a gula e a luxÚria nas imagens de bosch e testard … · qual entende o pecado como um ato ou...
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A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD
COMO UM REGISTRO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
NUNES, Meire Aparecida Lóde - UEM [email protected]
OLIVEIRA, Terezinha - UEM
Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo O texto em tela está vinculado a uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo geral investigar, por meio da análise das obras de Hieronymus Bosch (1450-1516), a História da Educação no final da Idade Média. Assim, nossa intenção nesse estudo, é enriquecer a fundamentação teórica acerca da contextualização social do pecado, pois sabemos que durante a Idade Média uma das formas das ações humanas serem comedidas era o temor dos castigos pelas transgressões as leis de Deus, as quais eram difundidas pelo cristianismo. Entretanto, será que no período de transição para o Renascimento o pecado se mantém como um elemento de direcionamento da conduta humana? Procurando refletir acerca dessa indagação, direcionamos nosso olhar, especificamente, à gula e da luxúria, uma vez que esses pecados são recorrentes nas pinturas de Bosch. Utilizamos as imagens de Bosch e Robinet Tetard (1475–1523), com o intuito de verificar a mesma temática em contextos diferentes, uma vez que o primeiro artista é holandês e o segundo francês. Esse nossa opção em verificar como diferentes artistas trataram a mesma temática se fundamenta em Panofsky, o qual pontua a importância de buscar abordagens distintas quando a proposta é a análise iconográfica. Por meio das reflexões verificamos que o modo de pensar de uma sociedade não muda de modo abrupto, mas sim é decorrente de um longo processo social e mesmo assim, existem temáticas que se perpetuam. Dessa forma, ressaltamos a importância das fontes iconográficas para o estudo histórico, pois, configuram-se um registro de como os homens se posicionaram diante de suas sociedades. Palavras-chave: História da Educação. Gula e luxúria. Iconografia. Bosch e Testard.
Introdução
O rompimento de um período histórico para o surgimento de outro não se evidencia
apenas em um campo da sociedade e nem ocorre de forma precisa. Esse é um processo
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lento que rompe gradativamente com determinados pensamentos e pode, mesmo com a
mudança generalizada, manter preceitos de outrora. Esse fato pode ser evidenciado por
meio do pensamento religioso que foi predominante na Idade Média e colocava Deus no
centro do universo. No Renascimento essa forma de pensar ganha outros contornos, os
quais vão levando o homem a rever seu posicionamento. Todavia, o pensamento religioso
não foi banido da humanidade ele se perpetua, com outro formato, como podemos verificar
no apontamento de Huizinga (19--, p. 145) ao comentar da morte no declínio da Idade
Média “[...] Em tempos anteriores também a religião tinha insistido no constante
pensamento da morte, mas os tratados religiosos dessas idades apenas iam às mãos
daqueles que tinham voltado costas ao Mundo”. Portanto podemos verificar que um
mesmo tema pode ser entendido de forma diferente conforme o período, ou seja, a forma
de entender determinado conceito é uma conseqüência de como a mentalidade social esta
construída.
Diante desse pressuposto, apresentamos nosso tema de abordagem: o pecado.
Sabemos que a sociedade medieval estruturou-se seguindo as regras do Cristianismo, o
qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar
contra sua natureza de pecar, conforme o pensamento medieval, a vida terrena é o local
onde essa batalha deve ser travada. Dessa forma, o pecado pode ser entendido como um
preceito para o comportamento do homem e determinante na organização da sociedade,
mas que pode assumir um significado distinto conforme o período histórico questionado.
Nossas reflexões acerca do pecado serão feitas com o olhar da História da
Educação, sendo que a efetivação da pesquisa será pela analise de imagens, por
acreditarmos no grande valor histórico das fontes iconográfica. Segundo Burke (2004) a
iconografia é muito importante, pois foi usada como uma forma de doutrinação religiosa.
