a violência psicológica intrafamiliar
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A Violência Psicológica IntrafamiliarTRANSCRIPT
A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES E O PSICODRAMA TRIÁDICO1
THE INTRAFAMILIAR PSYCHOLOGICAL VIOLENCE AGAINST CHILDREN AND
ADOLESCENTS AND THE TRIADIC PSYCHODRAMA
SELVA RIOS CAMPELO2
Resumo: Este trabalho procura conhecer a concepção de Violência Psicológica Intrafamiliar e, também, compreender como a dinâmica familiar influencia na aprendizagem de papéis espontâneos ou cristalizados em padrões repetitivos e inadequados. Além disso, busca discorrer sobre os fundamentos do Psicodrama Triádico, e como essa abordagem psicoterapêutica pode contribuir na superação das dificuldades apresentadas por pessoas que vivenciaram ou vivenciam Violência Psicológica Intrafamiliar.
Palavras-chave: Violência Psicológica Intrafamiliar, Grupo Familiar, Papel,
Espontaneidade, Psicodrama Triádico.
Abstract: This paper aims to explore the concepts behind Intrafamiliar Psychological Violence and to understand how family dynamics influence role learning, which might be either spontaneous or stagnated within repetitive and inadequate patterns. Additionally, we expose the fundamentals of the Triadic Psychodrama and how this psychotherapeutic approach might help people who lived or are living through Intrafamiliar Psychological Violence to overcome arising difficulties. Keywords: Intrafamiliar Psychological Violence, Familiar Groups, Role, Spontaneity,
Triadic Psychodrama.
Introdução
Este estudo procura inicialmente apreender a concepção de violência
desenvolvida por teóricos como: Arendt (2001); Bourdieu (2007); Ferrari (2002), e,
também, de Violência Psicológica abordada por Assis; Avanci (2005), Maldonado
(2004) e outros.
1 Este artigo origina-se do trabalho monográfico denominado Violência Psicológica Intrafamiliar
Contra Crianças e Adolescentes: Um Estudo de Caso, apresentado ao Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama-SOBRAP, em 2011.
2 Especialista em Psicodrama Triádico pela SOBRAP, graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC/GO.
2
Em segundo, com base em Ferrari (2002), Moreno (1974; 1978), Osório
(2002), e outros teóricos, busca entender como a dinâmica familiar influencia na
aprendizagem de papéis que podem ser exercidos tanto de forma positiva (livre,
espontânea) como negativa (dificuldade à interação social, cristalização de
comportamentos inadequados, violentos).
Por último, põe em evidência a base teórica do Psicodrama Triádico através
de Schutzenberger; Weil (1977), e de que forma esta linha psicoterapêutica pode
contribuir na superação das consequências sofridas por pessoas que vivenciaram ou
vivenciam essa forma de violência.
Entendemos, em primeiro lugar, que tal reflexão torna-se pertinente em
virtude de o fenômeno objeto do presente artigo constituir-se num dos graves
problemas que vêm permeando as sociedades atuais. Em segundo, por
compreendermos que a discussão em torno dessa temática, talvez, contribua para
alimentar o debate sobre a violência, trazendo possibilidades de confrontação
através do Psicodrama Triádico.
1 A Violência e o Fenômeno da Violência Psicológica Intrafamiliar Contra
Crianças e Adolescentes
Frente à complexidade do fenômeno da Violência Psicológica Intrafamiliar
contra crianças e adolescentes torna-se necessário para seu entendimento que
busquemos inicialmente a compreensão do fenômeno da violência de forma mais
ampla, aproximando-nos, então, de teóricos que buscaram compreendê-lo no seu
campo de conhecimento específico.
Em sua obra, intitulada Sobre a Violência (2001), a filósofa Hannah Arendt
afirma ser um triste reflexo do atual estado da ciência política não se fazer distinção
entre palavras-chave tais como poder e violência. Essas palavras deixam de ser
tomadas como sinônimos, expõe essa autora, quando os assuntos políticos deixam
de ser reduzidos à questão do domínio. Nessa perspectiva, ela apresenta a seguinte
distinção para tais vocábulos:
O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. [...] a violência,
3
distingue-se por seu caráter instrumental. Fenomenologicamente3, ela está próxima do vigor natural (ARENDT, 2001, p. 36-37).
Na concepção da autora, segundo Duarte (2001), a utilização dos termos
como similares conduz as relações de poder a traduzirem-se “[...] na linguagem da
‘dominação’ e da submissão; em suma, na ênfase unilateral depositada no pólo da
‘obediência’ garantida pela sombra da violência” (DUARTE, 2001, p. 84).
Para Duarte (2001), ao interpretar Hannah Arendt, o poder ancora-se no
apoio e, mais diretamente, na quantidade daqueles que conferem a ele o seu
consentimento, e não nos meios de violência de que dispõe. A violência, pelo
contrário, é um mero instrumento destinado ao alcance de um fim predeterminado e,
por isso, necessita de justificação pelo fim que busca e não pode ser a essência de
nada. Na verdade, a violência pode contrapor-se ao poder, destruindo-o. “A violência
aparece onde o poder está em risco, mas deixado a seu próprio curso, ela conduz a
desaparição do poder” (ARENDT, 2001, p. 44).
