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Curso de Bacharel em Direito Artigo de Revisão A PROBLEMÁTICA HERMENÊUTICA DO ARTIGO 60, § 4º, IV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E FRATERNAIS THE HERMENEUTICAL PROBLEM OF ARTICLE 60, § 4, IV OF THE FEDERAL CONSTITUTION FOR THE PROTECTION OF FUNDAMENTAL RIGHTS AND SOCIAL FRATERNAL Maílson Marques de Souza Ramos 1 , Evandro José Morello 2 1 Aluno do Curso de Bacharel em Direito 2 Professor Mestre em Direito e Políticas Públicas Resumo A presente pesquisa tem por desiderato investigar se a interpretação da expressão “direitos e garantias individuais”, contida no artigo 60, § 4º, IV da Constituição Federal, que cuida de cláusula pétrea, abarcaria também os direitos fundamentais sociais e fraternais, para conferir-lhes proteção de máxima constitucionalidade. Desta feita, a pesquisa aborda a posição de diversos doutrinadores, que vão desde aqueles filiados a uma interpretação restritiva do aludido dispositivo, para vinculá-lo apenas aos direitos da primeira dimensão dos direitos fundamentais; passando pelos doutrinadores que se posicionam por uma interpretação intermediária; até os doutrinadores que defendem uma interpretação extensiva do artigo constitucional em análise, para açambarcar os direitos da segunda e da terceira dimensões dos direitos fundamentais. O presente artigo buscou também, demonstrar a jurisprudência que aborda a problemática em epígrafe. E assim, com fulcro na doutrina majoritária e na tendência da atual jurisprudência, concluir que a interpretação extensiva é a que mais se coaduna com o cânone constitucional em análise. Palavras-Chave: Cláusulas Pétreas; Direitos Fundamentais; Interpretação. Abstract The present research is to investigate whether the desideratum interpretation of the expression "individual rights and guarantees", contained in article 60, paragraph 4, IV of the Federal Constitution, which takes care of eternity clause, should consist of fundamental social rights and fraternal, to give them maximum protection constitutionality. This time, the survey covers the position of several scholars, ranging from those affiliated to a restrictive interpretation of the mentioned device, to link it only to the rights of the first dimension of fundamental rights; passing by the ideologues that stand for a middle interpretation; even the ideologues who advocate an extensive interpretation of the constitutional article under review, to hog all the rights of second and third dimensions of fundamental rights. This article sought to demonstrate that case-law also addresses the above issue. And so, with Fulcrum on the majority doctrine and in current case law trend, conclude that the extensive interpretation is the one that is in line with the constitutional Canon. Keywords: Immutable Clauses; Fundamental Rights; Interpretation. Contato: [email protected] 1 - Introdução As tensões sociais vividas na atualidade, por consequência dos efeitos do neoliberalismo e da globalização, que geralmente se apresentam como movimentos reacionários ao desenvolvimento e evolução dos direitos fundamentais, nos inspiram a fazer uma releitura de nossas leis e, sobretudo de nossa Constituição. É nesse estado de incerteza, que os legisladores, magistrados, juristas e demais aplicadores do direito devem conhecer o espírito da Constituição, como instrumento de concretização dos direitos fundamentais. A presente pesquisa tem por desiderato estudar os diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, para definir se os direitos fundamentais sociais e fraternais estão ou não, amparados pelo manto protetor das cláusulas pétreas, haja vista a disposição constitucional do artigo 60, § 4º, inciso IV, que define que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os “direitos e garantias individuais”. Os métodos científicos de abordagem foram o histórico e o comparativo. Destarte, o histórico cuidou da investigação da evolução da proteção dos direitos fundamentais e sua correlação com as cláusulas pétreas, por meio dos posicionamentos dos doutrinadores e da jurisprudência. Já o

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Curso de Bacharel em Direito Artigo de Revisão

A PROBLEMÁTICA HERMENÊUTICA DO ARTIGO 60, § 4º, IV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E FRATERNAIS THE HERMENEUTICAL PROBLEM OF ARTICLE 60, § 4, IV OF THE FEDERAL CONSTITUTION FOR THE PROTECTION OF FUNDAMENTAL RIGHTS AND SOCIAL FRATERNAL

Maílson Marques de Souza Ramos1, Evandro José Morello2 1 Aluno do Curso de Bacharel em Direito 2 Professor Mestre em Direito e Políticas Públicas

Resumo

A presente pesquisa tem por desiderato investigar se a interpretação da expressão “direitos e garantias individuais”, contida no artigo

60, § 4º, IV da Constituição Federal, que cuida de cláusula pétrea, abarcaria também os direitos fundamentais sociais e fraternais, para

conferir-lhes proteção de máxima constitucionalidade. Desta feita, a pesquisa aborda a posição de diversos doutrinadores, que vão

desde aqueles filiados a uma interpretação restritiva do aludido dispositivo, para vinculá-lo apenas aos direitos da primeira dimensão

dos direitos fundamentais; passando pelos doutrinadores que se posicionam por uma interpretação intermediária; até os doutrinadores

que defendem uma interpretação extensiva do artigo constitucional em análise, para açambarcar os direitos da segunda e da terceira

dimensões dos direitos fundamentais. O presente artigo buscou também, demonstrar a jurisprudência que aborda a problemática em

epígrafe. E assim, com fulcro na doutrina majoritária e na tendência da atual jurisprudência, concluir que a interpretação extensiva é a

que mais se coaduna com o cânone constitucional em análise.

Palavras-Chave: Cláusulas Pétreas; Direitos Fundamentais; Interpretação.

Abstract

The present research is to investigate whether the desideratum interpretation of the expression "individual rights and guarantees",

contained in article 60, paragraph 4, IV of the Federal Constitution, which takes care of eternity clause, should consist of fundamental

social rights and fraternal, to give them maximum protection constitutionality. This time, the survey covers the position of several

scholars, ranging from those affiliated to a restrictive interpretation of the mentioned device, to link it only to the rights of the first

dimension of fundamental rights; passing by the ideologues that stand for a middle interpretation; even the ideologues who advocate an

extensive interpretation of the constitutional article under review, to hog all the rights of second and third dimensions of fundamental

rights. This article sought to demonstrate that case-law also addresses the above issue. And so, with Fulcrum on the majority doctrine

and in current case law trend, conclude that the extensive interpretation is the one that is in line with the constitutional Canon.

Keywords: Immutable Clauses; Fundamental Rights; Interpretation.

Contato: [email protected]

1 - Introdução

As tensões sociais vividas na atualidade, por consequência dos efeitos do neoliberalismo e da globalização, que geralmente se apresentam como movimentos reacionários ao desenvolvimento e evolução dos direitos fundamentais, nos inspiram a fazer uma releitura de nossas leis e, sobretudo de nossa Constituição.

É nesse estado de incerteza, que os legisladores, magistrados, juristas e demais aplicadores do direito devem conhecer o espírito da Constituição, como instrumento de concretização dos direitos fundamentais.

A presente pesquisa tem por desiderato

estudar os diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, para definir se os direitos fundamentais sociais e fraternais estão ou não, amparados pelo manto protetor das cláusulas pétreas, haja vista a disposição constitucional do artigo 60, § 4º, inciso IV, que define que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os “direitos e garantias individuais”.