Dessa forma “[...] elas também são um meio, através do qual, historiadores podem
recuperar experiências religiosas passadas, contanto que eles estejam aptos a interpretar a
iconografia” (BURKE, 2004, p. 58). Contudo, a análise iconografia requer um
conhecimento especifico, sobre essa questão Panofsky (2007) pontua que esse tipo de
estudo requer mais do que as experiências práticas, pois para analisar as imagens faz-se
necessário uma proximidade com conceitos e temas específicos, os quais podem ser
adquiridos por meio de fontes literárias. Contudo, apenas o conhecimento por meio das
fontes literárias não garantem a exatidão da análise. Portanto, há a necessidade de uma
investigação em outras imagens sobre o ponto de indagação não esclarecido por meio da
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literatura. Essa investigação é nomeada pelo autor como História dos Tipos, a qual visa
“compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, temas ou
conceitos foram expressos por objetos e eventos” (Panofsky 2007, p.65).
Diante dessa perspectiva, nossa proposta se concretiza pela analise da obra de
Bosch, Os Sete Pecados Mortais e o Quatro Novíssimos do Homem, sendo que o fio
condutor se estabelece pela premissa de como Bosch, enquanto um representante do
ideário mental do declínio da Idade Média, materializava as preocupações acerca do
pecado em sua arte. Para dialogar com Bosch, visando verificar como o pensamento sobre
o pecado permanece inserido nas sociedades, trazemos as iluminuras do século XV do
francês Robinet Testard (1475-1523).
Nossa opção em refletir sobre a História da Educação por meio da Arte de
Hieronymus Bosch, um pintor que viveu no sul da Holanda durante a Baixa Idade Média,
se justifica pelo fato desse ser um artista, o qual, até os dias atuais, desperta muitas
inquietações naqueles que se deparam e tentam entender suas criações. Autor de uma Arte
cheia de especificidades, muitas vezes, pode nos remeter à um fantástico mundo de sonhos,
ou pesadelos, Bosch é a expressão de muitas contradições que permeiam o imaginário
humano e, portanto, pode nos oferecer muitas contribuições quando se deseja pensar a
cerca da desconstrução e reconstrução do imaginário coletivo que caracteriza o final da
Idade Média. Diante dessa complexidade simbólica que se instaura as obras de Bosch,
entendemos que o conjunto de seus quadros representa uma fonte riquíssima ao estudo da
História da Educação. Já a opção pelas iluminuras de Testard, vem pelo fato de
verificarmos que mesmo os artistas estando inseridos em um mesmo contexto histórico,
cada um tem suas particularidades decorrentes das experiências vividas de forma
especifica. Assim, propomos o dialogo entre as criações de dois homens que viveram no
mesmo período, porém um francês e outro holandês, com o intuito de verificar como esses
tratavam de um mesmo tema. Ressaltamos que não é nossa intenção relacionar o contexto
dos artistas e nem suas particularidades, nesse momento, procuramos identificar as
similaridades e divergências em suas representações.
O texto estrutura-se partindo da abordagem da obra Os sete pecados mortais e os
quatro novíssimos do homem, pois temos como foco central de nossas pesquisas estudar o
período de transição entre a Idade Média e Renascimento por meio da analise das criações
de Bosch, constituindo-se, portanto, nossa fonte principal de reflexão. Na seqüência
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entramos na abordagem acerca da relação entre os pecados, especificamente da gula e da
luxuria, presentes nas imagens de Bosch e Testard.
‘Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos’ refletindo os conceitos de pecado no
final da Idade Média.
Bosch foi criador de um legado de obras que produz inquietações àqueles que
tentam decifrá-las, principalmente devido às poucas informações que se tem a seu respeito,
o que dificulta a reconstrução de sua contextualização, mas ao mesmo tempo torna-se
fascinante pelas múltiplas interpretações que nos possibilita. Não se pode afirmar com
precisão a intenção de suas obras, contudo a maioria dos historiadores de arte entende seus
quadros como reflexo das expectativas e angústias do final da Idade Média, como
traduções visuais da mentalidade do homem medievo. Esse apontamento é consolidado
quando analisamos a afirmação de Huizinga (19--, p. 159) que
No final da Idade Média dois factores dominaram a vida religiosa: a extrema tensão da atmosfera religiosa e a marcada tendência do pensamento a representar-se em imagens. [...] O espírito da Idade Média, ainda plástico e
ingênuo, anseia por dar forma concreta a todas as concepções. Cada
pensamento procura expressão numa imagem, mas nessa imagem se solidifica e se torna rígido.
