a geografia e o calendÁrio - hugoscabello.milharal.org · mapa _prosas_ o dia em que a terra...
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Mapa_Prosas_O Dia em que a Terra Parou..................................................................................................4
Perdido na Poluída Polis......................................................................................................20
_Textos_Autonomia sindical e as eleições.........................................................................................40
A Urgência da Auto-Organização.........................................................................................44
Crônica de Greve.................................................................................................................49
Nem vanguarda nem retaguarda.........................................................................................53
Movimento Estudantil Revolucionário..................................................................................61
Balanço crítico da representação discente..........................................................................73
Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e democracia
representativa......................................................................................................................79
Nomoespacialização, normalização social e sociedade de classes: o Anjo Exterminador e
o projeto de poder da modernidade.....................................................................................87
Democracias........................................................................................................................92
Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo.............................................................111
_Poemas_10`......................................................................................................................................121
A autogestão processual....................................................................................................124
À luz...................................................................................................................................125
A quimera da distancia.......................................................................................................126
A vida..................................................................................................................................128
Amélia................................................................................................................................129
Ao empurrar o ar para dentro da gaita da namorada........................................................130
Biopsicoterrorismo.............................................................................................................132
Cafajeste............................................................................................................................134
Caravela.............................................................................................................................136
Deveria, poderia, gostaria..................................................................................................137
Duas Gatinhas...................................................................................................................139
Em todo e qualquer............................................................................................................140
Leilane................................................................................................................................142
A Geografia e o Calendário – – 2 / 182
Nada Falar.........................................................................................................................145
Nas Nuvens........................................................................................................................147
Neste Ruminar de Plástico................................................................................................148
O Rio das Mágoas.............................................................................................................149
Passe Livre Já!...................................................................................................................152
Poema a uma Bela Jovem Guria.......................................................................................156
Poema Sem Nome (I)........................................................................................................158
Poema Sem Nome (II).......................................................................................................161
Poema sobre coragem.......................................................................................................162
Quando Fizer um Filme.....................................................................................................168
Quem é Aquela que Se Vai?..............................................................................................169
Se São os Astros................................................................................................................172
Socrática Musa..................................................................................................................173
Solidariedade.....................................................................................................................174
Sou Caçador de Sonhos....................................................................................................176
Sou Incapaz.......................................................................................................................178
Te Quero!...........................................................................................................................179
Versos Subversos..............................................................................................................182
A Geografia e o Calendário – – 3 / 182
O Dia em que a Terra Parou
Primeiro Anoitecer
Anoitece no pacato bairro residencial Jardim Esperança. A cidade, suas luzes e
seus ruídos, foram descendo nas paradas de ônibus do extenso caminho, rumo ao
subúrbio do oriente; de maneira que quando se chega no ponto final, já estamos
sozinhos. Casa a casa, apê a apê, fecha suas portas, apaga suas luzes, e cala suas
surdas vozes – amanhã é um velho dia, o mesmo que ontem; amanhã, todos sairão do
formigueiro para doar mais uma jornada de trabalho à rainha.
São poucos os recintos que não cedem a pressão da exaustão, mas, entre estes,
somente um ousa romper visceralmente o inocente silencio: um grito agonizante
reverbera diegeticamente nos sonhos e pesadelos do povo. Um grito sem início nem fim,
sem altos nem baixos; igual ao sofrimento que o causa.
Indo à fonte deste, trespassamos o baixo muro negro e adentramos esta medíocre
casa pintada a longas pinceladas vermelhas. Quem grita é uma mulher já cruzando a
fronteira da juventude. O profundo desespero desfigura seu semblante, e a violência de
sua voz inquieta a todos que a ouvem. Mas, por que grita? Grita porque sua humanidade
é covardemente suprimida dia a dia; a todo momento seu tempo é expropriado de si
mesma. Mas, o que ela quer? Mudança.
Entretanto, antes da sua voz tirar toda vizinhança de seu ébrio sono catatônico,
um murro em seu rosto a interrompe brutalmente: “Caleaboca caralho!” É Cæsar, seu
companheiro; seu algoz. O golpe faz com que ela caia com um baque seco no frio piso da
sala. Por um punhado de segundos, ali permanece de bruços, para, em seguida, levantar
junto com um novo e ainda mais horrível berro. Este vem num crescente desde as
profundezas de seu âmago: como uma banshee, a cacofonia que sai de seu interior
reflete toda uma vida de opressão e amargura. Nunca levantara a palavra para nada
nem ninguém – logo nunca fora escutada. Contudo, chegara seu limite – não pode mais
suportar todo peso do mundo em suas costas. Joga tudo para o ar; subleva-se. Se o
primeiro grito era composto somente por dor e angústia, no segundo já se pode sentir
uma elevada dose de ódio e revolta.
Se o primeiro era monótono e incessante – como uma guerra de trincheiras – o
segundo vem como um ataque guerrilheiro, forte, breve e destrutivo: abre a garganta, e,
com toda a potencia de seus pulmões, solta suas guturais lamúrias estonteantes. Faz-se,
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então, silêncio, mas só por um breve instante – logo ela inicia um novo grito.
Com o sangue fervendo, a mulher tateia a estante atrás de si. Sua mão vai de
encontro a um grande crucifixo decorativo, daqueles com um gótico cristo talhado em alto
relevo. Ela empunha a sacra imagem, e parte pra cima de seu agressor: “Calaboca é o
caralho seu filho d'uma puta, quem que você acha que é pra me bater assim?
Canalhacovarde!”. Sem dúvidas Nero é bem mais forte do que sua cônjuge, porém, a
colossal raiva que ela sente a torna perigosa – uma ameça. Uma primeira bordoada ela
desfere lateralmente: tenta focar o crânio de seu parceiro; mas, este se esquiva
pouquinho para trás – não o suficiente para evitar o golpe por completo, que acaba por
atingir seu empinado nariz.
O macho ferido cambaleia recuando. Sobe sua mão direita à seu rosto: seu nobre
sangue escorre – é mortal.
A fêmea berra novamente e o insulta: “Seu viado filho duma puta!”. Em resposta,
ele bufa como um touro descontrolado, e corre numa investida contra ela: “Vaca, vou
acabar com a sua raça”. Primeiro a cruz é arremessada – o atinge de raspão. Depois um
segundo objeto da estante vai ao ar: uma lanterna abajur – que atinge em cheio o centro
de sua testa, dispersando-se em centenas de cacos de luz pelo aposento. Alexandre cai
desacordado.
Desamparada.
Desestruturada.
Sem lenço nem documento, abandona sua casa, seu castelo, e caminha a lentos
passos curtos até uma pequena praça da região: meia duzia de bancos de concreto sob
duas dezenas de árvores cheias. No mais escondido desses, se deita; e lá se afoga. Ela
não teme por sua integridade física, de fato não teme. Usa seu velho casaco de lã para
cobrir-se, mas ainda assim sente frio. Usa seu novo cachecol para deitar-se, mas ainda
assim sente desconforto. Sente fraqueza, sente insegurança. Sente medo – não do
agora, mas do amanhã. E, no coração deste turbilhão de sentimentos, nossa heroína,
Valentina, adormece.
Primeiro Amanhecer
Um grito desesperado de um despertador acorda um jovem estudante universitário.
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De bruços e ainda dormitando pressiona o botão para o silenciar. Com muita indulgencia
e preguiça, ele levanta levemente seu tronco, apoiando-se nos cotovelos. E a voz de seu
pensamento lhe sussurra: “Hoje não tenho nenhuma aula importante... Vou é dormir até
mais tarde, to com um puta sono!”. Deixa, então, seu corpo cair novamente na cama.
Uma senhora já nos seus quarenta anos prepara o café da manhã para sua família.
Pega na geladeira um naco de queijo, um outro de presunto e um pote de requeijão com
baixo teor calórico. Corta oito finas fatias destes frios, e anda até o cesto onde guarda os
pães franceses – está vazio. Vai da cozinha para sala, veste seu agasalho, e pára à
janela, contemplando o mundo exterior: “Está tão frio hoje... Vou fazer sanduíches no pão
de forma, posso colocar na chapa – eles adoram”.
Um homem é acordado carinhosamente por sua esposa “Amor, está na hora.
Vamos acorde, levanta”. Ele gira para o outro lado da cama, e balbucia “To gripado, hoje
não vai dar pra trabalhar” “Não mesmo?” “Não, avisa o chefe por favor”. Enquanto esta
esposa caminha até a sala, próximo dali um outro empregado come um sorvete enquanto
conversa pelo telefone: “(...) é, to com uma amidalite que o senhor não vai acreditar! Mal
to conseguindo falar! Vou ficar aqui de cama hoje pra ver se melhoro”. Já do outro lado da
linha, o patrão não perde tempo, logo liga para seu sócio “Nenhum dos empregados vai
vir trabalhar hoje / é, muito estranho sim Diniz / todos alegam estar doentes / vai ver que
depois da gripe suína, agora veio a gripe do preguiça / mas sendo sincero, não to com
disposição alguma de ir pra empresa hoje / bom, nesse caso, hoje não abriremos”
Pouco após o levantar do sol, Valentina nasce.
Dormir na rua da metrópole é acordar cedo. Pois, a luz do grande astro
rapidamente envolve todos os desprotegidos, aquecendo e dando nova vida àqueles que
tiritaram por toda uma longa noite. E, junto destes raios, desembarcam todos os múltiplos
ruídos do mundo urbano: buzinas, vozes, sirenes, passos, motores; a moderna canção
concretista.
Porém, hoje o músico citadino não saiu de casa. E, ainda espreguiçando-se e se
esticando, nossa querida já percebe esta estranha ausência: um pesado silencio paira
por toda região. Sentada no banco, ela vira seu pescoço afim de olhar para trás: não há
mais ninguém na praça “onde estão as senhoras com seus necessitados cães? –
estranho, estranho”. Dobra seu casaco caprichosamente, e o guarda. Levanta-se e
caminha alguns passos para a esquerda: há um ponto de ônibus, com cobertura e
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banquinhos para aqueles que esperam – mas, ninguém espera “onde estão os
trabalhadores? Os estudantes? Os aposentados?”. Mirando para a direita, de onde viriam
os veículos, ela percebe o porquê não há pessoas no ponto: a rua está deserta. Nenhum
carro, nenhum ônibus, nenhum caminhão, nenhuma motocicleta, nenhuma bicicleta –
nada transita, nem mesmo há veículos estacionados. Ao longe um bando de pombos
desce dos fios elétricos para o chão – nada mais. “O que aconteceu?”
