiro ar de desdém:

    —  Dificilmente se pode chamar uma casa a este desagradável quartito. Não vou tersaudades nenhumas dele.

    —  Vais ver que vais ter saudades dele, quando nos encontrarmos em Londres sem

    dinheiro e obrigadas a ganhar a vida nas ruas.

    — Não vai acontecer nada disso — Emeline afagou o vaso envolto em roupa que tinhanas mãos. —  Vamos vender bem estas antiguidades quando chegarmos a Inglaterra.Coleccionar vasos antigos e estatuetas está muito na moda, como sabe. Com o dinheiro quearranjarmos, vamos poder alugar uma casa.

    — Não por muito tempo. Teremos muita sorte se, com estas antiguidades, arranjarmosdinheiro para sobreviver durante seis meses. E, quando gastarmos esse dinheiro, ficaremosnuma situação desesperada.

    — A tia vai descobrir qualquer outra coisa para fazermos, como sempre. Veja como nos

    governámos bem quando a nossa patroa fugiu com o seu simpático conde e nos abandonouaqui em Roma. A sua ideia de montarmos um negócio de antiguidades foi simplesmentebrilhante.

    Lavinia conseguiu, com muita força de vontade, não se pôr a chorar de frustração. Aconfiança de Emeline na sua capacidade de recuperar dos desaires da vida enlouquecia-a.

    — Ajuda-me aqui com este Apolo, por favor — disse ela. Emeline olhou com ar dubitativopara a grande estátua nua que Lavinia tentava arrastar pelo quarto.

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    — Isso vai ocupar a maior parte do espaço da última mala. Talvez fósse melhor deixá-loaqui e levar outras coisas mais pequenas.

    — Este Apolo vale dúzias de vasos. — Lavinia parou no meio do quarto, amparando aestátua, exausta pelo esforço.— É a nossa peça mais valiosa, temos de a levar connosco.

    — Se a metermos na mala, ficamos sem espaço para os seus livros. Lavinia sentiu ummal-estar no estômago e olhou bruscamente para a prateleira que continha os livros de poesia

    que trouxera consigo de Inglaterra. Pensar em deixá-los ali era-lhe quase insuportável.

    — Posso substitui-los— disse ela, agarrando com mais força a estátua. — Mais tarde.

    Emeline hesitava, observando o rosto de Lavinia.

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    — Tem a certeza? Eu sei o que eles significam para si.

    — O Apolo é mais importante.

    — Muito bem.

    Emeline avançou e agarrou nas pernas do Apolo.

    Passos pesados soaram na escada. Tobias March apareceu à porta do quarto, olhou paraas malas e, depois, para Lavinia e Emeline.

    — Têm de partir já— disse.— Não posso arriscar que fiquem aqui nem mais uns minutosque sejam.

    Lavinia tinha vontade de lhe atirar um dos vasos à cabeça.

    — Eu não vou deixar aqui este Apolo. Ele pode ser a nossa salvação para não cairmos

    num bordel, quando regressarmos a Londres.Emeline fez uma careta.

    — Francamente, tia Lavinia, não exagere!

    — Não estou muito longe da verdade! — exclamou Lavinia.

    —  Dêem-me cá o raio da estátua! —  Tobias avançou para elas e alçou a estátua nosbraços. — Eu meto-a na mala.

    Emeline sorriu, prazenteira.

    — Muito obrigado. Ela é, na verdade, muito pesada.

    Lavinia emitiu um som de desagrado.

    — Não lhe agradeças Emeline, ele é o causador disto tudo.

    — Tenho muito prazer em ajudar — disse Tobias, colocando a estátua na mala. — Maisalguma coisa?

    — Sim, mais uma coisa —  disse Lavinia, prestamente. — Aquela urna junto à porta. É

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    uma peça excepcional.

    — Não cabe na mala. — Tobias levantou a tampa da urna e olhou lá para dentro. — Háque escolher entre o Apolo e a urna. Não podem levar as duas coisas.

    Lavinia semicerrou os olhos, subitamente desconfiada. Tenciona ficar com ela, não é?Quer roubar-me a minha urna.

     Garanto-lhe, Mrs. Lake; que não estou nada interessado na sua urna. Quer levá-la ou o Apolo? Escolha, e já.

    — O Apolo— murmurou Lavinia.

    Emeline apressou-se a enfiar um roupão e alguns sapatos em volta do Apolo.

    — Acho que estamos prontas, Mr. March.

    —  Sim, estamos prontas. —  Lavinia lançou a Tobias um sorriso gelado. — Completamente prontas. E só espero que um dia tenha a oportunidade de lhe pagar todo esteseu trabalho nocturno, Mr. March.

    March baixou a tampa da mala.

    — Isso é uma ameaça, Mrs. Lake?

    — Assuma o que quiser — Lavinia agarrou a bolsa com uma das mãos e o casaco deviagem com a outra. — Vamos, Emeline, antes que Mr. March decida deitar a casa abaixo emcima de nós.

    —  Não há razão para ser tão desagradável —  Emeline pegou também num casaco enuma boina. —  Dadas as circunstâncias, acho que Mr. March se está a comportar comadmirável serenidade.

    Tobias inclinou a cabeça.

    — Aprecio muito a sua compreensão, Miss Emeline.

    — Não deve levar muito a sério as observações da minha tia — disse Emeline. — A suapersonalidade é de tal natureza que, quando se sente pressionada, tem a tendência de agirapenas com o temperamento.

    Tobias fitou de novo Lavinia com o seu olhar frio.

    — Eu apercebi-me disso.

     Peço-lhe a sua compreensão—

     continuou Emeline.—

     Para além de todos os nossosproblemas desta noite, vemo-nos obrigadas a deixar aqui os livros de poesia, o que, para ela,significa uma decisão muito difícil. A minha tia gosta muito de poesia, compreende.

    —  Oh, por favor, Emeline! —  Lavinia lançou o casaco pelos ombros e caminhoudecididamente para a porta. — Recuso-me a ouvir essa conversa ridícula. Uma coisa é certa,Mr. March: de repente, sinto uma enorme vontade de me ver livre da sua presença.

    — Fico magoado, Mrs. Lake.

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    — Não tanto como eu desejaria.

    Lavinia parou no meio da escada e voltou-se para olhar para ele: March não pareciamagoado. Em boa verdade, parecia magnificamente em forma. A facilidade com quetransportava a enorme mala certificava a sua excelente condição física.

    —  Pela minha parte, estou ansiosa por voltar. —  Emeline apressou-se a sair para aescada.— A Itália é um belo país para se visitar, mas eu tenho saudades de Londres.

    — Também eu — Lavinia afastou o olhar dos ombros largos de Tobias March e continuoua descer as escadas. — Esta nossa aventura foi um verdadeiro desastre. Quem, afinal, é queteve a triste ideia de viajarmos como acompanhantes de Mrs. Underwood?

    Emeline aclarou a voz.

    — A ideia foi sua, minha querida tia.

    — Da próxima vez que eu tiver uma ideia tão estranha como essa, peço-te que me façascheirar vinagre, para eu recuperar o senso.

    —  Tenho a certeza de que, na altura, ter-vos-á parecido uma ideia brilhante —  disseTobias March, atrás delas.

    — Na verdade assim foi — disse Emeline em tom neutro. — Pensa como será deliciosopassarmos uma temporada em Roma, dizia a minha tia. Rodeadas por todas aquelasmaravilhosamente inspiradoras antiguidades, dizia ela. Tudo pago por Mrs. Underwood, diziaela. E vamos viver em grande estilo, com pessoas de alta qualidade e de bom gosto, dizia ela.

    —  Basta, Emeline! —  travou-a Lavinia. —  Sabes perfeitamente que se tratou de umaexperiência enriquecedora.

    — Em muitos aspectos, imagino eu — disse Tobias March, com demasiado à-vontade -, a

     julgar por algumas descrições que ouvi a respeito das festas de Mrs. Underwood. É verdadeque essas festas terminavam em orgias?

    Lavinia cerrou os dentes.

    — Concedo que houve um ou outro incidente mais infeliz.

    —  As orgias eram de certo modo desregradas —  declarou Emeline. Eu e a minha tiavíamo-nos obrigadas a fecharmo-nos nos quartos até elas terminarem. Mas o mais terrível detudo foi quando, uma manhã, ao acordarmos, descobrimos que Mrs. Underwood tinha fugidocom o seu conde, deixando-nos abandonadas e sem dinheiro, num país estrangeiro.

    — Apesar de tudo — acrescentou Lavinia, intencionalmente — conseguimos sobreviver etudo nos estava a correr bem até que o senhor, Mr. March, decidiu interferir nos nossosassuntos pessoais.

    — Acredite, Mrs. Lake, que ninguém o lamenta mais do que eu — disse Tobias.

    Lavinia parou ao fundo das escadas, para olhar para a loja cheia de cacos dos vasos edas estatuetas. Ele tinha destruído tudo, pensou ela. Não escapara um único vaso. Em menosde uma hora, o homem tinha desfeito uma loja que levara cerca de quatro meses a montar.

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    — É impossível que lamente tanto como eu, Mr. March. — Lavinia apertou a bolsa contrasi e caminhou por entre o entulho para a porta.