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Figura 1: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Hieronymus_Bosch
The_Seven_Deadly_Sins_and_the_Four_Last_Things.JP
Assim, essa busca que se instaura no sentido de expressar o pensamento numa
imagem favorece nosso caminhar rumo ao entendimento desse período por meio da Arte.
Para efetivarmos nossa proposta, adentrando no universo que constitui o pensamento
medieval trazemos um tampo de mesa que Bosch pintou, no qual está expresso os sete
pecados capitais. A obra que recebe o nome de Os Sete Pecados Mortais e o Quatro
Novíssimos do Homem (figura 1), traz uma temática que era muito comum nesse período,
pois a Idade Média foi um período em que o pensamento do homem era conduzido por um
ideal de felicidade pós morte. A recompensa, que seria a vida eterna no Reino dos Céus,
somente seria dada a aqueles que conseguissem ter uma vida terrena condizente com os
preceitos de Deus, os pecados constituem-se como obstáculos a serem vencidos pelos
homens. O homem do final do medievo vivia nesse momento, em uma constante aflição,
uma tristeza generalizada, uma falta de esperança que se agravava “[...] pela obsessão da
proximidade do fim do mundo, pelo medo do inferno, das bruxas e dos demônios. O pano
de fundo de todos os modos de vida parecia negro. Por toda a parte as chamas do ódio se
alteiam e a injustiça reina. Satã cobre com as suas asas sombrias a Terra triste”
(HUIZINGA 19--, p. 30).
A obsessão pela aproximação do dia do Juízo Final, no qual cada um seria julgado
de acordo com seus atos, era um fator que contribuía para a propagação do tema dos sete
pecados capitais. Para entendermos o sentido de pecado vamos nos fundamentar em Tomás
de Aquino, que na tradução de Lauand (2004, p. 89-90), elucida que “[...] o desejo de
conhecer é natural ao homem, e tender ao conhecimento de acordo com os ditames da reta
razão é virtuosismo e louvável: ir além dessa regra é pecado da curiositas, ficar aquém dela
é pecado da negligência”. Podemos entender que o princípio para o homem não pecar está
na razão. Os atos realizados de forma comedida não se caracterizam como pecado, o que o
leva a este estado é a extrapolação dos limites, o qual se dá pela falta de consciência, ou
razão. Portanto, em um momento em que a sociedade se encontra desorientada, há a
necessidade de uma retomada de consciência, assim quando Bosing (2006) afirma que “É
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de supor que o tampo de mesa do Prado servia de incentivo à meditação, nomeadamente,
ao exame de consciência intensivo que todos os bons cristãos deveriam fazer antes da
confissão” leva-nos a entender que a obra de Bosch vem a atender essa necessidade de
conscientização, para que os atos do homem não sejam excedentes ao ponto de
transgredirem o bem social.
O fato evidenciado em Tomás de Aquino, do homem ser virtuoso ou pecador como
conseqüência de sua razão e a pintura de Bosch ter a função de meditação, a qual influirá
nas ações humanas, nos leva a uma outra questão característica desse período de transição
entre a Idade Media e o Renascimento: o homem passa ser responsável pelos seus atos.
Deus continua a ser o centro, mas o homem, pela sua razão, é senhor de seu destino, esse
apontamento pode ser verificado ao observarmos o tampo de mesa de Bosch que é
composta por um círculo central, os sete pecados estão distribuídos em volta desse circulo
formando outro maior. A disposição dos pecados em círculo não é inédita, o que de fato é
interessante, de acordo com Bosing (2006), é o fato de Bosch ter transformado essa
disposição no olho de Deus que tudo vê, pois no centro do circulo central está Jesus
mostrando suas chagas e a sua volta está escrito “Cuidado, cuidado, o Senhor vê”. Esse
cenário, mostrado por Bosch leva o medievo a refletir seus atos, pois, a justiça divina que
tudo vê, julgará as ações do homem sim, porém ele, o homem, pode, por meio da razão, ser
virtuoso ou pecador.
Em torno da representação de Jesus Cristo, Bosch traz cada um dos pecados
capitais e nos quatro cantos do painel são representados em pequenos círculos a Morte, o
Juízo Final, o Céu e Inferno. Essas quatro pinturas não serão discutidas nesse momento,
pois são temas de grande complexidade e sua abordagem não está dentro da nossa
delimitação que é estabelecida pelos pecados capitais.