Valentina senta no desocupado banquinho “O que será que aconteceu?”. Colhe
uma pedrinha do chão, e, com força, arremessa-a em direção aos pássaros. Esta quica
uma, duas, três vezes na rua e vai cair na calçada do outro lado – a calmaria é tanta, que
ouve-se o ecoar da pedra nos prédios de concreto enquanto as aves batem asas em fuga.
“Será que a rua está interditada?”. Arrasta seus pés à uma próxima avenida para testar
esta hipótese.
São poucas quadras dali, é o centro comercial da região. Entretanto, o próprio
trajeto já lhe insinua a resposta que encontrará: a padaria no caminho está fechada,
assim como o escritório do advogado trabalhista e a farmácia de manipulação. Mesmo
nessa pequena via de ligação não há automóveis, ou mesmo pessoas. “Mas as dezenas
de vendedores ambulantes estarão lá, até em feriado eles aparecem” - pensa,
equivocadamente, nossa personagem. Pois, ao chegar lá, ela se depara com a mesma
misteriosa ausência: nenhuma barraquinha; nem de bonés, nem de camisetas, nem de
DVDs, nem de CDs, nem mesmo as de alimentação – nada nem ninguém.
Confusa, Valentina vai até o meio da grande avenida. Dá duas ou três rápidas
olhadelas em volta, girando. No cume de seus olhos ela jura que vê a senta sombra
sonora duma fugaz aparição: parecia haver um vulto por de trás da janela dum dos
prédios próximos, porém este evanesce rapidamente. Ela grita: “Tem alguém aí???” - sem
resposta - “Eu já te vi! O que tá acontecendo? Preciso de ajuda!” - nada - “Onde estão
todos???”. O eco de suas palavras é a única resposta que ela recebe (o eco de suas
palavras não repercute em nada).
Senta na avenida – ali mesmo – e se mete a pensar na situação: “Deveria eu para
casa voltar? Tentar novamente com a mesma pessoa sob as mesmas condições?” – pára
por um momento – “não, jamais deverei voltar para os claustrofóbicos braços de Otto.
Preciso dele me libertar. Preciso tornar a ser uma livre e independente mulher. Não
preciso dele para nada. Se um dia pensei que a estabilidade pela força verticalizada
poderia proteger meu desenvolvimento, hoje sei que esta só me podou. Que no fundo,
nunca precisei de proteção; sei que ele só me prejudicou – atrapalhou-me! Não, não devo
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voltar” – pausa – “porém, então, onde ir?”.
A mulher joga suas pernas para o alto, e deita a cabeça na rua para pensar. Ela
está insegura, não sabe o que fazer nem onde ir. Além de ter violentamente rompido seu
contrato social ainda ontem, hoje acordou nesse denotativo vazio existencial. Imagine-se
você nesta situação; sozinho em ruas que jamais ficaram desacompanhadas. Caminhar
pelo porto sem se deparar com a úmida mistura entre os do mar e as do amor. Transitar
pela habitualmente congestionada avenida sem nem mesmo ver um único grunhido
motorizado. Passar pela região da boemia e ouvir somente seus próprios passos – nem
os bêbados do centro da cidade, tão pouco os jurantes poetas embriagados. “O que será
que será?” “Será que estou morto?” “É o fim?” – talvez fosse o que passaria por sua
mente – “Mas como?”. Daí você se lembraria que, nessa vida, nada tem fim absoluto e
nada começa do zero. Nada nunca é criado, nada nunca é destruído – tudo sempre
(inexoravelmente sempre) se transforma. E este pensar seria, então, seu alimento; o
combustível para o fazer continuar – perpetuar a eterna transmutação dos valores de sua
época.
Mas só por um átimo.
Num pulo ela se põe de pé e volta a caminhar, aparentemente a esmo. Passa por
um bulevar comercial – igualmente deserto. Aperta o passo e vira a direita numa viela de
pequenos prédios antigos. Cruza mais duas quadras e chega num pequenino calçadão, à
frente d'uma Igreja Católica Ortodoxo Romana. No centro desse, uma simplória estatua
d'um bandeirante de cinco metros nos cumprimenta com trabuco em mãos. Mais abaixo,
aos pés dele, um morador de rua dorme por debaixo de sujas cobertas escurecidas. Ele
se espreme para abrigar-se no mínimo filete de sombra que o genocida estuprador de
índias projeta no solo.
Ao ver o semelhante, Valentina se empolga “pode ser que ele saiba de algo! Pelo
menos tem mais alguém vivo!”. Em três saltos se achega até o homem; “Ola?... Ola
senhor, ola?” nenhuma resposta, seu roncar continua inabalado. Ela coloca-se de
cócoras, e dá uma sacudida de leve nele. Mais outra sacudida e o mendigo balbucia algo
ininteligível.
É um caboclo ainda jovem, deve ter passado há pouco dos trinta, mas já tem uma
longa, selvagem e escura barba. Há meses que faz uso das mesmas rasgadas
vestimentas: uma velha calça jeans, uma camiseta do PT das ante-penúltimas eleições e
uma blusa de malha achada por aí. Acordar a esta hora é uma tarefa extremamente
custosa para ele, pois dormira pra lá das altas horas da madrugada, e com uma altíssima
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concentração de cachaça em suas veias. Seu corpo todo pesa como mercúrio,
especialmente sua cabeça. Lentamente abre os olhos, mas com muito desgosto e má
vontade. E, ao se deparar com aquele mulherão a poucos centímetros de si, assusta-se:
“Queque isso?” – pensa. “Queque isso?” – pergunta – “Ola! Desculpa incomodar... Não
queria acordar o senhor, mas você já percebeu que não tem ninguém na rua hoje?”. Sem
se levantar, mexendo o mínimo possível a cabeça, o homem olha ao seu redor: nada nem
ninguém. “Hum, É mesmo. Hoje tem jogo da seleção?” “Não, não tem”. Faz um
travesseiro com as mãos, e nele deita, voltando a fechar os olhos. “Deve ter um motivo
qualquer, mas não to interessado” “Não? Pô, eu to andando faz um tempo, e o senhor é
a primeira pessoa que hoje vejo.” “Não to interessado, deixa eu dormir em paz aqui na
minha sombrinha”. Valentina não consegue acreditar nas palavras que adentram seu
crânio, como pode tamanha indiferença? Não satisfeita, insiste: “Mas, como assim??? Pô,
este mundo pode estar acabando, e você vai ficar aí dormindo?” “Vou, não quero nem
saber! Se este mundo acabar, outro igual virá – cambiam las formas para manterem las
normas”.
Diante da definitiva recusa em se importar com a realidade, Valentina vê-se com
uma única alternativa em mãos: partir; continuar sozinha a jornada através da desolação
urbana.
Primeiro Entardecer
Um bambino equipado com sua mochila nas costas olha pela janela. Já faz cerca
de meia hora que está a esperar o transporte escolar, e nada. Sem se virar, e com uma
voz adocicada, ele pergunta: “Mãe, a perua não veio hoje, posso ficar em casa?” “Ah,
tudo bem... Seu pai não quis sair da cama nem pra trabalhar, imagino que ele não vá
querer te levar pra aula. E eu to ocupada demais”. O menino joga a sua mochila em
cima do sofá e corre para o quarto, gritando de alegria.
Não longe dali, o professor deste aluno almoça com seu companheiro.
Ele está cabisbaixo e mantêm-se quieto boa parte da refeição. Certo momento, levanta
os olhos para o amante e diz: “Querido; não vou dar aula hoje” “Por quê? Não tá
se sentindo bem? “To sim, não é isso...” “O que é, então?” “É... É que eu não tenho mais
nada pra ensinar!”. O casal termina de comer em silencio.
Já num barraco de luxo do outro lado da cidade, um malaco jovem mal encarado
se aproxima d'um outro, que se distrai com o fio d'um facão: “Ué, Zé, não tem nenhum
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servicinho pra gente hoje não?” “Tê tinha, mas pra quê? A gente num ia ter onde gastar...”
Saindo das casas e indo às ruas; voltamos à Valentina, encontramos-a
sentada no meio fio, com a cabeça enfiada nos punhos, e os cotovelos nas pernas. O
que mais àtormenta, nesse momento, é o fato de não conseguir tecer uma única
hipótese que minimamente explique o que se passa. Como explicar o desaparecimento
de todos? Ou melhor, de quase todos, pois ela jura que viu alguém escondido por detrás
d'uma cortina, e tem também o desinteressado morador de rua.
Não é uma guerra, o Brasil sempre está em paz. Seria uma nova doença? Mas
como ela não me atingiu? E se fosse uma doença tão mortal, as ruas estariam cheias
de corpos. Seria o dia do juízo final? Mas como, se deus inexiste... Seriam então
discos voadores? Bleh, isso é coisa de doidão de L...
Um perturbador estrondo, quase tão alto quanto um trovão, interrompe a linha de
pensamento dela. Sem pestanear, ela abandona as elucubrações teóricas, e corre atrás
do barulho.
Dois homens arrombam um quiosque de salgados. São, também, dois
habitantes da rua – pelo menos é o que a protagonista imagina, enquanto tenta se
esconder na quina de uma banca de revistas nas proximidades. O mais velho
tem um grande porte; alta estatura e largos ombros. Deve ter passado dos
cinqüenta recentemente, pois sua cheia barba já é parcialmente grisalha.
Contudo, o que nele mais chama atenção dela, são seus olhos – o escuro par que
acumulou todo o terno embrutecimento de sua vida. Veste-se com camisa marrom e
calça jeans – ambas surradas – e um velho boné dos 25 anos do MST. Faz-se um
grande contraste deste homem, com o segundo: um jovem de traços indígenas, bem
magro, e um pouco mais baixo. Mexe-se de maneira ágil e firme, porém com muita graça
– quase como um felino. Suas roupas estão melhor conservadas, mas não tanto:
um bermudão de algumas estações atrás e uma camiseta preta com uma estampa
qualquer a caminho de se apagar.