Os métodos científicos de abordagem foram o histórico e o comparativo. Destarte, o histórico cuidou da investigação da evolução da proteção dos direitos fundamentais e sua correlação com as cláusulas pétreas, por meio dos posicionamentos dos doutrinadores e da jurisprudência. Já o

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método comparativo, se ateve a comparação dos posicionamentos da doutrina pátria sobre a devida interpretação do supramencionado dispositivo constitucional, bem como a comparação da proteção dos direitos fundamentais por meio das cláusulas pétreas do nosso sistema jurídico pátrio, com os demais sistemas jurídicos estrangeiros.

Assim sendo, com o intuito de cumprir tal escopo, o método de procedimento escolhido foi a profunda pesquisa doutrinária e jurisprudencial.

2 - Histórico dos Direitos Fundamentais

Preliminarmente, impende salientar, que a moderna doutrina diferencia as expressões direitos naturais, direitos humanos e direitos fundamentais. Assim sendo, a doutrina entende que os direitos naturais correspondem aos direitos que a filosofia jusnaturalista atribui a todos os homens; os direitos humanos são os utilizados para a formalização dos tratados internacionais e finalmente os direitos fundamentais são aqueles positivados nas Constituições dos Estados.

Ainda, segundo a boa doutrina, tanto nacional como à alienígena, a expressão gerações de direitos fundamentais seria equivocada, por dar a impressão de substituição de uma geração por outra. Por isso, a boa doutrina, tem preferido a expressão dimensões de direitos fundamentais a gerações de direitos fundamentais. Acolhida também no presente trabalho.

Passa-se agora para a análise da evolução histórica das dimensões dos direitos fundamentais.

Antes da consagração dos direitos do homem como direitos fundamentais, ocorreu um processo histórico que podemos chamar, nas palavras de Ingo Sarlet (2015, p. 37), de “pré-história” dos direitos fundamentais.

O abalizado doutrinador (2015, p. 37 – 40) enaltece a influência das várias filosofias que contribuíram para a consagração dos direitos fundamentais nas constituições do final do século XVIII, que vai desde o pensamento estóico greco-romano, passando pelo pensamento cristão, especialmente com São Tomás de Aquino na Idade Média; bem como com os pensadores dos séculos XVI e XVII, como Hugo Grócio e Thomas Hobbes, até os pensadores do século XVIII, como Jonh Locke, Rosseau e Kant. Em fim, filosofias que foram o embrião da consagração dos direitos fundamentais.

A teorização dos direitos fundamentais da primeira dimensão surgiu da ebulição do pensamento liberal-burguês do século XVIII, que culminou com a positivação dos direitos naturais por meio das cartas e declarações surgidas nesse período, revestindo esses direitos da roupagem de direitos fundamentais constitucionais.

Conceituados como direitos da liberdade açambarcam os direitos civis e políticos. Configuram o status negativus preconizado por Jellinek (apud Bonavides: 2010, p. 564), pois se dirigem a uma abstenção do Estado, para com a esfera da liberdade individual. De inspiração jusnaturalista, correspondem ao direito a vida, a liberdade e a propriedade.

Com a revolução industrial surge a ideia de proteção dos direitos da segunda dimensão de direitos fundamentais, intimamente ligados ao princípio da igualdade, conhecidos como direitos sociais, ganhado força nas constituições formuladas depois da segunda guerra mundial.

Diferentemente dos direitos da primeira dimensão dos direitos fundamentais, assumem a caráter de status positivus, pois o Estado assume a função da realização da justiça social.

A Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919 foram os primeiros ordenamentos constitucionais que estabeleceram os direitos sociais com status constitucional. No Brasil a primeira constituição a ter esse mesmo posicionamento foi a Constituição republicana de 1934.

Em nossa magna carta de 1988, os diretos sociais estão elencados no artigo 6º, a saber: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

No final do século vinte uma nova dimensão de direitos fundamentais ganha notoriedade, são os direitos da terceira dimensão dos direitos fundamentais, conhecidos como direitos de fraternidade ou de solidariedade. Que segundo a teoria de Karel Vasak (apud Bonavides: 2010, p. 569) são identificados como direitos ao desenvolvimento, a paz, ao meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade e a comunicação.

Corresponde a direitos pertencentes a toda coletividade, configurando-se por vezes em indefinidos e indeterminados em relação aos seus titulares.

Acrescenta-se, ainda, que apesar da tradicional doutrina ressaltar as três dimensões dos direitos fundamentais formulada por Karel Vask (apud George Marmelstein: 2014, p. 36 – 38), impende frisar que há doutrinadores que propugnam por uma quarta, quinta, sexta e até sétima dimensões. Como por exemplo, Paulo Bonavides (2010, p. 570 – 593) que entende como direitos da quarta dimensão: o direito à democracia, à informação e ao pluralismo; e como direito da quinta dimensão: o direito à paz.

O constituinte de 1988, a fim de elevá-los ao status máximo de proteção, conferiu aos direitos

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fundamentais o status de cláusula pétrea, porém o fez de maneira tímida, ao estabelecer no artigo 60, § 4º, inciso IV da Constituição Federal a expressão “direitos e garantias individuais”, o que gera a seguinte indagação: será que o alcance da referida expressão abarca apenas os direitos da primeira dimensão, ou vai além, protegendo também os direitos da segunda e da terceira dimensões?

Sobre esta indagação, é que se cuidará o presente trabalho nas linhas seguintes.

3 - Cláusulas Pétreas

3.1 – Noções Conceituais

Cumpre inicialmente, transcrever a semântica das palavras em epígrafe, para depois se ater ao seu sentido jurídico.

Consoante a lição de Francisco Vani Bemfica (2005, p. 5):

“cláusula é uma disposição que faz parte de um Tratado ou de qualquer outro documento público ou particular. Pétrea é o que é da qualidade ou da natureza da pedra, duro, resistente.”

Assim sendo, as cláusulas pétreas configuram-se em dispositivos constitucionais intangíveis, estando a salvos de qualquer reforma constitucional, que venha a abolir ou aviltar seus núcleos essenciais de proteção.

O notável constitucionalista George Marmelstein (2014, p. 273 – 274) cita metáforas para comparar com as cláusulas pétreas. Uma delas é a comparação com os frascos de remédios, que são colocados longe do alcance das crianças, no alto das prateleiras. Destarte, a comparação é perspicaz, pois as cláusulas pétreas pretendem proteger os direitos fundamentais e demais princípios essências da república, dos interesses, nada nobres, de futuros constituintes derivados.

Outra comparação, que o ínclito doutrinador salienta, é a comparação com o livro XII, da Odisséia. Nessa parte da obra, do poeta grego Homero, relata a história de Ulisses, que ao saber que iria passar pela ilha das sereis, pediu que seus marinheiros tampassem os ouvidos com cera, bem como que o amarrassem ao mastro do navio, e que não o desamarrassem, nem se ele assim ordenasse; pois sabia que os cantos das sereias atraiam os navegantes, fazendo com que seus navios naufragassem.

Dessa forma, as cláusulas pétreas podem

ser comparadas a ordem dada por Ulisses, para que não o desamarrassem, pois sabia que esta decisão futura não estaria pautada pela razão; da mesma forma, esses dispositivos, que gozam de máxima proteção constitucional, foram estabelecidos pelo legislador constituinte, para resguardar os direitos fundamentais das emoções e fraquezas momentâneas, ou de interesses escusos e espúrios, que poderiam ser evidenciados por futuras decisões políticas.