Apesar desse posicionamento da autora, Duarte (2001) nos adverte que o
pensamento Arenditiano não se detém na distinção radical entre poder e violência.
Além disso, ele expõe que em toda obra Arenditiana não se encontra presente
negação total da violência, ou mesmo a ideia da possibilidade de haver uma
sociedade “pacífica e liberta de seus conflitos”. Até mesmo Arendt admite, diz ele,
que “[...] em certas circunstâncias, a violência [...] é o único modo de reequilibrar as
balanças da justiça. [...] O que se recusa é tomar a violência pelo que ela não seria,
isto é, mais do que um instrumento” (DUARTE, 2001, p. 93).
Entendemos a partir da reflexão de Arendt (2001), que violência e poder
pertencem ao espaço político dos negócios humanos e, segundo a definição de
poder proposta por essa filósofa, não basta habilidade humana para ação e para
começar algo novo, mas essa ação deve ser realizada em conjunto, em concerto.
Entendemos, também, que apesar de a violência ser uma forma de ação, ela
normalmente ocorre quando não se está conseguindo um consenso e, mesmo que
seja um instrumento efetivo para provocar mudanças, tais mudanças quase sempre
geram um mundo mais violento, pois, para a autora, o exercício da “[...] violência,
3 A Fenomenologia é a ciência que consiste no seguinte: “Descrição daquilo que aparece ou ciência
que tem como objetivo ou projeto essa descrição. [...] A fenomenologia [...] é uma ciência da essência (portanto éidética’) e não de dados de fato, possibilitada apenas pela redução eidética, cuja tarefa é expurgar os fenômenos psicológicos de suas características reais ou empíricas e levá-los para o plano da generalidade essência (ABBAGNANO, 1999, p. 438).
4
como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo
mais violento” (ARENDT, 2001, p. 58).
Essa é, então, a visão filosófica da autora sobre a violência. Vejamos agora o
olhar lançado a este fenômeno pelo sociólogo Pierre Bourdieu. Este autor é
considerado um dos grandes sociólogos da atualidade e abordou, exaustivamente
em sua obra, temas relativos à dominação, tais como o poder e a violência em sua
forma simbólica.
Para Bourdieu (2007), no mundo social, vê-se o poder em toda parte, mas
existe uma forma especial pelo qual ele se manifesta, isto é, através do poder
simbólico, o qual não deve ser visto e, somente, pode ser exercido se for ignorado.
“O Poder simbólico é [...] esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que
o exercem” (BOURDIEU, 2007, p. 8).
Na concepção de Bourdieu (2007), os sistemas simbólicos, tais como: a arte,
o mito, a religião, a língua, a ciência são considerados, com base na tradição neo-
Kantiana4, como instrumentos de conhecimento, comunicação e construção da
realidade, exercendo, por isso, um poder estruturante sobre essa realidade.
Porém, como afirma Bourdieu (2007), os sistemas simbólicos da mesma
forma que são construtores da realidade, conforme exposto acima, são também
construídos ou estruturados a partir dessa realidade. Esse autor expõe que os
símbolos, como instrumento de integração social e, principalmente, pela sua função
política privilegiada pela perspectiva Marxista, podem servir aos interesses da classe
dominante legitimando a ordem estabelecida.
Ou seja, pelo que expõe o autor, a realidade que foi construída pelos
sistemas simbólicos pode também influenciar esses sistemas. E essa influência é
exercida pela classe dominante para legitimação da ordem estabelecida através de
distinções hierárquicas, favorecendo àqueles que pertencem a essa classe, porém
de forma dissimulada, pois tal distinção não é percebida. E, aí, nos deparamos com
a ideia da violência simbólica.
Nessa perspectiva, Bourdieu (2007) expõe que, nas relações de
comunicação, o discurso dominante serve como intermediário entre as partes
envolvidas e tende a impor a percepção da ordem estabelecida como natural,
4 Para o autor os neo-Kantianos são: “Humboldt-Cassirer ou, na variante americana, Sapir-Whorf
para a linguagem” (BOURDIEU, 1989, p. 8).
5
através da imposição dissimulada de sistemas de classificação que se reproduzem
de forma irreconhecível na estrutura social e, especialmente, na divisão do trabalho.
Percebemos, então, que a força dos sistemas simbólicos se deve ao fato de
serem irreconhecíveis as relações de força que se exprimem nesses sistemas,
sendo a crença na legitimidade das palavras e daqueles que as pronunciam o que
possibilita a imposição de uma ordem. E Bourdieu (2007) nos fala, por fim, que o
poder simbólico é esse “[...] poder quase mágico que permite obter o equivalente
daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), [...], só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 2007, p. 14).
Esta conclusão nos esclarece como o poder simbólico realmente só pode ser
exercido se ignorado, pois é esta ignorância que possibilita a violência simbólica, ou
seja, o indivíduo ver como se fosse “natural” as representações ou as ideias sociais
dominantes. Daí, a relevância do pensamento bourdieusiano para compreendermos
os efeitos simbólicos da violência nas relações sociais.