O mais velho aparenta preocupação; estica seu braço em busca de uma
coxinha guardada por detrás daquelas vitrininhas. Enquanto isso, o jovem pula para
dentro do quiosque, pega um boné de vendedor que ali estava guardado, e
começa fingir: “O que desejas?” - pergunta com trejeito forçado. “Saí daí! Vamos
rápido aqui! Alguém pode aparecer, moleque!” - responde em tom baixo, comendo os
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fonemas. O garoto, indiferente, tira dali o braço de seu companheiro, sutilmente, e lhe
entrega a coxinha num guardanapo. “Algo para beber?” “Porra menino, to te falando sério.
Não quero ser preso por tua culpa!” “Porra, queque você tá falando de ser preso?
Larga de querer estragar meu prazer! Não tá vendo que não tem ninguém na
rua? Todo mundo sumiu, se foi. E a cidade tá vazia, ficou tudo aqui só pra nós. A cidade é
nossa, cara! E você tá aí reclamando! Quem sabe pode ser até o juízo final, o tal do
apocalipse! Cara, então, eu te digo que a gente tem que aproveitar. Vai uma
cervejinha?” – finaliza, esticando uma para seu amigo – “Tá bom, eu aceito, mas vamos
logo!”. O velho abre a latinha, encosta as costas no quiosque pensando um pouco, daí
pergunta: “Mas, e essa história aí... Você acha que o mundo vai acabar mesmo?” “Sei
lá viu, mas se for, aquela garota ali só pode ser um anjo.” diz olhando na direção de
Valentina, então grita para ela: “E a madame, vai querer alguma coisa?”.
Espantada, ela recua um passo, entretanto sua curiosidade faz com que se revele, e vá
em direção a estranha dupla:
– É... Ola! Aceito sim, alguma coisa. Pode ser uma coxinha também. Pra
beber, tem suco?
– Tem sim senhora. - pegando a coxinha, fala – Laranja , limão, frutas
vermelhas...
– Frutas vermelhas! - interrompe.
Ele enche um copo de suco, e o entrega. Enquanto isso, seu companheiro analisa
a mulher de cima a baixo, provavelmente sem entender o que se passa: “Então tem mais
gente na cidade?” - pensa e pergunta.
– Bem, tem né. Além de vocês eu vi mais uma outra pessoa.
– Você sabe o que tá acontecendo? - perguntam os dois amigos.
– Não faço idéia. Parece que todos se foram, não sei, apesar de ter tido a
impressão que vi uma num prédio. Vocês sabem?
– Não - responde o homem.
– Não sei não – responde o menino – mas sei quem que deve saber. Bem, pelo
menos ele é um desses daí, intelectual.
– Se não tá falando do músico, né?
– To sim. Pô ele sabe de tudo!
– Sabe é nada! Não passa de um canastrão metido a sabichão! Sem falar que
quando a gente precisa dele, ele nunca tá junto.
– Ah tá então, mas e aí, queque o senhor, conhecedor das coisas, sugere?
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– Bem, não sei, acho que a gente podia ir falar com o operário.
– Bah, esse seu amigo, desde que arranjo aquele barraco, não sai mais de lá pra
nada não. Até parece que ele vai saber de algo; quem não vive, não sabe da vida.
– Você? falando da vida assim? E o seu amigo? Esse tal de músico, desde que
conheceu a marvada, não tira ela da boca – tá mamado o tempo todo, agora mesmo deve
tá caído num canto por aí.
– Caralho, se não fala assim do meu colega não!
– Ah! Vasefude! Vamos fazer o seguinte então, a mulher escolhe quem a gente
vai procurar então.
– Eu? – surpresa
– É, eu gostei da idéia também. Ela não conhece ninguém de nós mesmo.
– Bem, não sei... Pode ser o músico, gosto tanto de música.
– É, vamos lá então! – comemora o garoto.
– Mas, e você, senhorita...
– Valentina.
– Valentina: belo nome – diz o velho.
– É, belo nome – concorda o jovem.
– Então, você vai conosco?
– Bem, pode ser. Não quero ficar sozinha com a cidade nessa situação,
e, também, voltar atrás eu não posso de maneira alguma.
– Então vamos – a dupla conclui
E o trio se poe a caminhar. O menino, ainda de boné e pouco a frente, virá para
Valentina e pergunta:
– Mas o que foi que aconteceu contigo? Como que você chegou aqui?
– Ah, é uma longa história, mas, resumindo, ontem eu tive uma briga feia com
meu esposo Adolfo, ou melhor dizer: com meu ex-poso Benito. Saí de casa e fui dormir na
rua, numa praça próxima de minha casa. Daí, hoje, quando acordei, já tava tudo
assim, vazio. E vocês, são moradores de rua? Mas desde quando?
– Xi, eu quase sempre fui da rua. Sou de uma família bem pobre da periferia, o
sétimo de nove irmãos. Desde criança passei muito tempo fora de casa, daí
quando resolvi fugir pra não voltar mesmo, isso quando eu ainda era adolescente,
nem foi um grande choque pra ninguém.
– “Quando eu era adolescente” – isso foi ontem não foi moleque? – ironiza o
camponês.
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 12 / 182
– É nada, já fazem um punhado de anos!
– Hum, E você, como que veio parar nas ruas? Qual é sua história? – pergunta
Valentina.
– Que isso, minha história? Não vem ao caso.
– Ah, larga de se fazer de difícil. Ô princesa! – ridiculariza o garoto.
– Que difícil? Minha história só não importa, sou somente mais uma pessoa
qualquer.
– Sendo só mais uma ou não, eu gostaria de saber. Eu contei a minha, e o
garoto a dele, agora só resta você.
– Tá bom então, mas não quero nenhum comentário: eu era um militante sem-
terra, um assentado do MST. As coisas iam indo bem, morava com minha família numa
ocupação, a gente já tava fazendo o nosso sexto aniversário ali, apesar do estado ainda
não ter nos concedido nem seu selo nem seu carimbo. Era eu, minha esposa, e meus
dois filhotes – como qualquer pai, amava muito esses três. Até que, um dia, chegou um
batalhão da polícia militar pra cumprir ordem de reintegração de posse da terra. Nós
não queríamos sair dali; porra a gente tinha construído nossas casas lá com muito
trabalho, com muito sangue e suor, não podíamos abandonar tudo pro trator
passar por cima. Daí houve um confronto, e nesse, eu perdi a todos: mulher, filho e
filha – tudo. Perdi também minha felicidade, meu bom humor, e minha
esperança. Hoje sou um caco do homem que já fui.
– Que triste história. Meus pêsames – diz a valente.
O grupo prossegue a caminhada em silêncio. Valentina não consegue parar de
pensar nas transformações que seu eu está passando. O rompimento com
Getúlio. A nova e inusitada situação pela qual está passando. E agora, esta igualmente
inusitada dupla. O que será que o destino a reserva? Que destino ela construirá para si? A
vida não é uma caixa de surpresas; não não é, nós colhemos exatamente
as sementes que plantamos – e nada mais. O que, então, plantar? E, como as
proteger, até que cresçam e dêem frutos, da reintegração de posse?
Cruzam vias e viadutos, pontes e pontilhões, andam por bastante tempo
até encontrarem o que procuram: o esquivo musico – caído a frente do ferroso
portão vertical de um estabelecimento comercial qualquer. É, também, jovem,
contudo pouco menos que o moleque – sua barba não aparada lhe confere um certo
aspecto de Chê Guevara. Ao seu lado está sua velha porém intacta viola, enquanto, em
uma de suas mãos, um extravagante chapéu; um sombreiro estilo mexicano.
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 13 / 182
Sua respiração profunda emite um ronco áspero que, entretanto, é quase um
sussurrar. Baba um pouco.
– É... Você tava certo, o cara tá encharcado...
– Emborrachado, diria um mexicano – dizendo isto, o camponês solta uma
grosseira risada – seu amigo é uma piada. Quer dar um chute nele pra ver se acorda?
– Acho melhor não, ele fica raivoso quando alguém o acorda... Vam bora procurar o
operário então! Quero ver, ele não vai saber é de nada.
A dupla, sem muito esperar, parte em uma outra direção. Valentina fica a
olhar para o músico um pouco, com uma intensa expressão contempladora, e depois
corre para alcançar os outros. “Eu não teria desistido assim tão fácil...” – pensa – “É uma
emergência, acho que devíamos te-lo acordado. Quanto mais pessoas para ajudar,
melhor. Aí, aí. Acalme-se, acalme-se. Você nem conhece a pessoa, não sabe com quem
tá lidando. É melhor fazer como eles acham melhor – ainda estou aprendendo. Vamos ver
para onde, agora, levar-me-ão.”
Nossa heroína e seus dois companheiros peripatéticos, por horas caminham.
Anoitece.
Segundo Anoitecer
– A noite é mãe do dia que está por vir –
“Nesse dia que passou, ninguém saiu de casa. Ninguém.”
“É aí que ele mora” – diz o camponês apontando para um velho casarão com
aspecto de abandonado. “É aí a gaiola dele” – ironiza o jovem. Dois andares,
metade das janelas caída, a outra fechada com pesadas tábuas de madeira. De
frente, uma alta porta dupla – a qual o trio descobre de imediato que está fechada. O
prédio não tem mais cor, qualquer pintura que um dia possa ter tido, já fora desbotada por
completo pela poluição urbana.
“Ô operário! Operário! Preciso falar contigo, vem cá, ou abre pra gente” – grita o
velho. Sem se revelar, uma grave voz vinda do edifício responde: “Não vou sair daqui.