A gula e a luxúria nas criações de Bosch e Testard
Dos sete pecados capitais apresentados por Bosch, nota-se, em outras obras como A
Nave dos Loucos e Alegoria da Gula e da Luxuria, uma tendência em representar
principalmente a gula e a luxúria. Bosing (2006) elucida que durante o século XV
ocorreram muitas críticas a esses dois pecados, sendo entendidos como os mais
corriqueiros dentro dos conventos. Nessa perspectiva, nos delimitamos a fazer alguns
apontamentos apenas à esses dois pecados.
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Seguindo nosso delineamento, iniciamos nossa abordagem pela luxuria. Sobre esse
pecado Tomás de Aquino pontua que o prazer sexual e a finalidade da luxuria, sendo esse
o mais intenso dos prazeres corporais e, portanto entendido como vicio capital. Esse vício
capital, que tem como matéria os prazeres sexuais, pode ser isento de pecado quando o seu
fim, guiado pela razão, é voltado à conservação da espécie humana. Contudo, a obra de
Bosch apresenta uma cena que está mais voltada a satisfação carnal. Esse apontamento
ganha mais significação ao observarmos, no lado direito da imagem, um casal cuja
aparência nos remete à dois homens. As relações homossexuais são muito comuns desde a
Antiguidade, como podemos comprovar nos apontamentos de Ullmann (2007, p. 16) “Já
no século VI a. C a homossexualidade estava espalhada amplamente pela Grécia. E devido
à pouca oposição do povo a esse fenômeno, os atenienses, no século IV antes de nossa era,
aceitavam, sem problema, o intercurso sexual entre homens”. Contudo, essa situação não é
a mesma na Idade Média, sendo condenada pela doutrina cristã, pois contraria o destino
das relações carnais pelo fato de não levar a reprodução ficando relegada apenas as
satisfações terrenas.
Figura 2: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem (detalhe: Luxúria)
Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jheronimus_Bosch_Table_of_the_Mortal_Sins_(Luxuria).jpg
A ilustração é composta também pela presença de dois outros casais, sendo que um
deles está em segundo plano em posição mais reservada dentro de uma tenda e as
condições em que se encontram proporciona um ar de intimidade devido a proximidade e o
gesto que o homem está em relação a mulher. O segundo casal encontra-se em primeiro
plano, mesmo estando distante do anterior, esses também estão amparados por uma parte
da tenda que dá uma dupla intenção: ao mesmo tempo em que a ação parece ser pública
também tem um aspecto de privado. Observamos no local, sobre uma mesa, uma jarra de
vinho e frutos vermelhos sendo esses símbolos da luxúria, desde a mitologia grega. A
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relação do vinho como a luxúria, origina-se dos festivais conhecidos como bacanais em
honra de Baco, o deus do vinho, “Tais cerimônias tornaram-se violentas orgias, nas quais
era consumida carne crua de animais” (CARR-GOMM 2004, p. 35). O vinho, ainda, pode
ser entendido como veiculo que leva ao êxtase, um meio de liberdade dos prazeres, de
abandonar a racionalidade, ou seja, um facilitador à irracionalidade. Entretanto,
simplesmente o ato da luxuria em si já conduz à esse estado
Há um fato evidente: quando a alma se volta veemente para um ato de uma faculdade inferior, as faculdades superiores se debilitam e se desorientam em seu agir. No caso da Luxuria, por causa da intensidade do prazer, a alma se ordena às potencias inferiores – à potencia concupiscível e ao sentido do tato. E é assim que, necessariamente, as potencias superiores, isto é, a razão e a vontade, sofrem uma deficiência (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 108).
Esse apontamento de Tomás de Aquino pode ser relacionado com a imagem do
francês Testard, que no Livro de Horas, traz iluminuras dos sete pecados capitais. Suas
representações são organizadas em duas partes, uma superior e outra inferior. Na parte
superior observam-se as características que nos remete a cada pecado se configurando na
imagem de um homem, assim, podemos entender o pecado agindo nas faculdades
superiores, na razão, que tem uma conseqüência em seu agir. A ação dos homens tomados
pelo pecado pode ser observada na parte inferior da imagem de Testard, que ilustra uma
cena da sociedade sendo guiada pelas faculdades inferiores do homem.