As cláusulas pétreas são classificadas como limites materiais ao poder de reforma, haja vista que o processo de iniciativa e aprovação de emendas constitucionais é considerado limite formal; já alguns momentos de instabilidade política, como a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio são considerados limites circunstancias.

De todas as constituições brasileiras, essa é que apresenta o maior rol de dispositivos protegidos pelo manto das cláusulas pétreas. Assim sendo, dispõe o art. 60, § 4º da CF:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de estado

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação de poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.”

As cláusulas pétreas, portanto, visam a proteger o núcleo essencial da Constituição, preservando os valores e princípios fundadores da mesma.

3.2 - Direitos Fundamentais Sociais como Cláusulas Pétreas

Consoante relatado linhas acima, historicamente a Constituição Federal de 1988 é a que apresenta o maior elenco de cláusulas pétreas. Destarte, consoante o magistério de Rodrigo Brandão (2008, p. 40 - 41), a atribuição expressa de status de superproteção constitucional aos direitos e garantias fundamentais é novidade da Constituição Federal de 1988, tendo em vista que as demais consideravam cláusulas pétreas, apenas a forma republicana de governo e a forma federativa de Estado.

Isso porque, o Constituinte de 1988 fora influenciado pela importância que os direitos fundamentais lograram no mundo, bem como por

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causa dos desrespeitos a esses direitos no período de ditadura militar em nosso país, consoante explicação de Eduardo Ribeiro (2012, p. 319)

É assente, o inegável avanço do Constituinte 1988 em elevar os direitos fundamentais aos status de cláusula pétrea, todavia, tal constatação, não afasta os inúmeros embates doutrinários e jurisprudenciais sobre variados temas, que pululam desta fonte jurídica.

E entre esses temas, está o de perquirir se os direitos sociais estão acobertados pelo manto protetor das cláusulas pétreas, haja vista a dicção do artigo 60, § 4º, IV da Constituição Cidadã, que diz que não será objeto da de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

A problemática reside na expressão “direitos e garantias individuais”. Parte da doutrina, arraigada a uma concepção conservadora e liberal, advoga por uma interpretação literal do aludido dispositivo, ao esgrimir por uma interpretação que açambarque apenas os direitos fundamentais relacionados aos direitos da liberdade. A outra parte da doutrina, calcada em uma fundamentação reformadora e social, pleiteia uma interpretação extensiva e sistemática do cânone constitucional, ao defender a sua aplicabilidade também para os direitos sociais.

Entretanto, antes de adentramos no mérito da questão, impede tecer algumas ponderações sobre os termos: “proposta de emenda” e “abolir”, presentes no parágrafo 4º do retrocitado dispositivo.

Quanto ao primeiro termo, o emérito jurista Eduardo Ribeiro (2012, p. 319) chama atenção para a natureza preventiva dessa expressão, pois a mera tentativa de emenda da Constituição por meio de proposta ao Congresso Nacional fundamentará a impetração de mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal.

Com relação ao segundo termo mencionado, o autor explica que o mesmo tem significado de retirar da Constituição ou de atingir o núcleo essencial. E arremata que uma simples alteração de palavra ou sentido não se faz proibida.

Superada essa observação preliminar, passa-se agora a enfrentar a questão de fundo, que é discussão sobre a devida interpretação do aludido dispositivo constitucional em pauta.

Para os autores que propugnam por uma interpretação mais literal, prelecionam que o âmago de proteção das cláusulas pétreas, tendo em vista a mencionada expressão do artigo constitucional suprarreferido, abarcaria apenas os direitos e garantias contidas no art. 5º da Constituição Federal.

Ressaltam também, que se fosse a intenção do legislador em abranger os direitos sociais, ele o teria feito de maneira expressa no preceito constitucional.

Sobre essa problemática, salienta o eminente doutrinador Gustavo Costa e Silva (2000, p 134):

“Em síntese, não é possível fundamentar a inclusão dos direitos sociais na expressão “direitos e garantias individuais”, mas essa mesma expressão, e o que § 4º do art. 60 em seu conjunto, além de outros dispositivos “identificadores” da ordem constitucional, apontam para um conteúdo irredutível da Constituição do qual fazem parte os direitos sociais.”

E adiante, contextualizando o que foi dito, o conspícuo constitucionalista (2000, p. 138) acentua:

“Assim, independente de se compartilhar a tese da interpretação principiológica, a ausência dos direitos sociais do rol do § 4º do art. 60 e a impossibilidade de se os reduzir conceitualmente aos direitos individuais – esses expressamente mencionados – torna possível a ampla reordenação do regime constitucional dos direitos sociais, de que tratam principalmente os arts. 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 11.”

Nessa esteira se posiciona o eminente jurista Gilmar Ferreira Mendes (2012, p. 796) ao escrever que:

“parece inquestionável, assim, que os direitos e garantias individuais a que se refere o art. 60, § 4º, IV, da Constituição são, fundamentalmente, aqueles analiticamente elencados no art. 5º.”

O notável constitucionalista vai além, ao esclarecer que alguns dispositivos elencados no artigo 5º da nossa Magna Carta poderiam ser suprimidos sem configurar qualquer lesão à clausula pétrea, por revelarem ser repetitivos e prolixos, além de alguns, não estabelecerem nem direitos, nem consagrarem garantias.

Em oposição ao mencionado entendimento, está o posicionamento do insigne jurista Eduardo Ribeiro Moreira (2012, p. 321), que por meio de uma interpretação histórica, ressalta a atecnia do mencionado dispositivo constitucional:

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“O texto presente na alínea “d”, referente aos direitos e garantias individuais, também nos remete a necessárias interpretações. A primeira é histórica. Conta-nos José Afonso da Silva que a votação final do texto constitucional partiu de dois anteprojetos, que vamos chamar de A e B. O anteprojeto A tinha os direitos e garantias individuais no art. 5º e os direitos e garantias coletivas no art. 6º. Nesta parte, esse anteprojeto foi vencido, unificando-se os dois artigos. Porém no texto referente aos limites materiais do poder de reforma, esqueceu-se de fazer o mesmo. A interpretação literal de tal dispositivo é a pior possível é a interpretação histórica dá-nos somente o primeiro passo, a saber: perceber que, no mínimo, a leitura deve considerar como cláusulas pétreas todos os direitos individuais e coletivos.”

Nesta mesma linha de intelecção, ainda que admitindo a intenção do constituinte de 1988 de afastar os direitos sociais da proteção das “cláusulas de eternidade”, é o posicionamento de Ana Cristina Costa Meireles, que advoga por uma interpretação histórico-evolutiva do já multicitado dispositivo constitucional (2008, p. 102):

“Por fim, ainda que a intenção do Constituinte, ao redigir o texto constitucional, fosse a de excluir as normas de direitos sociais do Capítulo II da CF/88 da intangibilidade preconizada no art. 60, § 4º da CF/88, a nova hermenêutica não mais compadece com a clássica e arcaica busca da intenção do legislador. Se tal busca fosse parâmetro interpretativo, não se poderia explicar a sobrevivência de antigos textos legislativos a novos contextos sociais.”