De jeito nenhum! To bem aqui! Vá embora!”. “Que isso! Vem cá, preciso falar contigo
amigo! Tem algo acontecendo, e só você deve saber o que é!” – nenhuma resposta –
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 14 / 182
“Saí daí caralho!” – nada – “Desiste cara, ele não vai sair. Te disse que ele não saí pra
nada.” “Porra, mas pensei que hoje ele sairia, pelo menos ele sempre, sempre, havia dito
que hoje viria para as ruas...” “E você acreditou? O cara é macaco velho... Não dá pra
contar mais com ele não. Tá é em prisão domiciliar, e pior, por opção” – solta uma risada
sarcástica. Valentina ri junto, e depois pergunta: “E agora, o que faremos então?” “Sei lá,
o anjo é você!” – ri o garoto, agora com bem mais força. “Vamos sentar ali um pouco e
pensar” – fecha o velhote.
Os três sentam no meio fio, de frente ao casarão, do outro lado da rua. “Filho da
puta! Saí daí, vem pra rua com seus amigos, porra!” – tenta mais uma vez o novinho –
“Bem, parece que é só a gente mesmo nesse mundo”. O grupo abaixa a cabeça, e cada
um fica a olhar para seu lado: Valentina no centro, o campesino à sua
esquerda, e o índio a sua direita. Um vento de silencio passa pela cidade, e tenta
levar a esperança com ele, e o destino pra lá – mas estas resistem, ainda não é sua
hora, não não é. Ainda há chance. Ainda teremos uma resposta, os alísios da mudança
estão por vir.
E vieram:
Surge por detrás das entortadas colunas vertebrais, o músico – antes caído, agora
reto e ereto. Com sombreiro na cabeça, e viola em punhos. Tirando alguns harmoniosos
acordes, pergunta cantarolando: “Olá! O que aqui fazem? Por que toda esta melancolia?
A cidade é nossa! Vamos celebrar! Por esse dia sempre esperei, sempre
esperamos!”. O garoto, coloca-se de pé, fita o seu colega por um instante, enfim,
responde: “É, sei lá, eu não to triste não...” “Triste não, mas preocupado. Precisamos
saber o que acontece, para saber o que fazermos. Com grande liberdade, vêm grande
responsabilidade. E, eu acho que só o operário deve saber o que fazer. Ele é o mais sábio
de todos nós. Ou, você sabe o que fazer?” “Claro que sei! Temos que dançar!”. Salta
por cima dos dois sentados, e dança com loucos movimentos: lança seu
braços para o alto, vibrando freneticamente todo seu corpo, enquanto dá lentos e largos
passos “Temos que dançar, aprender a dançar!”. O velho balança sua cabeça
negativamente “Tsc... só dançar é pouco. Precisamos soltar o sábio. Você não passa de
um sabichão metido.” “Olha o respeito, ein titio! Aqui é gato de bigode!” “Então faz algo de
útil! Ajude-nos!” “Ok, tudo bem. Onde tá o cara? “Ali!” – o trio responde simultaneamente.
Larga o instrumento ali mesmo, e em três saltos, achega-se até a casa. Olha-a
de um lado, olha-a de outro. “Hum...”. Tenta a porta, faz mais força. “Hum... Sei o que
fazer”. Corre para longe dali, saltando por cima do casal novamente. O trio faz cara de
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 15 / 182
interrogação; mas logo ele volta com a resposta em mãos: uma cheia sacola.
Cantando “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir... A certidão pra
nascer, a concessão pra sorrir... Por me deixar respirar, por me deixar existir... Deus,
lhe, pague! Pelo prazer de chorar, e pelo estamos aí (...)” tira uma garrafa pet, e espalha
seu incolor líquido ao redor de todo o prédio. Afasta-se deste, pega uma estranha garrafa
de vidro, virá para seus amigos, parando um pouco a cantoria “Molotov caseiro”, acende e
retoma a música “e pela paz verdadeira que enfim vai redimir!” – arremessa o projétil –
“Deus, lhe, PAGUE!” – finaliza com uma enfática pose, reclinando-se, como que
saudando o fogo.
Explosão, seguida pelo acenso das chamas purificadoras. A casa, num átimo, é
consumida. Dela, saí correndo o sábio: um homem que aparenta ser da mesma geração
do camponês, porém com uma barba bem mais cheia, um físico pouco mais
mirrado, e já parcialmente calvo. Mostra-se muito assustado – as chamas
queimaram uma parte de suas vestes e barba, que eram relativamente novas e
formais. Batendo nas brasas restante, pergunta: “Era isso necessário? Precisava,
mesmo, meu lar ser destruído?” “Claro, você estava preso aí!” – responde o dançarino –
“a gente tentou te chamar, mas você não nos atendeu” – complementa o camponês.
– Mas, e aí, e agora, o que vocês querem de mim?
– A cidade tá vazia, só ficou a gente. Entretanto, não sabemos o que se passa.
Nem o que fazer. A terra agora é nossa, mas e agora?
– Como assim, e agora? A primeira coisa que precisamos é de comida,
junto com ela, precisamos também de cultura – conhecimento.
– Comida?
– É, comida.
– Pô, isso eu e o companheiro aqui já fizemos, comemos num
quiosque da rua...
– Mas eu ainda to com fome.
– Eu também to com fome, mesmo!
– Também to, só comi um coxinha hoje o dia todo.
– É, eu também.
– Eu nem isso...
– Nem eu...
– Então, vamos!
Lado a lado, de braços dados ou não, o coletivo segue a procura de
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 16 / 182
alimento – para o corpo e para a mente. Sem muita demora, numa esquina
próxima, encontram um restaurante, novo e muito bem conservado. Sem muita demora,
adentram o recinto.
Adentram a cozinha.
Remexem-na por inteiro: e, numa geladeira, acham uma lula congelada.
Descongelam-na, e depois a fritam. Lula frita, este é o jantar do dia em que a terra (do
pau-brasil) parou. Os cinco, sentados numa mesa redonda dividem o prato – a
cada um o quanto necessita. Enquanto jantam, discutem o que farão e como
farão. Como organizarão o novo mundo, com suas próprias mãos.
De sobremesa, o dançarino bola e taca fogo num digestivo, que passa de boca a boca
na roda. Em meio a neblina e uma canção, Valentina adormece. “(...) aí não tem gambé
pra negociar! Liberta a vítima, vamos conversar! Vai se ferrar! É hora de me vingar, a
fome virou ódio! E alguém tem que sangrar! (...) Não tem deus nem milagre!
Esquece o crucifixo, é só uma vadia, chorando pelo marido! É o cofre versus a escola,
sem professor! Se for pra ser mendigo, doutor, eu prefiro uma glock com silenciador!
Come seu lixo não é comigo, morô! Desce do carro, se não tá morto! Essa é a lei daqui, a
lei do demônio! Isso aqui é uma guerra!” – “de classes!” – complementam o
índio, o operário e o camponês – “(...) cala a boca, e aplaude o resgate! É... Cala a boca
e aplaude! (...) Isso aqui é uma guerra!”
O Sonho da Mulher Valente
Nossa heroína corre incessantemente por uma mata dispersa, mudando
constantemente de direção. Até se deparar com o pequeno lago. Senta-se um
momento numa pedra na beira d’água, e, no impulso, mergulha com tudo neste,
suas roupas sobem a superfície. Pouco depois sobe ela – porém como criança. Sai
d’água, olha-se um pouco: aquele pequenino corpo nu. Retorna a corrida pelas matas.
Muitos caminhos, muitas árvores, cantos de pássaros. O final é um abismo, um
gigante abismo impedindo o continuar da corrida. Valentinha senta no chão, e fica
a olhar o infinito, o verdadeiro infinito vazio do buraco. Repentinamente uma música ecoa
pelo vale, pouco depois, o músico se revela “Vamos, Valentinha, você consegue”, Ela olha
para baixo e recua “É impossível, não há como! Não consigo” “É necessário se arriscar,
não há tempo para os covardes, tão pouco para covardias” “Mas, como? Como
farei? O que preciso?” “Nada! Somente valentia”. Ele se agacha, e dá um leve beijo
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 17 / 182
nos lábios da criança e some – evanesce. Valentinha, sozinha e nua, hesita por um único
instante, mas se lança nas profundezas desconhecidas; para aterrissar em solo
firme como mulher novamente (porém ainda nua):
“Sim!”
O Raiar do Meio-dia (O Despertar da Além-mulher)
Valentina é acordada com um sol escaldante em sua face, o grupo esta a sua volta.
Levanta-se, olhando para o sol, monologa:
(Enfoque em Valentina com proximidade)
A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos
cansados do homem. Então, mulher, abandoneis toda a esperança, vós que entrais
no inferno. Pois, depois de descartada a hipótese de suicídio, só nos resta o
otimismo; abraçais toda a esperança, vós que sais do inferno, mas sem
guardar a lembrança de que os lugares mais quentes deste eram destinados aos que,
em tempo de grandes crises, mantinham-se neutros. E nós, que agora vivemos num
tempo em que civilização periga morrer por meio da civilização, hemos de não desistir,
pois se o amor pela pátria é a primeira virtude do homem civilizado, logo esta morte é
uma benção para nós de estômago forte, para nós transcivilizadas, pois o que não nos
mata nos fortalece!
(enfoque em Valentina e no céu atrás de si, de baixo para cima)
Apesar dos provérbios serem sempre chavões até você experimentar a
verdade contida neles, no mundo realmente revirado, a verdade é só mais um momento
do falso. A verdade é que somos como o nada veio ao mundo, a verdade é que a
desobediência é a virtude original da mulher, e a semente da além-mulher. É preciso ter
um caos dentro de si para dar luz à uma estrela cintilante. Se eu não puder dançar, não
é minha revolução, se ele não souber dançar, não é meu deus. Ha! Se Deus existisse, a
mulher seria escrava; mas, a mulher pode e deve ser livre, pois Deus, ah!...
Deus não existe fora da existência, o deus-individuo está morto, e ademais
a mulher é condenada a liberdade. Como então ficará a sociedade se até mesmo o
grande napoleão já sabia que a religião é o que impedia o pobre de matar o rico?
(Enfoque horizontal, mostrando a cidade, some Valentina)
Este estado de coisas era onde todos bebiam veneno, os bons e os maus; onde
todos se perdiam a si mesmo, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 18 / 182
chamava "a vida", mas lembrai-vos que: onde acaba este estado começa a mulher que
não é supérflua. A anarquia é a ordem na transcendência, na compreensão intuitiva do
todo. A razão é só recorte, a razão só vê o que está a um palmo de si, é míope! A mulher
é a criadora, o trabalho mulherano é a fonte de todo valor. Sejamos as novas
filosofas, as ocupadas em transformar o mundo, não só interpretá-lo.
