a religiÃ_o, o estado, a famÃ-lia

25
A Religião, o Estado, a Família Carlos Marighella 4 de Julho de 1946 Primeira Edição: Discurso pronunciado na sessão de 4 de julho de 1946, na Assembléia Constituinte, por ocasião da discussão do projeto constitucional. Fonte: Problemas - Revista Mensal de Cultura Política nº 2 - Setembro de 1947 . Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo , Dezembro 2007. Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License. A bancada do Partido Comunista já tem ocupado a tribuna mais de uma vez para dar sua opinião sobre o mesmo projeto, depois que no plenário foi lido a declaração de voto pelo ilustre Deputado Caíres de Brito. Dizíamos, então, que o projeto constitucional era reacionário, falho e insuficiente, preso ainda a fórmulas antiquadas, sem ver a realidade brasileira, assegurando a hipertrofia do Executivo, mantendo um velho instrumento de estagnação e retrocesso como o Senado, negando o direito de voto a praças de pré e aos analfabetos, sujeitando a justiça eleitoral ao Poder Executivo, negando a autonomia dos municípios, negando o direito de greve, passando para uma tímida repressão aos trustes e monopólios, em vez de impedi-los; não abrindo perspectivas para liquidação do monopólio da terra, fonte do atraso de todo o nosso povo,

Upload: gildasio-junior

Post on 12-Nov-2015

214 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

...

TRANSCRIPT

A Religio, o Estado, a Famlia

Carlos Marighella

4 de Julho de 1946

Primeira Edio: Discurso pronunciado na sesso de 4 de julho de 1946, na Assemblia Constituinte, por ocasio da discusso do projeto constitucional. Fonte: Problemas - Revista Mensal de Cultura Poltica n 2 - Setembro de 1947 . Transcrio e HTML: Fernando A. S. Arajo, Dezembro 2007.Direitos de Reproduo: A cpia ou distribuio deste documento livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

A bancada do Partido Comunista j tem ocupado a tribuna mais de uma vez para dar sua opinio sobre o mesmo projeto, depois que no plenrio foi lido a declarao de voto pelo ilustre Deputado Cares de Brito.

Dizamos, ento, que o projeto constitucional era reacionrio, falho e insuficiente, preso ainda a frmulas antiquadas, sem ver a realidade brasileira, assegurando a hipertrofia do Executivo, mantendo um velho instrumento de estagnao e retrocesso como o Senado, negando o direito de voto a praas de pr e aos analfabetos, sujeitando a justia eleitoral ao Poder Executivo, negando a autonomia dos municpios, negando o direito de greve, passando para uma tmida represso aos trustes e monoplios, em vez de impedi-los; no abrindo perspectivas para liquidao do monoplio da terra, fonte do atraso de todo o nosso povo, e, por fim, no assegurando a completa separao entre a Igreja e o Estado.

Fizemos criticas ao projeto exatamente por esses motivos. Hoje, coube-me a honra de debater, em nome da minha bancada, o ponto a que acabo de referir-me a separao da Igreja do Estado. Nas crticas que aduzimos, naturalmente no envolvemos a Grande Comisso, em seu conjunto, uma expresso da cultura e da notabilidade do nosso povo, mas que, evidentemente, no pde elaborar projeto capaz de satisfazer s nossas condies, e, por isso mesmo, de transformar-se em Constituio que encarne a realidade brasileira, que impea os poderes ditatoriais e, tambm, evite a volta da reao e do fascismo, assegurando nossa Ptria, progresso e democracia.

Sr. Presidente, como tenho de me referir, particularmente, separao entre a Igreja e o Estado, devo analisar os artigos do projeto relacionados com esse assunto art. 159, 9, 11 e 13 e art. 164, 37 e 38. Importante, para ns, o confronto dos dispositivos anlogos das Constituies de 1934 e 1891.

Tomemos o artigo do projeto de 1946 atinente liberdade de conscincia, e do teor seguinte:

" inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, e garantido o livre exerccio dos cultos religiosos, desde que no contravenham ordem pblica ou aos bons costumes. As associaes religiosas adquirem personalidade jurdica na forma da lei civil". (Art. 159, 9.).

