abascanto, a sombra dos caídos

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1 Consequências ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO ABASCANTO Abascanto a sombra dos caídos Diogo de Souza

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Livro de Diogo de Souza, Diagramação e capa feitas por mim. Versão completa para download em http://www.abascanto.com.br/

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Page 1: Abascanto, a sombra dos caídos

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Consequências

ABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOABASCANTOAbascanto

a sombra dos caídos

Diogo de Souza

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Diogo de Souza

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Page 4: Abascanto, a sombra dos caídos

Copyright 2008 by Diogo de Souza

Revisão e Preparação: Maria do Carmo Zanini

Projeto gráfico, Diagramação e Capa: Cristiane L. Viana

1ª Edição – 2010

ISBN 978-85-910782-0-2

CDU 823/47

Distribuído pela Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License 3.0.

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/deed.pt

COMMON DEED

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Você pode:

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MOLUPTATUR, VOL-MOLORES VELLUPTA-SAPIENTE ET VOLUP-CULPA CONSE DELES-TATE CONESTRUM TATE CONESTRUM OPTIIST AS ES-OPTIIST AS ES-DICIDIT AECATAMUS, ACCUSTIS DOLENTEM ACCUSTIS DOLENTEM ACCUSTIS DOLENTEM D O L E N T E M D O L E N T E M D O L E N T E M

Prólogo — Solstício 4I Vinte e três anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16II Retorno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22III. Corrida ao pôr do sol. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30IV Encontro no café . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38V Uma conversa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41VI Dois telefonemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48VII A festa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51VIII Luta no trigésimo quinto andar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56IX Confronto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64X A espada não forjada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74XI O dia seguinte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83XII Café-da-manhã. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90XIII Almoço em família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97XIV Batismo de fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100XV Aula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108XVI O visitante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113XVII A escolha de Aline . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121XVIII O dono do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129XIX Nenhuma pessoa sincera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138XX Revanche . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144XXI Consequências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149XXII A hora de Sariel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156XXIII Confluência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163Epílogo — Família. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174

Sumário

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Agradecimentos

Um obrigado especial às pessoas cujas opiniões me proporcionaram ta-manho prazer ao escrever este livro e uma satisfação tão grande ao vê-lo pronto:

Maria do Carmo ZaniniLuís Américo Nedavaska

Alessandra PiresAdriana de Oliveira Silva

André ViancoLucia FaccoChico Anes

Maurício Pacheco ChagasAlfredo Stahl

HiezzaHudson OkadaJoão Cartolano

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MOLUPTATUR, VOL-MOLORES VELLUPTA-SAPIENTE ET VOLUP-CULPA CONSE DELES-TATE CONESTRUM TATE CONESTRUM OPTIIST AS ES-OPTIIST AS ES-DICIDIT AECATAMUS, ACCUSTIS DOLENTEM ACCUSTIS DOLENTEM ACCUSTIS DOLENTEM D O L E N T E M D O L E N T E M D O L E N T E M

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Eram 21h59 do dia 21 de junho, o solstício de inverno.Naquele dia, o mais curto do ano, a manhã surgira nublada, coberta por

uma leve garoa. O sol não brilhara em nenhum momento e se pusera de ma-neira discreta, deprimida, sem que qualquer pessoa percebesse que ele nem sequer tinha dado as caras.

O trânsito intenso da cidade se estendera para além das oito da noite e só se acalmara por volta das oito e meia. O comércio fechava, as casas noturnas começavam a abrir. Em um certo bairro residencial e próximo ao rio, forrado de árvores em todas as ruas, as luzes noturnas das janelas denotavam a plena atividade dos lares.

Aos 36 segundos, todo aquele setor da cidade foi surpreendido por uma súbita escuridão. As luzes se apagaram, fazendo descer um tapete de trevas, seguido da constelação das minúsculas velas que se acenderam nos apartamen-tos. Em uma rua sem saída, um transformador elétrico soltou um ruidoso es-tampido. Um raio se estendeu até o chão com um forte zumbido e uma breve luz cintilante.

Um foco luminoso se formou naquele canto esquecido. Cachorros começaram a latir para o céu. Algumas crianças tiveram o sono perturbado.

Uma luz, surgida em pleno ar, fluiu no meio da rua. Fios cintilantes de uma massa branca se formaram e começaram a se enrolar uns nos outros. Aquele beco foi iluminado por uma abertura entre as dimensões, e milhares de pequenos ten-táculos de uma energia luminosa começaram a fluir para a calçada.

Um vendaval percorreu a rua, e os fios da rede elétrica, mesmo sem força, trocaram raios com o passeio.

Aquela luz, dobrando-se sobre si mesma milhares de vezes, começou a se concentrar cada vez mais. Perdeu o brilho e ganhou substância. Aquilo que era um imenso foco luminoso rapidamente se transformou em uma fumaça esbran-quiçada. Concentrou-se ainda mais, criando uma espécie de gel, e se solidificou em três formas físicas.