Em abono desse entendimento, na esteira daqueles que defendem uma interpretação extensiva do supredelineado mandamento constitucional, ressalta-se a problemática em se diferenciar os direitos individuais dos direitos coletivos. Nesse sentido, são as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 441):

“Para os que advogam uma interpretação restritiva do art. 60. § 4º, inc. IV, da CF, abre-se outra alternativa. Com efeito, poder-se-ia sustentar, ainda, que a expressão “direitos e garantias individuais” deve der interpretada de tal forma, que apenas os direitos fundamentais equiparáveis aos direitos individuais do art. 5º podem ser considerados “cláusula pétrea”. A

viabilidade desta concepção esbarra na difícil tarefa de traçar distinções entre os direitos individuais e os não individuais. Caso considerássemos como individuais apenas os direitos fundamentais que se caracterizam por sua função defensiva (especialmente os direitos de liberdade), concepção que corresponde à tradição no direito constitucional pátrio, teríamos de identificar nos outros capítulos do Título II da nossa Carta, os direitos e garantias passíveis de serem equiparados aos direitos de defesa, de tal sorte que as liberdades sociais (direitos sociais não prestacionais) também se encontrariam ao abrigo das “cláusulas pétreas”.”

Na mesma linha de raciocínio, é o magistério da lavra Paulo Bonavides (2010, p. 657 – 658):

“Demais disso, não há distinção de grau nem de valor entre os direitos sociais e individuais. No que tange à liberdade, ambas modalidades são elementos de um bem maior já referido, sem o qual tampouco se torna efetiva a proteção constitucional: a dignidade da pessoa humana.”

Em sentido oposto explana Gilmar Ferreira Mendes (2012, p. 796):

“É que, enquanto os direitos individuais propriamente ditos – especialmente os chamados direitos da liberdade e de igualdade – guardam, na sua essência, uma certa uniformidade e coerência ao longa da história constitucional dos diversos países e são, por isso, considerados núcleo essencial e indispensável do Estado de Direito, os direitos sociais são dotados de conformação variada ou diversa, de acordo com o estágio de desenvolvimento de uma dada sociedade, e podem (devem) sofrer adaptação ou atualização no decorrer do tempo.”

Expressões que remetem aos direitos fundamentais vinculados a cláusulas pétreas também são constates nas Constituições alienígenas, como nos evidenciam alguns doutrinadores ao lançar mão do direito comparado.

Nesta vereda, é a lição do preclaro doutrinador Paulo Bonavides (2010, p. 658):

“Conforme já vimos, o dispositivo não

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pode ficar circunscrito aos direitos da versão liberal. Até mesmo o constituinte de 1791 em França, ao trasladar para o texto da primeira Constituição revolucionária a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, não eliminou do n. 16 da Declaração o termo “garantias dos direitos” nem, tampouco, o modificou, qualificando-lhe o sentido em direção restritiva, precisamente, supomos, por querer conservar o seu teor de generalidade e correspondência com a natureza do ser humano, de sua dignidade e liberdade.”

Cabe aqui sublinhar, a percuciente observação de Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 423), que explana sobre o posicionamento dos portugueses, para a resolução do impasse em comento:

“Solução semelhante foi adotada no constitucionalismo português, no qual há disposição expressa estabelecendo que os direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias se encontram sujeitos ao mesmo regime jurídico (art. 17 CRP), destacando-se em particular, a sua condição de limites materiais ao poder de revisão da Constituição (art. 288 da CRP), o que se aplica, inclusive, às assim denominadas liberdades sociais (na condição de direitos análogos), ainda que constates no capítulo dos direitos econômicos, sociais e culturais.”

Gilmar Ferreira Mendes relata também em sua obra sobre o direito comparado:

“Antes da constituição brasileira, também outras Constituições já haviam consagrado a imutabilidade mais restritiva ou mais ampla dos direitos fundamentais (Lei Fundamental, art. 79, III; Constituição de Portugal de 1976, art. 290).”

Por tudo até aqui exposto, evidencia que a problemática hermenêutica em comento é fonte de intensa discussão doutrinária, que não fica apenas no tema sobre a localização da disposição dos artigos constitucionais relacionados ao debate do presente caso, mas vai além, com argumentos apinhados de um sentimento principiológico, fundamentado, como antes falado, em correntes conservacionistas e liberais, que se digladiam com correntes reformadoras e sociais, como veremos adiante.

Destarte, entre aqueles que arvoram por uma interpretação extensiva do art. 60, § 4º, inc. IV da Constituição Federal, está Paulo Bonavides,

que tece comentários altamente robustecidos de um sentimento social, rejeitando, com veemência, qualquer interpretação calcada em uma concepção liberal.

O conspícuo constitucionalista, ao defender a extensão da proteção das “cláusulas de eternidade” para os direitos sociais, ressalta a relevância da carga sociológica presente em nossa Magna Carta. Desse modo, cita como exemplo o art. 3º, inc. I da Constituição Federal, que tem por objetivo fundamental a construção de uma sociedade justa livre e solidária, bem como o art. 170, VII do mesmo texto constitucional, que tem como um dos princípios da ordem econômica a redução das desigualdades regionais e sociais. E adiante contextualizando o que foi dito, arremata:

“Em obediência aos princípios fundamentais que emergem do Título I da Lei Maior, faz-se mister, em boa doutrina, interpretar a garantia dos direitos sociais como cláusula pétrea e matéria que requer, ao mesmo passo, um entendimento adequado dos direitos e garantias individuais do art. 60. Em outras palavras, pelos seus vínculos principiais já expostos – e foram tantos na sua liquidez inatacável -, os direitos sociais recebem em nosso direito constitucional positivo uma garantia tão elevada e reforçada que lhe faz legítima a inserção no mesmo âmbito conceitual da expressão direitos e garantias individuais do art. 60. Fruem, por conseguinte, uma intangibilidade que os coloca inteiramente além do alcance do poder constituinte ordinário, ou seja, aquele poder constituinte derivado, limitado e de segundo grau, contido no interior do próprio ordenamento jurídico.”

No mesmo sentido, Letícia Grezzana Corrêa (2014, p. 143):

“Por fim, cumpre ressaltar, que a função precípua das cláusulas pétreas é a de impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição, preservando a identidade do ordenamento, em especial no que concerne aos direitos fundamentais, tendo em vista que eventual agressão implicaria, inevitavelmente, a afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.”

Imbuído do mesmo sentimento sociológico, encontra-se o posicionamento de Ingo Sarlet (2015, p. 442), que sobreleva a importância da interpretação sistemática do art. 60, § 4º, inc. IV. Destacando que já no preâmbulo da Magna Carta brasileira, evidencia como objetivo do Estado, a

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garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça. E que em vários princípios fundamentais da Constituição Cidadã, especialmente os elencados nos artigos 1º, incs. I a III, e 3º, incs. I, III e IV há a consagração do Estado democrático e social de Direito. Sob este viés social, adiante o autor enaltece o princípio do não retrocesso social, para a devida interpretação do aludido dispositivo constitucional, nos seguintes termos:

“A partir do exposto, verifica-se que a proibição de retrocesso, mesmo na acepção estrita aqui enfocada, também resulta diretamente do princípio da maximização da eficácia de (todas) as normas de direitos fundamentais. Por via de consequência, o artigo 5º, § 1º, da nossa Constituição, impõe a proteção efetiva dos direitos fundamentais não apenas contra a atuação do poder de reforma constitucional (em combinação com o artigo 60, que dispõe a respeito dos limites formais e materiais às emendas constitucionais), mas também contra o legislador ordinário e os demais órgãos estatais (já que medidas administrativas e decisões judiciais também podem atentar contra a segurança jurídica e a proteção de confiança) que, portanto, além de estarem incumbidos de um dever permanente de desenvolvimento e concretização eficiente dos direitos fundamentais (inclusive, e no âmbito da temática versada, de modo particular os direitos sociais) não pode – em qualquer hipótese – suprimir pura e simplesmente ou restringir de modo a invadir o núcleo essencial do direito fundamental ou atentar, de outro modo, contra as exigências da proporcionalidade.”