Figura 3: Luxúria de Robinet Testard (Book of Hours, France, Poitiers, ca. 1475 MS M.1001, fol. 98r)
Fonte: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm
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Na imagem que expressa a luxúria podemos observar, na parte superior, um
cavaleiro de aparência jovem usando um elegante traje. A postura do jovem é altiva, mas
em vez de montar um belo cavalo ele esta sobre um bode, o qual apresenta vários
significados, sendo que dentre eles há a relação com a luxúria, como Carr-Gomm (2004,p.
39) aponta “Os bodes também podem ser associados a Baco ou Pã e seus sátiros
libidinosos”. As conseqüências da luxúria na sociedade encontra-se expressa na parte
inferior da imagem, a qual apresenta de imediato um demônio indicando toda a ação. A
cena é composta por três situações, sendo que na parte central da imagem observamos uma
mulher sendo cortejada por três homens. A mulher está com sua mão direita dada a um de
seus assediadores e tem sua cintura tocada por outro que se encontra atrás dela, o terceiro
homem está próximo, mas não a toca. A mulher é representada com gestos de aprovação,
não apresenta nenhuma posição que nos leva a verificar sua rejeição aos três cavaleiros. No
canto direito da imagem encontra-se um casal, o homem está com a mão direita segurando
as costas da mulher e a outra está em baixo de seu vestido. A mulher está em uma posição
em que aparenta resistência à ação do homem. Logo atrás, que pode ser entendida como
um abuso sexual, tem outra mulher que assiste com conformidade a cenas a sua frente.
Por meio da observação dessa imagem podemos entender que o pecado é aceito e
praticado espontaneamente por uma parte da sociedade, enquanto que por outra não. A
resistência ao pecado não implica sua extinção da sociedade, pois existem questões que
não podem ser evitadas, como no caso da mulher que é molestada, a diferença corporal do
homem e da mulher que proporciona uma maior força física ao homem, permite a ele
impor a sua vontade mesmo diante da reprovação do outro. Temos ainda uma terceira parte
da sociedade, representada na imagem pela mulher que observa a cena e nada faz, que
pode ser entendida como aqueles que por não se manifesta nem a favor e nem contra,
contribuem para a permanência da situação.
Na mesma condição da luxúria, enquanto uma transgressão da razão, situamos a
gula. Esses pecados encontram-se no mesmo campo por serem entendidos como
pertencentes às coisas sensíveis, cujo prazer “se dá no tato: nas comidas e nos prazeres
venéreos, daí que a gula e a luxuria sejam considerados vícios capitais” (TOMÁS DE
AQUINO, 2004, p. 102).
Para abordarmos a gula retornando ao conceito de pecado e, portanto, novamente as
questões acerca da razão, pois o pecado sempre esta a margem da razão, podendo ser
entendido como uma ação desordenada acarretada pelo abandono às regras da razão. De
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acordo com Tomás de Aquino, o que se torna mais difícil de se submeter a razão são os
prazeres naturais como o de beber e de comer. Essa ação desordenada pode ser visualidade
na imagem em que Bosch expressa o pecado da gula, a qual é composta por um homem
obeso sentado a mesa, comendo desenfreadamente. A seu lado tem a representação de uma
criança, também com aspecto obeso, que parece solicitar o alimento. Do seu lado oposto
está outro homem, esse, porém com um biótipo esguio, mas está a beber em uma jarra em
uma atitude que não apresenta nenhuma
moderação. Há ainda a figura de uma mulher
que traz mais alimentos em uma bandeja, ela
parece observar a cena que é constituída pelo
desejo sem temperança, por isso constitui-se
enquanto pecado, pois o ato de comer e beber
não é pecado quando realizado com
moderação com a finalidade de manutenção da vida corpórea.
Figura 4: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem (detalhe: Gula)
Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jheronimus_Bosch_Table_of_the_Mortal_Sins_(Gula).jpg
Situação muito semelhante é a que Testard usa para representar a gula. Na imagem
superior, indicando o pecado da gula encontra-se um cavaleiro de aparência obesa, assim
como na representação de Bosch, bebendo diretamente em uma jarra e segurando um
enorme pernil. O animal que o cavaleiro esta montado é um grande javali, também
chamado de “porco selvagem”, o qual Carr - Gromm (2004,p. 187) elucida que “Os porcos
também eram considerados animais gulosos e inclinados à lascívia”.
