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A Mediação da Imprensa no Festival Internacional da Canção no
Período Pré AI-5.
JULIANO CAMARA SANTOS1
Palavras-chave: Festival Internacional da Canção; FIC; Imprensa na Ditadura; MPB na Ditadura;
Música de Protesto.
Desde a década de 1950 houve uma crescente onda populista que
alimentou os sonhos de uma juventude simpática ao Partido Comunista Brasileiro na
crença de que o país estava no rumo de se libertar do subdesenvolvimento. A
crescente urbanização e industrialização, as ondas migratórias em direção à São Paulo
e Rio de Janeiro e o recente desenvolvimento da indústria cultural de massa
reforçaram o debate em torno da construção da identidade nacional sob a perspectiva
dos excluídos (o homem da favela, o sertanejo, o pescador, etc.). Dentre as novidades
que se consolidaram em veículos de comunicação como o rádio e, posteriormente, a
televisão, a que melhor simbolizou os conflitos que se acirraram na música popular
brasileira, no final da década de 60, foram os festivais da canção. Procuraremos neste
trabalho discutir a esfera pública em torno dos festivais e a maneira com que estes
artistas, em sua maioria dotados de uma herança poética ligada à esquerda, eram
apresentados pela imprensa, tendo em vista a posição desta, majoritariamente,
alinhada aos interesses do regime militar. Delimitaremos a nossa análise ao período
correspondente à primeira fase da ditadura militar, anterior ao AI-5.
Para entendermos a cultura popular na década de 1960, sobre a ótica dos
jovens intelectuais daquela época, é necessário partirmos do manifesto do Centro
Popular de Cultura da UNE de 1962. Redigido pelo economista e primeiro presidente
do CPC, Estevam Martins, contou com a participação de Ferreira Gullar, Oduvaldo
Viana Filho, Glauber Rocha, dentre outros. O CPC, alinhado com as ideias do Partido
Comunista Brasileiro, tinha como proposta política-cultural a defesa do nacional-
popular pela busca da expressão simbólica da nacionalidade. O conceito de cultura do
CPC se caracteriza como arte popular revolucionária, ao invés de “arte popular” ou
1 Bacharel em violão pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), mestrando em
Práticas Interpretativas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2 “arte do povo”. Prosaicamente este ideal significaria transferir o poder ao povo
através da arte: “fora da arte política não há arte popular”. Em prol da coletividade o
artista deveria recursar a tematização da problemática individual. Na dramaturgia e no
cinema, podemos destacar como herdeiros do CPC filmes como Cinco Vezes Favela,
Rio 40º, Eles Não Usam Black Tie e o movimento Cinema Novo 2 . Na poesia,
podemos destacar o livro Violão de rua – Poemas para a Liberdade (1963), conjuntos
de poemas didáticos e engajados, que ensinavam o povo a fazer política e a tomar
uma consciência nacional libertadora. Participavam autores, como Ferreira Gullar,
Capinam, Oscar Niemeyer, Vinicius de Morais, dentre outros. No teatro, o espetáculo
Opinião (1964), escrito por Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, foi emblemático,
pois reafirmava uma possibilidade de aliança política e cultural que manteria viva a
proposta de unidade e integração nacional. A escolha de uma jovem mulher de classe
média (Nara Leão), um representante do homem rural do nordeste (João do Vale) e
um do morro (Zé Keti), simbolicamente seria a Frente Única Nacionalista
politicamente derrotada, mas culturalmente ainda triunfante (NAPOLITANO,
2014:50). A Introdução do livreto do espetáculo trazia:
A música popular é tanto mais expressiva quanto tem uma opinião,
quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores
necessários para a evolução social, quando mantém vivas as tradições de
unidade e integrações nacionais. A música popular não pode ver o público
como simples consumidor de música; ele é fonte e razão da música.