A Constituio de 1934, no seu artigo 113, item 5, diz mais ou menos a mesma coisa quanto liberdade de religio e liberdade de conscincia e de crena. Mas a de 1891, no artigo 72, 3., tem redao mais precisa, indicando maior progresso que o projeto de 1946:

"Todos os indivduos e confisses religiosas podem exercer pblica e livremente o seu culto, associando-se, para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposies do direito comum". (Art. 72, 3.).

O dispositivo do projeto de 1946 com as restries que estabelece no atinente ordem pblica e aos bons costumes, d, mais uma vez, polcia do Brasil poderes para intervir nas questes relativas religio e impedir o livre exerccio dos cultos religiosos. No nos devemos esquecer de que, durante o longo perodo do Estado Novo eram os Centros espritas fechados sob alegao de constiturem focos de agitao. Esse mesmo perigo correremos se, por acaso, inadvertncia ou imprevidncia, sagrarmos o que ficou assentado no dispositivo do projeto constitucional de 1946.

Verifica-se, Sr. Presidente, do confronto entre o projeto ora em debate e a Constituio de 1891, que esta leva a palma.

Se analisarmos o artigo referente ao casamento civil, tambm haveremos de ver que a vitria cabe ainda quela Constituio, porque o art. 159, 11, do projeto, declara o seguinte:

"O casamento ser civil, e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao casamento civil, desde que se observem os impedimentos legais deste. . ."

E acrescenta, por ltimo, que o registro civil " gratuito e obrigatrio".

A Constituio de 1934, no art. 146, ficou, mais ou menos, nos termos do dispositivo do projeto atual. Entretanto, a de 1891, no art. 72, 5 4. situa a questo de forma muito mais clara e decisiva, afirmando que "a Repblica s reconhece o casamento civil", evitando assim de modo completo, qualquer ligao que, nesse sentido, se pretenda estabelecer entre a Igreja e o Estado.

Em relao ao ensino, enquanto o projeto de 1946 determina, no mesmo art. 159, no 13, que "o ensino religioso, nas escolas oficiais, constituir matria dos seus horrios", a Constituio de 1891, no art. 72, 6., diz, precisamente, que "ser leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos pblicos".

Mais uma vez observa-se que a Constituio de 1891 supera o projeto em debate.

Perceberemos, ainda o dedo dos remanescentes do feudalismo, pretendendo, no ano da graa de 1946, encobrir suas tentativas de manter o Estado ligado Igreja, se formos ao art. 193, item III do projeto, o qual veda Unio aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios:

"III Ter relao de aliana ou dependncia com qualquer culto ou igreja, sem prejuzo da colaborao recproca em prol dos interesses coletivos".

O texto correspondente da Constituio de 1891 Art. 72, 7. prescrevia :

"Nenhum culto ou igreja gozar de subveno oficial, nem ter relaes de dependncia ou aliana com o Governo da Unio, ou dos Estados".

Ora Srs. Constituintes, ainda uma vez constata-se, do cotejo desses dispositivos, que a Constituio de 1891 tambm, leva a palma sobre o atual projeto.

As Relaes Entre a Igreja e o Estado

Na verdade, Sr. Presidente, uma tese precisa ser debatida aqui: a de que nem sempre a Igreja esteve ligada ao Estado, como, tambm, nem sempre esteve separada dele.

Assim como nem sempre existiu unio da Igreja com o Estado, nem a sua separao, necessrio acentuar que o Estado tambm nem sempre existiu. que o Estado no seno a resultante dos antagonismos de classes; e, mais, a instituio que visa refrear esses mesmos antagonismos. Como instrumento de domnio de classes, tem ele de valer-se de todos os meios para impor a vontade das classes dominantes sobre as dominadas.

Imposto, polcia, cadeia, tribunal, so como que os quatro pontos cardeais do Estado, instrumento de dominao de classes. E no deixa, tambm, de valer-se de um outro meio, exatamente a religio.

Lenin afirmava e tenho de citar Lenin porque estou fazendo a demonstrao de uma tese materialista-dialtica:

"A religio um aspecto da opresso espiritual que pesa sempre e por toda a parte sobre as massas populares submetidas pelo trabalho perptuo em proveito de outrem, pela misria e a solido. A f em uma vida melhor, no alm, nasce, inevitavelmente, da impotncia das classes exploradas contra os exploradores tanto quanto a crena nas divindades, nos diabos, nos milagres, etc. . . nasce da impotncia do selvagem em luta contra a natureza".