    — Na verdade, meu caro senhor, quanto a mim, este desastre é inteira mente culpa sua.

     Ainda não nascera o dia quando, por fim, Tobias March ouviu abrir a porta das traseiras.Esperava nas escadas, às escuras, pistola na mão. Um homem, com uma lanterna a meia-luz,surgiu do quarto de trás, parando de repente, ao ver os estragos.

    — Rasparta!

    O homem pousou a lanterna no balcão e avançou a observar os cacos de um grandevaso.

    —  Rasparta! —  murmurou de novo, olhando em volta, a mirar os objectos partidos. — Rasparta o inferno!

    Tobias March desceu um degrau.

    — Procura alguma coisa, Carlisle?

    Carlisle ficou hirto. À débil luz da lanterna, o seu rosto parecia uma fria máscara diabólica.

    — Quem é você?

    — Não me conhece. Um amigo de Bennett Ruckland incumbiu-me de o procurar.

    — Ruckland. Claro, devia ter adivinhado.

    Carlisle teve um gesto rápido, erguendo o braço, pistola na mão, preparado para dispararsem hesitação.

    Tobias March estava atento. Premiu o gatilho da sua pistola, mas a explosão falhou.

     Apercebeu-se de imediato de que a pistola encravara. Meteu a mão no bolso, agarrando asegunda pistola, mas era demasiado tarde.

    Carlisle disparou.

    Tobias March sentiu a perna esquerda fugir-lhe debaixo do corpo. Largou a pistola intactae agarrou-se ao corrimão, conseguindo evitar cair pelas escadas abaixo.

    Carlisle preparava-se já para disparar a sua segunda pistola. Tobias March tentou subiras escadas de costas, mas não conseguia mover — se adequadamente. Voltou-se e arrastou-se escadas acima utilizando as mãos e a perna direita, tal um caranguejo. O pé direitoescorregou em algo molhado: sabia que era o sangue a escorrer-lhe da anca.

    Em baixo, Carlisle movia-se cautelosamente para o fundo das escadas. Tobias Marchsabia que a única razão que o levava a não disparar era porque, na penumbra, não o distinguiabem.

     A escuridão era a sua única esperança.

     Agarrou-se ao corrimão e, mal ou bem, conseguiu lançar-se para a porta do quartito. Amão embateu-lhe na pesada urna que Lavinia se vira obrigada a abandonar.

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    — Não há nada mais irritante do que uma pistola que se encrava, não? perguntou Carlislesarcástico.

    Carlisle subia agora as escadas, mais depressa, mais confiante.

    Tobias March agarrou na urna, voltou-a sobre a tampa arredondada e inspiroulentamente. A dor começava a arder-lhe na perna esquerda.

     O homem que o mandou procurar-me avisou-o de que, possivelmente, não iria voltarvivo a Inglaterra? — perguntou Carlisle, a meio das escadas. — Ele disse-lhe que sou um ex-membro do Clube Azul? E sabe o que isso significa, caro amigo?

    Ia ter apenas uma oportunidade, pensou Tobias March. Havia que esperar pelo momentoexacto.

    —  Não sei quanto lhe pagaram para me caçar, mas, fosse quanto fosse, não foi osuficiente. Você foi um tolo em aceitar a incumbência.

    — Carlisle chegara quase ao cimo das escadas. Havia um laivo de exci tação na sua voz.— Isso vai custar-lhe a vida.

    Tobias March atirou a pesada urna, com toda a força que ainda lhe restava. O bojudoartefacto deslizou com estrondo em direcção às escadas.

    — O que é isso?— Carlisle estacou no último degrau. — Que barulho é este?

     A urna embateu-lhe em cheio nas pernas. Carlisle soltou um grito de dor. Tobias Marchouviu-o arranhar a parede, na tentativa de recuperar o equilíbrio, mas sem resultado. Houveuma série de pancadas surdas, enquanto Carlisle caía escadas abaixo. Os gritos cessaramrepen tinamente, ao fundo das escadas.

    Tobias March arrancou o lençol da cama, rasgou uma longa tira e atou-a na perna

    esquerda. A cabeça girou-lhe à volta quando se ergueu. Cambaleou e quase desmaiou a meiodas escadas, mas conseguiu manter-se em pé. Carlisle jazia estendido ao fundo das escadas,o pescoço torcido num ângulo anormal. Os pedaços da urna estavam espalhados em redordele.

    — A senhora optou pelo Apolo, se queres saber — segredou Tobias March para o homemmorto.— E foi, claramente, a opção certa. A senhora tem uma bela intuição.

    O homenzinho nervoso que lhe vendera o diário avisara-o de que a chantagem é umaocupação perigosa. Algumas das informações contidas no diário do criado podiam levar à

    mortede um homem. Mas também o podiam tornar rico, pensava Holton Félix. Há anos que

    vivia do jogo. Estava habituado a arriscar e há muito tempo que aprendera que nada ganhamos aos que não têm a decisão e a coragem necessárias para lançar os dados.

    Não era nenhum tolo, dizia para si próprio, molhando a pena no tinteiro e preparando-separa terminar a mensagem. Não pretendia manter —  se na chantagem por muito tempo.

     Abandoná-la-ia logo que juntasse dinheiro suficiente para pagar as dívidas mais prementes.

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    Iria, porém, conservar o diário, pensou. Os segredos que continha poder-lhe-iam ser úteismais tarde, se voltasse a ver-se de novo em má situação.

     A pancada na porta sobressaltou-o. Olhou para a última linha da ameaça que acabara deescrever. Uma gota de tinta manchara a palavra infeliz, Ficou irritado ao ver a frase manchada.Tinha orgulho na clareza e argúcia das suas mensagens. Esforçava-se sempre por harmonizarcada mensagem ao respectivo receptor. Poderia ser um escritor célebre, talvez um Byron, nãoo obrigassem as circunstâncias a frequentar as casas de jogo para sobreviver.

    Uma velha raiva apossou-se dele. Tudo teria sido muito mais fácil, se a vida não tivessesido tão injusta com ele. Se o pai não se tivesse deixado matar num duelo por uma disputa àmesa de jogo; se a mãe desesperada e desesperadora não tivesse sucumbido a umas febresquando ele tinha apenas dezasseis anos. Quem sabe até onde poderia ter chegado? Quemsabe quão alto poderia ter subido, tivesse ele tido algumas das vantagens de que tantos outrosdisfrutavam? Em vez disso, via-se reduzido à chantagem e à extorsão. Um dia, porém, haviade alcançar a posição que merecia, jurava. Um dia.

    22

    Soou outra pancada na porta. Um dos seus credores, sem dúvida: tinha dívidas em todasas casas de jogo da cidade.

     Amarrotou a carta na mão e ergueu-se abruptamente. Atravessou a sala até à janela,afastou a cortina e espreitou lá para fora. Não viu ninguém. Quem batera à porta um momentoantes desistira de se ver atendido. Parecia, porém, haver um embrulho junto da porta.

     Abriu a porta e inclinou-se para apanhar o embrulho. Viu apenas de relance a orla de umapesada capa, quando a figura saiu da sombra. O ferro assentou-lhe na nuca com força mortal.Para Holton Félix, o mundo terminou num instante, cancelando todas as suas dívidas.

    O cheiro a morte era inegável. Lavinia conteve a respiração à entrada da sala, iluminadapelo fogo da lareira, e remexeu, ansiosa, na bolsa, à procura de um lenço. Aquela era uma

    possibilidade que não havia contemplado nos seus planos. Tapou o nariz com o quadradode tecido bordado e dominou a premência de voltar costas e fugir dali.

    O corpo de Holton Félix estava estendido no chão, em frente da lareira. Ao princípio nãodistinguiu nenhuma ferida, mas, depois, verificou que havia qualquer coisa horrivelmenteerrada na forma do crânio.

    Era evidente que alguma outra vítima das chantagens de Félix chegara antes dela. Félixnão era um patife muito inteligente, pensou ela. Afinal, ela própria conseguira descobrir a sua

    identidade, pouco depois de haver recebido a primeira mensagem de extorsão da parte dele,embora pouca ou nenhuma experiência tivesse na sua nova ocupação de investigadoraprivada.

    Descoberta a morada do homem, falara com algumas criadas e cozi nheiras quetrabalhavam nas vizinhanças. Tendo sabido que Félix tinha o hábito nocturno de sair e defrequentar as casas de jogo, dirigira-se ali naquela noite com a intenção de vasculhar o seudomicílio. Esperava poder encontrar o diário a que ele se referia nas mensagens.

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    Observou a pequena sala, a incerteza a revolver-lhe o estômago. O lume continuava aarder vivamente na lareira, mas ela sentia suores frios a percorrerem-lhe a espinha. Agora, quefazer? Ter-se-ia o assassino dado por satisfeito com a morte de Félix, ou teria tido tempo devasculhar os pertences do patife e de encontrar o diário?

    Só havia uma forma de responder a essas questões, pensou ela. Tinha de prosseguircom o seu plano original de rebuscar o domicílio de Félix.

    Forçou-se a mover-se. Teve de fazer um esforço de vontade para afastar a invisívelcortina de horror que envolvia a cena infernal.