(HOLLANDA, 2004:37)
Na música, alguns exemplos deste engajamento se fazem mais claros,
como o LP O Povo Canta, que trazia as faixas O Subdesenvolvido, João da Silva,
Grileiro Vem, Zé da Silva e Canção do Trilhãozinho e a música Zelão, de Sérgio
Ricardo, que representa um marco para uma mudança de perspectiva poética dentro
da Bossa Nova. Os álbuns Depois do Carnaval, de Carlos Lyra e Um Senhor de
Talento, de Sérgio Ricardo, lançam a proposta ideológica e estética que seriam a
tônica dos festivais e da música de protesto. Marcos Napolitano nos oferece a
2 O Cinema Novo, dentro deste ideal revolucionário propunha a “estética da fome”: a manifestação
pela arte crua, sem o artificialismo do estúdio, em que no centro da narrativa estavam os excluídos e a
violência real e simbólica adjacentes à sociedade brasileira.
3 hipótese de que a moderna música popular brasileira na década de 1960 surgiria de
uma aliança entre o desenvolvimento estético da bossa nova e as propostas de
engajamento político do movimento cepecista, que pairavam entre os compositores da
época, ao passo que o próprio público jovem, na maioria de classe média, sentia esta
mesma necessidade de integração. A própria sigla MPB tinha um peso simbólico,
como representação de um movimento comprometido com a realidade social
brasileira, crítica ao regime militar.
O fato é que a hipótese de Napolitano acende um dado contraditório no
debate cultural na esfera pública brasileira da década de 1960, visto que a maioria
desses artistas ocupavam um bom espaço na imprensa, historicamente comprometida
com o poder, e nos festivais que consolidavam-se como uma nova mídia de massa,
instrumentalizada para eleger àqueles que seriam os novos símbolos da música
nacional. Existiria um “furo” no sistema? Seriam estes artistas “um braço” da
esquerda que poderia ser tolerada pela imprensa, desde que fossem apresentados
como artistas comprometidos meramente com assuntos relativos à estética do que
com a política? Seriam estes artistas representantes da classe média, principal
consumidora, que vinha consolidando-se devido ao desenvolvimento da indústria de
bens e serviços, ao invés de embaixadores do povo? Para responder a essas questões
faz-se necessária uma análise mais aprofundada sobre a complexidade de interesses
da sociedade brasileira no período pré AI-5.
Revendo o conceito tradicional de esfera pública, e sua aplicabilidade na
sociedade contemporânea a partir das críticas surgidas ao modelo original de
unicidade da esfera pública, Habermas (2003) admite a existência de outras esferas
públicas parciais. Dentre os novos modelos estão: esferas públicas literárias,
eclesiásticas, artísticas, feministas e, até, esferas públicas “alternativas” da política de
saúde, da ciência, entre outras. (HABERMAS, 2003:106, apud LOSEKANN,
2009:50)
Ele define três tipos de esferas públicas parciais: a esfera pública
episódica, a esfera pública da presença organizada e a esfera pública
abstrata. As primeiras são aquelas que ocorrem em bares, cafés, nas
praças, ruas, etc. As segundas são encontros organizados, ou seja,
reuniões de partido, de pais, de vizinhos, de igreja, concertos de rock. O
4 terceiro tipo de esfera pública é aquela produzida pela mídia, são leitores,
espectadores, ouvintes, etc. Distantes espacialmente, mas reunidos em
torno de pensamentos semelhantes. (LOSEKANN, 2009:50)
Habermas ainda aponta que as esferas públicas parciais são porosas,
permitindo a ligação entre elas, sendo a Esfera Pública “a totalidade dessa rede
composta por inúmeras instancias de públicos transversais sobrepostos e em vários
níveis diferentes.” Tendo como referência a ideia de reputação na esfera pública
tradicional, no sentido do julgamento público, no espaço onde se dava o debate dos
interesses gerais, podemos sugerir, no campo artístico, o surgimento de uma esfera
pública parcial composta pelas linhas estético-ideológicas da MPB dos anos 60, na
presença organizada de um círculo social consolidado pelos festivais da canção.