Tanto pelos estudos de Hannah Arendt quanto de Pierre Bourdieu
constatamos que o fenômeno da violência está sempre associado à questão do
poder e nesse sentido, como vimos anteriormente, Arendt (2001) nos adverte acerca
da importância de se considerar a violência como um instrumento de dominação
usado quando o poder está em risco e não como um fenômeno natural.
Contudo, para a psicóloga psicodramatista Rodrigues (2002), não se deve
expulsar todo o mal, como a agressão, bem como todas as formas de destruição
somente para o social, pois isso isentaria o homem de sua parte de
responsabilidade. “O mais sábio é, como psicoterapeutas e estudiosos, permanecer
no ‘entre’, na fronteira, mantendo duplo olhar em relação ao fenômeno da violência:
no social e no individual” (RODRIGUES, 2002, p. 12).
De acordo com Azevedo (2002), o fenômeno da violência consiste numa “[...]
relação assimétrica (hierárquica) de poder com fim de dominação, exploração e
opressão [...] causado por múltiplos e diferentes fatores sócio-econômico-culturais,
psicológicos e situacionais” (AZEVEDO apud FERRARI, 2002, p. 81).
Ferrari (2002) expõe que essa definição implica num modelo explicativo
“multicausal” e numa abordagem “sociopsicointeracionista”, por meio da qual as
condutas humanas são concebidas através da interação indivíduo-sociedade, o que
significa que o âmbito psicológico será condicionado pelo social e esse
condicionamento será produzido historicamente.
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Após estas explanações sobre a violência de forma geral focaremos agora a
Violência Psicológica Intrafamiliar Contra Crianças e Adolescentes, objeto de nossa
preocupação investigativa.
O Ministério da Saúde, segundo Jorge; Souza (2005), adota uma terminologia
oficializada nos seus documentos a qual classifica as violências como negligência,
abuso físico, abuso sexual e abuso psicológico. A partir desta classificação, o abuso
psicológico (ou violência psicológica) define-se como “[...] toda forma de rejeição,
depreciação, discriminação, desrespeito, cobranças exageradas, punições
humilhantes e utilização da criança ou do adolescente para atender às necessidades
psíquicas do adulto” (JORGE; SOUZA, 2005, p. 25).
Como já expusemos anteriormente, uma forma de violência entre classes
sociais é a Violência Simbólica apresentada por Bourdieu (2007). Ela é uma forma
de dominação que usa a força simbólica ao invés da força física. Assim é também a
Violência Psicológica. A Violência Psicológica Intrafamiliar, assim como a “Violência
Simbólica”, ocorre no sentido de favorecer posições hierarquizadas dentro da
família, usando a força simbólica ao invés da força física. Nessa perspectiva,
inferimos que, assim como a Violência Simbólica, a Violência Psicológica possui sua
força na crença pela criança e adolescente da legitimidade das palavras
pronunciadas pelos adultos responsáveis pela sua criação.
Garbarino (2005) define a Violência Psicológica como: “[...] agressão de um
adulto sobre o desenvolvimento do eu e da competência social de uma criança ou
de um adolescente, configurando um comportamento psicologicamente destrutivo”
(GARBARINO apud ASSIS; AVANCI, 2005, p. 59).
Esse autor apresenta cinco formas de abuso psicológico (violência
psicológica) praticado às crianças e adolescentes, quais sejam: rejeitar, isolar,
aterrorizar, ignorar e corromper. Em relação ao ato de rejeitar, trata-se de situações
em que o adulto se recusa reconhecer, valorizar e legitimar as necessidades infantis.
No que se refere ao ato de isolar, o adulto leva a criança a acreditar que está
só no mundo, impedindo-a de estabelecer amizades e outros relacionamentos.
Concernente ao ato de aterrorizar, o adulto cria um clima de medo, fazendo a
criança acreditar que o mundo é hostil e imprevisível. No tocante ao ato de ignorar, o
adulto nega estímulo e responsabilidade para com a criança, dificultando tanto seu
crescimento emocional quanto seu desenvolvimento intelectual. Por último, o ato de
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corromper, o adulto socializa a criança de forma errada, levando-a a se envolver em
comportamentos impróprios para a vida social.
Maldonado (2004) expõe que a violência psicológica ou abuso psicológico é
uma forma de violência que ocorre nos lares onde há falta de amor e carinho e alta
frequência de condutas abusivas, como: xingar, humilhar e agredir com palavras.
Para Maldonado (2004), apesar de a violência psicológica ser o tipo menos
reconhecido entre as violências que ocorrem na família, ela pode deixar marcas
profundas no psiquismo da criança.
O abuso psicológico referentes às formas de comunicação ‘demolidoras’ é o tipo menos reconhecido de violência, porque ‘o corpo não fica marcado e nenhum osso é fraturado’. No entanto, em conseqüência (sic) de ter sido xingada, humilhada, depreciada e rejeitada, a criança cresce com marcas profundas em seu psiquismo e com sua auto-estima gravemente fraturada (MALDONADO, 2004, p. 25).
Para Assis; Avanci (2005), a Violência Psicológica impede significativamente
o desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente. “Afeta o
desenvolvimento da auto-estima, do auto-conceito, da competência social e da
capacidade da criança e do adolescente estabelecer relações interpessoais” (ASSIS;
AVANCI, 2005, p. 59). Estas autoras afirmam que sofrer Violência Psicológica na
família está associado com ser vítima de violência na comunidade e na escola.