    24

     A trémula luz das brasas imprimia sombras fantasmagóricas nas paredes. Tentou nãoolhar para o corpo estendido no chão. Respirando o mais lentamente possível, considerouonde iniciar as buscas. Félix mobilara a casa de maneira muito parca, o que não surpreendia,dada a sua tradição ao jogo. Vira-se, decerto, obrigado a vender um candelabro ou uma mesapara pagar dívidas. As criadas com

    quem falara haviam-lhe afiançado que constava que Félix andava sempre sem cheta.

     Algumas haviam mesmo acrescentado que ele era um oportunista sem escrúpulos e que nãoolhava aos meios para arranjar dinheiro.

     A chantagem era, muito provavelmente, apenas um dos execráveis

    esquemas que Félix utilizava na sua vida de batoteiro. Obviamente, um estratagemadesastroso.

    Olhou para a secretária junto da janela e decidiu começar por ali, embora suspeitasse queo assassino já teria vasculhado as gavetas. Era, certamente, o que ela teria feito no lugar dele.

    Circundou o corpo de Félix cautelosamente, afastando-se dele quanto possível, e dirigiu-

    se para o seu objectivo. O tampo da secretária estavacoberto com a profusão de coisas habitual, incluindo uma faca de aparar penas e um

    tinteiro. Havia, também, areia para secar a tinta e um pratinho de metal para o lacre.

    Inclinou-se para abrir a primeira das três gavetas do lado direito da secretária e ficougelada ao sentir, nos finos cabelos da nuca, um arrepio de premonição.

    O abafado mas inegável arrastar de uma bota soou atrás dela.

    O medo apossou-se dela, roubando-lhe o ar. O coração batia-lhe tão celeremente que sequestionou se não iria desmaiar pela primeira vez na sua vida.

    O assassino estava ainda ali.

    Uma coisa era certa, não podia dar-se ao luxo de um desmaio. Horrorizada, olhou uminstante para a secretária, em busca de uma

    arma para se defender. Estendeu uma mão. Os dedos apertaram convulsivamente o caboda pequena faca de aparar penas. Parecia muito

    pequenina e muito frágil, mas era tudo de que dispunha.

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    Segurando a faca, voltou-se para encarar o assassino. Viu-o logo, recortado na obscuraporta que dava para o quarto de dormir. Conseguia distinguir a silhueta da capa, mas a caraestava encoberta pelas sombras.

    Ele não se mexeu para reduzir a curta distância entre eles. Antes permanecia ali,negligentemente encostado à ombreira da porta, de braços cruzados no peito.

    25

    — Se quer saber, Mrs. Lake — disse Tobias March -, eu tinha a impressão de que um dianos tornaríamos a encontrar, mas quem iria dizer que seria nestas interessantescircunstâncias?

    Lavinia teve de engolir duas vezes em seco, antes de conseguir falar. Quando, por fim,conseguiu pronunciar algumas palavras coerentes, a voz saiu-lhe partida e num fio.

    — Foi o senhor que matou este homem?

    Tobias March olhou para o corpo.

    — Não. Eu cheguei aqui depois do assassino, como aconteceu consigo. Pelo que pudeverificar, Félix foi morto à porta da casa. O assassino deve tê-lo arrastado para dentro.

     As novidades não a sossegaram.

    — E o que está aqui a fazer?

    — Era o que lhe ia perguntar — disse ele -, mas acho que já sei a resposta. É uma dasvítimas da chantagem de Félix, não é?

    Momentaneamente, a raiva de Lavinia superou-lhe o medo.

    — A horrorosa criatura enviou-me duas notas esta semana. A primeira na segunda-feira,

    colocada por debaixo da porta da cozinha. Não acreditei nos meus olhos quando li o que meexigia. Ele queria cem libras. Está a imaginar? Cem libras para garantir o seu silêncio. Depoisde todos os meus infortúnios.

    —  A respeito de quê prometia ele o seu silêncio? —  Tobias March observava-aatentamente.— Meteu-se em mais sarilhos depois que nos encontrámos pela primeira vez?

    — Como se atreve? Isto é tudo culpa sua e só sua!

    — Culpa minha?

    — Sim, Mr. March. Culpo-o de todo este sarilho — disse Lavinia, apontando para o corpo

    no chão com a faquinha de aparar as penas. Este homem tentou chantagear-me a respeito docaso de Roma. Ameaçou-me de revelar tudo.

    — Ah, sim? Isso é muito interessante — Tobias March ficou estra nhamente contraído ealerta.— E o que é que ele sabia exactamente?

    — Já lhe disse. Ele sabia de tudo. Ameaçou-me revelar que eu tinha aberto uma loja emRoma frequentada por um bando de criminosos. Insinuava que eu era cúmplice dos seusesquemas e que permitia aos assassinos utilizarem o meu estabelecimento como um posto decomunicações. Chegou ao ponto de inferir que eu era, muito provavelmente, amante do chefe

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    do gangue.

    — Era tudo o que ele dizia na mensagem?

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    — Tudo? E não lhe basta? Mr. March, apesar do seus esforços, eu e a minha sobrinhaconseguimos sobreviver ao seu assalto à nossa loja, em Roma. Com dificuldade.

    Tobias March inclinou a cabeça.

    —  Eu sempre pensei que iria erguer-se de novo. A senhora tem um espírito quedificilmente se deixa afundar.

    Lavinia ignorou a observação.

    —  Na verdade, as coisas estão a correr bem, por ora. Tenho esperança de poderproporcionar uma verdadeira temporada a Emeline. Com um pouco de sorte, ela pode vir aconhecer um cavalheiro aceitável, que case com ela e que a possa manter ao nível a que eudesejo vê-la elevar-se. Vivemos uma época delicada, se compreende o que eu quero dizer.Não posso permitir que o nome dela seja manchado pela mínima maledicência.

    — Compreendo.

    —  Seria um dano irreparável, se Félix pusesse a circular que ela, em tempos, tinhaestado envolvida numa loja que prestava serviços a malfeitores, em Roma.

    — E imagino como os seus planos de lançar Miss Emeline nos círculos da alta sociedadelondrina ficariam prejudicados, se constasse que ela era sobrinha da amante do chefe de umbando de criminosos.

    —  Prejudicados? Ficaria tudo desfeito. Isto é tão injusto! Eu e Eme line não tínhamosnada a ver com esses criminosos, nem com o homem que diz chamar-se Carlisle. Não percebocomo alguém, com um mínimo de sensibilidade, possa acreditar que eu e a minha sobrinhanos pudéssemos dar com assassinos e ladrões.

    — Eu, durante algum tempo pensei isso, no início do caso, se se recorda.

    — O que não me surpreende — disse ela, irritada. — Eu estava a falar de pessoas comsensibilidade. Esse conjunto dificilmente o inclui a si, Mr. March.

    — Ou Holton Félix, aparentemente — Tobias March tornou a olhar para o corpo. — Acho,porém, que é melhor adiarmos esta discussão sobre a minha falta de sensibilidade para outraaltura, quando tivermos mos tempo de examinar os meus defeitos em pormenor. Por ora,temos outros problemas. Suponho que estamos ambos aqui com o mesmo objectivo.

    — Não sei o que o trouxe aqui, Mr. March, mas vim em busca de um certo diário que,possivelmente, pertencia ao criado de Mr. Carlisle, o homem que o senhor afirma ser o chefedo gangue de criminosos de Roma. — Lavinia fez uma pausa, franzindo o sobrolho. — O que éque o senhor sabe acerca deste assunto?

    — Conhece o dito antigo: Nenhum homem é herói para o seu criado. Segundo parece, ofiel servidor de Carlisle mantinha um registo particular dos mais terríveis segredos do patrão.Depois da morte de Carlisle.

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    — Carlisle morreu?

    — Exactamente. Como dizia, depois da morte de Carlisle, o criado vendeu o diário, parapagar a viagem de regresso a Inglaterra. Foi, porém, morto, aparentemente por um assaltante,antes de sair de Roma. Pelo que pude apurar, o diário foi vendido duas vezes, depois disso.Em ambos os casos, os detentores temporários sofreram acidentes fatais.

    — Tobias March indicou o corpo de Félix com a cabeça. — E, agora, temos uma terceira

    morte associada ao maldito diário.

    Lavinia engoliu em seco.

    — Meu Deus!

    — Assim é.

    Tobias March afastou-se da porta do quarto, dirigindo-se para a secretária.

    Lavinia observava-o, inquieta. Havia qualquer coisa de estranho na sua maneira de andar,pensou ela. Um ligeiro, mas notório arrastar da perna. Um coxear, na verdade. Ia jurar que, daoutra vez que o vira, ele não tinha aquela hesitação no andar.

    — Como é que conseguiu saber tanta coisa acerca do diário? — perguntou ela.

    — Eu tenho andado nas últimas semanas no rasto do maldito objecto. Segui-o através docontinente. Cheguei a Inglaterra há poucos dias.

    — Por que é que tem andado atrás dele?

    Tobias March abriu uma das gavetas.

    — Entre outros interessantes boatos, acredito que ele contém informações que poderãoresponder a algumas questões postas pelo meu cliente.

    — Que género de questões?

    Tobias March olhou para ela por cima do ombro.

    — Questões que envolvem traição e assassínio.

    — Traição?