A aceitação da existência desta esfera pública parcial por parte dos
veículos tradicionais do poder é marcada pelo conflito, pelo contraditório, pela
cooptação, pela manipulação e pelo benefício. O papel da imprensa como mediadora
entre os interesses do regime, seus próprios e desta pequena república atomizada deve
ser compreendida sem a generalização comum à imprensa. Houve majoritariamente
uma adesão ao discurso golpista pela mídia, na defesa dos interesses da classe
produtora, da “moral” e da comum “ameaça” comunista. Porém, durante o regime
tiveram aqueles veículos que se mantiveram fiéis ao governo do início ao fim (O
Globo e Folha de São Paulo); aqueles que perceberam logo no início do regime o
empastelamento dos jornais e sofreram consequências como a censura, a depredação
e, após o AI-5, a tomada da sua propriedade (Correio da Manhã); e aqueles que
acreditavam que os militares iriam ficar no poder apenas o tempo suficiente para fazer
as “reformas necessárias”. Estes chegaram a defender as cassações políticas impostas,
a intervenção no judiciário, as eleições indiretas e o fim do pluripartidarismo, porém
no decorrer da primeira fase do regime, foram se incomodando com a escalada da
censura e da repressão (Estado de São Paulo e Jornal do Brasil).
Respondendo à uma das questões levantadas anteriormente a respeito da
presença desses artistas na mídia, embora os veículos possuíssem uma linha editorial
conservadora, não havia um incômodo em eleger certos artistas como representantes
5 da música popular, desde que fosse cumprido um requisito: ocupassem o espaço da
classe média, principal mercado consumidor. Portanto, fazia-se necessária a eleição
de ícones próprios para a manutenção da pirâmide econômica, utilizando a confiança
no pertencimento comum de bens simbólicos, como uma comunidade imaginada, para
consequentemente proteger a indústria e o mercado de bens materiais, o que se prova
com a instrumentalização do mercado publicitário em torno das emissoras de rádio e
televisão, e da crescente utilização de artistas como propagandistas de grandes
marcas.
Obviamente, do ponto de vista da mídia tradicional, havia “riscos” em dar
visibilidade aos artistas da MPB. Além disso, os próprios festivais traziam em sua
estrutura questões “perigosas” à manutenção da hierarquia simbólica, pois
possibilitavam a participação do público a um patamar nunca vislumbrado
anteriormente nos veículos de comunicação de massa. Como diria Augusto de
Campos, os festivais eram um plebiscito vivo, ou seja, o público podia ser um dos
atores do processo, um agente indispensável no espetáculo, opinando sobre as
músicas através do sim e do não, do aplauso ou da vaia (CAMPOS, 1974:128). Este
plebiscito vivo institucionalizou-se como o principal veículo de participação popular
no debate dessa esfera pública parcial em torno da MPB. Os interesses daqueles
artistas, herdeiros direta ou indiretamente do manifesto cepecista, eram mediados
pelos representantes da grande imprensa, que gradativamente manifestava suas
insatisfações com o regime. Mas também, por uma parcela do governo que
acompanhava os festivais esperando o momento certo para ordená-lo à sua
conveniência, o que fica claro após o AI-5, quando houve uma espécie de
“empastelamento” dos festivais.
Ao analisarmos os festivais de 1967 e 1968 perceberemos mais
claramente a mediação por parte da imprensa e de uma parcela do governo. O Festival
Internacional da Canção (FIC) criado pelo empresário Augusto Marzargão foi
patrocinado pela Secretaria de Turismo do Estado da Guanabara, graças ao seu bom
relacionamento com o governador Negrão de Lima. Embora o governador estivesse
ligado politicamente à Jânio Quadros e tenha sido eleito pelo voto direto, a sua
surpresa diante da justificativa de Marzargão à criação do festival demonstra o quão
6 era complexo o jogo político da época. Marzagão argumentara que o festival “poderia
ser um benefício à juventude brasileira que atravessa uma profunda crise de esperança
com o regime militar” (MELLO, 2003:142). O governador pediu para Marzagão
guardar pra si tal reflexão, não expor a ninguém, e prometeu patrocinar o FIC com a
justificativa oficial de que o estado precisava investir no turismo. O fato é que o
governador simpatizava com os festivais e fazia questão de impor a sua presença3.
Negrão de Lima diria em reportagem veiculada pelo Jornal do Brasil que o festival
seria “um elemento poderoso no desenvolvimento artístico do Brasil”. Este discurso
alinha-se com a ideia de construção de bens simbólicos fundamentais para a
integração nacional, visada tanto pelo governo quanto pela esquerda nacionalista que
deixava sua marca na MPB. Havia, portanto, uma crença comum de que tais mídias
de massa seriam importantes para um projeto de poder.
