a voz do documentario

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  • 8/18/2019 A voz do documentario

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    A voz o documentário

    Bill Nichols

    Vale a pena insistir no fato de que as estratégias e os estilos utilizado nodocumentário, assim como os do filme narrativo, mudam. Eles t êm urna história. E mudam em grande parte pelas mesmas razões: os modo s dominantesdo discurso expositivo mudam, assim como a arena do debate ideológico. Orealismo confortavelmente aceito por uma geração parece um artifício para ageração seguinte. Novas estratégias precisam ser constantemente elaboradaspara representar as coisas como elas são", e outras para contestar e a representação.

    Na história do documentário, podemos identificar no mínimo quatroprincipais estilos, cada um deles com características formais e ideológicas distintas. 1 Neste artigo, proponho examinar as limitações e as vantagens dess asestratégias, com especial atenção àquela que é ao mesmo temp o a mais novae, em alguns sentidos, a mais antiga de todas elas. 2

    Título original "The Voice of Documentar y", em Film Quarterly, 36 3) , prima vera de 19 3, pp. 259-273. Tradução de Eliana Rocha Vieira.

    1 Muitas das características qu e distinguem o documentário são amplamente analisadas em Bill icho ls,Ideology and the Image (Bloomington: Indiana University Press, 1981) , pp. 170-2 Detenho-me aquiem filmes mais recentes e em alguns problemas específicos que eles suscitam .

    2 Os filmes citados no artigo ou que serviram para a formulação das questões relah\ ·as ao documentár ioauto-reflexivo são: The Atomic Cafe (Kevin Rafferty, Jayne Loader e Pier ce Raff erty. 19 2), ControllingInterest (São Francisco Newsreel, 1978), The Day A/ter Trinity (Jon Els e, 198 0), Harlan County, USA(Barbara Kopple, 1976), Hollywood on Triai (David Halpem Jr., 1976) , Models (Fred \Yiseman, 1981),Nu011e frontieras Looking for Better Dreams) (Remo Legnazzi, 1981) , On Company Business (AllanFrancovich, 1981), Prison for Women (Janice Cole e Holly Dale, 1981) , Rape (Jo Ann Elam , 1977), ARespectable Life (Stefan Jarl , 1980) , [The Life and Times of] Rosie the Riveter (Connie Field , 1980), The SadSong of Yellow Skin (Michael Rubbo, 1970) , Soldier Girls (Nick Broomfi eld e Joan Churchill, 1981) ,They Cal Us Misfits (Jan Lindquist e Stefan Jarl, 1969), This Is ota Lave Story (Bo nnie Klein, 1981),T Je Triais of Alger Hiss (John Lowenthal , 1980) , Union Maids (Jim Klein , Julia Reicher t e MilesMogulescu, 1976), Who Killed lhe Fourth Ward7 (James Blue, 1978), The Wilmar 8 (Lee Grant, 1980),With Babies and Banners (Women's Labor History Film Project, 19 7 8), A Wi Je's Tale (SophieBissonnett e, Martin Duckworth e Joyce Rock , 1980), The Wobblies (Stuart Bird e Deborah Shaffer,1979) , Word Is Out (Mariposa Collec tive, 1977).

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    Cinema documentário

    O estilo de discurso direto da tradição griersoniana (ou, em sua formamais exagerada, o estilo voz-de-Deus de The March ofTime * foi a primeiraforma acabada de documentário. Como convém a uma escola de propósitosdidáticos, utilizava uma narração fora-de-campo, supostamente autorizada,

    mas quase sempre arrogante. Em muitos casos, essa narração chegava a dominar os elementos visuais, embora pudesse ser poética e evocativa, como emfilmes como Night Mail [Basil Wrigh, Harry Watt e Alberto Cavalcanti, 1936]ou Listen to Britain [Humphrey Jennings, 1942]. Depois da Segunda GuerraMundial, o estilo griersoniano deixou de agradar (por razões que mencionareimais tarde) e caiu em desuso - exceto na televisão, onde continuou sendousado em noticiários, programas de jogos e talk shows, em praticamente todosos anúncios e na maioria dos documentários especiais.

    Seu sucessor, o cinema direto,·· prometia um aumento do efeito verdade graças à objetividade, ao imediatismo e à impressão de capturar fielmenteacontecimentos ocorridos na vida cotidiana de determinadas pessoas. Filmescomo Crônica de um verão [Chronique d'un été, Jean Rouch, 1960], Le joli mai[Chris Marker, 1965], Lonely Boy [Wolf Koenig e Roman Kroitor, 1962], TheBack-Breaking Leaf [Terence Macartney-Filgate, 1959], Primary [RichardLeacock, Albert Maysles e Don Pennebaker, 1960] e The Chair [Richard Leacocke Don Pennebaker, 1962] aproveitaram as novas possibi lidades técnicas oferecidas por câmeras portáteis e gravadores de som, que podiam produzir umdiálogo sincrónico nas locações. Nos filmes de puro cinema direto, o estilobusca tomar-se transparente , como o estilo clássico de Hollywood- captando as pessoas em ação e deixando que o espectador tire conclusões sobre elassem a ajuda de nenhum comentário, implícito ou explícito.

    The M ar ch of Time foi o mais popular cinejornal norte-americano, exibido entre 1935 e 1951. Decaráter co nservador, misturava tomadas encenadas, imagens de arquivo e filmagens de fatos contemp o râneos , com uma grandiloqüente voz fora-de-campo narrando e interpretando os eventos.N d o O .)

    ·· Cin éma vérit é no original. A tradição crítica norte-americana mantém o termo em francês para designar um estil o documentário que, em português, denominamos cinema direto. O termo cinemaverdade envolve estratégias mais fortes de interferência do diretor (como entrevistas e autoreferência). Optamos por estabelecer essa diferenciação (nem sempre clara) traduzindo o cinémavérif é dos críticos norte-americanos por cinema direto. Na realidade, ocorre aqui um estranho cruzamento: os americanos usam o termo francês cinéma vérité , enquanto os franceses e canadenses usama expressão direct cinema cinéma direcf), de origem americana, para designar o mesmo universo. Ocinéma vérif é francês (marcado pela estilística de Jean Rouch) não é, portanto, o cinéma vérité queencontramos em textos am e ricanos. Neste trecho, Bill Nichols não é preciso com os horizontesestilísticos que designa: o cinema de Rouch e Chris Marker não se enquadram na mesma tradição dogrupo Drew. (N. do O.)