    — Sim, durante a guerra. — Tobias March abriu outra gaveta e remexeu nos papéis quecontinha.— Não tenho tempo para entrar em pormenores. Explico mais tarde.

    — Não me diga que falhou a sua missão em Roma, Mr. March. Certamente, depois doque nos fez sofrer naquela noite horrível, terá recebido o seu prémio, ou não? O que é queaconteceu, realmente, a esse Carlisle? O senhor afirmou que ele iria aparecer na loja pararecolher a mensagem do acólito.

    — Carlisle apareceu depois da senhora sair.

    — E então?

    — Escorregou e caiu pelas escadas abaixo.

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    Lavinia abriu os olhos, incrédula.

    — Escorregou e caiu?

    — Os acidentes acontecem, Mrs. Lake. Há escadas muito traiçoeiras.

    —  Ora, ora. Era o que eu pensava. O senhor perdeu a mão depois de eu e Emelinesairmos, não foi?

    — Surgiram algumas complicações.

    —  Obviamente. —  Por qualquer razão, apesar da terrível situação, Lavinia sentia umasatisfação perversa em atribuir-lhe a culpa de tudo o que lhe acontecia. —  Devia terdescortinado a verdade logo após a primeira mensagem de Holton Félix. Apesar de tudo, ascoisas estavam a correr-nos bem, até então. Devia ter-me apercebido de que, ao surgiremproblemas, o senhor devia estar na origem deles.

    — Com os demónios, Mrs. Lake, não é altura de me invectivar. A senhora não sabe nadadas implicações deste caso.

    — Tem de admitir, Mr. March, que este problema com o diário do criado é tudo culpa sua.Se o senhor tivesse dominado adequadamente a situação, em Roma, não estaríamos agoraaqui os dois.

    Tobias March ficou tenso. À luz infernal do lume da lareira os olhos dele tinham um brilhoameaçador.

    — Afirmo-lhe perentoriamente que a serpente que dominava o bando de víboras em Itáliaestá morta. Infelizmente, a morte dele não pôs termo ao enredo. O meu cliente quer ver o casocompletamente esclarecido e contratou-me para isso. E isso é, precisamente, o que tencionofazer.

     Estou a perceber—

     disse Lavinia, friamente.— Carlisle fora, em tempos, membro de uma organização criminosa denominada o Clube

     Azul, um gangue cujos tentáculos se estendiam pela Inglaterra e pela Europa. Durante muitosanos, a organização foi dirigida por um chefe que se apelidava a si próprio Azure.

    Lavinia sentia a boca seca. Por razões inexplicáveis, acreditava que o que ele dizia eraverdade.

    — Isso é muito teatral.

    —  Azure era o chefe inquestionado da organização, mas, pelo que pudemos apurar,morreu há cerca de um ano e o Clube Azul

    tem andado num caos desde então. Azure tinha dois poderosos lugares—  tenente,Carlisle e outro homem cuja identidade continua um mistério.

    —  Azure e Carlisle desaparecidos, presumo que o seu cliente quer que descubra aidentidade do terceiro homem?

    — Sim, e o diário pode conter essa informação. Com um pouco de sorte, pode tambémindicar-nos quem era Azure e esclarecer outras questões. Percebe, agora, o perigo que tudo

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    isto envolve?

    — Sim, sim.

    Tobias March agarrou num maço de papéis.

    — Em vez de estar para aí parada, por que é que não se torna útil?

    — Útil, como?

    —  Eu não tive a oportunidade de vasculhar o quarto de dormir antes da sua chegada. Agarre numa vela e veja se descobre alguma coisa no quarto. Eu vou continuar a busca aqui.

    O primeiro impulso de Lavinia foi mandá-lo para o diabo, mas, depois, pensou que eletinha razão. Afinal, segundo parecia, andavam ambos em busca do mesmo. As vantagens dedividirem a tarefa de vasculhar o domicílio de Félix eram óbvias. Além disso, havia outrapremente razão para seguir as instruções dele: indo para o quarto não teria o ensanguentadocorpo à frente dos olhos.

    —  já pensou, decerto, que, muito provavelmente, a pessoa que matou Mr. Félix teráencontrado o diário e tê-lo-á levado consigo— disse Lavinia, agarrando numa vela.

    — Se for esse o caso, os nossos problemas ficam extremamente complicados —  disseTobias March, fitando-a com um olhar frio. — Um passo de cada vez, Mrs. Lake. Vamos ver seconseguimos encontrar o raio do diário, pois isso simplificar-nos-ia a vida.

    Ele tinha razão, pensou ela. March era irritante, provocador e muito impertinente, mastinha razão. Um desaire de cada vez. Era a única maneira de encarar a questão. E era, em boaverdade, a maneira como ela encarava a vida.

    Dirigiu-se rapidamente para o quarto adjacente à sala de entrada. Viu um livro em cima damesinha-de-cabeceira. Espalhou-se nela um formigueiro de excitação: talvez estivesse com

    sorte. Atravessou o quarto para ver o título à luz da vela. The Ediication ofa Lady. Na

    expectativa de que a capa de couro envolvesse um diário manuscrito, abriu-a e folheoualgumas páginas. O desapontamento apagou a pequena chama de esperança. O volume eraum romance recente e não um diário pessoal.

    30

    Recolocou o livro na mesinha-de— cabeceira e dirigiu-se ao lavatório. Pouco tempo levoua examinar as pequenas gavetas. Continham apenas as coisas que habitualmente seencontram em semelhante lugar: uma escova e um pente, artigos de barbear, sabões e uma

    escova de dentes. A seguir, tentou o guarda-fatos. Continha uma série de camisas caras e três casacos em

    moda. Claramente, quando lhe corriam bem as coisas à mesa de jogo, Félix gastava os ganhosem roupa cara e de estilo. Provavelmente, considerava isso um investimento.

    — Encontrou alguma coisa?— perguntou Tobias March da sala.

    — Não— disse ela.— E o senhor?

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    — Nada.

    Ouviu-o arrastar uma peça de mobiliário na sala. Ele estava a ser rigoroso na busca.

    Lavinia abriu as gavetas do guarda— fatos e descobriu, apenas, roupa interior e gravatas.Fechou as portas do guarda-fatos e olhou em redor da peça, escassamente mobilada. Odesespero apossou-se dela. O que é que ia fazer, se não conseguissem encontrar odocumento que levara Félix a tentar chantageá-la?

    O olhar dela pousou outra vez no volume encadernado a couro, sobre a mesinha-de-cabeceira. Não se via mais nenhum livro naquela casa. Se não fora The Education of a Lady,dir-se-ia que Félix não era dado a entreter-se com literatura. Contudo, conservava o únicoromance junto da cama.

     Atravessou o quarto lentamente para dar mais uma vista de olhos ao livro. O que terialevado um batoteiro a interessar-se por um romance escrito, sem sombra de dúvida, para

     jovens solteiras?

     Agarrou de novo no livro e folheou mais umas tantas páginas, agora lendo uma ou outrafrase, aqui e ali. Não demorou muito a perceber que, decididamente, o romance não tinha sido

    escrito para edificação de jovens solteiras.

    as suas elegantes e esculturais nádegas

    estremeceram na expectativa do meu látego de veludo.

    — Meu Deus! — exclamou Lavinia, fechando abruptamente o livro. Um pedaço de papelflutuou para o chão.

    — Encontrou alguma coisa de interesse?— inquiriu Tobias March da sala.

    — Absolutamente nada.

    31

    Olhou para o pedaço de papel que pousara na ponta da sua meia-bota. Tinha qualquercoisa manuscrita. Eventualmente, Félix gostara tanto do livro que resolvera tomar notas,pensou ela com um esgar de desagrado. Baixou-se para apanhar o papel e leu as palavrasnele rabiscadas. Não eram notas sobre The Education ofa Lady, mas um endereço. HazelonSquare, número catorze.

    Por que haveria Holton Félix de guardar um endereço naquele romance?

    Lavinia ouviu o ligeiro mas revelador deslizar da bota de Tobias March no chão da sala.Num impulso, enfiou a nota na bolsa e voltou-se para a porta. Ele apareceu à entrada doquarto, a figura recortada pela luz do lume mortiço da lareira.

    — E então?

    — Não encontrei nada que, nem mesmo remotamente, se pareça com um diário — disseela firmemente e, pensou, honestamente.

    — E eu tão-pouco — disse Tobias March, observando o quarto de Félix com expressãoamarga. —  É muito tarde, temos de ir embora. Segundo parece, quem matou Félix teve a

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    presença de espírito para levar o diário.

    —  O que não me surpreende. Era, certamente, o que eu faria, nas mesmascircunstâncias.

    — Hum!

    — Que está a pensar?— perguntou ela, franzindo a testa Tobias March fitou-a.

    —  Estou a pensar que, segundo parece, temos de esperar por um gesto do novochantagista.

    —  O novo chantagista? —  O choque deixou-a hirta por momentos. Teve de fazer umesforço para fechar a boca. — Deus do Céu, o que é que está a dizer? Acha que o assassinode Félix tenciona tomar o lugar dele como chantagista?

    —  Se existir uma expectativa de ganhar dinheiro com o empreendimento, e tenho acerteza de que há essa expectativa, então, temos de assumir que a resposta à sua pergunta éafirmativa.

