a poesia de cecília meireles em solombra
DESCRIPTION
O objetivo da leitura cumpre-se no levantamento dos lexemas-chave de Solombra, deCecília Meireles, e a metodologia de pesquisa na organização em campos de afinidades. Acorrelata definição dos fundamentos teóricos considera preliminarmente as questões daseleção do material poético objeto de estudo e a disposição dos campos básicos das relaçõesabstratas, temporais, espaciais, materiais, intelectuais, volitivas e afetivas na instauração deperspectivas que permitam a compreensão dos temas inventariados. A leitura busca umacompreensão em profundidade de sua visão de poesia – portanto, a de sua poética – e desua concepção de homem, de sociedade, de mundo, de ser, expressa pelos ritmos dos versose pelas imagens dos poemas A tese se estrutura numa introdução geral, em capítulos sobrea matéria vista em sua divisão em quatro elementos, as relações essenciais enquantotemporalidade e espacialidade, e o intelecto, como formação das possibilidades eimpossibilidades de indagações e comunicações.TRANSCRIPT
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ANTONIO RODRIGUES BELON
A POESIA DE CECLIA MEIRELES EM SOLOMBRA
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ANTONIO RODRIGUES BELON
A POESIA DE CECLIA MEIRELES EM SOLOMBRA
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras da UNESP - Assis, para a obteno do ttulo de Doutor em Literaturas de Lngua Portuguesa. Orientao: Profa. Dra. Ana Maria Domingues de Oliveira
Assis 2001
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP
Belon, Antonio Rodrigues B452p A poesia de Cecilia Meireles em Solombra / Antonio Rodrigues Belon. Assis, 2001. 202 f. Tese de Doutorado Faculdade de Cincias e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista. 1. Meireles, Ceclia, 1901-1964. 2. Poesia brasileira. 3. Solombra-Crtica e interpretao. I. Ttulo.
CDD 869.91
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SUMRIO
INTRODUO...........................................................................................................04
I OS ELEMENTOS.....................................................................................................26
1.1 Terra............... .......................................................................................................27
1.2 gua.......................................................................................................................32
1.3 Ar...........................................................................................................................62
1.4 Fogo.......................................................................................................................69
II RELAES ESSENCIAIS: TEMPORALIDADE E ESPACIALIDADE.............94
2.1 Temporalidade....................................................................................................100
2.1.1 O tempo em si..................................................................................................100
2.1.2 O tempo e suas relaes.................................................................................114
2.2 Espacialidade.......................................................................................................131
2.2.1 Dimenses........................................................................................................131
2.2.2 Formas.............................................................................................................134
III INTELECTO........................................................................................................142
3.1 Formaes e indagaes.....................................................................................142
3.2 Comunicaes e impossibilidades .....................................................................148
CONCLUSES.........................................................................................................153
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................160
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APNDICE................................................................................................................172
Resumo
Abstract
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INTRODUO
Rene-se aqui um conjunto de consideraes preliminares: um
esboo biogrfico de Ceclia Meireles, uma breve amostragem da vida e da obra,
as justificativas da pesquisa, uma antecipao descritiva da obra selecionada, a
delimitao do objeto, os critrios de seleo dos lexemas-chave na abordagem
escolhida, a exposio dos fundamentos tericos, a explicao do mtodo, dos
procedimentos de anlise dos poemas e organizao do trabalho de leitura crtica,
a apresentao dos objetivos e a formulao inicial da tese propriamente.
Descendente, pelo lado materno, de uma famlia aoriana de So
Miguel, Ceclia Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro,
cidade em que, no dia 9 de novembro de 1964, morreu. Seu pai, Carlos Alberto de
Carvalho Meireles, funcionrio do Banco do Brasil, morreu aos 26 anos, trs
meses antes do nascimento da filha. A me, Matilde Benevides, professora
municipal, morreu quando a menina tinha trs anos. Perdeu tambm trs irmos
mais velhos e foi criada pela av materna, D. Jacinta Garcia Benevides, aoriana
de origem e nica sobrevivente morte dos pais na famlia.
Segundo escreveu Ceclia Meireles (1994, p.80)
Essas e outras mortes ocorridas na famlia acarretaram muitos contratempos
materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram desde pequenina, uma tal
intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relaes entre o
femero e o Eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e,
por vezes, cheia de violncia. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar
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nem me espantei por perder. A noo ou sentimento da transitoriedade de
tudo o fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica
tudo quanto tenho feito, em Literatura, Jornalismo, Educao e mesmo
Folclore. Acordar a criatura humana dessa espcie de sonambulismo em que
tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem
pretenso filosfica ou de salvao mas por uma contemplao potica
afetuosa e participante.
No ano de 1910, na Escola Estcio de S, Ceclia Meireles
terminou o curso primrio. O Inspetor Escolar do Distrito Federal, Olavo Bilac,
entregou a ela uma medalha de ouro com o nome da aluna gravado, prmio pelo
seu curso realizado com distino e louvor. Terminou o curso da Escola
Normal (Instituto de Educao), em 1917.
Estudou as lnguas francesa, espanhola, inglesa, italiana, alem,
russa, hebraica, e do grupo indo-irnico, alm de dedicar-se apaixonadamente ao
estudo de histria, filosofia e lnguas que tivessem origens orientais. No
Conservatrio de Msica, estudou violino e sonhava em escrever uma pera sobre
o apstolo So Paulo e lia Rabindranath Tagore e Guerra Junqueiro.
Casou-se, em 1922, com o artista portugus Fernando Correia
Dias, de quem teria trs filhas e enviuvaria em 1935. O seu relacionamento com o
pintor, homem de grande prestgio nos meios artsticos, facilitou a sua
aproximao com Tasso da Silveira, Andrade Muricy, Onestaldo Pennafort e
outros.
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Na segunda metade dos anos 20, em outubro de 1927, foi
lanada a revista carioca Festa, a publicao seguia uma orientao catlica e em
cujas pginas colaboraram crticos e poetas da maior notoriedade naquele
momento. Vrias reunies preparatrias do lanamento da revista aconteceram na
casa de Ceclia Meireles, rua So Carlos, 11, Rio de Janeiro. L compareciam os
seus amigos Murilo Arajo, Adelino Magalhes, Barreto Filho, Henrique Ablio,
Baslio Itiber e os citados Tasso da Silveira e Andrade Muricy.
Festa teve duas fases: apareceu entre 1927-1929 e voltou a
circular entre 1934-1935. Outros grupos antecederam ao de Festa no processo de
afirmao de uma mesma tendncia. Amrica Latina (1919), rvore Nova (1922),
Terra do Sol (1924), publicaes do Rio de Janeiro, ansiavam por uma renovao
sem rupturas, dentro dos padres que defendiam.
Do programa de Festa, em seu carter polmico e confessional,
distanciou-se Ceclia Meireles, no desenvolvimento de sua obra ao longo dos
anos, excluso feita de um certo tradicionalismo nas solues poticas da
maturidade.
Presena, uma publicao central do Modernismo portugus,
encontrou na revista brasileira o seu modelo e referencial, enquanto concepo,
tendo Festa e ela, o mesmo ilustrador.
Candidatou-se, Ceclia Meireles, em 1929, ctedra de
Literatura da Escola Normal, apresentando a tese O Esprito Vitorioso, trabalho
no aceito na instituio, por no ser reconhecidamente catlica, e publicado
posteriormente.
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Preocupava-se com os problemas da infncia e exercia o
magistrio desde que se diplomou. De 1930 a 1934, diariamente, dedicou-se ao
exame dos assuntos do ensino, participando das inquietaes e das esperanas
existentes em torno da educao no Brasil daquele momento. Empenhou-se
ativamente nesse movimento de renovao, posicionando-se ao lado das reformas
e publicando uma seo sobre o ensino (mais de 700 textos de 30 a 34) no
Dirio de Notcias.
Fundada a Universidade do Distrito Federal, Ceclia Meireles foi
nomeada professora de Literatura Luso-Brasileira e de Tcnica e Crtica
Literrias. Lecionou, tambm, em cursos livres, Literatura Comparada e Literatura
Oriental.
De 1936 a 1938, colaborou em peridicos como A Manh e A
Nao, os dois do Rio de Janeiro, e Correio Paulistano, de So Paulo. Trabalhou,
ainda, na ambigidade caracterstica de suas relaes com o autoritarismo vigente,
no Departamento de Imprensa e Propaganda, dirigindo a revista Travel in Brazil.
Vinha, desde a infncia, o seu amor pelas tradies e crenas
populares do Brasil e de Portugal. Quando menina ouvia histrias, contos,
adivinhas, fbulas e outras manifestaes afins, tipicamente folclricas. Aprendeu
danas e conheceu elementos do folclore aoriano no contato ntimo com sua av.
O seu interesse pelo folclore passou sempre por contnua
reafirmao. Colaborou com a instalao da Comisso Nacional de Folclore, em
1948, poca em que j era considerada autoridade no assunto. Em 1951, na
oportunidade da realizao do Primeiro Congresso Nacional de Folclore, ela atuou
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como secretria, participando ativa e dedicadamente deste evento no Rio Grande
do Sul.
Fez, ainda, a convite do Secretariado de Propaganda, a sua
primeira viagem a Portugal. Falando de aspectos da Literatura Brasileira,
pronunciou conferncias nas Universidades de Lisboa e de Coimbra.
Em 1940, viajou ao Mxico e aos Estados Unidos, passando a
ensinar Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas. Fez outras
viagens de intercmbio cultural, proferindo conferncias sobre literatura, folclore
e educao. Esteve no Uruguai e na Argentina (1944), na ndia, em Goa e na
Europa novamente (1953), em Porto Rico (1957) e em Israel (1958). Na
Universidade de Dlhi quando por l passou, recebeu o ttulo de Doutor Honoris
Causa das mos do primeiro-ministro da ndia, Nehru.
Na sua estria em livros, Ceclia Meireles publicou, em 1919,
Espectros. Sonetos, a maioria deles sobre figuras histricas. A autora que havia
escrito os poemas no final de sua adolescncia, por deciso prpria, excluiu os
livros iniciais do conjunto de sua obra, posio assumida nas edies posteriores
de suas Obras Completas. Na edio de sua Poesia Completa, a primeira parte
apresenta os livros selecionados pela autora com base em critrios estritamente
pessoais para a primeira edio de 1958, e na segunda parte, admitindo incluses
posteriores, a critrio dos editores, as outras obras com valor seguramente
histrico, mas tambm potico.
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Premiada pela Academia Brasileira de Letras, em 1938, por
escrever Viagem, a poeta conhece oficialmente a consagrao literria. O livro foi
publicado, no ano seguinte, em Portugal.