Fechando o tripé de interesses nos festivais, a imprensa entraria com a
responsabilidade pela divulgação, além de compor quase que majoritariamente os
membros do júri. No FIC, por exemplo, havia críticos, cronistas, poetas, chefes de
redação e diretores de jornais dos principais veículos de comunicação: O Globo, JB,
Última Hora, Folha de São Paulo, Correio da Manhã, Estado de Minas, Estado de
São Paulo, O dia, além de músicos e representantes de instituições públicas como o
membro do Conselho Estadual de Cultura, o diretor do Museu da Imagem e do Som,
o chefe da Divisão Cultural do Itamarati e o presidente do júri, o maestro Isaac
Karabtchevsky.
O debate público em torno dos festivais trazia conflitos que se acirravam a
medida que recrudescia a repressão. Discussões em torno dos valores culturais, tanto
estéticos quanto ideológicos e morais, tomavam conta da imprensa, como mostra a
nota do Jornal do Brasil de 1968 na ocasião do III FIC, intitulada Protesto Contra
Guerra é a Tônica do festival. A matéria trazia as principais músicas concorrentes,
observando tendências como: temas de guerra (Guerra De Um Poeta, de Beth
Carvalho; “Caminhando”, de Vandré; Herói De Guerra, de Adilson Godoi e Visão,
3 Como nos dias que antecederam a etapa final do III FIC. Na ocasião o governador convidou os
concorrentes para um bate papo no Palácio da Guanabara. 60 participantes entre compositores e
intérpretes foram receber os votos de boa sorte no certame.
7 de Antonio Adolfo), temas de esperança e liberdade (América, América, de César
Vieira), temas que tratam do preconceito (Negroide, de Mauricio Einhorn /Taiguara e
É Proibido Proibir, de Caetano Veloso) temas como saudosismo e esperança (Sabiá,
de Tom e Chico), além da grande revelação desse festival O Sonho, de Egberto
Gismonti. Por outro lado, setores conservadores da sociedade também se
manifestavam contrários às tendências da MPB, como visto no artigo do Diário de
Notícias deste mesmo ano, intitulado Música de Protesto é Arma à Subversão. Neste
artigo, Ismar Pereira, um dos dirigentes da Federação da Associação de Pais e
Mestres dos Educandários Católicos, aludindo às músicas Pra Não Dizer Que Não
falei De Flores e É Proibido Proibir, alarde que o mundo está marchando para a
destruição da família e que todas as armas estão sendo usadas para a destruição dos
costumes: “a arma mais nova é a música de protesto. Os objetivos visados estão sendo
conseguidos. Não podemos permanecer omissos”.
A preocupação dos setores mais conservadores da sociedade em grande
parte era provocada por uma das figuras mais emblemáticas da era dos festivais:
Caetano Veloso. A encenação da peça O Rei da Vela (Oswald de Andrade, 1933) pelo
Teatro Oficina, dirigida por Jose Celso, marcaria profundamente a cultura brasileira
no final da década de 60. Surgia na proposta antropofágica de Oswald de Andrade, a
crítica ao nacionalismo ortodoxo. Como diria Campos:
Oswald foi o inimigo numero um do nacionalismo ufanista, fechado e
fanfarrão. (...) ao invés de um nacionalismo tacanho e complacente, um
nacionalismo crítico e antropofágico, aberto a todas as nacionalidades,
deglutidor-redutor das mais novas linguagens da tecnologia moderna.
(CAMPOS, 1974:161).