Se a religio nasce dessa impotncia do selvagem contra a natureza pelo seu desconhecimento dos fenmenos, ou das causas que explicam os fenmenos dessa mesma natureza, e se a religio serve, tambm como instrumento de opresso das classes dominantes, claro que o Estado, como instrumento de dominao de classes, no poderia de maneira alguma, deixar de parte a utilizao da religio; porque, como diz Marx:

"A religio o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem corao, bem como o esprito de uma civilizao da qual se excluiu o esprito. Ela o pio do povo".

Quer dizer: a religio adormece, a religio faz que os explorados no se possam erguer contra os seus exploradores, a no ser quando se tornam cientes da prpria explorao e adquirem a conscincia da classe. Mas, assim como a religio era utilizada pelo Estado, a Igreja o foi. O mesmo aconteceu com o Cristianismo. Entretanto, como a tese que procuro demonstrar de que o Estado nem sempre se tem mantido ligado Igreja e religio, faz-se mister, no estudo do incio do Cristianismo, observar que este representou uma religio de deserdados, de escravos e, por isso mesmo, se ops ao Estado durante muito tempo.

Era de Kautsky, ao tempo em que era marxista, a seguinte interpretao :

"A igreja crist tem sido uma organizao de domnio, ora no interesse de seus prprios dignitrios, ora no interesse dos dignitrios de outra organizao, o Estado, onde este conseguiu obter o controle da igreja. Quem batesse estes poderes teria tambm que bater a Igreja. A luta pela Igreja, bem como a luta contra a Igreja, tem sido, por conseguinte, uma causa de partido, qual se acham ligados os mais importantes interesses econmicos".

Como afirmava, porm, Sr. Presidente, que o Cristianismo estava em seu incio colocado como a religio dos explorados, dos dominados, devo fundamentar a assertiva. E o que podemos fazer, se tomarmos a Bblia e a compararmos com os Evangelhos escritos poca em que o Cristianismo era ainda uma religio de escravos, e com os Evangelhos da poca em que o Cristianismo j constitua religio do Estado.

O Imperador Diocleciano sabia, perfeitamente, que no contava mais com os exrcitos infiltrados de cristos que no mais empunhavam o gldio romano e, sim, a cruz, e que no obedeciam s ordens dos csares romanos. Foi Constantino, chamado o Grande, pelos clericais, quem compreendeu ser o nico recurso transformar o cristianismo em religio do Estado, e o fez no sculo IV.

No tempo, portanto, em que ainda no era religio do Estado, dizia Jesus, no Evangelho de So Lucas, escrito nos princpios do sculo II:

"Dificilmente entraro no Reino de Deus os que tm riquezas. Porque mais difcil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus. (XVIII 24-25.).

Quer dizer, o problema levantado por Jesus no era o do rico ser mau, nem o do rico no ser religioso, mas, precisamente, o fato do rico ser rico, do rico ser explorador.

Era a mesma coisa que afirmava Jesus, no Sermo da Montanha:

"Bem-aventurados os pobres, porque deles o Reino de Deus; bem-aventurados os que tm fome, porque sero saciados; mas ai dos ricos! ai dos que esto fartos, porque tero fome! ai dos que riem agora, porque depois choraro!" (Lucas VI-20).

o mesmo problema, portanto: o rico a ser castigado, no porque seja mau, mas, precisamente, por ser rico e por ser explorador.

J no Evangelho de So Mateus, escrito no sculo IV, em que a religio crist passou, por determinao de Constantino, a ser religio do Estado o Sermo da Montanha sofre alterao: no se fala mais em bem-aventurados os pobres; fala-se, agora, em "Bem-aventurados os pobres de esprito". . . o que, na realidade, no tem sentido nenhum.

Mas a religio crist, o cristianismo, adotado como religio do Estado, serviu de sustentculo a todos os senhores de escravos e a todos os dominadores da Idade Mdia e do feudalismo. A filosofia escolstica a que servia a esses desgnios de explorao dos senhores de terras e dos bares feudais.