Todavia, os argumentos tecidos acima encontram forte resistência pelos doutrinadores que acolhem uma interpretação mais apertada do primado constitucional em análise. Em síntese, argumentam que nos dias hodiernos os países sofrem da chamada crise do estado social, no qual não há os devidos recursos financeiros para fazer frente às políticas públicas de concretização dos direitos sociais fundamentais.

O eminente constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes (2012, p. 796), filiando-se a uma interpretação mais restritiva do indigitado artigo, escreve sobre essa perspectiva:

“Assinale-se, a propósito que uma peculiaridade dos direitos sociais ou, se se quiser, dessas pretensões de índole positiva é a de que elas estão voltadas mais para a conformação do futuro do que

para a preservação do status quo. Tal como observado por Krebs, pretensões à conformação do futuro (Zukunftgestaltung)

impõem decisões que são submetidas a elevados riscos: o direito ao trabalho (CF, art. 6º) exige uma política estatal adequada de criação de empregos. Da mesma forma, o direito à educação (CF, art. 205 c/c o art. 6º) o direito à assistência social (CF, art. 203 c/c o art. 6º) e à previdência social (CF, art. 201 c/c o art. 6º) dependem da satisfação de uma série de pressupostos de índole econômica, política e jurídica.”

Sobre esse contraste, entre a efetivação dos direitos sociais por meio de políticas afirmativas, e a realidade da limitação financeira que viabilize essa pretensa concretização, é a percuciente observação de Rodrigo Brandão (2008, p. 201 – 202):

“Ora, diante do que se expôs, revela-se inequívoca a preocupação do constituinte de 1988 em veicular um projeto de transformação social, destinado, precipuamente, a promover a libertação da opressão social e da necessidade, de que falara Jorge Miranda. Não se nega, entretanto, que a efetivação dos direitos sociais de defesa e prestacionais apresentam distinções importantes, notadamente em virtude de os últimos pressuporem, em maior medida, a implementação de custosas políticas públicas que, em um contexto de escassez de recursos, apresentam inevitáveis limitações financeiras. Ocorre que, no plano específico das limitações materiais ao poder de emenda, soa puramente ideológica – remarque-se, em ideologia contrária à que subjaz à Constituição de 1988 – pura e simples exclusão dos direitos sociais prestacionais do âmbito de proteção do art. 60, § 4º, IV da CF/88.”

Em face dessas constatações, o eminente juspublicista, formula o que podemos chamar de uma interpretação intermediária, entre as correntes doutrinárias de interpretações expansiva e restritiva do já multicitado parâmetro constitucional. Segundo o conceituado jurista, apenas os direitos sociais materialmente fundamentais estariam resguardados do poder de reforma.

Mas o que seriam esses direitos sociais materialmente fundamentais? Em resposta a essa questão, o citado doutrinador esclarece preliminarmente o que seriam direitos materialmente fundamentais, para só assim, delimitar os direitos sociais materialmente

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fundamentais.

A primeira delimitação é feita pelo autor, ao diferenciar os direitos formalmente fundamentais dos materialmente fundamentais. Assim, na explanação do autor, os direitos formalmente fundamentais são aqueles simplesmente elencados na Constituição Federal, nada revelando sobre o conteúdo dos direitos fundamentais; já os direitos materialmente fundamentais são aqueles que, mesmo não estado presentes no rol dos direitos positivados da Constituição, são fundamentais por sua essência e natureza.

E a partir dessa formulação paradigmática, adiante o autor (2008, p 236 – 237) explica o que seria os direitos sociais materialmente fundamentais. Assim sendo, seriam todos aqueles que guardem íntima conexão com a dignidade humana. Em abono desse entendimento, o mencionado autor, à guisa de ilustração, menciona exemplos formulados pelo ilustre Professor Humberto Ávila (apud Rodrigo Brandão: 2010, p. 236), na qual evidencia que direitos fundamentais como, o salário mínimo, o seguro desemprego, o fundo de garantia por tempo de serviço, a licença a gestante entre outros, estariam intimamente ligados a dignidade do trabalhador; entretanto, os direitos fundamentais como, o direito dos empregados participarem dos lucros e da gestão das empresas, o terço constitucional de férias, o décimo terceiro e o prazo prescricional dos créditos trabalhistas, não ostentariam este vinculo tão íntimo com a mencionada dignidade humana. Dessa forma, o autor explica que só supressão dos primeiros por uma reforma constitucional, poderia colocar o trabalhador em uma situação degradante, ao ponto aviltar a sua força de trabalho, indo contra a dignidade da pessoa humana, e consequentemente afrontaria a cláusula pétrea.

Interessante questão, que se evidencia também na presente análise, é saber se a interpretação extensiva das cláusulas pétreas para abranger os direitos sociais afrontaria o Princípio democrático.

Diante destas constatações, Rodrigo Brandão (2008, p. 175) tece comentários sobre o referido assunto:

“À vista de a limitação em excesso do poder deliberativo das maiorias inviabilizar, de fato, que as gerações sejam artífices do seu próprio destino, a alvitrada hipótese causaria óbvios prejuízos à democracia, incitando as maiorias a exercitar em “ginástica de revolução”, consoante salientado pelos detratores das cláusulas superconstitucionais especificamente aos direitos esparsamente previstos no texto

constitucional, com lastro no art. 5, p. 2, da CF/88, enseja preocupações adicionais em virtude das peculiaridades da Constituição brasileira.”

Mais adiante o preclaro jurista (2008, p. 206 – 207) arremata esse entendimento:

“Efetivamente, considerar-se objeto de proteção superconstitucional todos os direitos formalmente fundamentais [...] consiste, em exegese excessivamente ampliativa do âmbito de proteção do art. 60, § 4º, IV, da CF/88. Ter-se-á na hipótese fundado risco de implantar verdadeiro “governo dos mortos sobre os vivos” vez que se sujeitaria a geração atual a um amplíssimo rol de normas estatuídas pela geração constituinte, muitas delas de caráter substantivo e despidas de uma especial dignidade normativa. [...] Negar-se-ia, portanto, à geração atual o stauts de artífice do seu próprio destino, circunstância que contrata com o princípio democrático.”

E a luz dessas premissas, o autor enaltece, levando em conta a sua posição por uma interpretação do artigo 60, § 4º, inc. IV da Constituição Federal que açambarque apenas os direitos sociais materialmente fundamentais, além de se vincular a dignidade humana, como antes explicado, se vincularia também ao princípio democrático. Destarte, ao contrário do pensamento de tal interpretação levar a substituição do constituinte originário, estaria a salvaguardar direitos intimamente ligados a dignidade humana, afastando-os da deliberação do poder constituinte derivado, que levaria a um constitucionalismo liberal pré-weimariano. Dessa forma, somente direitos sociais materialmente materiais poderiam ser suprimidos pelo poder constituinte originário.