    — Inferno!

    — Penso o mesmo, mas devemos considerar o aspecto positivo. Mrs. Lake.

    — Não consigo vislumbrar nenhum.

    Tobias March dirigiu-lhe um sorriso jocoso.

    — Repare, Mrs. Lake, nós conseguimos encontrar Holton Félix independentemente um dooutro, não foi?

    32

    — Félix era um tolo e um incompetente que deixava atrás de si todo o género de pistas.Não tive a mínima dificuldade em subornar o garoto que ele utilizava para entregar as suasmensagens de extorsão.

    O garoto deu-me a morada dele em troca de umas quantas moedas e de um pedaço derolo de carne.

    — Bem visto da sua parte — Tobias March olhou para o outro quarto, onde se encontravao corpo do homem morto, em cima da carpete, em

    frente da lareira. — Porém, não acredito que quem assassinou Félix seja tão inepto comoele. Por isso, minha senhora, acho que era melhor unirmos as nossas forças.

    Lavinia foi invadida por uma onda de alarme.

    — O que é que está a querer dizer com isso?

    — Estou certo de que compreende o que quero dizer — disse Tobias March, tornando aolhar para ela.— A senhora pode ser tudo, mas não é de compreensão lenta.

    Fora-se a esperança dela de que ele desejasse que seguissem caminhos separados,depois daquele encontro.

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    — Oiça bem — disse Lavinia em tom abrupto. — Eu não tenho, nem de longe, a mínimaintenção de formar consigo seja que tipo for de associação, Mr. March, porque sempre que osenhor me aparece, causa-me todo o género de sarilhos.

    —  Só houve, até agora, duas ocasiões em que nos vimos obrigados a passar algumtempo na presença um do outro.

    — E ambas foram desastrosas, graças a si.

    —  Isso é sua opinião —  Tobias March avançou para ela e agarrou-lhe firmemente umbraço, com a enorme mão enluvada. — Do meu ponto de vista, é a senhora que possui umtalento notável para complicar situações de forma inacreditável.

    — Francamente, senhor, isso é demais. Faça o favor de me largar!

    — Receio não o poder fazer, Mrs. Lake — Tobias March conduziu-a para fora do quarto eatravés da sala — dado que nos encontramos ambos enredados nesta teia, tenho de insistirem que trabalhemos juntos para a desenredar.

    — Não posso acreditar que tenha encontrado Mr. March outra

    vez. E nessas estranhas circunstâncias! — Emeline pousou a chávena de café e olhoupara Lavinia, sentada em frente à mesa do pequeno—  almoço. —  Que extraordináriacoincidência!

    — Não foi nada disso, a crer no que ele diz — Lavinia bateu com a colher no pires. — Segundo ele, os casos de chantagem estão ligados ao caso de Roma.

    —  Ele acha que Holton Félix era membro da organização criminosa chamada o Clube Azul?

    — Não. Aparentemente, Félix entrou na posse do diário mais ou menos por uma questãode acaso.

    — E, agora, alguém o tem — Emeline ficou com ar pensativo. — Possivelmente, a pessoaque assassinou Félix. E Mr. March continua a investigar. Ele é, realmente persistente, nãoacha?

    — Bah! Ele fá-lo por dinheiro. Sempre que alguém se dispõe a pagar-lhe para ele se pôr ainvestigar, tem todo o interesse em ser persistente. Embora eu não entenda que razões levamo seu cliente a continuar a pagar-lhe os serviços, depois da incompetente actuação dele emRoma.

    — Sabe perfeitamente que devemos estar-lhe agradecidas pela forma como ele orientouas suas investigações em Roma. Qualquer outro, na posição dele; podia ter concluído que nóséramos, também, membros do gangue de malfeitores, e tinha actuado de harmonia com essaconclusão.

    — Qualquer um encarregado dessas investigações teria de ser louco para imaginar queestávamos envolvidas em actividades criminosas.

    —  Sim, claro —  disse Emeline, cordata -, mas podemos, facilmente, considerar que,

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    qualquer outro, menos inteligente, menos cavalheiro do que Mr. March, podia ter concluído quenós éramos membros do gangue.

    34

    — Não sejas tão pressurosa a atribuir essas qualidades a Tobias March. Eu, pela minhaparte, não confio nele.

     Sim, apercebo-me disso. Mas porquê?Lavinia ergueu os braços.

    — Por amor de Deus, eu encontrei-o, ontem à noite, na cena de um crime.

    — E ele encontrou a tia no mesmo local — apontou Emeline.

    — Sim, mas ele chegou lá antes de mim e Félix já estava morto quando eu lá cheguei.Quanto a mim, foi March que o matou.

    — Oh, duvido muito.

    Lavinia fitou-a intensamente.

    — Como é que podes dizer isso? March informou-me de moto próprio que Carlisle nãotinha sobrevivido ao encontro de Roma.

    — Recordo-lhe que me falou de um infeliz acidente nas escadas.

    —  Essa é a versão de March. Não ficava nada surpreendida se viesse a saber que amorte de Carlisle não foi nada acidental.

    —  Bem, isso não é, de modo nenhum, o que mais interessa agora, pois não? Oimportante é que o patife morreu.

    Lavinia hesitou um momento.

    — March quer que eu o ajude a encontrar o diário. Quer que unamos os nossos esforços.

    — Isso faz sentido. Se estão ambos determinados a encontrá-lo, por que não associarem-se?

    — March tem um cliente que lhe paga para isso. Eu não. Emeline observou— a por cimada chávena de café.

    — Talvez Mr. March concorde em dar — lhe parte do dinheiro que recebe do cliente. A tiaadquiriu grande talento a negociar, em Itália.

    —  Eu já tinha pensado nisso —  admitiu Lavinia serenamente. Porém, a ideia de meassociar a March inquieta— me.

    —  Não me parece que tenha outra opção. E, para nós, seria muito embaraçoso secomeçassem a circular, aqui em Londres, boatos acerca dos incidentes de Roma.

    —  Tu tens uma queda para o eufemismo, Emeline. Isso seria muito mais do queembaraçoso. Isso destruiria a minha nova carreira, para não falar da oportunidade de te

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    introduzir na sociedade.

    — A propósito da sua carreira, a tia, ontem à noite, mencionou a Mr. March a natureza dasua nova profissão?

    — Claro que não! Por que haveria eu de fazê-lo?

    — Pensei apenas que, na intimidade do cenário em que a tia e March se encontraram,

    talvez se tivesse sentido inclinada a abrir-se com ele.35

    Não havia intimidade nenhuma naquele cenário. Por amor de Deus, Emeline, havia umhomem morto aos nossos pés!

    — Sim, claro.

    — E ninguém se torna íntimo em tais circunstâncias.

    — Compreendo, compreendo.

    — De qualquer modo, a última coisa que eu pretendo é tornar-me amiga de March, sejade que maneira for.

    — Está a elevar a voz, querida tia. Sabe bem o que isso significa.

    Lavinia pousou a chávena no pires com estrépito.

    — Significa que os meus nervos têm estado sujeitos a grande pressão.

    — Isso é bem verdade, mas, em minha opinião, é óbvio que a sua única opção é fazer oque Mr. March sugere, associando-se com ele na busca do diário.

    — Nada me consegue convencer de que associar-me com esse homem constitua umaopção sensata.

    —  Tenha calma, minha tia —  disse Emeline docemente. —  Está a perznitir que a suaimpressão pessoal acerca de Mr. March interfira na sua razão.

    — Presta atenção ao que te digo: Tobias March está, de novo, a jogar seu próprio jogo,como fez quando tivemos o infortúnio de toparmos com ele em Roma.

    — E que espécie de jogo seria esse?— perguntou Emeline, denunciando certo exaspero.

    Lavinia fez uma pausa, considerando a pergunta.

    — É muito possível que ele queira encontrar o diário pelas mesmas razões que HoltonFélix o queria: extorsão e chantagem. A colher de Emeline soou ao embater no pires.

    —  Não me venha dizer que, de verdade, pensa que Mr. March pode actuar comochantagista. Recuso-me a acreditar que ele tenha alguma coisa em comum com uma criaturacomo Holton Félix.

    — Nós nada sabemos acerca de Tobias March. — Lavinia apoiou as

    mãos na mesa e ergueu-se. — Sabe-se lá o que ele faria se conseguisse apoderar-se do

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    diário?

    Emeline ficou calada.

    Lavinia cruzou as mãos atrás das costas e pôs-se a caminhar em redor da mesa.

    Emeline suspirou.

    — Pois bem, não posso avançar-lhe nenhuma razão que a leve a confiar em Mr. March, anão ser o facto de ele nos ter feito chegar sãs e salvas a Inglaterra, depois do desastre deRoma. O que lhe deve ter custado uma pequena fortuna!

    36

    — Ele queria ver-se livre de nós. E, de qualquer modo, duvido que tenha sido ele a pagaras despesas da nossa viagem. Tenho a certeza de que apresentou a conta ao cliente.

    —  Talvez, mas insisto em que a tia não tem outra opção. É, certamente, preferíveltrabalhar com ele do que ignorá-lo. Desse modo, encontrar-se-á em posição de tomarconhecimento do que ele descobrir.