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    uoz d o d o cum e á ri o

    Às vezes fascinantes, quasesempre gerando perplexidade, esses filmesraramente ofereciam o sensode história, contextoou perspectivaque o espectador busca encontrar.Nos anos 1970,vimos o surgimento de um terceiroestilo,que incorpora o discurso direto (noqual personagens ou narrador falam diretamente ao espectador),geralmente na formade entrevistas.Numainfinidade de filmes políticos e feministas, os participantes se colocavam diante da câmerapara dar seu testemunho. Às vezesprofundamente reveladores,às vezes fragmentados e incompletos, esses filmes forneceram omodelo parao documentário contemporâneo. Mas, corno estratégia e corno forma, o filmede entrevistastem os seus problemas.

    Mais recentemente parece ter-se iniciado urnaquarta fase, em que os

    filmesassumem formas mais complexas, quetomam mais visíveis os pressupostos estéticos e epistemológicos. Esse novo documentário auto-reflexivo mitura passagens observacionaiscom entrevistas, avoz sobreposta do diretorcom intertítulos,deixando patente o que esteve implícito otempo todo: odocumentário sempre foi urnaforma de re-presentação, enunca urna janelaaberta para a realidade . O cineastasempre foi testemunha participante eativo fabricantede significados,sempre foi muito maisum produtor de dis

    curso cinemáticodo que um repórterneutro ou oniscienteda verdadeira realidade das coisas.Por ironia, a teoriado cinematem sido de pouca ajuda nessa evolução

    recentedo documentário,apesar de sua enorme contribuiçãopara a abordagem de questões relativas àprodução de sentido nas formas narrativas.Nodocumentário, a obra inovadora maisavançada extraisua inspiraçãomenosde modelos de discurso pós-estruturalistasdo que de procedimentos de documentação e validação praticadospor cineastas etnográficos.E corno influência sobre a históriado cinema, hoje a figurade Dziga Vertovavulta muitomaisque as de Flahertyou Grierson.

    Não pretendo afirmar que o documentário auto-reflexivo representaumápiceou urna solução. Entretanto, éum ponto culminante na evoluçãodealternativas que,no presente contexto histórico,parecem menos problemáticasdo que as estratégiasdo comentário fora-de-campo,do cinema direto,ouda entrevista.Como suas antecessoras, essasnovas formaspodem parecermais naturais ou até mesmo mais realistas por algum tempo,mas o sucessode cada nova formaengendra sua própria decadência: ela limita, omite,nega, reprime (assim corno representa).Com o tempo,novas necessidadesgeram novas invenções formais.

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    Como sugeri mos acima, na evolução do documentário a disputa entreformas centrou-se na questão da voz . Por voz refiro-me a algo mais restrito que o estilo: aquilo que, no texto, nos transmite o ponto de vista social, amaneira como ele nos fala ou como organiza o material que nos apresenta.

    esse sentido, voz não se restringe a um código ou característica, como odiálogo ou o comentá rio narrado. Voz talvez seja algo semelhante àquele padrão intangível, forma do pela interação de todos os códigos de um filme, e seaplica a todos os tipos de documentário.

    ~ u i t o scineastas contemporâneos parecem ter perdido a voz. Politicamente, renunciam à própria voz em favor da de outros (em geral, personagensrecrutad o para o filme e entrevistados). Formalmente, rejeitam a complexidade da YOZ e do discurso pela aparente simplicidade da observação fiel ou darepresentação respei tosa, pela traiçoeira simplicidade do empirismo não questionado do tipo: as ver dades do mundo existem; só é preciso tirar-lhes a poeira erelata- las . : .\1uitos documentaristas parecem acreditar naquilo em que os diretores de ficção apenas fingem acreditar ou que declaradamente questionam:que o filme cria uma representação objetiva da realidade. Esses documentaristasusam o molde mágico da verossimilhança sem recorrer abertamente ao artifício, como faz o cineasta contador de histórias. Poucos estão preparados para

    admitir, através do tecido e da textura de sua obra, que todo filme é uma formade discurso que fabrica seus própr ios efeitos, impressões e pontos de vista.

    indispensáve l que o documentarista reconheça o que realmente estáfazendo. : \ão para ser aceito como moderno, mas para produzir documentáriosque correspondam a uma visão mais contemporânea de nossa posição nomundo , de modo que possam emergir estratégias políticas/formais efetivaspara descrever e desafiar essa posição. Já existem estratégias e técnicas parafazer isso. : \o documentário, elas parecem derivar diretamente de O homem

    da câmera [Dziga Vertov, 1929] e de Crônica de um verão e estão nitidamenteexemplificadas na trilogia turkana · de David e Judith MacDougall (Lorang sWay, Wedding Camels, A Wife Among Wives . Mas, antes de discutir mais afundo essa tendência, devemos examinar as qualidades e limitações do cinema direto e do filme de entrevistas. São estilos que estão bem representadospor dois filmes recentes de sucesso: Soldier Girls [Nick Broomfield e JoanChurchil l, 1981] e [The Life and Times oj] Rosie the Riveter [Connie Field, 1980].

    · Turkan os são um povo seminômade do noro es te do Quênia. (N. da T.)

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    A oz do docum entário

    :I:er r ls mostra um situação contemporânea: o treinamento militar vo-ario de mulheres. Puramente observacional, Soldier irls não traz nenhum

    en tário, nenhuma entrevista e nenhum título, e, como os filmes de Fred

    i..'€rn an, desperta consideráveis controvérsias sobre seu ponto de vista. Um_ JeCt ador no Filmex perguntou: Como eles conseguiram convencer o Exér-- a deixar que fizessem um filme tão antimilitarista? . Entretanto, o que

    ::-ara esse espectador foi uma forte crítica, para outro pode significar um retraon esto da dura disciplina necessária para aprender a se defender, a sobre

    : ·er em ambientes hostis, a matar. Como nos filmes de Wiseman, as estraté'- 'as o rganizacionais estabelecem uma leitura preferencial - nesse caso, uma

    e rur a que privilegia o pessoal em detrimento do político, que visa e celebraa :: irru pções do sentimento e da consciência individuais diante das restrições:L5titu cionais, que reescreve o processo histórico como expressão de uma es- - eia humana indomável, sob qualquer circunstância. Mas essas estratégias,:: ::np lexas e sutis como as da ficção realista, tendem a atribuir ao material• ~ or i osignificados que na verdade são resultado do estilo ou da voz do

    ·:ne, da mesma forma que as estratégias da ficção nos convidam a acreditar

    Je a vida é como o mundo imaginário habitado por seus personagens.Antes da apresentação dos créditos, uma seqüência de exercícios com

    :: ê voluntárias termina com a imagem congelada e um fechamento em íris: o ros to de cada mulher. À semelhança das vinhetas clássicas de Hollywood,

    ....:ad as para identificar os astros principais, essa seqüência inaugura um con.u..'lto de estratégias que ligam Soldier Girls a uma grande parcela do cinema

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    Cinema documc tário

    presença social de alguém que também veríamos se estivéssemos lá para olharcom nos sos próprios o lhos. Quando a narrativa de Soldier irls culmina nummoment o de revelação da personagem, parece ser uma feliz coincidência entre a estrutura dramática e o desenrolar dos fatos históricos. Em uma extraor

    din ária epifania, caracterís tica do estilo direto, o durão sargento Abing abre-see confessa à recruta Hall que sua humanidade e sua alma foram profundamente destruídas pela exp eriência vivida no Vietnã. Com esse recurso, o filme transcende as ca tegorias social e política que revela, mas se recusa a nomear. Em \'ez de o pessoal tomar-se político, é o polít ico que se toma pessoal.