Prólogo – Solstício

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Da luz, três corpos começaram a surgir. Braços, pernas, cabeça, mãos e pés. Formados a partir do nada, criados naquele mesmo instante, três seres com a forma humana apareceram no meio da rua.

Ninguém viu esse acontecimento. E, se alguém tivesse visto, não se recordaria. As três pessoas foram formadas por uma energia que não vinha deste mundo. Foram criadas pela concentração intensa de centenas de outros seres, dos quais se separavam pelo abismo que existe entre a realidade objetiva e a subjetiva.

Junto com os corpos, roupas se formaram. As mentes daqueles seres, após cruzar a ponte para este mundo, se acomodaram em seus novos cérebros, os preencheram com sensações inteiramente novas.

Não tinham nomes, uma vez que acabavam de surgir, mas eram indivíduos: de onde vinham, tinham identidades próprias. A cada identidade, a cada uma daquelas personalidades, correspondia uma vibração, e a cada vibração, um som. Assim, os sons que traduziam melhor cada uma delas eram Oriniel, Ka-liel e Daqshael.

Naquele instante, os três não sabiam de nada. Não eram capazes nem sequer de formular um pensamento: ainda ligados a um mundo onde o tempo e o espaço quase não tinham significado. Nos minutos que se seguiram, ideias começaram a se formar. Pensamentos desconexos surgiam conforme seus cérebros recém-criados se coordenavam em um fluxo incontrolável de informações. Seus colegas etéreos, do outro lado do abismo, gravavam em suas mentes todo o conhecimento comum da sociedade. Usos, costumes, línguas: tudo isso se concatenava em suas mentes.

Teria sido agonizante, mas seus corpos ainda estavam se formando e eram incapazes de sentir dor. Com muda curiosidade, observaram o universo de con-hecimentos que os assolava. A única indicação de mal-estar veio de Kaliel, ator-doada com tantas informações, que levou lentamente a mão à cabeça, inspirando mais fundo que o normal.

Não se pode dizer que se lembravam de algo, porque nunca tinham conhecido qualquer coisa com aqueles corpos, mas souberam, naquele instante, quem eram, de onde vinham, onde estavam, o que deveriam fazer e como.

E, então, seu mundo de origem fechou-se definitivamente, e a dimensão física os acolheu com todas as suas sensações. Milhares de toques gentis lhes percorreram a pele. Sentiram cada um de seus pelos se arrepiar pela primeira vez quando tocaram as roupas que usavam. Cada pequeno pedaço de suas faces quis voar ao ser acariciado pela primeira brisa. Inalaram um mundo de promes-sas e histórias quando captaram os odores da rua. Foram arrancados dos céus pelas buzinas dos carros, os latidos dos cachorros e o som de uma folha de jornal carregada pelo vento.

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Prólogo — Solstício

Haviam sido retirados da imensidão em que viviam. Sentiram seus corações despedaçarem. Cada uma de suas partes, separadas, foi colocada diante deles e refletida em seus olhos. Viam a luz como os mortais a veem; e o mundo do qual agora faziam parte, como algo distante, muito distante.

Estavam sós. Mesmo estando ao lado um do outro, tinham perdido aquele con-tato íntimo que unia seus espíritos em um corpo maior. Haviam sido jogados nas trevas. Porém, trevas repletas das mais minúsculas e amplas sensações. Antes, eles eram parte do universo. Agora, cada um tinha um universo inteiro dentro de si.

Flexionaram os membros, mexeram as mãos, viraram as cabeças e sentiram os músculos se acomodarem uns sobre os outros. O vento frio, batendo em seus olhos, os fez chorar, não de prazer, nem de dor, mas simplesmente por estarem vivos.

Daqshael não conseguia se decidir entre o êxtase e a repulsa. Com os olhos bem abertos, ele virava a cabeça em todas as direções, sem acreditar muito bem no que via. Os cheiros o invadiam em ondas doces, quentes, convidativas e repul-sivas: um tornado de êxtase.

Ao mesmo tempo, sua mente estava na escuridão. Onde estavam os pensa-mentos de seus amigos? Onde, as emoções de seus colegas? Para que lado ele deveria se virar, para onde ele precisava correr a fim de se reunir com os espíritos das árvores e os sonhos das crianças?

Ele, que era fogo, havia se apagado. Observou, com olhos que se recusavam a fechar, coisas muito estranhas a seu redor: havia uma espécie de massa rosa-amarelada se mexendo à sua direita. Outra, rosa-esbranquiçada, se movia à sua esquerda. Levou algum tempo para perceber que aquelas duas coisas tinham uma coloração energética, uma aura, uma mente que ele podia detectar... Eram seus amigos! Aquelas coisas estranhas eram Oriniel e Kaliel.

Ele mesmo era uma daquelas coisas. No que é que ele havia se transformado? Um corpo desajeitado, palitos que saíam de um saco de carne. Uma tosca esfera amassada que lhe servia de rosto.

