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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
A TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE E
DA POSSE NO SÉCULO XXI:
a importância do princípio constitucional da função social
e o desenvolvimento da posse “maxiqualificada”
Áurea Lúcia Chaves Castro
Belo Horizonte
2011
Áurea Lúcia Chaves Castro
A TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE E
DA POSSE NO SÉCULO XXI:
a importância do princípio constitucional da função social
e o desenvolvimento da posse “maxiqualificada”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Privado. Orientador: Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza.
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Castro, Áurea Lúcia Chaves C355t A transformação do direito de propriedade e da posse no século XXI: a
importância do princípio constitucional da função social e o desenvolvimento da posse “maxiqualificada”. / Áurea Lúcia Chaves Castro. Belo Horizonte, 2011.
153f. Orientador: Adriano Stanley Rocha Souza. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Posse (Direito). 2. Posse da Terra. 3. Propriedade. 4. Função Social da
Propriedade. I. Souza, Adriano Stanley Rocha. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 347.251
Áurea Lúcia Chaves Castro
A transformação do direito de propriedade e da poss e no século xxi: a
importância do princípio constitucional da função s ocial e o desenvolvimento
da posse “maxiqualificada”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Privado.
____________________________________________________
Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza (Orientador) - PUC MINAS
____________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Macedo Poli – PUC MINAS
____________________________________________________
Prof. Dr .Edgar Gaston Jacobs Flores Filho - UFOP
Belo Horizonte, 07 de janeiro de 2011.
À minha mãe:
O suor do seu rosto formou a minha têmpera.
A sua dedicação serviu de exemplo para o meu caminhar.
O seu amor me ensinou a buscar os verdadeiros ideais.
Ao meu marido:
Pelo amor, pela companhia, pelo sorriso tranquilo e pelas
palavras de incentivo e confiança nos momentos de insegurança.
Por aceitar partilhar comigo desta caminhada.
À minha grande amiga Santusa:
Sócia e irmã de coração. O seu apoio incondicional
foi a base que permitiu a construção de todo este trabalho. E
sem base, ele nada seria.
À minha grande família e amigos:
Por compreenderem a necessidade da ausência.
Pelo grande apoio nas horas mais incertas.
A todos serei eternamente grata.
Mas a minha maior gratidão é para com Deus.
Obrigada por cuidar de mim com tanto carinho.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza, pelo grande exemplo de dedicação, sabedoria e
desprendimento que somente os grandes sabem ter. O seu brilhantismo profissional e a sua
carreira acadêmica serviram de exemplo e grande incentivo para que eu começasse a
caminhar nesta seara.
Aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/MINAS, em
especial, à Professora Marinella Machado Araújo, pelo seu brilhantismo e por compartilhar
durante as suas aulas e fora delas com a sua sabedoria, indicando o caminho e trazendo
novas ideias na busca do conhecimento.
Aos meus caros colegas de Mestrado, que também contribuíram com profícua troca de
experiências e com a amizade necessária nos momentos de angústia na produção deste
trabalho.
A todos, agradeço de coração!
RESUMO
O presente trabalho se propõe a realizar uma análise da transformação dos
institutos jurídicos da propriedade e da posse na modernidade com o advento e
desenvolvimento do princípio constitucional da função social da propriedade
discutindo questões de como ele pode ser concretizado ou aplicado. Para se
compreender melhor o novo princípio da função social aplicado à posse e
propriedade, serão traçados os contornos históricos no direito pátrio e também no
direito comparado, delimitando assim o seu conteúdo em diversos países que o
adotaram anteriormente ao Brasil. Voltando ao direito pátrio, será realizado um
bosquejo do vocábulo “propriedade”, constante no inciso XXII do artigo 5° da
Constituição da República, para constatar se a posse está ou não inserida naquele
conteúdo. Em estando a posse subsumida no vocábulo “propriedade”, inserto no
inciso XXII do artigo retro mencionado, será analisada a consequência de sua
aplicação à proteção possessória. Com a análise do instituto da posse sob a nova
roupagem da função social, moldando o seu conceito internamente ou limitando-o,
serão analisadas as possíveis consequências deste novo paradigma nas ações
possessórias e petitórias, trazendo exemplificações e ponderações dos conflitos
atuais. Por fim, será desenvolvida a ideia da “posse maxiqualificada” em razão da
inclusão do princípio constitucional da função social como mais uma qualificadora
para o deferimento das ações de usucapião. O método utilizado é o analítico, sendo
o estudo embasado em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, doutrina e
jurisprudência, tanto do ordenamento jurídico brasileiro quanto no direito comparado.
Palavras-chave: Posse. Propriedade. Função Social.
ABSTRACT
This paper aims at analyzing the transformation of property and ownership juridical
institutions in the modernity with the advent and development of the constitutional
principle of property social function, discussing questions as how it can be
concretized or applied. In order to better understand the new social function principle
applied in ownership and property, historical facts on national rights as well as
compared rights will be described, focusing its content on many countries which
adopted it before Brazil. Concerning the national right, the word “property” will be
outlined, which is present in section XXII of the 5th article of the Constitution of the
Republic, to verify whether ownership is inserted in its content or not. If ownership is
subsumed in the vocabulary of “property”, inserted in section XXII of the article
previously mentioned, the consequences of its application to the ownership
protection will be studied. By analyzing the institute of ownership under the new
concept of the social function, by shaping its concept internally or limiting it, the
possible consequences of this new paradigm in the possessory and petitionary
actions will be studied, bringing examples and reflections to current conflicts. Finally,
the idea of a “maxi-qualified ownership” due to the inclusion of the constitutional
principle of the social function will be developed as an extra qualifier to the approval
of the usucaption actions. The analytical method was used, and the study was based
on infra-constitutional and constitutional, doctrine and jurisprudence provisions of the
juridical ordination as well as the compared rights.
Key-words: Ownership. Property. Social Function.
LISTA DE ABREVIATURAS E DE SIGLAS
Aci- Apelação Cível
Art.- Artigo
CCB/02- Código Civil Brasileiro de 2002
CCB/16- Código Civil Brasileiro de 1916
CNA - Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária
CPC- Código de Processo Civil
CR/88 - Constituição da República de 1988
Inc.- Inciso
INCRA- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LAR- Ley de Arrendamiento
Min.- Ministro
MST- Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MTST- Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
n.°- Número
p.- Página
p.ex.- Por exemplo
Rel.- Relator
RJ- Rio de Janeiro
Séc.- Século
Sem.- Semestre
SP- São Paulo
STF- Supremo Tribunal Federal
STJ- Superior Tribunal de Justiça
TJMG- Tribunal de Justiça de Minas Gerais
v.- Volume
v.g.- verbi gratia
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................10 2 A EVOLUÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE NA MODERNIDA DE ..............14 2.1 O estado liberal e o individualismo jurídico ... ................................................14 2.2 A crise do estado liberal ...................... .............................................................23 3 O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES P RIVADAS. A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E SUAS CONSEQUÊNCIAS ........ ..........................30 3.1 Consequências da constitucionalização do direit o privado .........................34 3.2 A autonomia privada, limitações ao direito de p ropriedade e a função social..................................................................................................................................38 4 A PROPRIEDADE PRIVADA FUNCIONALIZADA NO ÂMBITO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO..................................................................................44 4.1 Do poder absoluto ao poder funcional........... .................................................47 4.2 A propriedade como direito relativo e poder fun cional - da dimensão estática à dimensão funcional ...................... .........................................................53 5 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO COMPARA DO..............65 5.1 A função social da propriedade na Alemanha..... ...........................................65 5.2 Função social da propriedade no México ......... ..............................................67 5.3 A função social da propriedade na Itália...... ..................................................71 5.4 A função social da propriedade na Espanha ...... ............................................72 5.5 A função social da propriedade na França ....... ..............................................75 5.6 Função social da propriedade em outros países .. .........................................76 5.7 A função social da propriedade no Brasil....... ................................................78 5.8 A função social da propriedade como princípio .. ..........................................86 5.9 A propriedade imobiliária urbana e rural e o pr incípio da função social .....95 6 DAS TEORIAS DA POSSE ............................. ......................................................99 6.1 A Gewere e o direito canônico .................. .....................................................103 6.2 As teorias de Savigny e Jhering ................ ....................................................105 6.2.1 A teoria subjetiva de Savigny .........................................................................105 6.2.2 A teoria objetiva de Jhering ...........................................................................107 6.2.3 A teoria da apropriação econômica de Saleilles.............................................109 6.3 A posse como situação de fato ou direito subjet ivo....................................110 6.4 A influência das teorias da posse e o aumento d e sua importância no ordenamento brasileiro............................. ............................................................116 6.5 O princípio da função social aplicado à posse.. ...........................................120 6.5.1 Consequências da aplicação do princípio da função social ...........................123 6.5.2 Conflitos entre proprietário desidioso x possuidor..........................................125
6.5.3 As invasões de terra podem ser justificadas pelo cumprimento da função social? .....................................................................................................................126 6.6 A posse maxiqualificada para fins de usucapião. ........................................134 7 CONCLUSÃO ........................................ ..............................................................137 REFERÊNCIAS.......................................................................................................142
10
1 INTRODUÇÃO
De uma simples aproximação da doutrina e jurisprudência existente sobre o
tema da função social da propriedade privada se pode constatar que, debalde muito
já tenha sido discutido, há ainda muito que se escrever em torno da questão. São
vários os pontos para serem aclarados, precisados e harmonizados
sistematicamente em torno da função social que o direito de propriedade tem que
cumprir em seu exercício de forma e modo a alcançar a eficiência esperada e
almejada por um bem escasso e muito concentrado nas mãos de poucos.
Aliás, uma das principais causas para que não exista ainda um consenso
sobre o enorme debate doutrinário no que tange à função social da propriedade
privada com a exteriorização de posturas tão díspares reside exatamente na
indubitável utilidade prática que continua revestindo tal matéria e na escassez da
propriedade e com tantos a pretendê-la.
Como é sobejamente conhecido, a propriedade privada tem sofrido profundas
transformações que acontecem paralelas à crise dos pressupostos dogmáticos do
individualismo jurídico e ao nascimento de uma nova forma de Estado que, a seu
tempo, traz consigo o ressurgimento do conceito da função social.
Embora sejam estas transformações radicadas na contemporaneidade, a
função social não é uma novidade com poucos anos de vida, poderíamos dizer que
é uma ideia já secular, podendo ser perfeitamente deduzida dos ensinamentos da
Bíblia, do direito romano, e ainda, dos filósofos do ocaso do Séc. XIX.
A doutrina aponta São Tomás de Aquino, como aquele que anteviu o traço de
direito natural no direito de propriedade e que, com o passar do tempo, modificou-se
para admitir a apropriação individual daquilo que era originalmente coletivo.
Como nos ensinou Luiz Edson Fachin (1988a)1
O processo histórico de apropriação do homem sobre a terra desenvolveu-se de modo artificial, e em cada época a propriedade constituiu-se de contornos diversos, conforme as relações sociais e econômicas de cada momento. O grau de complexidade hoje alcançado pelo instituto da propriedade deriva indisfarçavelmente do grau de complexidade das relações sociais. (FACHIN 1988a, p. 18)
1 FACHIN, Luiz Edson. Função social da posse e a propriedade contemporâne a. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988a, p. 18.
11
Por essa razão, é provável que o significado que a função social adquiriu em
seus primórdios e nas mais remotas manifestações doutrinárias (COMTE, DUGUIT),
ou ainda, nas normas fundamentais nas quais tal conceito surgiu como natureza
jurídica primeva (WEIMAR, 1918-19) não sejam compatíveis com o conceito que
hoje se esboça na CR/88 e nas demais constituições contemporâneas.
Pode-se assinalar que grande parte da dificuldade inerente ao estudo da
função social da propriedade privada e da posse radica no caráter interdisciplinar
que reveste tal matéria.
Quando, num primeiro momento, foram iniciados os estudos em torno da
função social da propriedade privada, já era dado conhecer que se estaria
enfrentando um tema que, com frequência, dialoga com múltiplas e variadas
disciplinas e nem todas elas jurídicas. Tal se confirmou quando, no decorrer da
pesquisa, foram necessários estudos no âmbito da Teoria do Estado, do Direito
Constitucional, do Direito Privado em geral, da Análise Econômica do Direito, da
Sociologia, da Filosofia do Direito, todas elas necessárias para se formar uma
imagem fiel do que o vigente ordenamento brasileiro espera da propriedade privada
e da sua função social.
Lado outro, é forçoso constatar que a função social da propriedade privada e
da posse se encontra gravada por uma profunda carga ideológica que, desde seu
nascimento e inicial incorporação aos textos jurídicos, condiciona em grande medida
o debate e a discussão doutrinária que se tem desenvolvido a respeito do tema.
A título de função social se têm pronunciado movimentos ideológicos tão
díspares quanto divergentes como, v.g., os que caracterizam a doutrina da Igreja
Católica (Pastoral da Terra), as utopias de tendência coletivista próprias das forças
políticas de esquerda (MST, Força Campesina, etc.) e, também, as mais
conservadoras correntes políticas Confederação Nacional da Agricultura (CNA,
Frente Parlamentar da Bancada Ruralista) que, em um constante embate com
aquelas, se mostra reticente ao abandono dos esquemas jurídico-dominiais que
tinham como pressuposto a livre concorrência, assim como a não intervenção
estatal, somente admitida a título de exceção e como correção dos exageros de um
sistema regulado pelas regras do capitalismo.
Frente a esta indubitável carga ideológica inerente ao conceito da função
social, não acreditamos ser adequado qualquer pronunciamento a favor dos
radicalismos ou extremos. A não aceitação de qualquer postura radical, a nosso ver,
12
encontra-se mais consentânea e congruente com o desenho constitucional traçado
para o regime jurídico da propriedade privada e à forma em que a CR88 regula a
ação do interesse social no exercício das faculdades dominiais.
A função social na nossa Constituição da República de 1988 se mostra como
uma fórmula de compromisso. A disciplina constitucional da propriedade privada se
assenta em um delicado equilíbrio entre interesse individual e interesse social, no
entendimento de que nenhum deles pode desconhecer ou prevalecer totalmente
sobre o outro. Tal entendimento é reforçado inclusive nos requisitos para
desapropriação, onde sempre existe o direito à indenização. Dentro desta
perspectiva, há necessidade no momento atual de coordenação entre a satisfação
do interesse individual do proprietário e da efetiva realização das exigências sociais
da coletividade.
Por essa razão, deve-se juridicamente, rechaçar toda e qualquer tentativa,
embasada em conceitos ideológicos, que pretenda dotar o interesse social de
absoluta e total preferência frente ao interesse individual, ou vice versa.
Em síntese, os motivos ideológicos não parecem suficientes para dotar a
propriedade privada e a função social que esta terá de cumprir em seu exercício, de
uma dimensão discordante da fisionomia constitucional do Estado Democrático e
plural traçado.
Também já se encontra superada a ideia que a função social seria um
conceito metajurídico, facilmente maleável, de caráter político e de complicado
enquadramento nos textos normativos. Hoje, ao contrário, é indubitável que a função
social é uma autêntica regra jurídica, cujas diretrizes gerais de atuação aparecem já
mencionadas na Constituição, que é a Norma Jurídica Suprema do nosso
ordenamento e, como tal, vincula diretamente tanto os poderes públicos como os
cidadãos.
Com base neste pensamento de não adesão aos radicalismos, tendo por
fulcro a elaboração de uma dissertação de caráter científico e apartidária, foi feita
toda a pesquisa sobre a função social.
Após exaustiva análise do princípio da função social inicialmente aplicada ao
direito de propriedade face à redação do artigo 5º da Constituição da República de
88, parte-se para perquirir se o princípio da função social, apesar de literalmente
jungido ao direito de propriedade, pode ser extendido ao instituto da posse.
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E assim, inicia-se o estudo da posse sob uma ótica funcional, traçando um
paralelo entre a função social da propriedade e a função social da posse,
individualizando-a e conformando-a como instituto próprio que pode ser tratado
como gerador de relação ou situação jurídica. E, como tal, deverá ser exercida
também respeitando o princípio constitucional da função social.
Por fim, serão analisadas as consequências do princípio da função social na
solução de problemas envolvendo litígios possessórios e petitórios, quando serão
trazidas à baila algumas decisões judiciais que enfrentam a questão. Por oportuno,
serão desenvolvidas também as primeiras linhas da “maxivalorização” da posse para
fins de deferimento ou indeferimento de medidas judiciais que visem à concretização
da propriedade, através das ações de usucapião.
14
2 A EVOLUÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE NA MODERNIDA DE
2.1 O estado liberal e o individualismo jurídico
Desde a perspectiva da realidade atual, assentada sobre os pressupostos do
Estado Democrático de Direito, consagrado no art. 1° da Constituição da República
de 1988 (CR88), não é mais de causar estranheza que a Constituição tenha normas
de Direito Privado que regulem as relações entre os particulares.
Mas nem sempre foi assim. Nos ensinamentos de Galgano (1992)2, a
presença de normas de Direito Privado em texto constitucional seria o resultado de
uma transformação das Constituições modernas, operada através de um processo
histórico que transcorre simultaneamente à crise das ideias liberais e que alcança o
seu ápice com a Revolução Bolchevique de 1917 e, juridicamente, é simbolizada
pela Constituição alemã de Weimar.
No decorrer do período que vai desde o final do Séc. XVIII até o Séc. XIX, as
Constituições se haviam identificado com o processo de desmantelamento do
estado absolutista e à edificação do Estado de Direito.
As declarações fundamentais de ordem liberal obedeciam ao propósito de
superar os pressupostos do Antigo Regime. Consequentemente, a liberdade da
pessoa humana, a igualdade dos cidadãos, a fraternidade, a propriedade absoluta e
a plenitude da autonomia privada foram eleitos como princípios básicos da nova
ordem a ser instaurada.
Paralelamente, entendendo a evolução da época, é de se destacar que, por
influência das teorias e dos avanços obtidos na física, matemática, fisiologia,
astronomia, dentre outras ciências exatas, tanto o racionalismo quanto o empirismo
adotaram pontos de vista claramente atomistas para justificar ou explicar a
sociedade. Segundo estas teorias atomistas, a matéria, quer dizer, a sociedade,
apareceria formada por simples átomos, indivíduos isolados, meramente
justapostos.
2 GALGANO, Francesco. Diritto Privatto . 7 ed. Padova: Ed. Cedam, 1992, p. 46.
15
O indivíduo, descrito assim, como centro de um sistema social em que se
encontram suprimidos os corpos intermediários, constitui um valor primordial do qual
derivam todos os demais.
Esta posição atomista tem importância para a definição da nova ordem, ou
seja, o sujeito individual passa a ser um dado pré-social, e como tal, contrapõe-se à
sociedade. O indivíduo, portanto, é um ser de caráter abstrato que se valora como
uma realidade em si mesmo, sem estar submetido ao mundo das relações sociais, é
um ser auto-suficiente, alheio ao contexto social que não necessita dos demais e se
relaciona tão somente naquelas ocasiões em que quer e na medida em que quer.
Tal postulado é sobejamente encontrado na máxima do liberalismo: “Ninguém pode
se obrigar senão em razão da sua vontade.” (LUCARELLI , 1990, p. 10, tradução
nossa)3
As relações humanas assim passam a existir e se governam pela vontade dos
indivíduos que, portanto, tem de ser plena, livre e inviolável, constituindo lei entre as
partes contratantes. É o reinado absoluto da autonomia da vontade.
É neste contexto que se desenvolve a ideia de que a autonomia contratual é
uma insubstituível companheira do direito de propriedade. É o único modo
imprescindível para tornar efetivos os direitos de gozar e dispor ao proprietário.
Neste sentido, afirma Portalis (1989) que
os homens devem poder tratar livremente de tudo o que lhes interessa, suas necessidades lhes acercam, seus contratos se multiplicam, tanto como suas necessidades. Não há legislação no mundo que possa determinar o número e fixar a diversidade de acordos a que os assuntos humanos são suscetíveis (PORTALIS, 2004, p. 78).4
A partir desta premissa, a sociedade aparece como uma mera justaposição
dos indivíduos. Dentro desta nova ordem, a sociedade não é nada mais que aquele
lugar onde se produz o encontro e a racionalização dos interesses dos indivíduos.
Irti (1992), trazendo as palavras de Carnelutti, esclarece que na ordem liberal,
o indivíduo se contrapõe ao grupo social, a parte se opõe ao todo.
3 Nadie puede obligarse sino en la medida en que quiera (LUCARELLI, 1990, p. 10-11) 4 PORTALIS, Jean Etienne Marie. Discours Préliminaire, (Conseil d'Etat), en Naissan ce du Code Civil: An VIII-an XII-1800-1804. Préface de François Ewald. Paris: Ed Flammarion, 2004, p. 78.
16
Referindo-se ao Código Civil italiano de 1865, diz Natalino Irti (1992)5
Na idade liberal - a idade que se encerra em 1914 entre os esplendores da grande guerra -, o sistema normativo gravita completamente em torno do Código Civil. O Código Civil de 1865 contém os princípios gerais, que orientam a regulação das particulares instituições ou matérias, e que, em última instância, servem para colmatar as lacunas do ordenamento. (IRTI, 1992, p. 93).
Essa concepção de sociedade não significa que fosse ela anárquica, pelo
contrário, era dotada de uma ordem própria, de normas próprias que lhes eram
inerentes e até mesmo anterior ao direito positivo e ao Estado. A sociedade liberal
se encontrava governada pelas leis da natureza e era totalmente imune à coerção
jurídica.
A vida dos indivíduos na sociedade se regia pelas leis de um mercado de alto
capitalismo. Neste contexto social, as leis se mostravam capazes de converter os
egoísmos privados em interesses comuns (private vices, public benefits). O interesse
individual vinha sempre em primeiro lugar.
O indivíduo somente tinha que se preocupar com a satisfação do seu próprio
interesse e necessidade, sem ter que sequer cogitar da existência de um interesse
social.
O bem comum não entrava em consideração para decidir a estratégia de
atuação individual, posto que o indivíduo perseguia exclusivamente seus interesses.
E, como sustentáculos de toda a teoria liberal encontravam-se os
ensinamentos de Adam Smith (1776): os homens, ao buscar livremente seu
interesse, procuravam o melhor para a sociedade, conduzidos por uma “mão
invisível” a promover um fim que não era parte de sua intenção inicial, mas que era
alcançado ao final.
Consequentemente, o indivíduo não tinha que se inquietar com a obtenção de
interesse geral ou social, nem sequer precisava cogitar atingi-lo, porque este já
estava inconscientemente sendo alcançado quando atuava em seu benefício
exclusivo.
Denota-se nesta concepção de relação entre indivíduo e sociedade uma
identificação do interesse individual com o geral. Com a assunção do pensamento
jusnaturalista, superou-se assim a dicotomia entre o interesse individual e o social, 5 IRTI, Natalino. Leyes especiales (del mono-sistema al poli-sistema) , La edad de la descodificación . Barcelona: Bosch, 1992, p. 93
17
aparecendo o primeiro como um eficiente instrumento na realização do segundo,
porque o fim do direito é o indivíduo, e a sociedade é mero instrumento para a
consecução deste objetivo.
Em verdade, se tratava de um individualismo fundado na ideia da perfeita
concorrência dos interesses individuais, sua harmonização e racionalização
espontânea, mediante leis gerais.
E, como não poderia deixar de ser, o ponto cardeal desta ordem social natural
é o reconhecimento da propriedade privada como um direito do indivíduo para a
satisfação de seu interesse pessoal e de liberdade.
A propriedade privada é considerada como um atributo ou prerrogativa do
indivíduo, que se afirma proveniente da ordem natural, entendido como aquele
estado em que todos os homens são livres e iguais por natureza.
Esta linha de pensamento era professada por vários doutrinadores e pode ser
constatada em Rodotá (1967)6 que estimava que a ordem liberal da propriedade
mostrava-se como um atributo da personalidade.
A teoria da ordem natural constituiu, portanto, uma importação do
jusnaturalismo racionalista que teve seu máximo representante em John Locke,
principalmente em suas obras o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil (1689) e
Ensaio Acerca do Entendimento Humano (1690), citado por Bobbio (1997), estatui
que:
o estado da natureza é um estado de perfeita liberdade na regulação das próprias ações, dos próprios bens e da própria pessoa, dentro dos limites da lei natural. E é também um estado de igualdade em que os poderes e jurisdições são recíprocos, não podendo um ser mais que outro. E isto se dá porque o estado da natureza tem uma lei que a governa, a qual obriga a todos: a razão é que esta lei ensina que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve ofender o outro em sua vida, saúde, liberdade ou propriedade. (LOCKE apud BOBBIO, 1997, p. 104).7
Apesar de tudo, Locke (1978) admite a passagem do estado de natureza ao
estado civilizado, porquanto, no primeiro, falta a certeza e a regularidade da defesa
e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do superior.
6 RODOTÁ, Stefano. Proprietá : Diritto Vigente, in Novissimo Digesto Italiano. Diretto da A. Zara e E. Eula. Ed. Utet, Torino 1967, p. 133. T. XIV. 7 BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural . 2 ed. Trad. Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto, Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasília: UnB, 1997. p. 104.
18
Assim sendo, a propriedade, dentro do estado civilizado, é entendida como
uma decorrência direta do direito natural inerente à pessoa humana, da qual o
indivíduo goza ex iure naturae e que representa a exteriorização e projeção da
personalidade do proprietário sobre as coisas que lhe pertencem. Indo além, se
compreende que os bens são um prolongamento do ser humano e, em
consequência, negar o direito de propriedade seria como negar a pessoa, ela
mesma.
Desta maneira, a propriedade resulta na exteriorização do indivíduo sobre as
coisas deste mundo. Por este motivo, não se pode criticar, de todo, quem
defendesse que todo ataque aos direitos de propriedade que tenham sido
legitimamente adquiridos implicaria, também, num dano à pessoa que os detivesse.
Essa afirmação de que a propriedade privada seria um direito natural tinha
sido defendida por Portalis (1989), quando, em seu discurso de apresentação do
Código de Napoleão (1804), remontando ao pensamento de Locke, manifestava que
O homem nasce somente com necessidades, ele tem o trabalho de procurar o seu sustento e de se vestir. Ele tem então um direito natural às coisas necessárias para sua subsistência e sua manutenção. Aqui está a origem do direito de propriedade. [...]. O direito de propriedade é uma instituição direta da natureza, e a maneira em que a exercita é acessória, uma conseqüência da própria lei. (PORTALIS, 1989, tradução nossa)8.
Em suma, o jusnaturalismo racionalista que professa a ordem liberal e é
positivado no Código de 1804 fez o que antes não existia, ou seja, uma ligação
direta entre a ideia da liberdade e da propriedade, concebendo esta última como um
direito antecedente à ideia de Estado. Ambas, liberdade e propriedade, formariam
assim um binômio de onde se desenvolve uma ligação indissolúvel, uma relação
direta e imediata.
Mas este raciocínio da propriedade como um direito natural e prévio do ser
humano não é, nos dizeres dos Prof. Júlio Aguiar de Oliveira e Edgar Gaston Jacobs
Flores Filho (2008), a decorrência lógica evolutiva do direito de propriedade, mas
uma interpretação moderna que implicou em uma ruptura do paradigma anterior.
8 L’homme naît avec des besoins ; il faut qu’il puisse se nourrir et se vêtir : il a donc droit aux choses nécessaires à sa subsistance et à son entretien. Voilà l’origine du droit de propriété [...]. Le droit de propriété en soi est donc une institution directe de la nature, et la matière dont il s’exerce est un accessoire, un développement, une conséquence du droit lui-même. (PORTALIS, 1989).
19
Neste ponto histórico, nos dizeres de Oliveira e Flores Filho (2008)9:
Nessa nova visão de mundo, o indivíduo, criado à imagem do burguês, é o sujeito de direitos por excelência. O Estado legitima-se na medida em que pode ser pensado como decorrência de um contrato entre indivíduos, que negociam seus direitos naturais preexistentes à própria organização política. O direito de propriedade individual é, antes de tudo, um direito natural, anterior ao próprio Estado. (OLIVEIRA; FLORES FILHO, 2008, p. 133).
Essa concepção de sociedade, como uma ordem autorregulada, e da
propriedade como um direito inerente ao sujeito individual foi atada
indissoluvelmente à idéia de liberdade, repercutindo diretamente nas atividades que
passaram a ser concedidas ou permitidas ao Estado, e nas atividades que
competiam exclusivamente ao indivíduo, sem qualquer ingerência estatal.
Já desde meados do Século XVIII, vários fisiocratas, diretamente
influenciados por Locke (1999) e pelo jusnaturalismo racionalista, defendiam, além
da teoria de que a terra era a única e verdadeira riqueza, a tese da separação
estado-sociedade com a total prevalência desta em detrimento daquele.
Em consonância, sustentavam que a atividade estatal deveria ser reduzida ao
mínimo e, desde logo, todo e qualquer intento de interferência nas relações
econômicas e sociais entre os particulares deveria resultar condenado.
A máxima de não interferência estatal e liberdade ao indivíduo partia da ideia
de que se os indivíduos eram livres e capazes de prover-se a si mesmos, sendo
iguais entre si, não haveria sentido defender a intervenção do Estado como meio
para a satisfação das necessidades individuais. Hoje, sabe-se que a premissa da
igualdade formal naufragou.
Mas, continuando a linha de raciocínio, a divulgação e expansão do
pensamento liberal convergiu para a ideia de que a esfera de liberdade do indivíduo
é pré-existente ao Estado. Assim, a liberdade individual aparece como ilimitada em
princípio e o poder estatal limitado ao mínimo e excepcional.
Concluindo, a intervenção do estado somente era admissível
excepcionalmente naqueles casos em que seria imprescindível para corrigir
eventuais disfuncionalidades que pudessem surgir no sistema autorregulado
mediante leis naturais emanadas da “reta razão”, ou seja, o Estado deveria cumprir
9 OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; FLORES FILHO, Edgar Gaston Jacobs. Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte , v.11, n.22 , p.129-140, jul. 2008.
20
o papel de manter a ordem, estabelecendo a segurança, entendida esta como a
certeza da liberdade concedida pela lei. Fica, portanto, o Estado relegado a um
segundo plano, a um simples “vigilante noturno”.
Nas relações privadas, e em concreto, no exercício do direito de propriedade,
o poder público estatal praticamente não comparece, e quando o faz, se apresenta
mais como um guardião ou protetor da ordem estabelecida do que como um
protagonista das situações disciplinadas.
Portanto, na ordem liberal, o Estado é um simples adjetivo das relações
sociais cuja principal atividade é a inação.
Trata-se logicamente, da vigência do princípio liberal do Laissez faire, laissez
passer. Le monde va lui même.10
Em conclusão, da aplicação deste princípio, e tudo o que ele comporta,
Estado e sociedade se mostram totalmente dissociados. No Estado Liberal, a
sociedade aparece como símbolo da pluralidade, como o âmbito espontâneo e
natural onde se desenvolve o livre jogo de forças individuais, ao contrário do Estado,
uma unidade dada que representa o artificial e o arbitrário. Ambos se colocam um
em frente ao outro, sem relação alguma, em posições antagônicas, como caminhos
que nunca se encontram.
E o mesmo ocorre no Estado Liberal com o direito de propriedade, segundo
Oliveira e Flores Filho (2008)11:
O direito de propriedade, que até então tinha por base uma interação entre proprietário e comunidade, passou a dar ênfase à posição negativa da comunidade. Foi com base nesse aspecto, ou seja, com fundamento no direito de excluir, que se construiu a portabilidade da propriedade privada, que acrescentaria à antiga fórmula romana o direito de dispor. (OLIVEIRA; FLORES FILHO, 2008, p. 133).
10 A máxima Laissez-nous faire é atribuída ao comerciante Legendre que, indagado pelo ministro francês Colbert, sobre o que poderia fazer para ajudar, respondeu: "Nos deixe fazer (Nous laisser faire)". (KEYNES, 2008). 11 OLIVEIRA, Júlio de Aguiar. FLORES FILHO, Edgar Gaston Jacobs. Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 133.
21
Como destaca Grossi citado por Oliveira e Flores Filho (2008)12,
não se trata de uma evolução histórica, mas de uma ruptura, ou, em outros termos, de uma deformação da categoria essencial de apropriação de bens. A antropologia dominial da Idade Moderna não tem fundamento na ideia original de ocupação decorrente das “leis naturais”, mas numa nova opção feita pela burguesia em atenção aos seus próprios interesses. (GROSSI apud OLIVEIRA; FLORES FILHO, 2008, p. 133).
Essa patente dicotomia entre sociedade (âmbito privado) e Estado (âmbito
público), proclamada no Estado Liberal, produz o efeito de articular uma contundente
separação entre a lei comum do direito privado, constituída pelos Códigos Civis e a
as Constituições.
Os códigos se encarregavam de regular as relações jurídico-privadas, sob a
égide dos pressupostos da liberdade e da autonomia privada, ou seja, estava criada
a norma fundamental e primária da sociedade, dentro da ordem burguesa.
Por outro lado, o objetivo das constituições liberais era fixar os fins a que
deveriam se dirigir as ações do Estado em seu conjunto, assim como os limites
impostos à sua atividade.
As constituições do Séc. XIX se limitavam a regular o funcionamento e
organização dos poderes públicos, assim como as relações que se estabeleciam
entre os órgãos mediante os quais se exercitava a atividade estatal.
Tais constituições do Estado Liberal eram, deste modo, normas reguladoras
da atividade do Estado e deviam, como tal, se circunscrever ao âmbito da vida
pública e impedir que o Estado entrasse na esfera de competência do direito
privado.
Eram mínimas as interferências na vida privada, que acabaram fora do campo
de atuação das Constituições liberais, circunscritas à regulamentação de possíveis
relações nascidas entre os poderes públicos e os particulares.
No âmbito relacional circunscrito (poderes público-particulares) a finalidade
perseguida pela constituição liberal era garantir a plena inviolabilidade e
intangibilidade dos direitos individuais da pessoa frente à ação estatal.
Nesta perspectiva, há que se reconhecer, em nível constitucional, a
propriedade privada como um direito inviolável e sagrado, quase absoluto.
12 OLIVEIRA, Júlio de Aguiar. FLORES FILHO, Edgar Gaston Jacobs. Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade. Revista da Faculdade Mineira de Direito , Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 133.
22
A constituição liberal não atende às relações existentes entre proprietários
individuais, senão que pretende, única e exclusivamente, proteger o individuo titular
de um direito de propriedade frente aos potenciais ataques provenientes do próprio
Estado.
É importante ressaltar que esta proteção da propriedade frente à ação estatal
pode ser plenamente justificada se tivermos em mente o contexto histórico em que
nasceram as constituições liberais.
Não obstante, é conveniente ressaltar que esta configuração constitucional
trazia o risco de transformar a propriedade privada em um mero direito de resistência
frente ao poder público. Neste ponto, é possível trazer à baila que a liberdade liberal
foi, sobretudo, concebida como uma liberdade contra a repressão e arbitrariedade
política, ou seja, como liberdade frente ao Estado, ou liberdade negativa.
Analogamente, poderia dizer que a propriedade liberal foi concebida como
livre de todo tipo de vínculos ou limites que pudessem ser impostos pelo Estado. De
novo, aflora a liberdade entendida em sentido negativo.
Tendo alcançado a vitória sobre o Antigo Regime, o pensamento liberal
concluiu que a via mais adequada para a consecução do objetivo de liberdade era o
reconhecimento, a nível constitucional, da propriedade privada como um direito
inviolável e sagrado.