    > : unca ouvimos a voz do diretor ou de um narrador tentando nos persuadir desse humanis mo romântico. Ao contrário, a est rutura do filme se apóia

    fortemente nos procedimentos da narrativa clássica, entre eles: 1 a cronologia de eYidente causalidade, que mostra como cada uma das três recrutasresolYe o conflito entre o senso de sua própria individualidade e a disciplinamilitar; 2 planos org anizados em cenas dramaticamente reveladoras que apenasno final do filme reconhecem a câmera como participante-observador (quando uma das recrutas abraça os cineastas ao deixar a base de treinamento, dispensada por sua incapacidade de se adaptar); e 3 excelentes desempenhos

    de per onagens que representam a si mesmos sem nenhuma inibição. (Ofenômeno de filmar indivíduos que representam a si mesmos como atoresprofissionais já vale ria per se uma extensa pesquisa.) Esses procedimentos permitem que docume ntários puramente observacionais assintoticamente diminuam a distância entre o realismo fabricado e a aparente captura da realidademesma, que tanto fascinou André Bazin.

    Essa distância também pode ser vista como a diferença entre evidência

    e argumento.3

    Um dos fascínios do filme é justamente a facilidade com queele funde ambos . O documentário traz em si uma tensão que nasce dasasserções genéricas que faz sobre a vida, ao mesmo tempo que usa sons eimagens que carrega m a marca inevitável da singularidade de suas origenshist óricas. Esses sons e imagens acabam funcionando como signos. Carregamsignificados, embora, de fato, esse significado não seja inerente a eles, mas, aocontrário, lhes tenha sido conferido por sua função dentro do texto como um

    todo. Podem os imaginar que a história ou a realidade fale a nós através de um

    3 Os exemplos mais extremos de evidência e argumentação oc o rr e m tal vez na pornografia e napropaganda: o que seria da pornografia se m sua evidê nc ia , e o qu e seria da propaganda sem seusargumentos?

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    voz o doeu men tá rio

    fü.me mas o que realmente ouvimos é a voz do texto, mesmo quando essavoz tenta se apagar.

    ão é apenas uma questão de semiótica, mas de processo histórico.Aqueles que estabelecem significados (indivíduos , classes sociais, a mídia eoutr as instituições) aparecem por dentro da história propriamente, muito maisdo que na periferia, espiando como deuses. Portanto, paradoxalmente, a auto:eferencialidade é uma categoria comunicacional inevitável. Uma classe não?Ode ser membro de si mesma - é isso o que nos diz a tipologia lógica. Noentanto, na comunicação humana, essa lei é necessariamente violada. Aquelesque estabelecem significados são membros da classe dos significados conferiàos (história). Para um filme, deixar de admitir isso e fingir onisciência- sejaatravés de um comentário do tipo voz-de-Deus , seja por alegações de conhecimento objetivo - é negar sua cumplicidad e com uma produção de conhecimento que não se apóia em nenhum alicerce mais firme do que o próprio ato de produção. (Tomam-se então vitais as pressuposições, os valores eobje tivos que motivam essa produção, os alicerces que algumas estratégiasmodernas tentam deixar mais claros.) 4

    O documentário observacional parece deixar a decisão por nossa conta.: \ inguém nos diz nada sobre as imagens que vemos ou sobre o que elas significam. Mesmo as marcas evidentes da textualidade do documentário - somabafado, imagens desfocadas, figuras granuladas e fracamente iluminadas deatores sociais apanhados às pressas - funcionam paradoxalmente. Sua pre-ença é testemunho de uma ausência aparentemente mais básica: tais filmesacrificam a expressão artística convencional, retocada, com a final idade de

    trazer de volta em sua feitura, da melhor forma possível, a verdadeira texturada história. Se a câmera gira violentamente ou pára de funcionar, não se tratada expressão de um estilo pessoal. sinal de perigo pessoal, como em Harlan

    ' Sem modelos de estratégia para documentários que nos convidem a refletir sobre a construção darealidade social, temos apenas um ato de negação corretivo ( isso não é real, nem onisciente, nemo bjetivo ), em vez de um ato afirmativo de compreensão ( isso é um texto , esses são seus pressupostos, esse é o sentido que ele produz ). A falta desse convite para assumir uma postura positiva nosimpede de entender plenamente a posição que ocupamos. Recusar uma posição que nos é oferecida émuito diferente de afirmar uma posição que construímos ativamente. como se recusar a comprarintegralmente mensagens transmitidas pela propaganda, sem possuir ainda uma alternativa não-fetichista de apresentação das mercadorias que nos permita ganhar um diferente va lor de compra sobre seuvalor relativo de uso - ou de troca. Passar da recusa à afirmação, do protesto contra a realidade dascoisas à construção de alternativas duradouras, é precisamente o problema da esquerda norte-americana. As estratégias modernas têm uma contribuição a dar à solução desse problema.

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    Cinema docu ment á ri o

    County USA [Barbara Kopple, 1976] , ou mesmo de morte, como na cena derua de La batalla de hil e [Patrício Guzmán 1973-1979], quando o câmeraregistra o momento de sua própria morte.

    Essa passagem da expressividade artística para a revelação históricacontribui fortemente para o efeito fenomenológico do filme observacional.Soldi er Girls They all Us Misfits [Jan Lindquist e Stefan Jarl, 1969], suacontinuação A Respectable Life [Stefan Jarl, 1980], e o filme mais recente deFred Wi seman Models [1981] propõem revelações sobre o real não comoresultado de argumentação direta, mas com base nas inferências que extraímos da própria evidência histórica. They all Us Misfits por exemplo ex

    traordinário filme de Stefan J arl, contém uma cena puramente observacionalde seus protagonistas (dois jovens desajustados de 17 anos, que saíram decasa para viver uma vida de bebedeiras drogas e diversão em Estocolmo),assim que se levantam pela manhã. Kenta lava seus longos cabelos, seca-os edepois meticulosamente penteia cada fio em seu lugar. Stoffe não dá amenor importância ao cabelo. Em vez disso, ferve água para fazer chá, despejando-a sobre um saquinho que ele nem sequer tira do envelope Vamos