Publicou Vaga Msica (1942), Mar Absoluto (1945), Retrato
Natural (1949), Amor em Leonoreta (1951), Doze Noturnos da Holanda (1952),
O Aeronauta (1952) e o Romanceiro da Inconfidncia (1953). A composio e
posterior publicao dos Poemas Escritos na ndia ocorreu por ocasio da viagem
da autora ao Oriente. A sua poesia comeou a ser traduzida para vrias lnguas,
entre elas as da ndia. Na sua passagem pela Itlia, Ceclia Meireles colheu
material que, elaborado poeticamente, veio a constituir os Poemas Italianos
(1968). Alm da produo em versos, traduzia Tagore e escrevia ensaios sobre
Gandhi. A cultura oriental fascinava Ceclia Meireles desde a adolescncia.
Dos anos 50 ainda so Pequeno Oratrio de Santa Clara (1955),
Pistia, Cemitrio Brasileiro (1955), Canes (1956), Romance de Santa Ceclia
(1957), A Rosa (1958) e a primeira edio da Obra Potica pela Aguilar (1958),
referncia impossvel de se ignorar da em diante. Insistindo apenas em livros de
poesia, nos anos 60 foram publicados Metal Rosicler (1960), Solombra (1963),
Ou Isto ou Aquilo (1964) e a Crnica Trovada da Cidade de Sam Sebastiam do
Rio de Janeiro no Quarto Centenrio de sua Fundao pelo Capito-Mor Estcio
de Saa (1965).
Ceclia Meireles tornou-se scia honorria do Gabinete
Portugus de Leitura, do Rio de Janeiro, e do Instituto Vasco da Gama, de Goa.
Recebeu o grau de Oficial da Ordem do Mrito, do Chile e participou do Instituto
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Histrico de Minas Gerais, fatos que revelam a amplitude de sua atuao e a
admirao que despertava.
Cerca de um ano depois do seu falecimento, a Academia
Brasileira de Letras concedeu a Ceclia Meireles o prmio Machado de Assis pelo
conjunto da obra.
No que concerne delimitao do objeto de estudo, a eleio de
Solombra no conjunto da obra ceciliana ocorre em virtude dessa obra ocupar um
lugar de destaque na produo da autora. Sendo a sua ltima obra publicada em
vida, pode-se consider-lo como seu testemunho potico final: o livro torna-se um
pronunciamento esttico chave no conjunto da obra ceciliana e nas circunstncias
biogrficas e histricas em que apareceu, num sculo XX politicamente peculiar,
nas suas guerras to marcantes, no seu nunca antes visto avano tecnolgico e
suas decorrncias culturais.
A leitura de seus poemas nos seus elementos constituintes,
individualmente, e no entrelaamento na obra, permite o estabelecimento de
parmetros capazes de orientar a compreenso da poesia e da potica da autora em
sua totalidade, e por extenso permite apresentar uma viso da poesia em geral.
Neste texto busca-se um certo aprofundamento dessa viso, sem prejuzo de sua
abrangncia. O percurso do eu ao ns passa necessariamente pelo social na poesia
ceciliana, sendo esta, a primeira forma adquirida pela transcendncia.
Resumidamente, os seus ps se instalam no cho, no nas nuvens. Os seus poemas
instauram uma perspectiva de especulao, reflexo e pensamento sobre os temas
de profundidade e de relevncia, mas sempre partindo do terreno.
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A editora Livros de Portugal, do Rio de Janeiro, publicou
Solombra em 1963. Ceclia Meireles morreu um ano aps a publicao da obra.
Para delinear um roteiro potico da autora, os livros
fundamentalmente levados em conta fizeram parte da matriz de sua Obra Potica.
Solombra assume, no contexto do estudo que aqui se desenvolve, o papel central
de porta de entrada ao universo ceciliano. A edio da Obra Potica de Ceclia
Meireles, depois denominada Poesia Completa, e tomada como edio bsica
para consulta na elaborao desta tese, a quarta, da editora Nova Aguilar, do Rio
de Janeiro, de 1994, sob a organizao e a introduo de Walmir Ayala. Nela
constam, alm dos livros consagrados pela tradio como integrantes de sua Obra
potica, uma segunda parte constituda de livros anteriormente excludos com a
participao de Ceclia Meireles, na edio em destaque, e depois repostos em sua
Poesia Completa. Permanece a nota editorial de autoria de Afrnio Coutinho, um
ensaio denominado Poesia do Sensvel e do Imaginrio e uma Notcia
Biogrfica e Bibliogrfica, de Darcy Damasceno, alm de uma Fortuna Crtica
ampliada, cujos autores so mencionados na bibliografia geral deste estudo.
Uma cronologia da vida e da obra de Ceclia Meireles permite
uma compreenso da constituio biopsquica da autora e dos seus antecedentes
culturais, sntese de sua trajetria biogrfica e de seu roteiro potico, em
articulao ao contexto histrico e cultural em que o livro Solombra vai encontrar
as suas possibilidades de existncia.
A comear pelo aspecto grfico, a simples visualizao do
material escrito mostra 28 poemas, agrupamentos bsicos de versos, subordinados
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ao ttulo geral e a uma epgrafe da prpria autora, elementos paratextuais
igualmente relevantes na constituio do livro. Todos os poemas apresentam 13
versos, predominantemente dodecasslabos, distribudos em quatro tercetos e um
monstico, solto, que representa, em geral, uma concluso. Primeiro o leitor toma
conhecimento da existncia, no livro, dos 364 versos: 276 dodecasslabos, 61
decasslabos, 26 eneasslabos e um octosslabo. O verso final do quarto poema
um eneasslabo em leitura forada, justificvel como pausa retrica. J no stimo
poema, o verso final um decasslabo. Noite entretecida com o som dos
tmulos, verso final do 18 poema, Isto que vou cantando j levado, um
eneasslabo, ou um decasslabo, sem ou com ectlipse, ou a eliso do m final de
uma palavra antes de uma vogal que vem no vocbulo a seguir. Recolho a noite
em minhas plpebras, verso de encerramento do 24 poema, Tomo nos olhos
delicadamente, , de modo ntido, um octosslabo, sem outra margem de leitura.
A leitura oferece o deleite, o encantamento, a perplexidade, o sabor ingnuo e
apaixonado de um encontro inicial. Relaes amorosas que se aprofundam com o
passar dos dias ganham em estreitamento na medida do convvio, da repetio dos
encontros. Uma vivncia intrinsecamente em expanso interior, em
aprofundamento.
Solombra integra a obra potica ceciliana: cada um dos seus
versos enlaa-se nesta rede textual. Os mais profundos nexos e o fluxo contnuo
do mundo so tematizados no livro. Prope reflexes sobre a falta de sentido da
existncia em seu imediatismo, a que se ope a sobrevivncia, ainda que precria,
pelo canto, pela poesia. Dizer pela poesia dizer pela arte. A vida em suas
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dimenses slidas, duras como o metal, concretas, em oposio ao onrico, ao cu,
ao rosicler e ao imaginrio. Tudo o que slido desmancha-se em sonhos, torna-
se transcendncia. O sobrenatural, o alm do natural, a realidade mais ampla,
assume o lugar de fundamento da potica ceciliana: modernidade,
contemporaneidade, atualidade, num testemunho potico das principais
inquietaes dos homens das ltimas dcadas do segundo milnio.
O contato material com Solombra, a primeira leitura, em seu
contexto biogrfico, histrico e esttico, permite a apreenso inicial do objeto de
estudo. Pela interveno do mtodo em sua fundamentao terica ocorre a
construo do objeto formal da leitura que deixa de ser ingnua para ser crtica.
(Bornheim, 1973, p. 21-34) O objeto passa a ser a poeticidade de de Solombra na
seleo e combinao peculiar dos lexemas: a poesia como ela se faz com
palavras. A obra literria constitui-se em objeto esttico (Ramos, 1972, p. 159).
As observaes iniciais sobre o poemrio como
arquitextualidade e paratextualidade levam a algumas constataes. Na
paratextualidade uma relao pouco explcita e distante entre dois textos, no
importa a extenso deles, como os ttulos, os subttulos, as advertncias, os
prlogos e semelhantes ocorre de maneira significativa (Melo, 1996, p.13). A
arquitextualidade apresenta uma configurao caracterstica. Nela:
O texto literrio no existe como um entidade pura,
anterior e transcendente a qualquer determinao de teor arquitextual, tanto
modal como genrica ou subgenrica. Independentemente da fluidez e das
variaes diacrnicas dos modos, gneros e subgneros, qualquer texto
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literrio produzido como um texto integrado ou integrvel num modo, num
gnero ou num subgnero ou hibridamente integrado em diversos modos,
gneros ou subgneros e lido luz tambm de normas e convenes
arquitextuais, embora essa possam no coincidir com aquelas que o autor
tenha tido a inteno de actualizar (Aguiar e Silva, 1991, p.580).
Ou seja, em Solombra, a leitura de um poema, o particular,
sempre acontece na medida em que ele existe integrado ou integrvel ao conjunto
da obra, o genrico. Qualquer poema dos 28 do livro, sem prejuzo de sua
individualidade e independncia, concebido como um texto integrado ou
integrvel num conjunto que a obra, exigindo assim uma leitura arquitextual,
embora matizada.. Uma denominao da totalidade da obra, uma epgrafe da
autora e a ausncia de ttulos especficos dos poemas identificados aqui como faz
a edio bsica adotada no seu ndice geral, chama a ateno no livro,
apresentados no trabalho em duplo destaque pelo uso de itlicos e negritos. O
acrscimo de uma identificao dos poemas por numerais ordinais, alm de
facilitar o manuseio repetido dos textos, mantm sempre a conscincia da
inteireza da obra, de seu ordenamento singular. O estudo pretende abordar
aspectos textuais e transtextuais, centrfugos e centrpetos, intrnsecos e
extrnsecos, do livro, selecionando, questes e temas sobre o ser, por meio de
lexemas-chave. Do levantamento das imagens do ser decorre uma compreenso de
sua problemtica sempre presente: os lexemas apreendem e nomeiam a
substncia dos seres e das coisas, na unidade e na diversidade do universo. A
inscrio dos elementos constituintes da expresso num rol transforma-se assim
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no inventrio deste contedo, de sua essencialidade, de seus desgnios. O
levantamento de lexemas equivale ao processo de descoberta da substncia
poemtica, pois eles assumem o papel de centro de uma linha de fora no plano de
contedo do poemrio: um desgnio configurador das imagens e dos ritmos
constituintes da poeticidade da obra em estudo.