Em suma, com o Estado Liberal, a norma suprema do direito público passou a
ser a constituição e a norma suprema do direito privado, os códigos civis.
Entretanto, como afirmado por José Luiz Quadros de Magalhães (2002) 13:
[No entanto] Esse liberalismo utópico do século XVIII, que afirma a neutralidade do Poder Público diante dos problemas sociais, conduziu os povos livres a um capitalismo absorvente, desumano e escravizador... Os desajustamentos e as misérias sociais que a revolução industrial suscitou, o liberalismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis. (MAGALHÃES, 2002, p. 131).
13 MAGALHAES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional . 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 131. T. 1
23
2.2 A crise do Estado Liberal
Já em meados do Séc. XIX começa a se tornar patente que os objetivos que
foram considerados transcendentais na ideologia liberal burguesa se mostraram
inatingíveis na prática. Em sua maior parte, se converteu em quimeras utópicas e
declarações retóricas, fruto do eufórico espírito revolucionário, que pretendia marcar
uma fronteira radical e diferenciadora do Antigo Regime. (CANOTILHO, 1993).
Consequentemente, as constituições e declarações de direito apareciam
como simples normas programáticas que, como tal, careciam de uma autêntica
eficácia e aplicação imediata, porque não tinham mecanismos necessários para
tanto.
Por outro lado, e como resultado da mesma causa, as normas constitucionais,
consideradas como simplesmente programáticas, somente assinalavam as diretrizes
gerais que prescindiam de uma atuação do legislador. E, portanto, em nenhum caso,
vinculavam os próprios legisladores e, menos ainda, os órgãos encarregados da
aplicação do Direito.
As manifestações legais da ordem liberal e a realidade tinham trajetórias
totalmente diferentes. Uma coisa era o que a nível dogmático e formal declaravam
as normas liberais, outra coisa, totalmente distinta, era o resultado de sua aplicação
prática.
Como exemplo, várias declarações de direito previam que os homens eram,
por natureza, livres e independentes e que tinham certos direitos, v.g., à vida, à
propriedade. Entretanto, a escravidão ainda existia. A prática era totalmente
contrária às normas.
A finalidade teórica perseguida pelo Estado Liberal e por suas disposições
normativas não alcançava verdadeira realização. Tratava-se, portanto, de ideais
filosóficos puros, que, embora por circunstâncias conjunturais se positivaram,
caracterizavam normas de difícil aplicação efetiva.
A vigência do dogma liberal do laissez faire deu azo a um desenvolvimento
descontrolado de um capitalismo de tal calibre que produziu agudas crises
financeiras e enormes e não menos importantes problemas sociais.
No âmbito econômico, a política liberal do “deixem fazer” trouxe consigo
periódicas e constantes crises, aumento nos extremos de pobreza e de riqueza,
24
corrupção da Administração pública por grupos de interesse dominantes e, com
frequência, substituição da competência autorreguladora pelo monopólio. (KEYNES,
2008).
A respeito da distribuição da riqueza, os ganhos do liberalismo não eram
repartidos equitativamente e em consequência, produziam mercadorias menos
necessárias para as classes mais favorecidas em detrimento de enormes carências,
v.g., educação, saúde, alimentação, moradia, para classes menos favorecidas.
O princípio do laissez faire e a liberdade plena do exercício do direito de
propriedade justificaram condutas absenteístas de proprietários de grandes
extensões de terras férteis, mantidas sem cultivo ou exploração, mesmo diante da
constatação de escassez de produtos, atuando como obstáculo ao desenvolvimento
econômico que culminou gerando aguda crise financeira. (KEYNES, 2008).
Em suma, o laissez faire trouxe como consequência que cada indivíduo,
olhando egoisticamente para si mesmo e despreocupado do entorno social, gerou
um importante freio ao desenvolvimento econômico e produtivo de toda a sociedade.
A crise econômica acarretada pelo sistema liberal de mercado autorregulado
descambou para uma crise social. O poder que surgia das relações privadas de
produção originou, a médio e longo prazo, a submissão das classes menos
favorecidas às dominantes.
O domínio sobre as coisas se transformou em autoridade sobre as pessoas. E
assim como a estrutura social liberal, era patente a dominação dos proprietários
sobre os não proprietários.
Com a industrialização e o sistema de produção em massa, se gera uma
aguda demanda de mão de obra que provoca intensos movimentos migratórios de
grandes massas de população do meio rural para os núcleos urbanos.
Como os incipientes núcleos urbanos não estavam preparados para receber a
enorme leva de população trabalhadora, esta era direcionada aos subúrbios das
cidades, e moravam em condições degradantes. (CAENEGEM, 2000).
A situação das classes trabalhadoras era ainda pior quando se considerava
as enormes e duras jornadas laborais, que alcançavam também mulheres e crianças
e não somente homens adultos, tudo beirando ao regime de escravidão.
A total falta de segurança convertia a prestação do trabalho em um constante
risco à integridade física, inexistindo qualquer tipo de compensação por danos
advindos de acidentes rotineiros.
25
E, como relação privada, as relações de trabalho também se submetiam à
máxima da liberdade de contratação. O pensamento liberal entendia que o
trabalhador era igual ao empregador e, portanto, tinha a liberdade de contratar, e se
aceitava o trabalho, submetia-se às regras contratadas, não podendo elas sofrer
ingerências do Estado.
Assim, a desigualdade real era notória no mundo do trabalho. A equiparação
formal encobria grandes desigualdades substanciais que eram escancaradas no
momento em que o trabalhador deveria vender a sua força de trabalho.
Ante a situação da crise econômica e social, é inevitável perquirir sobre o
verdadeiro resultado prático das declarações formais que a ordem liberal defendia
como fundamentais, que, como já vimos alhures, eram a liberdade, a igualdade, a
fraternidade, a propriedade absoluta e a autonomia privada.
Nos dizeres de Grossi (1981),14 o ideal de igualdade se traduz na mais
profunda das desigualdades. A igualdade, apenas formal, própria da ordem liberal,
propiciou a desigualdade real. A inadequada distribuição da riqueza contribuiu para
que uns poucos, egoisticamente, acumulassem grandes patrimônios, enquanto
outros não possuíam sequer o necessário para manter uma existência em condições
dignas.
A igualdade formal de posições jurídicas não garantia a igualdade substancial
na distribuição dos bens. Com a igualdade formal, o rico havia se tornado mais rico e
adquirido mais poder, e o pobre se havia depauperado mais. De fato, a
desigualdade havia aumentado.
Assim sendo, um dos principais erros do Estado Liberal foi determinar que os
indivíduos fossem formalmente iguais. O equívoco, se é que se pode considerar
apenas como equívoca a adoção da igualdade formal em detrimento da substancial,
consistia em considerar iguais os diferentes, sem dar a cada um o tratamento que
lhe corresponderia, levando-se em consideração as suas desigualdades; colocar
como paritários, em situação jurídica, os indivíduos desiguais, e tentar fazer
formalmente igual quem, em realidade não era.
Em outro patamar, a ausência de igualdade material impediu, por seu turno,
que a tão reiteradamente proclamada liberdade fosse alcançada na prática.
14 GROSSI, Paolo. An alternative to private property: collective prop erty in the juridical consciousness for the nineteenth century . Chicago: The University of Chicago Press, 1981. p. 59.
26
A experiência prática deixou clara a existência de grupos formados por
sujeitos privados, dos quais emanava o poder que estava em condições de rivalizar
com o tão temido poder estatal, produzindo assim uma alteração do poder do Estado
para os grupos, na medida em que estes podiam exercer, de fato, uma autoridade
igual ou em maior grau que a própria organização estatal. Ou seja, ocorreu uma
mudança apenas no tocante a quem detinha o poder. Do Estado passou aos
grandes grupos de comerciantes que iriam aportar o capital necessário e exigido
para o incremento das transações comerciais capitalistas. (GROSSI, 1981).
Essa dramática situação, aprofundada pelo acirramento das desigualdades
sociais e pela falta de liberdade real, favoreceu, em meados do Séc. XIX o
surgimento de uma nova classe que passa a desempenhar o papel de antagonista
da burguesia. É neste contexto que surge a classe operária que, em razão da
experiência histórica será induzida a descobrir as relações privadas de produção.
O proletariado, ou a classe operária, descobre então que a sua mão de obra
também tem valor, é uma propriedade em si mesma, e começa a exigir uma
transformação que será moldada em toda uma série de reivindicações, em especial
sobre: regulação da jornada de trabalho, regulação da remuneração mínima, auxílio
aos doentes, educação, seguridade social, higiene e melhores condições de
trabalho. (CAENEGEM, 2000).
Estes pleitos da classe operária não se restringiram apenas aos núcleos
urbanos. Também é possível falar, ainda que em menor medida, sobre a questão
agrária, porque, no âmbito rural, as desigualdades sociais e a concentração de
renda também eram latentes.
O desequilíbrio na distribuição de terras e as tentativas de reduzir a crise
geraram injustas condições de trabalho e contratos agrários, porque os proprietários
abusaram da sua privilegiada posição sócio-econômica ao utilizar o seu poder
jurídico para submeter à sua vontade os arrendatários e trabalhadores agrícolas.
O ápice das reivindicações, tanto urbanas quanto rurais, ocorreu nos
movimentos franceses de 1848, que passaram a exigir o retorno da intervenção do
Estado nas relações jurídicas, de forma a diminuir as desigualdades fáticas geradas
nas relações de produção. O mercado, por si só, fracassou ao tentar se autogerir.
Era necessário que o Estado interviesse no mercado de forma a evitar um
colapso total da economia e da sociedade.
27
Finalmente, as reivindicações sociais se transformaram em políticas, e isto se
tornou claro com o reconhecimento do sufrágio universal, quando as classes
operárias e trabalhadoras passaram a ter o direito de voto.
Nas palavras de Luhmann: Pela representação popular, um número crescente
de aspectos da vida individual e, principalmente, as inúmeras sequelas das
consequências do desenvolvimento industrial, puderam ser introduzidas como
tópicos para a vida política. (LUHMANN, 1994, p. 37, tradução nossa) 15.
Todo esse conjunto de acontecimentos sócio-políticos e econômicos põem
em relevo a necessidade de rearranjar as teorias liberais em torno da sociedade,
Estado e suas relações.
Desse modo, a imagem da sociedade como uma ordem autônoma, intangível,
sacrossanta, onde se conjugavam os distintos interesses individuais foi substituída
por uma visão de confrontação e luta de interesses inconciliáveis, muito aos moldes
do preconizado por Hobbes.
A prática deixou claro que a política econômica do individualismo carecia de
sentido. A profunda crise econômica a que levou o sistema de mercado
autorregulado demonstrou a inaptidão do mercado para reger-se por si mesmo. A
mão invisível de Adam Smith mostrou-se incapaz de converter os benefícios
individuais em públicos.
Por estas e outras razões, a correção das graves distorções sociais e a
procura de uma efetiva realização do interesse geral da comunidade se converteu
em metas fundamentais a serem alcançadas pelas estruturas jurídicas e políticas
que surgiram em princípios do Séc. XX, tudo, em resposta ao fracasso dos
pressupostos liberais individualistas no âmbito social.
A regra do mercado que prescrevia que o indivíduo, atuando em sua própria
vantagem, geraria um benefício geral para a comunidade deveria ser invertida e
interpretada da seguinte maneira: o indivíduo, atuando na consecução do interesse
geral da comunidade obteria, como consequência, seu próprio benefício.
Tal como precisou Jhering: Já não é agindo o indivíduo para si que se
alcançará o benefício para a comunidade, mas sim, agindo para a comunidade é
15 Mediante la representación popular, um número creciente de aspectos de la vida individual, y ante todo, los innumerables secuelas de las consecuencias del desarrollo industrial, pudieron ser introducidas como temas de la vida política (LUHMANN, 1994, p. 37).
28
que se obtém o benefício individual. (JHERING, 1978, p. 47, tradução nossa).16
E para alcançar tal alteração e exigir do indivíduo uma mudança, o Estado
deveria passar a intervir nas relações e deixar de ser o mero guardião noturno, ou o
protetor e deveria assumir a postura de protagonista ativo das relações sociais.
O Estado deveria intervir nas relações jurídicas, sociais e econômicas e
assumir a competência de garantir a subsistência dos cidadãos e, em particular,
daqueles que necessitavam de maior amparo e socorro para a satisfação de
condições mínimas de sobrevivência digna.
Produzia-se, deste modo, uma socialização do Estado, acompanhada por
uma correspondente estatização da sociedade. A sociedade começa a necessitar do
Estado. O indivíduo, por seu turno, começa a buscar o Estado naquilo que não
encontra na sociedade.
A realização do interesse geral da comunidade social se converte num dos
princípios fundamentais que vai reger a atuação do Estado. Deste modo, a
sociedade, que durante o século anterior (XIX) constituía um mero dado
condicionante à atividade administrativa, se transforma, com a crise do Estado
Liberal, no dado essencial ao exercício das tarefas estatais - na socialização do
Estado.
Em suma, ao Estado compete, agora, a função de disciplinar e organizar a
ordem econômica, desordenada, mediante intervenção, atuando não mais como
mero expectador, mas como o guia que dirige o desenvolvimento, numa típica
definição keynesiana (KEYNES, 2010; KEYNES, 2008).17
É neste sentido de organização e direção geral que há de ser corretamente
aceita a intervenção estatal, já que em nenhum caso se pretende uma total
coletivização da economia. Ao contrário, defende-se uma tese mista na qual a
propriedade privada e a iniciativa econômica devem ser mantidas, entretanto, agora
dirigidas, coordenadas, limitadas pelo Estado com base no interesse geral.
Como consequência desta crescente intervenção estatal no âmbito
econômico e social, podemos concluir que no começo do Séc. XX a dicotomia
estado-sociedade, postulada pela ordem liberal, se mostrou totalmente superada.
16 Ya no es que actuando el individuo para si se obtenga el benefício de la comunidad, sino que actuando para la comunidad se obtiene el benefício del indivíduo (JHERING, 1978. p.47). 17 (KEYNES, 2010; KEYNES, 2008).
29
Esta nova fórmula de concepção da relação Estado-sociedade e o papel que
cada um deles assume supõem que a atuação do aparato estatal já não pode
configurar-se como meramente excepcional para situações pontuais em que surja
um problema do sistema autorregulado. A exceção se transforma em regra, pois a
intervenção estatal se vê agora como um adequado instrumento para a consecução
das necessidades econômicas e sociais de toda a coletividade. (KEYNES, 2010;
KEYNES, 2008)
A grande mudança de paradigma operada na concepção das relações
sociedade-estado não implica que este último possa intervir livremente. O Estado
deverá seguir, estando sujeito à lei, entretanto, esta deve permitir, por seu termo,
que aquele atue impulsionando a sociedade ao seu desenvolvimento.
A nova realidade não supõe em absoluto questionar a manutenção do Estado
de Direito, mas dotá-lo de uma nova faceta, um novo conteúdo social e econômico.
A finalidade garantidora e protetora deste modelo de Estado não desapareceu, mas
foi aprimorada.
O Estado de Direito deverá aportar um novo conjunto de meios para a
realização de objetivos infensos à dimensão social, e, por óbvio, não se olvidar da
dimensão econômica.
Embora seja certo que não se renega o princípio da legalidade, não é menos
certo dizer que este teve seu conteúdo alterado. Ele agora assume um intenso
compromisso social. A lei deverá contribuir para criar as condições necessárias que
fortaleçam a sociedade e seus membros, com especial atenção aos setores mais
necessitados.
Trata-se de alterar a concepção da lei, que não pode ser vista como meio
para garantir o livre desenvolvimento exclusivo de uma única classe (burguesa) em
detrimento das demais. Ao contrário, a ação legislativa deverá procurar a satisfação
das necessidades da sociedade em sua totalidade, sem favorecer a nenhuma classe
social específica.
30
3 O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES P RIVADAS. A
CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E SUAS CONSEQUÊNCIAS
As reivindicações de caráter social pleiteadas desde a Revolução de 1848 de
Paris começam a ter resposta em toda uma gama de leis especiais que vêm a lume
no final do Séc. XIX e posteriormente encontra lugar nos textos constitucionais que
se promulgam desde a segunda década do Séc. XX.
Assim, a Constituição Alemã de 1919, assume seriamente a pretensão de
criar uma ordem jurídica, econômica e social justa, dando guarida a todo um
conjunto de novos princípios que, pela primeira vez na história das constituições,
eram recepcionados em um texto constitucional parte da ideologia social democrata
que é hoje identificada pela doutrina como o marco inicial do Estado Social, e o
ponto intermediário entre o capitalismo e o socialismo. (HESSE, 1998).
Em sentido estrito, podemos dizer que a primeira vez que se receberam, em
nível constitucional, direitos econômicos e sociais, foi na Constituição Mexicana de
Querétaro de 1917. Não obstante, ainda que este texto constitucional gozasse de
um acento social, a doutrina majoritária acredita que a Constituição Alemã de 1919
apresenta uma maior transcendência na constitucionalização do Direito Privado e no
subsequente nascimento do Estado Social. Deste modo, os estudos que se referem
à análise dos direitos sociais nas constituições, ao nascimento do Estado Social e
indiretamente à constitucionalização do Direito Privado, normalmente ressaltam a
importância capital da Constituição de Weimar neste processo, ainda que somente
por alusões se refiram à Constituição Mexicana. (HESSE, 1998).
Neste âmbito, a Constituição Alemã nasce comandada por um profundo
espírito socializante que supõe a incorporação, junto aos clássicos direitos
individuais, de uma nova categoria de direitos denominados direitos econômico-
sociais, e se leva ao conteúdo constitucional a propriedade e outras instituições
privadas. (HESSE, 1998).
A Constituição do Reich contempla de uma parte, um grande número de
cláusulas econômicas e sociais dirigidas a regular os processos produtivos, a
atividade de prestação de serviço do Estado e sua intervenção na economia, e, por
outra parte, também recebe em seu conteúdo a propriedade e outras instituições
privadas. (HESSE, 1998).
31
Ante esta afirmação poderíamos perguntar: em que lugar se encontra a
novidade, já que, a propriedade privada é reconhecida nas primeiras declarações de
direitos e constituições do Estado Liberal?.
Para responder tal questionamento é conveniente fazer um estudo das
circunstâncias em que foi gerado o processo constituinte da República de Weimar.
A Constituição Alemã de 1919 surge de múltiplas transações entre os
divergentes pontos de vista presentes na Assembleia Constituinte. Nela, além das
forças políticas de tendência liberal que pretendiam a manutenção da economia
capitalista, baseada na propriedade privada dos meios de produção e a existência
do mercado, existiam também (como efeito do reconhecimento do sufrágio universal,
que permitiu o exercício de voto às massas trabalhadoras) outras forças políticas
que postulavam a instauração de um regime econômico socialista, mediante a
abolição da propriedade privada e a coletivização dos meios de produção. (HESSE,
1998).
A Constituição de Weimar surgiu como um produto da codificação de toda
uma série de acordos pretéritos. A título de exemplificação: Acordo de 1º de
Novembro de 1918 entre Hindenburg e Fiedirch Eber, Acordo Stinnes-Legier de 15
de novembro de 1918 e Acordo de 22 e 23 de Março de 1919 entre o governo e o
Partido Social Democrata. (HESSE, 1998).
Devido aos motivos tais como crescentes conflitos e a situação de crise
agravadas pela Primeira Grande Guerra, a ideologia socialista aumenta sua força e
poder efetivos.
Ante o recrudescimento dos setores socialistas e frente ao temor de que algo
semelhante à Revolução Bolchevique ocorresse na Alemanha, os liberais presentes
na Assembleia constituinte weimariana se viram obrigados a retroceder e buscar
uma integração, visando a estabilização de relações com os socialistas.
Desta maneira, a Constituição de Weimar nasce sobre a base da doutrina
chamada Social-Democrata, o movimento social renuncia a colocar em questão o
estado das relações de produção, a propriedade privada e o controle privado dos
processos de produção, e, em troca, recebe a garantia que o Estado intervenha no
processo de redistribuição, para assegurar condições de vida mais igualitárias, a
seguridade social e o bem-estar através de serviços, assistência e defesa. Portanto,
o estado deve tomar a seu cargo o problema da distribuição mais equitativa da
riqueza e do pleno emprego. Ou seja, pretende-se repaginar a existência do
32
mercado com uma regulação do mesmo que possibilite a articulação de políticas
redistributivas em favor dos setores sociais menos favorecidos. (HESSE, 1998).
Neste contexto de compromisso e consenso, se obtém a redação final do
Artigo 15318 e seus parágrafos da Constituição de Weimar que descreve:
A propriedade será garantida pela Constituição. Seu conteúdo e limites se deduzem das leis. §1º. Somente se poderá expropriar a bem da comunidade e com fundamente de Direito, tendo sempre como contrapartida a correspondente indenização, exceto quando uma lei do Reich determine outra coisa. No concernente à quantia de indenização, se manterá aberta em caso de litígio a via legal dos tribunais competentes, exceto quando uma lei do Reich determine o contrário. As expropriações feitas pelo Reich a Lander, municípios ou associações de uso público somente poderão efetuar-se mediante indenizações. §2º. A propriedade impõe obrigações. Seu uso deve c onstituir, ao mesmo tempo, um serviço para o mais alto interesse comum. ( DIE VERFASSUNG, 1933, grifo nosso, tradução nossa).
Do teor literal do citado artigo, parece deduzir-se que a propriedade deixa de
ser concebida como um direito natural inviolável, sagrado e de mera resistência
frente à ação governamental, para ter o seu exercício (obrigações jurídicas)
obrigatoriamente condicionado ao bem da comunidade. Ligação que legitima a
imposição da via legislativa de limites que, longe de serem considerados
excepcionais, passam a se enquadrar na regra.
Assim, a Constituição Alemã de 1919 pretende a consecução, no exercício do
direito de propriedade, de um delicado equilíbrio entre interesse individual e
interesse da comunidade. Equilíbrio que se põe quando observamos que, por um
lado, a Constituição garante o direito de propriedade (“A propriedade será garantida
pela Constituição”) e, por outro lado, se permite que a lei imponha limites ou molde o
seu conteúdo, sempre com base na realização a bem da comunidade (“seu
18 ARTIKEL - 153 1) Das Eigentum wird von der Verfassung gewährleistet. Sein Inhalt und seine Schranken ergeben sich aus den Gesetzen. 2) Eine Enteignung kann nur zum Wohle der Allgemeinheit und auf gesetzlicher Grundlage vorgenommen werden. Sie erfolgt gegen angemessene Entschädigung, soweit nicht ein Reichsgesetz etwas anderes bestimmt. Wegen der Höhe der Entschädigung ist im Streitfalle der Rechtsweg bei den ordentlichen Gerichten offen zu halten, soweit Reichsgesetze nichts anderes bestimmen. Enteignung durch das Reich gegenüber Ländern, Gemeinden und gemeinnützigen Verbänden kann nur gegen Entschädigung erfolgen. 3) Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich Dienst sein für das Gemeine Beste. (DIE VERFASSUNG, 1933).
33
conteúdo e limites se deduzirão das leis... seu uso deve servir ao bem da
comunidade.”). (DIE VERFASSUNG. FIFTH CHAPTER, 2001, tradução nossa)19.
Portanto, a vital transcendência da Constituição de Weimar esteve em operar
uma radical transformação daquela configuração jurídica que a propriedade privada
havia adquirido no Estado Liberal.
Agora, a constituição passa a regular, não somente as relações cidadão-
Estado, mas também as relações dos particulares entre si, impondo-lhes limites em
benefício da coletividade. Deste modo, produz-se pela primeira vez, em Weimar, a
constitucionalização do Direito Privado.
Nesta nova ordem, a propriedade privada deixa de ser concebida como um
mero direito de resistência frente à ação governamental, para transformar-se em um
direito normalmente limitável mediante intervenções legislativas, sempre legitimadas
pela consecução do interesse geral da comunidade social.
Apesar de tudo, em Weimar isto se transformou mais em uma ilusão do que
realidade.
A Constituição Alemã de 1919 surgiu no ápice do poder socialista. E, quando
este caiu, logo após as eleições gerais de 1920, as declarações de conteúdo social
levadas à carga constitucional se converteram em meros programas políticos, sem
qualquer eficácia ou aplicação efetiva. Com a Revolta de Kapp e as eleições gerais,
ficou claro que, em realidade, ao contrário do texto constitucional, a República
permaneceria sendo liberal. (HESSE, 1998).
Seria preciso aguardar a Lei Fundamental de Bonn para que os princípios
econômicos e sociais que, num primeiro momento, surgiram em Weimar, tivessem
total efetividade, porque somente aí é que a ideologia social-democrata recua e o
Estado Social passa a ser uma realidade consolidada. (HESSE, 1998).
Portanto, apesar da Constituição de Weimar representar o melhor conteúdo
social dentro de um texto constitucional, não foi durante a sua vigência que se
implantou o Estado Social.
19 Property is guaranteed by the constitution. Laws determine its content and limitation.Expropriation may only be decreed based on valid laws and for the purpose of public welfare. It has to be executed with appropriate compensation, unless specified otherwise by Reich law. Regarding the amount of the compensation, the course of law at general courts has to be kept open in case of a controversy, unless Reich laws specify otherwise.Expropriations by the Reich at the expense of the states, communities or charitable organizations may only be executed if accompanied by appropriate compensation.Property obliges. Its use shall simultaneously be service for the common best. (FIFTH CHAPTER, 2001).
34
E mais, diferentemente da Constituição de Weimar, as cláusulas econômicas
e sociais contidas na Lei Fundamental de Bonn encontraram imediata aplicação, já
que foram adotadas todas as medidas e garantias necessárias para assegurar a sua
efetiva vinculação entre a Norma Fundamental e os poderes públicos e privados.
(HESSE, 1998).
Somente desta maneira se pode outorgar ao texto constitucional a
qualificação de Constituição Social de Direito.
3.1 Consequências da constitucionalização do direit o privado
A verdadeira transcendência de Weimar radicou em dotar as novas
constituições de uma dimensão distinta da que tinham no começo do Século XIX.
A partir da Constituição Alemã de 1919 e, particularmente, da Constituição
Italiana de 1948 e a de Bonn de 1949, as constituições europeias começaram a
acolher a regulação de instituições e a garantia de direitos que tradicionalmente não
continham. (HESSE, 1998).
Podemos dizer que a transformação ocorrida na natureza das Constituições
se deu tanto quantitativamente quanto qualitativamente.
Do ponto de vista quantitativo, as constituições experimentaram uma
ampliação do seu conteúdo.
As constituições surgidas sob a égide do Estado Social enriqueceram o
catálogo tradicional dos direitos de liberdade com novas formas ligadas a uma
distinta valorização do homem e das relações econômicas e sociais. Dessa maneira,
juntamente com os clássicos direitos individuais, surge uma nova categoria de
direitos, denominados direitos sociais, os quais se estabelecem em benefício
daqueles setores sociais que tradicionalmente haviam ocupado posições menos
favorecidas.
Já na perspectiva qualitativa, as constituições deixam de ser meramente
declarações programáticas, carentes de eficácia e aplicabilidade imediata, para se
converterem em autênticas normas jurídicas que, colocando-se no cume da pirâmide
normativa, vinculam todos os poderes públicos e cidadãos.
35
Outra grande alteração qualitativa diz respeito ao fato de as constituições
deixarem de ser apenas mecanismos jurídicos, cuja missão principal era assegurar a
liberdade do indivíduo frente às ações estatais. Agora se convertem também na
garantia frente ao poder econômico.
Consequentemente, os textos além de se encarregar das relações cidadãos-
Estado, passam a regular, em nível constitucional, também as relações recíprocas
entre indivíduos.
Neste ponto, podemos dizer que as constituições não aparecem somente
como fonte suprema do Direito Público, reguladora da forma de governar e garantia
da liberdade dos cidadãos, mas, ao mesmo tempo, ocupam o espaço como Lei
Fundamental do Direito Privado. Tudo conforme afirma Konrad Hesse (1998) 20, a
Constituição abandona seu papel de Norma Suprema do Estado para converter-se
em Norma Superior da Comunidade Política, em cujo âmbito estão compreendidos
tanto o aparato estatal como a sociedade.
A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais devem formar-se unidade política e tarefas estatais a ser exercidas. Ela regula procedimentos de vencimento de conflitos no interior da coletividade. Ela cria bases e normaliza traços fundamentais da ordem total jurídica. Em tudo ela é “o plano estrutural fundamental, orientado por determinados princípios de sentido, para a configuração jurídica de uma coletividade. [...] Como a Constituição produz os pressupostos da criação, validez e realização das normas da ordem jurídica restante e determina, em grande parte, seu conteúdo, ela converte-se em um elemento da unidade da ordem jurídica total da coletividade, no interior da qual ela exclui um isolamento entre Direito Constitucional e outros setores jurídicos, em especial, do direito privado, do mesmo modo como uma coexistência não-unida daqueles setores jurídicos mesmos. (HESSE, 1998, p. 36-37)
Mudando a forma como se concebem as constituições, obviamente que
também se altera a maneira como se entendem as suas relações com os Códigos
Civis.
Neste contexto, percebe-se facilmente, que cada vez mais, se torna inviável
continuar afirmando que a Constituição é o mundo do público e que os Códigos Civis
são o mundo do privado.
O fenômeno experimentado no final do Séc. XIX e princípio do Séc. XX
provocou uma ruptura na identificação imediata e restrita a Direito Privado-Código
20 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Fe deral da Alemanha . Porto Alegre: S. A. Fabris, 1998. 576p. p. 36-37.
36
Civil. (IRTI, 1992)
Como consequência do incremento das leis especiais e devido à
constitucionalização do Direito Privado, os Códigos Civis perdem o monopólio da
regulamentação normativa da via jurídico-privada. (IRTI, 1992)
Com base nestes acontecimentos, não são poucos os que se apressaram em
qualificar o Código Civil como norma totalmente defasada e insuficiente para
responder às novas situações sociais que sugiram no Estado Social.
E é com base nestes argumentos que se falou reiteradamente em crise do
Direito Privado ou crise da era da codificação e até, para os mais pessimistas, em
morte do código civil.
E ainda, parte da doutrina, frente à constitucionalização das relações jurídico-
privadas e à crescente intervenção do Estado, não duvida em afirmar que existe
uma violenta invasão do Direito Público em um campo tradicionalmente próprio do
Direito Privado. Tem-se chegado, inclusive, a falar em perigosa publicização do
Direito Privado, no sentido de que este seria paulatinamente absorvido pelo Direito
Público.
Outros setores doutrinários, defendendo a tradicional autonomia do Direito
Privado, entendem que as normas constitucionais sobre o Direito Privado teriam
efeitos somente indiretos nestas relações, de maneira a vincular a interpretação das
normas privadas em respeito aos valores contidos na norma constitucional, e não
mais que isto. (IRTI, 1992)
Não obstante, ao contrário das considerações expostas, acreditamos que a
crescente intervenção dos poderes públicos, somada à proliferação de leis especiais
e à constitucionalização das relações privadas, não implica que o Direito Privado
esteja sendo engolido pelo Direito Público, nem muito menos implica em crise do
Direito Civil ou o ocaso do Código Civil.
É verdade que a parcela de liberdade que o Direito Privado deixava aos
particulares para regular suas relações há muito vem diminuindo, entretanto, este
fenômeno é resultado da socialização do direito, porque para defender o interesse
geral frente ao interesse egoístico, é necessário limitar a liberdade individual. E tal
limitação não implica na imediata conexão de uma radical intervenção do Direito
Público, já que muito frequentemente, a intervenção estatal se opera através de
mecanismos próprios do Direito Privado.
37
Podemos, portanto, concluir que a constitucionalização das relações privadas
e a crescente intervenção estatal nas mesmas, assim como a proliferação de leis
especiais e extra códigos não supõem crise do Direito Civil, muito menos do Direito
Privado.
A crise a que nos referimos resulta, pelo contrário, consequência direta da
superação da posição do Código Civil que, por um lado, foi destronado pela
Constituição da sua posição de norma suprema das relações privadas e, por outro
lado, perdeu espaço para uma grande quantidade de matérias que foram destinadas
para leis especiais, a respeito das quais, diga-se de passagem, inicialmente
pretendia-se ter um absoluto e exclusivo monopólio.
Pode-se dizer que o Código Civil foi destronado pela Constituição e
desmembrado pelas leis especiais, mas ainda assim, é de grande relevância e não
pode nem deve ser desmerecido.
Nos dizeres de Perlingieri (2008) 21 citando Viola e Zaccaria:
O que deve ser reafirmado com muita convicção é que o constitucionalismo “transformou a configuração tradicional do sistema jurídico”, transferindo o baricentro do próprio sistema, fundado atualmente sobre valores fortes, hierarquicamente prevalecentes e unitários para todo o ordenamento: valores que não devem mais ser emprestados da legislação ordinária caracterizada, como é, pela inconstância e, ainda por cima, pela natureza preponderantemente privatística e patrimonial. (VIOLA; ZACCARIA apud PERLINGIERI, 2008, p. 593-591)
E ainda prossegue:
Resta responder definitivamente à pergunta se a Constituição dá forma e “unidade” ao sistema; e é preciso assumir uma posição mais clara sobre como conciliar a unidade e a pluralidade de “ordens normativas parciais, e ainda mais decidir se exista ou não um centro do ordenamento, dando um sentido conclusivo às palavras segundo as quais “não existe mais um centro do ordenamento, mas uma mobilidade e uma plasticidade do normativo, que contribuem para modificar sensivelmente o quadro e a lógica tradicional do jurídico. (VIOLA; ZACCARIA apud PERLINGIERI, 2008, p. 593-591).
Por fim, a Constituição é Norma Fundamental do Estado que contém os
princípios e direitos de acordo com os quais haveremos de interpretar a totalidade
do ordenamento jurídico, e, portanto, do Direito Privado também.
21 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008. p. 593-594.
38
Os princípios constitucionais atuam como um guia interno e critério inspirador
das normas civis.
Vale dizer que, mesmo que a letra do Código possa permanecer intacta
desde a sua redação, seu fundamento lógico, aplicação e interpretação já não
poderão mais ser abordadas com base nos velhos padrões de seu nascimento.
A releitura do Código Civil deverá ocorrer com os olhos da Constituição.
Consequentemente, a interpretação dos antigos textos legais vigentes deverá
ser feita de acordo com os novos princípios que são assumidos por ocasião da nova
Norma Fundamental.
Esta é a postura que será adotada para leitura e interpretação da posse e da
propriedade na égide da Constituição da República Brasileira de 1988.
3.2 A autonomia privada, limitações ao direito de p ropriedade e a função social
Retomando a linha de raciocínio onde a liberdade era o princípio geral e valor
essencial cuja presença perpassava todo o ordenamento jurídico, vale analisar a
questão da autonomia privada, outrora denominada autonomia da vontade.
A autonomia da vontade ocupava um lugar de privilégio no sistema liberal, ao
constituir o indivíduo e sua capacidade de decisão os eixos principais em torno dos
quais giravam todas as instituições jurídicas.
As normas que respeitavam a autonomia da vontade eram consideradas
como normas gerais, já as que continham restrições à autonomia da vontade eram
qualificadas como excepcionais. E como tal, eram interpretadas sempre
restritivamente e careciam de vis expansiva. (IRTI, 1992)
As normas, em geral, que respeitavam a autonomia gozavam de uma força
expansiva e as normas excepcionais e limitadoras, por introduzir uma derrogação de
tais princípios num caso específico, não podiam ser aplicadas extensivamente.