Tenhamos a audacidade de sermos irracionais! Tenhais a valentia de serdes
transracionais!
(Enfoque no reflexo do sol na água da panela)
Estou além da mulher.
A Geografia e o Calendário – O Dia em que a Terra Parou – 19 / 182
Perdido na Poluída Polis
Dezesseis de março de dois mil e dez. São Paulo. Aos 22
Parte 0 I (Introdução) – Partida
Subi a serra pela primeira vez num domingo nublado, nela chovia forte, apesar de
nenhuma gota cair nem abaixo nem acima (o que me contaram ser bastante comum). Lá
na minha ilha tudo andava calmamente; o mar ia e vinha com o rebentar das ondas,
enquanto os humanos iam e vinham com suas caminhadas vespertinas. Tudo e todos
estavam calmos, exceto eu e meus sentimentos: não conhecia a capital, uma curiosidade
impaciente me atormentava: “o que viverei? Como será que é lá? Será que é
tudo isso que me contam?”. Questionamentos reverberavam incessantemente no
meu pensar, alimentados sem dúvidas por contos e aventuras saídos da boca de meu
camarada Humberto, um conterrâneo que migrara para a cidade de são paulo há um
ano e um punhado de meses.
E eu estava ali de cocoras na areia da praia com o infinito horizonte do grande
oceano a minha frente, aproveitando pela última vez em algum tempo uma liberdade a
qual não teria acesso na cidadona: fumava um cigarro do verde em roda com meus
amigos de sempre. A típica mistura da brisa marítima com a brisa da erva não
era capaz de acalmar meus ânimos, mesmo com todo esforço que ela exercia.
Contudo um simplório prazer por estar ali, naquele exato lugar, naquele exato
momento, com aquelas exatas pessoas, tomava meu corpo, e se mesclava
num turbilhão confuso com aquela enorme ansiedade pré migratória. O
resultado foi um sorriso singelo porém sincero.
“Velho, que que você tá pensando?” Perguntou-me uma da roda, ao ver
meus alvos dentes; Marge – seu nome era Margarida, Marge veio de seu gosto por
Simpson's – uma garota agitada chegando nos seus vinte (ou será que já tava lá?). Mais
ou menos um terço de seus longos cabelos castanhos por inteiro cacheados
caiam a frente de seus ombros, e o resto se dispersava nas suas costas. Era baixa, mas
não magra e nem fraca. Tinha lindos, muito lindos mesmo, olhos negros opacos e uma
pequena esquiva boca da qual não me esqueço. Talvez seja só por saudosismo que
esteja a descrevendo tão longamente, já que ela ficou lá na ilha, e não mais aparecerá
nesta história: a verdade é que a namorei durante anos, quase três para ser mais
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 20 / 182
exato, daí não demos certo e nos separamos. Mas dos meus pensamentos ela
ainda agora não se foi por completo.
Não me lembro muito bem o que respondi, acho que algo meio fugindo do assunto,
já que eu mais divagava do que pensava. Contraditoriamente nos meus últimos
momentos em Santos eu pouco estava lá - mal me lembro de qualquer outra coisa que foi
dita. Para ser sincero, estes últimos suspiros da minha vida santista sopram em minha
memória como alvas nuvens a se distanciar constantemente; será que um dia ainda serei
capaz de as ver? Não sei, não sei. Porém, certo é que poucos sopros depois eu já estava
no mortadela, nome pelo qual o carro do Humberto atendia, subindo sem dificuldades
aquela serra que tanto amedrontou e atrasou a invasão portuguesa às terras
indígenas, isto há exatos cinco séculos atrás. Mesmo o pouco de mata atlântica
que sobrou impressiona, todo espaço que o concreto permite é dominado pelo verde da
mata. Impressionava-me tanto que nem mesmo era capaz de prestar atenção nas
velozes e incrivelmente freqüentes palavras de meu motorista – provavelmente
contava alguma de suas histórias, sempre recheadas de diversos tipos de
aditivos; nunca saberei com certeza. Mas o que me importava? O que me importa? Meu
estomago laricava um sanduba maternal, enquanto minha mente esperanças, e
meu coração sonhos.
A viagem viria a ser só isso. Municípios, todos por mim desconhecidos, passaram
tão rapidamente que nem mesmo deixaram marcas: São Bernardo, Santo André,
saída para Paranapiacaba e logo o destino, minha nova terra, a gananciosa
São Paulo de Piratininga.
Mas quem sou eu? Desculpem-me pelo atropelo, ainda estou tão ansioso com tudo
que me passou e me passa que esqueci de me apresentar.
Parte O II (Introdução) – Apresentando
Eu: Nasci, cresci e tenho esperança de morrer na ilha de São Vicente, no município de
Santos. Não pensei sempre assim, admito. Nem mesmo vivi sempre lá. E este conto,
esta parte da vida que quero a você revelar, é exatamente sobre este momento: a
migração para a capital São Paulo.
Para explicar minhas origens familiares, tenho que retornar a duas outras
antigas migrações: o pai de meu pai – um barbeiro catalão que nesses tempos era
filiado a FAI (Federação Anarquista Ibérica) – veio, com minha jovem avó, se refugiar
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 21 / 182
aqui logo que Barcelona caiu na mão do exercito fascista do general Franco. Já os pais
de minha mãe vieram fugidos de outro tirano inspirado na mesma ideologia: Benito
Mussolini. Lá na velha Itália sobreviviam, há gerações, precariamente da pesca
mediterrânea na Sicília. Trocaram o pesqueiro pelo transatlântico quando o irmão mais
velho de meu avô – um bravo guerreiro partisan – fora covardemente assassinado. Por
fim, as duas famílias acabaram por se encontrar na Barcelona dos Trópicos –
como a gloriosa Santos na época era chamada. Ali meus pais se conheceram ainda
pequeninos, brincando juntos enquanto esperavam o fim das reuniões políticas e sindicais
de seus pais. Cresceram muito próximos, e, depois de algumas idas e vindas, ajuntaram-
se. Essa união entre socialistas libertários italianos e espanhóis resultou numa prole
de três filhos, dos quais sou o do meio.
Estou na minha terceira década de vida, muitos sonhos porém poucas perspectivas
de futuro. Considero ter uma boa destreza com as idéias, porém as instituições de ensino
estatal não pensam o mesmo, logo, ainda não fiz nenhum curso superior. Já
meu ensino médio foi feito na ETE Aristóteles de minha cidade. Tenho pouca formação
oficial, mas compenso com o autodidatismo. Tento levar a vida na boa, mas sem ser
leviano. As vezes amo a vida, outras vezes só vivo.
Humberto: Conterrâneo e amigo das antigas, apesar de ter estudado no ensino médio
privado. Hoje migrou para o sistema público, faz ciências sociais na USP da
capital, e é deslumbrado pela terra mágica do campus. Sempre o achei exagerado e
excêntrico, nunca o entendi muito bem. Quando adolescente encharcava todo fim de
semana; virava os gorós como se não houvesse amanhã, até chamar o hugo
desesperadamente. Daí passava o dia seguinte falando cinicamente que não
beberia mais, uma grosseira piada. Hoje não vomita mais, mas bebe igual. Baixinho,
troncudo e com cara de bom menino.
Parte I – Desembarque em Mortas Águas Novas
Ao sair do carro, olho a minha volta: estou na ponte Eusébio Matoso, uma
grotesca formação de concreto feita para transpor o rio Pinheiros, mas que também
passa por cima da Marginal; descomunal avenida a margear o rio, com mais de dez
pistas de cada lado, subdivididas em locais, onde a velocidade máxima é de 70km/h,
e expressas, onde permite-se atingir os 90km/h. Por estas passam centenas e centenas
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 22 / 182
de carros incessantemente, criando um irritante rugido desumano que, ao se mesclar
com os gritos das constantes sirenes de ambulâncias e camburões, chega-se a
uma obra prima da cacofonia. Cada um desses habitantes metálicos peidam
correntes de poluentes tóxicos para os habitantes orgânicos, enquanto o fluxo de água
morta e fétida do rio exala um terrível cheiro similar ao de chorume. Todo o ar próximo
ao rio, talvez até quase uma centena de metros, é infestado pela mistura disto tudo: o
perfume do progresso. E nesse momento, cometo meu primeiro erro na grande
cidade: Inspirei profundamente. Tossi forçadamente.
Mas o Pinheiros até que tem sua beleza: é tão escuro e denso que nem mesmo a
luz nele penetra, tornando-se um imenso espelho d'água. Pena que as únicas
coisas a serem refletidas nele são as titânicas caixas de concreto de São
Paulo. Tudo tão cinza, tudo tão cinza. Ainda absorto em minhas reflexões, sigo meu
caminho: subo e desço os degraus de uma passarela, o único jeito do ponto de ônibus à
frente do shopping eldorado ser alcançado, já que a avenida Rebouças é demais
movimentada para por pedestres ser atravessada. Um ripie cabeludo vende camisas
estilizadas do Bob Marley e do Raul Seixas, daquelas com coloridos efeitos.
Penso que ripongos urbanos são curiosos: estão a um passo de serem mendigos, e a
um passo de serem um santo cristão. Contudo, gosto de bob, também de Raul, porém
menos, muito maluco beleza.
Já antes de chegar no ponto vejo que este está abarrotado de gente:
engravatados de baixa patente, donas de casa, idosos, estudantes, consumidoras e
consumidores do shopping, trabalhadores. Todos a ruminar lentamente o cotidiano.