Quando a burguesia se levantou na Frana contra o feudalismo, insurgiu-se, precisamente, contra a religio, que fora o esteio de todos os senhores feudais. A, ento, a prpria burguesia revolucionria que pretende estabelecer uma separao entre a igreja e o Estado.

Antes disso mesmo, na Alemanha feudal, tivemos a reforma de Lutero, que se ergueu contra a unio existente entre os senhores e bares feudais de ento e a Igreja. Em 1523 e 1525, a Histria pde registrar movimentos da pequena nobreza e tambm dos camponeses, inspirados na reforma luterana. Mas Lutero, que representava os interesses da burguesia, no foi capaz de levar adiante sua reforma, passando-se, com armas e bagagens, para a prpria nobreza, e a religio luterana ficou, ento, como religio do Estado, dentro da Alemanha.

Na Frana, Calvino pregou, tambm, sua reforma, que, no fundo, representava as aspiraes da burguesia que se insurgia contra os senhores feudais no conseguindo, porm, a vitria em sua terra natal. Mas o calvinismo se espalhou como religio, principalmente pela burguesia de pases como a Holanda e Blgica. E porque no tivesse conseguido a vitria, a burguesia, no tempo de Calvino, em 1789, por ocasio da Revoluo Francesa, levantou-se muito mais seriamente contra a religio dando lugar ao materialismo do Sculo XVIII. Mas depois que a burguesia assegura o seu poder, reprimindo a religio ou estabelecendo com razes mais profundas a separao entre a Igreja e o Estado, porque isso interessava a ela prpria, como classe, para que se libertasse daquela outra que o dominava anteriormente logo a vemos numa posio contrria, quando o proletariado comeou a aparecer como classe em si e para si.

Depois da revoluo de 1848 a burguesia francesa, no estava mais interessada em manter o materialismo do sculo XVIII, em manter a separao entre a Igreja e o Estado. Para que a burguesia explorasse o proletariado lanava mo, novamente, da religio e procurava lig-la ao Estado, embora, sob forma disfarada. o tempo em que surge o positivismo, que uma filosofia reacionria para sua poca, dentro da Frana, porque era uma doutrina criada com o intuito de esmagar o proletariado, a classe mais consequentemente revolucionria, destinada a libertar-se a si mesmo e a toda sociedade.

Eis aqui o que o ilustre historiador russo Scheglov afirma a respeito do positivismo:

"O positivismo de Comte significa um retrocesso em comparao com a filosofia da burguesia progressista e revolucionria, com o materialismo francs do sculo XVIII e com a dialtica de Hegel. Comte expressava o ponto de vista da burguesia j convertida numa classe reacionria,. preocupada em.esmagar a luta revolucionria da classe operria".

E, assim, Sr. Presidente, explica-se porque, quando a burguesia est interessada em manter seu domnio, se vale da religio, procurando lig-la ao Estado.

A Luta Pela Separao Entre a Igreja e o Estado no Brasil

Transplantando para o Brasil, esta mesma situao, podemos dizer que, depois de 1822, quando j havia sido iniciado o movimento pela nossa emancipao poltica, a burguesia ainda incipiente e muito fraca comeava a compreender a necessidade de lutar contra o poder temporal, contra o poder dos Papas, contra a teoria que dizia ser fonte do Direito o Poder Divino omnia potestas a Deo est. Quando j esta situao se verificava dentro do Brasil, pudemos tambm assistir a fatos como o que se deu quando o Papa Leo XII baixou a bula "Preclara Portugaliae", instituindo a Ordem de Cristo para que os Imperadores, dentro de nosso pas, ficassem com atribuies no sentido de nomear bispos e eclesisticos, e a Assemblia Geral de ento reagia contra essa bula, em 1827, por intermdio de uma declarao do Padre Diogo Antnio Feij, de Limpo de Abreu, Bernardo de Vasconcelos e Jos Clemente Pereira.

O parecer da Assemblia Geral dizia o seguinte :

"E quais so esses direitos? A bula os designa; e so, segundo ela, todos os privilgios e direitos sobre as igrejas e benefcios concedidos pelos papas. Mas onde estar o inventrio desses direitos e privilgios que os Reis de Portugal exerciam sobre as igrejas do Brasil, adquiridos por concesso dos papas?

Acaso h sobre a terra outra fonte de onde derivem atributos majestticos que no sejam as leis fundamentais dos imprios?"