Que critrio adotar na seleo dos lexemas-chave? A obra
equivale a um conjunto de palavras, entre elas os lexemas-chave, representativos
de um campo analgico legitimando-se assim o critrio da relevncia
estrutural percebida no conjunto das relaes analgicas constituintes de campos
nos dois planos dos signos lingsticos, o da expresso e o do contedo. Valem os
aspectos dos dois planos integradamente observados nas sua potencialidades de
produo de resultados poticos.
A apreenso do objeto de estudo em sua formalidade decorre da
categorizao dos lexemas inventariados, remetidos pela pesquisa s suas
dimenses simblicas e imaginrias. A reorganizao subjetiva da natureza no
plano simblico, num procedimento em que a expresso privilegiada, torna-se
uma constante em face do desafio potico.
Os lexemas adquirem sentido em plenitude quando se
encontram com outros num contexto lingstico e tambm num outro que
humano, social e histrico. Desta visitao entre eles, em condies especficas de
inaugurao e singularidade, configura-se o poema como objeto de arte e esttico.
O poeta, de modo mpar, digere, assimila, modifica o seu material, sentimentos e
emoes; na sua expresso peculiar e imprevista, transforma em poesia o que para
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o no poeta se perde, na busca de resposta para as indagaes dos homens em
geral. Das selees e combinaes de palavras origina-se a poesia: eixos em
projeo recproca. Uma combinao implica uma seleo e uma seleo implica
uma combinao: h uma perfeita comutabilidade entre os dois conceitos.
Dos lexemas selecionados e combinados instaura-se uma
conscincia dimensionada em linguagem e em ser, simultaneamente esttica e
ontolgica, poesia e homem, em seus dramas existenciais. Uma expresso de uma
viso de mundo em sua singularidade.
Da leitura minuciosa e repetida dos poemas, e, em decorrncia,
do levantamento dos lexemas-chave, resultou um quadro a demandar uma
organizao que permitisse extrair do labor com o material potico uma
interpretao e uma compreenso solidamente construdas e com a capacidade de
persuaso de sua validade lgica e crtica na recepo de Solombra.
O levantamento dos lexemas nucleares nas frases e nos textos do
poemrio permitiu uma distribuio deles por categorias, como as relaes
abstratas, a temporalidade, a espacialidade, a matria, o intelecto, os afetos e as
vontades, possibilitando questionamentos e redistribuies, em categorias ainda
mais sucintas, o que no as invalida, apenas mostra, de uma maneira objetiva, a
decantada polissemia da obra literria, do poema. Tendo em mos a chave dos
lexemas possvel abrir as portas da poesia de Ceclia Meireles em Solombra e
penetrar, pela porta dos poemas, nos seus ritmos e nas suas imagens, portadores,
para alm e para aqum dos elementos lingsticos, de concepes de poesia, de
arte, de homem, de sociedade e de mundo. Ou abordagem da presena do ser no
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mundo em toda a sua dramaticidade de que a poesia elabora esteticamente o que
seria de outro modo a vida social e histrica sem contribuio da arte na contnua
busca de algum sentido para a realidade humana. Ocorre a intuio de uma
singular viso de mundo e de sua peculiar, motivada e indissocivel expresso: na
dico potica um pronunciamento sobre a existncia.
A exigncia de uma fundamentao terica concebe a poesia a
existir no reino das palavras. Fonemas, slabas, sintagmas no plano de expresso;
morfemas, lexemas, enfim, palavras, como para Pottier, segundo Todorov e
Ducrot (1977, p256-.257). Dizer, elementos do lxico, em sntese, palavras.
At o fim do sculo XVIII, era idia tcita entre a
maioria dos lingistas ocidentais que a menor unidade lingstica dotada de
uma realidade na cadeia falada e, ao mesmo tempo, portadora de
significao, a PALAVRA: a frase feita de proposies, feitas por sua vez
de palavra. Se se decompe a palavra, em unidade no-significativas
(slabas, letras). A definio da palavra permanece alis, em geral, implcita
(Todorov e Ducrot, 1977, p.195).
Os lexemas ou palavras, significam um fonema ou um grupo de
fonemas com uma significao. A palavra lexema no seu primeiro elemento
constituinte aponta para a significao e na sua terminao exibe a sua natureza
de fonemas em seqncia individualizada.
Num sentido largo, os conceitos de lexema e de palavra
apresentam vastssima rea de interseco. Na poesia, as relaes entre os planos
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de expresso e de contedo adquirem uma motivao especifica, resultando na
necessidade de uma leitura ainda mais atenta, pois a implicao entre os dois
planos do signo lingstico torna-se especial.
Os lexemas portam imagens, metforas, smbolos, mitos e temas
(Wellek e Warren, 1971, p.233-265). Na averiguao da espcie de discurso a
que pertence a poesia, e quando, em vez de parafrasearmos em prosa,
identificamos o sentido de um poema com o seu todo complexo de estruturas,
encontramos ento, como estrutura potica central, a seqncia exposta na
abertura deste pargrafo (Wellek e Warren, 1971, p.233).
As obsesses no uso dos lexemas definem a poesia de um autor.
No pensamento de Charles Baudelaire, Para se penetrar a alma de um poeta, tem-
se de procurar aquelas palavras que aparecem mais amide em sua obra. A
palavra delata qual a sua obsesso (apud Friedrich, 1978, p.45). A citao do
poeta francs expe claramente um princpio excelente de interpretao
(Friedrich, 1978, p.45). As palavras repetidas amiudadamente permitem a
persistncia dos temas de um poeta. Trata-se de palavras-chave (Friedrich,
1978, p.45) na definio das categorias bsicas na leitura de uma obra potica. A
iniciativa das palavras pode tambm partir de suas significaes (Friedrich,
1978, p.185) alm dos ritmos, sons e afins.
Numa perspectiva de fundamentao terica e metodolgica
algumas questes exigem uma breve exposio. Importa ento considerar as
articulaes entre as concepes vigentes na teoria literria em pocas mais
recentes e a metodologia adotada no recorte dos objetos de pesquisa.
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Organizar as etapas do trabalho j dar um importante passo na
sua consecuo. A eleio do corpus, a seleo da obra a receber a ateno
requerida pela sua posio de objeto de estudo, Solombra, no caso, o primeiro
trecho do percurso proposto. Na segunda fase, o levantamento dos lexemas-chave
vai da leitura cuidadosa dos poemas recolha de material capaz de apontar alguns
rumos e tendncias que pudessem orientar a continuidade dos estudos. O mtodo
pressupe o levantamento lexemtico, a identificao dos campos temticos,
passando ao analisar poema a poema pelos procedimentos estruturais
intermedirios.
Na configurao dos poemas, em sua materialidade lingstica,
em seu modo de dizer uma viso de mundo e do ser, os temas geradores e as
estruturas recorrentes, encontram nos lexemas lidos a sua substncia,
reorganizando-se em virtude de uma primeira compreenso e transformando-se
em objeto de estudo e reflexo, com a finalidade de permitir uma interpretao
com a clareza que o processo instaura. Da soma dos aspectos materiais e formais
surge o objeto de pesquisa e reflexo em sua inteireza, permitindo o
estabelecimento de uma perspectiva.
Qual o sentido do ser? Qual a essncia do ser? Qual o nome do ser?
Os poemas eleitos como objeto de estudo recebem uma viso
sincrnica das estruturas dos textos, dos seus elementos internos, num enfoque
lingstico, desdobrando-se em semitico, estilstico, formalista, estruturalista,
fenomenolgico, e temtico, no destaque de lexemas configuradores de imagens,
chaves na leitura e centro de gerao das estruturas poemticas, definindo o
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estudo intrnseco, sempre que os aspectos apontados contribuam para um percurso
no plano intratextual.
A leitura dos poemas na demanda extrnseca requer ainda uma
viso diacrnica, da evoluo do texto, uma anlise sociolgica e psicolgica,
enveredando-se pela teoria dos arqutipos, pela teoria dos gneros, pela teoria dos
movimentos, alm de um percurso pelo mtodo comparativo e pela considerao
das relaes com o mundo exterior, o homem, a sociedade, a histria, a cultura,
tudo aquilo que pode conceber-se como plano extratextual.
A relao com outros textos, poticos ou no, de Ceclia
Meireles ou de outros autores, tambm comporta elementos elucidativos tarefa
proposta. A integrao metodolgica decorre da combinao deste conjunto de
aspectos visando a um maior rendimento da leitura dos poemas a cada passo.
O objetivo extrair uma inferncia crtica, a demonstrao da
unidade na diversidade, a caracterizao da trajetria potica, da tcnica do verso,
das constantes temticas, estruturas geradoras de renovadas estruturas, na
repetio e no contraste, e da herana simbolista. Importa considerar a rede a que
eles pertencem sem a perda de suas singularidades.
Um poema apresenta sempre aspectos conjuntivos que permitem
a sua integrao nas textualidades do livro e aspectos disjuntivos que asseguram a
sua individualizao em relao aos demais, resultando do processo a
arquitextualidade de Solombra. As sobreposies textuais do aos poemas um
carter de palimpsesto: sob um texto encontram-se marcas de outros, entre os
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quais se estabelecem relaes dialgicas. A finalidade proposta alcanar a
potica como fundamento em que se escoram os poemas em sua existncia.
Uma pesquisa passa pela definio de sua unidade mnima de
observao, levantamento de suas caractersticas e reflexes sobre elas. O objeto
de busca alcana ntida delimitao. Este um dos movimentos da inteligncia
em direo ao real, ao ser. Numa outra direo, o pensamento faz o percurso do
verso, organizado em fonemas, slabas, lexemas, sintagmas, no mbito do poema,
ao ente que em sua atividade constri o verso. A problemtica da realidade
humana, do ser lanado no mundo, identifica-se com a da poesia. A questo do ser
emerge. A poesia e a ontologia acolhem o tema do ser.
Do levantamento dos lexemas-chave resultou a identificao de
um conjunto de imagens e temas estruturadores, levando o estudo a encontrar as
relaes entre o diverso e o uno. A proposta e a forma de organizao do trabalho
resumem tais propsitos. Dos campos lxicos, do vocabulrio tpico, obsessivo,
das palavras nocionais, origina-se um percurso rumo aos temas transformados em
objeto de reflexes (Friedrich, 1978, p.45-46).
Tudo que slido se desmancha no ar, o j proverbialmente
estabelecido, motiva a sua reestruturao em tudo que slido se desmancha em
sonhos, em imagens, na perspectiva desta aproximao da poesia e da potica de
Ceclia Meireles, em particular, e, por extenso, da poesia e da potica da
modernidade.