Oriniel observava Daqshael e Kaliel com infinita paciência. Já tinha feito aquela mesma travessia cinco vezes. Kaliel, porém, só havia cruzado os mundos uma outra vez, e, para Daqshael, tudo era novidade. Oriniel percebeu o espanto do amigo quando, voltando os olhos para o próprio corpo, ele mesmo não se reconheceu. Pensou em enviar um pensamento de compreensão, mas achou mel-hor deixá-lo se acostumar por si mesmo.

Virou-se para Kaliel e aprovou o autocontrole da companheira. Ela teria de se cuidar se quisesse passar muito tempo naquele mundo. Seus olhos, negros, pareciam cortar tudo o que viam, dividindo o mundo em dois. Enquanto ela

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Abascanto: a sombra dos caídos

passava as mãos pelo corpo, uma sensualidade natural saía por seus dedos. Ela não precisaria fazer força para ser atraente, mesmo que seu enorme e reto nariz lhe desse um ar de águia velha. Os cabelos, acima de tudo, caíam, sedosos, delineando-lhe o peito; eram inquietos, como se fossem feitos do próprio vento que os acariciava.

Os dedos de Daqshael não resistiram ao convite da face de Kaliel e passearam pelo queixo dela como se pisassem em nuvens. Ela abriu um sorriso e tomou aquela mão entre as suas. Pareciam a Oriniel o perfeito par de amantes: não tin-ham qualquer intenção, a não ser descobrir um ao outro.

A face de Daqshael, entalhada no feitio de uma estátua grega, era o contra-ponto da sensualidade óbvia de Kaliel. Sua pele, levemente corada, ressaltava a palidez da amiga ao tocá-la. A cabeleira amarela e encaracolada queria se en-roscar na seda de Kaliel e não soltá-la mais. Os olhos verdes penetravam no que viam sem sequer piscarem.

A mente de Daqshael, ainda correndo selvagem pelos céus, emitiu um forte pensamento, um grito psíquico que Oriniel e Kaliel ouviram:

Então isto é uma passagem!Kaliel sorriu abertamente. Oriniel apenas os observou.Daqshael viu Oriniel e reconheceu naquela expressão a personalidade do

amigo. A mente analítica e resistente vazava pelos olhos dele, percorrendo cada detalhe à sua volta e capturando todas as silhuetas da noite. Satisfeito, finalmente, com todo aquele mundo novo, Daqshael virou-se para o lado e conduziu o olhar dos outros para três objetos caídos no chão.

Lá estavam três lâminas metálicas que nunca haviam sido forjadas. Três espa-das, criadas ao mesmo tempo que os corpos deles, aguardavam ser tocadas. Eles não haviam cruzado o véu entre os mundos simplesmente para experimentar as sensações físicas: eles tinham uma missão, um confronto.

Cada um dos três pegou uma das espadas, e o pensamento de Oriniel soou claro na mente dos amigos:

Eles já sabem que estamos aqui.Os três relaxaram a atenção e observaram o fluxo de seus pensamentos. Per-

ceberam uma leve distorção à esquerda. Imaginaram-se observados por outras duas presenças, imensas como as deles. Sabiam, porém, que essa imaginação não vinha deles: havia realmente dois seres a esperá-los.

Em suas mentes, aquelas presenças cresceram. Podiam percebê-las clara-mente apesar da escuridão, porque, para os três, os oponentes eram mais ne-gros do que as trevas.

Oriniel voltou-se para os amigos e transmitiu-lhes uma mensagem:

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Prólogo — Solstício

Concentrem-se nas pequenas coisas do mundo, criem a seu redor um manto que seja insignificante para as mentes mortais. Vamos fazer com que nossa presença aqui seja imperceptível. Vocês sabem fazer isso?

Kaliel se concentrou em uma folha ao vento. Achou que ninguém prestaria atenção nisso e acomodou aquela imagem à sua própria aura. Daqshael concen-trou-se na luz de uma vela, que vinha de um apartamento, e revestiu-se da sensa-ção de ser tão pequeno quanto a chama.

Oriniel pensou em uma pedra caída no chão e mudou sua energia, para que se assemelhasse a ela. Prestou atenção nas mudanças dos amigos até ter certeza de que todos estavam bem ocultos.

— Não vamos deixá-los esperando — disse Kaliel. Daqshael virou-se para ela, levemente intrigado com o som de sua voz.

Oriniel observou Daqshael por um instante e, sem uma palavra mais, os três partiram, andando pelas ruas da cidade, em direção à batalha que era sua missão neste mundo.

Seus irmãos haviam se desgarrado, e eles vieram resgatá-los.

Tão logo se puseram a andar, perceberam o movimento das mentes de seus alvos. A princípio, a cena que eles mantinham na imaginação se turvou e mistur-ou-se com outros pensamentos.

- Eles estão tentando se esconder de nós — Kaliel afirmou.Oriniel afastou qualquer outro pensamento da mente e se concentrou nas ima-

gens de seus oponentes. Imaginou-se em um grande vazio, e as únicas outras coisas que existiam eram seus inimigos. Fixou-os em sua mente e soltou a concentração.

Imediatamente, o foco retornou. A nitidez anterior voltou redobrada, e Orin-iel pôde ver não apenas os fugitivos, mas também os seus arredores.