3.3 - Direitos Fundamentais Fraternais como Cláusulas Pétreas

A discussão doutrinária traçada sobre os direitos fundamentais da segunda dimensão sobre a proteção da cláusula de eternidade, em algumas doutrinas extravasa, para tecerem comentários também, sobre os direitos da terceira dimensão, especialmente sobre o mais tradicional deles, que é o do direito ao meio ambiente.

Destarte, preleciona o preclaro jurista Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 442), que o direito ao meio ambiente, a despeito de ser enquadrado como direto coletivo, pode ser direcionado a uma dimensão individualizada, pois mesmo que um dano ambiental venha a atingir uma coletividade,

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esse sempre atingirá cada prejudicado individualmente.

Rodrigo Brandão (2008, p. 202 - 203) evidencia a atenção que o constituinte de 1988 direcionou aos direitos da terceira geração, e assim explana:

“Também não descurou o constituinte dos chamados direitos da terceira geração. Efetivamente, encontra-se no art. 5, XXXII, a proteção do consumidor; no art. 225, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; e, entre os princípios regentes das relações internacionais do Brasil, previu-se a independência nacional, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a defesa da paz e a solução pacífica dos conflitos (art. 4, I, III, IV, IV e VII). Por todo o exposto, pode-se concluir que a Constituição de 1988 reconhece e acomoda em seu texto diversas categorias de direitos – dentre os quais destacam os direitos civis, políticos, da nacionalidade, sociais, culturais e difusos e coletivos – promovendo um compromisso maximizador entre eles.”

E adiante, o notável jurista (2008, p. 203 - 204) arremata:

“A melhor exegese do multicitado dispositivo consiste, portanto, na que foi conferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn n. 939-DF, em cujo âmbito deixou assentado que o constituinte de 1988 estendeu a nota de superconstitucionalidade aos diretos fundamentais em geral.”

Alguns constitucionalistas enaltecem a íntima ligação do direito ao meio ambiente equilibrado com o direito a vida.

Esse é o magistério do insigne constitucionalista José Afonso da Silva (2002, p. 55), que assim se posiciona:

“Em conclusão, a proteção ao meio ambiente traduz o modo de proteção à vida, à qualidade de vida, à sobrevivência da espécie humana, que é destinatária dos direitos de terceira geração. Este é o contexto que deve nortear a interpretação das normas constitucionais pertinentes que consubstanciam o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com uma consequência relevante para a garantia de sua eficácia e aplicabilidade, qual seja, a sua inserção no rol das matérias competentes dos limites

materiais ao poder de reforma constantes do art. 60, § 4º, da Constituição. Quer dizer, a aderência ao direito à vida do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado contamina esse direito de uma qualidade que impede sua eliminação por via de emenda constitucional.”

Nesse diapasão, também é o posicionamento de Tiago Fensterseifer (2008, p. 170) que ressalta:

“A consolidação constitucional da proteção ambiental como cláusula pétrea corresponde à decisão ambiental da Lei Fundamental brasileira, em razão de sua importância do desfrute de uma vida com qualidade ambiental à proteção e equilíbrio de todo o sistema de valores e direitos constitucionais, e especialmente à dignidade humana.”

Outros doutrinadores, filiados também a uma interpretação extensiva do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, ressaltam a intenção do constituinte de 1988 em proteger o direito ao meio ambiente das crises e instabilidades históricas, que poderiam aviltar esse direito.

Esse é o nobre comentário do eminente doutrinador Herman Benjamin (2007, p. 57) ao propugnar por uma interpretação ampliativa:

“Além disso, a constitucionalização, espacialmente em Constituições rígidas como a do Brasil, é acompanhada por uma maior segurança normativa, seja porque os direitos e garantias individuais são considerados norma pétrea, seja ainda em decorrência da previsão de um procedimento rigoroso para as emendas constitucionais. Em ambos os casos, o resultado é um valioso atributo de durabilidade legislativa no ordenamento, o que funciona como barreira à desregulamentação e a alterações ao sabor de crises e emergências momentâneas, artificiais ou não. Nisso reside, de certa maneira, a razão principal do inchaço temático das Constituições modernas, com a inclusão de vasto campo de matérias, sob ‘o sentimento de que a rigidez constitucional é anteparo ao exercício discricionário da autoridade’ e o ‘anseio de conferir estabilidade ao direito legislado sobre determinadas matérias.’ Como indicam Brandl e Bungert, também aí está a explicação para que, na euforia dos processos de redemocratização, países que acabam de liberta-se de regimes ditatoriais tendam a regular constitucionalmente um universo

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vastíssimo de aspectos da vida individual e social, muitos deles mais apropriados para o tratamento pelo legislador ordinário. O temor de retrocesso autoritário dá fôlego e legitimidade aos mais diversos interesses e à bisca do anteparo constitucional.”

Sobre esse processo de constitucionalização, vale lembrar os exemplos do direito comparado. À guisa de ilustração, Michel Prieur (2011, p. 32 – 33) cita as constituições da Turquia e do Butão. Que elevaram a proteção constitucional ao direito ao meio ambiente em seu nível máximo. Entre essas, segundo o autor, talvez a mais clara com relação a essa intangibilidade constitucional absoluta, seja a constituição do Butão, que dispõe que 60% das florestas do país são protegidas pela eternidade.

Na mesma vereda, propugnando por uma interpretação ampliativa do artigo 60, § 4º, IV da Constituição Federal, se faz imperioso citar o posicionamento de Carlos Molinaro (2011, p. 92 – 93) sobre o Princípio de vedação da retrogradação ambiental:

“Impede ainda, na seara dos direitos fundamentais ambientais, especialmente pensando na proteção do mínimo existencial, sua ‘essencialidade’, identificar que o princípio de vedação da retrogradação socioambiental, por ser uma norma implícita ao Estado Socioambiental e Democrático de Direito, não está submetido ao denominado princípio da reserva do possível, tampouco ao princípio da reserva parlamentar orçamentária. Com efeito, o princípio da vedação da retrogradação socioambiental inaugura o desvelar de outro mandamento, já denominado pelo senso comum como “reserva da reserva do possível”, isto é, não há possibilidade, sob pena de negar-se a qualidade do Estado-socioambiental, alegar a carência de recursos materiais e humanos para concretizar a interdição da retrogradação ambiental. A eventual dependência de disponibilidade destes recursos deverá ser solvida por uma ordem de prioridade nas políticas econômico-financeiras do Estado. A relativização do princípio, todavia, pode se dar por circunstancias de meios técnicos, sociais ou geofísicos, nunca por (meios de) ordem financiara.”

Esse também é o posicionamento dos ínclitos doutrinadores Morato Leite e Maria Ferreira (2010, p. 126), que assim ressaltam:

“Deixe-se frisado que o direito

fundamental do meio ambiente não admite retrocesso ecológico, pois está inserido como norma e garantia fundamental de todos, tendo aplicabilidade imediata, consoante o art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição. Além do que o art. 60, § 4º, IV, também da Carta Magna, proíbe proposta de abolir o direito fundamental ambiental, nesse sentido considerando cláusula pétrea devido à sua relevância para o sistema constitucional brasileiro, como direito fundamental da coletividade.”