    — E vice-versa.

     A expressão de Emeline endureceu um pouco. Uma ansiedade incaracterística surgiu-lheno olhar.

    — Tem algum outro plano?

    — Ainda não sei bem — Lavinia parou na sua caminhada em redor da mesa e levou amão ao bolso do vestido, retirando o pedaço de papel que caíra de The Education of a Lady,examinando o endereço nele inscrito. — Mas tenciono vir a saber.

    — De que é que dispõe?

    —  De uma pequena pista, a qual pode não conduzir a nada. —  meteu o endereço nobolso. — Mas, se for esse o caso, posso, então, tomar em consideração as vantagens de umaassociação com Tobias March.

    — Ela encontrou qualquer coisa, naquele quarto — Tobias March ergueu-se da cadeiraonde estava sentado e caminhou para a frente da secretária, encostando-se nela. — Tenho acerteza disso. Eu dei por isso na altura. Um brilho demasiado inocente naqueles olhos, achoeu. Absolutamente descabido naquela mulher.

    O cunhado, Anthony Sinclair, ergueu os olhos das profundezas de um enorme volumeque tratava de antiguidades egípcias, estendendo-se na cadeira com a negligência fácil de um

     jovem saudável de vinte e um anos.

     Anthony mudara-se para a sua própria casa havia um ano. Por uns tempos, Tobias Marchpensara que ia sentir a falta dele, pois Anthony vivia com ele desde criança, quando ele,Tobias, casara com a irmã de Anthony, Ann. Após a morte de Ann, Tobias tudo fizera paraacabar de criar o rapaz e habituara-se a tê-lo junto de si. A casa iria parecer-lhe estranha,pensara ele.

    Contudo, duas semanas depois de se ter instalado na sua nova casa a pouca distância,

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    tornou-se óbvio que Anthony considerava a casa de Tobias uma extensão do seu domicílio. Defacto, estava sempre ali à hora das refeições.

    37

    — Descabido?— repetiu Anthony em tom neutro.

    — Lavinia Lake não tem nada de inocente.

    — Bem, disseste-me que ela era viúva.

    —  E podemos, apenas, conjecturar acerca da sorte do marido —  disse Tobias comalguma compunção.— Não me surpreenderia se viesse a saber que ele passou os últimos diasde vida preso a uma cama, num qualquer sanatório particular.

    — Esta manhã, já aludiste uma centena de vezes às tuas suspeitas em relação a Mrs.Lake —  disse Anthony mansamente. —  Se tinhas a certeza de que ela descobrira algumapista, ontem à noite, por que é que não a confrontaste com isso?

    — Porque, obviamente, ia negar. Ela não está nada interessada em cooperar comigo e, amenos que a agarrasse pelos pés e lhe desse um ou dois safanões, para lhe despejar osbolsos e a bolsa, não tinha maneira de provar que ela descobrira alguma coisa.

     Anthony ficou calado, mantendo-se sentado, quedo, mirando Tobias com uma expressãoinquisitiva.

    Tobias cerrou os dentes.

    — Não digas nada!

    —  Acho que não posso deixar de dizer. Por que é que não abanaste a senhora, parafazer aparecer o que pensavas que ela descobrira?

    —  Raios. Falas como se agarrar mulheres respeitáveis pelos pés fosse o meucomportamento normal em relação ao sexo oposto.

     Anthony ergueu o sobrolho.

    — Já tenho tido ocasião de te apontar, por mais de uma vez, que o teu comportamento,no que diz respeito às mulheres, carece de algum refinamento, embora, de modo geral, seenquadre nos limites que um cavalheiro deve observar. Com a excepção de Mrs. Lake: quandote referes a ela, cais sempre no exagero da extrema rudeza.

    —  Mrs. Lake é uma criatura muito especial —  disse Tobias. —  Excepcionalmentedecidida, excepcionalmente teimosa e excepcionalmente difícil. Faz cair qualquer homem

    normal em exageros.

     Anthony balançou a cabeça com ar compreensivo.

    —  É sempre muito irritante vermos os nossos traços mais pronunciados claramenteestampados noutra pessoa, não é? Especialmente quando a outra pessoa pertence aochamado sexo fraco.

    —  Aviso-te, Anthony, de que não estou com disposição de te servir de fonte dedivertimento.

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     Anthony fechou com um gesto sereno o enorme livro que estivera a ler.

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    —  Essa tua obsessão pela senhora remonta aos incidentes de Roma, há três mesesatrás.

    — Obsessão é um grande exagero da tua parte, sabe-lo bem.

    —  Acho que não. Whitby pôs-me ao corrente dos teus delírios e das tuas divagações,enquanto tratava da febre que a ferida na perna provocou. Disse-me que mantinhas longas eincoerentes conversas com Mrs. Lake. E, desde que regressaste a Inglaterra, arranjas motivopara mencionar o nome dela pelo menos uma vez por dia. Eu diria que isso se parece muitocom uma obsessão.

    —  Eu vi-me obrigado, durante cerca de um mês, a andar atrás do raio da mulher emRoma, vigiando todos os seus movimentos — Tobias agarrou-se aos entalhes da secretária. — Experimenta seguir uma mulher por todo o lado, por tão longo período de tempo, observandocada pessoa que cumprimenta na rua, cada compra que faz. E interrogando-te sempre se ela écúmplice dos assassinos ou se, pelo contrário, se enccontra em risco de ser uma das vítimas.

    Posso garantir — te que isso dá cabo da cabeça a um homem.

    — Por isso é que eu falo de obsessão.

    — Obsessão é um termo demasiado pesado — disse Tobias, coçando distraidamente aanca esquerda.— Mas lá que ela causa uma profunda impressão, isso posso garantir-te.

    —  Isso torna-se evidente —  disse Anthony, apoiando o tornozelo esquerdo no joelhodireito e endireitando a dobra das calças de bom corte.— Está a doer-te a perna?

    — Está a chover lá fora, se queres saber. E, quando o tempo fica húmido, dói-me sempreum pouco mais.

    — Não há razão para te irritares comigo — disse Anthony com um sorriso. — Guarda oteu mau humor para a senhora que o provoqa. Se os dois chegarem a associar-se, vais termuitas ocasiões de o descarregar.

    — A simples ideia de uma associação com Mrs. Lake causa-me arrepios na espinha. — Fez uma pausa, ao ouvir um leve toque à porta do estúdio. — Sim, Whitby, o que é?

     A porta abriu-se, nela aparecendo a pequena, mas esmerada figura do homem que serviaTobias como criado, cozinheiro, mordomo e, quando necessário, como médico. Apesar doocasionalmente precário estado das receitas da casa, Whitby arranjava maneira de seapresentar sempre elegante. Perante Whitby e Anthony, Tobias March sentia-se sempre em

    desvantagem, no que à indumentária masculina dizia

    respeito.

    39

    —  Lorde Neville deseja falar com o senhor —  disse Whitby no tom rebuscadamenteominoso que empregava quando se via obrigado a anunciar pessoas de alto nível.

    Tobias March sabia que Whitby não considerava que essas pessoas, em virtude do seu

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    estatuto social, fossem superiores, aproveitando para revelar, na circunstância, a sua tendênciapara o melodrama: Whitby havia falhado a sua aspiração de se tornar actor.

    — Diz-lhe que entre, Whitby. Whitby desapareceu da porta.

     Anthony ergueu-se da cadeira, pondo-se de pé.

    — Raio de azar! — disse Tobias baixinho. — Detesto dar más notícias aos clientes. Isso

    irrita-os. E nunca se sabe se eles vão desistir de nos pagar.— Não me pareçe que, neste caso, Neville tenha outras opçõesdisse Anthony, igualmente

    em voz baixa.— Não há mais ninguém para quem se possa voltar.

    Um homem alto, bem constituído, quarentão, entrou na sala, não se preocupando emdisfarçar a sua impaciência. Tudo nele evidenciava riqueza e linhagem aristocrática, desde asfeições de falcão, à forma como envergava o fato por medida e às botas lustrosas.

    — Bom dia, caro senhor. Não o esperava tão cedo — disse Tobias March, endireitando-se e apontando uma cadeira com a mão. — Faça o favor de se sentar.

    Neville não correspondeu às formalidades. Fitou a cara de Tobias March intensamente, oolhar mortiço.

    — Pois bem, March, eu recebi a sua mensagem. Que raio aconteceu ontem à noite? Temnotícias do diário?

    — Infelizmente, quando eu lá cheguei já tinha desaparecido — disse Tobias March.

    Um ligeiro torcer dos lábios tornou perfeitamente claro o desapontamento de Neville.

    — Maldição! — exclamou ele, descalçando uma luva. A pedra preta encastoada no anelgrosso da mão direita brilhou quando passou os dedos pelo cabelo. — Eu esperava ver estecaso resolvido rapidamente.

    —  Eu topei com algumas pistas —  disse Tobias March, apostado em projectar umaimagem de experiência profissional e de confiança. Espero poder encontrá-lo em breve.

    — Tem de encontrá-lo o mais depressa possível. Muita coisa depende disso.

    — Eu tenho consciência disso.