A, Sr. Presidente, verificamos precisamente a reao daqueles que, procurando libertar-se do domnio de Portugal, j comeava por no aceitar essa ligao estreita entre a religio e o Estado. Mas, a tendncia para a separao entre a Igreja e o Estado, no Brasil, se aprofunda com o movimento pela implantao da repblica, e justo destacar-se a o papel dos positivistas.

O positivismo que, na Frana, representou um papel reacionrio porque se atirava contra o proletariado, dentro do Brasil representa um papel progressista porque nossa burguesia incipiente que se volta contra os senhores de escravos, que dominavam no tempo do Imprio. Este o carter progressista dos positivistas dentro do Brasil e, por isso, com tanta firmeza se dedicaram luta pela separao entre a Igreja e o Estado.

No so, porm, somente, os positivistas que tm desempenhado papel acentuado, no sentido de separar a Igreja do Estado, no Brasil. H opinies de outros publicistas e filsofos que tambm se colocam dentro do ponto de vista democrtico e justo, adequado a situao em que vive o povo, que precisa de libertar-se e construir a sua prpria grandeza, como o caso do padre Ventura de Raulica, que dizia:

" a religio no nenhum pontfice, sacerdote ou cristo, muito menos pode ser instrumento do governo."

Laboulaye, grande publicista francs que tem toda a razo de ser aqui citado, visto como no materialista, nem tambm adepto do marxismo, afirmava que o Estado nada tem a ver com o fiel ou o crente, mas com o cidado.

O prprio Laboulaye dizia ainda que justo negar-se Igreja a posse da terra, porque um dos motivos que a tem levado e falo aqui, em Igreja, de modo geral a resistir, quanto a essa separao entre a religio e o Estado, que, realmente, tem ela interesses econmicos profundos ligados a essa situao, isto , de proprietria de terras e latifndios.

Sr. Presidente; sustentando o ponto de vista da separao entre a Igreja e o Estado, estamos, necessariamente, nos colocando numa atitude democrtica, de vez que no pode haver democracia sem a liquidao do monoplio da terra, que contra o progresso. Se ainda no conseguimos a liquidao desse monoplio, qual se acha to estreitamente ligado o clero, ou a Igreja, que, pelo menos, desenvolvamos os maiores esforos no sentido de garantir, no projeto constitucional de 1946, a separao entre a Igreja e o Estado, no deixando margem alguma para que os remanescentes do feudalismo tripudiem sobre o nosso povo, servindo-se dos dispositivos introduzidos no referido projeto.

Ns, comunistas, sabemos respeitar as religies; somos pela liberdade completa de conscincia e no desejamos, de forma alguma, que essa liberdade seja utilizada pelos dominadores, pelos fascistas, pelos reacionrios, pelos senhores feudais para acorrentar o nosso povo, miseravelmente, como o tm feito.

No combatemos religies, porque no seria til, proveitoso, nem mesmo cientfico, visto como a religio s desaparecer quando desaparecerem os antagonismos de classe. necessrio compreender que, hoje, todo o povo sofre sem que seus dominadores se lembrem de procurar ver se os que esto sendo explorados so catlicos, positivistas, teosofistas, ateus, ou pertencem a qualquer outro credo religioso. O patro, capitalista explorador, no paga melhor salrio a seus operrios, porque se trata de um catlico se a religio desse patro anti-progressista a catlica. O sistema de explorao o mesmo. A nica diviso que se pode fazer no seio da sociedade realmente entre os explorados e os exploradores.

Da, Senhores Constituintes, a posio do Partido Comunista em querer lutar, com todas as foras da Democracia, como Partido democrata que , para garantir, no Brasil, a liberdade de conscincia, respeitando-se todos os credos, fazendo que se no estabelea privilgio de um credo sobre os demais, ou no se recorra a essa situao, no sentido de impedir a liberdade democrtica e acorrentar mais ainda a nossa gente.

Para encerrar a parte referente liberdade religiosa, vou ler trecho de A. J. de Macedo Soares (que no se confunde com nenhum dos seus homnimos dos tempos atuais) no qual, em folheto publicado em 1879, sob o ttulo "Da Liberdade Religiosa no Brasil", tratou do assunto aqui ventilado:

"A conseqncia da posio da religio em frente do Estado que este, como instituio encarregada de realizar o direito, deve reconhecer a liberdade da religio e garantir as condies necessrias para o seu desenvolvimento".