Após essas pontuações sobre a Violência Psicológica Intrafamiliar Contra
Crianças e Adolescentes, passaremos então a buscar uma compreensão a respeito
do grupo familiar e do desenvolvimento de papéis que podem ser exercidos de forma
espontânea ou cristalizados em padrões repetitivos e inadequados.
2 Grupo Familiar e o Desenvolvimento de Papéis Espontâneos
Grupos são unidades de duas ou mais pessoas empenhadas em recíproca
interação psicológica, através das quais as ações numa sociedade são levadas a
cabo. Há muitos tipos de grupos humanos. O grupo familiar, onde normalmente a
vida começa para cada um de nós, é um grupo primário, ou seja, caracteriza-se pela
associação e cooperação íntimas, interpessoais (ANDERSON; PARKER, s/d.).
Para Osório (2002), a família é uma unidade grupal na qual se desenvolvem
três tipos de relações pessoais: aliança (casal), filiação (pais/filhos) e
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consanguinidade (irmãos). Para o autor, embora possamos enunciar a família como
sendo a unidade básica da interação social, para uma visão amplificada, devemos
situá-la em um contexto histórico-evolutivo no processo civilizatório, uma vez que
através dos tempos a família desenvolveu funções diversificadas de transmissão de
valores.
Sobre esta perspectiva, expõe este autor que a família assegura a
sobrevivência biológica da espécie, o desenvolvimento psíquico e a aprendizagem
da interação social, não sendo possível dissociar a função biológica da função
psicossocial da família. Continuando, este autor diz que a família é um “[...] grupo
especializado na produção de pessoas com vínculos peculiares e que se constitui na
célula primordial de toda e qualquer cultura” (OSÓRIO, 2002, p. 15).
Moreno (1978) afirma que a matriz de identidade vivenciada na família, lócus
de onde surgem os papéis e o eu, é a placenta social da criança, por isso, os
primeiros vínculos dentro da matriz de identidade são muito importantes.
Entendemos, a partir do autor, que há sempre uma expectativa de que esse primeiro
grupo socializante, a família, permita o desenvolvimento da espontaneidade e da
criatividade de seus membros.
Para Ferrari (2002), além da procriação, da formação da personalidade e
socialização primária, a família tem função de transmissão de hábitos, costumes,
ideias, valores, padrões de comportamentos. A autora define a família como uma
[...] instituição constituída por vários indivíduos que compartilham circunstâncias históricas, culturais, sociais, religiosas, econômicas e afetivas [...] como uma unidade social emissora e receptora de influências culturais, religiosas e de acontecimentos históricos (FERRARI, 2002, p. 89).
Assim, para esta autora o sistema comunicacional da família é próprio e sua
dinâmica é determinada, pois, como afirma: “[...] a família constitui um espaço social
distinto, na medida em que gera e consubstancia hierarquias de idade e sexo”
(FERRARI, 2002, p. 88).
Zimerman (2000) expõe que o grupo familiar tem uma importância profunda e
decisiva na estruturação do psiquismo da criança, consequentemente, no
desenvolvimento da personalidade do adulto e na formação de seus grupos
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internos5. Para este autor, os grupos internos do sujeito vão determinar a forma de
interação e configuração das relações grupais e sociais com os outros grupos com
os quais o sujeito irá conviver ao longo da vida.
Segundo Osório (2002), a primeira e fundamental função psíquica da família é
prover ao recém-nascido o alimento afetivo indispensável à sua sobrevivência
emocional. Outra função psíquica da família é ser continente para as ansiedades
existenciais durante o processo evolutivo do ser humano, assim também, como
servir de modelo de identificação à descendência, das experiências de vivências
individuais e coletivas. Mas como adverte Osório (2002), não são só os pais que
influenciam ou determinam o comportamento dos filhos, pois a conduta destes
também vai modificar e condicionar a atitude dos pais.
Concluindo, Osório (2002) afirma que o objetivo maior da família, como célula
mater,
[...] é permitir o crescimento individual e facilitar os processos de individuação e diferenciação em seu seio, ensejando, com isso a adequação de seus membros às exigências da realidade vivencial e o preenchimento das condições satisfatórias de convívio social (OSÓRIO, 2002, p. 22).
Considerando todas as argumentações sobre a estrutura e a função familiar,
então, questionamos quais são as consequências em uma família que, ao invés de
proporcionar aos seus descendentes um ambiente seguro e protegido, interage com
dinâmica de violência?
Na concepção de Ferrari (2002), isso torna a família disfuncional, ou seja,
incapaz de favorecer um bom desenvolvimento biopsicossocial aos seus
descendentes. Nessas famílias, a criança e o adolescente têm que se submeter ao
abusador, o que desencadeia o medo e o desempenho inadequado de papéis
sociais. Segundo Calvante (2002), a exposição constante à violência impede a
criança de aprender o uso criativo da agressão, tendo como consequência respostas
sempre submissas ou também violentas, o que a incapacita de defender-se e auto
afirmar-se, o que pode levá-la a ser vítima desprotegida para o resto de sua vida.