É importante justificar que denegar a aplicação da vis expansiva das normas
distanciadas dos princípios gerais codificados, tinha como objetivo constituir uma
proteção a favor da unidade do sistema jurídico, com a intenção de evitar que as
normas excepcionais retirassem o Código de sua posição central e, desta maneira,
mantivessem a sua pretensa hegemonia.
39
Trasladando este panorama geral para a matéria da propriedade, deve-se
salientar, a respeito, que os Códigos e Constituições, enquanto de acordo com as
regras de respeito total à autonomia da vontade, fixavam os princípios gerais que
deviam reger o exercício do direito. A propriedade, assim, se presumia livre e se
configurava como um direito fundamental, sagrado e inviolável da pessoa, que
dependia unicamente da onipotente vontade do seu titular (IRTI, 1992).
Portanto, os limites ao livre exercício do direito de propriedade eram vistos
como algo isolado e excepcional que respondia unicamente à necessidade de obter
uma harmoniosa coexistência dos distintos direitos dominiais.
As limitações, ainda que existissem, integravam simplesmente o direito
excepcional e tinham como única finalidade permitir a convivência dos distintos
direitos de propriedade e a manutenção da ordem pública que, precisamente, se
baseava na proteção da propriedade livre.
Resumindo: no Estado Liberal, a regra geral se constituía no livre exercício da
propriedade privada, e as restrições e limitações à mesma, enquanto se afastavam
do princípio geral de autonomia da vontade, integravam o âmbito do direito
excepcional. (IRTI, 1992)
De igual modo, a crise do Estado Liberal também começa a demolir esta
posição de propriedade ilimitada e absoluta.
Neste sentido, a prática jurídica constata a proliferação de disposições
legislativas que, afastando-se dos princípios consagrados no Código Civil, começam
a impor restrições à anteriormente livre e ilimitada vontade do proprietário.
Com o passar do tempo e a evolução das circunstâncias políticas, sociais e
econômicas, as limitações ao direito de propriedade, que haviam nascido como
exceções conjunturais adquirem uma insuspeita estabilidade e consolidam a sua
vigência, dando lugar a um rearranjo do princípio da liberdade absoluta que passa a
ser relativo.
Esta evolução culmina com a configuração constitucional da limitação no
exercício do direito de propriedade como um princípio geral. Relembrando que, em
1918, na Constituição Alemã de Weimar, encontrava-se disposto no seu artigo 153
que “A propriedade obriga. Seu uso também deve servir ao bem da comunidade.”
(DIE VERFASSUNG, 1933).
O sentido do Art. 153 da Constituição de Weimar vai consolidar-se no Art. 14
da Lei Fundamental de Bonn, e a partir daí, paulatinamente passa a refletir-se nas
40
constituições modernas. (DIE VERFASSUNG, 1933).
A Constituição da República Brasileira de 1988, também sofreu tal influência,
que se vê refletida no artigo 5º, inciso XXIII dispondo que a função social da
propriedade delimitará o seu conteúdo de acordo com as leis. (BRASIL, 1988).
A modificação da Norma Fundamental alterou sobremaneira a disciplina da
propriedade levando à categoria de regra geral a limitação do exercício do direito,
que era considerada, no Estado Liberal, como uma exceção ao princípio geral da
autonomia da vontade.
Assim sendo, a limitação do direito de propriedade passou de exceção para
regra. Ao deixar de terem vigência os princípios liberais, a inviolabilidade sagrada do
direito de propriedade perdeu seu fundamento e justificativa. Portanto, as travas e
limitações dominiais já não podem ser vistas como algo excepcional.
É bom esclarecer que a liberdade continua sendo um princípio geral, e a
autonomia da vontade, agora designada como autonomia privada, interpretada sob a
égide do Estado Democrático de Direito, não desapareceu. A liberdade no exercício
do direito de propriedade mudou radicalmente seu conteúdo. Agora, já não se
identifica com um conjunto de possibilidades de atuação ilimitadas e absolutas, mas
sim, com uma liberdade normalmente limitável e suscetível de ser configurada,
desde seu próprio interior, em sentido democrático. (MALUF, 1997).
Neste entendimento, a função social conformará e moldará o exercício da
propriedade. Esta função não constitui medida excepcional que, justificada pelas
circunstâncias específicas, se adota para um caso concreto, permanecendo apenas
no âmbito externo do direito de propriedade, mas sim que forma parte do que,
constitucionalmente, se endente por seu conteúdo.
Carlos Alberto Dabus Maluf (1997)22 nos esclarece que
A propriedade é para todo o possuidor de uma riqueza o dever, a obrigação, de ordem subjetiva, de empregar a riqueza que possui e manter e aumentar a interdependência social. Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função em razão direta do lugar que nela ocupa. O possuidor da riqueza, pelo fato mesmo de possuí-la, pode realizar um certo trabalho que só ele mesmo pode fazer. Está, pois, obrigado socialmente a realizar esta tarefa e não será protegido socialmente mais do que a cumpra e na medida que a cumpra. A propriedade não é, pois, o direito subjetivo do proprietário: é a função social do detentor da riqueza. (MALUF, 1997, p. 61-62)
22MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade . São Paulo: Editora Saraiva, 1997. p. 61-62.
41
Da mesma opinião Hernandez Gil (1989, p. 21, tradução nossa) 23: “A
Constituição mostra um modelo do direito de propriedade privada que não é tomado
por um poder individual com limites excepcionais, já que a função social delimita
sempre o conteúdo do direito.”
Consequentemente, desde a perspectiva constitucional, as normas que
venham a determinar a ação da função social, do direito de propriedade para cada
categoria de bens, ao ser manifestação de um princípio geral, perdem toda
consideração de excepcional, passando diretamente a integrar o âmbito da
normalidade.
Recentemente, parece que a doutrina suscita um debate em torno do
seguinte: é a função social, na realidade, um princípio geral de direito? Manifestamo-
nos a favor de sua consideração como tal, assim como esposado por Perlingieri
(2008) 24
A função social assume valor de princípio geral também para o proprietário. A autonomia não é livre arbítrio: os atos e as atividades não somente não podem perseguir fins anti-sociais ou não anti-sociais, mas também devem estar em conformidade com a razão pela qual o direito de propriedade foi garantido e reconhecido. (PERLINGIERI, 2008, p. 947).
Ou seja, as leis que concretizam a função social adquirem, agora, uma
verdadeira vis expansiva. Em suma, todas as leis que limitem, restrinjam ou
condicionem o exercício das faculdades que correspondem ao proprietário por
exigências constitucionais já não podem ser consideradas como uma exceção ao
caráter absoluto da propriedade privada, mas sim manifestação da normal limitação
que é efeito imediato da constitucionalização da função social como um princípio de
valor.
Outra consequência lógica é que a Constituição, como norma suprema, é
quem fixa os princípios gerais do sistema jurídico e não cabe mais ao Código Civil
traçar a fronteira última que separara o direito normal do excepcional. A Constituição
veio substituir os Códigos na função delimitadora dos princípios e disposições que
agora estão compreendidos sob uma nova ordem - a constitucional.
23 "La Constitución muestra un modelo del derecho de propiedad privada que no es el tomado por un poder individual con unos límites excepcionales, ya que la función social delimita siempre el contenido del derecho."(GIL, 1989, p. 21). 24 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008. p.947.
42
Muitos doutrinadores, ao perquirir da aplicação do princípio da função social,
traçam distinção entre bens de consumo e bens de produção.
É fato que conseguimos visualizar melhor que os bens de produção são os
que mais facilmente devem cumprir uma função social, porque sua utilização
repercute no interesse da coletividade, ao ser seu destino criar novos bens. E, ao
contrário, os bens de consumo raramente serviriam para fins que não sejam a
satisfação do interesse de seu titular individual e, portanto, não seria possível
sujeitá-los a exigências de tipo social em sua utilização.
Entretanto, conforme ensinado por Perlingieri (2008) 25
a afirmação segundo a qual somente os bens produtivos têm uma função social é desmentida pela própria leitura da disposição constitucional que não prevê exceções à regra da função social da propriedade privada. [...] A afirmação generalizada de que a propriedade privada tem função social não permite discriminações e obriga o intérprete a individuá-la com relação à particular ordem de interesses juridicamente relevantes. Assim, tem função social não somente a propriedade do estabelecimento, mas também aquela da casa de habitação e dos bens móveis nela contidos, a da oficina artesanal e a do pequeno produtor [...] (PERLINGIERI, 2008, p. 952).
Lembra Perlingieri (2008), que a função também se concretiza através da
satisfação de exigências pessoais, existenciais, individuais ou da coletividade, não
somente através do mercado e da produção.
Assim sendo, a Constituição é uma norma de natureza aberta, incompleta e
inacabada que, tanto em matéria de propriedade quanto em outras matérias, fixa
princípios e diretrizes gerais que deverão ser concretizadas ou desenvolvidas
também pelo legislador ordinário.
E assim, as leis que desenvolvem os ditames patrimoniais nascem para dar
uma resposta normativa a problemas particulares ou específicos que
casuisticamente se pleiteiem, sempre sob a égide da Constituição.
A Constituição, no que tange à propriedade privada, atua como uma tela de
fundo, com parâmetro, referência ou denominador comum que facilita a ordem e a
coerência no mar legislativo que existe.
É dizer que a Constituição da República fixa os princípios inspiradores do
regime jurídico da propriedade privada, ao passo que ao Código Civil corresponde a
função de dar sistematização e coerência interna de forma a amalgamar disposições
25 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008. p.7952.
43
legislativas que especificam os conteúdos constitucionais em matéria patrimonial.
Deste modo, a disciplina da propriedade privada desempenha o papel de
direito comum que se aplica residual e supletivamente para completar e ordenar
sistematicamente a regulamentação patrimonial que concretiza os postulados
constitucionais.
44
4 A PROPRIEDADE PRIVADA FUNCIONALIZADA NO ÂMBITO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A configuração jurídica atual da propriedade se encontra intimamente ligada à
declaração constitucional de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito que
propugna, e não apenas declara, como valores supremos do ordenamento jurídico a
dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade, com a firme intenção de
instaurar uma ordem econômica e social justa. (BRASIL, 1988).
A propriedade privada se encontra limitada constitucionalmente à obrigação
de respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, direito constitucionalmente
garantido e protegido. Do ponto de vista constitucional, não é mais admissível uma
regulamentação legislativa que preveja uma disciplina do exercício das faculdades
dominicais que se traduza em situações patrimoniais absolutas ou invioláveis, pois
tal possibilidade aparece de antemão condenada pela Constituição da República de
1988.
A consagração constitucional do princípio da função social confirma a
intenção do constituinte de evitar qualquer trava que impeça ou dificulte o
desenvolvimento econômico e social, pois por aplicação deste princípio a
propriedade privada não poderá ser utilizada como alegado para estorvar ou obstar
a realização de políticas estatais tendentes ao favorecimento das transformações
sociais e econômicas necessárias ou desejadas pela coletividade.
No Estado Democrático, abandonando de vez o viés liberal, o que existe
agora é uma latente necessidade de se limitar a vontade do proprietário para que
este exerça seu direito de modo tal que repercuta positivamente no interesse social
almejado pela sociedade.
A função social aplicada ao direito de propriedade, desde o momento em que
adentra no mundo jurídico, passa a tomar assento no conteúdo da propriedade,
alterando a sua essência, deixando de ser esta um direito intangível e
tendencialmente livre em seu exercício, para converter-se em normalmente limitável,
em função do interesse social.
Entretanto, é importante asseverar que o princípio da função social e sua
consideração como integrante do conteúdo da propriedade não há que ser mal
interpretada, pois sua consagração constitucional em nenhum momento pretende
45
eliminar o veio de liberdade que goza o proprietário no exercício do direito que lhe
corresponde.
Uma quebra total e absoluta da ligação propriedade-liberdade seria, em todo
o caso, contrária ao reconhecimento e garantia constitucional da liberdade, já que
sua titularidade segue atribuindo ao sujeito individual, para a satisfação de suas
necessidades, o direito de propriedade (mas não à propriedade).
O princípio da função social fundamenta também a possibilidade do Estado
utilizar medidas de desapropriação, exação ou majoração de tributos, construção
compulsória, etc., tudo para garantir, no exercício do direito de propriedade, a
satisfação do interesse social ou geral que o proprietário não foi capaz de alcançar
por si mesmo.
Por conseguinte, não há dúvida de que a Constituição da República
reconhece, garante e protege um âmbito de liberdade no exercício do direito de
propriedade. Não obstante, o que resulta censurável, desde a perspectiva
constitucional é que o proprietário use de sua liberdade de forma egoísta de modo a
transformar a propriedade em um impedimento ao desenvolvimento econômico e
social e do bem da coletividade em geral.
Assim, preferimos qualificar como relativa a ruptura do vínculo propriedade-
liberdade, porque mediante a imposição de funcionalização ou de limites ao direito
de propriedade, nossa Constituição da República e as disposições legislativas que a
desenvolvem pretendem levar a efeito um controle social da liberdade individual do
proprietário, orientando e calçando a atividade individual para a consecução do
interesse social.
Vale dizer que dentre os princípios que regem o modus operandi do
proprietário, já não está unicamente presente a satisfação do seu interesse
individual, mas, simultaneamente, aparece a realização do interesse social. Ambos
os interesses aparecem intimamente ligados no cenário do direito de propriedade.
Entre eles, deve-se buscar um delicado equilíbrio que constituirá o marco de
referência na base do qual há de se deduzir o sentido que a função social da
propriedade privada cobra no nosso ordenamento constitucional.
Para melhor compreender a verdadeira operacionalidade do princípio
constitucional da função social, não se poderá interpretá-lo isoladamente. Torna-se
necessário analisá-lo sistematicamente com os outros vários princípios
constitucionais que vêm determinar sua ação em respeito às distintas situações
46
jurídicas de propriedade.
Dentre esses outros princípios, além do princípio da liberdade, não
poderemos perder de vista jamais o princípio da dignidade da pessoa humana, o
reconhecimento da iniciativa privada, de estimular o crescimento da renda e da
riqueza, assim como uma melhor distribuição da mesma.
De uma análise de conjunto, se deduz que a genérica exigência derivada do
princípio da função social se concretiza também através de diversas autorizações
constitucionais que permitem ao Estado intervir nos processos econômicos e
produtivos.
O Estado, ao garantir e proteger a ordem econômica, o incremento da
riqueza, a distribuição mais justa, adotando assim uma série de medidas que vão
desde o simples incentivo da atividade produtiva à imposição de limites no exercício
do direito de propriedade sobre os bens de produção, passando pela organização de
setores econômicos, está aplicando também o princípio da função social da
propriedade.
A recepção em nível constitucional da função social da propriedade e a
intervenção Estatal na economia, legitimada pelas exigências do interesse geral e a
defesa da produtividade impedem que a autonomia privada se projete sobre o
mercado com a força de outrora.
A autonomia privada do indivíduo é condicionada pela específica relevância
econômica e social dos bens que lhe são próprios. Neste sentido, podemos afirmar
que o exercício do direito de propriedade já não está unicamente em função da
vontade de seu titular, mas que depende também do destino econômico das coisas
que constituem o seu objeto.
Concluindo, a atuação da função social no Estado Democrático e sua
concretização na permanente ação do Poder Público em nome do interesse geral, a
defesa da produtividade, o desenvolvimento econômico, e, em suma, a efetiva
realização da liberdade e igualdade materiais forçaram uma mudança na
propriedade, de uma visão outrora centrada exclusivamente no direito subjetivo
isolado, até uma concepção jurídica vinculada socialmente e concretizada pela ação
administrativa que, se bem não chega a absorver ou desconhecer as faculdades
jurídicas do proprietário, as condiciona e disciplina o seu desenvolvimento.
47
4.1 Do poder absoluto ao poder funcional
Já vimos anteriormente que a propriedade era considerada, no Estado
Liberal, como um poder absoluto.
Baseando-se particularmente no Art. 17 da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789: “A propriedade é um direito sagrado e inviolável [...]”
(ASSEMBLÉE NATIONALE, 2010, tradução nossa)26 assim como da dicção do Art.
544 do Code de 1804 “A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da
forma mais absoluta27” (LIVRE II, 2010) a doutrina liberal conseguiu qualificar a
propriedade privada como um direito absoluto e livre em seu exercício.
Não nos olvidemos que, nos dizeres de Júlio Aguiar de Oliveira e Flores Filho
(2008) já mencionado alhures, tal entendimento era uma total ruptura do conceito de
direito de propriedade que antecedia ao Estado Liberal e que tinha por finalidade
atender aos ditames deste Estado.
A Revolução Burguesa outorgou tal qualificação à propriedade privada, com a
finalidade de despojá-la das cargas próprias do sistema feudal e assim conceder
uma série de poderes que, a partir de então, passariam a corresponder ao
proprietário. (GROSSI, 1981).
Vale dizer que o argumento maior era que se pretendia unificar a propriedade
em torno da pessoa do titular e libertá-la dos vínculos feudais para convertê-la,
desse modo, em um poder absoluto que estivesse em condições de rivalizar e
colocar freio à imensa autoridade que durante o Antigo Regime se acumulava nas
mãos da monarquia e dos nobres.
Tratava-se, de fato, de criar um poder absoluto (a propriedade) que pudesse
rivalizar com aquele outro poder absoluto do soberano, concedendo ao proprietário,
via legislação, um conjunto de mecanismos tendentes a reforçar o poder jurídico em
relação aos seus bens.
Neste contexto, o exercício do direito de propriedade se mostra total, única e
exclusivamente subordinado à soberania da vontade do proprietário. Tal vontade se
26 “La proprieté est étant un droit inviolable et sacré...” Art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (ASSEMBLÉE NATIONALE, 2010). 27 La proprieté est le droit de jouir et de disposer des choses de la maniére plus absolute. Art. 544 do Code de 1804 (LIVRE II, 2010).
48
projeta sobre os bens de maneira plena, já que a ordem liberal concebe como
princípios fundamentais a liberdade sem limites e a plena autonomia da vontade.
Assim, o proprietário liberal atua como soberano, sendo livre para dar-lhe o
destino que achar mais conveniente, inclusive o direito de não usar a propriedade,
abandoná-la, deixá-la improdutiva ou estéril, ou até mesmo de destruí-la (RODOTÁ,
1971).28
Em suma, ter um direito de propriedade era tanto quanto dispor da autoridade
necessária para dizer soberanamente sobre o seu uso, afetação e disposição do
bem que é objeto deste direito. O grau dependia do exercício e das faculdades da
vontade do titular. Tal era a tese de Henri Lepage (1986).29
O proprietário passa a ser um autêntico monarca absoluto dentro de seu
próprio território, o que também se reforça pelo dito popular “O homem é o senhor
de seu castelo”. Equiparado ao monarca do Antigo Regime que exercia a plena
soberania sobre seu reino, o proprietário, no Estado Liberal, se viu investido de um
poder que lhe permitia projetar livre e discricionariamente a sua vontade sobre os
bens que lhe pertencessem, sem estar submetido a nenhum tipo de trava que
condicionasse o exercício das faculdades de proprietário. (LEPAGE, 1986).
A liberação da propriedade dos pesos feudais faz emergir uma estrutura que
está fundada toda ela num momento do direito e que se opõe a que penetrem em
seu interior elementos obrigatórios. É o retorno a uma concepção romana da
propriedade como dominum ex iure quiritium, onde em exercício de seu direito, o
proprietário não estava sujeito a nenhum limite e nem devia cumprir qualquer
função.
Por conseguinte, o liberalismo configura a propriedade como uma esfera de
poder tendencialmente absoluta que em condições normais não é suscetível de
limitação. Para tal, a doutrina começou a utilizar a expressão que qualificava a
propriedade liberal como um agere licere que é válida para referir-se como sinônimo
de âmbito de exercício livre e em contraposição a agere debere, expressão
concebida como um âmbito de atuação não livre, senão devido. (RODOTA, 1986).
28 RODOTÁ, Stefano. Poteri dei private e disciplina della proprietá. p. 336. - in "Il Diritto Privatto nella societá moderna". Saggi a cura di S. Rodotá. Ed. Il Mulino. Bologna 1971. 29 LEPAGE, Henri. Por qué la propriedad ? Madrid: Ed. Instituto de Estudios Económicos, 1986, p. 34.
49
É importante constatar que a doutrina se centrou no comentário e estudo do
Código de Napoleão e, guiada por um excesso dogmático, dotou de um sentido
particularmente amplo a expressão de la manière plus absolue, convertendo-a em
sinônimo de total ausência de limitações no exercício do poder da propriedade.
Tal interpretação larga pode ser denotada principalmente dos estudos dos
integrantes da Escola Exegética francesa, que, num primeiro momento, levados pela
ideologia naturalista, procederam a uma exaltação da letra do Código que lhes
conduziu a qualificar a propriedade como um senhorio absoluto e ilimitado sobre
uma coisa corporal.
Uma coisa é afirmar o caráter absoluto da propriedade liberal e outra coisa
diferente é investir o proprietário de um poder universal que se desenvolva
arbitrariamente sem submissão a nenhum tipo de limitação, restrição ou controle.
Consequentemente, o qualificativo “absoluto” que o Artigo 544 do Código
Napoleônico outorga à propriedade não pode ser entendido como sinônimo de uma
total ausência de limitações em seu exercício.
Por óbvio, devemos graças ao Estado Liberal que cumpriu uma
transcendental função em um contexto histórico específico e determinado em que se
pretendia, e conseguiu depurar todo o vestígio das estruturas feudais do Antigo
Regime.
A configuração jurídica da propriedade privada obedeceu ao anseio de
encerrar uma etapa (o feudalismo) e que se pretendia iniciar uma nova, nascida
como consequência da revolução e que nada tinha a ver com a situação anterior.
Era uma verdadeira mudança de paradigma.
Temos que reconhecer que a teoria liberal da propriedade privada nasceu
como radical contraposição e contraste com as estruturas passadas, como símbolo
de repúdio ao passado, com um marcado caráter de ruptura. A maior parte das leis
promulgadas na recém instalada ordem liberal de 1789 a 1804, tratam de liberar o
proprietário de todos os vínculos e limitações que caracterizavam o esquema do
Antigo Regime. Assim diz o Decreto 06 de 11 de agosto de 1789 que: "L'Assemblée
Nationale détruit entiérement le régime féodal”. (FRANCE, 2008).
50
Neste sentido, Rodotá (1986)30 entende que o termo “absoluto” era utilizado
com um significado etimológico para repisar que a propriedade estava desligada a
respeito de todo o tipo de “domínio eminente”.
Portanto, pode-se deduzir que a expressão de la maniére plus absolue do
Art. 544 está eivada de uma concepção ideológica. E tal pode ser deduzido até
mesmo em razão da presença de uma forma superlativa (plus absolue) em um
qualificativo que não admite gradação alguma. Ou seja, ou a propriedade é absoluta
ou relativa, não cabem termos intermediários ou gradações nestes qualificativos.
O Código Civil Brasileiro de 1919, em seu artigo 542, igualmente adotou a
mesma postura de considerar a propriedade como absoluta: “A lei assegura ao
proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder
de quem quer que injustamente os possua." (BRASIL, 1916).
Windscheid (1987), enaltecendo a propriedade liberal, cunhou a máxima: “A
propriedade é um direito ilimitado em si mesmo”.
Já contrariamente a esta posição, Jhering (1911) 31 dizia que:
não é verdade que na ideia de propriedade encerre um poder absoluto ou ilimitado de disposição. A sociedade não pode tolerar, nem tem tolerado nunca, tal configuração da propriedade: a ideia de propriedade não pode convolar algo que esteja em oposição à ideia de sociedade. (JHERING, 1911, p. 251-252).
Nesta mesma linha de pensamento Portalis (1989)32 já havia se manifestado
a favor de limitar o exercício do direito de propriedade por razões de atendimento ao
bem comum, quando afirma que os legisladores haviam se apressado ao apresentar
a propriedade como direito de usar, gozar e dispor das coisas da maneira mais
absoluta, sem se ter em conta que os homens vivem em sociedade e sob suas leis.
Eles, portanto, não poderiam ter o direito de contrariar as leis que regiam a
sociedade. A verdadeira liberdade consiste na prudente composição dos direitos e
dos poderes individuais com o bem comum. Quando cada um pode fazer aquilo que
lhe compraz, pode fazer também aquilo que pode causar dano a outro. A licença
30 RODOTÁ, Stefano. El terrible derecho : estudios sobre propiedad privada. Madrid: Civitas, 1986. p. 86. 31 JHERING, Rudolf von. O fim do Direito . Trad. Leonardo Rodríguez. Madri: Ed. Rodríguez Serra, 1911. p. 251- 252. 32PORTALIS, Jean Etienne Marie. L’ame universelle de la législation . Paris: Flammarion, 1989. p.276.
51
para cada particular operaria inevitavelmente na desgraça de alguns, quiçá do todo.
Assim, conclui Portalis (1989) que é necessário que as leis possam dirigir as
ações relativas ao uso dos bens. Deve haver liberdade com as leis e não contra as
leis. Daí que, reconhecendo no proprietário o direito de usar, gozar e dispor
livremente da sua propriedade, da maneira mais absoluta, nós temos acrescentado,
sempre que não se faça um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos.
Vejamos as palavras de Portalis (1989) 33:
Assim, vós, apressados legisladores ao consagrar por seus votos o grande princípio da propriedade, apresentaram o projeto de lei como o direito de dispor das coisas da maneira mais absoluta. Mas, como os homens vivem em sociedade e sob as leis, não têm o direito de contrariar as leis que regem a sociedade [...] A verdadeira liberdade consiste em uma sábia harmonização entre os direitos individuais e o bem comum. Quando qualquer um pode fazer o que lhe apraz, pode também fazer o que prejudica os demais. [...] O modo de agir do particular pode significar infalivelmente na perdição de todos. (PORTALIS, 1989, p. 276, tradução nossa).
A existência de limites à propriedade é uma constante ao longo da história.
Elas sempre estiveram presentes nos distintos ordenamentos jurídicos que se
sucederam no tempo, e a tal respeito, podemos afirmar que a ordem liberal é que
constitui uma exceção.
Não houve sistema que se abstivesse totalmente de impor limites ao exercício
da propriedade privada, porque é uma exigência inerente à convivência civil e
derivada da mesma natureza dos direitos subjetivos. Um direito subjetivo (como é a
propriedade) absolutamente ilimitado não poderia nunca conceber-se, já que toda
definição positiva de um direito subjetivo encerra necessariamente uma operação de
delimitação de seu âmbito, fixação de seus contornos, seus fins, sua moldura, seu
conteúdo.
Não há criação do direito que não seja ao mesmo tempo uma fixação de
limites e, em tal sentido, todos os direitos subjetivos são limitados. Por que haveria
diferença no direito de propriedade?
33 Aussi vous empresserez, législateurs, de consacrer par vos suffrages le grand principe de la propiété, présenté dans le project de loi comme le droit de disposer des choses de la maniére plus absolue. Mais comme les hommes vivent en société et sous des lois, ils ne sauraient avoir le droit de contrevenir aux lois qui régissent la société. [...] La vraie liberté consiste dans une sage composition des droits et des pouvoirs individuels avec le bien commun. Quand chacun peut faire ce qui lui pláit, il peut faire ce qui nuit à autrui, [...]. La licence de chaque particuler opérerait infailliblement le malheur de tous. (PORTALIS, 1989, p. 276).
52
A clássica dialética poder do proprietário versus limitações legais sempre
esteve presente no direito de propriedade e, na ordem liberal, pendeu a favor do
primeiro em detrimento do segundo.
Portanto, as limitações deviam ser consideradas como amputações infligidas
à noção pura de propriedade. Toda a obrigação que pesasse sobre o proprietário
era entendida como contrária à natureza do seu direito e, consequentemente, seria
vista como interferência ilícita ao poder absoluto que lhe correspondia.
Conseguintemente, o entendimento lógico caminha para que os limites da
propriedade se concebessem sempre a posteriori, como algo tardio, acessório,
incidental, e que somente haviam de existir quando totalmente imprescindíveis e
necessários.
Mais a mais, se ao proprietário fosse cabível o exercício totalmente livre do
direito, disto resultaria fatalmente uma situação bellum omnia contra omnes, na qual
o indivíduo lutaria ferozmente para fazer prevalecer seus interesses sobre todos os
demais. (HOBBES, 2005).
E para evitar esta situação eterna de conflito, cada titular deve ceder parte da
liberdade que lhe corresponde no exercício de seu poder para garantir assim a tutela
jurídica e o devido respeito aos direitos que pertencem a outras pessoas.
O ordenamento jurídico põe à disposição do proprietário os meios
necessários para tutelar a efetiva realização do seu direito, mas de nenhuma
maneira deverá tolerar que o uso deste se converta em um obstáculo que impeça
aos demais exercitar os direitos que lhes pertencem. (PORTALIS, 1989).
Desta maneira, as limitações unicamente supõem a imposição de meros
deveres negativos de não fazer, porque exigem que o proprietário se abstenha de
levar a cabo no exercício do seu direito, condutas que possam conduzir a uma lesão
a terceiros. Trata-se assim do desenvolvimento da teoria do uso proibido ou uso
vedado, aludida por Rodotá (1971).
Diante disso, podemos concluir que os escassos limites liberais ao direito de
propriedade privada vão caminhar principalmente no âmbito das relações de
vizinhança.
Congruentemente, com a concepção liberal das limitações à propriedade
como exceções impostas legalmente e que supõem para o proprietário deveres
negativos de não fazer estabelecidos em razão do interesse privado, a doutrina
passou a referir-se a elas como extrínsecas.
53
Da perspectiva dogmática, se entende que as limitações permanecem como
marco externo da propriedade privada sem alterar a sua essência natural.
Restrições tais que, do exterior, comprimem o exercício do direito sem afetar, no
mínimo, o seu conteúdo substancial, que permanece incólume.
A razão por que se considera este tipo de limitação como extrínseca à
propriedade privada, se acha no fato de que a atribuição dos poderes que este
direito representa se efetua de maneira incondicionada.
Vale dizer, a outorga ou a conservação do direito de propriedade não
depende nem se encontra subordinado ao cumprimento de nenhuma condição inicial
por parte do proprietário, o qual pode usá-lo de maneira que entenda mais
conveniente para a satisfação de seus interesses.
Os limites surgem sempre a posteriori, como algo tardio que somente se
admite quando, no exercício de seu poder, o proprietário possa causar uma lesão a
direito de terceiras pessoas.
Trata-se de limites externos porque não dirigem, coordenam ou canalizam de
modo constante e uniforme o comportamento do proprietário, mas sim que atuam
excepcional e posteriormente para resolver situações de conflito.
4.2 A propriedade como direito relativo e poder fun cional - da dimensão
estática à dimensão funcional
Independentemente de que na prática fosse realizável ou não o tão propalado
caráter absoluto ou pleno do direito de propriedade, o certo é que no Estado
Democrático de Direito, a visão liberal do instituto da propriedade sofreu uma
mutação importante.
A transformação ocorre quando a importância das limitações começa a ser
valorizada em detrimento do caráter absoluto ou pleno do direito de propriedade.
O poder de propriedade começa a ser cada vez mais pensado em razão dos
limites inerentes e imprescindíveis à vida em sociedade.
Com a industrialização e urbanização da sociedade, a vida na cidade traz
uma maior complexidade social que a vida que transcorria no meio rural. A
concentração das ainda crescentes massas populacionais nos meios urbanos,
54
produzida por um êxodo massivo, multiplica os conflitos de interesse no exercício do
direito de propriedade. (CAENEGEM, 2000).
Consequentemente, desta maior proximidade espacial decorre um aumento
dos limites que são suscetíveis de impor-se ao exercício do direito de propriedade
por razões de convivência social.
Esta mesma complexidade da vida social e industrialização crescente exigem
uma mudança na maneira como operam os limites. Paulatinamente começam a se
tornar necessários não apenas a existência de limites com a única e exclusiva
finalidade de resolver conflitos de interesse. A imposição de limitações de tal tipo
resulta insuficiente numa sociedade que postula como princípios fundamentais o
pluralismo e a solidariedade. (CAENEGEM, 2000).
Assim sendo, além dos limites passarem a ser mais valorizados ocupando
uma maior gama de espectros de conflitos individuais, a sociedade passa a exigir
outros tipos de moldes do direito de propriedade visando dirimir conflitos de maior
relevância, agora de toda a coletividade.
Vale dizer, juntamente com as já tradicionais limitações em razão do interesse
privado, surge uma nova classe de “limitações” cuja finalidade principal seria tornar
efetiva a realização do interesse social da comunidade em seu conjunto. Entre esta
nova pretensa espécie de “limitação”, destaca-se como principal protagonista a
função social que se conecta umbilicalmente à propriedade privada na maior parte
dos textos legislativos e constitucionais do mundo ocidental.
Alguns doutrinadores passaram a defender a função social como mais uma
limitadora, portanto extrínseca, ao direito de propriedade.
Entretanto, como será defendida adiante, a função social da propriedade
deverá ser entendida mais corretamente como uma delimitação do conteúdo deste
direito e não como uma limitadora.
A ideia matriz da função social está contida na obra de Rudolf von Jhering ao
mudar o centro de gravidade do direito subjetivo da vontade do titular, proclamada
por Windscheid para o interesse juridicamente protegido. (JHERING; WINDSCHEID
apud FERRAZ JÚNIOR, 2003)
A tese voluntarista de Windscheid citado por Ferraz Júnior (2003) coaduna-se
perfeitamente com a concepção liberal do direito subjetivo e, concretamente, a da
propriedade privada, pois esta se achava totalmente submetida à teoria da vontade
do proprietário.
55
A satisfação do interesse social é algo que não inquieta o proprietário liberal,
porque se entendia que já se levava a cabo inconscientemente quando ele atuava
em seu próprio benefício - regra da perfeita concorrência.
Portanto, tratava-se de uma concepção excessivamente egoísta e
personalista do direito de propriedade que não tardou a provocar graves distorções.
Investindo o proprietário de um poder absoluto sobre os bens, e o autorizando a
explorá-los livremente, sem objetivar o interesse de seus semelhantes e da
sociedade, acabou-se por alterar até mesmo o conceito da propriedade. Esta se
transformou em um instrumento para satisfação da necessidade e desejos muito
particulares, que chegou até mesmo a justificar atitudes absenteístas e parasitárias.
A crise das teorias da vontade termina por chamar a atenção para os
interesses que entram em jogo no exercício das faculdades da propriedade, com
especial consideração àqueles que estão em íntima conexão com as necessidades
da coletividade. (FERRAZ JÚNIOR, 2003).
A partir daí, o poder que corresponde ao proprietário já não deverá dirigir-se
exclusivamente à satisfação de suas necessidades pessoais, ma também deverá
atender a finalidades de ordem social, a respeito das quais deverá convergir o seu
agir.
A outrora soberania da vontade do titular do direito aparece agora como
condicionada pela realização do interesse social.
Por razão desta vinculação social, o titular de um direito de propriedade já não
poderá utilizar dos bens da maneira que melhor lhe aprouver, ou mais adequada ao
seu interesse individual. Sua decisão deverá também ter presente a simultânea
realização do interesse social. Vale dizer, se há de proceder a um exercício
socialmente útil do direito de propriedade.
O proprietário deixa de ser livre na utilização dos bens que lhe pertencem.
Isto comporta que as coisas já não estão em função da vontade, mas sim, que a
vontade se acha em função das coisas. Como nos ensina Irti (1962)34, a vocação
social do bem orienta a autonomia do indivíduo.