Daqshael, atento ao movimento de Oriniel, percebeu o amigo capturando o rastro mental de seus irmãos e transmitiu para Kaliel a ideia de que ele os reen-contrara.

Oriniel virou uma esquina. Andava com um propósito claro: sabia em qual direção seguir.

Tão logo Oriniel reencontrou o rastro, Kaliel e Daqshael sentiram a agitação de seus irmãos. Sabiam que eles estavam apavorados, com tanta clareza quanto se estivessem a seu lado. Os desgarrados não queriam voltar. Tinham muito pelo que responder, e sua antiga Casa, o regresso ao Lar, apenas lhes causava apreensão.

Os três pegaram o rumo de uma avenida e seguiram o fluxo dos carros. Ig-noravam praticamente tudo, e em troca, eram igualmente desconsiderados pelas pessoas. A certa altura, chegaram a um enorme cruzamento entre duas avenidas,

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marcado pela presença de dois prédios imponentes. À frente, do outro lado da encruzilhada, um arranha-céu cilíndrico e recoberto de vidro. À entrada, duas pessoas imóveis os observavam.

O peso daquelas duas mentes, a imponência de suas auras era indiscutível. Poderiam tê-las identificado em qualquer multidão: quem uma vez conheceu a Eternidade jamais consegue retornar à mediocridade.

Uma delas tinha a aparência de um senhor já de idade. Talvez com sessenta, setenta anos. Vestia um sobretudo escuro, sob medida, e por baixo um traje es-porte fino, de marca. Observava-os com o olhar desprovido de qualquer sen-timento além da indiferença. Sua aura tinha grandes manchas roxas e escuras flutuando sobre uma camada amarelada. Bem próximo ao corpo, ela era de uma grande intensidade esverdeada. Em uma das mãos, o velho empunhava uma lâmina de comprimento similar ao das armas dos três recém-chegados.

A outra era uma jovem oriental. Os olhos amendoados lhe sublinhavam to-das as feições, contrastando com as sobrancelhas, finas e negras, em um con-stante convite sensual. O rosa e o vermelho dominavam sua energia e, perto dos olhos, dois fachos de luz acinzentada se projetavam. Carregava também uma espada: uma lâmina reta, com empunhadura discreta, como as usadas em demonstrações de kung fu.

Assim como Oriniel, Daqshael e Kaliel, a dupla tinha nomes pelos quais se identificavam. O homem era chamado Neberiah; a mulher, Azra.

Os cinco ficaram se olhando, sem se perder de vista. Nem o enorme cruza-mento que os separava nem o barulho dos carros os impediam. As pessoas ao redor não notavam cinco indivíduos segurando armas medievais se encarando no meio da rua.

Nenhuma comunicação foi transmitida. Nenhuma era necessária. Oriniel, Kaliel e Daqshael vieram para levá-los de volta. Neberiah e Azra não queriam voltar. O casal tinha medo, o trio tinha uma certeza. O casal queria continuar a viver para fazer o que acreditava ser certo. O trio queria que eles retornassem e se confrontassem com a Verdade do que sabiam ser errado.

Oriniel respeitava aqueles dois, que haviam abdicado de tudo em nome de um sonho. Kaliel os admirava pelos sacrifícios que fizeram ao longo de suas vidas na Terra. Daqshael tinha pena do quanto eles já tinham esquecido de seu Lar, da Vida.

Neberiah os desprezava: covardes omissos que não tinham coragem de se sac-rificar pelo bem maior. Azra os odiava: vinham lhe retirar aquilo que ela mais apreciava.

Oriniel avançou em direção ao casal, correndo pelo meio da rua em pleno trânsito. Os motoristas o ignoraram. Contra todas as possibilidades, cruzou a

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Prólogo — Solstício

distância entre eles em linha reta, sem que qualquer obstáculo o impedisse ou qualquer acidente ocorresse, sem nem sequer tirar os olhos de Neberiah.

Kaliel e Daqshael o seguiram logo depois, realizando a mesma corrida im-provável pelo cruzamento. Neberiah, em resposta, ergueu a espada com as duas mãos e a colocou bem à sua frente, entre ele e Oriniel. Azra ergueu sua lâmina acima da cabeça com um movimento fluido da mão direita, enquanto levava a esquerda às costas, preparando um curto punhal que carregava para manobras de defesa.

A investida de Oriniel terminou com um choque metálico de lâminas: a sua contra a de Neberiah. Olhos negros e cabelos brancos se confrontaram com uma aura envelhecida e uma opulência sofisticada. Ele começou com um ataque por cima, baixando a espada em linha reta sobre o crânio de Neberiah; o oponente aparou o ataque, jogando a lâmina de Oriniel para o lado. Este, aproveitando o movimento criado, girou a espada em um corte lateral. Neberiah, com total eco-nomia de gestos, bloqueou o ataque simplesmente ao mover sua espada alguns centímetros. Oriniel deu um passo para trás e, girando sua arma rapidamente, atacou pelo lado oposto, encontrando a mesma resistência.