Como um dos reflexos de O Rei da Vela surge o movimento tropicalista,
trazendo uma crítica ao populismo da esquerda tradicional e de certa forma uma
descrença em relação à ideia de tomada do poder (vulgo manifesto do CPC). Uma
descrença no dia de amanhã, em prol de uma revolução do aqui e agora com a
necessidade de revolucionar o corpo (existencial) e o comportamento (cênico)
(HOLLANDA, 2004:70). Como proposta de ocupação das mídias de massa,
influência da contracultura, os tropicalistas abraçam a sociedade moderna com suas
8 contradições e suas imagens do absurdo, nas quais poderiam coexistir o nordeste, a
bossa nova, o pop, o rock, a música e a poesia concreta (a Geléia Geral, termo
concebido por Toquarto Neto em sua coluna no jornal Última Hora). As propostas
estéticas da Tropicália provocaram reações adversas dos artistas e do público da
MPB, que não entenderam suas ideias. Mas para certos setores da imprensa o simples
fato de haver no discurso de Caetano uma crítica à esquerda ortodoxa já seria um bom
motivo de destaque deste artista nos jornais, não importando o quanto a Tropicália
poderia ser anárquica e subversiva. Na realidade, para estes setores incomodados com
os rumos do regime seria como unir o útil ao agradável. Respondendo a segunda
questão levantada anteriormente neste artigo: por conveniência existia sim a
possibilidade de artistas, que estavam longe de representar um discurso conservador,
terem voz na imprensa. O espaço ocupado por Caetano na mídia atinge um outro
patamar a partir da sua polêmica participação com É Proibido Proibir, no III FIC.
O grande happening que misturava indumentárias coloridas, uivos,
guitarras elétricas e poema de Fernando Pessoa gerou uma reação furiosa do público,
inapto a compreender a novidade e mais propenso à absorver propostas críticas
esteticamente mais ortodoxas como a música Pra Não Dizer Que Não Falei de
Flores, concorrente do mesmo festival. A reação de Caetano, às vais da plateia, ficou
marcada como um dos episódios mais icônicos de sua trajetória artística. Caetano
chegou a questionar se aquela era a juventude que queria tomar o poder e lamentou o
policiamento da música brasileira: “Se vocês forem em política, como são em
estética, estamos feitos!”; “Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na
Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles”4. Ao final,
Caetano pediu aos jurados que desclassificassem a sua música e a de Gil. Porém, para
a surpresa e revolta do público, e do próprio artista, É Proibido Proibir foi anunciada
entre as classificadas para a etapa internacional do festival. Este fato nos leva a
questionar: Quais seriam os interesses desse júri, composto em sua maioria por
representantes da imprensa, em classificar a música É Proibido Proibir diante do
4 A agressão aos atores do Roda Viva foi praticada por jovens ultra conservadores. A transcrição
completa do discurso de Caetano, juntamente como o áudio da gravação, estão disponíveis em: http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano
9 ocorrido? Nem a crítica velada de Caetano aos membros do próprio júri (“muito
simpático, mas incompetente”), que encerrou o seu discurso, surtiram efeito para a
sua desclassificação. As sucessivas aparições deste artista em matérias jornalísticas
após este episódio revelam o quanto seu discurso crítico foi bem aceito pela imprensa,
como diria ao JB em 26/09/68:
Entrei no festival para destruir a ideia de que o público universitário, soit
disant de esquerda, faz dele. Eles pensam que festival é uma arma
defensiva da tradição da música popular brasileira, e a verdade mesmo é
que festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram. Tradição
bacana, nenhuma. (CAETANO, 1968:25)
Embora É Proibido Proibir carregue um discurso subversivo explícito no
próprio nome da canção, referência à contracultura francesa de 1968, o destaque dado
à Caetano mostra que qualquer crítica à juventude de esquerda seria muito bem vinda.