Nesta pintura entediante um só grupo tem suas cores destacadas: cerca de dez
jovens distribuem panfletos e conversam com o apático povo. E logo na entrada
da plataforma um destes me aborda; um cara alto e magro nos seus vinte e poucos anos,
com estranho cabelo moreno grande e bastante armado, uma barba/bigode juvenil a
ser feita e duas argolas negras adornando sua narina esquerda. Estica-me um panfleto
falando: “Contra o aumento do ônibus!” “O ônibus aumentou? Quando? Não tava
sabendo, foi pra quanto?” “Aumentou hoje. Foi pra três reais. Um aumento de cerca de
onze por cento, bem acima do reajuste do salário mínimo, da inflação, e do seu salário
também, não?” “Sim, é sim” minto eu, pois na verdade estou sem salário, e ele continua
“depois de amanhã, na sexta, vai ter um ato contra o aumento lá no centro. Se você puder
ir para dar uma força...” com esta frase aberta que nosso diálogo se fecha, o garoto se
afasta para entregar panfleto para outro transeunte, enquanto eu dou uma olhada
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 23 / 182
por cima na parte frontal do papel e o guardo. Esta escrito mais ou menos o mesmo que
ele me disse.
Fico por ali esperando o ônibus que Humberto me indicou, Largo da
Pólvora. Um curioso nome, mas que se adéqua bastante a minha concepção
idealista da grande cidade na qual estou. Certo que considero um cinzeiro
quilométrico uma metáfora ainda melhor de sp (está comparação eu vi
grafitada numa arte de rua). Panguas a parte, continuo ali esperando e
esperando. Até ser surpreendido por uma gritaria, o grupo de ativistas inicia uma ação:
uma parte deles corre para a porta de trás de um ônibus na plataforma e impede o seu
fechamento, enquanto outra parte distribui panfletos e grita “Três reais não dá para
pagar! Transporte público precisa ser gratuito! E hoje teremos ônibus de graça! Entrem
todos! Vamos lá!” coisas assim, pelo menos na minha memória.
O povo da plataforma é tomado por uma mistura de susto cheio de desconfiança,
com uma vontade audaciosa de aderir àquela ação direta. Qualquer um sente uma
revolta com esse preço absurdo, qualquer um que ande de ônibus é claro, porém o
receio de sofrer alguma retaliação é forte. Numa terra dominada por um estado brutal e
sanguinário, o medo é componente diário dos cidadãos (nome cínico e
eufemístico dado aos escravos do estado). Um sentimento com muita razão de ser, haja
visto imenso histórico de massacres promovidos por este: Carandiru, Eldorado dos
Carajás, PCC em 2006, os jovens da baixada, só para citar alguns recentes;
Canudos e Cabanagem, para citar dois mais antigos.
Inicialmente, poucas pessoas aceitam o atrativo convite de andar de graça.
Porém o grupo é persistente, todo ônibus que para na plataforma sofre uma investida
política. Todo que segue para o sentido bairro, o mais movimentado naquele horário de
fim de tarde, e, infelizmente, não o meu sentido. Eu me dirijo ao centro, para conhecer o
albergue que me foi indicado. (Outro santista amigo meu que contou-me deste
albergue, segundo ele barato e sem barata. Parece-me bom, mas não tenho tanta certeza
assim, o padrão de limpeza desse meu amigo não é muito elevado; em breve
saberei, calma, calma.) Com o vir e ir dos ônibus, os passageiros da plataforma
começam a aceitar o convite à gratuidade, cada vez mais pessoas adentram por detrás
do carro. Mas eu tenho que entrar pela frente, não dá pra fazer nada disso sozinho.
Enquanto pago minha passagem, a qual me dá direito a viajar em pé num sujo ônibus
lotado, penso que aqueles três reais podem vir a me fazer falta ainda. Mas só por um
momento, rapidamente meu pensar avoa em outra direção: desce de volta aquela
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 24 / 182
serra a qual desbravei pela primeira vez agora há pouco e retorna para minha
querida Santos: não sou acostumado a andar de ônibus, nem motorizado. A ilha é tão
pequena que praticamente o único transporte que utilizo são meus próprios pés. Com
uma hora de caminhada eles me levam para quase qualquer lugar, pelo menos na
região insular de Santos, a parte continental é demais afastada. Quando tenho
pressa faço uso de uma bicicleta, há uma extensa ciclovia pela orla da praia de
toda ilha (o que inclui também São Vicente). Ah, a orla... Tudo bem eu sei, a areia é suja,
o mar poluído, mas a orla é linda: Santos possui o maior jardim de praia do mundo, são
vários quilômetros de flores e plantas, um muro vivo a separar a cidade do mar.
Um forte calor abafado faz-me retornar a São Paulo. Chove, todas as janelas se
fecham. Uma aura de suor humano toma de assalto o veículo. A cada nova parada muitas
pessoas embarcam, e poucas outras desembarcam. Vou ficando cada vez mais
espremido; os tripulantes me empurram para uma posição entre o corredor e uma
senhora de idade sentada num banco preferencial. Em alguns momentos, trombo na
idosa, eu outros, na multidão, a depender do balançar do ônibus. Lembrei-me
de uma situação semelhante pela qual passei na minha terra: uma tarde bastante
chuvosa, houve inundação, alguns canais quase transbordaram, e eu num ônibus
super abafado também. Contudo há uma grande diferença: em Santos a clausura
durou algo em torno de meia hora, enquanto em São Paulo passo duas horas no ônibus.
Inicialmente penso que o lugar que eu ia me hospedar fica muito longe, mas muito
longe mesmo. Liberdade, lá no centrão. Porém, com o passar do tempo, percebo que
quase não ando. Passo minutos e minutos sem movimentar-me um metro.
Impressionante, demorei uma hora para chegar de Santos a São Paulo, e duas da
marginal pinheiros a liberdade. Seria essa a tão falada e famosa velocidade do
progresso?
Tento me acalmar, tento me distrair. Resgato o panfleto de minha
bolsa. Desajeitado e desequilibrado, cambaleando na sauna úmida móvel, ponho-me
a ler “(...) transporte é um direito público, como a educação e a saúde. Sendo assim este
não pode ser tratado como mercadoria, não pode ser subordinado ao lucro. Você não
acharia estranho se chegasse na escola ou no hospital público de sua região e se
deparasse com uma catraca na entrada? Por que, então, aceitar como normal a
catraca no ônibus? (...)”
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 25 / 182
Parte II – Segundas Impressões
Desço no ponto final, o largo da pólvora: uma pracinha com jardim ao estilo
oriental, e um busto d'um imigrante japonês, sem absolutamente nenhum vestígio de
pólvora. Já é quase noite, se não fosse horário de verão já seria, e ainda chove, não
muito forte, mas a constância incomoda bastante. A primeira vista o centro de sampa me
lembrou muito o centro de minha cidade: antigos prédios, em geral, caindo aos
pedaços, moradores de rua pedindo esmola e muito lixo. Uma grande diferença dessa
região específica do centro, a liberdade, é sem dúvidas os traços orientais:
lampadas chinesas substituem os tradicionais postes de rua, lojas com placas escritas
em ideogramas diversos, pessoas com olhos puxadinhos, algumas construções
com arquitetura nipônica, como o lindo templo budista pelo qual passei ao descer a São
Joaquim.
Procuro em minha mochila, tiro o papelete no qual anotei o endereço do albergue
“Rua São Joaquim 1022”. Um quilômetro abaixo, chegar parece fácil, o problema
será a volta... São Joaquim é uma longa e íngreme ladeira que liga avenida vergueiro
com a Galvão Bueno, principal rua comercial da Liberdade. Passo por
construções curiosas: um alto e largo prédio da Caixa Federal com a padrão decoração,
uma loja Maçônica cheia de seus bizarros símbolos e com altos pilares imitando
pateticamente a arquitetura greco-romana, um feio e simplório porém muito espaçoso
salão onde funciona a igreja evangélica nipo-brasileira, o já citado templo budista e,
depois de algumas quadras, finalmente o albergue. Uma placa bilíngue pendurada
na porta o identifica: “Albergue nissei. Camas para homens” diz a parte em
brasileiro da placa, acredito que a parte japonês diga a mesma coisa, mas daí é fé da
minha parte – nada entendo destas hieroglifos orientais.
A porta dá para uma estreita e antiga escada de concreto. Subindo-a
chego numa pequena sala de recepção. Um senhor oriental com uma daquelas longas,
triangulares e ralas barbas típicas, já passado dos cinqüenta ou sessenta (é difícil para
mim identificar a idade dele), ali me aguarda “Esperado você é, rapaz meu” diz-me
ele, eu já havia ligado avisando. Confirmo o preço combinado – duzentos reais
mensais e nada mais – e sou acompanhado até o quarto. Um pequeno aposento com
dois beliches, duas escrivaninhas, uma janela daquelas de ferro que abrem
lateralmente e dois homens a dormir. Mesmo com tão pouca coisa, é um quarto
desorganizado, mas não muito sujo – dá pra agüentar de boa. Pago o primeiro mês,
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 26 / 182
despeço-me e vou dormir “Boa noite tenha você, jovem”.
Na manhã seguinte fico sabendo melhor como é o albergue: quatro
quartos, dois beliches em cada quarto, resultando em dezesseis albergados,
isto quando todas as vagas estão ocupadas – fato raro, pois poucos vêm aqui para
ficar. Há dois banheiros, um para cada dois quartos, ambos pequenos, e sem divisão
de boxe, o que faz com que fiquem molhados o dia quase inteiro. Há também
uma cozinha comum, com uma geladeira bem antiga e barulhenta, um fogão
de quatro bocas, com duas funcionando bem, e um armário de madeira embutido
na parede. Passando esta chega-se a lavanderia, um comodo realmente pequeno
equipado com uma grande máquina de lavar conservada e um varal de teto sempre
lotado de roupas masculinas, só a janela dá uma compensada na sensação
de espaço, pois ocupa toda uma parede. Por último temos o sempre trancado
quarto-escritório do velho Edgar. Não vou alongar-me mais nesta descrição, o albergue é
irrelevante.
Tomo meu banho, após uma meia hora de fila. Depois sigo para conhecer o centro,
o forno da locomotiva do Brasil.
Parte III – Harakiri Paulistano
Caminho contra o sol insurgente. Os raios deste refletem nas poucas
torres envidraçadas do centro, vão até os capôs dos milhares de carros que
lentamente transitam, e eventualmente atingem minhas pupilas, ofuscando-me
um pouco. Essa louca dança de raios luminosos acaba por transformar toda
região numa gigantesca estufa, agravando o calor e a sensação de abafamento, naturais
dessa época do ano e da atual era. Esse ar quente junto com a longa e suave subida da
Galvão Bueno faz-me suar um pouco – se estivesse subindo a São Joaquim suaria o
triplo.