Azra resolveu aguardar a chegada de Daqshael e Kaliel ao invés de partir em auxílio de Neberiah. Quando a alcançaram, os dois a atacaram pela esquerda e pela direita, na tentativa de abrir uma brecha em sua defesa. Azra defendeu os dois ataques simultaneamente e deu dois passos para trás. Seus cabelos dança-vam no ar conforme ela se virava, formavam imagens, imitando as de sua espada. Colocou ambos os atacantes diante de si e interrompeu a investida lateral.

Nenhuma das pessoas que passavam pela rua percebia a luta acontecendo a seu redor. Golpes de espada eram trocados, os combatentes pulavam uns sobre os outros, corriam e se digladiavam, e, durante todo esse tempo, as pessoas os evitavam sem notar a presença deles. Durante toda a batalha, nem a mais leve estocada chegou a atingir os pedestres.

Ao mesmo tempo em que Neberiah ganhava terreno sobre Oriniel, forçan-do-o a recuar cada vez mais, Daqshael e Kaliel estavam bem perto de desferir um golpe fatal em Azra. Estavam equilibrados. O trio recém-chegado não tivera tempo suficiente para se acostumar com seus novos corpos, nem refinar suas ha-bilidades de luta, mas a superioridade numérica lhes garantia a vantagem. Orin-iel lutava para ganhar tempo, para que seus dois amigos pudessem dar conta de Azra. Se isso acontecesse, sua vitória era certa.

Neberiah investiu contra Oriniel com uma sequência de ataques repetidos, seguida de variações súbitas, para abrir uma brecha nas defesas do oponente. Sua aura agigantou-se e engoliu, com cores pálidas, a coruscante luz de Orin-

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iel, que teve de retroceder três passos e acabou no meio da rua. Neberiah não o perdia de vista e, tanto ao atacar quanto ao se defender, achava um jeito de obrigar Oriniel a recuar.

Kaliel e Daqshael ainda tentavam vencer Azra com um ataque duplo, mas ela se esquivava de uma e aparava os golpes do outro. Kaliel percebeu que Azra estava baseando sua defesa em uma movimentação lateral. Quando Daqshael in-vestiu com três ataques encadeados, Kaliel esperou até Azra completar os aparos para realizar seu assalto. Azra, sem tempo para se recuperar, recuou dois passos para evitar um golpe de Kaliel. Daqshael percebeu imediatamente a estratégia da amiga e, tão logo ela acabou sua investida, ele começou uma nova.

Atacaram-na repetidamente cinco vezes, até que a oponente se viu de costas para um muro. Nesse momento, Daqshael investiu com uma estocada lateral, Kaliel a cortou pelo outro lado. Sem ter por onde fugir, Azra conseguiu aparar o golpe de Daqshael e mover-se um metro para o lado.

Esse metro não foi suficiente. A espada de Kaliel percorreu seu abdome, ras-gando-lhe a roupa negra e abrindo um caminho em seu fígado. Azra não pôde evitar um breve grito de dor.

Oriniel investiu contra Neberiah com uma sequencia simples de ataques. Pretendia fazer com que ele se concentrasse na defesa e, ao dar um passo para trás, se chocasse com um automóvel. Neberiah manteve sua posição e defen-deu os ataques de Oriniel, forçando-o a travar espadas com ele. Ficaram cara a cara: havia menos de cinco centímetros entre seus narizes. Dois pares de olhos negros se confrontaram em uma luta de intenções, os cabos de suas armas brigavam para encontrar o centro de gravidade do adversário e empurrá-lo rua afora.

Neberiah, havia séculos adaptado à vida terrena, concentrou-se nos músculos do corpo, comandou seus hormônios e enzimas e, em um esforço sobre-humano, lançou Oriniel mais de quatro metros para trás.

Oriniel retorceu seu corpo no ar como um gato. Esquivou-se, em pleno voo, de um carro que passava a seu lado e caiu, de pé, a poucos centímetros de um ônibus em movimento.

Tão logo caiu, porém, viu a ponta de uma lâmina surgir de seu peito. Neberiah havia corrido atrás dele após tê-lo arremessado rua afora e, assim que Oriniel pisou no chão, trespassara-o com sua espada.

Oriniel soltou um breve gemido. Sua mente, subitamente arrancada de seu corpo físico, emitiu um grito etéreo que todos os combatentes sentiram. Daqshael e Kaliel se viraram na direção dele a tempo de ver o amigo se desfazer, com roupa e tudo, na mesma luz que os criara havia instantes.