Os textos considerados em seus conceitos semitico, lingstico,
discursivo, literrio ou potico, poemas, enfim, apresentam uma expressividade na
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atualizao e fixao de um sistema de signos, um repertrio de palavras, de
lexemas, contrapondo-se assim ao extratextual. Do textual ao extratextual o
percurso completa-se. Delimitam-se no espao e no tempo. Possuem uma
organizao interna e uma configurao em um todo estrutural (Aguiar e Silva,
1991, p. 562-3). Estreitamente relacionados a esta estruturalidade dos poemas,
numa pertinncia impossvel de ignorar-se, os lexemas-chave, freqentemente
mais de um no poema lido individualmente, integram uma cadeia temtica e
estrutural, constituinte de um conjunto de imagens pelas quais uma intuio do ser
encontra a sua expresso. O levantamento e a organizao dos lexemas em
campos de afinidades permitem a composio de um retrato, que tambm
imagem, embora condensada e complexa, do ser objeto de aproximao e reflexo
no poemrio.
A poesia de Ceclia Meireles em Solombra, objeto de estudo em
delimitao inicial, apresenta uma viso do ser irremediavelmente comprometido
com as vicissitudes no mundo, a existencialidade sendo pura contingncia. A
transcendncia vazia. O indivduo no vive na imanncia. Transcende as
dimenses de sua individualidade para viver em sociedade. Um percurso em que o
eu adquire a condio de dizer ns. Os homens fincam suas razes na matria e
projetam-se na profundidade e largueza de suas imagens, caminham sobre a terra
guiados pelas suas emoes, pelos seus sonhos, suas idias.
O movimento da leitura vai dos lexemas s imagens, s
metforas, aos smbolos e aos temas (Wellek e Warren, 1971, p. 233-265). No
percurso entre o concreto, o particular, e o abstrato, o geral, as categorias, se
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estabelecem relaes, as estruturas poticas em configurao. O todo comparece
como um conjunto de suas partes, em que se produz um sentido de unidade
temtica.
No levantamento dos lexemas as ocorrncias emergem na
singularidade de cada uma, no agrupamento deles por afinidades as recorrncias
se afirmam. As ocorrncias por um processo de repetio enftica caracterizam as
obsesses: um mapeamento estrutural correspondente ao caminho reflexivo da
conscincia do plano da existncia ao ser. Numa extremidade os fonemas, na
outra os temas, isto , dos elementos fsicos aos metafsicos. A imanncia como
ponto de partida para a transcendncia: ou, do natural, ao sobrenatural, pelo
humano, social, histrico. Ou um percurso da matria ao esprito, do objetivo ao
subjetivo, do exterior ao interior, da superfcie profundidade, em exemplaridade
circular.
Os elementos constituintes da matria dispostos na
temporalidade e na espacialidade conforme a intuio e o funcionamento do
intelecto, das vontades e dos afetos constatam. Os poemas em sua constituio
por lexemas apresentam-se conscincia pela leitura como fenmenos diante de
um eu que os transcende (Husserl, 1975, p.7-192).
Um poema rene uma multiplicidade de estratos em dilogo, em
muitas vozes, na polifonia de sua constituio (Ramos, 1972, p.154). Nos
procedimentos que levam a obra literria a se constituir em objeto esttico, ou
passagem de Solombra, por exemplo, de um livro de 28 poemas, como na sua
primeira e objetiva descrio, emergncia de sua poeticidade, dos traos que
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permitem classificar a obra como potica e no de outra maneira, ocorre,
basicamente, o delineamento de um movimento de identificao dos seus
elementos sensveis, os lexemas, na suas dimenses fnicas e morfossintticas e
semnticas, a integrao de tais elementos em categorias amplas e abrangentes,
em formas de acentuado grau de abstrao, tornando possvel na culminncia do
processo a intuio essencial do fazer potico, da densidade esttico do livro
(Ramos, 1972, p.156). Ou transformando a palavra literatura na palavra poesia
como Wellek e Warren exporiam a questo: No so os elementos de uma dada
obra, mas sim a maneira pela qual estes se encontram nelas reunidos e a sua
funo, que determinam se ela ou no literatura (1971, p.302). Por homologia
ao processo esttico de percurso do concreto ao abstrato, do sensvel pelo formal,
pelas categorias, ao essencial, o homem percorre um caminho da sua existncia,
da realidade humana em sua concretude, rumo ao transcendente, realidade mais
ampla do ser, passando antes pelo social (Jaspers, 1973, p.74-108 ). Sobre a terra,
embaixo do cu. Levantei os olhos para ver quem falara. Mas apenas ouvi as
vozes combaterem. E vi que era no Cu e na Terra. E disseram-me Solombra!
(Meireles, 1994, p.786).
Esta introduo alongou-se por muitas pginas. Os seus itens
bsicos constituem uma espcie de captulos nela integrados. Apresentou uma
sntese da vida e da obra de Ceclia Meireles, resumiu as justificativas da
pesquisa, cuidou de uma descrio inicial da obra selecionada, delimitou o
objeto nas suas dimenses materiais e formais, expondo os critrios de seleo
dos lexemas-chave de Solombra, mostrando assim os fundamentos tericos,
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metodolgicos e analticos do trabalho, evidenciando os objetivos e uma
primeira e sucinta formulao da tese.
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I OS ELEMENTOS
O captulo que comea aqui fixa o propsito de pensar a matria
com base nos quatro elementos: os componentes primeiros de uma composio;
resultantes de um processo de anlise (Abbagnano, 1982, p.291-2). O que pedra em
sua configurao e concretizao em lexemas terra, se elementarmente concebido.
As imagens estabelecidas pelos lexemas rios, nuvens e afins evocam o elemento
gua. O ar ocupa um lugar central em Solombra como lexema e imagem remetendo
ao elemento evidente. Alguns lexemas portam, do ponto de vista aqui considerado,
uma rica ambigidade, como o caso exemplar de nuvens: a um s tempo areas e
aquticas. J os campos lexemticos da luz e da sombra em suas variadas formas,
inclusive naquela em que aparece no ttulo do poemrio, representam dois aspectos da
presena do elemento fogo em relao a objetos opacos tendo, portanto, um lado
iluminado e outro escuro. Solombra na sua sonoridade identifica-se a sol e a sombra:
luz, fogo, de um lado, e obscuridade, noite, do outrro. A tenso entre os dois aspectos
do lexema bsico permeia o poemrio em estudo do comeo ao fim. Assim na
descrio do percurso dos lexemas aos temas, terra, gua, ar e fogo aparecem como
as palavras-chave na organizao dos quatro itens a seguir.
Como sujeito, potncia, fora, extenso, lei, massa e densidade, a
matria, no universo, diversifica-se sem perder a sua unidade (Abbagnano, 1982,
p.618-19). Os lexemas apreendem e nomeiam a substncia dos seres e das coisas na
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multiplicidade de seus lugares e momentos, no concreto das circunstncias e aes.
Os elementos asseguram a unidade de base e as suas combinaes ao mundo na
variao inumervel de seus objetos. Generalidades e especificidades interagem em
tenso permanente, em ignio, mas isto decorrente do fogo, um dos elementos. A
exposio das anlises dos poemas segundo a ampla categorizao dos elementos
quer apreender os lexemas, as imagens, os smbolos, os temas na condio de termos
de relaes, de estruturas do objeto em estudo.
1.1 Terra
Nas imagens relacionadas ao elemento terra entram as rochas, as
pedras, os objetos portadores de solidez e de inesgotveis sugestes esculturais no
movimento que expressam pelas formas adquiridas em diferentes lugares e pocas,
configuram o mundo onde a realidade humana entrega-se travessia existencial e
constri suas acomodaes em sempre renovadas atividades arquitetnicas.
O dcimo verso do 11 poema, Falo de ti como se um morto
apaixonado, ...abre-se o mundo por mil portas simultneas, na abertura do ltimo
terceto, comeando pela conjuno aditiva e, funciona como um acrscimo aos
versos da estrofe antecedente. Encerrado por um ponto, apresenta um sintagma
nominal, um verbal e um adverbial. No que concerne organizao da massa sonora,
a conjuno e os dois primeiros sintagmas apontados integram a primeira parte do
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verso. A abertura ao mundo ocorre, de fato, na percepo dele. Este o processo de
construo da metfora. Na segunda parte do verso, a nfase incide sobre a amplitude
do arco perceptual, o surgimento de um grande nmero de portas, cabendo elas,
inteiramente, no tempo. Isto torna possvel um inventrio dos seres, das coisas, e dos
acontecimentos e relaes do mundo. Assim fica claro porque o homem, a sociedade,
a natureza e o universo, incluindo a transcendentalidade, passam a fazer parte da
esfera de cogitaes da poesia, a comear pela materialidade da terra e nela a ao do
tempo.
No 12 verso, como se os mundos dependessem desse encontro,
do 15 poema, As palavras esto com seus pulsos imveis [.], passa-se da
considerao da terra, um local particular, no discurso do poema, para a apresentao
dos mundos, uma conceituao mais genrica.
Numa fala, Abro esta porta alm do mundo, mas no passo, no
stimo verso do 16 poema, luz da noite, descobrindo a cor submersa, em que o
sujeito assume a primeira pessoa, aponta-se para a abertura de uma porta, de uma
passagem fronteiria, em oposio a um percurso negado por razes desveladas na
seqncia. No verso seguinte, o umbral, a soleira, o limite da porta, apresenta-se
como o bastante. No h a necessidade de ultrapass-lo. Dali possvel a viso do
ponto certo, do mais elevado local, do vrtice adjetivado grande. O mundo olha
para a direo desta sua mais alta aspirao. O ltimo verso do terceto volta-se
inteiramente para este ponto, alcanado pelos olhos, embora no atingido pelas mos,
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mas nem por isso menos perceptvel e satisfatrio. Embora distante, parte de uma
vivncia.
No dcimo verso do 19 poema, Se agora me esquecer, nada que a
vista alcana, ... se eu te esquecer ficar pelo mundo, o esquecimento ganha maior
nitidez. O pronome de tratamento da segunda pessoa do singular pe em cena pela
primeira vez, no poema, um interlocutor claramente apontado. Este o mesmo ser
presente em todo o poemrio, reaparecendo, poema a poema, nas cogitaes do eu
lrico. Nas estrofes da primeira parte, as trs primeiras, se o eu poemtico fosse o
paciente, o objeto do esquecimento, sobre a sua presena no mundo sobreviveria a
impossibilidade de encontrar-se em sua plenitude. Aqui, o esquecimento daquele ser,
pelo sujeito poemtico, leva ao deslocamento em sua realidade definida em face do
seu interlocutor. Acontece a sua precipitao no torvelinho do mundo. A persona
titular do discurso poemtico percorre o caminho do abandono ao vazio existencial,
decorrente do esquecimento. Torna-se morta e prisioneira, mas de um tipo que no
recebe sepultura nem cerca-se de grades. Introjeta a morte. Vive a sua vagueza sobre
a terra.