Contudo, não recordo-me muito bem do início dessa quinta-feira, sempre que
tento resgatar os detalhes desta manhã minha mente é tomada pelo fresco cheiro da
morte, e logo a imagem do homem vem me importunar. Sei que caminhei por
diversas ruas: conheci a sé, a república, o anhangabaú, o largo são francisco, a
prefeitura, o fórum, o teatro municipal em reforma, a galeria, o Ay Carmela!, o viaduto
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 27 / 182
do chá... O viaduto do chá... Acho que gostei do passeio, bonitas e grandiosas
arquiteturas temperadas com milhares e milhares de pessoas das mais diversas e das
mais estranhas. Foi uma longa caminhada.
Quando passo pelo viaduto do chá um triste acontecimento me marca:
estou tranqüilo, distraidamente admirando a cidade, vendo os muitos carros da grande
avenida que passa por baixo do viaduto. Ao voltar-me para frente, percebo que um
homem está de pé em cima do parapeito. Parece ter uns trinta e poucos, era
gordo, não de físico naturalmente avantajado, mas com uma graxa daquelas
advindas de um extremado sedentarismo. Vestia roupas simples (uma camiseta
vermelha e uma calça jeans) e era branco de pele, acho que tinha a barba feita, e
o cabelo castanho. Ele devia estar a uns vinte metros de distancia a frente de mim.
Eu estranho seu ato, porém nada faço, continuo àndar me aproximando. Nem
mesmo presto muita atenção, perdido em minhas divagações. Quando chego a
poucos passos do rapaz, ele respira fundo, olha em minha direção (sinto um
melancólico vazio em seu olhar); olha para o alto – uma brisa bate em seu rosto; solta o
ar e salta. “Como assim? Ele saltou? Saltou mesmo?” penso eu. Um baque surdo ecoa
pelos blocos de concreto. Aproximo-me da mureta e observo, sem parar minha
caminhada mas diminuindo o ritmo: o corpo meio de bruços, bastante torto e com uma
faixa de pele de suas costas à mostra, por de baixo da vermelha camiseta.
Ele ainda geme, sofrendo espasmos incessantes de agonia. O homem treme e treme
diante do eminente fim. Uma poça de sangue se forma no chão ao redor de sua
cabeça, expandindo aos poucos. “Por que será?”.
Em seguida a multidão de curiosos se joga contra a mureta: “Ele pulou!”
“Ainda tá vivo, olha lá” “Virou presunto!” “O cara se matou!” “Porra!” “Que houve?”
“Pulou” “Pulou” “Caralho!”. Os próximos a chegar são os coxinhas, com o teatrinho da
autoridade. Continuo meu caminho, não gosto desse tipo de coisa. Continuo meu
caminho, agora cabisbaixo e ainda mais pensativo.
“Por que será?”
A fragilidade da vida me impressiona. Acho que sou uma pessoa sensível, não
tenho certeza. Mas, o que leva uma pessoa a findar sua própria existência? Não sou
um amante absoluto da vida; as vezes gosto de viver, outras vezes não. Nesses
momentos chego a pensar no pulo, no corte, no tiro, no veneno, na overdose, mas
nunca com muita seriedade, sempre sei que é só uma idéia passageira. No fundo, eu
não consigo ver a morte como uma opção, acho que essa é uma idéia de Sartre, ou
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 28 / 182
talvez só uma conclusão imediata para quem sabe que só se vive uma vez, e só se
vive aqui: se nada existe depois da morte, se a morte é o fim do mundo-visto-por-mim,
matar-se não é uma opção, é o fim das opções. Não compreendo um ato destes, e essa
falta de compreensão me atormenta profundamente.
Parte IV – Quinta e Breja
Mas a vida continua. Meio abalado sim, mas continuo o caminhar.
Para a noite combinei com Humberto uma balada na USP. Toda semana ela
acontece, chama-se quinta e breja, e é uma festa organizada pela ECA (escola de
comunicação e artes). Pelo que me contou, é mais uma hora feliz do que uma festa
propriamente dita. Tudo bem, meu principal interesse na verdade é conhecer um pouco
da cidade universitária. Alguns dizem que ela é quase tão grande quanto minha ilha, mas
eu não acredito muito nisso não.
Enfim, resolvi seguir o conselho do meu colega e ir pra lá no começo da tarde, afim
de evitar horas no transito. Acabo meu passeio, almoço (preferi não comer carne, a
lembrança recente d'homem do chá ainda me incomodava demais) e embarco
num ônibus. Mesmo assim a viagem demora uma boa hora...
Chegando na USP, fico passeando a esmo. O campus é um lugar curioso: uma
área extremamente grande, com uma vegetação exuberante a competir com as também
exuberantes construções arquitetônicas. Destaque especial para o prédio de história
e geografia da FFLCH – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, e para o
da FAU – faculdade de arquitetura e urbanismo. O primeiro parece um enorme
galpão, com uma rampa gigantesca e sólida de concreto em seu centro. Subindo esta
chega-se ao piso superior, onde se encontram a maior parte das salas de aula. O teto do
prédio deve ter algo como trinta ou quarenta metros (não confiem em mim, sou péssimo
para este tipo de coisa). No piso térreo ficam os auditórios, as salas de
atendimento para os estudantes, e o espaço estudantil – chamado de aquário, pois fica
atrás de uma parede de vidro – sempre bastante movimentado. Contam as
lendas que este prédio foi construído em plena ditadura militar, e que o
verdadeiro motivo da largura e resistência da rampa é possibilitar a passagem de
um tanque, para o caso de uma eventual revolta estudantil. Já o prédio da arquitetura,
bem, esse eu não sei descrever... Acho que só um arquiteto conseguiria com
exatidão – convido-te a conhecê-lo um dia (aproveite para conhecer os trotskistas do
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 29 / 182
MNN, eles adoram a FAU).
Enfim, parto para encontrar-me com Humberto no bosque da sociais,
mas chego um pouco mais cedo, fico, então, a admirar o lugar: um pequeno espaço
estudantil a céu aberto, com várias árvores altas cheias de verdes folhas, uma porção de
bancos, e nesses, muita maconha e maconheiros. Mal chego, um grupo já se senta
próximo a mim. Começo a me sentir bem, essa atmosfera liberal para com a minha erva
me faz lembrar da minha prainha – claro que sem a brisa marítima, mas até
um ventinho marca presença, trazendo até mim o perfume da natureza. Convido-me a
participar da roda, sabendo que este não seria recusado – faz parte da Lei de Jah (para
aqueles que não conhecem, os usuários de erva possuem um código de conduta, e este
inclui nunca recusar um pega – mesmo para um total desconhecido. Outra regra, a título
de exemplo, é “quem bola, acende”). Esta é formada por três pessoas, uma do sexo
feminino e duas do masculino. A garota é relativamente baixa, com cabelos castanhos
bem escuros, meio crespos meio cacheados na altura das costas. Usa óculos de acetato
escuro, que fazem com que seus olhos amendoados pareçam maiores e aguados,
deixando-a, na verdade, mais interessante. Cobre seu magro corpo reto com
um longo vestido de alcinha fina em tons de marrom e bege – um estilo meio ripongo
bem abrasileirado. Um dos garotos tem olhos puxados e bem pequenos,
certamente um descendente de orientais, chutaria japoneses. Mais ou menos a
mesma altura da garota, e também usa óculos, porém não de acetato. Seu cabelo é bem
preto e liso; curto, mas não completamente. Tem uma nascente barbicha
triangular, um protótipo da senhora barba do senhor da pensão. Já o outro moleque,
é alto e magrelo com longos e grossos dreads em seus cabelos castanhos. De tez
branca, porém o branco típico da terra do pau-brasil. Pela cara, parece
ingenuamente feliz, mas isso pode ser só preconceito meu – talvez porque ele me
lembre o Salsicha.
Logo menos eles se apresentam, respectivamente: Gabriela, Leandro e
Rafael; estudante de geografia, estudante de ciências sociais e motomenino. Os três
formam, ou melhor, nós quatro formamos um grupo heterogêneo, porém, dou-me muito
bem com eles. Inclusive, conversando consigo convencer dois a irem na quinta e
breja comigo, só o Leandro que não topa. Pouco depois chega Humberto, e partimos para
a ECA.
A festa já começara, porém não está muito lotada. O espaço é bastante
interessante: uma praça com algumas árvores e alguns bancos entre os
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 30 / 182
prédios da ECA. As apresentações de conjuntos musicais acontecem numa curiosa
construção circular conhecida como canil – parece que antigamente ali era de
fato um lugar de cães (teria vindo dali o famoso cachorro espancado até a morte pela
Soninha?). Já as bebidas são vendidas no espaço de convivência estudantil da ECA,
próximo a sala do centro acadêmico e da atlética. Seguimos direto para lá, pegamos
uma latinha cada um, e voltamos para a parte aberta. Ficamos um tempinho
só jogando conversa fora, até meu conterrâneo reivindicar um cigarrinho “sei que vocês
já fumaram, mas eu ainda não...”. Sem perder tempo, ele mesmo prepara e acende um.
Uma outra garota, conhecida da Gabi, se junta a nós nessa segunda ciranda. Contudo,
nem mesmo sei dizer como era ela, não me recordo, não prestei atenção.