5 “Grupo” irá designar também a forma e a estrutura de uma organização intrapsíquica caracterizada
por ligações mútuas entre seus elementos constitutivos e pelas funções que desempenha no aparelho psíquico. De acordo com essa perspectiva, (o grupo se especifica como grupo interno), competindo à pesquisa descrever suas estruturas, funções e transformações. Esses grupos internos não são a simples projeção antropomórfica dos grupos intersubjetivos. Na concepção de Kaes, a grupalidade psíquica é uma organização da matéria psíquica.” (KAËS, 1997, p. 18).
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Outra consequência é a repetição provável do ciclo da violência com a geração
futura e a elevação da Violência Social.
Essa disfuncionalidade na família poderia ser confrontada se cada um dentro
de um grupo familiar representasse o seu papel de forma adequada, pensando no
bem do grupo e não somente em seus interesses particulares. Ou por outra,
arenditianamente expressando, trata-se de lidar com o poder de forma a manter a
orquestração (concerto) em favor do bem comum.
Mas, o que vêm a ser o papel, como ele se desenvolve e qual a melhor forma
de desempenhá-lo dentro e fora da família, são questões que abordaremos agora.
Para Rubini (1995), os diversos autores e enfoques sobre o papel social
convergem para a identificação do papel como:
[...] padrão determinado de comportamento que reflete e caracteriza uma posição especial do indivíduo dentro do grupo social a que pertence. A organização articulada de papéis confere unidade ao grupo, faculta ao indivíduo atingir seus objetivos como pessoa e como integrante de uma coletividade (RUBINI, 1995, p. 2).
Ao interpretar Rocheblave-Spenlé, Rubini (1995) expõe que, para a autora,
enquanto a maioria dos teóricos enfocou os papéis como “facilitadores das relações
sociais” pela sua “previsibilidade” e por representarem “padrões de conduta aceitos”,
Moreno preocupou-se mais com a possibilidade “espontânea e criativa” dos papéis
que leva o homem a assemelhar-se a Deus, cujas ações são criadoras e
espontâneas.
A origem do conceito de papel, segundo Moreno (1978), não foi sociológica
ou psiquiátrica, mas, sim, através da linguagem do teatro. Sendo assim, ele parte do
teatro para o desenvolvimento de toda a sua teoria, que se firma no conceito de
papel e de espontaneidade.
Para Moreno (1978), o papel é sempre uma experiência interpessoal, que
necessita de dois ou mais indivíduos para ser realizado, sendo os próprios papéis e
suas relações entre si os fenômenos mais importantes de qualquer cultura
específica.
Moreno (1974) afirma que os pontos de cristalização que podemos perceber e
que chamamos de eu são os papéis nos quais esse eu se manifesta, sendo mais
simples falar dos “papéis” de uma pessoa que de seu eu ou “ego”. O “[...] ego tem
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significações secundárias misteriosas e metapsicológicas. O papel, no entanto, pode
ser definido como a menor unidade de uma cultura” (MORENO, 1974, p. 57).
Segundo Moreno (1978), o papel é anterior à linguagem e ao próprio ego. É o
ego que emerge dos papéis e também é modificado por estes. “Os papéis são os
embriões, os precursores do eu, e esforçam-se por unificar e agrupar” (MORENO,
1978, p. 25). Os primeiros papéis a aparecerem são os fisiológicos ou
psicossomáticos. Estes papéis fisiológicos como comer, dormir, sonhar, etc.,
integram-se formando uma unidade, ajudando “[...] a criança pequena a
experimentar aquilo a que chamamos ‘corpo’” (MORENO, 1978, p. 26). Continuando
o desenvolvimento infantil, os papéis psicológicos ou psicodramáticos vão se
agrupando e formam uma espécie de eu psicodramático. Os papéis psicodramáticos
emergem quando a criança tem condições de compreender o que é produção
imaginária e o que é realidade, ajudando a criança “[...] a experimentar o que
designamos por ‘psique’” (MORENO, 1978, p. 26). Finalmente, o mesmo acontece
com os papéis sociais, formando uma espécie de eu social, que operam
predominantemente a função de realidade. Apoiam-se nos papéis psicossomáticos e
psicodramáticos como formas anteriores de experiência, ajudando a criança a
experimentar “[...] o que denominamos ‘sociedade’” (MORENO, 1978, p. 26). Corpo,
psique e sociedade são, portanto, para Moreno, as partes intermediárias do eu total.
Na concepção do autor, ao nascer o bebê vivencia um universo
indiferenciado, sendo a matriz da identidade o lócus de onde surgem os papéis e o
eu. A matriz da identidade é a “placenta social” da criança e dissolve-se
gradualmente à medida que a criança vai ganhando autonomia. Moreno (1978)
divide o desenvolvimento infantil em dois universos. O primeiro universo que se
estende por até por volta dos três anos de idade possui duas fases: a primeira é a
fase da matriz indiferenciada ou “período de identidade” em que ocorre uma
identidade indiferenciada entre o eu e o tu; a segunda é a fase da identidade total
diferenciada na qual ocorre o reconhecimento do eu, de sua singularidade como
pessoa. Nesse período, objetos, animais, pessoas e a própria criança passam a
diferenciar-se, porém, não existe ainda uma diferença efetiva entre real e imaginado,
animado e inanimado, aparência e coisas reais.