Na sua condio de corpo duro e slido do reino mineral, a pedra
contrasta com as transformaes inerentes ao biolgico nas suas etapas de
crescimento, maturidade, velhice e morte. Representa a solidez, a dureza, o volume,
a escultura do movimento essencial (Cirlot, 1984, p.451).
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O aparecimento da palavra pedra, adjetivada como ocorre no
dcimo verso do primeiro poema, [a] fina pedra do silncio mostra o processo de
transferir para o silncio em seu campo auditivo as possibilidades arquitetnicas e
esculturais da pedra. Assim ocorre a possibilidade de ver o que imperceptvel aos
olhos como se fora uma escultura essencial.
Do inventrio realizado no primeiro terceto do segundo poema entre
outros objetos naturais encontra-se a pedra, ela mesma integrante na combinao
arco de pedra do verso inicial do oitavo poema do universo dos objetos culturais
decorrentes da ao humana.
O travesso que encerra o dcimo verso do dcimo poema, S tu
sabes usar to difano mistrio [:], passa por um desvio em relao a sua funo. O
seu uso potico equivalente aos dois pontos, gera um efeito de estranheza de grande
rendimento esttico de condensar aspectos arquitetnicos, espaciais, das imagens dos
dois versos seguintes aos aspectos temporais dos advrbios transformados em
substantivos e pluralizados: a estrofe encerra-se pelos sintagmas sem agoras e sem
ontens [?]. No prximo verso duas apstrofes instalam um tom emotivo
gramaticalmente encarnado na organizao da frase. Nelas, caminhos e tneis
valem por instrumentos de viso. Na primeira, o eu poemtico dirige-se aos tneis
do universo. Um tnel uma passagem, uma travessia, com a angstia nela
implicada, o desejo de tocar os fundamentos do universo. A noo de travessia
corresponde de existencialidade. Um labirinto parece existir sem uma finalidade
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aparente, uma complicao irremedivel. Na segunda apstrofe, a fala direciona-se
para os caminhos. Eles articulam-se serenidade. Do aprofundamento cognitivo da
realidade propiciado pelos tneis, os caminhos tornam-se serenos, calmos, plenos. E
indaga-se, decorrncia do redimensionamento da compreenso pelo eu poemtico, da
perda da vigncia do tempo e do espao, no ltimo verso da estrofe. A serenidade, no
ser em viso ampliada, rompe a estrutura do tempo. O ser conquista a oniviso. Numa
sntese do espao/tempo, indicando um deslocamento, configura-se o carter
arquitetnico da espacialidade. A construo, torre ou labirinto, pedra, terra
Confirmando a imagem de delicadeza, a noite apresentada como
jardim, um espao vegetal, vivo, organizado pelas mos do homem onde a atitude
encontra um escoadouro: tempo e silncio. A unio dos mundos, aqueles de sua
poesia, ocorre nesta perspectiva de elaborao humana, encontrando um ponto de
partida, as razes, no elemento terra. A noite o momento de reflexo, de meditao,
de sonhos, de cuidados com esse jardim, de poesia.
O movimento do sujeito de abandono de uma posio humana
apresentada como litornea, no quinto verso do nono poema, O gosto da Beleza em
meu lbio descansa [:], sinto o mundo chorar como em lngua estrangeira. O litoral
um ponto de referncia na concepo de outras terras acessveis pelo mar de que ele
a margem, ou no entendimento dos interiores de um lugar limitado pelo oceano.
Numa ou noutra escolha, trata-se de deslocamento para uma realidade diferente. O
deslocamento, a partida, gera lgrimas no e do mundo em abandono, revela o
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verso: lgrimas e lamentaes, numa manifestao cujo sentido no se compreende.
Uma lngua estrangeira para o ente em busca de outras possibilidades de percurso. O
final deste quinto verso ocorre pela presena de dois pontos, a mesma pontuao
existente no interior do verso seguinte, assinalando uma pausa intraversal: nos dois
casos, a tenso entre a interrupo e a continuidade expressa-se no recurso grfico
adotado. O espao litorneo apresenta-se como a regio limiar entre a terra e o mar, o
slido e o lquido em contato.
O homem e sua imaginao esculpe, arquiteta, elabora formas no
mundo, pe-se a agir sobre a terra, integrando a solidez elementar ao seu processo de
sonhar e viver interior e exteriormente, em funo das palavras, das imagens e dos
smbolos em que respira.
1.2 gua
No processo de elaborao do elemento gua em imagens, a
considerao de suas caractersticas gerais como lquido oferece um bom comeo. As
guas em movimento encontram-se nos rios, neles sendo facilmente perceptvel a
existncia de margens e de uma possibilidade de esculturas fluidas, dinmicas, em
movimento e os seus elos com a sombra. O sangue, lquido, gua, vida, numa
expresso em vegetalidade, outra em corporalidade, desdobra-se em ricas
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possibilidades simblicas. gua e sal, amargura, separao, as lgrimas participam da
expresso das vontades e dos afetos no campo das imagens lquidas, aquticas.
Numa reflexo sobre a gua, importa trazer lembrana os seus
traos bsicos, o falar de seu carter lquido, inspido, inodoro, incolor, e da sua
presena nas formas das superfcies. O que vivente origina-se das guas e do
inconsciente universal. Dela surge a vida em oceanos primordiais. A gua representa
a unio universal de virtualidades, a precedncia das formas, o momento anterior
organizao da vida (Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.15-22).
Um dos contatos humanos com a gua a experincia de conviver
com os rios. Neles, a natureza e o tempo encontram uma sntese, a irrigao e a
fecundidade concretizam-se, e o seu movimento, caracterizado pela irreversibilidade,
porta assim, uma evocao do abandono e do esquecimento (Chevalier e Gheerbrant,
1988, p.780-782).
Trs versos agrupados numa unidade gramatical constituem a
segunda estrofe do 15 poema, As palavras esto com seus pulsos imveis [.]: Mas
o sangue do amor tem sonos e silncios,/ sabe do que aparece apenas porque passa:/
espera sem temer que o universo se explique.// O verso quarto do poema, o primeiro
da estrofe, comea por uma conjuno adversativa. Este comeo permite pensar na
hiptese de esta estrofe estabelecer algum tipo de relao opositiva com a anterior.
Uma oposio que, de fato, ocorre: na primeira estrofe a imobilidade e a morte
dominam, na segunda, o predomnio do sangue e da vida. A substituio da
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palavra sangue pela palavra vida desnuda o procedimento de construo da
imagem adotado no verso. A vida do amor, a sua existncia, pelo influxo do instinto e
da paixo, segundo o verso, caracteriza-se pela suspenso das relaes prprias do
sono e pela ausncia de palavras, pela valorizao da individualidade e do interior.
Uma fora primordial exerce o seu domnio. Cabe a tambm silncio, que se
conecta freqentemente com sombra(s), a exemplo do quarto verso. No verso
seguinte, o saber dessa vida do amor define-se por perceber a passagem dos
processos, sem manter com o aparecimento e o desaparecimento dos seres e das
coisas vnculos inibidores: no impede o ser de sua imerso no mundo da vida. No
sexto verso, o temor e a ansiedade do universo no afetam a vida do amor,
confirmando os significados da linha anterior. Passando pelo amor, a atitude
dominante nesta estrofe, assumida, portanto, pelo sujeito poemtico, a da esperana,
e a serenidade dispensa as inquietaes, transfere para o objeto a tarefa de se
explicar, se revelar.
O terceiro verso do 24 poema, Tomo nos olhos delicadamente,
completa a segunda parte do verso intermedirio da primeira estrofe: jardim de puro
tempo/ com ramos de silncio unindo os mundos.// O processo de encadeamento
sempre utilizado. Em torno do verbo na primeira pessoa do singular do presente do
indicativo, organiza-se a primeira parte da estrofe; a primeira indicao, que se
mantm at o ltimo verso do poema, de que o eu poemtico vai exercitar a sua fala
de forma direta, invariavelmente. Do primeiro verso encadeado ao segundo, Tomo
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nos olhos delicadamente/ esta noite, resulta a imagem de uma viso meiga, terna,
sutil, cuidadosa. O objeto desta viso encontra-se no segundo verso. O motivo no a
morte, mas a reflexo sobre a vida, graas memria, que lhe restitui lembrana
cansadas lgrimas antigas, longas histrias sucessivas; no cortejo de glrias
passageiras, na finitude do homem, tema recorrente neste poemrio, retorna, prximo
ao sujeito poemtico, segundo a indicao do pronome demonstrativo que abre o
verso. O eu lrico vive o recolhimento em seu mundo de sonho e poesia. Da at o
final da estrofe, acontece um aposto.
O pronome demonstrativo com que se abre o 18 poema, Isto que
vou cantando j levado, permite um entendimento constitudo pela expresso e
pelo contedo. O pronome demonstrativo usado anaforicamente, neutralizado, isto,
(o que se segue): o que veio antes isso. Num e noutro plano o objeto da designao
o canto. Nele encontram acolhimento o passado, o presente e o futuro, as
significaes e os aspectos puramente sensoriais da msica. A palavra inicial do
poema, em sua neutralidade fixa, uma certa neutralizao semntica, transformando-
se, assim, numa espcie de arquilexema. O campo de abrangncia, da cano
implcita no verso, ganha em expanso. A existncia de uma forma aparentada
msica no uma mera presuno, basta uma olhada para o primeiro verso do
poema. Quem canta faz uma cano. Esta a estratgia, a forma de expresso,
adotada pelo eu do poema. O eu lrico transforma-se em agente do canto j na sua
localizao elptica, antecedendo locuo verbal. No mbito ainda do primeiro
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verso, em seu encadeamento com a primeira metade do segundo, o advrbio de tempo
indica a distino entre dois aspectos de sua ocorrncia. A continuidade do canto
contrasta com a sua imediata absoro pelos rios do assombro. No segundo verso,
em entre as plpebras/ das margens, a similitude entre o real e o evocado constitui
uma metfora antropomrfica: uma metfora elaborada em decorrncia da percepo
das relaes estabelecidas nos limiares da regio indicada pelos dois lexemas-chave
do fragmento citado. Na poesia ceciliana, Motivo proclamava anteriormente
(Meireles, 1994, p.109) as razes do canto: porque o instante existe. Ele ocorre
naquele momento originrio. Os rios identificam-se aos mistrios da vida, ao escoar
do tempo e fluidez das coisas. A hiprbole acentua a dinamicidade e a
processualidade do real. Os assombros em Pompia (Meireles, 1994, p.1362), nos
Poemas Italianos, evocam a experincia da viso de Deus, ou do ser, ou de si, por
aqueles que viveram na cidade, em seu momento crucial. Poemas oferecem chaves
para leitura de poemas. O cantar deixa apenas vestgios, flores lquidas, na
expresso do terceiro verso. O desenho que os rios de assombro fixam margem,
vestgios do canto, ganha corpo nas palavras finais do primeiro terceto.