    reencontrar os dois garotos em A Respectable Life filmado dez anos depois.Ficamos sabendo que Stoffe quase morreu de três overdoses de heroínaenquanto Kenta se livrou das drogas pesadas e começou uma carreira decantor. A essa altura podemos perceber retroativamente um tecido maisdenso de significado naqueles pequeno s rituais matinais registrados uma

    década antes. Dessa maneira nós os tomamos mais como evidências de determinações históricas do que como visões artísticas - embora só tenham setomado disponíveis para nós graças a estratégias textuais. Mais genericamente os sinais auditivos e visuais do que dez anos de vida dura causaramà aparência vivaz dos dois jovens - a pele avermelhada os olhos escuros eapagado s, a fala truncada e confusa, principalmente de Stoffe - carregamsignificado precisamente porque os filmes convidam a uma comparação retroativa . Os filmes produzem a estrutura na qual os próprios "fatos" adquirem significado exatamente porque pertencem a uma série coerente de diferenças. No entanto embora forte, essa construção de diferenças continuainsuficiente. Prevalece uma linha simplista de progressão histórica, centrada,como em Soldi er Girl s na metáfora do individualismo romântico. (Em lugar da teoria do grande homem temos a teoria histórica da vítima infeliz -inadequada mas apresentada de maneira convincente .)

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    A voz d o documentário

    E mesmo quando o cinema observacional muda seu foco do individualpara o institucional, e da narrativa metonímica para a metafórica, como nainovadora obra de Fred Wiseman, ainda assim há apenas um fraco senso deconstrução de significados, de uma voz textual dirigindo-se a nós. Uma leitura vigorosa, ativa e retroativa é necessária antes que possamos ouvir a voz dosistema textual como um nível distinto dos sons e imagens da evidência queele traz, ao mesmo tempo que permanecem dúvidas quanto à adequação. EmWiseman, o senso de contexto e significado como função do próprio textocontinua enfraquecido, sendo facilmente destruído pela fascinação que nospermite confundir cinema e realidade, a impressão de realidade com a experiência de realidade. O risco de ler Soldier Girls ou Models de Wiseman, como

    um teste Rorschach talvez exija medidas mais fortes que as sutilezas de suacomplexa montagem e encenação oferecem.

    Impelidos aparentemente por essas limitações próprias do cinema direto ou observacional, muitos cineastas reinstituíram a enunciação direta no sanos 1970. Na maior parte das vezes, isso consistiu em entrevistas nas quais osatores sociais se dirigem diretamente a nós, e não no retomo à voz cheia deautoridade de um narrador . [The Life and Times oj] Rosie the Riveter por exemplo, fala da flagrante hipocrisia com que as mulheres eram recrutadas para asfábricas e linhas de montagem durante a Segunda Guerra Mundial. Cincomulheres contam que não lhes conferiam o mesmo respeito que aos homens,que recebiam salários inferiores, que lhes diziam para suportar como umhomem as condições perigosas e que as instigavam umas contra as outraspor motivos raciais. Rosie ignora o nobre ícone da mulher trabalhadora veiculado pelos cinejomais dos anos 1940, que celebravam sua heróica contribuição ao grande esforço para livrar o mundo da ditadura fascista. osie destrói o

    mito da contribuição profundamente apreciada e recompensada, sem negar agenuína coragem, força e consciência política de mulheres que vivenciavamuma contínua frustração em sua luta por condições dignas de trabalho e umlugar permanente no mercado de trabalho americano.

    Utilizando entrevistas (mas nenhum comentarista), ilustradas por umasérie de imagens de arquivo, a diretora Connie Field conta uma história quemuitos de nós julgamos já ter ouvido, mas que só então percebemos não co

    nhecer inteiramente. A organização do filme baseia-se em grande parte nasextensas entrevistas com antigas Rosies . Sua seleção obedece à tradição docinema direto de filmar pessoas comuns. Mas [The Life and Times oj] Rosie the

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    Riveter amplia essa tradição, assim como Union Maids [Jim Klein, Julia Reicherte Miles Mogulescu, 1976], The Wobblies [Stuart Bird e Deborah Shaffer, 1979]e With Babies and Banners [Women's Labor History Film Project, 1978] já haviam feito, ao recuperar a memória de uma história invisível (na verdade,mais reprimida do que esquecida) da luta trabalhadora. As cinco entrevistadas lembram um passado que as imagens históricas inseridas no filme reconstroem, mas em contraponto: suas lembranças de adversidade e luta contrastam com os velhos cinejomais que retratavam mulheres felizes em fazera sua parte .

    Essa estratégia complica a voz do filme de uma maneira interessante.Acrescenta compilação de cenas do arquivo uma ressonância pessoal e contemporânea, sem questionar explicitamente os pressupostos dessas cenas,

    como poderia fazer a voz de um narrador fora-de-campo. Cabe a nós, espectadores , definir em que os depoimentos femininos se contrapõem a esses documentos históricos e de que maneira exprimem a consciência presente epassada dessas mulheres em uma dimensão política, ética e feminista.

    Somos encorajados a acreditar que essas vozes têm a autoridade de umtestemunho pessoal, não de um julgamento histórico- afinal, trata-se aparentemente de mulheres comuns lembrando o passado. Como em muitos filmes

    que colocam questões levantadas pelo movimento feminista, a ênfase recai sobre a experiência pessoal, mas politicamente significativa. Rosie demonstra aforça do ato de dar nomes - a capacidade de encontrar palavras que tomem opessoal político. Essa confiança na história oral para reconstruir o passado insere[The Life and Times oj] Rosie the Riveter naquele que, provavelmente, é hoje oestilo predominante de documentário - filmes construídos ao redor de umasérie de entrevistas-, categoria na qual também encontramos A Wive s Tale

    [Sophie Bissonnette, Martin Duckworth e Joyce Rock, 1980], With Babies andBanners, Controlling Interest [San Francisco Newsreel, 1978], The Day After Trinity[Jon Else, 1980] , The Trials of Alger Hiss [John Lowenthal, 1980], Rape [Jo nn

    Elam, 1977] , Word Is Out [Mariposa Collective, 1977], Prison for Women [JaniceCole e Holly Dale, 1981], This Is ota Lave Story [Bonnie Klein, 1981], Nuovefrontieras (Lookingfor Better Dreams [Remo Legnazzi, 1981] e The Wobblies.