A parte inferior é composta, novamente com a presença do demônio que indica a
ação com uma das mãos e tem sua boca tampada com a outra. A cena principal configura-
se com uma mesa que ampara os alimentos. A sua volta encontram-se várias pessoas
comendo e bebendo de forma entusiasmada. No canto esquerdo da mesa observa-se uma
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mulher segurando a cabeça de um homem que vomita, sendo essa, a nosso ver, a
representação que mais expressa a falta de temperança e caracteriza o prazer desmedido
pelo ato de comer.
Fica-nos evidenciado que as imagens, tanto de Bosch como de Testard, que
representavam os pecados, estão relacionadas às discussões feitas anteriormente por Tomás
de Aquino o que nos leva a entender que os artistas eram conhecedores do significado de
cada pecado. Como pouco se sabe a respeito dos artistas e por não ser intenção do trabalho,
nesse momento, realizar uma investigação biográfica, não podemos afirmar como precisão
como eles adquiriram esse conhecimento. Pelo fato dessa temática ser muito divulgada
nesse período acreditamos que esse conhecimento pode ser proveniente das doutrinas
eclesiásticas ou simplesmente da cultura popular medieval, como afirma Bosing (2006, p.
9), ao se remeter especificamente a Bosch, valendo-se das investigações realizadas pelo
flamengo Dirk Bax, “[...] devia-se, sobretudo procurar as fontes de Bosch nas doutrinas
eclesiásticas e na linguagem e nos costumes populares do seu tempo”. Contudo, atentamos
ao fato de que mesmo pautado em conhecimento corriqueiros, presente em outros
momentos, ambos os artistas, trouxeram em suas obras uma forma de reflexão sustentada
nas questões presentes em suas sociedades. A ambientação de ambos refletem a sociedade
do século XV, Bosch traz, quase que predominantemente os pecados em espaço externo
que evidencia as cidades holandesas e Testard, situa seus pecados em lugares internos,
remetendo-se a corte.
Figura5: Gula (Book of Hours, France, Poitiers, ca. 1475 MS M.1001, fol. 84)
Fonte: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm
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Assim, o estudo realizado vem comprovar nossa inquietação primeira, acerca da
importância de se estudar os registros deixados pelos artistas a fim de entender a
mentalidade coletiva das diferentes organizações em diferentes tempos históricos, bem
como, evidenciar que a ruptura com o imaginário coletivo não se dá abruptamente, mas de
forma gradativa, pois dois artistas distintos do século XV tratam de forma semelhante o
mesmo conteúdo que foi tratado por Tomás de Aquino no século XIII enquanto uma forma
de regular a sociedade, e que nos leva a entender que essa temática ainda estava presente
nessa sociedade de embates.
Considerações finais
Por meio das reflexões desenvolvidas no decorrer do texto pudemos entender que a
classificação dos períodos históricos são necessários para a localização do homem no
tempo, porém a alma coletiva de um povo não muda em uma data especifica, ela vai sendo
transformada ao longo dos tempos. Esse apontamento se evidencia ao abordarmos o
pecado, pois esse tema que agiu durante a Idade Média como uma forma de regular a
sociedade, ainda, no inicio do período subseqüente estava inserido nas reflexões, atuando
como mediadora das críticas às instituições sociais.
Esse apontamento ganha maiores proporções ao observarmos as semelhanças das
criações artísticas de Bosch e Testard, homens que viveram em lugares diferentes, mas que
abordando o mesmo tema se tornam próximo em alguns aspectos. Dessa forma ressaltamos
a importância da fonte iconográfica para o estudo da história de forma geral e,
especificamente à História da Educação.
REFERÊNCIA
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BURKE. P. Testemunha ocular: historia e imagem. São Paulo: Edusc, 2004
CARDOSO, C. F. VAINFAS, R. Domínios da história : ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997
CARR-GOMM, S. Dicionário de símbolos na arte: guia ilustrado da pintura e da escultura ocidentais. São Paulo: Edusc, 2004.
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LAUND, L. (trad.). Sobre o saber (De magistro), os sete pecados capitais. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004
HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. Ulisseia, [19--]
TOMÁS DE AQUINO. Sobre o saber (De magistro), os sete pecados capitais. Trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004
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PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007