Vida, sangue, gua, constituem lexemas e imagens em legtima
proximidade. A gua, numa de suas significaes simblicas, tem como tema
dominante o ser fonte de vida (Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.15). Das guas e
do inconsciente universal surge tudo o que vivente, como Cirlot escreve (1984,
p.62-63). O sangue, em sua natureza lquida, quase gua, simboliza os valores
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contguos e solidrios vida (Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.800). gua, sangue,
vida, mantm estreitas afinidades como lexemas, imagens, smbolos e temas.
No desenvolvimento e na conservao do indivduo e da espcie
observa-se a vida. Para ingressar na categoria dos smbolos da vida, os signos
necessariamente portam as conotaes daquilo que pode fluir e crescer. O fogo, na
sua intensidade, a gua estreitamente vinculada fertilidade, ou o verdor das plantas
na primavera exemplificam sobejamente o fenmeno. Nota-se de maneira evidente a
equivalncia entre a simbologia da vida e a da morte. Nos processos vitais, a criao,
a dissoluo e a conservao pressupem-se entre si. Indo alm da viso da vida
como um modo em que a matria orgnica se estrutura, ela inclui no seu percurso o
paraso, a queda, a ascenso e a imortalidade.
De um lado, a vegetalidade, representando os ciclos e os aspectos
da fecundidade e da abundncia observveis na variedade geral da natureza, nas
expresses bsicas da vida; do outro, a corporalidade, a apreender a materialidade da
vida em seu plano humano, na encarnao dos apetites sempre renovados e da
decorrente insaciabilidade e da dor que a acompanha.
A penetrao no universo relativo s plantas, da vegetalidade,
requer a considerao de seus dois aspectos fundamentais. O primeiro deles concerne
a sua natureza de ciclo anual. As plantas nascem, crescem, vivem e morrem na
periodicidade anual, sempre em retorno, inspirando aos homens a imagem da
ressurreio, do ressurgimento, do renascimento, em suas variadas vertentes. O
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segundo aspecto remete abundncia decorrente da fecundidade das plantas
propiciando coletas e colheitas portadoras de felicidade, que se repete e se deseja
sempre, na expresso marcante dos rituais propiciatrios.
Desdm de flor . . . voz terrena, escuta as rosas!, o stimo
verso do dcimo poema, S tu sabes usar to difano mistrio [:], embora
dodecasslabo, no segue o padro dominante. A sua pausa intermediria ocorre na
quarta slaba. A primeira parte do verso acentuada ainda na sua segunda slaba,
apresentando ento um ritmo binrio. Para intensificar a pausa, a quarta slaba
seguida por reticncias, solicitando, por conseqncia, interrupo mais demorada da
leitura e reflexo. Tambm oferece um espao destinado ao fluir das emoes. As
quatro slabas iniciais do verso constituem uma seqncia nominal. O primeiro
substantivo o ncleo da expresso, o segundo, flor, integra-se singularmente
frase. Desdm, que tu tens, de flor, fica subentendido. Traduz, como em latim, a
subjetividade do interlocutor, conforme o genitivo subjetivo. As reticncias, porm,
ao suspenderem tal avaliao, deixam a impresso de que quem fala pode
reconsiderar o que disse. Afinal, se no se conhece, como pode algum julgar o
Outro? No obstante, exorta o interlocutor a escutar as rosas, os seres mais frgeis,
postos no poemrio por lexemas como flor, rosa e lbio. Na sua inteireza, o
fragmento sugere um desprezo delicado. Uma atmosfera sutilmente insinuada, que
combina com uma pontuao aberta expanso da rea das significaes. A segunda
parte do verso, iniciada por um travesso, exclama, chama, apostrofa. Dirige-se a uma
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voz terrena. Uma voz um som entificado, individualizado, personificado. O
adjetivo posposto palavra voz indica a sua natureza. O que era flor na primeira parte
do verso torna-se, pluralizada e especificamente, rosas, na segunda. Lembranas de
fragilidade e efemeridade, mas seres da terra, como a voz. Identificao pelo carter
telrico de ambos. Este ser to misterioso, de certa forma distante, mostra-se muito
prximo, e, na sua amplitude, permeia a realidade terrena, divide com os homens a
sua presena no mundo, convive com eles. Na existncia terrena, elos prendem os
homens a uma esfera que, sendo outra, a mesma onde habitam. O verso quer, no seu
jogo de poderes encantatrios, permitir e oferecer, pela evocao, um contato entre
os dois aspectos de uma realidade.
. . . presa estou, como a rosa e o cristal, nas arestas/ de exatas
cifras delicadas que se encontram/ e se separam: em polgonos de adeuses . . .//
Usualmente uma estrofe no comea, como a quarta do oitavo poema, Arco de pedra,
torre em nuvens embutida [,], por reticncias. E observe-se como no comea apenas
por reticncias, mas por reticncias e travesso.
O uso inabitual de reticncias e travesses estabelece uma
atmosfera de suspenses, rupturas e retomadas do discurso, sempre na tentativa de
apreender as oscilaes dos seres e das coisas. As contradies da realidade humana,
existencial, social e historicamente vividas encontram, na utilizao de tal recurso
retrico, uma possibilidade de elaborao potica e de expresso. Do encontro e da
separao, das arestas, intermitentemente, aparecem os polgonos de adeuses do
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12 verso do oitavo poema, Arco de pedra, torre em nuvens embutida [,] . O
imagismo geomtrico merece realce mais uma vez: as imagens so construdas num
alto grau de abstrao.
Permanecendo, ainda, no campo das cogitaes sobre proximidade
e afastamento, continuao e ruptura, o 12 poema, O que amamos est sempre
longe de ns [:], organiza-se embasado em duas constelaes semnticas
materializadas por dois sintagmas correspondentes a elas: a primeira, o que
amamos, repetida no primeiro, no segundo e no quarto versos; a segunda, de
estrutura paralela, o que em si tudo ordena, no dcimo verso. Da consolidao do
primeiro sintagma destacado, participam muitos lexemas: longe, no primeiro e no
segundo versos, [noss]o impulso de amor, no terceiro, no sabe, no segundo,
vem e vai, oposio e complementaridade, no terceiro, a flor na semente, no
quarto, morte, no sexto, acaso, no oitavo e no nono verso, num dos lados. Na face
contrria, ainda nos limites da constelao inicial, participa o amor lmpido e exato,
do nono verso, imagem grfica, visual. Sendo que lmpido caracteriza o amor, no
nono verso do poema 12 e o dia no 11 e no 12, ...cada dia o seu dia/ breve,
talvez; lmpido, s vezes..., do quinto poema, Falar contigo [.] Andar lentamente
falando. Na constelao definida pelo segundo conjunto sintagmtico, localizam-se
os lexemas gratuidade e plenitude, no dcimo verso, o equvoco [... ] da
cegueira, no 12, e na indicao da invisibilidade decorrente da falta de contraste, da
percepo, da sensao, setas negras na escurido, no monstico. Da sntese resulta
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que o objeto do amor o ser pleno, interpretao que se confirma no dcimo verso:
paralelamente o sujeito do amor tambm atinge a sua plenitude.
A interpretao do terceiro terceto do oitavo poema, Arco de
pedra, torre em nuvens embutida [,], retomada, aps vrios relativos-locativos. E
termina pela mesma pontuao. A estrofe existe entre esses dois limites. Outra
peculiaridade dela a inexistncia, em seu mbito, de maisculas. Esta apresentao
grfica define um campo de reflexo, parcialmente autnomo nas fronteiras do
poema. Um eu poemtico obtm sua voz e articula-se autora ao adotar o gnero
dela: homologia entre biografia e esttica. A feminilidade explcita. As vozes
provenientes do ser mulher, socialmente, num momento de manifestao de presena
e de registro de discurso encontram uma forma de expresso direta e inegvel
(Bakhtin, 1993, p.85-106).
Formas arquitetnicas nos primeiros versos, ainda no oitavo poema.
Lembre-se, pequenas formas da natureza, flores e minrios, nesta estrofe, formas
geomtricas, no encerramento dos tercetos, sempre a oposio entre o eu lrico e as
formas da natureza e da cultura. Expressionismo, reorganizao simblica da
natureza de uma perspectiva subjetiva. No encadeamento entre os versos dcimo e
11, ocorre uma sonoridade de amplitude determinada pela repetio e combinao
de fonemas consonantais e voclicos, passando uma sugesto de claridade, prxima
daquela do cristal. O cristal e a rosa partilham a fragilidade. Um quebra com
facilidade e a outra vive efemeramente. Assim, a rosa e o cristal prendem-se na haste
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da roseira e no eixo slido, respectivamente. O eu potico est preso nas arestas.
Nas linhas de seus desenhos, cifras, grafias, smbolos, definidos pela exatido e a
delicadeza nos dois versos encarregados desta descrio, o sujeito apresenta-se como
delimitado pelos adeuses que o encerram num polgono. Geometricamente
aprisionado, no consegue novamente avanar. Permanece preso em crculos
intransponveis. As arestas que se encontram e se separam parecem, nessa
intermitncia, polgonos de adeuses. Mais uma vez cabe realar o imagismo
geomtrico do poema: as imagens so construdas num alto grau de abstrao.
As reticncias finais da estrofe deixam ao fruidor de poesia, de um
modo um tanto barroco, a sugesto de recordaes que se acumulam sobre a
melancolia da memria: solido, fugacidade do tempo como no primeiro poema e
outros.
No entanto, as trs primeiras estrofes do poema constituem uma
seqncia atrelada a elementos da arquitetura e o quarto terceto abre uma rea
digressiva, de reflexes em primeira pessoa, tendo por referncia formas da natureza
e no da cultura. A anttese est estabelecida: a arquitetura, as formas construdas
pelo homem em oposio s formas da natureza como as flores e as pedras. O eu do
poema posta-se muito mais prximo s ltimas do que das primeiras. Disto resulta
um desencontro; uma viso de mundo em conflito com outra: dilaceramento, ruptura,
ausncia de acordo.