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Prólogo — Solstício

Sua luz tinha se apagado. Apenas a aura imponente de Neberiah permanecia.Azra, porém, assustada com os ataques da dupla de oponentes, aproveitou a

distração dos dois para sair correndo pela rua.Daqshael e Kaliel trocaram um breve olhar. Kaliel disse apenas:- Vá.De imediato, ele saiu no encalço de Azra, deixando Kaliel para confrontar

Neberiah.Kaliel voltou-se para seu novo oponente. Parados no meio da rua, fitavam-se

intensamente. Neberiah disse:— Não precisa ser assim.— Não precisa mesmo, Neberiah. Mesmo para você, mesmo agora, ainda há

uma chance.Neberiah riu.— Você não entende. Nós estamos lutando pela mesma coisa. Deixe que eu

lhe mostre o que está em jogo: até mesmo você vai concordar comigo.Por duas respirações, Kaliel considerou a oferta. Não pelas palavras, mas

porque toda a aura dele exalava sinceridade.— Você conhece as regras, Neberiah. Elas existem por um motivo. Não im-

porta quantas pessoas você salve. Você está acabando justamente com o que quer salvar.

Neberiah gritou, quase desesperado:— Mas eles vão se destruir!Kaliel respondeu, plácida:— É o direito deles.Neberiah girou a lâmina em suas mãos. Adotou uma postura ofensiva ao co-

locar a espada por sobre a cabeça e perguntou:— Por qual nome você atende aqui?Kaliel inverteu o sentido de sua espada, passando a segurá-la com a lâmina

para baixo em uma postura altamente defensiva. Respondeu:— Kaliel.— Então, Kaliel, vamos ver se a força de sua convicção é maior que a de seu

companheiro.Correram em direção um do outro, se encontraram em um segundo estrondo

metálico.

Daqshael correu por uma série de ruas secundárias, perseguindo Azra. Ferida e cansada, ela fugia no limite de sua capacidade. Procurava as ruas mais ermas para despistá-lo, mas as percepções de Daqshael a encontravam a cada esquina.

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Abascanto: a sombra dos caídos

Ela resolveu mudar a estratégia: virou uma esquina, percebeu uma longa fila de pessoas em frente a uma parede e um som abafado vindo do lado de dentro de uma porta. Estava diante de uma balada.

Vamos ver como ele se sai em um outro ambiente.Entrou pela porta sem que ninguém a percebesse.Daqshael virou a esquina a tempo de ver Azra entrar na casa noturna. Correu

em seu encalço, passou pela porta livremente e mergulhou no salão escuro.Foi invadido por uma forte tontura. Apoiou-se na parede para não cair ator-

doado no chão e, confuso, tentou compreender o que estava acontecendo.Suas percepções mentais, abertas como estavam às sensações de Azra, foram

inundadas por uma tormenta de pensamentos. A quantidade de pessoas abar-rotadas naquele lugar, as luzes ofuscantes, o cheiro de suor, fumaça, comida, a própria diversidade das personalidades: tudo isso o atingiu com mais eficácia que qualquer golpe de Azra.

Teve de se compor, retrair a mente, fechar os olhos de sua imaginação para poder se aclimatar àquele ambiente.

Meu Deus, que lugar é este?Até mesmo a visão física era difícil, no meio daquela fumaça e penumbra.

A audição era quase impraticável. A não mais de dez metros dele, um grupo de jovens gritava aos microfones e sacudia seus instrumentos. Não havia ninguém ali capaz de existir sem soltar algum uivo desconexo.

Completamente confuso, Daqshael cambaleou até o bar. Com o esforço, seu escudo mental havia caído, e as pessoas do local o estavam vendo e percebendo como se ele fosse mais uma delas.

Olhou ao redor. Ela tinha de estar ali. Mesmo incapacitado, ele não podia deixar de perceber o peso imenso da mente de Azra. Tentou estender suas per-cepções algumas vezes e se concentrar o suficiente para encontrá-la. O fluxo de emoções era sempre tão intenso que ele não tinha opção, exceto se retrair.

Foi quando a onda da intenção de Azra o atingiu.Azra, muito bem adaptada à vida no mundo físico, não tinha o menor prob-

lema com aquele ambiente. Havia subido uma escada e parado em um mezanino. Observava Daqshael, debruçado sobre o bar, olhando para todos os lados à pro-cura dela... praticamente indefeso.

Abriu um leve sorriso e expeliu de sua mente, em direção a todas as pessoas à sua volta, uma única ordem, um único desejo: o próprio Desejo. Ampliou os hormônios que já pairavam em todo aquele lugar.

Daqshael foi atingido pelo ataque psíquico e caiu ao chão, levando as mãos às têm-poras. Não só estava completamente atordoado, mas Azra tocara justamente seu pon-

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to fraco. A força opressiva daquele desejo foi tão grande que, mesmo focando toda a sua atenção, mesmo tentando se desligar dos estímulos externos, não pôde resistir.

Dezenas de pessoas se jogaram sobre ele. Todas as outras abandonaram com-pletamente a razão ao ceder ao comando de Azra. Daqshael tentou se desvencil-har da massa humana que o agarrava, mas também havia sido vencido por aquela influência mental. Não teve força suficiente para dar um passo sequer antes de perder completamente a razão.

Com um último olhar, viu Azra sorrindo, concentrada nele e nas pessoas que o sufocavam. Ergueu uma mão em direção a ela, tentou um contra-ataque psíquico e foi engolido pelas trevas.