A ideia de hierarquização é parte da essência de um concurso e a participação de
Caetano e Gil no III FIC, critica não só a própria hierarquia do festival como
questiona os valores morais e a repressão da sociedade e do governo que, assim como
o concurso, possui o seus regulamentos e o seu júri. A apropriação da imagem de
Caetano pela mídia se dava pela confiança de que as massas seriam incapazes de
chegar à analogia da tomada de poder a partir do discurso do tropicalista, fato
constatado na capa do Jornal do Brasil de 7 de outubro de 1968, que lançava uma
nota intitulada Opinião Pública, trazendo o seguinte senso:
O carioca não está interessado na sucessão norte-americana (63%), não
sabe quem está vencendo a guerra do Vietnã (53%), não conhece os
aspectos básicos do Plano Estratégico de Desenvolvimento do Governo
Federal (89%), mas considera Caetano Veloso – o “Tropicalista” de É
Proibido Proibir – artista de valor (55%). (...) É um artista de valor (55%)
dos cariocas, principalmente os da classe C e os jovens segundo a
pesquisa JB-Marplan realizada entre os dias 28 e 30 de setembro. A
consulta provou que 80% da população do Rio é contra a vaia aos artistas
que se apresentam em festivais da canção. (JB/MARPLAN,1968:28)
A pesquisa do JB diz-se basear em dados coletados “do Leblon à Santa
Cruz onde foram ouvidos 320 cariocas”. Independentemente da qualidade da aferição,
chama atenção o destaque para a foto de Caetano Veloso com a legenda “O ícone da
10 classe C”. Soa emblemática a eleição de Caetano, o “crítico da juventude que se diz
de esquerda”, como um ícone deste segmento social. Poderíamos ainda aprofundar a
questão e sugerir uma conveniência nos pontos elencados pela pesquisa que, no geral,
apontam a despolitização da sociedade brasileira e ainda trazem outras pautas como: o
cinema nacional agrada pouco a classe A e 80% dos cariocas reprovam as vaias nos
festivais. A ideia de manipulação da opinião pública nos faz retornar a proposição de
Habermas a respeito da ação do interesse privado como instrumento de privatização
da esfera pública. Fazia-se necessário o controle da estrutura dos festivais, deste
“plebiscito vivo”, um controle desta esfera pública parcial, mediado pelos agentes do
poder responsáveis por negociar quais ícones seriam aceitos. O mesmo FIC de É
Proibido Proibir também trouxe outro episódio marcante para o entendimento desses
conflitos de interesses entre o pleito do público e o pleito do júri. A vitória da música
Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque foi desaprovada pelo público que queria ver
campeã a música Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores de Geraldo Vandré. A
opção dos jurados justificada por uma escolha estética foi vista como uma escolha
política por grande parte do público presente. O convite à luta imediata no verso
“quem sabe faz a hora não espera acontecer” era o que desejava naquele momento a
juventude, sufocada pelos anos de repressão. A multidão saiu do Maracanãzinho
cantando aquele que seria o novo hino da luta contra a ditadura.
Embora o júri tenha colocado entre as premiadas a canção “caminhando”,
seja por pressão popular, seja por acreditarem que esta seria uma canção importante
para a luta contra a censura, as incursões da imprensa em colocar ordem nos festivais,
como visto pela pesquisa realizada pelo JB, tornaram-se cada vez mais constantes,
inclusive com o apoio dos próprios artistas que se sentiam incomodados com o clima
de rivalidade estimulada pelo auditório. O fato é que a própria emissora que passou a
transmitir o FIC a partir da sua segunda edição, a TV Globo, era o principal veículo
de comunicação alinhado com os interesses dos militares, portanto naturalmente
fazia-se necessário tomar medidas com o intuito de esfriar a participação popular.
Tais medidas obviamente desencadearam a gradativa perda de interesse do público.
Paralelamente à imposição de ordem nos festivais, a instituição do AI-5, dois meses
após Vandré lançar o seu “hino”, também contribuiria para a desarticulação dos
11 debates acalorados em torno dos festivais, dando início a um período de gap na
música de “protesto”, que retomaria com força somente após 1972.
A complexidade do debate na esfera pública dos festivais da canção do
final da década 1960 é aferida por um sofisticado jogo de concessões e deturpações
que se apresentaram em diversos níveis, indo do simbólico ao concreto, da ideologia à
estética. Vimos que existiu uma parcela da mídia tradicional que, embora
conservadora e governista, demonstrava seu descontentamento com a censura, ecoado
no seu posicionamento enquanto júri dos festivais. Por outro lado o fato econômico
também justificaria as escolhas da imprensa, se levarmos em conta que manter e
estimular bens culturais simbólicos em comum são formas de salvaguarda da
consciência de pertencimento nacional que refletem na manutenção de um mercado
consumidor em comum. Sendo os artistas oriundos majoritariamente da classe média,
principal consumidora, a ação do mercado publicitário inerente à própria sustentação
dos veículos de comunicação de massa maximizaria seus efeitos. Para isso as
concessões feitas pela imprensa à esses artistas eram frequentemente deturpadas por
um esvaziamento do discurso de esquerda num jogo sofisticado que compreendia a
importância do artista na manutenção de uma estrutura simbólica, mas que tentava
esterilizá-lo, forjando novos discursos a seu critério e interesse.
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