Desta maneira, a relevância social que pode ter o exercício do direito de
propriedade sobre determinadas categorias de bens orienta e dirige a atividade de
seu titular até o destino, inclusive, se for o caso, econômico, que seja mais
34 IRTI, Natalino. Dal diritto civile ao diritto agrario . Milão: Giuffré, 1962, p. 50.
56
adequado para a satisfação das necessidades da coletividade.
A propriedade não somente é meio para que o proprietário veja satisfeitas as
suas necessidades pessoais como, também, é um instrumento de cooperação
social, porque serve para a realização de interesses que a afetam a todos.
Entretanto, tal afirmação não quer significar que o interesse social ocupa
totalmente o lugar do interesse individual do proprietário.
Com a sujeição da propriedade privada aos fins sociais somente se pretende
evitar que o interesse individual se satisfaça de maneira egoística e excessivamente
personalista.
Assim, o ideal é que ambos os tipos de interesse - social e individual - se
complementem e se compensem mútua e reciprocamente no exercício do direito de
propriedade. O interesse pessoal do proprietário se acha conectado
indissociavelmente à realização da função social para atendimento do interesse
social e vice-versa. O interesse social da coletividade também se encontra
conectado ao respeito do interesse individual do proprietário. E não se pode
transformar esta situação em um cabo de guerra. A convivência deverá ser
harmônica, na satisfação do interesse individual, satisfará, de fato e de direito, o
interesse da coletividade. Não se trata mais de uma mera conjectura idealista, mas
de algo palpável e possível de ser realizado.
E quem tem o condão de transformar esta realidade é o detentor do direito de
propriedade. Ele tem, com atitudes concretas, o poder de exercer o seu direito de
modo a atender ao interesse social. Mas, não o fazendo, o sistema tem como
obrigá-lo.
Por este motivo, Messineo (1979)35 afirma que, na atualidade, a propriedade
privada é um direito individual não individualista.
Neste contexto é importante ressaltar que o interesse individual somente
poderá ser sacrificado em casos extremos, previstos em lei, quando, a sua
satisfação constitua um obstáculo insanável à plena e efetiva realização do interesse
social.
Entretanto, dotar a propriedade de uma função social implicará em agregar ao
ordenamento jurídico as formas, os meios para o exercício do direito de forma que o
proprietário possa satisfazer a conformidade das exigências sociais coletivas.
35 MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil e comercial . Trad. de S. Sentis Melendo. Buenos Aires:Ediciones Juridicas Europa América, 1979, p. 251. T. 3.
57
É importante alertar para a existência da proibição do abuso de direito.
Alguns doutrinadores sustentam que a proibição do abuso de direito não
reclama, necessariamente, um exercício em sentido social da propriedade.
Entretanto, tal conclusão somente pode ser considerada como correta a partir da
concepção subjetiva do abuso de direito, inicialmente assumida pelo liberalismo.
(BARASSI, 1951).
A apreciação do abuso de direito no Séc. XIX se apoiava em dois elementos
essenciais: a intenção de não causar dano e a total ausência de um interesse sério
ou legítimo por parte do titular do exercício de direito. Portanto, partindo dessa
concepção subjetiva, a proibição de abuso do direito resultava insuficiente para
atribuir uma função social à propriedade privada.
Ademais do que, a dificuldade probatória inerente ao elemento intencional do
abuso do direito dificultava, sobremaneira, a demonstração subjetiva do abuso de
direito, permitindo assim, as condutas antissociais.
As ideias desenvolvidas por Jhering (1943) serviram de apoio a Josserand
(1950) para construir um novo conceito do abuso de direito que se caracterizava por
alijar-se da sua inicial configuração subjetiva e levá-lo para uma concepção
eminentemente objetiva. Para o autor francês, existe abuso de direito quando, no
exercício do mesmo, se produz um desvio do destino típico delineado pelo direito
objetivo. O abuso se resolve assim não somente com base na ilicitude da conduta,
determinada de acordo com a intenção ou interesse do titular, mas sim também com
base no fim ou objetivo ao qual há de direcionar o exercício do direito em condições
de normalidade, com o qual se pretende dar uma perspectiva finalista ou funcional à
apreciação do mesmo.
Na teoria do abuso de direito, Josserand (1950) deixou claro que o direito de
propriedade, além de não poder ser exercido discricionariamente pelo seu titular,
deveria estar adstrito ou limitado pelos direitos dos terceiros. E assim, a propriedade
tenderia à conformação mais altruista, perdendo o caráter absoluto e estático e
adquirindo um caráter relativo e dinâmico.
E na atualidade, o direito de propriedade se acha jungido não somente à
satisfação do direito individual do titular, mas, igualmente, à efetiva realização do
interesse social. Por conseguinte, dentro do nosso ordenamento jurídico, no
exercício de propriedade deverá o proprietário tender para um destino econômico e
social, e assim, com enfoque numa concepção objetiva, será considerado abusivo o
58
desvio do exercício do direito do seu destino típico. Podemos concluir que nada
obsta para conceituar como abusivo o desvio das finalidades sociais que, por ordem
constitucional, deverão cumprir a propriedade.
Nesta seara, não existe óbice em sustentar que, a partir de sua vertente
objetiva, a proibição do abuso de direito pode atuar de modo corretivo visando
adequar o uso do direito de propriedade para abarcar o sentido social e, em síntese,
como meio com o qual o ordenamento jurídico poderá impedir que o interesse
individual se sobreponha maleficamente ao interesse coletivo.
O Código Civil de 1919 não prescrevia claramente o abuso de direito, que, no
Código Civil de 2002 encontra-se no artigo 187: “Também comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” (BRASIL, 2002).
A função social vai, agora, além do mero abuso de direito e com ele não se
confunde.
A função social pode, inclusive, canalizar-se também mediante o
estabelecimento de incentivos e vantagens que, em razão de sua força, convidam o
proprietário a destinar o exercício de seu direito para o fim social.
Bons exemplos deste tipo de concessão de incentivos podem ser observados
quanto à atribuição de descontos tributários para instituição de áreas de reserva
legal em imóveis rurais, ou ainda, na redução de alíquotas tributárias para imóveis
edificados em solo urbano em comparação com as alíquotas majoradas para os
imóveis sem edificação.
Nesses sistemas de incentivo, o proprietário é livre e não tem o dever de
observar o comportamento mediante o qual se pretende calcar a atuação do
interesse social, seja porque este não lhe é juridicamente exigível naquele momento
ou porque a realização da conduta contrária não é exatamente um ato ilícito (deixar
sem edificar solo urbano por um determinado período de tempo).
Paralelamente ao sistema de vantagens e incentivos, o ordenamento jurídico
comanda a função social através da imposição, via legislativa, de deveres e
obrigações mediante as quais se exige que o proprietário exercite o seu direito em
conformidade com o interesse social esperado.
Ao longo deste trabalho, utilizamos dever e obrigação como sinônimos em
sentido amplo, querendo enquadrar a necessidade do proprietário observar
determinadas condutas ou comportamentos, ativos ou omissivos, que são
59
manifestação direta da função social que deverá cumprir.
Os deveres derivados da função social se diferenciam dos incentivos e
vantagens, os primeiros constituem um vínculo incondicional, do qual o proprietário
não pode se afastar. O proprietário não é livre para decidir se observa ou não o
comportamento funcional determinado pela lei. Já no sistema de incentivos, não
existe um dever inarredável. Em não aderindo ao sistema, não contará com os
incentivos.
É fato que, passado algum tempo, o que era um incentivo pode se tornar num
dever. A obrigação de construir pode passar a ser compulsória, conforme se
exemplifica através da autorização contida no Estatuto das Cidades - Lei 10.257 de
10 de julho de 2001. (BRASIL, 2001).
Portanto, o que separa o incentivo do dever funcional é a legislação. Ela
deverá deixar claro quando e como deverá o proprietário agir para atender à função
social dele esperada.
Reforça-se assim a ideia de somente admitir que o ordenamento jurídico
determine a imposição de deveres quando o interesse social estiver em jogo, já que
as consequências de seu não atendimento são nefastas e esta requer a realização
incondicionada.
Ao contrário, o recurso dos incentivos e vantagens somente poderá ser
utilizado quando a consecução do interesse social não constituir-se numa
necessidade peremptória e, por este motivo, permite certa margem de liberdade de
atuação do proprietário.
Tendo-se em mente a necessidade de atender ao interesse social imposto
pela função social aplicada aos bens, o ordenamento jurídico, a lei em particular,
poderá preencher o conteúdo destes bens, exigindo do proprietário uma abstenção
devida ou atribuindo-lhe desde o primeiro momento, determinadas faculdades ou
impedindo o exercício de outras em situações concretas. Ou ainda, poderá reclamar
comportamento ativo que obrigue o proprietário a exercitar determinadas faculdades
constitutivas do seu direito ou a utilizar os bens que lhe pertencem de um modo
específico.
Portanto, poderemos ter deveres negativos ou deveres positivos atrelados ao
cumprimento da função social esperada para aqueles bens específicos. Esta
60
qualificação foi idealizada por Rodotá (1986).36
Quanto aos deveres positivos, trata-se de obrigar o proprietário a exercer o
seu direito em sentido social, mediante a fixação legal de comportamentos
específicos estabelecidos por verdadeiros vínculos positivos de fazer.
A justificativa da utilização de tal mecanismo é que através da atribuição
jurídica de comportamentos positivos ao titular do direito se satisfaz melhor o
interesse social que com imposições de abstenção, porque não se trata somente de
tentar esterilizar as condutas antissociais onde elas possam ocorrer, mas ao
contrário, exigir que o titular atue no exercício de seu direito e o faça de uma
determinada forma, na direção que marca o interesse social da comunidade como
um todo.
Neste sentido, deve-se admitir que mediante a imposição, não somente
limites ou vínculos negativos, mas sim autênticos deveres de fazer, se chega ao
cabo de uma determinação e conformação positiva (não somente negativa) em
sentido social do conteúdo do direito de propriedade.
E aqui fazemos nossas as palavras de Souza (2009, p. 69) 37:
Definitivamente, essa propriedade não é mais aquela propriedade burguesa que dominou grande parte do século XX. Poderíamos chamar essa propriedade de “propriedade-função”, haja vista que a nova codificação não garante mais a propriedade por si mesma. O direito de propriedade é protegido, desde que o seu titular a utilize em prol do desenvolvimento de toda a sociedade .(SOUZA, 2009, p. 69).
Com estas considerações, se conclui que os limites à propriedade privada
deixaram de situar-se unicamente na face externa do direito de propriedade e
passaram a ser parte integrante do seu âmbito interno. As delimitações derivadas do
cumprimento da função social não atuam como elementos de compressão externa
da anormalmente ilimitada liberdade do proprietário. Ao contrário, se mostram como
mecanismos que, atuando desde a esfera interna do direito, procedem a uma normal
determinação daquilo que o proprietário pode fazer com as coisas que lhe
pertencem.
36 RODOTÁ, Stefano. El terrible derecho : estudios sobre propiedad privada. Madrid: Civitas, 1986. p. 238-239. 37 SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das coisas . Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2009. p. 69.
61
Assim sendo, a nova doutrina entende que o direito de propriedade foi
transformado e que a função social faz parte integrante do núcleo duro do direito,
tudo conforme nos ensina Silva (2005):38
A doutrina se tornara de tal modo confusa a respeito do tema, que acabara por admitir que a propriedade privada se configurava sob dois aspectos: (a) como direito civil subjetivo e (b) como direito público subjetivo. Essa dicotomia fica superada com a concepção de que a função social é elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada; incide no conteúdo do direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito. Por isso, a noção de situação jurídica subjetiva (complexa) tem sido usada para abranger a visão global do instituto, em lugar daqueles dois conceitos fragmentados. Nela resguarda-se o conjunto de faculdades do proprietário, dentro da delimitada espera que a disciplina constitucional lhe traça.(SILVA, 2005, p. 273).
As limitações que se impõem em razão do interesse privado com a finalidade
de garantir a coexistência de distintos direitos restringem, comprimem a partir do
exterior o poder que corresponde ao proprietário. Já os limites da propriedade
privada, estabelecidos em virtude da função social temperam, modulam, configuram
a partir do interior deste mesmo direito o conteúdo do poder que se atribui ao seu
titular.
O objetivo da função social, portanto, não é impedir que o titular se comporte
de uma determinada maneira, quando ele pode causar um dano a terceiros, mas
sim, dirigir, canalizar, orientar de forma ininterrupta o exercício do seu poder para os
objetivos de indubitável transcendência social. Vale dizer, não se pretende reduzir
seu poder, mas sim, embasá-lo com fincas no interesse social mediante a
modalização do seu funcionamento.
Com base neste entendimento, o agir conforme a função social não priva,
necessariamente, o proprietário de uma faculdade própria, mas exige que o titular do
direito de propriedade assuma um comportamento ativo, exercite suas faculdades e,
indo além, o faça de uma determinada forma: aquela que resulte mais conveniente
para alcançar a realização do interesse social. Ou seja, para conseguir este objetivo,
é necessário modular ou temperar os direitos desde o seu cerne, sem que seja
imprescindível proceder a uma restrição extrínseca no âmbito de atuação do
proprietário.
38 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo . 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2005, p. 273.
62
Assim sendo, compreende-se que a função social passa a constituir uma
parte integrante do conteúdo de propriedade, já não resulta possível seguir
considerando-a como exceção ao poder do proprietário. Este poder deixa de ser
tendencialmente ilimitado para surgir como normalmente limitável por razões de
exigências sociais constitucionais.
E não se trata aqui de adotar um discurso de abolição da propriedade privada,
como formulado por Karl Marx (2010) (O Capital); Karl Marx e Friedrich Engels
(2010) Manifesto do Partido Comunista. É bom se ter em mente também que mesmo
nos países comunistas, ainda que tenha sido coletivizada a propriedade dos meios
de produção, nunca chegou a desaparecer totalmente o domínio privado dos bens
de consumo.
Mais a mais, atualmente, estamos assistindo à derrocada dos sistemas
políticos comunistas. Entre outros fatores, a coletivização dos meios de produção
levou a maioria dos países que adotaram tal sistema a uma profunda crise e grande
miséria econômica. E a situação econômica precária fatalmente conduzirá ao
replanejamento da configuração jurídica da propriedade, iniciando uma
reprivatização do que foi estatizado.
Neste sentido, ficam enfatizados os ensinamentos de Pontes de Miranda
(1974)39 ao demonstrar que as leis regularão o exercício e definirão o conteúdo e os
limites do direito de propriedade, já que a Constituição da República, em seu artigo
5º garante a instituição da propriedade, mas seu conteúdo e limites deverão ser
definidos por lei.
E ainda, questionar a manutenção da propriedade privada como um direito
individual é algo que não tem cabimento no nosso vigente ordenamento
constitucional, posto que a Constituição da República a garante e tutela como um
direito fundamental, inserida no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais -
Capítulo I- Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, senão vejamos:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade (BRASIL, 1988).
39 MIRANDA, Pontes de; BRASIL. [Constituição (1967)]. Comentários à Constituição de 1967: volume 5 : (arts. 153, § 2-159). 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. 701p. v.5. p. 397.
63
Portanto, protegida a propriedade privada, estabelece ainda, no Inciso XXIII
do mesmo artigo 5º a necessidade de cumprimento da função social: “ XXIII - a
propriedade atenderá à sua função social” (BRASIL, 1988).
A função social penetra na alma do direito de propriedade, a transmuta e
exige uma nova formatação dentro do novo paradigma do Estado Democrático de
Direito.
O interesse social introduz um vínculo que deverá ser analisado
teleologicamente no exercício das faculdades da propriedade. A dimensão que era
estática passa agora a ser dinâmica, através da funcionalidade. O que muda não é o
conceito de propriedade, mas o seu conteúdo.
Superada a fase estática que identificou o liberalismo, a propriedade ressurge
em uma fase dinâmica, devido à nova posição que o proprietário ocupa na ordem
jurídico-social, caracterizada pela valorização das distintas relações e contrastantes
interesses.
Agora, a categoria dos bens objeto da propriedade também deverá ser
analisada para se perquirir a repercussão e a ligação com o interesse social para se
concluir sobre qual a função social que dele se espera e qual a atitude que deve
orientar o proprietário.
O princípio constitucional da função social trouxe esta dinamização ao direito
de propriedade.
A atual dimensão dinâmica da propriedade é muito clara de ser analisada
tanto no âmbito do direito da propriedade imobiliária urbana quanto na propriedade
rural.
A respeito da propriedade privada urbana, é importante ressaltar que o êxodo
rural trouxe consigo a necessidade de organizar e planejar ordenadamente o
crescimento dos núcleos urbanos, e ainda, de corrigir as desigualdades e promover
um rearranjo do direito da propriedade urbana. Como solução a esta problemática,
começou-se a impor limitações ao livre exercício das faculdades de uso, gozo e
disposição contidas no direito de propriedade imobiliária urbana. (GIL, 1989).
Daí o surgimento de legislação especial urbanística impedindo ao proprietário
do solo urbano o direito de exercitar livremente a faculdade de edificar. As restrições
ao exercício da propriedade vão desde a forma e tempo para construção, volume
construído, altura da edificação, tipologia, até a aplicação de mais-valias derivadas
da urbanização.
64
Também quanto à propriedade imobiliária rural foram criados meios de
apuração correta do cumprimento da sua função social, com critérios objetivos de
produtividade ou improdutividade e suas consequências legais.
A ideia de que a terra é um bem escasso e constitui uma das principais
riquezas da sociedade é valorizada. Por esta razão, o exercício do direito de
propriedade sobre a mesma se conecta com as exigências sociais da comunidade.
O proprietário, gozando e dispondo de seu terreno não atua somente em proveito
próprio, mas também em benefício do interesse coletivo. Tal como já dizia Jhering
(1978, p. 250, tradução nossa): “A terra não existe somente para o proprietário, mas
igualmente para a sociedade.”40
É fato que ter a propriedade de um automóvel é algo distinto de deter a
propriedade de um imóvel urbano ou rural, de uma fábrica ou de bens para uso
próprio, como roupas, sapatos, etc. Assim sendo, a função social deverá ser
perquirida e interpretada diferentemente para cada um destes tipos de bens.
40 "La tierra no existe solo para el propietário, sino igualmente para la sociedad" (JHERING, 1978. p.47).
65
5 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO COMPARA DO
5.1 A função social da propriedade na Alemanha
Já falamos bastante sobre o momento histórico em que a Constituição de
Weimar foi elaborada e que existia um precariedade política que propiciou a sua
promulgação mas que impediu a sua aplicação. E ainda, que esta é considerada
pela doutrina como o marco inicial principal do Estado Social, apesar da Constituição
Mexicana de Querétaro lhe ser temporalmente anterior (1917). Sobre a Constituição
Mexicana e o porquê dela não ser considerada como o principal marco,
discorreremos posteriormente
O projeto da Constituição de Weimar foi elaborado por Hugo Preuss, que era
um professor judeu adepto do comunitarismo. Este professor foi discípulo Otto v.
Gierke e era bastante influenciado por Weber, sendo este um jurista com tendências
claramente de esquerda. (STIRK, 2002)
Como já visto alhures, a Constituição Alemã de 1919 pretendeu criar uma
ordem jurídica, econômica e social justa, dando guarida a todo um conjunto de
novos princípios que, pela primeira vez na história das constituições, eram
recepcionados em um texto constitucional parte da ideologia social democrata e hoje
identificada pela doutrina como o marco inicial do Estado Social, e o ponto
intermediário entre o capitalismo e o socialismo. (HESSE, 1998).
A Constituição de Weimar surgiu como um produto da codificação de toda
uma série de acordos pretéritos. A título de exemplificação: Acordo de 1º de
Novembro de 1918 entre Hindenburg e Friedirch Eber, Acordo Stinnes-Legier de 15
de novembro de 1918 e Acordo de 22 e 23 de Março de 1919 entre o governo e o
Partido Social Democrata. (HESSE, 1998).
Assim sendo, o texto da Constituição de Weimar, elaborado por um jurista
judeu com tendências ao esquerdismo, continha um caráter social que era
sobrelevado pela inserção, dentre os direitos de segunda dimensão, de algumas
garantias de relevo, dentre elas, conforme Hesse (1998)
66
a. a proteção e assistência à maternidade (arts. 119, § 2º e 161);
b. o direito à educação da prole (art. 120);
c. o direito à proteção moral, espiritual e corporal da juventude (art. 122);
d. direito à pensão por morte e o direito à aposentadoria do servidores
públicos (art. 129); o direito ao ensino de arte e ciência (art. 142);
e. o direito ao ensino obrigatório, público e gratuito (art. 145);
f. a gratuidade do material escolar (art. 145); o direito à bolsa de estudos
caracterizada através da subvenção dos pais dos alunos considerados
aptos para seguir os estudos secundários e superiores (art. 146, § 2º);
g. a função social da propriedade (Capítulo V- Art. 153, § 2º),
h. a desapropriação de terras, mediante indenização, para satisfação do
bem comum (art. 153, § 1º);
i. o direito à habitação sadia (art. 155);
j. o direito ao trabalho (arts. 157 e art.162);
k. o direito à previdência social (Art. 161);
l. o direito ao seguro desemprego (art. 163, § 1º), dentre outras.
O que se deixa claro, portanto, é que o rol de direitos constante do Livro II da
Constituição de Weimar, garantidor tanto de liberdades como de prerrogativas
sociais, tornou famosa a Constituição Alemã de 1919, servindo de inspiração a
diversos textos constitucionais por todo o mundo, inclusive no Brasil onde, como
veremos adiante, refletiu-se na Constituição de 1934 (BRASIL, 1934).
Vejamos como ficou a redação final do Artigo 153 e seus parágrafos da
Constituição de Weimar:
A propriedade será garantida pela Constituição. Seu conteúdo e limites se deduzem das leis. §1º. Somente se poderá expropriar a bem da comunidade e com fundamente de Direito, tendo sempre como contrapartida a correspondente indenização, exceto quando uma lei do Reich determine outra coisa. No concernente à quantia de indenização, se manterá aberta em caso de litígio a via legal dos tribunais competentes, exceto quando uma lei do Reich determine o contrário. As expropriações feitas pelo Reich a Lander, municípios ou associações de uso público somente poderão efetuar-se mediante indenizações. §2º. A propriedade impõe obrigações. Seu uso deve constituir, ao mesmo tempo, um serviço para o mais alto interesse comum. (DIE VERFASSUNG, 1933).
67
A Constituição de Weimar teve vida curta e, no tocante aos direitos sociais,
não foram implementados em razão da precariedade do sistema político que lhe
sucedeu.
Entretanto, a Lei Fundamental de 1949 (Constituição de Bonn), em seu artigo
14, foram incorporados os ditames sociais da Constituição de Weimar que, no
tocante à função social, assim determinou:
Art. 14 (Propriedade, direito de sucessão e expropriação). (1) A propriedade e o direito de sucessão hereditária são garantidos. O seu conteúdo e os seus limites são determinados por lei. (2) A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir para o bem-estar geral. (3) A expropriação só é lícita se for efetuada no interesse geral. Pode ser efetuada unicamente por lei ou com base numa lei que estabeleça o modo e o montante da indenização. A indenização deve ser determinada através da ponderação justa dos interesses gerais e dos das pessoas afetadas. Em caso de divergência acerca do montante de indenização admite-se o recurso via judicial junto dos tribunais comuns. (NICHTAMTLICHES INHALTSVERZEICHNIS, 2011, tradução nossa)41.
Como veremos, a Constituição de Weimar e suas disposições sociais e
direitos de segunda e terceira geração influenciaram e motivaram a elaboração de
Constituições por todo o mundo, que passaram a sistematizar disposições
pertinentes aos direitos econômicos e sociais dos indivíduos.
5.2 Função social da propriedade no México
Como já dito alhures, a Constituição que primeiro incluiu direitos sociais e
tratou da função social da propriedade, foi a Constituição Mexicana. O que foi
consubstanciado na Constituição de Querétaro, em 1917. (HESSE, 1998).
Então dois são considerados como marcos do constitucionalismo social, a
Constituição Mexicana de Querétaro de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar de
41 (1) Das Eigentum und das Erbrecht werden gewährleistet. Inhalt und Schranken werden durch die Gesetze bestimmt. (2) Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich dem Wohle der Allgemeinheit dienen. (3) Eine Enteignung ist nur zum Wohle der Allgemeinheit zulässig. Sie darf nur durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes erfolgen, das Art und Ausmaß der Entschädigung regelt. Die Entschädigung ist unter gerechter Abwägung der Interessen der Allgemeinheit und der Beteiligten zu bestimmen. Wegen der Höhe der Entschädigung steht im Streitfalle der Rechtsweg vor den ordentlichen Gerichten offen. (NICHTAMTLICHES INHALTSVERZEICHNIS, 2011).
68
1919, conforme pontua Hesse (1998).
De igual modo como a Constituição Alemã, a Constituição Mexicana
promulgada em 31 de janeiro de 1917 foi elaborada quando o país estava submerso
num caldeirão de reivindicações deflagradas com a Revolução Mexicana de 1910.
A Constituição Mexicana de 1917, a despeito de muitas emendas, ainda
continua em vigor e, o que ela trazia de novidade era a inserção de direitos tais
como: direito à educação (art. 3º), direito à saúde (art. 4º, § 2º), direito à moradia
digna (art. 4º, § 3º), mas, o maior enfoque era para tentativa de solução dos
problemas agrários (art. 27) e dos direitos do trabalhador (art. 123). (HESSE, 1998).
E, em razão das expectativas e pleitos da Revolução Mexicana de 1910, a
função social da propriedade e possibilidade da desapropriação como forma de
redistribuição da terra foram princípios chaves inseridos no teor constitucional.
Estes princípios foram inseridos no Artigo 27 da Constituição Federal do
México, in verbis42:
Artigo 27 – A propriedade das terras e águas compreendidas dentro nos limites do território nacional pertence originariamente à Nação, a qual teve e tem o direito de transmitir o domínio delas aos particulares, constituindo assim a propriedade privada. A desapropriação somente poderá ocorrer em razão de utilidade pública e mediante indenização. A Nação terá, a todo o tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse público, assim como o de reg ular, em benefício social, o aproveitamento de todos os recursos natur ais suscetíveis de apropriação , com o fim realizar uma distribuição equitativa da riqueza pública e para cuidar de sua conservação, alcançar o desenvolvimento
42 ARTICULO 27 - La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los límites del territorio nacional corresponde originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de transmitir el dominio de ellas a los particulares constituyendo la propiedad privada. Las expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización. La Nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interés público , así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias para ordenar los asentamientos humanos y establecer adecuadas previsiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, a efecto de ejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación, conservación, mejoramiento y crecimiento de los centros de población; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para el fraccionamiento de los latifundios; para disponer en los términos de la ley reglamentaria, la organización y explotación colectiva de los ejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña propiedad agrícola en explotación; para la creación de nuevos centros de población agrícola con tierras y aguas que les sean indispensables; para el fomento de la agricultura y para evitar la destrucción de los elementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad. Los núcleos de población que carezcan de tierras y aguas o no las tengan en cantidad suficiente para las necesidades de su población, tendrán derecho a que se les dote de ellas, tomándolas de las propiedades inmediatas, respetando siempre la pequeña propiedad agrícola en explotación. (REPÚBLICA DE MÉXICO, 2006)
69
equilibrado do país e sua conservação, o desenvolvimento equilibrado do país e a melhoria das condições de vida da população rural e urbana. Assim, serão ditadas as medidas necessárias: para ordenar os assentamentos humanos e estabelecer adequadas previsões, usos, reservas e destinos das terras, águas e florestas, para o efeito de executar obras públicas e de planejar e regular a fundação, conservação, melhoria e crescimento dos centros populacionais; para preservar e restaurar o equilíbrio ecológico; para o fracionamento dos latifúndios; para dispor, nos termos da lei de regulamentação, a organização e a exploração coletiva dos logradouros e comunidades; para a criação de novos centros de população agrícola dotados de terras e águas indispensáveis; para o fomento da agricultura e para evitar a destruição dos elementos naturais e os danos que a propriedade possa sofre em detrimento da sociedade. Os núcleos de população que careçam de terras e águas ou que não as tenham em quantidade suficiente para a suprir a necessidade populacional, terão o direito a serem satisfeitas, obtendo-as a partir das propriedades vizinhas, respeitando sempre a pequena propriedade rural produtiva.. (REPÚBLICA DE MÉXICO, 2006, tradução nossa; grifo nosso).
Estava abolido assim o caráter absoluto e sagrado da propriedade privada.
Seu uso passou a ser condicionado ao interesse social. Esta nova constituição
serviu de suporte para que fosse possível a concretização da primeira reforma
agrária na América Latina.
Portanto, o artigo 27 da Constituição Mexicana, que trata da questão agrária e
retrata a concretização constitucional de um dos grandes pleitos da Revolução,
definiu, sucintamente, no que interessa à presente pesquisa, a propriedade pública
relativa às terras e águas, que poderá ser transmitida aos particulares, a
possibilidade de desapropriação de terras por utilidade pública, mediante
indenização prévia, a proteção da pequena propriedade, e a função social da
propriedade para atendimento do interesse público e do benefício social.
(REPÚBLICA DE MÉXICO, 2006).
Mas, é claro que a Constituição Mexicana não se ateve também somente à
questão agrária e da função social da propriedade, outro ponto de fulcral importância
foi a questão das relações trabalhistas, com a determinação de que o trabalho não
era uma mercadoria como outra qualquer e, também inseriu em seu conteúdo vários
direitos sociais, dentre eles:
a. a proibição da escravidão (art. 2º);
b. a igualdade entre os sexos (art. 4º);
c. a liberdade de expressão (art. 6º);
d. a vedação à censura prévia (art.. 7º);
e. o direito de petição (art. 8º);
70
f. a liberdade de reunião e de associação (art. 9º);
g. o direito à livre circulação (art. 11);
h. o princípio do juiz natural (art. 13);
i. o devido processo legal (art. 14, § 1º);
j. a inviolabilidade de domicílio (art. 16);
k. a vedação de prisão por dívidas (art. 17, § 3º);
l. a liberdade religiosa (art. 24);
m. o direito à alternância política (art. 83) e
n. a separação entre o Estado e a Igreja (art. 130). (REPÚBLICA DE MÉXICO,
2006).
Portanto, sob o ponto de vista cronológico, a Constituição de Querétaro foi a
primeira a tratar de tantas questões sociais, mas, apesar disso, a extensão destes
direitos foi elaborada tendo-se em mente os problemas agrários e trabalhistas
experimentados e combatidos pela Revolução Mexicana.
Os avanços da Constituição Mexicana de 1917 quanto às questões agrárias e
dos direitos do trabalhador são notórios. Entretanto, a Constituição Mexicana foi um
instrumento regional, bastante adequado à realidade daquele país em face à uma
revolução. Já a Constituição Alemã era mais universalizante, daí ter sido fonte de
inspiração para os demais países naquela época, enquanto a Mexicana foi
parcialmente ignorada.
Portanto, apesar de historicamente precedente, não se pode afirmar que a
Constituição Mexicana obteve grande repercussão fora dos limites locais. Por seu
turno, o mundo jurídico analisou e esmiuçou a Constituição alemã de Weimar, com a
produção de vários artigos doutrinários e a promulgação de outras constituições nela
inspiradas.
Pelo que, ainda que a Constituição Mexicana trouxesse em seu arcabouço
tantos dispositivos de caráter social, a doutrina majoritária credita à Constituição
Alemã de 1919 maiores efeitos na constitucionalização do Direito Privado e no
nascimento do Estado Social.
Veja bem que ambas as Constituições (Mexicana e Alemã) não laboraram no
sentido de extirpar a propriedade privada, como foi concretizado através da
Revolução Russa, que, em 4 de janeiro de 1918, promulgou a Declaração dos
Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, afirmando várias medidas, entre elas,
71
segundo Marcílio (2010):
No Capítulo II: 1º - Capítulo II Visando principalmente a suprimir toda exploração do homem pelo homem, a abolir completamente a divisão da sociedade em classes, a esmagar implacavelmente todos os exploradores, a instalar a organização socialista da sociedade e a fazer triunfar o socialismo em todos os países, o III Congresso Pan-Russo dos Sovietes dos Deputados Operários, Soldados e Camponeses decide o seguinte: 1.º A fim de se realizar a socialização do solo, fica extinta a propriedade privada da terra; todas as terras passam a ser patrimônio nacional e são confiadas aos trabalhadores sem nenhuma espécie de reembolso, na base de uma repartição igualitária em usufruto. As florestas, o subsolo, e as águas que tenham importância nacional, todo o gado e todas as alfaias, assim como todos os domínios e todas as empresas agrícolas-modelo, passam a ser propriedade nacional. (MARCÍLIO, 2010).
Portanto, não se tratou de socializar a propriedade privada, mas, mantendo a
sua conformação, o escopo é dar a ela uma função de social, além da econômica
que também lhe é natural.
5.3 A função social da propriedade na Itália
Sofrendo as influências benéficas da Constituição de Weimar, a Constituição
Italiana de 1947 também estabeleceu a função social da propriedade em seu artigo
42:
Art. 42 - A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao Estado, ou a entidades, ou a particulares. A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina as suas formas de aquisição, de posse e os limites, no intento de assegurar sua função social e de torná-la acessível a todos. A propriedade privada pode ser, nos casos previstos pela lei e salvo indenização, expropriada por motivos de interesse geral. A lei estabelece as normas e os direitos da sucessão legítima e testamentária, e os direitos do Estado sobre as heranças. (TERRACINI, 2010).
Analisando a Constituição Italiana, parte da doutrina havia distinguido entre
uma função social limite e uma função social impulsiva.
A primeira delas teria uma eficácia puramente negativa, já que comprimiria
externamente os direitos do proprietário. Ao contrário, a segunda - impulsiva - seria
dinamicamente positiva, porque determina os programas e controles oportunos para
72
que a atividade econômica se dirija aos fins de caráter social. (BARASSI, 1951) 43
Tal doutrina considerava a função social como um gênero, do qual as
limitações seriam espécies.
Entretanto, errôneo tal entendimento já que uma atinge o cerne do direito de
propriedade e as outras o comprimem externamente, sendo, portanto, de natureza
diversa, incorreta a caracterização.
Afirma-nos Perlingieri (2008, p. 940) 44, sobre o artigo 42 da Constituição
Italiana que este é um “sistema inspirado pela solidariedade política, econômica e
social e pelo pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2º. Constituição Italiana), o
conteúdo da função social assume um papel promocional.”
5.4 A função social da propriedade na Espanha
Na Espanha, o direito de propriedade está previsto no Artigo 33.1 da
Constituição Espanhola de 1978, assim disposto “Art. 33.1 - Se reconhece o direito à
propriedade privada e à herança.” (CONSTITUCIÓN española, 2010, tradução
nossa)45
E, logo após, a função social também é determinada no artigo 33.2, que diz:
“A função social desses direitos delimitará seu conteúdo, em conformidade com a
lei.” (CONSTITUCIÓN española, 2010, tradução nossa)46
Complementando o arcabouço legal espanhol, importante asseverar que o
Código Civil Espanhol em seu artigo 349 determina: “Ninguém será privado de seus
bens e direitos, exceto por autoridade competente e justa causa de utilidade pública,
mediante prévia indenização adequada. Se não precedido este requisito, os Juízes
ampararão e, neste caso, reintegrar-se-á a posse ao expropriado” (CÓDIGO CIVIL
43 BARASSI, Lodovico. Proprietà e comproprietà . Milano: Giuffrè, 1951, p. 266. 44PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008.p.940. 45 "Se reconoce el derecho a la propiedad privada y la herencia" (CONSTITUCIÓN española, 2010). 46 "La función social de estos derechos delimitará su contenido, de acuerdo con las leyes" (CONSTITUCIÓN española, 2010).