O primeiro universo termina, começando o segundo universo, quando a
experiência infantil de um mundo em que tudo é considerado real se decompõe em
fantasia e realidade, aparecendo os “papéis psicodramáticos” (fantasia) e os “papéis
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sociais” (realidade) e ocorrendo, também, a possibilidade do reconhecimento do tu,
do outro.
Moreno (1974) ressalta que a inversão de papéis entre os filhos e seus pais é
método de socialização e de auto-integração, levando as frequentes inversões de
papéis à precocidade de habilidade nos relacionamentos interpessoais e diminuição
da dependência da criança dos pais. Também Moreno (1974) afirma que as crianças
que se sentem isoladas e rejeitadas não têm condições de realizar inversões de
papéis.
Tomando conhecimento destas afirmações de Moreno (1974) sobre a
importância da capacidade de realizar inversões de papéis, como possibilidade de
socialização, de integração em grupos sociais, voltamos agora a nossa atenção para
as crianças e adolescentes que sofrem Violência Psicológica Intrafamiliar, que são
humilhadas e ridicularizadas. Inicialmente, essas crianças não vão ter dentro da
própria família (normalmente o primeiro grupo) a possibilidade de inversões de
papéis, pois as vivências de violência psicológica os impedem de relacionarem-se
com os pais (que violentam) de forma aberta e positiva, levando-as a se retraírem e
se isolarem, vivenciando sentimentos de medo, vergonha e inadequação. Ou seja, a
criança se vê impossibilitada de aprender a desempenhar papéis adequadamente.
Outra consequência para a criança e adolescente que vivenciam dinâmica
familiar de violência, é que os papéis desempenhados na família vão estar limitados,
normalmente, a papéis de vítimas e agressores e a criança e o adolescente vão,
provavelmente, repetir este padrão de comportamento aprendido nos outros grupos
aos quais vierem participar. Por não conseguirem sair deste ciclo de repetição, a
criança e o adolescente não vão aprender comportamentos mais sociáveis e
humanos como a capacidade de sentirem-se iguais e solidarizarem-se com o outro
de forma flexível, conseguindo o equilíbrio satisfatório entre dar e receber,
acreditando-se amados e aceitos mesmo não estando no pólo somente da
obediência e submissão determinado por uma relação assimétrica de dominação.
Para Moreno (1978), a única possibilidade de libertação deste ciclo de
repetição que ele explica como a tendência natural de cristalização dos papéis
sociais, está no desenvolvimento da espontaneidade e no desempenho de papéis
espontâneos e criativos.
Buscando conhecimento sobre a dinâmica ou a forma de inter-
relacionamentos dentro dos grupos, Moreno (1974) desenvolveu a sociometria, uma
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ciência terapêutica do grupo que se transformou mais tarde em ciência geral dos
grupos. Através da sociometria, Moreno (1974) concluiu que, para a saúde do
indivíduo e da comunidade, o mundo precisa de uma nova ordem a qual ele
concebeu como a ordem terapêutica, em que a ênfase não seria dada à saúde do
indivíduo ou da coletividade, mas sim na relação que se estabelece entre um
indivíduo e o outro, entre o indivíduo e o grupo e mesmo entre o grupo e o indivíduo
“[...] o indivíduo sadio em um grupo sadio, o grupo sadio, no indivíduo sadio”
(MORENO, 1974, p. 25).
Para o estudo sociométrico proposto por Moreno (1974), essa interação
divide-se em forças de atração, de rejeição e de indiferença. Através deste estudo
sociométrico dos grupos, Moreno chegou à conclusão que o mundo está repleto de
indivíduos e grupos isolados, rejeitados, rejeitantes e negligenciados. No entanto,
para este autor, o mundo não deveria ser assim, uma vez que as forças de
cooperação são biologicamente mais importantes que as forças de destruição e,
também, pelo fato de que a criatividade e a produtividade podem crescer com mais
intensidade em grupos baseados em auxílio mútuo do que em grupos reunidos por
acaso, ou em grupos cujos membros são mutuamente hostis.
Moreno (1974) relaciona estes fatores positivos de produtividade e
criatividade com a espontaneidade, considerando esta como uma força primária no
comportamento humano e como a mais elevada forma de inteligência que temos
conhecimento. Para Moreno (1974), o homem nasce espontâneo, livre, aberto a
transformações, mas devido a diversos fatores, vai perdendo a capacidade de sê-lo.
Expõe este autor que apesar de a espontaneidade ser uma força universal e,
provavelmente, mais antiga dentro da evolução humana, é a força menos
desenvolvida nas pessoas e, frequentemente, inibida e desencorajada pelas
instituições culturais, levando isto ao desenvolvimento de patologias do indivíduo e
da sociedade. “[...] grande parte da psico e sociopatologia humanas pode ser
atribuída ao desenvolvimento insuficiente da espontaneidade” (MORENO, 1974, p.
58).