    40

    — Claro, claro que tem — Neville dirigiu-se para a mesa do brandy e agarrou no frasco.— Eu sei que temos mútuo interesse em encontrar o raio do diário — disse ele, fazendo uma

    pausa, com o frasco na mão e olhando para Tobias March. — Posso?— Sem dúvida, com todo o gosto.

    March tentou não pestanejar ao ver a quantidade de brandy que Neville deitou no copo. Oartigo era muito caro, mas, geralmente, ser agradável com os clientes compensava.

    Neville deu duas rápidas goladas e pousou o copo.

    — Tem de o encontrar — insistiu ele, fixando Tobias March com uma expressão severa.

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    — Tem de o encontrar, March, porque, se o diário cai em mãos erradas, podemos nunca maisvir a saber quem era, realmente, Azure. E, pior ainda, ficaremos sem saber o nome do únicomembro sobrevivente do Clube Azul.

    — Dentro de duas semanas, no máximo, entregar-lhe-ei o diáriodisse Tobias March.

    — Mais quinze dias? — Neville olhou para ele com uma expressão apavorada. — Isso éimpossível, não posso esperar tanto tempo.

    —  Tudo farei para o descobrir o mais rapidamente possível. Não posso prometer maisnada.

    —  Maldição! Cada dia que passa é mais um dia em que o diário pode ser perdido oudestruído.

     Anthony agitou-se e, delicadamente, pigarreou.

    —  Lembrar-lhe-ia, senhor, que foi em resultado dos esforços de Tobias que tomouconhecimento da existência do diário e de que ele se encontrava aqui em Londres. Isso ébastante mais informação do que a de que dispunha há um mês atrás.

    — Claro, claro.— Neville percorria a sala a grandes e nervosas passadas, massajando astêmporas. —  Tem de me desculpar, March. Não tenho dormido bem, desde que sei daexistência do diário. Quando me ponho a pensar naqueles que morreram na guerra, por motivodas iníquas actividades desses criminosos, dificilmente consigo dominar a minha raiva.

    — Ninguém deseja encontrar o maldito diário mais do que eudisse Tobias March.

    —  E se, quem quer que o tenha, o destrói antes que possamos apossar-nos dele? Osdois nomes ficam perdidos para sempre.

    — Duvido muito que, quem quer que esteja na posse do diário, o destrua — disse Tobias

    March.Neville deixou de esfregar as têmporas e franziu o sobrolho.

    41

    — O que é que lhe dá essa certeza?

    —  A única pessoa que admissivelmente deseja o diário destruído é o membrosobrevivente do Clube Azul e é muito pouco provável que seja ele quem o possui. Paraqualquer outra pessoa, o diário vale muito dinheiro, como fonte de chantagem. Para quêdesbaratar potenciais proventos?

    Neville ficou pensativo.

    — A sua lógica parece sólida— admitiu por fim, a contragosto.

    — Conceda-me um pouco mais de tempo —  disse Tobias March. Eu vou encontrar-lheesse diário. Talvez, depois, passemos ambos a dormir melhor.

    Trabalhava sempre junto à lareira. O calor do lume, a água quente de uma panela e o

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    calor natural da mão humana amaciavam a cera, permitindo-lhe modelá-la e dar-lhe forma.

    No início, a modelação cabia ao polegar e ao indicador. Exigia uma mão forte e segura,para modelar a cera espessa e flexível. Na fase inicial da criação, trabalhava de olhosfechados, fiando-se no apurado sentido de tacto para formar a imagem. Depois, utilizava umaafiada e aquecida ferramenta para acrescentar os pequenos e finos pormenores, essenciaispara imprimir vigor, energia e realismo à obra.

    Em sua opinião, o efeito final da peça acabada dependia sempre dos pequenospormenores: a curva do queixo, as pregas do vestido, a expressão do rosto.

    Embora a atenção de quem observava a obra não se fixasse nesses ínfimos elementos,esses pedacinhos de realidade eram os factores que provocavam o choque de compreensãoque constituía a marca da grande obra de arte.

    Sob as suas mãos, a cera tépida parecia pulsar, como se o sangue corresse por debaixoda superfície macia. Não havia material mais perfeito para captar a imitação da vida. Nenhumtão ideal para preservar o instante da morte.

    Lavinia parou sob os frondosos troncos de uma árvore, para confirmar o endereço nopedaço de papel. O número catorze de Hazelton Square encontrava-se no meio de uma fila de

    belas e elegantes casas, fronteiras a um dos lados do luxuriante e verde parque.Colunatas elegantes e modernas lâmpadas a gás marcavam a enhada de cada residência.

     Ao ver duas esplêndidas carruagens à espera, na rua, apossou-se dela uma impressãode inquietação. As carruagens tinham atrelados cavalos lustrosos e bem aparelhados. Oscocheiros que seguravam as rédeas vestiam dispendiosas librés. Enquanto observava, umasenhora desceu os degraus da entrada do número dezasseis. O vestido de passeio cor-de-rosa, a peliça a condizer, provinham, obviamente, de uma modista que trabalhava para uma

    clientela de gente rica e de grande classe.

    Não era aquela, de modo nenhum, o tipo de vizinhança que esperava encontrar ao dirigir-se ali, pensou Lavinia. Era difícil imaginar que Holton Félix conhecesse, para não falar emousar chantagear, gente que morava em local tão elegante.

    Examinou as residências com atenção. Não lhe ia ser fácil abrir caminho para umadaquelas casas pela porta da frente. Contudo, não lhe parecia que tivesse outra opção senãotentar: o endereço que tinha na mão era a única pista de que dispunha. Tinha de começar poralgum lado.

    Forçando-se à tarefa, atravessou a rua e subiu os degraus de már more da entrada do

    número catorze. Ergueu a pesada argola de bronze e deixou-a cair com o que ela esperava seruma batida autoritária.

    Passos abafados soaram no hall. Um momento depois a porta abriu— se. Um criado dear imponente, de constituição semelhante à de um touro, mirou-a. Lavinia viu, pela expressãodos olhos dele, que se preparava já para lhe fechar a porta na cara. Num gesto rápido,estendeu-lhe um dos novos cartões em relevo que mandara imprimir recentemente.

    46

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    —  Por favor, apresente este cartão à sua patroa —  disse ela vivamente. —  É muitourgente. O meu nome é Lavinia Lake.

    O criado olhou desdenhosamente para o cartão. Nitidamente, tinha grandes dúvidasacerca da sensatez de o aceitar.

    —  Vai ver que está à minha espera —  acrescentou Lavinia em tom sereno. Era puramentira, mas foi o que lhe veio à cabeça no momento.

    — Pois bem, minha senhora — disse o criado, afastando-se para a deixar entrar para ohall -, faça o favor de esperar aqui.

    Lavinia respirou fundo e apressou-se a entrar. Transpusera a primeira barreira, pensou, jáestava dentro da casa.

    O criado desapareceu na penumbra do hall. Lavinia aproveitou o ensejo para examinar apeça onde se encontrava. As lajes pretas e brancas a seus pés e os sofisticadamenteemoldurados e dourados espelhos nas paredes patenteavam bom gosto e grande fortuna.

    Lavinia ouviu os passos do criado e suspendeu a respiração. Quando o viu, apercebeu-se

    logo de que o cartão funcionara.— Mrs. Dove vai recebê-la. Por aqui, por favor, minha senhora. Lavinia tornou a respirar

    normalmente. A parte mais fácil correra bem. Agora, ia ter de encarar a infinitamente maisdelicada tarefa de persuadir uma estranha a falar-lhe de chantagem e de assassínio.

    Foi introduzida numa grande sala de estar, decorada em tons de amarelo, verde edourado. Os sofás e poltronas eram estofados a seda, às riscas. Pesados cortinados verdes,presos com faixas amarelas, enquadravam a vista do parque. Os passos de Lavinia soavamabafados no espesso tapete tecido nos mesmos tons.

    Uma mulher espantosamente elegante estava sentada num dos sofás dourados. Tinha

    um vestido cinzento-pálido, debruado a preto, de corte de grande estilo. O cabelo apanhadoatrás, de modo gracioso, realçava-lhe o pescoço esbelto. A uma certa distância, podiafacilmente ser tomada por uma mulher de uns trinta anos, mas, ao aproximar-se, Lavinia notouas linhas finas aos cantos dos olhos inteligentes e uma inegável flacidez no pescoço e noqueixo, outrora, sem sombra de dúvida, bem firmes. Havia laivos de prata no cabelo cor demel. A senhora estava mais próxima dos quarenta e cinco do que dos trinta e cinco anos.

    — Mrs. Lake, minha senhora— disse o criado, inclinando-se respeitosamente.

    — Faça o favor de entrar, Mrs. Lake, e de sentar-se.

     As palavras foram pronunciadas numa voz fria e refinada, mas Lavinia discerniu a tensão

    que havia nelas. Aquela mulher devia viver sob grande tensão.

    47

    Sentou-se numa poltrona de riscas douradas e tentou dar o ar de estar acostumada aconversar rodeada de mobiliário tão fino. Receava bem que o seu vulgar vestido de musselina,em tempos de um vivo castanho— averznelhado, a traísse. A recente tentativa de o tingir pararecuperar a cor inicial não tinha sido por completo bem sucedida.

    — Muito obrigada por me receber, Mrs. Dove — disse Lavinia.