E, mais adiante:

"A Questo da liberdade religiosa est decidida a favor da democracia e parece que, antes que o sculo XIX se volva nas sombras do passado, ter recebido a consagrao de caso julgado".

Assim, Sr. Presidente, dentro de nossa tese materialista dialtica, interpretamos a separao entre a Igreja e o Estado no considerando de maneira alguma entre eles unio eterna, mas vendo tudo em movimento e ligando sempre esses fenmenos s condies materiais de vida, s relaes de produo, porque religio no coisa que tenha proporcionado a existncia do homem e, sim, porque a vida deste que faz a religio. Quanto ao Estado, como nem sempre existiu, tambm no poderia ser dado aqui como coisa esttica que tivesse sua existncia sempre ligada Igreja ou religio.

Apresentamos emendas ao projeto no que tange separao entre a Igreja e o Estado. J foram publicadas e as defenderemos no momento oportuno, to logo sejam submetidas ao voto do plenrio.

A Constituio e a Famlia

Para terminar o debate acerca do projeto constitucional, consubstanciado nos pargrafos 37 e 38 do art. 164. O primeiro deles diz o seguinte:

"A famlia, constituda pelo casamento indissolvel, tem direito a amparo especial dos poderes pblicos".

Ora, Sr. presidente, a famlia, constituda, por qualquer forma, merece o amparo dos poderes pblicos. Como Representantes do povo e Constituintes de 1946, devemos procurar exatamente a realidade. No adianta firmarmos uma coisa no papel, sendo outra a realidade.

Nunca houve esse casamento indissolvel em todo o desenvolvimento da humanidade. A prpria famlia nunca teve este aspecto esttico, que muitos legisladores lhe atriburam. Sob o ponto de vista materialista-dialtico e da nossa concepo marxista, a famlia tambm evoluiu e tem de se adaptar s condies materiais de vida. No so, alis, somente os marxistas que assim afirmam; ilustre sbio norte-americano que, durante muito tempo, viveu entre os ndios iroqueses na Amrica do Norte tambm adotava esse conceito sobre a evoluo da famlia.

Ouamos a palavra de Morgan:

"A famlia o elemento ativo; nunca permanece estacionria, mas, sim, passa de uma forma inferior a uma forma superior medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para um mais alto".

Isso demonstra claramente, Srs. Representantes, que a famlia, tendo de obedecer a essa evoluo, nem sempre foi o que hoje.

Existia muito antes do casamento monogmico, da famlia monogmica o casamento por grupos a famlia consangnea. E para mostrar, dentro do nosso critrio cientfico, como esta a realidade, posso citar Engels, grande marxista, que to profundamente estudou a evoluo da famlia, numa obra completa como "A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado".

Diz ele:

"De acordo com a teoria materialista, o mvel essencial e decisivo a que obedece a Humanidade na sua histria a produo e a reproduo da vida imediata. Por sua vez, este mvel divide-se em duas partes: de um lado, a produo dos meios de existncia, de tudo o que proporcione alimento, vesturio, habitao e utenslios domsticos e, de outro lado, a produo do prprio homem, a reproduo da espcie. As instituies sociais sob a as quais vivem os homens em determinada poca esto em intima relao com estas duas espcies de produo, o trabalho e a famlia.

Quanto menos desenvolvido est o trabalho, mais restrita a quantidade dos produtos do trabalho e menor a riqueza da sociedade, a ordem social est mais subordinada aos laos de consanginidade".

Sr. Presidente, quer dizer que houve um momento em que a famlia era consangnea, em que no havia barreiras no comrcio sexual em que pais e filhos podiam contrair matrimnio, em que no limite da famlia avs e avs eram ao mesmo tempo maridos e esposas, em que pais e mes eram maridos e esposas igualmente, e, assim, netos e netas, bisnetas e bisnetos.

O grande e primeiro progresso que se realizou na evoluo da famlia foi justamente a proibio do casamento entre pais e filhos, e, em seguida o outro grande progresso a proibio do casamento entre irmos e irms.