Na perspectiva de Moreno (1978), a espontaneidade é uma disposição do
sujeito para responder como requerido de forma livre. Este autor define
operacionalmente a espontaneidade da seguinte forma:
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O protagonista é desafiado a responder, com certo grau de adequação, a uma nova situação ou, com uma certa medida de novidade, a uma antiga situação. Quando o ator no palco encontra sem uma conserva de papel, o ator religioso sem uma conserva ritual, eles têm que improvisar, de recorrer a experiências que não estão preparadas de antemão para a sua representação mas que, pelo contrário, ainda se encontram enterradas dentro deles, numa fase informe. A fim de mobilizá-las e dar-lhes forma, necessitam de um transformador e catalisador, uma espécie de inteligência que opera aqui e agora, hic et nunc, a ‘espontaneidade’ (MORENO, 1978, p. 36-37).
Como já mencionamos, o grupo familiar é fundamental para o
desenvolvimento saudável do indivíduo, devido ser um grupo formador da
personalidade humana, no qual são treinados os primeiros papéis do homem e
estimulado ou inibido o desenvolvimento da espontaneidade e da criatividade de
seus membros em formação. Provavelmente pela ausência de aceitação e
acolhimento e pela presença da rejeição e da indiferença, as pessoas e as famílias
que vivenciam a Violência Psicológica Intrafamiliar se tornarão vítimas de grande dor
e sofrimento e alimentarão sempre o surgimento de emoções negativas em qualquer
convívio social que vierem participar, reforçando dentro e fora do grupo familiar este
padrão de relacionamento.
Mas, perguntamos como a própria família, reprodutora ideológica e cultural
que também recebeu de sua geração anterior formas de relacionamentos que incluía
a Violência Psicológica, poderá agir diferentemente com seus membros? Como
poderá o indivíduo libertar-se desse padrão de relacionamento que usa a Violência
Psicológica como instrumento de dominação e agir de forma diferente tanto com a
geração anterior (os próprios pais) quanto com a geração posterior (seus próprios
filhos)?
3 O Psicodrama Triádico como Possibilidade de Embate à Violência
Psicológica Intrafamiliar Contra Crianças e Adolescentes
Diante do questionamento acima, os psicoterapeutas triádicos, especialistas
em psicodrama triádico, propõem que para buscarem a cura psicoterápica de
pessoas que vivenciaram ou vivenciam dinâmica de Violência Psicológica
Intrafamiliar, devem procurar ajudar essas pessoas, além de se autoconhecerem, a
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desbloquearem sua capacidade de serem espontâneas e criativas,
consequentemente, quebrando este ciclo repetitivo de papéis cristalizados.
O Psicodrama Triádico foi criado e desenvolvido na França, na década de
cinquenta, por Anne A. Schutzenberger e Pierre Weil. Situa-se dentro de uma teoria
geral de sistema aberto em um campo iluminado pela filosofia existencial e
complementado pela compreensão relacional e transpessoal da comunicação não-
verbal e da linguagem do corpo. É uma abordagem multirreferencial que integra e
combina diversas teorias e que utiliza pelo menos três referenciais, tendo como
principais as teorias da psicanálise, da dinâmica de grupo (ou sua sociometria) e do
psicodrama.
Contudo, a abordagem triádica não se limita a essas três referências e, por
isso, o psicoterapeuta pode usar qualquer técnica necessária, dentro dos
referenciais do triádico6, dependendo de seu domínio e do momento presente do
indivíduo ou do grupo, os quais trabalham temas livres em suas sessões.
Schutzenberger (1977) expõe que a lei do grupo triádico é o questionamento
permanente sobre o que se passa no momento presente e sobre a escolha do
melhor referencial.
Dependendo do momento, do grupo ou do indivíduo, o psicoterapeuta triádico
pode ficar no lugar do suposto saber, usando técnicas psicanalíticas como a
interpretação da transferência e da resistência. Em outros momentos, o
psicoterapeuta triádico pode preferir usar técnicas psicodramáticas, principalmente,
em situações em que se quer trabalhar o papel e o desempenho de papéis
espontâneos e criativos. Também, o psicoterapeuta triádico pode escolher em algum
momento buscar a compreensão do indivíduo ou do grupo, fazendo a leitura do
processo relacionado à sua dinâmica.
Para esta autora nada impede que seja feito no grupo triádico muito
Psicodrama, utilizando-se “[...] técnicas de representação, a palavra, a interação, o
6 Os referenciais do triádico são abordagens que se fundamentam em correntes existencialistas e
humanistas que trabalham no aqui e agora como por exemplo a de Carl Roger (de tendência não-diretiva, existencalismo-humanismo), a de Rollo May (existencialismo-humanismo), a vivência de espaço e tempo, a abordagem ecológica-biológica (território e proximidade: Hall, Lorenz, Tinbegen), o corpo e o grito (Roy Hart, Fritz Peerls, Lowen, Koleman, Charlotte Silver, Laura Sheleen, Mosche, Feldendrais...), os novos grupos do Instituto Esalen (Bill Schutz, grupos de encontro), os jogos transacionais (Eric Berne) e sobretudo a comunicação não-verbal, por meios cinésicos, paralinguísticos e de proximidade (Jurgen Ruesch, Roy Birdwhistell, Ervin Goffman, Gregory Bateson). (SCHUTZENBERGER; WEIL, 1977, p. 11-12). Atualmente também juntam-se os trabalhos em arte-terapia como recursos possíveis no tratamento psicoterapêutico triádico. (Nota da pesquisadora).