73
Espanhol, 2011, tradução nossa)47 .
Pela conformação legal espanhola, cabe asseverar que a propriedade privada
não alcança o caráter de direito fundamental, posto que lançado num capítulo de
direitos e deveres dos cidadãos, apartado do capítulo dos direitos fundamentais.
A expressão função social em si mesma considerada, carece assim de valor
técnico concreto e constitui um conceito jurídico indeterminado. A Constituição
Espanhola pretende adequar a propriedade às exigências sociais expressando, em
seu artigo 28.1 que “toda a riqueza do país, seja qual for sua titularidade estará
subordinada ao interesse geral.” (CONSTITUCIÓN Española, 2010, tradução
nossa)48
Desta maneira, pode-se afirmar que a função social da propriedade não foi
definida em sentido positivo e concreto, senão de uma forma aproximada e caberá à
legislação ordinária delimitar o conteúdo da propriedade privada conforme a função
social que dela se espera.
Várias são as legislações especiais espanholas que tratam da função social,
mas um dos exemplos significativos no que tange à propriedade imobiliária rural não
produtiva, se encontra retratado nas instituições do Direito Civil da Galícia que
discutiam a possibilidade de se remediar a necessidade social, evitando que
permanecessem improdutivas grandes extensões de terra. Para eles, frente ao
proprietário que não cumpria a função social, dotava-se de preferência o que detinha
a posse e cultivava a terra, reconhecendo-lhe um domínio útil sobre a mesma, que,
a título de remuneração, pagava uma prestação ao titular do domínio direto, numa
espécie de propriedade foreira.
Esta preferência que se outorgava ao agricultor possuidor se consolidou a
partir do instante em que a Exposição de Motivos da Lei 147 de 2 de dezembro de
1963 sobre a Compilação do Direito Civil Especial da Galícia de 5 de dezembro
assinalava que havia chegado o momento de facilitar a extinção dos foros
existentes, consolidando a propriedade nas mãos dos possuidores. (COMUNIDAD
Autonoma de Galicia, 1988).
47 " Nadie podrá ser privado de su propiedad sino por Autoridad competente y por causa justificada de utilidad pública, previa siempre la correspondiente indemnización. Si no precediere este requisito, los Jueces ampararán y, en su caso, reintegrarán en La posesión al expropiado." (CÓDIGO CIVIL Espanhol, 2011). 48 "Toda la riqueza del país y sea cual fuere su titularidad está subordinada al interés general" (CONSTITUCIÓN Española, 2010).
74
O processo de supressão dos foros com a consolidação da propriedade pelos
detentores do domínio útil se encerra com a Lei 7 de 10 de novembro 1987 sobre a
Compilação do Direito Civil da Galícia (COMUNIDAD Autonoma de Galicia, 1988).
Em sentido análogo, a Ley de Arrendamientos Rusticos (LAR) de 31 de
dezembro de 1980, em seu artigo 84 e seguintes, se refere ao acesso à propriedade
rural, reconhecendo ao arrendatário de determinada sorte de terras o direito ao
acesso à propriedade plena cultivada, cujo contrato fosse anterior a 1º. de agosto de
1942. (LEY de Arrendamientos Rusticos, 1981).
Nestes e noutros casos da legislação espanhola está-se buscando meios de
tornar proprietários os possuidores diretos da terra que a tenham cultivado e
atendidos aos ditames funcionais necessários, concedendo-lhes estímulos e
vantagens para melhoria na exploração racional da agricultura.
Importante asseverar que a preferência de consolidação da propriedade do
possuidor se dá frente ao proprietário inerte.
Prova disso é que, tanto a manutenção da propriedade pelo arrendador como
o acesso à mesma pelo arrendatário, estão totalmente subordinados à
imprescindível condição de que seja dada a exploração e cultivo pessoal, ou por
herdeiros e sucessores, da terra em questão. Atualmente, a Ley de Arrendamientos
n. 1/1992 de 10 de fevereiro determina em sua exposição de motivos o seguinte:
Não obstante, tendo em conta o estabelecido na Lei 83/1980 de 31 de Dezembro, de Arrendamentos Rústicos, e na Lei 1/1987, de 12 de fevereiro por que se prorrogam determinados contratos de arrendamentos rústicos e se estabelecem prazos para o acesso à propriedade, tendo-se em conta o exercício pelo arrendatário do direito de aquisição forçada, se devem também considerar como arrendamentos rústicos históricos aqueles que tenham sido ajustados anteriormente a 1º de agosto de 1942, desde que a renda tenha sido ajustada mediante uma quantidade de trigo não superior a 40 pátios e que e onde a fazenda passou a ser cultivada pessoalmente pelo arrendatário. A Lei 83/1980 de 31 de Dezembro, estabeleceu o direito dos arrendatários de locações históricas de adquirir a propriedade dos imóveis arrendados, estabelecendo para o exercício de tal direito, determinados prazos, conforme os arrendamentos anteriores à Lei de 15 de março de 1935 (primeira disposição transitória, terceira regra) ou antes de 1º de agosto de 1942 (artigo 99). (LEY de Arrendamientos Rusticos, 1992, tradução nossa; grifo nosso)49.
49 Ley 83/1980, de 31 de diciembre, de Arrendamientos Rusticos, y en la Ley 1/1987, de 12 de febrero por la que se prorrogan determinados contratos de arrendamientos rústicos y se establecen plazos para el acceso a la propiedad, en cuanto al ejercicio por el arrendatario del derecho de adquisición forzosa , se deben también considerar como arrendamientos rústicos históricos aquellos que hayan sido concertados con anterioridad al 1.ºde agosto de 1942, siempre que la renta hubiera sido
75
5.5 A função social da propriedade na França
Foi Leon Duguit (1912) quem traçou as primeiras linhas doutrinárias jurídicas
sobre o direito de propriedade como função social, a propriedade-função. Após uma
série de palestras por ele proferidas na Argentina, Duguit, em 1912, publicou sua
obra Les Transformations Générales Du Droit Privé Français dépuis le Code
Napoléon. O Autor examinou o absolutismo pregado pelo Código de 1804 e
confrontou tal posição com as teorias e movimentos ideológicos da época,
concluindo que a propriedade, sendo um bem escasso e a serviço de todos, não
poderia ser exercida ao bel talante do proprietário, ignorando os anseios e as
necessidades coletivas.
Esta obra foi estudada por Serpa Lopes (1996)50 que assim se manifestou:
Nas sociedades modernas, nas quais chegou a imperar a consciência clara e profunda da interdependência social, assim como a liberdade é o dever para o indivíduo de empregar sua atividade física, intelectual e moral no desenvolvimento desta interdependência, assim a propriedade é para todo possuidor de uma riqueza o dever, a obrigação de ordem objetiva, de empregar a riqueza que possui em manter e aumentar a interdependência social. (LOPES, 1996, p. 243).
Nos dizeres de Duguit citado por Serpa Lopes (1996) esta interdependência
são as relações entre os homens. A propriedade, assim, assume um papel
fundamental porquanto instrumento que pode atender o bem-estar social, geradora
de riquezas.
Duguit, citado por Serpa Lopes (1996) 51, finaliza o seu raciocínio:
regulada por una cantidad de trigo no superior a 40 quintales métricos y en los que la finca venga siendo cultivada personalmente por el arrendatario.La Ley 83/1980, de 31 de diciembre, estableció el derecho de los arrendatarios de los arrendamientos históricos a acceder a la propiedad de las fincas arrendadas, estableciendo para el ejercicio de tal derecho determinados plazos, según se tratara de arrendamientos anteriores a la publicación de la Ley de 15 de marzo de 1935 (disposición transitoria primera, regla tercera) o anteriores al 1.º de agosto de 1942 (artículo 99).49 sublinhamos. (LEY de arrendamientos...,, 1992). 50 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil : volume 6: direito das coisas. 4. ed. rev. e atual. / por Jose Serpa Santa Mari Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996 755p. (Biblioteca jurídica Freitas Bastos ), p. 243. 51 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil : volume 6: direito das coisas. 4. ed. rev. e atual. / por Jose Serpa Santa Mari Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996 755p. (Biblioteca jurídica Freitas Bastos ), p. 243.
76
Hoje em dia, os mais ardentes defensores da propriedade individual, os economistas mais ortodoxos, se vêem obrigados a reconhecer que se a afetação de uma coisa à utilidade individual está protegida, deve-se antes de tudo à utilidade social dela resultante. (LOPES, 1996, p. 243).
As teorias do francês Duguit citado por Serpa Lopes (1966) constituíram um
marco na evolução do direito de propriedade, incluindo a função social como uma
meta a ser alcançada pelo detentor do direito que, ao exercê-lo, deverá buscar
alcançar.
Entretanto, apesar de constituírem um marco, como nos ensina Giselda M.
Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny de Abreu Chinelato (2003, p. 89)52
Com toda a certeza, o grande positivista francês excedeu-se em suas considerações, especialmente ao concluir sua tese que negou a existência de direitos subjetivos. Contudo, têm os autores da contemporaneidade repetido que, se a doutrina de Duguit não foi aceita na sua integridade, suas conclusões, por outro lado, oferecem importantes vertentes acerca do raciocínio filosófico sobre a função social.
É importante ressaltar, também, que quando Duguit elaborou sua teoria, não
se falava em propriedade urbana ou outras irradiações do domínio, como, por
exemplo, recursos naturais, meio ambiente, etc. O que era importante na época era
a relação proprietária rural e a discussão das relações de trabalho e emprego. Mas a
inclusão da função social como discussão da propriedade gerou frutos e atendeu
aos anseios de vários doutrinadores que já a anteviam como um importante marco
para o desenvolvimento da propriedade e da posse.
5.6 Função social da propriedade em outros países
Outros países também adotaram a função social como princípio constitucional
e, para exemplificar, podemos citar a Constituição Paraguaia de 1992 estabelece em
seu artigo 10953:
52 HIRONAKA, Giselda M. Fernandes Novaes; CHINELATO, Silmara Juny de Abreu. Propriedade e Posse: uma releitura dos ancestrais institutos. Revista Trimestral de Direito Civil , ano 4, v.14, abr./jun. 2003, p.89. 53 Artículo 109 - DE LA PROPIEDAD PRIVADA Se garantiza la propiedad privada, cuyo contenido y límites serán establecidos por la ley, atendiendo
77
Artigo 109 – DA PROPRIEDADE PRIVADA É garantida a propriedade privada, cujo conteúdo e limites serão estabelecidos pela lei, atendendo sua função econômica e social, a fim de torná-la acessível para todos. A propriedade privada é inviolável. Ninguém pode ser privado de sua propriedade senão em virtude de sentença judicial, mas se admite a desapropriação em razão de utilidade pública ou de interesse social, que será determinado em cada caso pela lei. Esta garantirá a prévia e justa indenização, estabelecida convencionalmente ou mediante sentença judicial, excetuando-se os latifúndios improdutivos destinados à reforma agrária, tudo conforme com os procedimentos estabelecidos pela lei para as desapropriações. (CONSTITUCIÓN de la República de Paraguay, 2002, tradução nossa).
A Constitución Política de Colombia de 1991, reformada em 1997, em seu
artigo 5854, também trilhou o caminho da previsão constitucional do princípio da
função social:
Art. 58. ARTIGO 58. (Modificado pelo artigo 1 de A.L. 1 de 1999). São garantidos a propriedade privada e os demais direitos adquiridos nos termos das leis civis, as quais não podem ser ignoradas ou vulneradas por leis posteriores. Quando da aplicação de uma lei expedida por motivos de utilidade pública ou interesse social, resultarem e m conflito os direitos dos particulares com a necessidade por ela reconhec ida, o interesse privado cederá lugar ao interesse público ou social . A propriedade é uma função social que implica obrig ações. Como tal, lhe é inerente uma função ecológica. O Estado protegerá e promoverá as formas coletivas e solidárias da propriedade. Por motivos de utilidade pública ou de interesse social definidos pelo legislador, poderá haver desapropriação mediante sentença judicial e indenização prévia. Esta será estabelecida consultando os interesses da comunidade y do expropriado. Nos casos que determine o legislador, dita desapropriação poderá adiantar-se administrativamente, sujeita a posterior
a su función económica y social, a fin de hacerla accesible para todos.La propiedad privada es inviolable.Nadie puede ser privado de su propiedad sino en virtud de sentencia judicial, pero se admite la expropiación por causa de utilidad pública o de interés social, que será determinada em cada caso por ley. Esta garantizará el previo pago de una justa indemnización, establecida convencionalmente o por sentencia judicial, salvo los latifundios improductivos destinados a la reforma agraria, conforme con el procedimiento para las expropiaciones a establecerse por ley (CONSTITUCIÓN de la República de Paraguay, 2002). 54Art. 58. ARTICULO 58. (Modificado por el artículo 1 del A.L. 1 de 1999. Se garantizan la propiedad privada y los demás derechos adquiridos con arreglo a las leyes civiles, los cuales no pueden ser desconocidos ni vulnerados por leyes posteriores. Cuando de la aplicación de una ley expedida por motivos de utilidad pública o interés social, resultaren en conflicto los derechos de los particulares con la necesidad por ella reconocida, el interés privado deberá ceder al interés público o social. La propiedad es una función social que implica obligaciones. Como tal, le es inherente una función ecológica. El Estado protegerá y promoverá las formas asociativas y solidarias de propiedad. Por motivos de utilidad pública o de interés social definidos por el legislador, podrá haber expropiación mediante sentencia judicial e indemnización previa. Esta se fijará consultando los intereses de la comunidad y del afectado. En los casos que determine el legislador, dicha expropiación podrá adelantarse por vía administrativa, sujeta a posterior acción contenciosa administrativa, incluso respecto del precio. (CONSTITUCIÓN Política de Colombia, 1991, tradução nossa) (CONSTITUCIÓN Política de Colombia, 1991).
78
ação contenciosa administrativa, Inclusive a respeito do preço. (CONSTITUCIÓN Política de Colombia, 1991, tradução nossa, grifo nosso).
Pode-se constatar da Carta Magna Colombiana que ela foi além das demais
analisadas até agora.
Estabelece aquela, de pronto, que havendo conflito entre o interesse
individual e o interesse coletivo público ou social, este prevalecerá. E mais, afirma o
texto constitucional categoricamente, que a propriedade é uma função social e
que implica em obrigações.
Das constituições até agora cotejadas, em sua grande maioria contêm
conceitos vagos e imprecisos, esta é a que mais se assemelha ao escopo
pretendido pela Constituição de Weimar de 1919 e não deixa margem à dúvidas de
que a propriedade obriga e qual é o exato papel do interesse particular e do
interesse coletivo.
5.7 A função social da propriedade no Brasil
A legislação brasileira, de igual modo, mas com um certo atraso, também
refletiu a evolução do direito de propriedade e o estabelecimento do princípio da
função social.
Apesar de, no Brasil, não ter existido a evolução européia da propriedade
feudal para a propriedade privada moderna, chegamos ao mesmo ponto partindo
das sesmarias.
Como o marco histórico deste trabalho é a modernidade, faremos apenas um
breve apanhado da evolução brasileira.
No Brasil não vivenciamos a estrutura social do feudalismo, a propriedade
privada originou-se da propriedade pública da Coroa Portuguesa que detinha uma
espécie de “domínio eminente” do Brasil - ou seja, não existiam poderes de
disposição a particulares, mas tinham plenos poderes de submeter o direito de
propriedade a restrições comandadas pelo interesse geral (obrigação de cultivo,
impostos, dentre outros). (VARELA, 2002).
Aos poucos, Portugal se desfaz de seu patrimônio cedendo terras públicas a
particulares, o que se deu particularmente através de três formas: a usucapião,
79
cartas de sesmarias e transmissão de posses das terras devolutas.
As sesmarias no território português se davam mediante concessões
dominiais do patrimônio da Coroa Portuguesa aos particulares, condicionadas por
deveres que iam desde a obrigação de cultivo ou criação de animais até à limitação
quanto à extensão de área (tentativa de evitar o latifúndio). Sendo que, o eventual
descumprimento de dar a destinação necessária à terra concedida poderia implicar
na distribuição desta a quem lhe fizesse as vezes. Terras incultas ou abandonadas
teriam como pena a expropriação forçada. (VARELA, 2002).
O interesse coletivo, por exemplo, o plantio de bens de primeira necessidade,
era levado em consideração na concessão das cartas de sesmaria e na sua
preservação ou desapropriação.
O instituto das sesmarias foi incorporado às Ordenações Afonsinas (1446), às
Manuelinas (1521) e às Filipinas (1603), sempre com a condicionante de
atendimento da obrigatoriedade de cultivo. (VARELA, 2002).
Portanto, a propriedade, nesta época, não era absoluta e era condicionada ao
cumprimento de uma espécie de função, qual seja, a obrigatoriedade de cultivo.
No Brasil Colônia, temos que as Ordenações Filipinas foram incorporadas,
entretanto, a concessão gratuita de sesmaria condicionada ao cultivo, forma
excepcional em terras portuguesas, foi transformada em regra geral no território
colonial. (VARELA, 2002).
Como o interesse da Coroa Portuguesa no Brasil Colônia ia além do cultivo
de subsistências, as condicionantes das sesmarias abrangiam outras esferas de
interesse, tais como: construção de engenhos de açúcar, construção de fortalezas,
possuir escravos, enfim, a função da propriedade sesmarial era atender aos
interesses da Coroa Portuguesa, visando claramente a economia mercantilista de
conteúdo econômico-social escravista. (VARELA, 2002).
Assim, percebe-se que a propriedade atendia a uma função nitidamente
econômica que era a privilegiada e incentivada pela Coroa Portuguesa, sendo que a
obrigação de cultivo, em algumas regiões, deixou de ser relevante. De igual modo, o
critério da extensão, apesar de ser igualmente considerado relevante pela Coroa
Portuguesa, não era considerado como importante na colônia.
Alguns doutrinadores consideram este sistema de sesmarias como o ponto
inicial dos problemas de monopólio e má distribuição territorial no Brasil. Entretanto,
80
nos dizeres de Varela (2002, p. 754)55: “Os latifúndios não são a resultante mecânica
da concessão das sesmarias, tampouco da impregnação de um “espírito
latifundiário”, mas sim um produto da dinâmica do sistema colonial.”
Ou seja, a dinâmica econômica extrativista e exportadora impingida ao
sistema colonial era a principal justificativa para o acúmulo de grandes extensões de
terra não cultivadas.
Como a Coroa Portuguesa dependia dos sesmeiros da colônia para a
construção de fortalezas, manutenção do território, produtos para exportação, etc.,
tornou-se ela refém deles, fazendo, muitas das vezes, vistas grossas à obrigação de
cultivo e limitação de extensão.
Some-se ao descumprimento reiterado das condicionantes, que o próprio
sistema não era regular. Existiam cartas de sesmarias confusas, um outro tanto não
registradas, demarcadas ou confirmadas. Como o sistema de concessão das cartas
era muito burocrático, tornou-se comum o sistema paralelo de posses, que, nos
ensinamentos de Varela (2002, p. 754) justificavam uma forma de aquisição da
propriedade.
A par dos inúmeros casos de cartas de sesmarias descumpridas e posses
não regularizadas, um ato de 1822 suspende definitivamente a expedição de novas
cartas, tudo culminado em razão de uma petição de um posseiro mineiro que
reclamou da concessão de uma sesmaria em terras que possuía anteriormente e
que, segundo ele, estava cumprindo as obrigações de cultivo e moradia. (VARELA,
2002).
Nesta época, entra em pauta a discussão sobre uma nova regularização da
propriedade privada. O Brasil agora era politicamente independente de Portugal e,
face às pressões externas para o encerramento do regime escravocrata, a elite
brasileira clamava por uma nova forma de economia que passava, obviamente, pela
regulamentação da propriedade privada e a sua consideração como objeto de
mercado. (VARELA, 2002).
Entre 1822 - término do regime de concessões de cartas de sesmarias e a Lei
de Terras de 1850 - vigeu, portanto, o avanço do já existente regime de posses que
se caracterizava pelo apossamento de terrenos para exploração agrícola e pecuária.
55 VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado : reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 730-762.
81
É neste período que, segundo alguns doutrinadores, irá se consolidar a ocupação de
grandes áreas de terras e o recrudescimento do latifúndio com a ampliação de
posses daqueles que já possuíam outras áreas. (VARELA, 2002).
Portanto, o sistema de posses no Brasil surgiu do costume aceito como
jurídico de que a posse com cultura efetiva ou moradia era um meio constitutivo e
válido da propriedade.
Veio à lume a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de
1824 que estabelecia que o governo era monárquico hereditário, constitucional e
representativo, sendo D. Pedro II o atual imperador, consubstanciou no Título 8º,
Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos
Brazileiros o seguinte:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude . Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação (BRASIL, 1824)56
A plenitude do direito de propriedade era o norte liberal agora aportado às
terras brasileiras, inspirado claramente do Código de Napoleão.
E é neste cenário histórico que surge a Lei de Terras n.º 601 de 18 de
setembro de 1850 (BRASIL, 1850) que, no tocante à regulamentação das posses,
reconheceu juridicamente o sistema costumeiro criado e permitiu a sua titularidade,
assim estabelecida:
Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes: § 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha (BRASIL, 1850).57
56 (BRASIL, 1824). 57 (BRASIL, 1850).
82
A Lei de Terras conceituava as terras devolutas e esclarecia que a sua
aquisição somente poderia se dar através de compra. Ao mesmo tempo, promoveu
um estatuto jurídico da propriedade privada, fomentou os primórdios da formalidade
do registro (que seria concretizado através da Lei n.º 1237 de 1864, regulamentada
pelo Decreto 3.453 de 1865) e acatou o sistema costumeiro das posses com cultivo.
Mas, no entendimento de alguns doutrinadores colocou fim à aquisição do domínio
por mero apossamento de terras devolutas e, no entendimento de outros, colocou
fim às concessões das terras devolutas. (VARELA, 2002).
Para alcançar a forma jurídica plena da propriedade de terras, o cultivo
passou a ser um elemento constante e, em alguns momentos, terras incultas
passaram a ser sinônimo de terras devolutas, impedindo assim a sua regularização.
Portanto, nos termos de Varela (2005)58:
aproveitamento econômico, cultivo - “princípios de cultura e moradia habitual”, na linguagem da Lei - é o parâmetro utilizado para proceder às revalidações das sesmarias e legitimações de posses. Em outras palavras, a Lei regulariza essas formas de ocupação, determinando que os sesmeiros e posseiros, sob certas condições, se tornassem proprietários (VARELA, 2005, p. 155).
A utilização efetiva (cultura effectiva e morada habitual) era o parâmetro
essencial para que o possuidor ou o sesmeiro conseguisse transformar a sua
propriedade em plena.
Com o advento da Constituição da República de 24 de fevereiro de 1891, na
vigência de um regime dito livre e democrático, adotando a República Federativa
como forma de governo, estabeleceu na Seção II - Declaração de Direitos, em seu
artigo 7259, o seguinte:
Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade , nos termos seguintes: § 17 - O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. (BRASIL, 1891, grifo nosso).
58 VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à propriedade moderna : um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 155. 59 (BRASIL, 1891).
83
Portanto, a Constituição de 1891, repetidos os mesmos moldes do Code
Napoleón, atribuiu à propriedade uma conotação de direito individual pleno.
Aqui foi promulgado o Código Civil de 1916 que, aproveitando o registro geral
organizado em razão da Lei 1.237 de 1864, regulariza o registro de hipotecas
criando o registro de imóveis em sentido lato. A propriedade passa a ser absoluta e,
com o registro de imóveis regularizado, passa a ter eficácia erga omnes, qualidade
essencial para a propriedade do regime liberal, concedendo a segurança a respeito
da origem e condição da propriedade imobiliária. (VARELA, 2002).
E neste caldeirão evolutivo chegamos à propriedade absoluta, sem a
necessidade de cultivo ou qualquer outra condicionante, a proibição da ocupação de
terras, a definição legal do que sejam terras devolutas, a distinção clara entre terras
públicas e particulares, o sistema registral dando segurança quanto à origem e
titularidade das propriedades, a transcrição como forma de aquisição da
propriedade, o sistema hipotecário bem formatado.
Neste ponto, a propriedade privada no Brasil se equipara juridicamente à
propriedade privada na Europa. Chegamos ao mesmo ponto do Estado Liberal, com
todos os vieses que já estudamos anteriormente.
Em 1934 foi promulgada uma nova Constituição da República (BRASIL,
1934)60 que instituía em seu preâmbulo, além da organização sob o regime
democrático, assegurada à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar
social e econômico, o seguinte:
CAPÍTULO II Dos Direitos e das Garantias Individuais Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade , nos termos seguintes: 17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar . A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (BRASIL, 1934).
Podemos constatar uma tentativa de evolução porquanto tentou-se conferir ao
direito de propriedade uma conotação diversa da anterior, tencionando atribuir a ela
60 BRASIL, 1934.
84
uma característica de necessidade de atendimento aos interesses sociais ou
coletivos.
Mas, é importante ressaltar que a inserção de respeito ao interesse social ou
coletivo, foi solenemente ignorada tanto pela legislação infraconstitucional quanto
pelos doutrinadores, permanecendo assim a defesa da propriedade individual plena,
criada e defendida pelo Estado Liberal.
Logo após, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil promulgada em 10
de novembro de 1937 (BRASIL, 1937) retroagiu no que tange à limitações do direito
de propriedade.
É válido esclarecer que tal Constituição foi promulgada quando o país
passava por momentos de grande turbulência, tendo constado em seu preâmbulo o
receio de desordem, agravação de dissídios partidários, desnatural luta de classes,
extremação de conflitos ideológicos e o receio de infiltração comunista.
Assim sendo, no art. 122 da Constituição de 1937 foi assegurado o direito de
propriedade e foi retirada a necessidade de atendimento ao interesse social ou
coletivo, implicando em um verdadeiro retrocesso. (BRASIL, 1937).
Já em 18 de setembro de 1946, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil,
no Capítulo II – dos Direitos e Garantias Individuais, em seu artigo 141, parágrafo
16, garantia o direito à propriedade e ressalvava a hipótese de desapropriação por
necessidade, utilidade pública ou interesse social. (BRASIL, 1946).
Sob a influência de um regime militar deflagrado em 1964, foi promulgada a
Constituição da República Federativa de 1967 que, em identidade com os textos
constitucionais anteriores, permaneceu estabelecendo, no Capítulo dos Direitos e
Garantias Individuais, em seu artigo 150, parágrafo 22, a garantia ao direito de
propriedade e a desapropriação por necessidade, utilidade pública ou interesse
social. (BRASIL, 1967).
E aí vem a novidade, no Capítulo da Ordem Econômica e Social (BRASIL,
1967)61, pela primeira vez, foi inserido como princípio a função social da
propriedade, senão vejamos:
Da Ordem Econômica e Social Art 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...] III - função social da propriedade . (BRASIL, 1967).
61 (BRASIL, 1967).
85
A Constituição de 1967 (e a Emenda de 1969) consagrou, portanto, o
princípio da função social da propriedade. Sendo que, muito provavelmente, isto se
deu em razão da prévia promulgação do Estatuto da Terra (Lei 4.504 de 30 de
novembro de 1964) (BRASIL, 1964) que estabelecia que a propriedade privada rural
deveria cumprir uma função social vinculada ao uso conforme o bem estar da
coletividade (artigo 12).62
Assegurou o Estatuto da Terra, ainda, o acesso à propriedade da terra,
condicionada pela sua função social (artigo 2º) e determinou as sanções (artigo 13)
impostas à observância do ordenamento constitucional e da lei ordinária.
Assim sendo, coerentemente ao Estatuto da Terra recém publicado, a
Constituição da República de 1967 (BRASIL, 1967) ampliou as possibilidades de
desapropriação da propriedade rural para sua aplicação sob a forma de sanção de
modo a abarcar os novos princípios da ordem econômica e social, sendo previsto,
no parágrafo primeiro do mesmo artigo 157 (posteriormente alterado pelo Ato
Institucional n.º 9 de 1969) (BRASIL, 1969) que em não sendo cumprida a função
social a desapropriação poderia ocorrer e a indenização se daria parceladamente
em títulos da dívida pública.
Entretanto, durante todo este período histórico, ao direito de propriedade era
aplicado em sua inteireza o Código Civil de 1916, com toda a sua inegável carga de
um poder pleno, absoluto e que podia ser exercido livremente pelo detentor do
direito - bem na esteira do Estado Liberal. (BRASIL, 1916).
E novamente, vale ressaltar que apesar de estar inserido expressamente o
princípio da função social na Constituição da República de 1967, tanto a doutrina
como a jurisprudência permaneceram refratários a tal comando e o ensino do direito
de propriedade permaneceu como se tal princípio não existisse e o Código Civil
continuava como sendo o único a tratar sobre o tema.
E então surge a sexta constituição republicana do Brasil, promulgada em 05
de outubro de 1988, que manteve em seu arcabouço a função social como princípio
da ordem econômica e social, mais precisamente no artigo art. 170, inciso III.
(BRASIL, 1988).
62 “Das Terras Particulares - Art. 12. À propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta Lei.” (BRASIL, 1964).
86
Mas a novidade é que, além de manter o direito de propriedade, o que já era
previsto na Constituição da República de 1967, inseriu o princípio da função social
no âmbito dos Direitos e Garantias Fundamentais, mais precisamente no art. 5º,
inciso XXIII, a saber:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social (BRASIL, 1988)63.
E o que significa a inserção deste princípio da função social dentre o rol dos
direitos e garantias individuais do cidadão?
5.8 A função social da propriedade como princípio
Primeiramente, cumpre observar que a função social é um princípio. E os
princípios são normas que, no sistema bipartido de Bonavides (2004, p. 271 e ss) 64
são aplicáveis e integram o ordenamento jurídico.
No jusnaturalismo, os princípios eram entendidos como axiomas que serviam
apenas como fonte de inspiração das regras jurídicas. Não alcançavam o patamar
de normas e, portanto, não eram autoaplicáveis.
No positivismo, os princípios foram alçados a uma função integrativa e
serviam para integrar ou preencher as lacunas de alguma lei específica, como se
negasse a existência de uma lacuna no Direito, tais princípios não poderiam ser
utilizados aleatoriamente. Na vigência do positivismo, os princípios ocupavam um
grau de somenos importância, posto que era veementemente negada a existência
de lacunas do próprio sistema.
Segundo ensinamentos de Bobbio (1995, p. 131), o positivismo reforçava o
formalismo do Direito, com redução da interpretação a um silogismo de adequação
do fato à norma, daí que os princípios não poderiam ocupar espaço de relevo.
63 BRASIL 1988. 64 BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo das regiões. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.271
87
o positivismo jurídico considera a norma como um comando, formulando a teoria imperativista do direito, que se subdivide em numerosas “subteorias” [...] com o requisito da completitude, o positivismo jurídico afirma que, das normas explícita ou implicitamente contidas no ordenamento jurídico, o juiz pode sempre extrair uma regula decidendi para resolver qualquer caso que lhe seja submetido: o positivismo jurídico exclui assim decididamente a existência de lacunas no direito. (BOBBIO,1995, p. 131) 65
Já no pós-positivismo, várias teorias começaram a ser discutidas de molde a
inserir e dar maior ênfase aos princípios. Alguns teóricos obtiveram maior relevo,
dentre eles podemos destacar, Habermas (2003); Dworkin (2001), Alexy (1993) e
Müller (2005).
Dworkin (2001, p. 48)66 se afasta do positivismo quando justifica uma nova
forma de interpretação baseada em princípios incrustados na tradição norte-
americana, demonstrando que existem princípios de moralidade política que serão
assumidos constitucionalmente. Para ele, as regras devem ser aplicadas ao modo
tudo ou nada (all-or-nothing), entendido este sistema como a aplicação direta da
hipótese de incidência da regra, se ela é preenchida, a regra é válida, se não é, é
inválida. Já quanto aos princípios, contrariamente às regras, possuem uma
dimension of weight (dimensão de peso). Em havendo conflito o que tiver o maior
peso relativo se sobreporá ao outro - que apesar de tudo - não perderá a sua
validade, apenas cederá espaço naquele caso concreto. Importante deixar claro que
não se trata de uma diferenciação quanto ao grau, mas sim quanto à estrutura
lógica.
Prossegue nesta linha de afastamento do positivismo e vai além admitindo a
desobediência civil e o protesto nuclear como forma justificada de atentar contra
atos normativos contrários aos direitos morais, numa clara aproximação do direito à
moral. Um dos grandes casos norte-americanos de desobediência civil
exemplificados por Dworkin (2001) é o de Martin Luther King Jr. que incitou a
desobediência contra as Leis Jim Crow que perpetuavam marcas de escravidão.
Já Alexy (1993), partindo das considerações de Dworkin (2001), dando maior
precisão ao conceito dos princípios, tornou-se adepto e defensor da jurisprudência
dos valores, iniciada na Alemanha pós Segunda Grande Guerra, e que defendia a
inaplicabilidade de leis contrárias a valores reconhecidos universalmente. A
65 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1995. p. 132-133. 66 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio . São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 48
88
jurisprudência dos valores considerava a dignidade da pessoa humana o valor
máximo vigente, o que justificava sua prevalência sempre que confrontada com
outras normas.
Robert Alexy (1993) teorizou que os princípios seriam “mandados de
otimização”, aplicáveis segundo possibilidades normativas e fáticas. A teoria de
Alexy foi denominada Teoria da Ponderação. Conforme esta, elaborou critérios para
a solução de antinomias entre regras e princípios, demonstrando que a solução não
se resolveria com a prevalência de um princípio sobre o outro, mas sim com a
ponderação entre eles, em função da qual, um deles seria prevalecente
Segundo Alexy (1993), as regras realmente seguiriam a lógica do “tudo ou
nada”. Na ocorrência de antinomia, o intérprete deveria optar pela aplicação apenas
de uma delas.
Mas, na hipótese de antinomia entre princípios, não haveria que se optar
entre um deles, mas deverá se atribuir uma maior importância ao que se mostrasse
mais adequado ao caso concreto, sem desconhecer a validade do outro. Ou seja, os
princípios seriam considerados como um mandado de otimização, assim descrito
pelo próprio Alexy (1993):
2. Los principios como mandato de optimización El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenam que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades juridicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que puden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades juridicas es determinado por los principios e reglas opuestos. Cuando dos principios entran en colisón - tal como es el caso cuando según un principio algo está prohibido y, segun otro principio, está permitido - uno de los principios tiene que ceder ante el otro. (ALEXY, 1993, p. 86-89) 67
Para Alexy (1993) os princípios possuem uma dimensão de peso e não
determinam as consequências normativas de forma direta, ao contrário das regras.