Mas, no tempo em que predominava o comunismo primitivo o comunismo espontneo, que existiu na poca da pr-histria da humanidade, o casamento era por grupos e esses laos de consanginidade iam em grau bastante avantajado.

com a famlia punalua que se verifica a proibio de casamento entre irmos e irms, e o progresso que se d em seguida com a chamada famlia sindismica, segundo a classificao de Morgan. Ainda a o casamento por grupos.

Neste momento, o progresso que se faz exatamente que entre os vrios maridos e as vrias mulheres h uma mulher preferida e um esposo preferido, mas podendo o casamento dissolver-se a prazo curto, a qualquer momento, se tanto interessar a um dos cnjuges.

O outro progresso em relao famlia sindismica o da famlia monogmica. Chegamos assim, famlia monogmica dos dias de hoje, que nem sempre foi monogmica, segundo estou demonstrando pela tese que apresento aos Srs. Representantes: famlia monogmica apoiada na propriedade individual.

Quando se passou da propriedade comum, da propriedade coletiva para a individual, o homem que podia desposar, com vrios outros de seus companheiros, dentro das gentes as mulheres que bem quisesse e entendesse, achou que era necessrio, para poder transmitir seus bens de fortuna, determinar quais eram os seus filhos e, por isso, apenas por uma questo de ter estabelecido a propriedade privada, exigiu que a mulher mantivesse a indissolubilidade para com o esposo. Obrigou-a, porm, a ter um s marido. Mas em vez de reservar para si uma s mulher, como seria de esperar, preferiu continuar a viver em poligamia, como ainda hoje vive, pois, na realidade, monogamia indissolubilidade, s para a mulher. Os homens praticam a poligamia, fazem casamentos por grupos, enfim, tudo o que acham que imoral, mas que se julgam com direito de praticar.

Essa, Sr. Presidente, a realidade que precisamos reconhecer, a realidade capitalista, cujas causas residem na propriedade privada dos meios de produo, causas essas que precisam ser estudadas e melhor meditadas para que possamos fazer obra digna de nossos tempos.

A Igreja Catlica nega o divrcio precisamente porque sabe que o adultrio to inevitvel quanto a morte, e o que no se pode remediar, remediado est. bem verdade que o homem, por ter conseguido a propriedade privada, suprimindo o direito materno dos velhos tempos, obteve assim, uma vitria sobre a mulher e, mais, subordinando-a situao de escrava, em que at hoje se encontra.

Fora de dvida, entretanto, que as mulheres vencidas conseguiram, pelo menos, enfeitar as respeitveis cabeas de seus maridos, nica vingana que podem tirar, at que transformemos esta sociedade. Assim, quando a propriedade dos meios de produo passar a ser novamente coletiva, a ser social e no mais como nas velhas pocas do comunismo primitivo, mas dentro da abundncia e da tcnica, quando pudermos utilizar da cincia e dos recursos materiais que possumos, quando, enfim realizarmos essa transformao social, ento haver verdadeira monogamia, no somente da mulher para com o homem, mas tambm deste para com a mulher. balela o que se pretende atribuir Unio Sovitica que conseguiu j estabelecer o socialismo de que ali no h famlia, nem se respeita a famlia. Precisamente por esse motivo, porque ali se estabeleceu essa transformao social, porque os bens de produo passaram para as mos do proletariado, precisamente ali a mulher digna de todo o respeito e pde deixar de se sujeitar s condies em que se encontra dentro do capitalismo, com essa monogamia, que acompanhada, inevitavelmente, de um lado, do adultrio, e, do outro, da prostituio.

No possvel, portanto, pretendamos ignorar a situaro real em que nos encontramos no Brasil. No h a indissolubilidade, a no ser para a mulher. necessrio, pois, coloquemos a mulher no verdadeiro papel digno que lhe compete no somente dentro da famlia, mas tambm fazendo-a participar da produo social, porque o que estabelece essa situao e escravizao da mulher o predomnio econmico. o homem o nico que est a trabalhar ligado produo e que sustenta a famlia, e, por isso, se acha com o direito de fazer todas as imposies sobre a mulher.