    Essa reinstituição do discurso direto por meio da entrevista conseguiu

    evitar alguns dos principais problemas da narração com voz fora-de-campo,em particular a onisciência autoritária e o reducionismo didático. Não existemais a pretensão dúbia de que as coisas são como o filme as apresenta, tal

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    comoorganizadas pelo comentáriode um sujeitoque tudo sabe. Essas tentativasde colocar-se acimada história e explicá-lacriam um paradoxo. Qualquer esforçodo narrador para garantirsua própria legitimidade noslembra oparadoxo cretense: Epimênides era um cretenseque dizia: 'Todo cretensemente'. Estava Epimênidesdizendo a verdade? . A sensação incômoda causada por uma declaraçãoauto-referente que não pode ser provada atingesuamaior intensidade nas afirmações mais veementes, oque talvez expliqueporque os espectadores geralmente desconfiam mais daquilo que uma voz daautoridade, aparentemente onisciente, afirmacom mais convicção. A emergênciade tantos documentários construídos em tomo de seqüências de entrevistasme pareceuma resposta estratégicaao reconhecimentode que nem

    os fatos falampor si mesmos,nem uma únicavoz pode falarcom autoridadedefinitiva. Asentrevistas tomam a autoridade difusa.Permanece um hiatoentre a voz do ator socialrecrutado para o filmee a vozdo filme.

    Não tendo que atestar sua legitimidade , as vozesdos entrevistados levantam menos suspeitas.Ainda assim,uma voz coercitivapode continuarexistindopara oferecer,ou retirar, legitimidade.Em The Sad Son g of YellowSkin [Michael Rubbo, 1970],The Wilmar 8 [Lee Grant, 1980], Harlan County

    USA Thiss

    Nota Lave Story ou Who Kill ed the Fourth Ward [James Blue,1978],entre outros, avoz literaldo cineasta participa do diálogo, mas sem aautolegitimação e otom autoritárioda tradição anterior. (Tambémnão possuio caráter auto-reflexivo presentenas obrasde Vertov, Rouchou MacDougall.)Expressando-se co mo num diário e em tom inseguro,como em Yellow Skin;ou dirigindo-se àsmulheres grevistas como sepor meiode uma companheiraparticipante e observadora, em Wilmar 8 e Harlan County; ou compartilhando reações pessoais à pornografiacom um companheiro, comoem This s Nota Lave Story; ou, como em Who Killed the Fourth Ward adotando um tomjocoso e irônico ao estilodo Columbo de Peter Falk- essas vozes,que teriamo potencialde transmitir segurança,na verdade partilham dúvidas e emoçõescom outros personagens e com o espectador.Como resultado,parecem recusar uma posiçãoprivilegiada em relação aoutros personagens. Éclaroqueessas vozes autorais menos assertivas continuam cúmplicesda voz dominadorado próprio sistematextual, mas o efeito sobre oespectador é muito diferente.

    Ainda assim, as entrevistastêm seus problemas,que ocorrem com notável abrangência -desde The Hour of the Wolf a Th e MacNeil/Leher Report e deHousing Problems [AnsteyEdgar e Elton Arthur, 1935] aHarlan County USA

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    O maior desses problemas, ao menos nos documentários mais recentes, é conservarem o senso de que existe uma distância entre a voz dos entrevistados e avoz do texto como um todo . Isso é mais evidente quando os entrevistados revelam uma inadequação conceituai em relação à questão, mas não são contesta

    dos pelo filme . The Day fter Trinity, por exemplo, acompanha a carreira deRobert F Oppenheimer, mas se restringe à teoria histórica do grande homem.A série de entrevistas identifica nitidamente o papel de Oppenheimer na corrida pela construção da bomba nuclear, assim como seus equívocos, mas jamaisin se re a bomba ou o próprio Oppenheimer dentro do amplo quadro de políticas governamentais e previsões políticas que determinaram seu uso específico esua contínua ameaça - embora as entrevistas tenham ocorrido em anos recentes. Além de um texto que parece não ter voz nem perspectiva própria , a perspectiva do personagem-testemunha é evidentemente inadequada.

    Nos documentários, quando a voz do texto desaparece por trás dos personagens que falam ao espectador, estamos diante de uma estratégia de nãomenos importância ideológica que a dos filmes de ficção equivalentes . Quando sentimos que não existe mais uma voz autoritária capaz de conceder ounegar o imprimatur de veracidade de acordo com seus objetivos e pressupostos, de acordo com seus próprios cânones de legitimação, sentimos retomar oparadoxo e a suspeição dos quais as entrevistas deveriam ajudar-nos a escapar: o testemunho, aceito sem crítica, deve oferecer sua própria legitimação.Ao mesmo tempo, o filme se toma um endosso. Em graus variáveis, esseenfraquecimento da voz controladora ocorre em partes de Word s Out, TheWobblies, With Babies and Banners e Prison for Women. O senso de uma hierarquia de vozes se perde. 5 Idealmente, essa hierarquia sustentaria uma tipologialógica correta em um nível a voz do texto mantém-se mais alta e sobrepõe-se

    à dos entrevistados), sem negar o inevitável colapso dos tipos lógicos em outro (a voz do texto não está acima da história, mas é parte do processo histórico ao qual confere significado). Mas, atualmente, prevalece uma variantemenos complexa e menos adequada do paradoxo. Na verdade, o filme diz:

    Entrevistados nunca mentem . Os entrevistados dizem: O que estou dizendo é verdade . E nós perguntamos: Será que o entrevistado está dizendo a

    5

    Depois que este artigo já es tava pronto, l o a rti go de Jeff rey Youdelman, Na rration , In v enti on andHistory Cineaste , 12 (2) , pp. 8- 15 ), que d efe nde um ponto d e vista se melhante a uma série d eexemp los um tanto diferentes. Sua di sc us são so br e os usos imaginativos e líricos do comentárion os anos 1930 e 1940 é particularmente ins truti va.

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    verdade? , mas não encontramos no filme nenhum reconhecimento da possibilidade, muito menos da necessidade, de admitir que essa questão é inevitável em qualquer comunicação e significação.

    Como qualquer outro, Emile de Antonio, que foi pioneiro na utilização

    de entrevistas e material de arquivo para organizar argumentos históricos complexos sem um narrador, também ofereceu claras pistas de como evitar osperigos inerentes às entrevistas. Infelizmente, muitos cineastas que adotamessa abordagem não lhe deram ouvidos.

    De Antonio demonstra uma sofisticada compreensão da categoria dopessoal . Ele nem sempre aceita a palavra das testemunhas, nem adota estra

    tégias retóricas (teorias do grande homem, por exemplo) que limitam a compreensão histórica ao pessoal. Algo excede essa categoria, e em Point of Order[1964 ]; ln the Year of the Pig [1969]; Milhouse: a White Comedy [1971 ]; e WeatherUnderground [1976], entre outros, esse excesso é representado por uma voztextual que julga a legitimidade do que dizem as testemunhas. Da mesmaforma que a voz de John Huston, em A batalha de San Pietro [The Battle ofSan Pietro, 1945], confronta duas linhas de argumentação (a do general MarkClark, que alega que os custos da batalha não foram excessivos, e a do próprioHuston, que sugere o contrário), a voz textual de De Antonio contesta as afirmações de seus entrevistados, mas sem se dirigir diretamente ao espectador.(Em De Antonio e seus seguidores, não há narrador, apenas o discurso diretodas testemunhas.)