Daí dizer que os princípios seriam sempre cláusula de reserva. A ponderação dos
conflitos acaba por atribuir aos princípios a mesma característica de aplicação com
base no tudo ou nada. Sendo eles deveres de otimização aplicáveis em vários graus
segundo as possibilidades do caso concreto. 67 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales . Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
89
Já Friedrich Müller (2005)68 em obra dedicada aos juristas Eros Roberto
Grau e a Menelick de Carvalho Neto, também se afastou do positivismo ao elaborar
sua Teoria Estruturante do Direito, postulando o fim da dicotomia entre “ser” e “dever
ser”. Sua teoria é embasada no fato de que somente com a análise do caso
concreto poderá ser extraída a norma e a sua aplicação deverá sempre se dar
visando a efetivação do direito. Müller criticou a jurisprudência dos valores ao
manifestar sua oposição à interpretações que contrariassem expressamente o texto
da lei:
O texto da norma de uma lei constitucional assinala o ponto de referência de obrigatoriedade ao qual cabe precedência hierárquica em caso de conflito. Isso é tanto mais importante, quanto mais cada norma deve ser elaborada na sua normatividade concreta apenas no caso jurídico fictício ou atual. (MÜLLER, 2005, p. 65)
E, mais adiante, assim se posiciona:
Em caso de conflito, o texto da norma é o ponto de referência hierarquicamente precedente da concretização, enquanto determinação do limite das possibilidades decisórias admissíveis. O teor literal não é a lei, mas a forma da lei (MÜLLER, 2005, p. 95)
Bonavides (2001)69 assim se manifestou sobre a teoria de Müller (2005):
A originalidade de sua contribuição consiste em estrutura cientificamente a realidade jurídica, com abrangência tanto dos conteúdos da norma, como das propriedades formais do Direito, por via de uma interconexidade surpreendente, que leva em conta todos os aspectos relevantes eventualmente omitidos com a dissociação da forma e da substância (BONAVIDES, 2001, p. 208).
Já Habermas (2003) (formulou uma teoria denominada Teoria Discursiva do
Direito, que rechaçou o positivismo clássico.
68 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 3 ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 65;95;103 e ss. 69 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa : por um direito cosntitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2001.
90
Segundo Habermas (2003, p. 133)70, a pluralidade impera nas concepções de
vida atualmente existentes na sociedade contemporânea o que reafirma a
necessidade de o direito se fundamentar em procedimentos que reconheçam e
aceitem esta pluralidade, ou seja, procedimentos democráticos, acatando os direitos
fundamentais.
A crítica de Habermas (2003)71 à teoria de Dworkim (2001) reside no fato de
que ela se baseia em uma moralidade convencional,
Exatamente este sentido é o que tem o modelo de Dworkim de um direito positivo composto de regras e princípios, que através de uma administração discursiva de justiça, assegura a “integridade” das relações de reconhecimento recíproco que garantem a cada membro da comunidade jurídica igual consideração e respeito. (HABERMAS, 2003, p. 282, tradução nossa)
Portanto, valores éticos, sociais, políticos e econômicos já estariam
estabelecidos.
A teoria habermasiana se assenta em uma moralidade pós-convencional,
bastante distinta da convencional, na qual os indivíduos estariam aptos a identificar
os valores que formam sua identidade, dentro da pluralidade que lhes é pertinente,
cônscios de tais valores, com o reconhecimento pleno dos direitos individuais e dos
princípios universais que os regem.
Assim se manifesta Habermas (2004)72:
Se, nos discursos práticos, todas as pessoas eventualmente concernidas chegarem à convicção de que, em relação a uma matéria que precisa de regulamentação, um determinado modo de agir é igualmente bom para todos, elas considerarão obrigatória essa praxis. O consenso alcançado no discurso tem, para os envolvidos, algo de relativamente definitivo. Ele não estabelece nenhum fato, mas “fundamenta” uma norma [...]. Um acordo a respeito de normas ou ações atingido pelo discurso em condições ideais
70 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez : sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 280. v.1. 71 Justo este sentido es el que tiene el modelo de Dworkin de um derecho positivo compuesto de reglas y principios, que a través de uma administración discursiva de justicia asegura la “integridad” de lãs relaciones de reconocimiento recíproco que garantizan a cada miembro de la comunidad jurídica igual consideración e respecto. (HABERMAS, 2003). 72 HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. Ed. Loyola. São Paulo. 2004. p. 291. Habermas, Junger. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. Ed. Loyola. São Paulo. 2004. p. 291
91
tem mais do que força autorizadora, ele garante a correção dos juízos morais (HABERMAS, 2004, p. 291 )
Dessa forma, Habermas (2004) não somente se afastou do positivismo
clássico como, também, rechaçou a jurisprudência dos valores e a teoria da
ponderação de Alexy (1993), posto que afirmava inexistir uma moral preconcebida
pela sociedade que pudesse justificar, de pronto, a aplicação dos princípios. Ou
seja, nos ensinamentos de Oliveira (2002), para a aplicação dos princípios, o
magistrado deveria estar corretamente preparado para reconhecer, dentre as
normas válidas e aplicáveis, qual seria a mais adequada ao caso concreto.
Assim, um juízo singular deve fundar-se no conjunto de todas as razões pertinentes, com vistas a uma interpretação completa da situação. Ao juiz, então, cabe desenvolver um ”senso de adequabilidade”: que várias interpretações sejam possíveis ou que várias normas sejam válidas, da perspectiva dos discursos jurídicos de justificação, isso não quer dizer que todas elas sejam adequadas ao caso concreto (OLIVEIRA, 2002, p. 90).
E arremata sabiamente Oliveira (2002) 73:
[...] deriva do fato de que as normas - quer como princípios, quer como regras - visam ao que é devido, são enunciados deontológicos: à luz de normas, posso decidir qual é a ação ordenada. Já os valores visam ao que é bom, ao que é melhor; condicionados a uma determinada cultura, são enunciados teleológicos: uma ação orientada por valores é preferível. Ao contrário das normas, valores não são aplicados, mas priorizados. (OLIVEIRA, 2002, p. 90).
Donde se depreende que, não basta apenas o conhecimento do magistrado
quanto às normas aplicáveis, as partes deverão levar os seus argumentos, que
deverão ser muito bem analisados e cuja decisão deverá ser construída através de
um procedimento discursivo, de forma que seja ela aceita pelas partes.
Portanto, defende Habermas que não existe um valor principiológico a priori
incondicional e que possa ser aplicado indistintamente a todas as situações. De fato,
deverá a interpretação mais adequada do princípio ser construída com base no caso
concreto, admitindo-se, se necessário for, o abandono de um conceito convencional
do princípio em razão da implementação de outro.
Assim sendo, Habermas (2004) divergiu de Alexy (1993) por entender que
princípios não se resumem a valores preestabelecidos, mas são normas com carga 73 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 90
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valorativa que lhes são próprias e cuja aplicação não admite ponderações.
Lembre-se também que Habermas (2004) dividiu a teoria discursiva em dois
âmbitos, o plano da fundamentação e o plano da aplicação. Que é necessário, para
legitimar o direito, que a elaboração das normas se dê de forma discursiva e que a
aplicação, em momento posterior e distinto, também se dê discursivamente (discurso
de aplicação).
Com estas teorizações engendradas faz-se necessário observar que os
princípios já não podem mais ser considerados como um mero adereço das normas,
de cumprimento pontual ou residual para se tratar de normas do sistema jurídico
com força cogente, elevados que foram e equiparados às normas, como diz Bobbio
(1995) 74:
Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios são normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras (BOBBIO, 1995, p. 158).
E adiante:
"Muitas normas da Constituição são princípios gerais do Direito; mas,
diferentemente das normas do Código Civil, algumas delas esperam ainda ser
aplicadas: são princípios gerais expressos não-aplicados". (BOBBIO, 1995, p. 159).
Concluindo, os princípios são normas que deixaram de ter mero caráter
supletivo e passaram a compor o sistema jurídico tendo por função fundamentar o
ordenamento jurídico, condicionar sua interpretação e integrá-lo (BONAVIDES,
2004, p. 284).
Neste ponto, utilizamos como marco teórico a Teoria dos Princípios de
Humberto Ávila (2005)75 que afirma:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
74 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico . 6 ed. Brasília: Editora UNB, 1995. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico . 6 ed. Brasília: Editora UNB, 1995. 75 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 70
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finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. (ÁVILA, 2005, p. 70).
O princípio da função social aplicado à propriedade, portanto, deverá seguir
três funções, quais sejam: fundamentar o ordenamento jurídico, condicionar a
interpretação do direito de propriedade e integrar o sistema.
Tepedino (2001, p. 267)76 ressalta que a inserção constitucional da função
social topograficamente localizada no Capítulo dos direitos e garantias fundamentais
teve o condão de atribuir o caráter de regra fundamental ao dito princípio, “apta a
instrumentalizar todo o tecido constitucional e, por via de consequência, todas as
normas infraconstitucionais, criando um parâmetro interpretativo do ordenamento
jurídico.
Daí exsurge a diferença entre a função social inserida na Constituição da
República de 1967 (BRASIL, 1967) e a atual de 1988 (BRASIL, 1988). Naquela, a
função social era princípio da ordem econômica e social, já na atual, além de
princípio da ordem econômica, foi elevada à categoria dos direitos e garantias
fundamentais.
E ao trazer o princípio da função social para o âmbito dos Direitos e Garantias
Fundamentais, atrelado diretamente ao direito de propriedade (art. 5º, incisos XXII e
XXIII) e não somente como princípio da Ordem Econômica (Art. 170, inciso III), o
que o constituinte pretendeu foi conferir força ao princípio, vinculando
umbilicalmente o princípio - função social - ao conteúdo do direito - propriedade -
obrigando o seu cumprimento imediato (imediatamente finalista) tanto pelos
legisladores quanto pela doutrina e jurisprudência.
A função social aplicada ao direito de propriedade força uma nova postura
metodológica que implica na aceitação imediata da aplicação dos princípios
constitucionais ao direito privado, acatando o caráter normativo dos mesmos com
eficácia também imediata, tudo conforme reafirma Tepedino (2000).77
76 TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 267-292. 77 TEPEDINO, Gustavo. Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para
94
O Código Civil Brasileiro de 2002 dispõe em seu artigo 1228, caput, que “o
proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (BRASIL, 2002).
Se ignorarmos o princípio da função social contido na Constituição da
República, fatalmente retornaremos a uma leitura do artigo retro sob o viés
totalmente inserido no Estado Liberal.
Neste sentido, posiciona-se Silvio de Salvo Venosa (2003) 78:
As vigas mestras para a utilização da propriedade estão na Lei Maior. Cabe ao legislador ordinário equacionar o equilíbrio entre o individual e o social. Cabe ao julgador, como vimos, traduzir esse equilíbrio e aparar os excessos no caso concreto sempre que necessário. Equilíbrio não é conflito, mas harmonização. (VENOSA, 2003, p. 157)
Também é cediço que, em nenhuma Constituição ou legislação analisada
nesta pesquisa, foi encontrado um conceito do que seja a função social.
Entretanto, tanto nas Cartas Magnas, quanto em legislações especiais, foram
estabelecidos vários parâmetros de forma a permitir ao legislador e ao doutrinador
meios para construir ou preencher o seu conteúdo.
O que deve ser esclarecido, desde logo, é que o princípio da função social
não significa, necessariamente, proteção à parte economicamente mais fraca de
uma relação. Portanto, é axiológica qualquer análise que faça conjecturas ou tome
partido ou decisão tendenciosa com base na hipossuficiência, já que não se trata, de
fato, de atender à função social.
De igual modo, o princípio da função social não significa uma autorização
genérica, ampla e irrestrita para que qualquer magistrado decida ao arrepio ou
contra legem.
Devemos lembrar que a propriedade possui uma função econômica que lhe é
inerente, e à qual a função social vem somar, não substituir nem derrogar.
Portanto, a propriedade passa a necessariamente compor em seu conteúdo,
uma função econômica, uma função social, uma função ambiental, ou seja, a
propriedade passa a ser multifuncional. E nenhuma destas funções se sobrepõe a
outra. Se, no caso concreto, a função econômica desmerece a função social, o uso
uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 12. 78 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil : direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 5. p. 157.
95
desta propriedade deverá ser corrigido, sob as penalidades da lei.
Mas não poderá o Juiz, de pronto e sem legislação que o permita, construir do
nada um novo conceito daquilo que ele entender como função social da propriedade
e exigir do proprietário conduta que nem sequer foi ventilada no ordenamento
jurídico.
Mais adiante, quando da análise de algumas decisões judiciais, estes pontos
serão colocados em destaque e melhor explanados.
5.9 A propriedade imobiliária urbana e rural e o pr incípio da função social
Na legislação brasileira, como forma de construção do conteúdo do conceito
do princípio da função social aplicado ao direito de propriedade, temos uma divisão
própria estabelecida na Constituição da República.
Está previsto no parágrafo 2º. do artigo 182 da Constituição de 1988, o
princípio da função social aplicado à propriedade urbana, que estabelece que
cumprem a função social aquelas propriedades localizadas em áreas urbanas que
atendam às exigências contidas na legislação da cidade, prevista, normalmente, em
Planos Diretores. (BRASIL, 1988).
Portanto, o conceito da função social é vago e deverá ser preenchido pelo
processo legislativo especial, que definirá, localmente, em cada município, quais os
melhores requisitos de cada região cujas propriedades ali inseridas deverão cumprir
para serem alçados à categoria de propriedades cumpridoras de sua função social.
Veja que não há possibilidade de um Juiz, em tempo algum, definir
exatamente quais requisitos a propriedade urbana deverá cumprir para atender à
função social. Cabe ao legislador preencher este conteúdo. E a Constituição indicou
o Plano Diretor como uma das formas possíveis de preenchimento deste conteúdo.
(BRASIL, 1988).
Seria o Plano Diretor a única legislação apta a promover a definição dos
requisitos de cumprimento da função social da propriedade urbana? Entendemos
que a resposta é negativa.
É fato que nem todos os municípios necessitam confeccionar os seus Planos
Diretores. A legislação inicialmente obrigou apenas que os municípios com mais de
96
vinte mil habitantes concluam e promulguem o Plano Diretor da cidade. E nem com
isto está se querendo afirmar que a propriedade urbana situada nos municípios de
menor porte estará liberada da obrigação de cumprir a função social.
Em verdade, o que se pode verificar é que o Plano Diretor é um dos meios
legais passíveis de definir a melhor forma de utilização da propriedade urbana e,
ainda, de estipular penalidades para os casos de descumprimento desta função.
Dentre tais penalidades, podemos citar, exemplificativamente, a tributação
progressiva, a edificação ou o parcelamento de solo compulsórios e a
desapropriação-sanção.
Mas, mesmo em municípios menores, poderão ser editadas leis que
estabeleçam a forma de utilização da propriedade urbana em atendimento ao
princípio da função social. O que não será possível é o estabelecimento das
penalidades supramencionadas. Estas, para serem utilizadas, dependerão de Plano
Diretor pertinente.
Pode-se perceber, portanto, uma fluidez do conceito do princípio da função
social aplicado à propriedade urbana, enaltecendo a vontade coletiva localmente
instalada, tanto o constituinte quanto o legislador infraconstitucional permitiram que o
preenchimento deste conceito se dê através de várias outras regras do
ordenamento, tudo de molde a assegurar o correto uso da propriedade urbana, tudo
isto inspirado claramente do Art. 182, caput e § 2º, da CF/88 (BRASIL, 1988), e
ainda, do Estatuto da Cidade - Lei n.º 10.257/2001 (BRASIL, 2001).
Ao contrário, podemos perceber que o princípio da função social da
propriedade rural foi mais bem preenchido. Talvez, por se tratar de área em que
comumente ocorrem os maiores conflitos e que demandam de maior clareza para
evitar interpretações equivocadas, a Constituição da República apontou claramente
no artigo 186 quais os requisitos necessários ao seu atendimento, tendo delegado à
legislação especial a sua regulamentação, senão vejamos:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (BRASIL, 1988).79
79 BRASIL, 1988
97
Portanto, na esfera rural deveremos estar atentos aos Art. 184, 185, 186, 170,
inciso III, da CR/88 (BRASIL, 1988); e ainda, Lei 4.504/64 - Estatuto da Terra - arts.
2º, caput, § 2º, alínea “b” e 12 (BRASIL, 1964); Lei n.º 8.629/93 (BRASIL, 1993a),
art. 9º; LC n.º 76/93 (BRASIL, 1993b) e LC n.º 88/1996 (BRASIL, 1996).
Para este ponto, podemos considerar como válidas as lições de Pierre
Josserand (1950)80 que foi quem primeiramente chamou a atenção para a
diversidade de propriedades, o que o levou a afirmar que não há uma propriedade,
mas sim propriedades.
Daí afirmar que o interesse da sociedade exige que a apropriação dos bens
se sujeite a estatutos em harmonia com os fins perseguidos, os quais variam muito,
de tipos de propriedade e de localidade onde ela estará instalada, por exemplo,
rural, industrial, urbana, etc.
Em havendo várias propriedades, não se poderia, por óbvio, padronizar uma
função social específica.
O vocábulo propriedade não tem um significado único, tendo vários sentidos.
Pietro Perlingieri (2008)81 deixa claro que não é possível a construção de
conceito único da propriedade privada. Para o autor, falar de um conceito unívoco de
propriedade é uma ilusão que esconde sua real pluralidade e diversidade. Mas,
defende o autor que a propriedade privada não pode ser esvaziada de todo o seu
conteúdo e reduzida à categoria de “propriedade formal”.
Ou seja, a propriedade não é uma função. Ela tem uma função, mas a
propriedade ainda é propriedade. Ela é um instrumento de garantia do pluralismo e,
se os
estatutos proprietários são diversos em relação aos objetos, aos sujeitos, às destinações e mesmo aos patrimônios e às circunstancias concretas, não existe um conteúdo mínimo da propriedade, existe, sim, os conteúdos mínimos de cada estatuto proprietário (PERLINGIERI, 2008, p. 950).
E continua: “A função social não pode em caso algum contrastar com o
conteúdo mínimo: função social e conteúdo mínimo são aspectos complementares e
80 JOSSERAND, Pierre. Cours de droit positif fran çais. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa América. 1950. p. 139. v.1. 81 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008. p. 950.
98
justificadores da propriedade". (PERLINGIERI, 2008, p. 953)82
E, para cada tipo de propriedade deverá ser estabelecida claramente a função
social que dela se espera seja cumprida, não podendo o proprietário ficar à mercê
de interpretações casuísticas ou axiológicas na fixação de parâmetros legalmente
inexistentes. Daí a necessidade de estabelecimento do conteúdo do direito de
propriedade, constitucionalmente amparado, sob pena de, na interpretação
elastecida do princípio da função social, negar o próprio direito ao qual ele estaria
vinculado.
Até mesmo porque a penalidade pelo descumprimento da função social
acarreta penalidade severíssima ao proprietário, qual seja, cessa a razão pela qual
se garante e se reconhece o próprio direito de propriedade. Isto é por demais sério
para se deixar ao alvitre exclusivo do Judiciário, a posteriori, já na existência de uma
lide, dizer qual era a função que deveria ter sido cumprida pelo proprietário.
Daí entendermos que a legislação especial deverá, naquilo que é cabível
preencher o conteúdo do princípio, esclarecer o que é o interesse social protegido e
relevante para aquele tipo de propriedade, caso não seja ele tão facilmente
detectável pela Constituição da República e pela legislação especial já promulgada.
82 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008. p. 953
99
6 DAS TEORIAS DA POSSE
Traçar conceitos e conteúdos da posse é uma das tarefas mais árduas do
direito. A complexidade da análise do tema advém da diversidade de formas do
fenômeno possessório bem como de sua manifestação.
Nesta pesquisa torna-se necessário efetuar levantamentos das teorias
possessórias mais destacadas, sendo adotados os conceitos de posse definidos por
Savigny e Jhering.
É de todo necessário também desenvolver e estudar o comando
constitucional da função social da propriedade, agora aplicado à posse, bem como
as consequências advindas da sua aplicação ou inaplicação.
Mesmo não sendo objeto desta pesquisa a definição conceitual de posse, não
é possível compreender a aplicação de um princípio ao instituto possessório sem
que se traga a lume, mesmo que sucintamente, as teorias possessórias existentes,
traçando os seus contornos. Esse retrocesso se faz necessário para demonstrar a
construção do conceito de posse no sistema jurídico-nacional, bem como uma visão
da sua importância na história fundiária brasileira.
Essa abordagem é necessária para que, através dela, não se justifique o
significado conceitual, mas sim para que alcancemos a compreensão de como foi
que se chegou à construção tão apegada à ideologia e pensamento europeu do
século XIX, e que, infelizmente, ainda permanece como paradigma do pensamento
jurídico, no que tange à propriedade e à posse.
Segundo algumas teorias, a origem da posse na humanidade é deduzida da
ideia de posse dos bens da caça, pesca e dos bens de uso cotidiano. Ela seria
assim instintiva. Rodrigues (1996, p. 15)83, tratando do assunto, chega a dizer sobre
uma “função social do instinto possessório”. (grifo nosso)
Sendo que por instinto podemos considerar o padrão inato não aprendido de
comportamento ou um esquema de comportamento herdado e não alterado.
Aqui, vale relembrar a máxima de Rousseau citado por Torres (2008) 84 que disse:
83 RODRIGUES, Manuel. A posse: estudo de direito civil português. Coimbra: Almedina, 1996, p.15. “Em Roma se gerou - é afirmação indiscutida- e aí se desenvolveu o instinto da posse” 84 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A Propriedade e a Posse: um confronto em torno da função social. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008.
100
o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. [...]: Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém. (ROUSSEAU apud TORRES, 2008, p. 130)
Portanto, remonta a priscas eras a origem do sentimento, ou o “instinto” de
posse, nos remetendo para a formação dos primeiros assentamentos humanos, o
que nos leva a concluir que a formação do instituto da posse é jungida à vida em
sociedade.
Daí dizer que a posse antecede a propriedade. A posse é, antes de tudo, um
fato, ao contrário, a propriedade é, desde sempre, uma ficção jurídica. A posse como
a percepção natural do exercício de um poder de disposição sobre os bens ocorreu
antes de a propriedade ser considerada como um direito.
Entretanto, ambos os institutos, posse e propriedade, se entrelaçam
conduzindo a uma dificuldade cada vez maior de identificá-las e distingui-las
claramente. Parafraseando Fachin (2000, p. 71)85, para quem “a história do Direito é,
em boa medida, a história da garantia da propriedade”, podemos dizer que a história
do Direito é, em boa medida, a história da garantia da posse. Sendo que o estudo da
evolução histórica da propriedade acompanha e está entrelaçado à importância que
cada sociedade igualmente dá à posse.
Mas, falando-se em história, Gilissen (2003)86 afirma que
a propriedade mobiliária precede de longe a propriedade imobiliária, mais exactamente, as formas de participação mística de coisas mobiliárias apareceram geralmente muito antes das que dizem respeito ao solo. [...] O solo é sagrado, divinizado; ele é a sede de forças sobrenaturais. Um laço místico, por vezes materializado por um altar, existe entre os homens e os espíritos da terra, e também com os mortos, os antepassados enterrados neste solo. O mediador entre o grupo e estas forças é muitas vezes necessário; é o ‘chefe da terra’, que pode ser o chefe do clã, mas pode também ser um outro homem que se identifique com a terra [...] Não existe apropriação por prescrição aquisitiva; qualquer que seja a duração da detenção de uma parcela, ela deve sempre retornar à comunidade. Não há terras vagas; o solo, cultivado ou não, pertence ao chefe da terra e, por ele, à comunidade. (GILISSEN, 2003, p. 241)
85 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 71 86 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito . 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 25;41.
101
Da leitura do texto de Gilissen (2003) podemos constatar, novamente, a
utilização do vocábulo “propriedade” quando, em verdade, está a se referir à posse.
Não existe apropriação prescritiva, o solo é posse da comunidade. Isto nos remete,
novamente ao texto de Grossi (1981), já citado que diz que a instituição do direito de
propriedade na modernidade rompeu com os paradigmas anteriores da posse
comunitária aqui relembrada por Gilissen (2003).
Portanto, a sedentarização, acompanhada de uma alteração do foco coletivo
para o foco individual, implicou no gradual abandono da posse comum para a posse
individual, e, com ela, o surgimento da propriedade privada. A fixação do homem à
terra portanto é o ponto chave para a modificação do estado de coisas.
Na sequência da sedentarização, a colheita dá lugar à agricultura; desde então, a tomada de posse comum do solo generaliza-se e torna-se mais permanente. Uma vez que os clãs sedentários formam uma aldeia, a comunidade aldeã substitui a comunidade clânica que no entanto não desaparece; a solidariedade aldeã aparece ao lado da solidariedade clânica. Os clãs no interior das etnias, as famílias no interior dos clãs fixar-se-ão cada um às “suas” terras, dando assim nascimento à distinção entre terras comuns cujo uso pertence à comunidade clânica ou étnica (florestas, pastos, charnecas, etc.) e às parcelas cultivadas pelas famílias. Assim aparece a noção de propriedade familiar, depois individual do solo, e ao mesmo tempo a de sucessão imobiliária e de alienabilidade dos imóveis. (GILISSEN, 2003, p. 45)87
Com o Império Romano encontramos os primeiros sinais da sistematização
da posse - que é exatamente a maneira que o mundo ocidental adotou. Partindo das
noções de posse do Direito Romano, duas grandes vertentes trataram do conceito
de posse tal como hoje o entendemos, o direito germânico (através da Gewere) e o
direito canônico. (GILISSEN, 2003).
No Direito Romano podemos verificar a questão da posse tratada de
diferentes maneiras conforme os períodos de classificação a seguir. No período pré-
clássico (época antiga e republicana) a posse é tratada como uma senhoria de fato
sobre a coisa com relação à qual o concedente tem a senhoria de direito. Não se
admitia a transformação desta senhoria de fato em senhoria de direito. Era exercida
com a intenção de ter a coisa para si, mas revogável e ilimitada no tempo.
(GILISSEN, 2003).
87GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito . 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 45.
102
Na época denominada imperial clássica, os juristas faziam da posse como
uma senhoria de fato sobre a coisa e que assumia dois elementos da
disponibilidade: o elemento objetivo (possessio corpore) e o elemento subjetivo
(animus possidendi). Esta é irrevogável, ilimitada no tempo e capaz de conduzir à
aquisição da senhoria de direito (domínio) (GILISSEN, 2003).
Já na época romano-helênica e justinianéia altera-se o instituto clássico da
posse. É admitida a ideia de que se pode possuir o direito, aparecendo assim, a
possessio iuris (posse direito), mantendo ainda a figura da possessio rei (posse da
coisa). Daqui, no entendimento de Alves (1999)88:
por isso, a noção de posse, estendida aos direitos reais, se altera, passando a ser o exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real, que se associa a um efetivo (ou, pelo menos, que, de boa-fé, se acredita existir) estado de direito, tendo sua base na intenção do sujeito conforme o direito (animus domini), e prescindindo da efetiva disponibilidade da coisa, a ponto de se poder dizer que a posse, nesse período, é a possessio animo, a possessio iure, ou seja, a posse jurídica. (ALVES, 1999, p. 11).
O que se pode depreender do estudo da posse no Direito Romano é que
várias expressões com a palavra possessio tinham significados diferentes. Existiam
as possessio naturalis, possessio ad interdicta, possessio civilis para definir
situações que configuravam detenção, posse que contava com interditos ou posse
que poderia acarretar usucapião.
Também existiam expressões como possessio iusta e possessio iniusta, que
se caracterizavam pela existência de vi (violência), precario (precariedade) ou clam
(clandestinidade), possessio bonae fidei (posse de boa-fé) e possessio malae fidei,
possessio ex iusta causa, que era uma posse decorrente de uma causa jurídica e
possessio ex iniusta causa, decorrente de causa não jurídica.
Já a proteção possessória no Direito Romano, cuja origem também é
controvertida, tem por atribuída a sua criação ao pretor que, valendo-se dos
interditos, deu o caráter de proteção a alguns tipos de posse.
Friedrich Carl Von Savigny (1866) entende que a proteção possessória surgiu
em virtude da necessidade de tutela contra a turbação ou esbulho daqueles que
ocupavam o ager publicus, alijados que estavam das ações concernentes ao direito
de propriedade. Foi, portanto, a concessão dos interditos para esses casos
particulares de ager, uma criação pretoriana, que paulatinamente foram estendidos à 88ALVES, José Carlos Moreira. Posse: evolução histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999, v. 1. p.11.
103
posse como um todo.
Já Jhering (1976), contrapondo a teoria de Savigny (1866), defende que a
proteção possessória no Direito Romano foi originada das ações reivindicatórias,
nas quais o pretor atribuía a uma das partes a posse provisória da coisa litigiosa e,
se necessário fosse, tutelava com interditos.
Existiam interditos possessórios nos três períodos do Direito Romano como
classificados acima. Entretanto, existiam diferenças nos tipos de interditos de cada
período. No clássico, havia os interditos para a conservação da posse (interdicta
retinendae possessionis causa), que compreendiam o ut possidetis (proteção da
posse atual e justa sobre coisas imóveis) e o utrubi (para escravos e coisas móveis)
e os interditos destinados à recuperação (interdicta recuperandae possessionis
causa), que abrangiam o unde vi (reintegração na posse de imóveis em que
houvesse violência), o de precario (precariedade na transmissão da posse) e o de
clandestina possessione (onde estivesse presente a clandestinidade na ocupação).
Por fim, no período pós-clássico, os interditos foram paulatinamente sendo
absorvidos pelas ações comuns.
6.1 A Gewere e o direito canônico
Na Alemanha, Séc. XVI, existiu um instituto conhecido como Gewere, que foi
em princípio, interpretado como sendo um sistema semelhante à posse romana.
Entretanto, no início do século XIX, mais precisamente em 1804, Savigny (1866),
efetuou diversos estudos sobre a posse, conforme já mencionado neste trabalho,
que fomentaram, por parte da doutrina alemã, uma análise mais detalhada da
Gewere.
Segundo os estudos de Savigny (1866), a posse romana era compreendida
como senhoria física sobre a coisa, e a Gewere, por outro lado era interpretada não
somente como um poder físico sobre o bem, mas ia além e a compreendia como um
poder de fato com um correspondente direito, a Gewere do proprietário possuidor,
mais ainda, podia ser compreendida com um direito totalmente independente do
poder físico (posse do herdeiro).
104
A Gewere, portanto, era multifacetada e tais facetas ainda não haviam sido
estudadas com profundidade pela doutrina, mas que, com os estudos de Savigny
(1866), passou-se a fomentar uma formulação mais moderna sobre o instituto da
posse.
A palavra Gewere foi inicialmente traduzida para o latim como vestitura ou
investitura, e se referia ao ato pelo qual alguém transfere um imóvel, com renúncia
ao bem. Para alguns doutrinadores, Gewere se confundia com o próprio objeto
sobre o qual incidia o senhorio.
Posteriormente e como tradução mais aceita e pertinente, Gewere significava
a relação de senhorio entre pessoa e bem, móvel ou imóvel, não importando se
decorresse de aquisição originária ou derivada. Nesta interpretação para fins
didáticos, a Gewere encontra ressonância no termo romano possessio.
Mas é bom advertir que a Gewere apresenta pontos comuns com a possessio
romana, mas dela se afasta em alguns aspectos, tais como: o direito romano
distinguiu nitidamente posse, propriedade e detenção, enquanto o direito alemão
ignorou a diferença entre posse e detenção.
Para configurar a Gewere não basta então apenas o senhorio de fato, mas
que a ela corresponda um direito real, ou seja, não é somente um fato, mas também
um direito. A Gewere não é apenas uma forma jurídica de um direito real, mas
também é, em si mesma, um direito, com efeitos jurídicos próprios.
A grande contribuição da Gewere para a teoria moderna da posse é não
limitá-la ao exercício de um poder de senhorio sobre a coisa, mas dando ênfase à
presunção de um direito, o que vai ser melhor elaborado na teoria de Jhering (1976).
Quanto à importância da Gewere, Pontes de Miranda (1999)89 afirmou
categoricamente que
o conceito de posse, que entrou no Código Civil brasileiro de 1916, é o conceito contemporâneo europeu, combinação do pensamento romano com o germânico (com abstração do animus dominantis). O conceito hodierno de posse é a síntese, a que se chegou - um tanto diferente nos povos mesmos que a atingiram, mas em torno de linhas comuns - depois da tese romana e da antítese germânica, e das sucessivas teses e antíteses, seguidas de sínteses provisórias, que foram as ‘teorias da posse’ (MIRANDA, 1999, p. 101).
89 MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações . Campinas: Bookseller, 1999. T 6, p. 101.
105
Além da grande influência do direito germânico e do instituto da Gewere na
construção moderna das teorias possessórias, não podemos deixar de creditar
louros ao direito canônico.
O maior crédito que se deve ao direito canônico, no que tange à posse fincou-
se no fato de que, preocupado em encontrar soluções para fazer frente aos
problemas sociais de sua época, partindo do direito romano e influenciado também
pelo direito germânico, o direito canônico concedeu à posse um tratamento e
abrangência muito maiores.
Credita-se ao direito canônico a ampliação do conceito de posse, estendendo-
a aos direitos, esta foi uma das grandes contribuições que legou às modernas
teorias da posse. Além disso, no que tange à proteção da posse, coube ao direito
canônico, a par da permanência de utilização dos interditos romanos, a criação de
novos instrumentos, dentre eles: a exceptio spolii - uma espécie de interdito movido
pelo eclesiástico espoliado que deveria ser sumariamente reintegrado na posse
para, somente então, ter seguimento ao processo e a condictio ex canone
redintegranda, posteriormente chamada apenas de actio spolii, que consistia numa
ação possessória em substituição do interdito romano e era mais ampla, podendo
ser utilizada por qualquer possuidor, sobre quaisquer bens - móveis ou imóveis,
corpóreas ou incorpóreas.
6.2 As teorias de Savigny e Jhering
6.2.1 A teoria subjetiva de Savigny
Como já dito, Friedrich Karl Von Savigny (1866) publicou estudos de sua
autoria que aviventariam o interesse do estudo da posse: Das Recht des Besitzes,
ou seja, O Direito de Posse.
A teoria de Savigny (1866) partiu do direito romano e afirmava que à posse,
em si mesma considerada e sem vínculo com a propriedade, somente dois efeitos
poderiam surgir, quais sejam: a usucapião e os interditos possessórios.
106
Quanto à sua natureza, era a posse como fato e direito. Fato por sua
essência e direito por seus efeitos, e que, em última análise, lhe dariam a autonomia
relativa à propriedade.
Para Savigny (1866), a posse romana era a civilis possessio, naturalis
possessio e a possessio.
A palavra possessio indicava a posse que merecia proteção através dos
interditos (possessio ad interdicta). A civilis possessio era a possessio que
acumulava alguns outros atributos permissivos para a usucapião (possessio ad
usucapionem). E a naturalis possessio podia indicar tanto a mera detenção como a
possessio ad interdicta, mas que, de fato não era considerada como posse
juridicamente falando.
Portanto, somente as civilis possessio e possessio eram consideradas como
espécies de posse jurídicas, sendo que a primeira nada mais era do que a segunda
acrescida dos elementos hábeis para a usucapião (como bona fides e iusta causa),
o que reduzia a noção jurídica de posse apenas à possessio.
A teoria de Friedrich Karl von Savigny (1866), nomeada como teoria
subjetivista, diz que, partindo do corpus, a posse está na intenção do possuidor de
ter a coisa como sua, no animus rem sibi habendi.Então, dois eram os elementos
necessários para a posse jurídica, a saber, um fato externo, a coisa, o corpus, e o
elemento interno, subjetivo, a vontade de ser dono, o animus domini.
Resumidamente, nos dizeres de Miranda (1946, p. 26)90 a posse savignyana
implicaria num somatório entre os conceitos de posse interdital e posse ad
usucapionem, sendo posse apenas a ad interdicta. A posse, assim conceituada,
seria o somatório de “detenção” com “animus domini”. Sendo que a intenção deveria
ser qualificada com o exercício com ânimo próprio, e não para terceiros.