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De flor, genericamente apresentada, transforma-se em rosas,
com suas peculiaridades, no stimo verso do dcimo poema, S sabes usar to
difano mistrio [:] . Assume o plural, sugere o efmero e o frgil, evoca a terra em
que se posta.
A corporalidade decorre da materialidade dos seres animados,
orgnicos, vivos ou mortos, humanos ou no. Apresenta-se como fonte dos apetites,
da insaciabilidade e suas implicaes, ou como uma travessia necessria do ser em
busca do seu destino. Trata-se de mais uma ambivalncia: a dor carreada na primeira
hiptese e as possibilidades de plenitude trazidas pela segunda.
Na negao da possibilidade de v-lo, o "rosto" do interlocutor
poemtico encontra acolhida no quarto verso do poema de abertura de Solombra,
Vens sobre noites sempre [.] E onde vives [?] Que flama: Jamais se pode ver teu
rosto. A dimenso de corporalidade serve de base na elaborao da imagem do ser,
abstrao feita da concepo sobre ele adotada, de sua forma de aparecer, de se tornar
objeto de conhecimento.
H mil rostos na terra, iniciando o terceiro poema, H mil rostos
sobre a terra: e agora no consigo: uma afirmao de carter genrico d o tom de
ansiedade decorrente da procura de um ser que no se desvela por inteiro. Esta busca
comea pela apresentao da existncia de "rostos" esquecidos em seus traos
identificadores: eles so milhares. Simbolicamente, mil indica indefinio, segredo e
distncia (Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.610). No se conhece a face dos seres
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sobre a terra. Isto na primeira metade do verso de abertura, na segunda parte, e agora
no consigo/ recordar um sequer, um acrscimo explicativo tem incio e se
desenvolve da para o seguinte. Neste momento, agora, nenhum ser se deixa apanhar
pela recordao. Os seus rostos no trazem lembranas.
Os dois versos finais do ltimo terceto e o monstico do 14 poema,
Nuvens dos olhos meus, de altas chuvas paradas [,], organizam-se como unidade
fnica, gramatical e semntica. Tudo se vai, tudo se perde, e vs detendo,/ num
preso cu, fora da vida, as guas densas// de inalcanveis rostos amados!// Uma
exclamao engloba as trs unidades mtricas. No 11 verso, uma pausa interna
divide-o em duas partes. Na primeira delas, a indicao do ilimitado das perdas. A
existncia se resume em desejos, satisfaes e perdas: no entanto, as ltimas
predominam. A realidade em que a frustrao exerce o seu domnio colocada diante
do ser a que o protagonista do poema se dirige, reverentemente. Trata-se da aceitao
e da compreenso, numa atitude afirmativa, de inteligncia e sensibilidade,
decorrncia do acesso aos meandros de uma realidade sobre que se pensa, se reflete,
se elabora. O aprisionamento num "cu", a localizao alm da vida, da densidade
das "guas", no seu desdobramento simblico de origem, das individualidades a quem
se dedica o afeto, representadas no poema como "rostos amados", numa esfera onde
no se podem alcanar, revelam a natureza primordial, transcendente, do ser. Os
olhos nublados, os sentidos perturbados pelo torvelinho da existncia, da realidade
humana, na sua acuidade sensorial, so destitudos de recursos que tornariam possvel
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a percepo dessa dimenso do universo. A transitividade destes aspectos da
realidade permite esta elaborao potica.
Um poema em que os tercetos so constitudos de versos de doze
slabas o 20, Quero roubar morte esses rostos de ncar [,]. Os oito primeiros
deles recebem acentos nas respectivas sextas slabas, demarcando as fronteiras entre
os seu membros. Os quatro restantes acentuam-se nas quartas e oitavas slabas. O
eneasslabo completa o conjunto. As slabas em posio de rima encontram o centro
voclico dominantemente no /a/ e no /i/: cinco vezes, nos dois casos. Os trs
primeiros tercetos terminam e o ltimo comea por palavras paroxtonas, antecedidas
ou seguidas de graves, em posio final, conforme a situao. O contraste
fonoestilstico das vogais tnicas abertas em "ncar", "plpebras" duas vezes,
"atravessado", "lgrimas", "memrias" e "rebeldes", com a vogal tnica fechada (/i/)
dentro do conspecto do poema merece um destaque: caracteriza expressivamente um
jogo entre a abertura e o fechamento do plano do contedo, no enfrentamento de
problemas em que o eu lrico se pe. Esta organizao da massa sonora d ao poema
uma de suas singularidades.
Na estrofe de abertura, permanecendo no 20 poema, falando em
primeira pessoa, o sujeito poemtico manifesta um desejo e se prope um desafio.
Quer estabelecer uma pendncia com a finalidade de arrancar da morte as suas
caractersticas. Ao falar em "ncar" para cor-de-rosa, ocorrncia comum no
vocabulrio parnasiano, o discurso potico pe em ao importante recurso
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imagstico. Ncar tambm a madreprola, ou seja, a parte nacarada da concha de
um molusco. De simbolismo muito amplo, incluindo no raio de abrangncia a
fecundidade e o prazer sexual, o erotismo, associada a Vnus na mitologia clssica,
evoca a aventura humana terminada na morte. A concha uma expresso da libido
(Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.270), uma frincha rsea, nacarada de onde tudo
procede e retorna Por extenso a concha, smbolo da prosperidade com base na
morte da gerao precedente, da sucesso natural dos seres vivos no mundo. A vida e
a morte na concha adquirem o sentido de duas faces de um mesmo processo
(Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.269-70). Busca apoderar-se das feies, das cores,
dos encobrimentos que do poder morte, destitu-la de toda potncia. Nos dois
primeiros versos, o desejo exerce o seu domnio, adiando a morte. Na utilizao das
imagens de "corais de aurora" e "vus de safira", no segundo verso, o conflito entre o
eu potico e a morte ganha fora expressiva. Estabelece-se um conflito entre o desejo
e a morte. Ela se torna objeto de uma antecipao. No terceiro verso, uma
problemtica de tempo apresentada. A vitria do desejo ocorre num tempo que
antecede a chegada da morte para o sujeito. Do contrrio ela vencedora. O verso,
que vai se repetir logo adiante, indica um conflito entre o desejo e a morte, resolvido
pelo tempo em favor da segunda.
E teus olhos abertos/ nos meus fechados, do segundo hemistquio
do primeiro verso ao primeiro do segundo, na quarta estrofe do sexto poema, Para
pensar em ti todas as horas fogem [:], por um processo de encadeamento, organiza-
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se a unidade do poema. Nela, o recurso dominante a anttese: j insinuada no ttulo
da obra, no lexema que lembra sol e sombra, em sua composio fnica, e, em sua
inabitualidade. Domina a oposio entre as noes de fechar e abrir. O interlocutor,
presente no poema pelo depoimento do eu que nele fala, permanece de "olhos
abertos", no exerccio pleno da viso. O eu poemtico fica de olhos "fechados". Os
dois pertencem a instncias diferentes: um esfera em que as coisas do-se a
conhecer, o outro, dimenso em que o conhecimento padece de limitaes e
impedimentos. Das sombras do mundo no se percebe a luminosidade da esfera
apenas entrevista no poema.
Do terceiro verso ao sexto do stimo poema, Caminho pelo acaso
dos meus muros [,], numa seqncia inter-estrfica de quatro linhas, organiza-se a
segunda unidade do poema.
E apenas vejo mos de brando aceno,
olhos com jaspes frgeis de distncia,
lbios em que a palavra se interrompe:
medusas da alta noite e espumas breves.
Nela, um segmento constitudo pelas primeiras seis slabas funciona
como ncleo de todo um trecho. O verbo ver, conjugado na primeira pessoa do
singular, em razo de sua concordncia com o eu do poema, recebe quatro diferentes
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complementos, distribudos simetricamente pelos versos desta parte. Os objetos
diretos constituem uma enumerao. Mos, olhos, lbios e medusas, participam deste
arranjo. Trs partes do corpo humano limitam-se com uma aluso mitologia grega.
A relao do eu poemtico com os objetos da enumerao permanece nos limites da
viso. As mos, caracterizadas numa imagem tradutora de um sentido de adeus,
complementam o verbo no seu aparecimento explcito. O jaspe uma pedra definida
pela sua cristalinidade, pela opacidade e pela dureza, rocha sedimentar silicosa, de
cores vivas mescladas (vermelho, verde, amarelo) empregada geralmente em
bijuteria. Aos olhos em condies comuns, s o primeiro trao pertinente. Estes
jaspes do poema fragilizam-se pela distncia impeditiva da viso. No verso "olhos
com jaspes frgeis de distncia", frgeis reporta-se a jaspes. Olhos que tm cores
vivas como jaspes, frgeis, esmaecidas pela distncia. A imagem pela aproximao
entre os olhos, rgos do corpo destinados entrada da luz, e os jaspes, pedras,
corpos inanimados, minerais, na ambigidade de traos partilhados e opositivos,
instala uma tenso enriquecedora do verso. As mos no cumprimentam; dizem
adeus. Os olhos no enxergam, perdem-se em opacidade. Os lbios j no articulam
palavras: a imagem cristalizou-se na mente do poeta. A leitura do sexto verso no
apresenta nenhuma facilidade, mas a considerao das medusas em uma
intertextualidade mitolgica permite a observao de que a converso daqueles que as
contemplavam em pedras, em elementos minerais e imveis, sugere igual processo no
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interior da realidade instaurada pelo poema. Mos, olhos, lbios, medusas da noite
distante, profunda, e "espumas breves" que remetem s medusas marinhas.
Parte superior do corpo humano, a cabea representa o princpio
ativo, a autoridade, o comando, o ordenamento e a manifestao do esprito em
oposio ao corpo que matria. Nela, ocorre a convergncia para o nico, a
perfeio, a divindade. Remete, assim, para o mais alto, o elevado (Chevalier e
Gheerbrant, 1988, p.151-52).
Da transformao do objeto de abordagem do 21 poema, H um
lbio sobre a noite: um lbio sem palavra [.], em espada, o lbio da noite uma
espada suspensa, vem o deslocamento de sua percepo para um outro campo dos
sentidos: do auditivo para o visual, num procedimento sinestsico. No oitavo verso,
uma metonmia, o ferimento irreversvel acontece no nos olhos, mas num dos seus
atributos, a alegria. Os olhos percebem a espada, no nono verso. Localizam-se entre
o espao humano, dos pedidos, das splicas, e o ambiente celestial doador do que se
pede. Lbio ou espada, silncio ou linguagem, eis o enigma. Nas relaes entre a
espada e os lbios, o jogo ertico configura-se: o erotismo decorre da aproximao
dos dois lexemas.