Em abono desse entendimento, Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer (2012, p. 153) sobrelevam que a exegese sistemática do dispositivo constitucional em análise, para abarcar os direitos sociais e ecológicos, tem por escopo preservar os elementos essenciais do Estado Socioambiental e Democrático de Direito, sem o qual acabaria por ir contra a própria identidade da ordem constitucional.

4 - Jurisprudência

A jurisprudência pátria tem acolhido em diversos julgados a interpretação extensiva do artigo 60, § 4º, inc. IV da Constituição Federal, para compreender os direitos fundamentais que não se encontram no elenco dos arrolados no artigo 5º do mesmo diploma constitucional.

Destaca-se aqui, a importância do julgamento da ADI nº 939/DF, que fora um marco na teoria do controle de constitucionalidade do Brasil, pois foi a primeira vez em que o STF declarou a inconstitucionalidade de emenda constitucional, aproximando assim, da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, que admite o controle de constitucionalidade de emendas constitucionais, conforme salientado pelo notável doutrinador Rodrigo Bandão (2008, p. 170).

A prolatada decisão declarou o vício de inconstitucionalidade disposta no art. 2º, § 2º da Emenda Constitucional nº 3 de 17 de março de 1993, que excepcionava o princípio da anterioridade tributária prevista no artigo 150, III, b, da CF e das imunidades elencadas no inciso IV do mesmo artigo, ao imposto provisório sobre movimentação financeira (IPMF).

Consoante nos evidencia o insigne jurista Rodrigo Brandão (2008, p. 289) que, a princípio, o STF reconheceu que o art. 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição Federal se aplica aos direitos fundamentais em geral, inclusive aqueles que a despeito de não constarem expressos na Magna Carta como direitos fundamentais, ganharam esse status, com a ampliação conferida pelo parágrafo 2º do artigo 5º da CF.

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Decisão que merece integra transcrição:

“Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par.2., 60, par.4., incisos I e IV, 150, incisos III, b, e VI, a, b, c e d, da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, b e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. - o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par.2., art. 60, par.4., inciso IV e art. 150, III, b da Constituição); 2. - o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par.4., inciso I,e art. 150, VI, a, da C.F.); 3. - a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: b): templos de qualquer culto; c): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e d): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; 3. Em consequencia, e inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, a, b, c e d da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993. (STF - ADI: 939 DF , Relator: SYDNEY SANCHES, Data de Julgamento:

15/12/1993, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 18-03-1994 PP-05165 EMENT VOL-01737-02 PP-00160 RTJ VOL-00151-03 PP-00755).”

Com base nesse aresto já decidiu também o Tribunal Regional da 5º região, in verbis:

“TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. EMENDAS CONSTITUCIONAIS NOS 27/00 E 42/03. DESVINCULAÇÃO DE PARTE DOS VALORES ARRECADADOS A TÍTULO DE CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS (PIS, COFINS, CSL E CPMF). CONSTITUCIONALIDADE. - Busca a impetrante, no presente mandamus, o reconhecimento da inconstitucionalidade da EC nº 27/00, que desvinculou 20%(vinte por cento) das receitas de tais contribuições no período de 2000 a 2003, fato que foi repetido pela EC nº 42/03, que estendeu tal prazo até 2007, ao fundamento de que a desvinculação autorizada pelas emendas constitucionais em tela retirou das contribuições a garantia de que o produto de suas arrecadações seria aplicado nos fins para os quais foram instituídas, subtraindo-lhes característica intrínseca e transformando a parcela de 20%(vinte por cento), a ser utilizada para qualquer fim, em autêntico imposto. - A via do mandado de segurança é adequada ao reconhecimento do direito à compensação dos valores tidos como indevidamente recolhidos com outros tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal, razão pela qual deve ser conhecido o presente mandamus, o qual foi indeferido, de plano, pelo MM Juiz sentenciante. - O egrégio STF, no âmbito da ADIn nº 939, julgada em 15/09/1993, assinalou que as Emendas Constitucionais são suscetíveis de controle de constitucionalidade apenas nos casos em que impliquem violação das cláusulas pétreas, as quais representam o núcleo imutável da constituição, cuja alteração resultaria na quebra dos próprios fundamentos da Carta Magna até então vigente, o que somente seria viável mediante a manifestação do Poder Constituinte Originário, razão pela qual afigura-se legítimo ao Poder Constituinte Derivado proceder à modificação de dispositivos constitucionais, desde que não represente violação dos princípios e das garantias previstas no artigo 60, parágrafo 4º, da Lei Maior. - Apelação não provida. (TRF-5 - AMS: 95222 PB 2006.82.01.001872-4, Relator: Desembargador Federal Cesar Carvalho (Substituto), Data de Julgamento:

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09/08/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 17/09/2007 - Página: 1089 - Nº: 179 - Ano: 2007).”

Outra decisão, que merece análise, é a ADI nº 1946/DF, no qual se discutiu se o teto para os benefícios previdenciários previstos no art. 14 da Emenda Constitucional nº 20/1998, correspondente a R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais), aplicar-se-ia também o benefício do salário-maternidade.

No aresto supramencionado, o Pretório Excelso decidiu que o mencionado teto previdenciário não se aplica ao direito a licença remunerada de 120 dias à gestante, pois a contrario sensu, estaria por estabelecer, implicitamente, uma afronta ao disposto no art. 7º, XVIII, da Constituição Federal, haja vista que os empregadores é quem arcariam com os encargos que ultrapassassem o mencionado teto, sendo então um desestímulo a contratação de mulheres, ferindo o princípio da igualdade substancial, além de configurar um retrocesso social.

Rodrigo Brandão (2008, p 287 – 288) explica que a partir de 1932, e, mais nitidamente, a partir de 1974 a proteção à gestante, vem sendo tratada mais como direito previdenciário do que um encargo trabalhista.

Ainda, segundo o mesmo autor (2008, p. 287 - 288), a decisão supramencionada reiterou a possibilidade de controle da constitucionalidade de emendas constitucionais. E a exemplo da ADI nº 939-DF reafirmou a posição nítida do Pretório Excelso de atribuir a condição de cláusula pétrea aos direitos fundamentais, levando em conta o conteúdo dos mesmos, e não a sua alocação na Maga Carta brasileira.

A esse respeito, também é o ensinamento doutrinário de George Marmelstein (2014, p. 277 – 278), ao enaltecer que a mencionada decisão atribui foros de norma pétrea a um direito social, ressaltando que, decisão contrária, configuraria em nítido retrocesso histórico em se tratando de matéria social-previdenciária.