Tal teoria não justifica a posse do credor pignoratício ou do enfiteuta, mas,
lado outro, tal teoria parece conduzir a sistemática pátria em matéria de usucapião
(qualificação da posse pro suo). Para ele, posse é a “imagem do domínio”, sua
visibilidade e a noção central é o interesse.
Para tentar corrigir a falha da sua teoria, Savigny (1866) a complementou
idealizando a posse derivada, aplicada aos casos em que houvesse uma posse
originária - constituída pelo corpus e pelo animus domini do possuidor originário que
90 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado . Campinas: Bookselle, 1946. T. X, p. 26.
107
transferisse o ius possessionis a outrem para exercer o direito em seu nome.
Quando Savigny (1866) emendou a sua teoria para justificar a posse
derivada, recebeu severas críticas, posto que, a teoria original era baseada na
autonomia da posse em relação à propriedade e, no desenvolvimento da posse
derivada, ele retornava à ausência de autonomia.
6.2.2 A teoria objetiva de Jhering
Outra grande teoria é a de Rudolf von Jhering (1976), aluno de Savigny,
nomeada objetivista, que combatendo a teoria subjetiva, afirmava que o fundamento
da posse era o fato de o possuidor se apresentar como proprietário. A posse,
portanto, seria a imagem do domínio, a exteriorização da propriedade onde corpus e
animus são inseparáveis.
Em 1869, Jhering publicou suas idéias originalmente no livro Uber den Grund
des Besitzsschutzes. Eine Revision der Lehre vom Besitz, ou seja, Sobre o
fundamento da proteção da posse. Uma revisão da teoria da posse.
A teoria de Jhering (1976) partia da noção de que a posse era a
exteriorização da propriedade, e para complementar a tutela desta propriedade, era
imprescindível proteger a posse. Repetia ele que a proteção da posse sempre
consistiu, historicamente, em proteção da propriedade, já que a utilização econômica
da propriedade tem como pressuposto o exercício da posse.
Jhering (1976)91 conclui em seus estudos que
A propriedade sem a posse seria o mesmo que um tesouro sem a chave. Resulta que retirar a posse é paralisar a propriedade, e que é um postulado absoluto da idéia de propriedade o direito a uma proteção jurídica contra o desapossamento. Não pode existir a propriedade sem essa proteção, sendo, pois, desnecessário buscar outro fundamento da proteção possessória: resulta da propriedade. (JHERING, 1976, p. 52)
91 JHERING, Rudolf von. A teoria simplificada da posse . São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1976. p. 52-53.
108
Portanto, no seu entender, no Direito Romano propriedade e direito de posse
eram sinônimos. E, fazendo o contraponto, atribui Jhering (1976) 92 à posse em sua
relação com a propriedade as seguintes proposições:
1. A posse é indispensável ao proprietário para a utilização econômica de sua propriedade. 2. Donde resulta que a noção de propriedade arrasta necessariamente o direito do proprietário à posse. 3. Não existiria esse direito se o proprietário não estivesse protegido contra o arrebatamento injusto da posse. A proteção jurídica contra todos os atentados injustos à posse do proprietário, consistente na sua retirada ou não sua turbação, forma um postulado absoluto da organização da propriedade. 4. A questão de saber, se a exemplo do direito romano, a proteção do direito de possuir do proprietário deve ser ampliada mesmo contra terceiros possuidores, é para o legislador uma questão aberta que ele pode resolver e que resolveu num ou noutro sentido. (JHERING, 1976, p. 55)
Jhering (1976) inverteu a ordem histórica e colocou a posse como o princípio
de tudo, a vanguarda, a condição de nascimento para outros direitos, para, em
seguida, conferir-lhe, em si mesma considerada, independentemente de todo direito,
a proteção possessória.
E quanto aos elementos da posse, Jhering (1976) ressalva que corpus seria a
relação de fato entre a pessoa e a coisa, sob o enfoque da destinação econômica, e
não simplesmente a possibilidade de apreensão da coisa.
Ressalta a teoria objetiva que a posse permanece como sendo a aparência
de um direito, guardando semelhança com a Gewere anteriormente estudada,
passível de proteção contra quem a ameace.
E quanto ao elemento subjetivo - o animus domini - Jhering (1976) defendia
que a interpretação deste elemento, advinda do direito romano, como sendo uma
intenção concreta do possuidor sobre a coisa era equivocada. Para ele, o animus
domini deveria ser abstratamente considerado, a própria lei vincularia o título que
daria causa à posse. Essa teoria foi denominada por Jhering como “teoria da causa”
ou “teoria da vontade abstrata”, ou ainda, “teoria subjetiva da causa”.
E com base nesta nova tese, que é a antítese da teoria subjetiva de Savigny
(1866), surgiram novos embates, sendo Saleilles o principal crítico, destacando o
artificialismo da tese de Jhering (1976), o que o levou, ao fim e ao cabo, a tentativa
de eliminar totalmente qualquer possibilidade de elemento subjetivo concreto ou 92 JHERING, Rudolf von. A teoria simplificada da posse . São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1976. p. 55.
109
abstrato da sua teoria.
Entretanto, Jhering (1976), de fato, não afastou de todo o elemento subjetivo
já que o entendia compreendido na affectio tenendi, no desejo de ter a coisa
consigo, existente tanto na detenção quanto na posse.
Pontes de Miranda (1946)93 louva a teoria de Jhering (1976) esclarecendo
que compete ao ordenamento jurídico definir a diferença entre detenção e posse,
sendo tal uma opção legislativa.
Esta teoria também foi aparentemente adotada pela sistemática pátria,
encontrando representação principalmente na divisão vertical da posse (posse direta
e indireta).
O Código Civil brasileiro atual não possui um conceito de posse, em realidade
parte da definição do que seja possuidor para, por extensão, definir o exercício do
poder fático.
Sucintamente, pelas teorias esboçadas acima, poder-se-ia concluir que o
fenômeno possessório ocorre quando alguém exercer algum dos poderes do
proprietário, ou seja, o poder de fato que compreenda o exercício de usar, gozar,
dispor ou reivindicar, independentemente de titulação jurídica formal. Assim, a posse
é fato social similar a algum dos poderes atribuídos ao proprietário, com atribuições
de consequências e tutelas jurídicas auferidas pelo sistema.
6.2.3 A teoria da apropriação econômica de Saleilles
Ainda no tocante à posse, é importante trazer a lume a teoria de Raymond
Saleilles, que em 1894 publicou o “Étude sur les éléments constitutifs de la
possession”. Partindo das teorias subjetiva e objetiva, inclinou-se pela objetiva, mas
nela inseriu algumas mudanças que entendeu pertinentes.
Saleilles (1894) compreendeu que a posse não era uma relação de
apropriação jurídica em essência, mas sim de uma apropriação econômica, onde o
corpus seria, um conjunto de fatos visíveis e sensíveis que demonstrariam uma
relação duradoura, ou seja, uma exteriorização precípua da utilização econômica da
93 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado . Campinas: Bookselle, 1946. T. X, p. 26.
110
coisa pelo possuidor, e não uma exteriorização do exercício de um pretenso direito
de propriedade, discordando portanto da teoria de Jhering ( 1976)
Para Saleilles (1894) o animus domini não estava presente no direito romano,
e ao corpus deveria ser aplicado um animus que corresponderia à vontade de
realizar a destinação do bem, qual seja, a sua apropriação econômica, com vontade
de agir como o senhor de fato.
Outro diferencial entre a teoria objetiva e a teoria da apropriação econômica
se traduz quanto à diferenciação entre posse e detenção. Enquanto na teoria
objetiva tal diferenciação é remetida à legislação, Saleilles (1894) entende que esta
diferenciação é possível de ser constatada pela observação dos fatos. Para ele,
configura posse a relação de fato que é suficiente para estabelecer a independência
econômica do possuidor, enquanto que na detenção, tal não ocorreria.
Concluindo, a teoria da apropriação econômica de Saleilles (1894) tem por
mérito demonstrar que o ato de possuir significa necessariamente dar uma
destinação econômica à coisa, seguindo a sua natureza, demonstrando assim,
claramente, um caráter puramente econômico e social da relação possessória.
6.3 A posse como situação de fato ou direito subjet ivo
Outro ponto de crucial dúvida na doutrina se refere à definição se a posse
seria situação de fato ou direito subjetivo.
Para alguns doutrinadores, posse é direito subjetivo, ou seja, a posse é direito
do titular sobre a coisa que existirá tão somente enquanto a situação de fato existir. `
Através desta teoria, chegaremos fatalmente à conclusão de que a função
social da posse não existe, somente existiria a função social da propriedade e aí a
conclusão da pesquisa seria pela irrefutável inaplicabilidade do princípio
constitucional.
111
Vejamos o que nos fala Fiúza (2008)94
Ocorre que admitir que a posse tenha natureza de direito subjetivo é admitir idéia excludente. É ver na posse só o lado do possuidor, excluindo a coletividade, seus direitos e deveres; é olvidar dos deveres do possuidor. Essa teoria não pode ser admitida, sob pena de não se poder falar em função social da posse. (FIUZA, 2008, p. 861).
Para outros doutrinadores de escol, posse é situação de fato da qual
emergem vários direitos e deveres que são designados como “efeitos da situação
fática da posse”.
Por fim, existe uma teoria que acredita ser a posse um fato e um direito,
simultaneamente. Num primeiro momento, seria meramente fato e, num segundo
momento, por consequência deste fato, seria ele emanador de direitos.
Todas as teorias são amplamente debatidas, não havendo ainda um
consenso, entretanto, merece acolhida o ensinamento de Fiúza (2008) quanto à
impossibilidade de aceitar a teoria da posse como direito subjetivo, posto que refuta
a hipótese de exigência de cumprimento do ditame constitucional da função social
ao seu exercício.
Como marco teórico quanto à teoria possessória, adotamos nesta pesquisa o
trabalho proposto na teoria possessória desenvolvida à luz da função social por
Marcos Alcino de Azevedo Torres.
Torres (2008)95 nos esclarece com percuciência que:
A tessitura da função social, tanto na propriedade quanto na posse, está na atividade exercida pelo titular da relação sobre a coisa à sua disposição. A função social não transige, não compactua com a inércia do titular. Há que desenvolver uma conduta que atende ao mesmo tempo à destinação econômica e à destinação social do bem. (TORRES, 2008, p. 61).
Também é pertinente, tendo-se a clara noção de que são várias as acepções
do vocábulo “posse” no mundo jurídico. Para fins desta pesquisa, foi restringida a
análise às questões que envolveram especificamente a posse de bens imóveis.
A posse é assunto por demais tormentoso, esta é a máxima que se recolhe
de todos aqueles que ousam tratar ou escrever sobre o assunto. A maioria descreve
94 FIUZA, César. Curso Completo de Direito Civil . 12 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 95 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse : um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 130.
112
o tema como espinhoso, e sem uma conclusão unânime se se trata de um fato ou de
um direito. Sendo assunto tortuoso, fica mais complexo ainda quando se pretende
agregar a tal polêmica o princípio da função social.
Ao comentar sobre a dificuldade de tratar do assunto posse, e, até mesmo de
conceituá-la, Cordeiro (2005)96 assim se manifesta:
As realidades muito simples, pela dificuldade de conceptualização que implicam, prestam-se pouco a discursos directos, no sentido de desenvolvimentos que, sem intermediações linguísticas, as visem. Elas potenciam, assim, metadiscursos, isto é, sequências que assentam não na realidade, mas nas figurações linguísticas, por estas originadas. Quando se diz, por exemplo: “a posse é complexa” não se tem em vista a realidade “posse”, mas o conceito verbalizado “posse”. A fluência dum metadiscurso torna-se maior - muito maior - quando este incida sobre conceitos que sofram processos de ampliação e de refracção. Resta acrescentar que a posse constitui um exemplo de escola, no tocante à ampliação e à refracção conceptuais e ao desenvolvimento, sobre elas, de todo um metadiscurso. (CORDEIRO, 2005, p. 10).
Além da enorme dificuldade conceitual, segundo Marilena Chauí (2004)97, a
posse, por ser tão tormentoso assunto e com tal grau de dificuldade conceitual, na
sua interpretação pela doutrina jurídica pode acabar por fomentar a ideologia, ou
seja, um ocultamento da realidade social. E como bem salientou Ferraz Júnior
(2003, p. 49)98 “a posse não é apenas o que é socialmente, mas também como é
interpretada pela doutrina jurídica”.
Silva (2005, p. 6)99 tenta esclarecer a complexidade da posse e diz que uma
das razões seria a dispersão da matéria. O termo “posse” abrigaria situações muito
díspares que fariam com que não se entendesse por que a todas elas se aplicaria o
mesmo nome. Outro problema é a dificuldade do que ela chama de quadro de
referências onde o investigador se ampara para compreender a posse, dizendo que
seriam tantos os conceitos que ele termina sendo influenciado por uma série de
referências que lhe retiram qualquer possibilidade de isenção. E ainda, afirma que
outro problema seria a “densidade do discurso jurídico”, em que nem sempre é
96 CORDEIRO, António Menezes. A posse : perspectivas dogmáticas actuais. Coimbra: Almedina, 2005. 3. ed. p. 10 97 CHAUI, Marilena. O que é ideologia . 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 23. (Coleção primeiros passos). 98 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito : técnica, decisão, dominação. 4 ed.São Paulo: Atlas. 2003. p. 49. 99 SILVA, Paula Costa e. Posse ou posses? 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. . p. 6.
113
possível destacar as ligações ou as separações entre posse e propriedade.
O mesmo ocorre com o vocábulo “propriedade” que também admite várias
acepções dificultando a sua definição conceitual e sua aplicação nas diversas
modalidades encontradas no ordenamento pátrio.
Assim sendo, “posse” e “propriedade” são palavras carregadas de longevos
conflitos sociais. É notória a dificuldade de conceituação, pois, “se nos atemos ao
uso, toda e qualquer definição é nominal (e não real), isto é, definir um conceito não
é a mesma coisa que descrever uma realidade, pois a descrição da realidade
depende de como definimos o conceito e não o contrário” (FERRAZ JÚNIOR, 2003,
p. 49)100.
Como palavras são conceitos, o jurista deve analisar a realidade,
principalmente em casos onde os conflitos são prementes, e propor soluções
através de palavras e expressões que guardem similitude com os fatos observados,
deles nunca se distanciando ou distorcendo a realidade, sob pena de ideologizar os
conceitos de molde a permanecer determinada situação fática proveitosa a alguns e,
por óbvio, prejudicial a tantos outros.
Esta mesma dificuldade conceitual de “posse” e “propriedade” também pode
ser estendida à palavra função.
Temos funções aplicadas a outras ciências, cujo conceito é muito divergente
do conceito aplicado ao Direito. As funções matemáticas nos dão o rumo de
vinculação intrínseca entre dois conjuntos, sendo que não existindo a função
esperada no conjunto específico, não se poderá garantir a existência do elemento no
conjunto de partida.
Portanto, é possível fazermos uma digressão entre a função prevista no
ordenamento jurídico com as funções matemáticas. Função é sempre uma relação.
Matematicamente falando, se tivermos dois conjuntos, a relação entre eles será uma
função se todo elemento do primeiro conjunto estiver obrigatoriamente relacionado
com um elemento do segundo conjunto.
Com essa sucinta definição podemos dizer, portanto, que função é um tipo
de interdependência, um valor dependente de outro, é ter respondido o “para
quê” serve algo ou o elemento do primeiro conjunto, cuja resposta,
100 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito : técnica, decisão, dominação. 4 ed.São Paulo: Atlas. 2003. p. 49.
114
obrigatoriamente, deverá estar contida no segundo conjunto.
Voltando à matemática, é possível dizer que função é uma relação de dois
valores, por exemplo:
f(x) = y, sendo que x e y são valores, onde x é o domínio da função (a função
está dependendo dele) e y é um valor que depende do valor de x sendo a imagem
da função.
Um exemplo prático de função matemática é a relação existente entre o valor
a ser pago numa conta de energia e consumo em quilowatts daquele período de
referência. Ou seja, o valor da conta está em função (está dependendo) de qual será
o consumo. Essa relação é uma função.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado à função social da propriedade ou da
posse. Numa breve comparação do Direito Real com a teoria dos conjuntos
matemáticos, poder-se-ia afirmar que qualquer direito real ou com efeitos de direito
real existente no conjunto de partida (posse, propriedade, dentre outros) deverá
obrigatoriamente corresponder ao interesse social existente no conjunto de chegada.
E a relação existente entre estes dois conjuntos, forçosamente será a função social
de cada um dos elementos do conjunto inicial.
Assim sendo, a ausência de cumprimento do interesse social, ou da utilização
do direito (posse, propriedade) em descumprimento com a função, desnatura
totalmente o instituto. Mas o que seriam os “conjuntos”? Para o Direito, não somente
os conjuntos, os elementos de partida (posse, propriedade, etc.), mas também as
funções sociais que deles se espera deverão, obrigatoriamente, estar previstas no
ordenamento jurídico.
A palavra é a mesma - função - mas dependendo do contexto científico, a
conotação será divergente. Ela será codificada diferentemente para a Biologia, para
a Matemática e para o Direito.
Voltando à conceituação da posse e suas dificuldades, e não dispondo
claramente de um conceito que seja acatado facilmente pela doutrina, para
prosseguir no objeto desta pesquisa, se podemos aplicar à posse o princípio da
função social, nos dirigiremos no método científico e devemos nos valer dos
ensinamentos de Viehweg (2008)101, para quem a tópica é a técnica do pensamento
problemático e jungindo o pensamento problemático com a famosa teoria do
101 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência : uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008. p. 95-96.
115
interesse de Jhering, assim se manifestou:
Quando Jhering completa cem anos assinalou que um Direito positivo não pode ser entendido sem a categoria do interesse. Emergiu primeiro na doutrina jurídica civilística um tópico que foi aumentando continuadamente de relevância e que paulatinamente foi exercendo um influxo de não menos importância sobre o caráter mesmo da jurisprudência. A famosa teoria do interesse, que tem sua base em Jhering, esforçou-se em tornar aplicável ao trabalho jurídico seu modo de pensar. As múltiplas articulações do conceito de interesse, que, ao final, se tem transformado mediante uma matização de fatores vitais mais dignos de consideração, [...] Suas formulações mediante a utilização do conceito de interesse, do conflito de interesses ou de suas possibilidades são na maior parte dos casos muito apropriadas para colocar em dia as perpétuas aporias fundamentais de toda a disciplina. (VIEHWEG, 2008, p. 95-96)
Releva esclarecer que, na doutrina clássica, a questão da posse e da
propriedade tem sido estudada com base na dogmática, privilegiando não a
pergunta, mas enfocando na resposta, que no caso é considerada como absoluta e
é mantida livre de ataques por longos períodos de tempo.
Na contramão, utilizando da zetética de Viehweg (2008) devemos perquirir,
perguntar, inquirir, lidando assim com problemas que requerem soluções, e
constatando se as soluções já obtidas se aplicam à resolução daqueles problemas.
As questões problematizadas na zetética têm ênfase na pergunta, onde os
conceitos, premissas e princípios são expostos ao questionamento. E é desta forma
de problematizar que deve ser tratada a posse. E também é pertinente manter em
mente a teoria dos interesses de Jhering, considerando a posse como tal.
De igual modo, foi limitado o âmbito da pesquisa quanto à realidade
possessória brasileira, tendo-se por norte o ordenamento jurídico pátrio como
suficiente para fornecer o substrato necessário para solucionar os conflitos
possessórios e confirmar a aplicação da função social a tal instituto.
Para tanto, é importante superar a doutrina clássica que considera a posse
apenas como mera exteriorização da propriedade. Uma vez considerada a posse
como autônoma, tornando-a um fato com valor jurídico, poder-se-á passar a perquirir
do exercício ou não da mesma com ou sem função social.
Considerar a posse, não ignorando sua ligação e separação com a
propriedade, como instituto autônomo, com vida própria, significa entendê-la como
valor jurídico relevante, como uma forma de utilização das coisas diferente da forma
propalada através do direito de propriedade. Significa também deixar de considerá-la
116
como mero atributo ou enfeite do direito de propriedade, mas sim com vida própria
que atende à função social e, portanto, igualmente sujeita às limitações, devendo
respeitar os ditames do interesse da coletividade.
Tal postura também faz coro com a doutrina de Tepedino (2006)102, que
assim se manifesta:
A justificativa da posse encontra-se diretamente na função social que desempenha o possuidor, direcionando o exercício de direitos patrimoniais a valores existenciais atinentes ao trabalho, à moradia, ao desenvolvimento do núcleo familiar. (TEPEDINO, 2006, p. 152).
Devemos ter em mente que a posse é instituto de enorme repercussão social
e que a sua boa utilização pode conduzir à construção da cidadania, ao respeito da
paz social e à negação da violência. De igual modo, a sua má utilização pode
conduzir ao caos social e ao incremento da violência.
A realidade social sempre foi repleta de situações de conflito envolvendo
questões possessórias, isto, somado às peculiaridades do processo de ocupação do
território, do interesse econômico envolvido, da carência de políticas públicas, entre
outros, resultaram num enorme grau de informalidade quanto à ocupação do
território e, portanto, problematiza ainda mais a questão posse e propriedade.
6.4 A influência das teorias da posse e o aumento d e sua importância no
ordenamento brasileiro
A teoria objetiva da posse, desenvolvida por Jhering (1976) no seu livro A
Teoria Simplificada da Posse, foi extremamente influente não somente na
Alemanha, mas também exerceu influência em outros países, sendo o Brasil um
deles, o que culminou na fundamentação da proteção da posse em diversas
situações que não abrangidas pela teoria subjetiva de Savigny (1866).
A posse, portanto, na doutrina clássica, tem sido entendida como a
visibilidade do domínio, cuja influência se deu no Código Civil 16 e que se manteve
no Código Civil Brasileiro de 2002, podendo ser claramente delineada no artigo 1196 102 TEPEDINO, Gustavo. Os direitos reais no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 152. T. 2.
117
do: "Artigo 1.196 - Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício,
pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade" (BRASIL, 2002).
Entretanto, apesar da adoção clara da legislação pátria à teoria objetiva da
posse, tal posição comporta algumas exceções, tais como, a detenção (aquele que
exerce algum poder sobre a coisa, mas não por vontade sua) bem como os atos de
mera permissão ou tolerância, in verbis:
Artigo 1.198 - Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. Artigo 1.208 - Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. (BRASIL, 2002).
Tanto detentor como os que estão agindo por ato de mera permissão ou
tolerância não são equiparados a possuidor e, portanto, não podem manejar ou
fazer uso dos interditos possessórios, da manutenção de posse ou da reintegração
de posse, exatamente por não serem possuidores.
Retomando nesta linha de raciocínio, a doutrina brasileira passou a classificar
a posse de várias maneiras: justa ou injusta, de boa ou má-fé, originária ou derivada,
direta ou indireta.
Entretanto, é de se asseverar que ambas as teorias - de Savigny (1866) e
Jhering (1976) - mesmo tendo-se em mente as várias classificações, não são
suficientes para alcançar o grau de complexidade atingido pela questão da posse.
Não conseguem, portanto, nos dizeres de Farias e Rosenvald (2009, p. 36)103
abarcar “a densidade dos direitos fundamentais nas relações privadas, além de
completamente divorciadas da realidade do Brasil, como nação de escassos
recursos e enormes conflitos fundiários.”
Portanto, devemos utilizar outras teorias, ditas sociológicas, da posse,
defendendo que não se trata ela de mero adereço da propriedade, devendo ser
interpretada com base em valores que permeiam o poder fático com todos os
notórios reflexos econômicos e sociais daí deduzidos.
103 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais . 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 36.
118
A posse deverá ser considerada como “fenômeno de relevante densidade
social, com autonomia em relação à propriedade e aos direitos reais. Devemos
descobrir na própria posse, as razões para o seu reconhecimento.” (FARIAS;
ROSENVALD, 2009, p. 37)104
É inconteste que o tratamento da doutrina dispensado à função social da
propriedade é enorme, enquanto que o mesmo não ocorre em relação à função
social da posse.
Dependendo da teoria adotada, o doutrinador fatalmente concluirá que a
posse, como mera exteriorização da propriedade, tem a sua função social jungida
umbilicalmente a esta, não cabendo assim, tratamento autônomo, fato este
corroborado por uma leitura positivista extremada, ou seja, sequer tem previsão no
ordenamento jurídico, porque se haveria de discutir sobre a função social da posse?
Entretanto, haveria necessidade da previsão expressa da função social da
posse no ordenamento jurídico?
Se entendermos a posse como um exercício de fato, que pode ocorrer
totalmente independente da propriedade, sendo desnecessária a existência de título,
entendemos não ser necessária a previsão da função social ao exercício do fato -
posse.
Vejamos, o nosso ordenamento protege a relação de fato consubstanciada na
posse, trazendo para o seu arcabouço inúmeras regras que traduzem a relevância
desta situação de fato para o mundo jurídico (CC02 artigo 1210 e CPC, artigos 924 e
seguintes - manutenções de posse e interditos possessórios e reintegração de
posse), onde se perquire objetivamente a existência da posse em uma das suas
muitas classificações, mas eleva-se a importância social do fato posse ao mundo
jurídico.
De igual modo, a usucapião, prevista no CPC nos artigos 941 a 945, CR 183
e 191, CC02 1238 a 1244 para bens imóveis e 1260 a 1262 para bens móveis,
apesar de ser ação de natureza real, considera como relevante no mundo jurídico o
fato posse com alguns requisitos que ali se mencionam.
De igual modo, importante constatar que a novidade trazida no Artigo 1.228,
parágrafos 4º e 5º do CCB02105, apesar da enorme celeuma doutrinária sobre a
104FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais . 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 37. 105 Artigo 1.228, parágrafo 4.º:O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel
119
natureza do instituto e sua aplicabilidade, não deixa de demonstrar uma luta de
interesses entre posse e propriedade, com preponderância da força da posse como
fato alçado e protegido pelo ordenamento jurídico, justificado pelo interesse social e
econômico relevante, demonstrando claramente que a função social da posse não
se submete ou existe somente em relação à usucapião (como consequência da
posse continuada).
É notório que existe uma enorme controvérsia no que tange ao direito do
proprietário, com indagações sérias que vão desde quem arcaria com tal “justa
indenização”, e qual seria a sua natureza. Se estaríamos frente a uma nova forma
de desapropriação forçada, ou se tratar-se-ia de uma “usucapião onerosa” ou de
uma “acessão inversa”. Entretanto, ignorando tais indagações, relevantes é claro,
mas não atinentes ao objeto desta pesquisa, analisando apenas pelo lado da
regularização jurídica por parte dos possuidores daquele bem imóvel, o fato é que a
inovação premia a posse jungida a uma inerente função social, qual seja, a moradia.
Neste sentido, o ordenamento jurídico ao admitir e proteger a relação de fato
como relevante, já é um pressuposto importante para a aplicação da função social à
posse.
Uma vez delineado um bosquejo sobre as principais teorias da posse e de
seu histórico, é forçoso constatar que as teorias modernas ainda divergem em
alguns ramos. Há aquelas que se pautam por uma explicação técnico-jurídica: posse
é o exercício de um direito real. Outras, dando seguimento à teoria da apropriação
econômica de Saleilles (1894), anteriormente explicitada, dão maior ênfase à
questão sociológica ou econômico-social. Também temos as que buscam
fundamento precipuamente na segurança jurídica, ou seja, a tutela da posse se dará
com base em paz social ou ordem pública. Enfim, não há consenso e o tema
continua tormentoso até a atualidade.
reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante; parágrafo 5.º: No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. (BRASIL, 2002).
120
6.5 O princípio da função social aplicado à posse
Como vimos alhures, a função social permeia a estrutura do direito de
propriedade. Agora, devemos analisar a questão da aplicação do mesmo princípio à
posse.
Esta tormentosa questão também vem sendo estudada apresentando várias
posições favoráveis à aplicação do mesmo princípio constitucional não somente à
situação proprietária, mas também à posse.
Para os doutrinadores que enxergam na posse apenas uma situação de fato,
a função social desta é restringida à sua possibilidade de ser convertida em
propriedade através de qualquer uma das modalidades de usucapião. Inclusive,
reconhecendo a usucapião como uma forma de concretizar a função social da
posse. Fachin (1988a)106 assim se manifesta:
A usucapião concretiza a função social da posse à medida que penaliza o proprietário que não cumpre a função social da sua propriedade. Embora não constitua nenhuma alteração substancial, o princípio da função social representa um avanço em prol do alargamento das instituições. (FACHIN, 1988a, p. 95).
Portanto, no entender majoritário, a usucapião é o cerne da funcionalização
social do direito de posse, é o que demonstra sim uma autonomia da posse frente ao
direito de propriedade. É neste sentido que entendemos as reduções dos prazos
para a usucapião para moradia no artigo 191 da Constituição da República de 1988.
(BRASIL, 1988).
Mas a função social da posse não se restringe à possibilidade de usucapião,
também no tocante à posse fundada em compromisso de compra e venda de bem
imóvel sem registro, ressalta a sua especial consideração. Vejamos o que nos
remete a Súmula 84 do STJ107:
Embargos de Terceiro - Alegação de Posse - Compromi sso de Compra e Venda de Imóvel - Registro - É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de
106 FACHIN, Luiz Edson. Função social da posse e da propriedade contemporân ea. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988a, p. 95. 107 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2010
121
compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2010).
Portanto, a origem do reconhecimento da função social aplicada à posse é a
necessidade social que visa atender ao comando constitucional da dignidade da
pessoa humana, abarcando as noções de cidadania bem como por coerência que o
próprio sistema jurídico prega.
Assim sendo, não seria crível dizer que o proprietário deve cumprir uma
função social, principalmente na dimensão dinâmica do exercício do seu direito e,
lado outro, dizer que o possuidor, que exerce esta mesma dinâmica, este mesmo
uso, não tenha que cumprir para com a coletividade, a mesma função social que se
espera daquele bem.
Ou seja, se o proprietário, detentor de um direito real regularmente registrado,
deve respeitar todos os requisitos constitucionais e legais no exercício da sua
propriedade, seja ela urbana ou rural, estando o mesmo imóvel nas mãos de um
possuidor, porque seria diferente? Qual seria a escusa que se poderia conceder ao
possuidor para não cumprir um ditame que vem em atendimento ao anseio da
sociedade da qual ele também faz parte?
Portanto, no vocábulo “propriedade”, contido no artigo 5º, inciso XXIII
(BRASIL, 1988) deverá o intérprete compreender como tal a propriedade lato sensu,
ou seja, estará contido em seu conteúdo igualmente o exercício da posse.
Mesmo para aquela parte da doutrina que insiste em afirmar que o princípio
da função social da posse não se encontra positivado, existe resposta. Estaremos
diante de uma lacuna da lei, e com base na melhor hermenêutica, na existência de
uma lacuna, é possível a utilização da analogia que se dará, fatalmente, em relação
à função social da propriedade.
E ressaltando a existência da função social à posse, assim se manifesta
Fachin (1988a)108:
A função social da posse situa-se em plano distinto, pois, preliminarmente, a função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. [...] O fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade o que há de eliminável. O fundamento da função social da posse revela o imprescindível, uma expressão natural da necessidade. (FACHIN, 1988a, p. 19).
108 FACHIN, Luiz Edson. Função social da posse e a propriedade contemporâne a. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988a, p. 19.
122
E discutir a função social à posse implica em discutir valores sociais a ela
jungidos, bem como valor à vida, saúde, moradia, igualdade, justiça social e outros
basilares para o alcance da dignidade da pessoa humana propalada como cerne do
Estado Democrático de Direito eleito por nossa Constituição da República de 1988.
E neste ponto, é necessário constatar que a posse é um veículo excelente por
condição de possibilitar a satisfação das necessidades vitais. Então, não é a posse
que justifica o poder dominial, a função social é muito mais importante que uma
mera justificação.
Pelo conteúdo social intrinsecamente instituído à posse, inclusive por ter sido
a primeira forma de apropriação de bens pelo ser humano, está muito clara a
aplicação do princípio da função social a tal instituto.
E assim, embasada no sistema político do Estado Democrático de Direito, na
formatação do ordenamento jurídico através de princípios estruturantes elaborados
com base neste estado de democracia, fulcrada ainda na superação do paradigma
liberal da propriedade e na construção de um novo paradigma, com a superação da
dicotomia entre direito público e privado, e, finalmente, através dos princípios
ordenadores da Constituição da República de 1988 e do desenvolvimento das
modernas teorias da posse, podemos concluir que o princípio da função social deve
ser plenamente aplicado à posse como um princípio constitucional implícito e inserto
dentro do vocábulo “propriedade” contido no artigo 5º em seu inciso XXIII. (BRASIL,
1988).
A esta conclusão chegamos tendo-se sempre por norte as lições de Bobbio109
para quem o ordenamento deverá ser entendido como um todo unitário, e que
entender e aplicar o princípio da função social à posse nos levará a uma melhor
valorização do seu conteúdo e identificar a sua utilização em conformidade com os
anseios sociais expendidos.
Para Bobbio (1995), é perfeitamente possível o alargamento do ordenamento
além dos casos expressamente regulados e, tendo-se tal lição em mente,
Albuquerque (2002)110 assim se posiciona:
109 BOBBIO, Norberto. A teoria do ordenamento jurídico . Trad. Maria Cel3este Cordeiro Leite dos Santos. 6ª. Edição. UNB. Brasília. p. 49 . 110 ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 38
123
A função social da posse através da analogia legis à função social da propriedade poderia ser obtida a partir da seguinte fórmula: A propriedade tem função social; A posse é semelhante à propriedade; A posse tem função social. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 38).
E, mais adiante, conclui brilhantemente Albuquerque (2002)111:
[...] a função social da posse implica uma visão mais ampla do conteúdo da posse e, ainda que não altere a sua qualificação como direito real, dá mais consistência aos argumentos dos que assim a qualificam. Não são os efeitos da posse ou os elementos da posse que se ampliam com a função social da posse , mas sim o seu próprio conteúdo. A posse deixa assim simplesmente de ser uma relação material do homem com a coisa decorrente do poder da vontade. Passa a ser visualizada como uma relação material, decorrente da vontade dotada de função social. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 199, grifo nosso).
Portanto, pelos ideais formadores da função social e a sua elevação à
condição de princípio constitucional, tanto a propriedade quanto a posse, fulcradas
que estão na atividade exercida pelo titular de uma relação humana sobre uma coisa
posta à sua disposição, outra conclusão não teremos que não a de aplicação
imediata do princípio a ambas as situações.
Tanto o proprietário quanto o possuidor deverão pautar a sua conduta de
molde a atender, além da destinação econômica do bem, mas também a sua função
ou destinação social que deles se espera.
E assim sendo, no caso concreto, deverá ser levado em consideração o
atendimento da função social tanto ao proprietário quanto ao possuidor.
Concluímos assim pela aplicabilidade total do princípio da função social à
posse, e, prosseguindo, devemos indagar quais são as consequências da exigência
do atendimento deste princípio, sob a ótica do possuidor, e quais seus reflexos nas
ações possessórias e petitórias.
6.5.1 Consequências da aplicação do princípio da função social
Como já dito anteriormente, a aplicação do princípio da função social implica
111 ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 199.
124
uma valorização da posse em detrimento da propriedade, mas, lado outro, acarreta
também numa série de exigências ou deveres que igualmente são atribuídos ao
proprietário.