Ilustre dama da sociedade carioca, alis catlica, casada, quando pretendeu dissociar-se de seu marido, porque tinha fortuna, pde gastar cerca de quatro a cinco mil contos e casou-se com no menos ilustre cidado da sociedade carioca, tambm catlico, que se dissociou de sua mulher. E novo casamento foi feito, legal. So tidos como figuras de relevo de nossa sociedade e nunca ningum lhes atirou a primeira pedra.

que, Srs. Representantes, o divrcio, no Brasil, privilgio de ricos. A realidade que a grande massa de nossa populao no poder estar a olhar para as textos que so fabricados sem que se verifique o que ocorre.

Dentro do Brasil existem dois milhes de separados por desquite ou separados naturalmente, sem obedecer a nenhuma lei, porque os casamentos no saram como esperavam. Um milho de filhos adulterinos e, mais ainda, um milho de amancebados ou amasiados comuns.

O povo brasileiro no casa, com tanta complicao, com tantos papis; por este vasto interior, para trinta milhes de analfabetos o casamento indissolvel apenas um dogma religioso No disto que precisamos mas ver a realidade.

Os casamentos que se fazem no interior ocorrem quando o padre passa pregando as misses e depois acabam resolvendo-se da melhor maneira porque os pobres que se casam nessas misses, sob a proteo de Deus, quando as coisas no vo l muito bem sabem, sem muita pompa e sem muita gala, resolver sua situao e separam-se naturalmente.

Necessariamente teremos de ver essas coisas e por isso, no poderamos deixar de dar nossa opinio favorvel ao divrcio. No que com o divrcio venhamos resolver os problemas do nosso atraso, porque tudo isso, Srs. Representantes conseqncia do monoplio da terra. Enquanto houver feudalismo dentro do Brasil, claro que haveremos de encontrar essa situao, mas no tenhamos medo de marchar aberta e francamente pelo caminho que est traado diante de ns, que o caminho objetivo de encarar as condies brasileiras.

No podemos, de maneira alguma, ficar a fazer obra de gabinete a discutir dentro de uma Assemblia, com graves responsabilidades, como esta, apenas para atender aquilo que nos dita o dogma da Igreja, o dogma da religio.

Compreendamos o tempo em que vivemos. A matria, realmente, no constitucional, mas da legislao ordinria. No tranquemos, portanto, as possibilidades da soluo deste problema, fazendo passar no projeto de 46 um dispositivo que, evidentemente reacionrio, como o do art. 164, 37 e 38.

necessrio estudar a realidade e deixar possibilidade para que, mais adiante, possamos ter no Brasil o divrcio, facilitando o casamento.

Em Portugal, enquanto no se tinha estabelecido o divrcio, a situao era semelhante do Brasil. Institudo o divrcio, cerca de quatro a cinco mil casos surgiram de uma hora para outra. Mas eram casos que, podemos dizer estavam espera de soluo, ou melhor, iam se resolvendo de qualquer maneira porque a lei no atendia realidade. Mas, logo que o divrcio se transformou em matria de lei, que se verificou? Diminuram os divrcios. De quatro a cinco mil casos, passaram a sessenta e setenta por ano.

Na Unio Sovitica, tambm, quando se estabeleceu o divrcio, milhares e milhares de casos surgiram repentinamente; mas eram remanescentes do capitalismo que havia sido destrudo. Logo depois, quando se regularizou a situao, o divrcio, na Unio Sovitica, vem diminuindo, porque, na realidade, o que o homem aspira monogamia e no s condies estabelecidas, pela opresso negra do capitalismo.

Assim tambm, no Brasil: estabelecido o divrcio, iremos ver que inmeros casos surgiro, mas so esses casos que existem por a encobertos, so esses casos que todo o mundo sente e grande parte da nossa populao sente na prpria carne, mas que a lei no quer encarar. A lei, como afirmava, para ver a realidade. Devemos dedicar-nos a fazer obra altura da nossa poca e que sendo democrtica, estude o problema na forma em que se apresenta e no somente busque introduzir frmulas, como acontece com o projeto de 1946. Se marchamos para a democracia, se estamos sinceramente devotados a respeitar a opinio de nosso povo e acatar a realidade, preciso considerar que a liquidao do monoplio da terra o primeiro passo para chegarmos democracia a que aspiramos. Mas tambm no existir democracia, em hiptese nenhuma, sem a liberdade de culto, sem o casamento civil casamento civil sem nenhuma intromisso da religio, sem o ensino leigo e sem o divrcio.