    Essa contestação não é apenas a defesa explícita de algumas testemunhas contra outras, da esquerda contra a direita. um efeito sistemáticode colocação que conserva a distância entre os diferentes níveis de tiposlógicos. A estratégia expositiva de De Antonio em ln the Year of the Pig porexemplo, deixa claro que nenhum depoente diz toda a verdade. A voz deDe Antonio (subentendida, mas controladora) faz com que os depoentesse confrontem de modo a produzir para o filme um ponto de vista singular, diferente do de qualquer um dos depoentes (na medida em que incluiessa própria estratégia de contraposição). De maneira semelhante, a voznão expressa de The tomic Cafe [Kevin Rafferty, J ayne Loader e PierceRafferty, 1982] - evidente na competente montagem dos filmes de propa

    ganda do governo sobre a bomba nuclear dos anos 1950- conduz a umaleitura preferencial das imagens escolhidas. Mas, particularmente na obrade De Antonio, surgem diferentes pontos de vista. A história não é um

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    monolito , cujas forma e densidade estão determinadas desde o início. Aocontrário , ln th e Year o the ig constrói compreensão histórica e perspectiva bem diante de nossos olhos.

    Vemos e ouvimos, por exemplo, o porta-voz do governo norte-americano expl icar sua estratégia e sua concepção da ameaça comunista , mas não

    vemo s nem ouvimos Ho Chi Minh explicar sua estratégia ou sua visão. Emvez dis so, um entrevistado, Paul Mus, nos apresenta Ho Chi Minh descritivam ente , ao mesmo tempo que De Antonio mostra cenas do interior do Vietnãqu e evo cam a ligação de Ho com sua terra e seu povo, uma relação que estáausente nas palavras e imagens do porta-voz americano. Ho continua sendouma figura excluída, cujo pleno significado precisa ser atribuído e deduzido apartir do material disponível, à medida que este vai sendo apresentado porDe Antonio. Essa const rução é textual e cinemática, e fica evidente na escolhadas imagens que apóiam ou ironizam as entrevistas, na justaposição das entrevistas e mesmo nas imagens congeladas que constituem a seqüência queantecede os créditos, na medida em que se referem, sem sombra de dúvida, àGuerra Civil Americana analogia que nitidamente contraria os relatos de invasão comunista feitos pelo governo americano). Justapondo as silhuetas dossoldados da Guerra Civil aos recrutas no Vietnã, a seqüência que antecede oscréditos oferece uma interpretação clara, embora indireta, para os acontecimentos que o espectador irá ver. De Antonio não subordina sua voz à realidade das coisas, aos sons e às imagens que são a evidência da guerra. Ele reconhece que o significado dessas imagens precisa ser atribuído a elas e trata defazer isso de maneira indireta, mas prontamente compreensível. ·

    A hierarquia de níveis estabelecida por De Antonio, e a legitimação finalconcedida para o nível superior o sistema textual, ou o filme como um todo),difere radicalmente de outras abordagens. The Triais o Aiger Hiss de JohnLowenthal, por exemplo, é uma aprovação subserviente das estratégias

    legalistas de Hiss. Da mesma forma, Hollywood on Triai mostra total dependência da linha talvez politicamente correta, mas hipócrita, adotada pelos Dezde Holl yw ood , trinta anos atrás: a de que o padrão de intimação de testemunha s ami gas e inimigas adotado pelo Comitê de Atividades Antiamericanasconstituíra uma ameaça maior às liberdades civis de cidadãos comuns embora isso certamente tenha acontecido) do que ao Partido Comunista e à esquerda americana à qual evidentemente causou o maior dano). Na obra de DeAntonio , ao contrário, mesmo em Painters Painting [1973] e Weather

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    Underg round nos quais ele, diferentemente do que costuma fazer, parece próxim o de legitimar sem nenhuma postura crítica o que dizem os entrevistados,a vo z sutil de sua direção preserva a lacuna, produzindo uma forte sensaçãode distância entre a sensibilidade e a opinião política dos entrevistados e a do

    pú blico mais amplo ao qual eles se dirigem .Os filmes de De Antonio criam um mundo de densa complexidade: eles

    inco rporam um sentido de restrição e sobredeterminação. Não é a todo mundoque se pode dar crédito. E nem tudo é verdade. Os personagens não emergemcomo construtores autônomos de seu destino pessoal. De Antonio propõe meiose modos de reconstruir o passado dialeticamente, assim como faz Fred Wisemanco m o presente. 6 Em vez de sucumbir à consciência do personagem-testemu

    nh a, o filme conserva uma consciência independente, uma voz própria. A consciência do filme (substituta da nossa) explora, relembra, comprova, duvida .Questiona e crê, até a si e em si mesma. Assume a voz da consciência pessoal, aomes mo tempo que examina a própria categoria do pessoal. Sem ser uma divinda de onisciente, nem um porta-voz obediente, a voz retórica de De Antonionos seduz ao incorporar qualidades, tais como percepção , ceticismo,dis cernimento e independência, das quais gostaríamos de nos apropriar. Entre

    tanto, embora esteja mais próximo de urna estratégia moderna e auto-reflexivado que qualquer outro documentar ista americano - com a possível exceção dacineasta feminista Jo Ann Elam, mais experimental-, De Antonio se mantémclaramente afastado dessa tendência. Ele é um observador dos fatos maisnewtoniano que einsteiniano. Insiste em fixar o sentido, mas um sentido que,finalmente, parece já estar lá fora , em vez de localizar-se na própria atividadede produção do sentido, de onde o sentido derivaria.

    Há nisso lições que os sucessores de De Antonio deviam ter aprendido.Mas, de maneira geral, não foi o que aconteceu. A entrevista ainda é um problema. Subjetividade, consciência, forma argumentativa e voz continuaminquestionadas na teoria e na prática do documentário. Muitas vezes os cineastas simplesmente decidem entrevistar personagens com os quais concordam.Prevalece um fraco senso de ceticismo e pouca autoconsciência do cineastacomo produtor de significado ou história, gerando um senso mais uniforme e

    • Detalhes da abordagem d e D e Antonio p o d e m se r e ncontrados em Tom Waugh, Emil e d e Antonioa nd th e New D o cumentar y of th e Seventies , e m Jump Cu , n '- 10-11, 19 76, pp. 33-39. Sob reWiseman, ve r Bill Nichols, Id eology and file Image cit. , pp . 20 8 -2 36.