Adiante a integra da transcrição do aresto assim ementado:

“DIREITO CONSTITUCIONAL, PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. LICENÇA-GESTANTE. SALÁRIO. LIMITAÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 14 DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15.12.1998. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 3º, IV, 5º, I, 7º, XVIII, E 60, § 4º, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O legislador brasileiro, a partir de 1932 e

mais claramente desde 1974, vem tratando o problema da proteção à gestante, cada vez menos como um encargo trabalhista (do empregador) e cada vez mais como de natureza previdenciária. Essa orientação foi mantida mesmo após a Constituição de 05/10/1988, cujo art. 6º determina: a proteção à maternidade deve ser realizada "na forma desta Constituição", ou seja, nos termos previstos em seu art. 7º, XVIII: "licença à gestante, sem prejuízo do empregado e do salário, com a duração de cento e vinte dias". 2. Diante desse quadro histórico, não é de se presumir que o legislador constituinte derivado, na Emenda 20/98, mais precisamente em seu art. 14, haja pretendido a revogação, ainda que implícita, do art. 7º, XVIII, da Constituição Federal originária. Se esse tivesse sido o objetivo da norma constitucional derivada, por certo a E.C. nº 20/98 conteria referência expressa a respeito. E, à falta de norma constitucional derivada, revogadora do art. 7º, XVIII, a pura e simples aplicação do art. 14 da E.C. 20/98, de modo a torná-la insubsistente, implicará um retrocesso histórico, em matéria social-previdenciária, que não se pode presumir desejado. 3. Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira, facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, inc. XXX, da C.F./88), proibição, que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal. Estará, ainda, conclamado o empregador a oferecer à mulher trabalhadora, quaisquer que sejam suas aptidões, salário nunca superior a R$1.200,00, para não ter de responder pela diferença. Não é crível que o constituinte derivado, de 1998, tenha chegado a esse ponto, na chamada Reforma da Previdência Social, desatento a tais consequências. Ao menos não é de se presumir que o tenha feito, sem o dizer expressamente, assumindo a grave responsabilidade. 4. A convicção firmada, por ocasião do deferimento da Medida Cautelar, com adesão de todos os demais Ministros, ficou agora, ao ensejo deste julgamento de mérito, reforçada substancialmente no parecer da Procuradoria Geral da República. 5. Reiteradas as considerações feitas nos votos, então

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proferidos, e nessa manifestação do Ministério Público federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade é julgada procedente, em parte, para se dar, ao art. 14 da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998, interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal. 6. Plenário. Decisão unânime. (STF - ADI: 1946 DF , Relator: SYDNEY SANCHES, Data de Julgamento: 03/04/2003, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 16-05-2003 PP-00090 EMENT VOL-02110-01 PP-00123).”

Convém também aqui, trazer à baila, o julgamento da ADI nº 3685/DF, que cuidou da análise de inconstitucionalidade da EC nº 52 de 8 de março de 2006. A referida emenda possui dos artigos: o primeiro que acabou com a obrigatoriedade da verticalização partidária e o segundo que aplicava essa regra para as eleições do mesmo ano de sua promulgação. Salienta-se que a mencionada ADI se ateve apenas a análise de inconstitucionalidade do artigo 2º.

Assim sendo, nessa oportunidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º da EC 52/2006. O Pretório Excelso decidiu que o referido artigo desrespeitou o princípio da anualidade da lei eleitoral. Ressaltou-se que o mencionado princípio, configuraria em verdadeira cláusula pétrea que impedia a reforma constitucional pelo constituinte derivado.

A respeito desse julgado, o emérito juspublicista George Marmelstein (2014, p. 276), filiado a corrente dos constitucionalistas que se estribam por uma interpretação ampliativa do dispositivo constitucional em análise, ressalta que o art. 16 está dentro do Título II da Constituição Republicana, que trata dos direitos fundamentais, sendo para o mencionado autor relativamente fácil considerar o referido princípio como norma pétrea.

Nas linhas abaixo, a ementa, que merece integra transcrição:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV).

LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF. 1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afastada, tendo em vista a sucinta porém suficiente demonstração da tese de violação constitucional na inicial deduzida em juízo. 2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. 3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93). 4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello). 5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). 6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral. 7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência. (STF - ADI: 3685 DF , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 22/03/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL-02241-02 PP-00193).”

Todavia, impende aqui ressaltar, que

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George Marmelstein (2014, p. 278) esclarece que o STF ainda não disse taxativamente, que os direitos sociais se configuram em cláusulas pétreas.

5 - Conclusão:

A pesquisa evidenciou que a doutrina ainda se faz oscilante com relação à interpretação do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, com a polarização de doutrinas que arvoram por interpretações literais e expansivas, além dos posicionamentos intermediários. Entretanto, a maioria dos doutrinadores advogam por uma interpretação extensiva do artigo 60, § 4º, IV da Magna Carta brasileira.

Constatou-se também da pesquisa, que ainda é tímida a jurisprudência com relação ao tema proposto, apesar de tender para uma interpretação mais extensiva do mencionado dispositivo.

Destarte, essa tendência da jurisprudência por uma interpretação extensiva deve-se ao fato do destaque que a Constituição Federal trouxe para os direitos socioambientais, bem como pela sensibilidade da Corte Constitucional brasileira de captar os anseios da sociedade brasileira.

Dessa forma, com base na doutrina majoritária e no atual posicionamento da jurisprudência, o presente artigo conclui por compactuar com o posicionamento de uma interpretação que considere cláusulas pétreas tanto os direitos fundamentais sociais como os da fraternidade.

Destarte, somente uma interpretação sistemática e teleológica do artigo aludido pode nos levar a uma interpretação que coadune com a ordem constitucional vigente.

De fato há uma elevada carga histórica, sociológica e fraternal da Magna Carta do Brasil que corrobora para a interpretação extensiva do artigo mencionado, bem como um arcabouço principiológico que robustece a tese ampliativa do supramencionado dispositivo constitucional. Princípios como o do não retrocesso socioambiental e o da máxima efetividade.

Interpretação diferente conduziria ao enfraquecimento da ordem constitucional para a mudança em outro tipo de Estado, de matiz extremamente diferente da intenção do Constituinte de 1988. Intenção esta que foi consagrada com a configuração do atual Estado Socioambiental de Direito, evidenciado na Constituição, desde o preâmbulo até as disposições constitucionais gerais.

6 - Agradecimentos:

Inicialmente, agradeço a Deus pela dádiva da vida e pela oportunidade de ter feito esta graduação do curso de Direito.

Agradeço a minha família, em especial aos meus pais e irmão, pelo amor, apoio e incentivo, sem os quais não poderia alcançar os meus objetivos e sonhos.

Agradeço a todos os meus professores da graduação do curso de Direito, pela maestria da condução das aulas ministradas, e em especial ao meu orientador Evandro Morello, pela dedicação, paciência e sabedoria na orientação do presente trabalho.

E finalmente, agradeço aos meus valorosos amigos e colegas do curso de Direito, a satisfação e honra de compartilhar de vossas companhias durante essa jornada jurídica.

7 - Referências:

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Alegre: Livraria do Advogado, 2008. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014. MEIRELES, Ana Cristina Costa. A Eficácia dos Direitos Sociais. Salvador: Juspodivm, 2008. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4º. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MOLINARO, Carlos Alberto. Interdição da Retrogradação Ambiental. In: PRIEUR, Michel. et al. O princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. Brasília: Senado, 2011. MORATO LEITE, José Rubens; FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. Estado de Direito Ambiental no Brasil: uma Visão Evolutiva. In: FARIAS, Talden; COUTINHO, Francisco Seráphico da Nóbrega (Coords.). Direito Ambiental: O Meio Ambiente e os Desafios da Contemporaneidade.Belo Horizonte: Fórum, 2010. MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Direito Constitucional Atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. PRIEUR, Michel. et al. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. Brasília: Senado, 2011. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. _______; FENSTERSEIFER. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2º. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio Ambiente. In: Revista de Direito Ambiental, n. 27, Jul-Set, 2002. SILVA, Gustavo Just da Costa. Os Limites da Reforma Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 939/DF. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator: Min. Sydney Sanches. Brasília, 18 de março de 1994. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=939&processo=939>. Acesso em 01 jun. 2015.

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