Em poucos instantes de luta, Kaliel entendeu claramente que não tinha sido por sorte que Neberiah vencera Oriniel. Ele atacava com economia e defendia com a máxima cautela. Estava familiarizado com todos os ataques e contra-ataques da espada. Era um mestre naquela luta. Kaliel, por sua vez, tinha a seu favor apenas o vigor físico que acompanhava uma materialização recente. A perí-cia de Neberiah acabaria se impondo à inexperiência dela.

Kaliel desferiu uma série de seis ataques encadeados, forçando Neberiah a adotar uma postura defensiva. Tão logo terminou o último, recuou e correu, co-locando alguns metros de distância entre eles. Neberiah não a seguiu, esperando alguma artimanha.

Quando cinco metros os separavam, Kaliel se virou subitamente e, concen-trando sua atenção na espada caída de Oriniel, fez com que ela voasse em sua direção e pousasse sobre sua mão esquerda.

Neberiah lhe estendeu um leve sorriso:— Quantidade não é qualidade, Kaliel.Ergueu a espada em uma posição frontal defensiva. Kaliel levantou as duas

armas, uma em cada mão, colocando uma bem à sua frente e a outra acima da cabeça. Ela sabia que uma lâmina a mais conferia uma vantagem estratégica na defesa e nos contra-ataques, mas às custas da força e do controle que ambas as mãos davam a uma única espada. Ela estaria apenas adiando o inevitável se não mudasse radicalmente de estratégia.

Disparou pelo meio da rua e, dessa vez, Neberiah veio em seu encalço. Entrou no corredor que se formava entre os carros. Corria sem se concentrar na veloci-dade, confiando que a confusão do trânsito forçaria Neberiah a adotar um passo mais lento. Ocupava sua atenção com o ambiente ao redor: a umidade do ar, as partículas de poluição, as nuvens que nublavam a noite. Concentrava toda a sua energia em um único ponto, bem no meio da testa.

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Neberiah chegava cada vez mais perto. A certa altura, todos os veículos da rua pararam, atendendo a um semáforo logo adiante. Aproveitando a oportunidade, Neberiah pulou sobre o capô de um carro e passou a seguir Kaliel de salto em salto. A distância entre eles diminuiu, a lâmina de Neberiah pôde tocar a ponta dos cabelos de Kaliel.

Subitamente, Kaliel deu um salto de mais de três metros para o lado, o que a colocou no topo de um ônibus. Neberiah, apanhado completamente de surpresa, deu ainda dois saltos antes de se deter.

Kaliel, após se ver no teto do ônibus, saltou novamente para o lado, e outra vez ainda, e parou em frente à linha de carros que esperava o semáforo abrir. Colocou sete metros de distância entre ela e Neberiah.

Virou-se na direção do oponente. Neberiah já aparecia, saltando para o teto do ônibus. Liberou de uma vez só toda a energia concentrada.

Deu uma única ordem ao ar à sua frente: “Quebre!”.Atendendo a seu comando, as partículas de pó e poluição se separaram e for-

maram um caminho cilíndrico para cima.Ela tinha de ser rápida e precisa. A menor falha poderia lhe custar a vida física.

A energia liberada rompeu a resistência natural da atmosfera, venceu a imensa atração dos para-raios e estendeu, do chão aos céus, um cone de energia psíquica.

Neberiah saltou do ônibus e pousou no teto de um carro bem à frente de Ka-liel. Em seu último salto, ergueu a espada. Cairia sobre a adversária usando toda a força da queda para aumentar o impacto.

Quando ele estava em pleno ar, Kaliel transmitiu, não a ele, mas ao ar que o cercava, uma última dose de energia, um último impulso de força concentrada, voltado ao céu...

Todas as nuvens são carregadas com a intenção de voltar para a Terra. Sua leveza, porém, as impede. Às vezes, quando muitas delas se encontram, sua in-tenção se torna tão forte que elas rompem o ar e descarregam seu desejo no solo.

É assim que se formam os raios.Ao emitir seu impulso, Kaliel rompeu a resistência do ar no local por onde

Neberiah passava. Com um último comando, ordenou às nuvens do céu que con-centrassem seu desejo no caminho que ela havia criado.

Um imenso raio elétrico atingiu Neberiah em pleno ar.O impacto do estrondo foi tão grande que Kaliel foi jogada dois metros para

trás, completamente surda.A proteção mental que ambos usavam, e que impedia as pessoas de os perceber,

não era forte o suficiente para que um trovão no meio da rua passasse despercebido.

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Prólogo — Solstício

Imediatamente após o raio, gritos de pavor e susto cercaram Kaliel e Neberiah. As pessoas saíram de seus carros, de olhos arregalados, tentando acreditar no que viram.

Neberiah perdeu a concentração e o equilíbrio e bateu estrondosamente no chão. Rolou ainda por vários metros com a roupa em chamas. Cada músculo de seu corpo gritava de dor. Não era capaz de realizar nenhum movimento coerente. Nem sequer sabia o que o havia atingido.

Tentou se arrastar para a calçada, mas, quando estava a meio caminho, Kaliel caiu sobre ele, cravando ambas as espadas em seu tronco.