Como a presente pesquisa foi circunscrita aos bens imóveis rurais e urbanos,
deverão ser utilizados os mesmos e idênticos parâmetros previstos no ordenamento
jurídico e aplicados, inicialmente, ao direito de propriedade.
Em se tratando de posse sobre bens imóveis situados em áreas urbanas,
deverá o possuidor agir conforme o artigo 182, parágrafo segundo da CR88, a
saber:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (BRASIL, 1988).
E, assim, o possuidor de imóvel situado em áreas urbanas terá que cumprir
fielmente a função social daquele conforme as regras instituídas no Estatuto da
Cidade e do Plano Diretor, se o Município o tiver promulgado.
De igual modo, é importante asseverar que o possuidor também poderá ser
compelido a cumprir a função social pertinente, que é traduzida na obrigação contida
no parágrafo 4º do mesmo artigo acima citado, entendendo que não somente o
proprietário do solo urbano, mas também o possuidor do solo urbano não edificado
ou subutilizado ou não utilizado, têm obrigações a serem cumpridas:
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. (BRASIL, 1988).
125
Quanto ao possuidor de imóvel rural, também deverá ser estendida a
interpretação do artigo 186 da CR88, determinado assim que ele cumpra a função
social daquele bem:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL, 1988).
Vale lembrar que a Constituição remeteu à legislação infraconstitucional a
estipulação das condições e parâmetros técnicos e precisos para interpretação e
verificação do cumprimento dos requisitos relativos à função social dos imóveis
urbanos e rurais.
Portanto, o principal efeito da extensão da aplicação do princípio da função
social à posse é o de elevar o conceito da dignidade da pessoa humana, atendendo,
por ela, as necessidades de moradia, aproveitamento correto do solo urbano ou rural
com fincas à erradicação da pobreza e à melhor distribuição da renda.
E em existindo um conflito entre possuidores, tal conflito pode descambar
numa sorte tal onde apenas a melhor posse é a que será protegida, ou seja, aquela
que demonstre, além de outros requisitos, o atendimento ao princípio da função
social.
6.5.2 Conflitos entre proprietário desidioso x possuidor
De igual modo, entendemos que, existindo um proprietário desidioso no
cumprimento da função social que se espera do bem, cumprimento este claramente
contido no ordenamento jurídico, em caso de conflitos possessórios e frente a um
possuidor que dá aquele bem o cumprimento devido, entendemos ser perfeitamente
cabível a discussão sobre o cumprimento ou não da função social por parte de qual
deles para, assim, decidir corretamente em razão da melhor posse dotada de
cumprimento da função social, tudo nos estritos parâmetros já estipulados na própria
126
CR88 e na legislação infraconstitucional pertinente.
Portanto, a função social da posse, num conflito envolvendo reintegração ou
manutenção da posse comum, deverá ser igualmente perquirida. O proprietário
deverá demonstrar que cumpria a função social se quiser ser reintegrado na posse
do imóvel e o possuidor, por seu turno, além de demonstrar a ausência do
cumprimento pretérito, deverá demonstrar estar apto a cumprir a função social se
quiser ser mantido na posse do bem.
6.5.3 As invasões de terra podem ser justificadas pelo cumprimento da função
social?
A questão se torna mais séria quando temos em mente os conflitos
envolvendo proprietário pretensamente desidioso e vários possuidores orquestrados
através de movimentos sociais que, de imediato, pretendem dar uma função social a
um imóvel que, conforme suas alegações, não cumpria tal função. Caber perquirir: é
possível, no bojo de uma ação possessória desta natureza discutir o princípio da
função social?
Entendemos hoje que não é possível, dentro do arcabouço legal existente,
levar em consideração apenas e tão somente o eventual descumprimento da função
social por parte do proprietário para, neste viés, não lhe deferir uma reintegração de
posse, v.g., em caso de invasão da sua propriedade por terceiros.
Tendo em mente a conclusão de que o princípio da função social se aplica
inteiramente à posse, passemos à análise de como têm caminhado os conflitos
possessórios, as invasões de terra promovidas por grupos organizados e algumas
decisões judiciais brasileiras nesta seara.
O Brasil enfrenta situações possessórias que podemos classificar como
sendo de grande porte, ou larga escala, envolvendo conflitos urbanos e rurais que
despontam inclusive na mídia.
Vários são os movimentos que, com suas ações, visam fomentar uma série
de objetivos, dentre eles uma distribuição de terras mais igualitária e o pretenso
cumprimento da função social da propriedade. Os movimentos, associações ou
agremiações mais conhecidas são o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
127
(MTST ou MST), a União dos Trabalhadores da Terra (UNITERRA) e o Movimento
de Libertação dos Sem Terra (MLST).
O Movimento dos Sem-Terra fundamenta suas invasões de terras num
pretenso direito de resistência. Grande parte do confronto do MST com o governo se
dá através da retórica, mas não se restringe a ela. Pragmaticamente, constatamos
também negociações visando repasses de verbas, assentamentos de pessoas,
reforma agrária e temos também casos que são levados à apreciação do Judiciário e
estampam as manchetes de jornais que dão o norte de algumas grandes
reportagens televisivas. (REDE GLOBO: Profissão Repórter, 2010).112
O MST, a par das ocupações esporádicas, promove também intensa atividade
de invasões concentradas em determinados períodos de tempo e de grande
abrangência nacional, inclusive anunciando-as previamente, tal como se vê nas
ocupações anuais fomentadas nos rotineiramente conhecidos como “ABRIL
VERMELHO” (REDE GLOBO: Jornal Nacional, 2010)113.
Num aprofundamento de tal meio estratégico, o MST anunciou para janeiro de
2011 a programação de uma nova onda de invasões e ocupações da região de São
Paulo conhecida como Pontal do Paranapanema, denominada “JANEIRO QUENTE”
(REDE GLOGO: G1, 2010)114, com previsão de invadir pelo menos cinquenta
propriedades rurais produtivas que se situam num perímetro de 92,6 mil hectares de
terras consideradas devolutas.
A decisão tomada e anunciada com mais de um mês de antecedência, previa
que na segunda quinzena de janeiro de 2011 o MST, acompanhado e assessorado
por outros movimentos, promoveria a invasão das fazendas e indústrias situadas na
região, buscando reivindicar a reforma agrária da localidade, chamada de 15º.
Perímetro. Vale ressaltar que na região encontram-se instaladas diversas
propriedades consideradas como produtivas, e ainda, uma usina de açúcar e álcool
que emprega mais de três mil pessoas.
Segundo a divulgação do MST, a usina seria, em princípio, mantida em
funcionamento, o que não ocorreria nas fazendas. E ainda, os proprietários da usina,
assim como os demais proprietários das fazendas, seriam convocados, juntamente
112 REDE GLOBO: Profissão Repórter, 2010. 113 REDE GLOGO: Jornal Nacional, 2010. 114 REDE GLOGO: G1, 2010.
128
com o Estado, para “negociar” com o movimento a troca da área ocupada e
considerada como terras devolutas por outras que sejam destinadas à reforma
agrária.
Seria possível concluir ou afirmar que a Constituição da República de 88, ao
estabelecer o princípio da função social da propriedade, na verdade estaria
buscando a satisfação ou legitimação de algum movimento social específico? Não é
possível, dentro do conteúdo histórico de confecção da carta constitucional concluir
que tal ou qual postura ideológica havia ganho algum destaque ou tido sucesso
neste ponto.
Por se tratar de um Estado Democrático de Direito, a pluralidade deverá ser
respeitada. Então, o movimento social que luta legitimamente por uma reforma
agrária há anos relegada à posteridade, deve ser respeitado. Mas, a sua forma de
agir, a sua conduta, deverá pautar-se sempre dentro da legalidade.
A atitude de invadir terras com a finalidade de obrigar o Estado a cumprir a
Reforma Agrária, atenta para os princípios constitucionais da propriedade privada e
não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, mesmo que o objetivo (obrigar o Estado a implementar a reforma
agrária) seja nobre, os meios para obrigá-lo não podem se pautar na ilegalidade, ou
seja, no desrespeito à propriedade privada, na promoção de invasões de
propriedades públicas e privadas, muitas das vezes de forma violenta, com a
destruição de patrimônio alheio, escudados no anonimato e falta de existência oficial
de um movimento.
O que se constata, de fato, é que no mais das vezes, não existem, nestes
movimentos, invasões com a finalidade real de obrigar ao cumprimento de uma
função social daquela propriedade, mas sim, uma finalidade clara de obrigar ao
Estado o cumprimento de uma Reforma Agrária, no mais das vezes, em outra
localidade totalmente distinta.
Portanto, a função social da propriedade e da posse tem, na maioria das
vezes, sido utilizada apenas como discurso justificador para a invasão, numa
tentativa clara de provocar um embuste jurídico para encobrir o objetivo real da
orquestração engendrada.
As partes levam ao conflito judicial os argumentos que, à sua maneira,
justificam a sua posição. E o que se percebe é que os líderes das invasões
manipulam o critério de justiça, utilizando das suas estratégias de convencimento e
129
levando para o conflito argumentos tais como “ausência de direito da propriedade
improdutiva” ou “inobservância da função social”, ou ainda, “direito fundamental à
moradia”.
Assim sendo, a função social da propriedade ou da posse não é a verdadeira
discussão presente na grande maioria destes conflitos de posse provocados por
invasões coletivas, mas ela é o grande trunfo utilizado judicialmente como tentativa
de manter as posses angariadas, numa tentativa de manter posição e justificar a
invasão.
Faz-se necessário constatar que a utilização do princípio da função social da
posse/propriedade como cortina de fumaça implica num desnaturamento do mesmo
e leva a uma má interpretação do seu conteúdo, chegando às raias de criar em parte
da sociedade um desgosto pela sua elevação à condição de princípio constitucional.
Para o leigo, a invasão de propriedades públicas ou privadas não pode ser
justificada. E mais, a sua manutenção na invasão é uma inversão clara de valores
que outrora se baseavam no trabalho para a conquista justa de bens.
É imprescindível questionar a posse e a propriedade imobiliária - urbana ou
rural - no momento de conflito acirrado, como sói ocorrer nas invasões de terras
promovidas por grande quantidade de pessoas orquestradas por movimentos
organizados, mas não se pode olvidar o que está por trás de tudo isto.
A Constituição que garante a propriedade é a mesma que exige a função
social. E, nos termos dessa dissertação, a posse também é garantida e o seu
cumprimento igualmente deverá atender ao mesmo princípio. Portanto, em havendo
conflitos unitários de propriedade desfuncionalizada e posse com função social, não
é tão difícil concluir que a garantia do ordenamento jurídico penderá para aquele que
cumprir a função social. O cumprimento da função social será assim um fator de
decisão importante que deverá ser analisado no caso concreto do conflito levado às
barras da Justiça, não podendo ser ignorado pelas partes que litigam e, muito
menos, pelo Juiz.
Mas os conflitos, como verificamos acima, podem ir muito além e abarcar
movimentos ideológicos que, pretendendo alcançar objetivos muito além do que
mero cumprimento de função social, fomentam e instigam conflitos possessórios
como forma de alcançar seus objetivos – sendo o principal deles, a efetivação de um
programa consistente de reforma agrária.
130
Em ocorrendo uma invasão de propriedade, qualquer que seja ela,
organizada por um movimento social, por motivos outros que não a obrigação de
cumprimento da função social, estaremos diante de um conflito que não se atém
especificamente ao direito de propriedade ou de posse, mas nele esbarra. Ele é o
meio utilizado para alcançar objetivos outros.
Voltando a casos em que realmente a função social da posse ou propriedade
são o cerne real da questão e não um pano de fundo para discussões ideológicas
com objetivos e finalidades outros que, apesar de justos, não justificam o agir
atualmente constatado, devemos questionar, no caso do conflito concreto, se existe
a afirmação ou a negação do princípio da função social da posse, ou seja, serão
analisados os requisitos de cumprimento por parte do possuidor anterior e também
por parte do atual. Será necessário ainda atentar aos princípios do processo, e
provar se a propriedade invadida atendia à função social que dela se esperava
anteriormente. Durante quanto tempo ocorreu a invasão, se o anterior proprietário
dava um uso contrário ao determinado pelo ordenamento, se ocorreu o abandono da
propriedade. Ainda deverá ser analisado o modus operandi da invasão, e, quanto ao
novo fato da invasão deverá ser indagado e decidido concretamente, se com a
invasão poderá aquele bem atender a função social e se o possuidor terá condições
de fazê-lo.
E tais indagações têm razão de ser, posto que, é inegável que o interesse
social em relação à determinada propriedade poderá variar, ser de maior ou menor
grau, dependendo da relevância, ou mesmo do grau de prevalência da função
ambiental sobre as demais funções sociais ou econômicas de um determinado bem
concretamente falando.
A ocupação ou invasão de propriedade de área de preservação permanente,
por exemplo, não poderá ser tolerada ou tutelada, já que a sua função precípua de
preservação (ambiental) se sobrepõe à utilização como moradia ou produção de
alimentos, pelo que, receberá uma análise totalmente diferente se comparada a
outra propriedade sem o mesmo significado.
Todas estas questões deverão ser levantadas no decorrer do processo
judicial, através das regras processuais pertinentes, dando-se às partes o direito de
elencá-las e produzir as provas pertinentes, garantindo-se o amplo contraditório,
sendo que as questões ideológicas deverão ficar fora do âmbito atual do Judiciário,
posto que estamos em um Estado Democrático de Direito.
131
Porque, como nos orienta Derani (2000)115:
Da mesma forma que é conferido um direito subjetivo individual para o proprietário reclamar a garantia da relação de propriedade, é atribuído ao Estado e à coletividade o direito subjetivo público para exigir do sujeito proprietário a realização de determinadas ações, a fim de que a relação de propriedade mantenha sua validade no mundo jurídico. O direito de propriedade deixa de ser, então, exclusivamente um direito garantia do proprietário e se torna um direito garantia da sociedade. (DERANI, 2000, p. 267).
Retornando à questão das invasões por elevado número de pessoas,
organizadas em grandes movimentos, de tal forma a fazer justiça com as próprias
mãos, ou seja, obrigar o proprietário ou possuidor anterior a cumprir com o comando
constitucional, entendemos que tal não encontra guarida em todos os estudos aqui
engendrados.
De fato, poderíamos indagar: não cumprindo um proprietário ou possuidor
com o princípio constitucional da função social, estaria justificada a ocupação do
bem por terceiros?
A resposta não é outra que não a irrefutável conclusão de que o sistema legal
brasileiro vigente não dá guarida a que qualquer pessoa possa, por mãos próprias,
exercer atitudes que retirem o direito de propriedade e transmita imediatamente a
posse a terceiros, sob o escudo do cumprimento da função social.
Tais atitudes são mais coerentes e costumeiras em países que não adotaram
o regime democrático. No Estado Democrático de Direito, adotado na Constituição
da República de 88, portanto, mesmo sob o viés do atendimento à função social,
não se pode deixar de dar guarida ao proprietário em detrimento dos invasores
orquestrados através dos movimentos.
Neste sentido, vale a decisão proferida nos seguintes Acórdãos:
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE - COMPROVAÇÃO PELO POD ER PÚBLICO - Apelação Cível - Ação de Reintegração de Posse - Movimento Sem-terra - Inépcia da Inicial - Citação de todos - Desnecessidade - Função social da propriedade - Desnecessidade de comprovação - Posse e Esbulho comprovados - Ação procedente. Não é admissível que grupos sociais, sob o pretexto de que a terra seja improdutiva, inv adam a propriedade particular e dela tomem posse, na tentativa de faze r justiça social com as próprias mãos. Se a propriedade não cumpre a sua função social, caberá ao Poder Público, por meio de procedimento próprio, comprovar tal situação e, se for o caso, proceder à desapropriação do imóvel. Agravo
115 DERANI, Cristiane. Função ambiental da propriedade. Revista de Direitos Difusos , Liberdade, São Paulo, v. 3.out/2000, p. 267.
132
retido e Apelação não providos. (MINAS GERAIS, TJ, 10ª Câm. Cível; Aci nº 1.0024.03.116208-4/001, Rel. Des. Pereira da Silva, 2009, grifo nosso)116
E ainda:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - DECISÃO QUE CONFERE LIMINAR PARA DESOCUPAÇÃO DE IMÓVEL POR INTEGRANTES DO CONHECIDO MOVIMENTO DOS SEM TERRA (MST) - PREQUISITOS PRESENTES - REGULARIDADE DO ATO - AGRAVO IMPROVIDO. O fato de o imóvel encontrar-se sem utilização pode evidenciar o descumprimento da função social estabelecida pela Constituição, mas não legitima a ocupação clandestina pela via da invasão coletiva e organiza da. As medidas cabíveis para forçar o atendimento do preceito constitucional devem partir da autoridade pública" (RT 739/425 - TARS). No caso vertente, releva notar que a prova milita em prol da agravada, quando restou induvidosa sua posse e a produtividade do imóvel, objeto do esbulho (MINAS GERAIS, TJ, 10ª Câmara Cível; Ag Inst 0301707-4, Rel. Des. Nepomuceno Silva, 2000).117
APELAÇÃO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. REQUISITOS SATISFEITOS. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. DESCUMPRIMENTO. INVASÃO. AUTOTUTELA. VEDAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I) A inviolabilidade da propriedade é direito fundamental, nos termos do art. 5° da Constituição da República, garantido, também, pela Carta Política, no inciso XXII do mesmo dispositivo. II) Se a propriedade não atende à sua função social, não cabe aos particulares usurparem as atribuições do Estado de fazer cumprir o disposto no art. 5°, XXII I. III) Ao Poder Judiciário cabe zelar pelas garantias constitucionais, mas não pode corroborar com aqueles que se arvoram em fazer as v ezes do Estado, em verdadeiro exercício arbitrário das próprias raz ões . IV) Os movimentos sociais não possuem legitimidade sob a ótica dos direitos fundamentais, quando existem mecanismos suficientes na ordem jurídica para que a função social da propriedade seja observada. V) Recurso conhecido e provido. (MINAS GERAIS, TJ, 15ª. Câmara Cível. 2006, grifo nosso).118
Neste ponto, é oportuno trazer a lume artigo publicado no Jornal Estado de
Minas, edição de 18/5/2000, da lavra do Professor Antônio Álvares da Silva, da
Faculdade de Direito da UFMG:
Os Juízes não podem descumprir a lei com base nas questões sociais, porque não têm poderes para isto. Se assim agissem, complicariam muito mais em vez de resolver os conflitos coletivos. Cabe aqui a ação do Estado que é, em última análise, o representante de todos nós, que nos cobra tributos e nos impõe deveres, exatamente para dividir os encargos sociais com todos os membros da sociedade.
116 MINAS GERAIS, TJ, 10ª Câm. Cível; Aci nº 1.0024.03.116208-4/001, Rel. Des. Pereira da Silva, 2009. 117 MINAS GERAIS, TJ, 10ª Câmara Cível; Ag Inst 0301707-4, Rel. Des. Nepomuceno Silva, 2000. 118 MINAS GERAIS, TJ, 15ª. Câmara Cível. ACi n. 1.0024.03.999614-5/001(1) - Belo Horizonte-MG; Des. Bitencourt Marcondes, 2006.
133
Se o Estado não quer desocupar terrenos ocupados, por que não desapropria a área invadida por quem não tem onde morar? Se as crianças vão ficar desabrigadas (e vão mesmo) por que não promove a construção de casas populares? Se a Fazenda Tangará em Uberlândia foi invadida e se sua desocupação pode custar sangue, cumpre à Administração Pública decidir: ou devolvê-la a seu proprietário ou desapropriá-la na forma prevista na Constituição e entregá-la aos sem-terra, como uma forma de divisão de bens, também necessária ao equilíbrio social. Num estado democrático, o povo é livre, inclusive para fazer as leis. Se achamos que a ordem social está errada, então vamos mudá-la fundamentalmente, criando um novo sistema jurídico, com o qual se faça melhor justiça coletiva. Pode-se até mudar o conceito de propriedade privada imóvel, limitando-a a uma certa dimensão e desapropriando o restante, desde que tais mudanças se façam democraticamente. O que não se pode fazer é descumprir a ordem jurídica, nem transferir para o Judiciário uma responsabilidade que não é sua. Nossas leis estão erradas? Então vamos mudá-las. É para isto que existe o Congresso Nacional. Mas respeitá-las, enquanto existirem é uma obrigação de todos nós. (JORNAL ESTADO DE MINAS, 18 de maio de 2010).
Portanto, deve-se ter em mente que as questões possessórias de invasões
promovidas por MST e outros movimentos não devem ser analisadas sob o enfoque
de questões ideológicas com objetivos muito além do mero cumprimento de um
ditame constitucional, que visam atender outros princípios totalmente distintos e que,
neste viés, precisam ser combatidos por implicarem, hoje, em descumprimento das
leis vigentes nos país.
E não é através de invasões que vamos obrigar os proprietários a cumprir a
função social, mas através de mecanismos legais, tais como, imposto progressivo,
edificação compulsória, desapropriação-sanção, e outras formas a serem definidas
em lei.
Como já dito alhures, a invasão de posse alheia pode não redundar em
cumprimento de função social alguma, v.g., áreas de preservação permanente ou
invasão de imóveis tombados como patrimônio histórico, ao contrário, podem
implicar em um atentado concreto ao interesse ou função social esperada para
aquela propriedade. Pelo que, não é crível que a inserção do princípio da função
social na Constituição da República tenha sido uma carta branca para que alguns
membros da sociedade se arvorem benfeitores dos pobres e oprimidos e, assim,
façam justiça com as próprias mãos.
E surge então a indagação: o proprietário efetivamente desidioso, no
cumprimento das suas funções, sair vitorioso neste tipo de conflito não fere o
sistema legal vigente? Não se levarmos em conta que poderão, contra ele, serem
intentadas as ações civis públicas e até mesmo as ações populares, que podem
134
também ser manejadas para a defesa dos direitos sociais, especialmente por se
constituir em instrumento de gestão da coisa pública, e a função social, sendo um
interesse difuso, legitimaria a intervenção do Ministério Público.
Assim sendo, em não cumprindo uma função social, poderá não somente o
Ministério Público, mas outros entes legitimados para tanto, promover as ações que
cobrem do proprietário desidioso o cumprimento da função. Lembrando que ele
poderá sim perder a propriedade e a posse em razão da desapropriação-sanção.
6.6 A posse maxiqualificada para fins de usucapião
Foge do escopo do presente trabalho uma análise mais pormenorizada da
usucapião. Entretanto, vale dizer que é notório que um dos elementos primários da
usucapião, qual seja, a posse, em razão dos argumentos já expendidos, sofre
enorme influência do princípio da função social.
A doutrina já tem desenvolvida e sedimentada a teoria da “posse qualificada”
como requisito essencial para fins de usucapião.
Nos dizeres de Penteado (2000)119:
A posse exigida para fins de usucapião é a posse qualificada. Notadamente, deverá ser contínua, inconteste, mansa e pacífica, e com intenção de ter a coisa como sua. Fala-se, por conta disso, de posse ad usucapionem. Não é qualquer posse a apta a desencadear o efeito aquisitivo da usucapião, mas a posse qualificada por estas características. Entre elas está o fato de que se deve possuir animo domini, ou seja, com a intenção de ter a coisa como sua, o que leva a doutrina a falar também em posse pro suo. (PENTEADO, 2000, p. 267).
Grosso modo, a usucapião é uma forma de transformar uma posse em
propriedade, de forma e modo a permitir seu uso, gozo, disposição e reivindicação,
pela via petitória.
Pelo que, se conclui claramente que uma das céleres formas da função
social da posse se tornar perfeita, se dá através da ação de usucapião.
É fato que a posse efetiva de um determinado bem, por si só, poderia levar à
conclusão da intenção do seu possuidor de se conferir ao bem uma função, qual
119 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas . São Paulo: Editora RT, 2008. p. 267.
135
seja, o uso.
E este uso, se efetivo, além do mero domínio ou propriedade, propicia
enormes vantagens à sociedade, ou seja, a posse por si só contempla uma função
social que justifica a sua proteção, tal e qual inserida no sistema legal vigente.
Com a inserção da função social no arcabouço jurídico da posse, entendemos
que a posse para fins de análise e deferimento da usucapião deixa de ser
meramente “posse qualificada” e passa a ser “posse maxiqualificada”.
Ou seja, além do possuidor ter que demonstrar que a sua posse é
“qualificada”, ou seja, que ela é contínua, inconteste, mansa e pacífica, e com
intenção de ter a coisa como sua, deverá demonstrar cabalmente ser uma “posse
maxiqualificada”, que já cumpre há anos a função social do bem que está à sua
disposição e cuja propriedade pretende convalidar.
E esta qualificação extra, qual seja, o cumprimento da função social, não
precisa ser inserido no Código Civil ou Código de Processo Civil, já que, por esforço
de interpretação firmado neste trabalho, tal “maxiqualificação” é imposta por força de
princípio constitucional.
Outra não poderia ser a conclusão pela interpretação do sistema legal como
um todo coerente. Se o proprietário pode perder a tutela ou guarida legal se não
cumpre a função social da sua propriedade, porque o sistema deveria, em viés,
convalidar a propriedade para o possuidor que igualmente não cumpre com a função
social?
E a posse com o adereço de comprovação do cumprimento da função social
passa a ser, portanto, um dos fundamentos essenciais para o deferimento da
usucapião. Até mesmo porque é possível que um possuidor, há anos exercendo tal
posse, não tenha conferido ao bem imóvel urbano, um uso conforme determinado
no Plano Diretor ou Estatuto da Cidade, ou ainda, que possuindo imóvel rural, não
cumpra os ditames constitucionais de aproveitamento, proteção ambiental, etc.
Ou seja, o possuidor também pode ser desidioso no cumprimento da função
social esperada. Pelo que, entendemos que, em qualquer das modalidades de
usucapião, a saber: (a) ordinária e (b) extraordinária, (c) especial rural (ou pro
labore), (d) especial urbana individual e (e) usucapião especial urbana coletiva;
além dos requisitos de posse longeva, a título de dono, mansa, pacífica e inconteste
de bem por determinado período de tempo, deverá o possuidor demonstrar também
o atendimento ao interesse social para propiciar o deferimento da ação de
136
usucapião.
Pode-se afirmar então que o sistema estabeleceu hipóteses em que a posse
maxiqualificada por sua função social é digna de uma proteção especial em
detrimento do proprietário inerte. A posse serve à vida e suas interrelações,
merecendo proteção aquele que utiliza o bem no sentido que a sociedade
estabeleceu.
O princípio da função social aplicado à posse dá conta de que os sujeitos
das situações jurídicas possessórias dispõem das prerrogativas dela não apenas e
tão somente em benefício próprio, mas que o seu exercício deverá ocorrer também
se tendo em mente o interesse social e não existe interesse em convalidar a
propriedade nas mãos de um possuidor desidioso.
Vale dizer que, se no exercício da posse não for cumprido o seu elemento
essencial (função social) não gozará o possuidor do amparo ou da tutela
constitucional pertinente. A posse também não será tutelada pelo sistema.
137
7 CONCLUSÃO
No contexto jurídico atual, com a promulgação da Constituição da República
de 1988, não é mais possível tratar da propriedade e da posse ignorando a sua
funcionalização.
A função social da propriedade deixa de ser um elemento limitativo e exterior
ao direito para passar a compor o elemento intrínseco e normativo do direito de
propriedade.
Isto posto, a função social da propriedade não é mera limitação ao direito,
mas sim, um de seus elementos essenciais e constitutivos, moldando o seu
conceito.
A análise do cumprimento efetivo da função social se dará conforme
legislação constitucional e infra, bem como as consequências do seu
descumprimento.
A propriedade que não atender à função social que dela se espera não
poderá ser plenamente amparada ou tutelada pela ordem jurídica, o que pode
chegar ao cúmulo de acarretar na impossibilidade de sua legitimidade ou proteção,
mas tal somente pode ocorrer por força de lei, e não por mero esforço interpretativo.
Portanto, discordamos de Fachin (1988b)120 que, extremando a linha
argumentativa, chega ao entendimento de que com relação à propriedade que não
cumpre a função social, não haveria sequer a necessidade de indenização em caso
de “arrecadação”, concluindo que, onde não se cumpre a função social, não existe o
direito de propriedade:
Se, ao invés de a propriedade rural ter uma função social, ela se tornar função social, concluir-se-á que não há direito de propriedade sem função social. Essa concepção poderia permitir a um Estado democrático arrecadar os imóveis rurais que sejam enquadráveis nessa categoria sem indenização. Se não há direito, logo, não há o que indenizar. Entender, hoje, que não há propriedade rural sem função social é construção teórica correta, mas cuja base jurídica ainda deve ser conquistada. (FACHIN, 1988b, p. 56).
120 FACHIN, Luiz Édson. Terras devolutas e a questão agrária: anotações preliminares para um ensaio. Revista dos Tribunais , v. 629, mar./1988b, p. 56.
138
Apesar de compreendermos a linha de raciocínio esposada por Fachin
(1988b), não há como se defender, com base no arcabouço jurídico vigente e atual,
a arrecadação, pura e simples, de uma propriedade por falta de cumprimento da
função social. E tal se dá por várias razões, seria necessário que a função social que
se espera daquela propriedade estivesse claramente estabelecida e não meramente
deduzida de uma interpretação axiológica. Além disso, deveria o seu proprietário ser
compelido ao cumprimento da função social, dando-lhe a oportunidade necessária
para tal mister, como aliás se prevê do Estatuto da Cidade. E mais, somente então,
descumprindo o que se espera, o único resultado ao proprietário reincidente é o que
está previsto na legislação (Constituição da República), ou seja, a desapropriação
com indenização em títulos da dívida pública, parcelado em vários anos e não uma
mera “arrecadação”.
Portanto, não há, atualmente no nosso ordenamento jurídico, possibilidade de
se decretar a “arrecadação” de qualquer propriedade, nem mesmo sob a alegação
de descumprimento da função social que dela se espera.
Pensar de forma diferente implica em realizar um raciocínio jurídico
incompleto. Acaso o legislador constitucional quisesse permitir a perda ou a
arrecadação da propriedade face ao descumprimento da função social, deveria tal
autorização estar claramente inserida nos ditames constitucionais.
E, a nosso sentir, uma disposição desta natureza implicaria um verdadeiro
contrassenso, onde a função social suplantaria o próprio direito, o que não é
condizente com o legalmente estabelecido.
Vale ressaltar que a função social não é uma regra moral, é uma regra
jurídica, direcionada ao legislador e ao titular do direito, não é uma “cláusula mágica
objeto de uma exaltação esterilmente apologética”.121
Concluindo, as consequências do descumprimento da função social da
propriedade não se limitam àquelas expressamente arroladas pelo constituinte, mas
devem ser delimitadas também pela legislação infraconstitucional. Como o princípio
da função social integra o próprio conceito de propriedade a conclusão é de que
apenas esta propriedade funcionalizada merece a ampla e plena proteção da ordem
jurídica.
121 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional . São Paulo: Ed. Renovar, 2008. p. 938.
139
Quanto à questão da posse, o princípio da função social a ela se aplica
totalmente, por força de interpretação coerente do próprio sistema. E em assim
concluindo, deverá o possuidor, em todas as demandas que for parte, comprovar o
cumprimento da função social.
A posse qualificada para fins de usucapião ganha mais nova qualificadora,
passando a ser considerada como posse maxiqualificada, incluindo assim, além dos
requisitos anteriores de posse contínua, inconteste, mansa e pacífica, e com
intenção de ter a coisa como sua, passa a obrigatoriamente ter que demonstrar o
cumprimento do princípio da função social.
De igual modo, deverão os possuidores, quando autores de demanda de
proteção possessória, de pronto, demonstrar o cumprimento da função social da
coisa que possuem. Os ocupantes de áreas, mesmo sem qualquer intenção de
aquisição de propriedade, também deverão cumprir a função social da posse, sob
pena de não lhe ser guarnecida a tutela do sistema vigente, podendo inclusive,
perder a proteção possessória inerente.
Concluindo que a função social constitucional abrange a posse, torna-se
necessário tê-la como paradigma para uma nova análise aprofundada de toda a
teoria possessória, desde as ações possessórias e petitórias, da usucapião.
Quanto à questão das ações possessórias ou reivindicatórias, deverá o
magistrado, no caso concreto, além dos demais requisitos processuais e de direito
material pertinente, atentar para a questão do cumprimento ou não da função social
tanto por parte do autor, como do réu, para melhor decidir a questão.
Em cada caso concreto deverá ser analisado o cumprimento da função e se
isto não ocorrer e o titular de direito de posse inadimplente com a sua função social
vier a pleitear judicialmente a proteção deste direito, v.g., via ação de usucapião,
deverá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a vistoria do
bem para verificar o cumprimento da sua função social.
É comum a percepção de que o proprietário que não desenvolve a função
social da sua propriedade corre grandes riscos de suportar a posse do bem por
aqueles que dela necessitam. E a grande maioria dos conflitos entre proprietários e
possuidores desemboca nesta vala comum: proprietário sem cumprimento da função
social, normalmente imóveis abandonados, e possuidores que dela utilizam para fins
de moradia ou utilização de necessidades básicas.
140
Se, durante um processo judicial, provar-se e concluir-se que o princípio não
era atendido pelo proprietário, o juiz deverá julgar a ação de modo a não privilegiar a
atitude desconforme ao direito. De igual modo, se constatado no bojo do processo
que o possuidor não cumpre a função social, deverá ele não ser protegido.
Em havendo descumprimento do princípio da função social seja da
propriedade ou da posse, várias providências poderão ser tomadas, tanto pelo
particular quanto pelo poder público, seja através de ações populares, ações civis
públicas, ações de obrigação de fazer, dentre outras.
Também poderão ser adotadas todas as penalidades legais estabelecidas no
Estatuto da Cidade, para casos de imóveis urbanos ou do Estatuto da Terra para
imóveis rurais.
Sendo a propriedade um bem escasso, o ideal é que todo aquele que detiver
a propriedade ou a posse de qualquer bem se conscientize da escassez e da
situação privilegiada em relação aos demais e que, com sabedoria, exerça os
poderes de usar, gozar, dispor e reivindicar, tudo em prol de seu interesse pessoal
e, por conseguinte, de toda a coletividade.
É deveras importante promover um estudo apurado da propriedade, isento de
preconceitos e sob a nova roupagem da função social. Importante também não se
olvidar que a maioria das economias que compõem o mundo atual foi estruturada
em torno da propriedade privada e que a ordem jurídica, ao final das contas, acabou
por servir de proteção e escudo dos interesses dos privilegiados detentores da
propriedade privada em detrimento daqueles que não têm acesso a ela, com
tendências à perpetuação do status quo.
Pelo que, somente através da ordem jurídica e sua nova interpretação será
possível reduzir a perversa realidade da desigualdade, e o princípio da função social
pode ser o nascedouro desta nova realidade, permitindo o retorno de parte dos
benefícios desta propriedade à sociedade como um todo.
Entretanto, tal interpretação não pode dar azo a permitir que grupos
organizados de pessoas utilizem dos falsos argumentos de cumprimento da função
social para promover a justiça através de suas próprias mãos.
Assim sendo, o princípio da função social deverá ser analisado sempre com
cautela, tendo-se em mente a segurança jurídica necessária sem a conivência com
as questões ideológicas ou axiomáticas e tendo-se em mente que a Constituição da
República estabeleceu um Estado Democrático de Direito, onde deverá ser
142
REFERÊNCIAS
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