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    — Como podia eu recusar perante um cartão de visita tão intrigante? — disse Joan Dove,erguendo as bem arqueadas sobrancelhas. Posso perguntar —  lhe como é que sabe o meunome, quando eu estou bem ciente de que nunca nos encontrámos?

    — Não há nenhum segredo em relação a isso. Bastou-me, muito simplesmente, perguntara uma das velhotas, no parque, e ela logo me informou que a senhora era viúva e que vivia,aqui, com uma filha.

    — Pois claro— murmurou Joan -, as pessoas gostam de falar.

    — Na minha nova ocupação, tiro partido, com frequência, dessa tendência.

    Joan batia distraidamente com o cartão no braço do sofá.

    — Qual é, precisamente, Mrs. Lake, a natureza da sua ocupação?

    — Explicar-lhe-ei mais tarde, se continuar interessada. Antes, porém, permita-me que lhediga a razão para esta minha visita: acho que temos, ou tivemos, melhor dizendo, umconhecimento comum, Mrs. Dove.

    — E quem seria esse conhecimento comum?

    — O nome dele era Holton Félix.

     As sobrancelhas de Joan uniram-se num franzir de delicado espanto. E abanou a cabeça.

    — Não conheço ninguém com esse nome.

    — Com certeza? Mas eu encontrei o seu endereço num livro que ele tinha à cabeceira dacama.

    Lavinia percebeu que despertara a completa e concentrada atenção de Joan, mas nãosabia se era bom sinal. Estava, porém, lançada, disse Lavinia para si própria. Não podia

    recuar. Uma mulher com a sua pro fissão tinha de ser ousada.

    — Num livro à cabeceira da cama? — Joan estava muito quieta no sofá, o olhar fixo. — Coisa estranha!

    —  Em boa verdade, isso é muito menos estranho do que a sua profissão. Ele era umchantagista.

    Houve um instante de silêncio.

    — Era?— repetiu Mrs. Dove com um ligeiro ênfase.

      Quando vim a conhecer Mr. Félix, ontem à noite, já ele estava morto. Assassinado,para ser mais precisa.

    48

    Joan ficou ligeiramente mais contraída. A reacção traduziu-se num pequeno, involuntárioofego e num ligeiro estreitar dos olhos, mas Lavinia apercebeu-se de que a interlocutorarecebera um choque.

    Joan recuperou rapidamente, tão rapidamente que Lavinia ficou na dúvida se não teria

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     julgado mal a reacção à notícia da morte de Félix.

    —  Assassinado, diz —  disse joan, como se Lavinia tivesse feito um comentário banalacerca do tempo.

    — Sim.

    — Tem a certeza?

    —  A certeza absoluta. Não é o género de coisas em que nos possamos enganar — Lavinia juntou as mãos enluvadas. — Mrs. Dove, vou ser franca. Eu pouco sei a respeito deHolton Félix, mas o que sei não concede nenhum crédito à sua memória. Ele tentouchantagear-me. E eu vim a sua casa perguntar-lhe se era, também, uma das suas vítimas.

    — Isso é uma pergunta absolutamente ultrajante — disse Joan vivamente. — Como se eupudesse ceder a chantagens!

    Lavinia inclinou a cabeça ligeiramente, em polida e evidente concordância.

    — Eu repeli igualmente a tentativa de extorsão. Na verdade, foi por ter ficado irritada queme dei ao trabalho de descobrir a morada de Mr. Félix. Foi por isso que fui a casa dele ontem ànoite. Tive o cuidado de escolher uma hora da noite em que esperava não o encontrar emcasa.

    Joan parecia involuntariamente fascinada.

    — O que é que a levou a fazer semelhante coisa?

    Lavinia teve um ligeiro encolher de ombros.

    — Fui lá com a intenção de encontrar um certo diário que Mr. Félix afirmava possuir. Ele,afinal, tinha ficado em casa. Porém, antes de eu chegar, já tinha recebido a visita de alguém.

    — O assassino?

    — Sim.

    Houve, de novo, um curto, tenso silêncio, em que Joan parecia tomar em consideração oque acabara de ouvir.

    — Isso foi realmente aventureiro da sua parte, Mrs. Lake!

    — Senti que não podia deixar de agir com ousadia.

    — Bem— disse, por fim, Joan -, segundo parece, o seu problema resolveu-se por si, com

    a morte do chantagista.— Pelo contrário, Mrs. Dove — disse Lavinia, sorrindo friamente. O caso tornou-se mais

    complicado. Note bem: eu não consegui encontrar o diário em casa de Mr. Félix, o que me levaa concluir que quem

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    o tem é o assassino ou — Lavinia fez, delicadamente, uma pausa — a assassina, comopode muito bem ser o caso.

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    Joan não era nada de compreensão lenta, como Lavinia pôde verificar. Percebeu logo aimplicação, o que pareceu diverti— la.

    — Não acredita, certamente, que eu seja a pessoa que matou Mr. Félix e que sonegou odiário— disse Joan.

    — Eu tinha uma esperança que fosse. Como compreende, isso tornaria as coisas muitomais simples e directas.

    Os olhos de Joan brilharam com uma expressão estranha.

    — A senhora é uma mulher nada comum, Mrs. Lake. A ocupação

    a que se referiu há pouco tem alguma coisa a ver com os palcos de Drury Lane e deConvent Garden?

    — Não, Mrs. Dove, de modo nenhum. Embora eu não me exima a

    representar um pouco, de quando em vez.

    —  Compreendo. Bem, a conversa é muito interessante, mas garanto-lhe que nada sei

    acerca de assassínios e de chantagens. — Joan olhou abertamente para o relógio de sala. — Meu Deus, é já tão tarde. Receio

    ter de lhe pedir que se retire: eu tenho uma prova na minha modista, esta tarde.

     Aquilo não estava a correr bem. Lavinia inclinou-se ligeiramente para a frente.

    — Mrs. Dove, se estava a ser chantageada por Holton Félix e se não é a pessoa que omatou, encontra-se numa posição muito precária e eu posso prestar-lhe auxílio.

    Joan lançou-lhe um olhar de polida estupefacção.

    — O que é que quer dizer com isso?— Temos de considerar a possibilidade de que a pessoa que matou Holton Félix e que

    roubou o diário possa, também, pôr-se a chantagear.

    — Espera novas ameaças?

    — Mesmo que não surjam novas ameaças, permanece o facto de

    que alguém possui o maldito diário. E isso é uma circunstância muito perturbadora, nãoacha?

    Joan pestanejou uma vez, sem qualquer outro sinal de que o quadro pintado por Lavinia aalarmasse.

    — Não quero ofendê-la, Mrs. Lake, mas está a falar como alguém

    que necessitasse de internamento em Bedlam.

    Lavinia apertou as mãos com força.

    — Holton Félix devia saber alguma coisa a seu respeito, minha

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    senhora. Não vejo outra razão para ele ter o seu endereço metido num romanceasqueroso, cujo tema era o deboche de uma jovem inocente.

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    O furor transpareceu na expressão de Joan.

    — Como se atreve a insinuar que eu pudesse conhecer semelhante indivíduo? Tenha a

    bondade de retirar-se imediatamente, Mrs. Lake, ou terei de chamar um lacaio para a levardaqui para fora.

    — Por favor, Mrs. Dove, ouça o que lhe digo. Se é uma das vítimas da chantagem deHolton Félix, deve ter informações que, com as que eu já possuo acerca do caso, podempermitir —  me identificar quem quer que seja que, agora, está na posse do diário. E estará,decerto, tão interessada como eu em recuperá-lo, minha senhora.

    — Está a perder o seu tempo.

    — Por uma pequena importância, que cubra as minhas despesas e compense o tempoque eu dispensar ao assunto, estou à sua disposição para investigar o caso.

    — Basta! É, claramente, uma louca. —  Os olhos de Joan estavam duros como pedraspreciosas. — Insisto em que se retire, ou terei de mandar pô-la na rua.

    Eis o resultado do contacto directo, pensou Lavinia. Não era fácil angariar clientes na suanova profissão.

    Ergueu-se da poltrona com um suspiro de frustração.

    —  Eu vou retirar-me, Mrs. Dove, mas fica com o meu cartão: se, acaso, reconsiderar,tenha a bondade de me procurar. Sugiro, contudo, que não demore muito. O tempo é precioso.

    Lavinia dirigiu-se rapidamente para a porta e saiu da sala. No hall, o criado lançou-lhe umolhar gélido e abriu-lhe a porta da frente.

    Lavinia apertou os laços do chapéu e desceu os degraus da entrada. O céu estava cor dechumbo. Com a sorte com que estava, ia certamente apanhar chuva antes de chegar a casa.

     Atravessou a rua e açodou-se através do parque. Detestava admiti-lo, mas Emeline tinharazão. A sobrinha avisara-a de que, quem quer que fosse a pessoa que morava em HazeltonSquare, estaria pouco disposta a admitir ser vítima de chantagem e muito menos disposta acontratar uma pessoa para proceder a uma discreta investigação acerca do caso.

    Havia que imaginar outro esquema, pensou Lavinia. Dobrou uma esquina e entrou numaviela entre duas filas de casas. Tinha de haver uma maneira de con