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corpo, o grito, o gesto, o movimento, sem excluir o comentário, o silêncio, a análise
da dinâmica do grupo e dos relacionamentos com o monitor” (SCHUTZENBERGER,
1977, p. 21-22).
Segundo Schutzenberger; Weil (1977), na perspectiva da psicanálise, o
manejo da transferência, da resistência e da regressão é o elemento principal que
permite ao psicoterapeuta ajudar o seu cliente a evoluir ou sair de sua neurose. Para
Weil (1977), o psicodrama triádico julga ser conveniente não começar um
psicodrama sem análise preliminar da resistência e da transferência. Porém, existem
situações em que a análise clássica da resistência não dá resultados e, então,
lança-se mão dos novos métodos de abordagem do problema da resistência. Estes
são métodos não-ortodoxos que trazem a vantagem de ganhar tempo. Weil (1977)
expõe que, para Moreno, são as técnicas de “aquecimento” que ajudam a vencer a
resistência do grupo e do protagonista.
Entre as várias técnicas de aquecimento, exemplificadas por Weil (1977),
elegemos a título de ilustração, duas especificamente. A primeira técnica é a
insistência do terapeuta no “sentir”, em vez do “Eu penso que” ou “Eu creio que”.
Essa técnica desbloqueia um dos grandes mecanismos de resistência, a fuga na
descrição, no intelectual e no racional. A segunda é a técnica de improvisação, por
meio da qual se propõe ao protagonista que represente diversas situações de sua
vida em que tem dificuldades. A banalidade das cenas ajuda o sujeito a projetar-se
com facilidade e a desbloquear a resistência.
Na perspectiva de Weil (1977), um dos objetivos do psicodrama triádico é a
vivência do “Encontro Existencial”. “O encontro existencial é o encontro das
essências, do potencial das pessoas, daquilo que é eterno e que transcende as três
dimensões do tempo” (WEIL, 1977, p. 117). Para muitos terapeutas existenciais,
afirma este autor, a vivência do “encontro” é o próprio processo de cura e, através
dele, desenvolve-se criatividade e espontaneidade.
Acreditamos que a Psicoterapia Psicodramática Triádica tem muito a
contribuir na cura de pessoas que vivenciaram dinâmica de violência psicológica
intrafamiliar, pois, através de vivências propostas conforme o processo
individual/grupal, o psicoterapeuta ajuda essas pessoas a se autoconhecerem e a
quebrarem seu padrão repetitivo de relacionamento baseado na submissão-
agressão, principalmente, através de técnicas psicodramáticas que trabalham o
papel e o desempenho espontâneo de papéis.
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A representação de cenas improvisadas das diversas situações de vida da
pessoa, nas quais tem dificuldade, pode ajudar a quebra da resistência e,
consequentemente, possibilitar a elaboração da sua forma de atuação (atuação no
sentido de ação e não no sentido psicanalítico de acting-out). No momento da cena,
o sujeito está livre do contexto de realidade e disposto a produzir mais a fantasia, o
“como se”, criando novas improvisações e papéis diferentes, geralmente, exercidos
com muito mais espontaneidade. Normalmente, após cada vivência acontecida de
forma individual ou grupal, há entre todos, tanto o terapeuta como o indivíduo/grupo,
um compartilhamento em que cada um expõe o que sentiu, como se sentiu, que
mudanças podem ser feitas, que fatores disfuncionais estavam presentes
bloqueando a capacidade de ver e modificar situações vividas. A elaboração pelo
indivíduo da sua forma de atuação o levará a mudanças na percepção e atuação de
papéis, ou seja, a rematrização de novos papéis e reorganização de seu eu.
Após isso, o indivíduo levará essa aprendizagem também para fora do
contexto psicoterápico, possibilitando-o agir de forma mais livre e criativa,
transformando-se e, consequentemente, transformando o grupo familiar em que
vive, além do seu meio social mais amplo, em um mundo melhor, menos violento,
mais positivo e muito mais prazeroso.
Considerações Finais
Percebemos, por meio deste estudo, que o fenômeno da Violência
Psicológica vivenciado pelo indivíduo em seu grupo familiar, ao longo de sua
infância e adolescência, pode levar a graves consequências, afetando a sua
autoestima, seu autoconceito e sua capacidade de inter-relacionamentos saudáveis
e espontâneos. Contudo, estas dificuldades podem ser superadas desde que a
pessoa passe por um processo psicoterápico que a leve a buscar o seu
autoconhecimento e a libertação de papéis limitados a um padrão estereotipado de
vítima ou de agressor, aprendendo a desempenhar papéis de forma mais
espontânea e criativa.
Desta forma, o Psicodrama Triádico pode contribuir muito no tratamento
psicoterapêutico das pessoas que vivenciaram a Violência Psicológica Intrafamiliar,
ajudando-as a superarem as dificuldades causadas por esta violência através de
vivências que as conduzam a um autoconhecimento e que as ajudem a desbloquear
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a sua espontaneidade e criatividade. Essa superação vai refletir positivamente em
todos os seus relacionamentos interpessoais, possibilitando-as a adquirirem
comportamentos mais sociáveis. Nesse sentido, o Psicodrama Triádico vai contribuir
também para a construção de uma sociedade mais humana e menos violenta.
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