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    menos dialético de história e um senso mais simples e mais idealizado dopersonagem. Os personagens ameaçam emergir como astros - chamas deinspiradora e imaginária coerência, contraditória com sua aparente condiçãode pessoas comuns 7

    Esses problemas surgem em três dos melhores filmes históricos quetemos e no pioneiro filme gay Word Is Out), prejudicando sua importânciaem outros aspectos. Union Maids, With Babies and Banners e The Wobblies oscilam entre o respeito pessoal e a memória histórica. Os filmes simplesmentesupõem que as coisas aconteceram da forma como as testemunhas as recordam, e, para que não haja dúvidas, os cineastas respeitosamente encontramimagens ilustrativas que comprovam isso. (Em [The Life and Times oj] Rosiethe Riveter, a correspondência estabelecida entre entrevistas e imagens de arquivo toma perceptível uma voz textual que faz desse filme uma versão maissofisticada, embora não auto-reflexiva, do documentário de entrevistas.) Esses filmes omitem aquilo que os entrevistados não revelam. Um caso notávelfoi o papel do Partido Comunista americano em Union Maids e With Babiesand Banners. Em Banners por exemplo, uma testemunha menciona que aprendeu muito com os membros do Partido Comunista. Imediatamente, porém,há um corte, sem relação nenhuma, para cenas de um violento ataque aostrabalhadores. como se a voz textual, em vez de oferecer um parecer independente, fosse tão longe a ponto de encontrar material diversionário paracompensar possíveis comentários prejudiciais das próprias testemunhas

    Ingenuamente, esses filmes endossam a lembrança limitada, seletiva. Atática reduz as testemunhas a uma série de bonecos imaginários que obedecem a uma linha. Suas lembranças distinguem-se mais pelas diferenças depersonalidade do que pelas diferenças de perspectiva. Ambientes carregadosde significados iconográficos transformam ainda mais as testemunhas em estereótipos (abundam estaleiros, fazendas, sindicatos, ou, no caso de gays elésbicas em Word Is Out, quartos e exteriores bucólicos). Sentimos um grandealívio quando os personagens saem dessas molduras iconográficas fechadaspara ambientes mais abertos, mas esse alívio" geralmente ocorre apenas nofim do filme, quando este também assinala a conclusão do fecho expositivo

    7 Uma discussão esclarecedora so br e a contradição entr e p e rsonagens tes temunhas com habilidadesincomuns e a tentativa retórica d e fazer d e las significantes de trabalhadores comuns, particularment ee m Union Maid,;, é e n con tr ada em No e l King, " R ec e nt 'P o litical ' Docum e ntary: Notes o n UnionMaid ; and Har/an County, USA , em Screen, 22 (2), 1981, pp . 7-18.

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    A l'OZ do documentário

    um outro tipo de moldura). Voltamos à simples afirmação: As coisas se pasararn corno essas testemunhas as descrevem. Por que contestá-las? - afir

    mação que constitui urna dissimulação e um desserviço, tanto para a teoriacinematográfica quanto para a práxis política. Ao contrário, corno De Antonio

    e Wisernan demonstram de maneira bem diferente, as coisas significam, masapenas se as tomarmos cornpreensíveis. 8

    Documentários com urna visão mais sofisticada do âmbito histórico estabelecem urna leitura preferencial através de um sistema textual que afirmasua própria voz, em contraste com as vozes que ele recruta ou observa. Taisfilmes nos confrontam com urna alternativa a nossas hipóteses sobre as coisasque povoam o mundo, sobre as relações que há entre elas e que significado

    possuem para nós. Corno nós, o filme funciona corno um todo autônomo. Eleé maior que suas partes e as orquestra enquanto: 1 vozes recrutadas, sons eimagens recrutados; 2 a voz textual expressa pelo estilo do filme corno umtodo (de que modo sua multiplicidade de códigos, inclusive os pertencentesàs vozes recrutadas, é orquestrada num único padrão de controle); e 3 o contexto histórico, incluindo o próprio ato de assistir, que a voz textual não podeignorar ou controlar plenamente. O filme é, pois, um simulacro, um traço

    externo da produção de significado a que nos propomos a cada dia, a cadamomento. Não vemos urna imagem supostament e imutável e coerente, magicamente representada numa tela, mas a evidência de um ato historicamenteenraizado de construir coisas significativas, comparáveis aos nossos própriosatos de compreensão historicamente situados.

    Com os filmes de De Antonio, The Atomic Cafe Rape ou Rosie the Riveter,o contraponto ativo do texto nos lembra de que seu significado é produzido.Essa proeminência da produção ativa de significado por um sistema textualpode fortalecer nossa consciência do ego como algo que também é produzidopor códigos que se estendem além de nós mesmos. Talvez esta seja urna afir-

    • Nesse sentido, Noel King comenta: No caso desses documentários Union Maids; With Babies andBanners; Harlan County, USA , podemos notar como o discurso moral ou ético suprime o discursopolítico, e como o discurso sobre a responsabilidade individual de um sujeito suprime qualquer idéiade um discurso sobre a formação social e lingüística dos sujeitos ( Recent 'Political ' Documentary ,cit., p. 11). Mas podemos também dizer, como os cin eastas parecem fazer: É assim que os participantes viram sua luta e vale a pena preservar isso , mesmo que desejássemos que eles não odissessem de modo tão submisso . Existe uma diferença entre criticar filmes porque eles não conseguem demonstrar a sofisticação teórica de certas metodologias analíticas e criticá-los porque suaorganização textual é inadequada aos fenômenos que descrevem.

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    Cin ema docum enlríri o

    mação exagerada, mas sugere os diferentes efeitos das diferentes estratégiasde documentário e indica a importância da própria estratégia auto-reflexiva.

    A auto-reflexividade pode conduzir facilmente a uma regressão infinita.Pode se revelar altamente atraente para uma intelligentsia mais interessada na

    melhor forma do que em mudanças sociais. No entanto, o interesse pelasformas auto-reflexivas não é uma questão puramente acadêmica. O cinemadireto e suas variantes procuraram resolver certas limitações da tradição vozde-Deus . O filme de entrevistas buscou resolver as limitações de grande parte do cinema direto, e o documentário auto-reflexivo tenta resolver as limitações contidas na assunção de que a subjetividade e o posicionamento social etextual do ego (como cineasta ou espectador) não são, em última instância,problemáticos.

    O pensamento moderno em geral contraria essa presunção. Uns pou-cos documentaristas, desde Dziga Vertov e com certeza, incluindo Jean Rouche um cineasta de difícil categorização como Jean-Luc Godard, adotam em seutrabalho a assunção epistemológica básica de que a posição do ego em relaçãoao mediador do conhecimento - enquanto texto - são socialmente e formalmente construídos e devem se revelar como tal. Em vez de provocar a paralisia diante de um labirinto, essa perspectiva restaura a dialética entre o eu e ooutro: nem o lá fora nem o aqui dentro contêm um significado inerente.O processo de construção de significado se sobrepõe aos significados construídos.E numa época em que a experimentação modernista está fora de moda, tantona vanguarda como em grande parte do cinema ficcional, permanece quasetotalmente ignorada pela maior parte dos documentaristas, especialmente nosEstados Unidos. Não foram os documentaristas políticos os principais inovadores. Ao contrário, foi um punhado de cineastas etnográficos como Timothy

    Asch The x Fight), John Marshal (Nai ) e David e Judith MacDougall que,em suas reflexões sobre métodos científicos e comunicação visual, foram responsáveis pela experimentação mais provocativa.