Os "olhos" do verso inicial do 24 poema, Tomo nos olhos
delicadamente, tm por objeto de viso a delicadeza, a sutileza, de uma noite que
mais parece uma imagem abstrata, lmpida, destituda de arestas, separada de traos
concretos do que o comum das coisas que no mundo se v. Parte do corpo humano
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onde "a palavra se interrompe", nos lbios o discurso encontra a sua possibilidade
fsica. Neles, a metonmia de linguagem se concretiza. Assim, a leitura do quinto
verso do stimo poema, Caminho pelo acaso dos meus muros [,], permite uma
aproximao de seus sentidos.
Nos limites da terceira estrofe do dcimo poema, S tu sabes usar
to difano mistrio [:], Desdm de flor... voz terrena, escuta as rosas!/ ... teu
lbio sobre a tarde apenas a inquietude/ de quem escuta, quem te espera, quem no
te ouve, dominada pelas reticncias e exclamaes, o oitavo verso, o do meio,
apresenta traos, como no anterior, que exigem leitura reflexiva e plena de
verticalizaes. Alm do erotismo, presente nas relaes entre lbio e rosa, o
poema permite a explorao da imagem do espelho sugerida, apresentada
indiretamente, em seus versos. Inicialmente, em culturas antigas, o espelho
funcionava como instrumento de observao do cu, por etimologia significa olhar
as estrelas. Ele reflete o corao e a conscincia, a sabedoria e o conhecimento, a
identidade e a diferena: a especulao um conhecimento indireto. O espelho
representa o lunar e o feminino (Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.393-95). Existe
antes a analogia gua/espelho, e a variabilidade temporal como carter do espelho
(Cirlot, 1984, p.239). Comea por travesso, mas no se trata de uma nova fala, a
continuao de "desdm de flor". Os travesses pem em evidncia a insero,
marcada pela invocao. Seguem repetidas reticncias, um tempo de espera antes da
audio da fala a seguir. O encadeamento entre os trs versos da estrofe ocorre com
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um vocativo interposto no stimo deles. A interposio ocorre em nome da tcnica;
ela assegura a organizao da massa sonora em bases mtricas e acentos adequados
s equivalncias posicionais dominantes no livro; mantm a uniformidade do
conjunto. O seu objeto de preocupao retorna: aquele ser e o seu mistrio j
apresentados na estrofe inicial. O lbio ocupa no poema, no processo de seleo de
imagens, o lugar do ser. Lbios lembram, entre outras possibilidades, voz. Um lbio,
singular no poema, impedindo o inteiro delinear da boca de que faz parte. Sempre o
desvelamento parcial. Est para a boca assim como a ptala para a flor. A flor
comparece substituindo o esprito, o ser. Da unio do final do oitavo verso ao incio
do nono pode-se extrair a frase: "teu lbio sobre a tarde apenas a inquietude de
quem escuta". A espera, a audincia e a surdez equivalem-se na inquietude diante do
mesmo problema do ser. A construo do verso exige, novamente, o apuro da tcnica,
a elipse dupla do "de" escrito antes do verbo escutar e implcito paralelisticamente na
posio correspondente de esperar e de ouvir.
Um lexema duplicado j no primeiro verso do 21 poema, H um
lbio sobre a noite: um lbio sem palavra [.], propicia a compreenso inicial da
viso de mundo por ele concretizada: lbio duas vezes a. No primeiro verso do
poema, o lexema noite, to freqente no poemrio, ressurge. Para experimentar a
realidade, sinestesicamente, o ouvido, no segundo verso, encontra a sua
complementao nas viglias, do quarto. Na combinao de lexemas que j
ocorreram em sintagma originrio, o stimo verso traz lbio da noite, veiculando o
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sutilmente mais concreto da espada suspensa: resulta da imagem que o lbio
representa uma espada suspensa na noite. O mago do homem metaforiza-se no
corao do 11 verso. A rosa, no mesmo verso, a imagem da efemeridade do
ser no mundo, pensado na sua imanncia. No 12 verso, entre mil sombras, seguida
da forma verbal escuta, do monstico, assinala a possibilidade de alguma
localizao do ser em relao ao ambiente em que se projeta. Da inflexo da
transcendncia na imanncia origina-se a tenso bsica por meio da qual o homem
procura encontrar um sentido para a realidade.
H um lbio sobre a noite: um lbio sem palavra, o primeiro
verso do 21 poema organiza a massa fnica tendo por eixo a repetio da mesma
palavra em cada um dos hemistquios. Nele, existe uma pausa intraversal nitidamente
demarcada. Na primeira metade do verso, pela adoo de um procedimento
metonmico axial em todo o poema, a linguagem, o discurso, a cano, o poema, ou o
campo semntico a que pertencem estes signos, tudo isto aparece sob a denominao
de lbio, a parte externa da boca, rgo mais visvel na produo da fala pelo corpo.
Esse lbio localiza-se "sobre a noite", o caos, a escurido. Na primeira parte do verso
no h conformidade fontica. A tnica incide sobre a vogal /a/ e sobre o ditongo /oy/
da cesura. No segundo segmento do verso, repete-se a palavra central, dele e do
poema, recebendo o aparentemente paradoxal atributo do silncio, da imobilidade.
Um quadro onde se pinta a presena de um lbio que no fala. Como no oitavo verso
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do 26 poema, Esses adeuses que caam pelos mares [,]: "No sei se tudo entendo: e
nada mais pergunto."
Mas o lbio da noite uma espada suspensa./ Ferida para sempre a
alegria dos olhos/ que a percebem parada entre a splica e o cu.// Iniciada por uma
conjuno adversativa, e, portanto, estabelecendo uma oposio ao dito
anteriormente, a terceira estrofe deste 21 poema, em que a palavra lbio aparece
quatro vezes, organiza-se no aspecto da pontuao, e melodicamente, de maneira
semelhante primeira delas. O stimo verso apropria-se de elementos do primeiro,
transformando "um lbio sobre a noite" em "o lbio da noite". Observa-se que, de um
verso para o outro, no houve apenas a mudana do artigo indefinido para definido, o
que era esperado. O lbio e a noite assumem uma proximidade muito maior. Da
aproximao dos dois ocorre a mudana em "espada", ameaadora, apocalptica,
postada como uma ameaa em suspenso: a espada de Dmocles sobre a cabea dos
humanos. O ser dotado de possibilidades reflexivas, o homem sempre de volta
questo de suas origens, da mesma forma que se interroga sobre o seu destino,
funcionando a sua conscincia somente na elaborao dos dois temas e na intuio
das ameaas a sua integridade em cada perigo da travessia, da existncia.
Ressurge, pela quarta vez a palavra lbio, completando o quadro do
seu aparecimento no poema. Nas duas aparies na primeira estrofe, ela antecedida
de artigo indefinido. Na terceira estrofe, o artigo definido precede o termo na sua
repetio, evidenciando a coeso referencial por retomada. No verso final, o artigo
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indefinido anteposto a lbio permite pensar que a palavra designa um objeto diferente
nessa nova ocorrncia. No primeiro caso uma linguagem que silncio, ausncia de
palavras, inaudvel ento. No segundo momento, a designao do ser, de Deus ou da
outridade, a audio do discurso ocorre, longinquamente. To distante que a sua
escuta em vo, deixando patente a ineficcia, a incomunicao. O tom de desalento
indisfarvel. O abandono continua.
A enunciao no poema ocorre sempre em terceira pessoa. O
sujeito poemtico permanece como os olhos que vem e as mos que pintam o
quadro. A pungncia e a desolao procedem do retrato da incomunicabilidade entre
dois mundos, o da imanncia e o da transcendncia: o que afinal obriga o ser-no-
mundo a assumir a contingncia.
Do ltimo verso do primeiro terceto ao ltimo do segundo no
stimo poema, Caminho pelo acaso dos meus muros [,], quatro versos formadores de
um conjunto que vai de uma estrofe a outra encadeadamente, a sua segunda parte
ganha corpo. As seis slabas iniciais constituem um eixo do trecho em destaque.
Entre os objetos do verbo ver no terceiro verso "mos" aparece com a devida
predicao. O sintagma brando aceno, no seu sentido de mansuetude e ausncia de
fora gestualmente expressa, imagem abstrata, concretiza-se na palavra mos. As
"mos" entram num processo de apresentao de lexemas indicadores de partes do
corpo. As mos, nos seus movimentos configuradores do gesto de adeus, assumem a
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funo de primeiro complemento verbal no verso. Elas no estabelecem nenhuma
proximidade; ao contrrio, assinalam a separao.
E apenas vejo mos de brando aceno,
olhos com jaspes frgeis de distncia,
lbios em que a palavra se interrompe:
medusas da alta noite e espumas breves.
Muito alm da diviso da matria em orgnica e inorgnica, embora
estreitamente vinculado vida, h o som. Ele, a exemplo do fogo, pressupe o seu
contrrio, inicialmente pela sua ausncia, e mais profundamente pela existncia de
uma instncia autnoma do silncio.
As palavras to vs servem ao menos para a construo de versos
e poemas. Conchas transformam-se, dependendo das circunstncias, em instrumentos
musicais. Ferem a sensibilidade e provocam movimentos corporais ritmados, as
danas.
Um verbo, pousar, localizado na posio de ltima palavra do nono
verso do primeiro poema, Vens sobre noites sempre [.] E onde vives [?] Que flama,
no modo imperativo, d incio terceira parte dele. O modo verbal assegura o carter
de ordem, ou pelo menos de solicitao, de pedido. O eu do poema dirige-se ao seu
interlocutor, solicita a ele o pouso, como se fosse um passarinho em pleno vo, do
seu nome. Aqui, como em todo o poema, o detentor do nome e ser integrante do
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dilogo, sempre tratado na segunda pessoa verbal. J na prpria solicitao,
encontra-se, na continuidade do verso indicativo do receptor do pedido, a meno ao
lugar onde se espera ocorra o pouso. A palavra aqui, a terceira do dcimo verso,
no permite outra leitura. O lugar indicado vai, pouco a pouco, passando por um
esgaramento: de preciso e prximo ao eu poemtico, torna-se algo muito diferente.
Assimila elementos minerais, areos, aquticos, faltando, da cosmologia primordial,