— O que você me diz agora sobre a força de minhas convicções, Neberiah?A resposta foi um urro longo, rouco, grave e solitário. As mãos de Kaliel trem-

eram quando o corpo de Neberiah se desenrolou em uma sequencia de liames luminosos. Adaptado havia séculos à vida física, ele se desfez em uma grande luz e se decompôs em pó.

Completamente exausta, Kaliel recostou-se em um poste enquanto recom-punha seu escudo mental. As pernas mal a sustentavam. Sua mente estava es-gotada. Havia apostado tudo naquele raio e só o que lhe restava era o prazer de poder continuar respirando.

Alheia à confusão das pessoas, alheia ao congestionamento infernal que se formava e à orquestra de buzinas, só o que ela queria era poder voltar para Casa.

Esse retorno, porém, teria de esperar. Kaliel sentiu uma forte pressão sobre seus pensamentos: uma grande carga emocional, uma onda de intenções dire-cionada a ela.

Era Daqshael, e precisava de ajuda.Kaliel se ergueu, ainda empunhando as duas espadas, se permitiu um instante

de introspecção, pensando se algum dia encontraria sossego neste mundo carnal. Inspirou fundo e partiu.

Enquanto caminhava, recebeu de Daqshael as mais diversas e estranhas sen-sações. De imediato, percebeu medo. Logo depois, confusão. Em seguida, as emoções começaram a flutuar, enlouquecidas. Ora prazer, ora repulsa. Ora pedia ajuda, ora procurava se esconder dela. Uma coisa, porém, era clara: Daqshael estava extremamente enfraquecido. Comparável até mesmo aos mortais. Só isso já era suficiente para que Kaliel fosse em seu auxílio.

Quando virou a esquina e viu a parede escura da casa noturna, Kaliel sentiu de imediato o peso de outra mente que procurava se ocultar.

Azra ainda estava ali.O barulho que antes havia caracterizado aquela casa tinha cessado por com-

pleto. A fila havia se dispersado e, em seu lugar, vários policiais organizavam a

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saída das pessoas. Dezenas de jovens eram escoltados para fora, com feições — e as emoções — as mais controversas. Havia um ar de constrangimento geral. As mulheres eram as mais assustadas.

Parecia a Kaliel que todos ali haviam sido violentados. Parou à entrada, pro-curando por Daqshael ou Azra com seus pensamentos.

Achou seu amigo quase imediatamente. Ele ainda estava lá dentro, inconsci-ente, junto com um bom grupo de pessoas desacordadas.

Quanto a Azra, Kaliel tinha apenas uma sensação genérica sobre a presença dela. Com as duas espadas em punho, concentrou-se intensamente naquela mul-her. Procurou identificar ao menos em que direção ela estava.

Kaliel a encontrou. Não com sua mente, mas por causa da porta de vidro da casa noturna. Refletida na porta estava a imagem de Azra se esgueirando por trás dela e sentindo o lado direito do abdome. Azra estava de costas.

Não poderia ser mais fácil!Saltou em direção à adversária. Azra, absorta em sua escapada furtiva, só per-

cebeu o impacto em suas costas e a lâmina que lhe saiu pelo peito.Caiu, incrédula, no chão. Observou a protuberância metálica que impediria

seu corpo de funcionar em alguns instantes. Com o máximo de concentração, or-denou que seu corpo se mantivesse ativo. Sustentou seu cérebro unicamente com a força de seu espírito. Tentou desajeitadamente retirar a lâmina de seu peito.

Kaliel se surpreendeu com o autocontrole que Azra exercia sobre si mesma. Mas nem mesmo ela poderia ignorar um coração perfurado durante muito tem-po. Estava quase desmaiada. Lutava para se manter naquele plano de existência.

Kaliel retirou sua espada do peito de Azra e a cravou na cabeça da oponente. No mesmo instante, Azra se desfez em uma súbita dança de luzes enegrecidas e pó mais leve que o ar.

Que noite!Kaliel suspirou e entrou na casa noturna. Alguns médicos acudiam as pessoas,

tentando ainda entender o que havia ocorrido. Encontrou Daqshael deitado em uma maca. Pegou o amigo pelo ombro, estendendo sua proteção a ele, e o tirou daquele lugar.

Não voltaria para Casa durante algum tempo ainda, mas certamente merecia um bom descanso...

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Em uma rua isolada da cidade, três seres se materializam em pleno ar. Grigori: guardiões de outra dimensão que lutam para proteger a humanidade da influência de seus irmãos caídos.

Érico nunca imaginou que eles sequer existiam, ou que seu pai fosse um deles. Após testemunhar uma luta entre estes seres, sua vida se transforma em uma corrida para sal-var a si mesmo, sua família, seus amigos.

Sua única vantagem: o Abascanto, ser imune aos poderes sobrenaturais dos caídos e dos grigori. Com ele, terá de impedir os planos que um ser de sete mil anos têm para a humanidade...

E rezar para que a irmã faça a escolha certa.