    Tomemos como exemplo o filme dos MacDougall, Wedding Camels (parte da trilogia turkana). Rodado no norte do Quênia, o filme explora em deta-lhes os preparativos para um casamento entre os turkanos. Mistura discursodireto e indireto para constituir um todo complexo composto por dois níveis

    de referências históricas - evidência e argumentação - e dois níveis de estru-tura textual - observação e exposição. Embora Wedding Camels seja muitasvezes observacional e fortemente enraizado na textura da vida cotidiana, a

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    vo z d o d o cumentári o

    presença dos cineastas é percebida com muito maior freqüência que em SoldierGirls nos filmes de Wiseman e em muitos outros filmes observacionais. Acerta altura, Lorang, pai da noiva e figura central nas negociações do casamento, declara, plenamente consciente da presença dos cineastas: Eles [oseuropeus] nunca se casam com nossas filhas. Eles sempre conservam seusanimais . Em outros momentos, ouvimos David MacDougall, por trás dacâmera, fazer perguntas a Lorang e outros, assim como acontece em The Wilmar8 ou In the Year of the Pig. É diferente do que se vê em The Wobblies UnionMaids e ith Babies and Banners nos quais as perguntas dirigidas aos depoen-tes nunca são ouvidas.) Algumas vezes, essas perguntas levam os personagensa refletir sobre fatos que observamos detalhadamente, como os preparativosdo casamento. Nessas ocasiões, os MacDougall introduzem um claro nível deauto-reflexividade no desempenho dos personagens, assim como na estrutu-ra do filme, algo que é impossível num filme de entrevistas que não nos fornece nenhuma informação sobre o presente do personagem, mas apenas suaspalavras como testemunho do passado.

    edding Camels também faz uso freqüente dos intertítulos, que sepa-ram uma cena da outra, criando uma estrutura de mosaico que admite suaincompletude, mesmo quando facetas individuais parecem esgotar um de-terminado encontro. Esse senso de incompletude e ao mesmo tempo deexaustão, assim como a mudança radical do espaço perceptivo, quando sepassa de imagens aparentemente tridimensionais para gráficos bidimensionaisque comentam ou emolduram a imagem, gera uma forte sensação de ordemhierárquica e auto-referente.

    Numa cena, por exemplo, Naingoro, tia da noiva, diz: Nossas filhasnão nos pertencem. Elas nascem para ser ofertadas . A incompletude implícita de identidade individual, além da permuta social, é então elaborada atravésde uma entrevista com Akai, a noiva. O filme coloca questões por meio deintertítulos, entre os quais insere, brevemente, as respostas de Akai. Umintertítulo, por exemplo, diz mais ou menos assim: Perguntamos a Akai seuma mulher turkana escolhe seu marido ou são seus pais que escolhem por

    ela . Essa frase traz a intervenção dos cineastas para primeiro plano.A estrutura dessa passagem mostra algumas das virtudes do estilo híbri

    do: os intertítulos funcionam como um outro indicador de uma voz textualalém daquela dos personagens representados. Eles também diferem da maioria dos intertítulos de outros documentários que, desde a época silenciosa de

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    C in ema docume n tá r io

    Nanook funcionaram corno urna nítida voz de autoridade. Em WeddingCam els os intertítulos, em sua estrutura interativo-provocativa, se ajustam àsparticularidades de pessoas e lugares, em vez de brotar de urna consciênciaonisciente . Revelam a clara consciência de que se está produzindo determina

    do significado por meio de determinada intervenção. Isso não é apresentadocorno urna grande revelação, mas corno urna simples verdade que só é notável por ser pouco comum em documentários. Esses intertítulos também mostram um humor irônico e urna clara percepção do significado que o casamento tem para os noivos e para os outros (um meio vital de combater, entreoutras coisas, a tentação de urna leitura ou julgamento etnocêntrico . Violando a coerência do espaço diegético do ator social, os intertítulos também

    diminuem a tendência do entrevistado de inflar até as proporções de um astro. Atuando de maneira auto-reflexiva, essas estratégias colocam a própriaentrevista em questão e reduzem sua tácita pretensão de dizer toda a verdade .Entre outras escolhas significativas que funcionam corno instrumentos d edistanciamento brechtiano, destacam-se os espaços separados para imagem eintertítulo em perguntas/respostas; o formato altamente estruturado e resumido de perguntas /respostas; o primeiro plano, corno moldura-retrato de um

    ator social que o afasta de urna matriz de atividades presentes ou de um ambiente estereotipado; e a clara percepção de que tais artifícios existem par aservir aos propósitos do filme, e não para capturar urna realidade intocada .

    Embora simples em tom, Wedding Camels mostra urna sofisticação estrutural muito maior do que a maioria dos documentários atuais. Se suas modernas estratégias podem ser atreladas a urna perspectiva política mais explícit a(sem se restringir à pequena platéia de vanguarda que existe para os Godard e

    Chantal Akerrnrnan), é menos urna pergunta e mais um desafio, principalmente se considerarmos as limitações da maioria dos filmes de entrevistas.

    As mudanças nas estratégias do documentário guardam urna comple xarelação com a história. Estratégias auto-reflexivas parecem ter urna relaç ãohistórica particularmente complexa com o documentário, urna vez que sãomuito menos peculiares a ele do que a estratégia da voz-de-Deus , o cine madireto e o filme de entrevistas. Embora há muito estejam disponíveis par a e

    documentário (assim corno para a narrativa ficcional) , nunca se tomaram tãpopulares quanto hoje nos Estados Unidos, na Europa ou em outras regi õe:(salvo entre as vanguardas). Por que recentemente reapareceram dentro decampo do documentário é urna questão que requer maior investigação. Sus-

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    oz o documentário

    peito que estejamos diante de algo mais do que uma simples reação às limitações do filme de entrevistas, hoje a forma predominante de documentário. Aspreferências culturais relativas à expressão, tanto de material dramático quanto

    documentário, parecem estar mudando Em todo caso, as recentes aparições deestratégias auto-reflexivas correspondem, expressamente, a deficiências na tentativa de converter práticas da antropologia escrita, de cunho marcadamenteideológico, numa agenda prescritiva para a antropologia visual (neutralidade,descritividade, objetividade, ater-se aos fatos e assim por diante). reconfortante ver que o campo do possível para o filme documentário se expandiu paraincluir estratégias de reflexividade que podem posteriormente servir a objetivos políticos e científicos.