A medida que a entorpecida fumaça entorpecedora tomava conta de
meus pulmões, o inexplicável fantasma inexplicante violentamente expropriava
meus pensamentos: “O que de fato acontecera àquele homem?”. Certeza já não mais
tenho se ele de fato pulara, ou se involuntariamente caíra – uma brisa batera nele,
talvez o empurrara, talvez? Talvez ele tenha só desistido. Mesmo admitindo a verdade
de que o suicídio não é uma opção; viver, hoje, é uma diária luta. Um cotidiano
confronto interminável e inexorável para afirmar-se e firmar-se como ser humano;
para se preservar o pouco de nossa essência – o irredutível mínimo teimoso que nos
torna igual em espécie, ao mesmo tempo em que nos diferencia em indivíduos. Um
sangrento secular duelo de pistolas e baionetas, bombas e coquetéis, facas e flores
contra um sistema que tenta a todo custo nos reduzir a máquinas (e por que não usar-
me de todas as palavras? Reduzir-nos a máquinas de mais-valia). Mas, se
nossa vitória beira o impossível, transcende os limites da imaginação, nossa derrota é
absolutamente inaceitável – e inimaginável para meros cerumanos. Nossa derrota
seria a extinção da espécie, pois o combustível que alimenta nossa luta é o que nos faz
Humanos. E enquanto humanos formos, lutaremos, pois, só assim, só na luta, humanos
somos. Quem sabe, então, ele tenha só desistido da Luta. Entregara seu cansado
corpo derrotado ao ar, ao vento, à brisa. Parece-me, agora, que ele não pulou. Parece-
me, agora, que ele desistiu.
Defenestro este fantasma de minha mente, no momento em que o
Humberto me traz minha próxima breja “vai mais umazinha?”. Volto a realidade; volto a
luta. O beque se fora, junto com este a colega da Gabi – nem a vi... Nem a vi...
Bem, tomei mais algumas, ouvi outras, falei pouco e ainda mais um queimei. E logo
me fui posar na república do Humberto. Se alguém perguntar minha opinião a respeito da
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Quinta e Breja, responderei num tom monótono: “Bem... É legal.”
Parte V – O Inimigo do Povo
Metade do dia já havia se passado, quando nesta inabitual sexta-feira
acordo. Foi um lento e preguiçoso despertar – não tenho nada combinado ou
pensado pro dia, então fico por ali no colchão virando-me e revirando-me de um lado
para o outro. Foco minha mente em coisas leves: garotas, Santos, aquele tolo filme que
vi outro dia sobre o fim do mundo. Era bem fraquinho mesmo, tenho a impressão de que
todos esses filmes seguem um só roteiro base – mas do que estou reclamando, ninguém
paga ninguém em roliud pra ser criativo. O que será que farei nessa cidade? Vou
tentar arranjar um trampo... Tirar uma grana é necessário. Mas onde? Que lugar me
aceitaria? Que lugar eu aceitaria? Podia prestar um concurso público – um pouco de
estabilidade é sempre bom. Sei lá, também posso estudar bastante pra ver se o estado
me aceita no seu sistema de ensino. Porém, que curso? Nem mais ou menos consigo
pensar muito bem que área... E também, por que fazer uma faculdade? Existe
aprendizado fora dela, não sei se vale a pena tanto esforço por um carimbo estatal (…)
Depois de muito enrolar, finalmente levanto-me e parto de volta para o
centro de São Paulo. O Beto já havia ido embora, foi pra aula vespertina dele. Então
parto sem me despedir. Novamente vou em busca do Largo da Pólvora, que passa
também por perto da casa dele. Rapidamente o ônibus chega, mas lentamente ele
prossegue: segue a Corifeu até essa virar Vital, cruza a marginal pela ponte Eusébio
Matoso, sobe toda a Rebouças e entra na Paulista, que é percorrida quase que inteira e
depois segue em direção ao centro. O percusso é transposto com muita dificuldade pelo
meu amigo ferroso, há uma quantidade exagerada de membros de sua raça e especie
nas avenidas, porém, quando nos aproximamos do fim, a lentidão vai ficando ainda
maior. A priori eu não consigo saber o porquê desta – imagino que é algum previsível
imprevisto do trânsito paulistano, mas muitas dezenas de minutos depois e
poucas quadras abaixo percebo que dessa vez estou equivocado: é, na verdade,
uma enorme manifestação popular parando estrondosamente as estreitas ruas do
centro. Penso por um minuto no motivo desta, mas logo me cai a ficha: é o protesto
contra o aumento da tarifa de ônibus – e também contra a tarifa em si.
Permaneço sentado por mais algum tempo: “será que devo participar? Nem
sou daqui, nem sei quanto tempo permanecerei. Mas também pra que ficar aqui
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 32 / 182
sentado num busão parado? Posso ir lá participar do protesto, dar uma força,
e depois seguir meu caminho. Sei lá, posso acabar conhecendo umas
pessoas engajadas – não conheço quase ninguém aqui ainda. Ah, no limite eu
vou ter visto qualé”. “Motorista, ô motorista! Abre aqui! Quero descer”. Ele hesita mas
abre, daí sigo a passos largos a música da bateria. De longe só essa pode ser
escutada, porém ao ir me aproximando começo a ouvir, e depois a entender, a
palavra de ordem “Vem!/ Vem!/ Vem pra rua vem!/ Contra o aumento!”. Já to indo!
O ato é bastante grande, contudo não tenho capacidade para calcular
quantas pessoas ali estavam – talvez cinco mil, talvez cinqüenta mil, provavelmente
algo entre estas quantias. Todas as pistas da larga avenida na qual eu os encontro
estão ocupadas, o transito está parado por completo. Os carros da área já
desistiram de buzinar, ou a música está tão alta que nem consigo os ouvir.
Cruzo-os enquanto um frio cruza minha espinha.
Fecho meus olhos e mergulho, salto no mar de insatisfação política. A
polis imergindo na água benta da purificação pela destruição. Ao longe sou
capaz de ver o Tsunami vindo, mas! Deixo a onda do tempo rebentar, subo nela e
a surfo. Sinto a explosão me empurrar à frente, à vanguarda. Não entendo o
porquê, e não sei o para onde, mas sinto-me vivo. Sinto-me parte integrante de minha
era, de meu tempo. Sinto-me forte, vejo a nossa força crescer como e com os raios
d'um novo dia. Juntos somos mais bravos que qualquer barão, mais duros que
qualquer duque, mais mar que qualquer marechal, mais tenazes que qualquer tenente,
mais reais que qualquer rei!: a existência do estado é meramente a consequência de
nossa desorganização. Levanto a cabeça e o nariz; abro os olhos: percebo-me no olho
do tufão, e pela correnteza sou arrastado. Agora faço parte da massa, sou
indistinguível dessa. Nado àceleradas braçadas para sondar meu cardume: boa
parte é tão jovem quanto eu, mas há peixes mais antigos também, diversos
tipos estão aqui: secundaristas, universitários e professores; sem-teto, sem-terra
e sem-trabalho; punks sujos, vegans caretas e roqueiros rippies; comunistas,
anarquistas e anarco-comunistas; mães, pais e filhos; militantes sindicais, ativistas
ambientais e alienados televisionários; 70s, 90s e 60s; empregados,
desempregados e vagamundos; héteros, homos e outros; brancos, negros e
índios; enfim, o povo brasileiro, o legítimo povo da terra. E contra toda essa força da
natureza, centenas e centenas de policiais do Leviatã – os soldados da guerra
interna. Fardados de todos os tipos, desde os coxinhas genéricos, aos
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 33 / 182
motoqueiros da ROCAN, aos opressores da força tática, à ralé da GCM, até os
filhos-da-puta-assassinos da ROTA. Ah, não posso me esquecer dos não-fardados!:
Os p2 (gíria para gambé infiltrado), os paisanas e é claro, os cangaceiros da
mafia dos transportes paulistana. O cardume em luta contra o tubarão. O maremoto
contra o Leviatã. Cerumano contra sua negação. Homem natural contra homem
artificial. Humanidade contra anti-humanidade.
Acima do nível do mar dezenas de bandeiras tremulam, algumas de
inconvenientes partidos eleitoreiros e seus obedientes sindicatos subordinados, mas
também há de movimentos sociais (MST, MTST, MNPR, MNCR e do próprio
Movimento Passe Livre) e de coletivos autônomos – como uma rubro-negra da Federação
Anarquista de São Paulo, ou como a da Organização Popular Aimberê. Algo está
acontecendo, algo está crescendo.
Deixo a correnteza me arrastar. Seguimos cantando e dançando pelas ruas do
centro. A manifestação faz-me lembrar uma festa de carnaval de rua – porém só
os punks mais loucos consomem álcool (e outras...), pois, apesar do cardume
exalar alegria de todos seus poros, ainda há uma grande tensão no ar causada pela
austera presença do fascista aparato repressivo. Passamos por diversos lugares que eu
havia conhecido anteontem: Sé, República, Prefeitura, Anhangabaú, e até pelo Viaduto do
Chá (onde aquele aperto no estomago veio me dar um breve olá). E, durante a
caminhada, acabo encontrado-me com os personagens secundários dessa estória: o
Humberto veio com um pessoal dos CAs da FFLCH, incluindo nesse bolo a Gabi e o
Leandro; vejo o cara que me deu o panfleto correndo várias vezes de um lado
para outro, agitando uma bandeira vermelho e negra na mão, e usando um lenço para
proteger seu rosto; já o Rafael eu vejo caminhando tranquilamente com uma bela garota.
A procissão continua durante horas a lentos passos. Quando dou-me conta, já
é noite e estamos descendo uma ingrime, longa e bastante estreita rua nos arredores
da Sé. Encontro-me nas linhas de frente, e ao olhar para trás, sou surpreendido por
uma bela visão passando pelos meus olhos: Os milhares e milhares de indignados
descem a rua, ocupando-a até onde a vista alcança, nem mesmo um pedacinho de
asfalto eu consigo encontrar – uma hectométrica serpente deslizando entre as
torres do ardente forno da locomotiva paulista. Perco-me alguns instantes na
contemplação. Quando as vermelhas luzes das sirenes aparecem no final da multidão, eu
ainda estou a olhar na mesma direção: “O que eles farão?”. Confuso, dou uma
olhadela para a frente: um enorme contingente policial surge subitamente por
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 34 / 182
detrás das sombras da próxima esquina. Rapidamente procuro pelo identificador na
roupa deles: nada! “Fodeu!” (a falta do nome na farda é o mais claro sinal de que
haverá pancadaria). “Estamos cercados! E agora?”
Antes d'uma resposta a esta pergunta eu conseguir tecer, os jagunços
do estado já me a deram: Ouço uma explosão longe de mim, bem para trás, viro-
me para olhar, e já a segunda e a terceira explosões acontecem. Estão jogando bombas
no meio da multidão. Ao mesmo tempo que a correria começa, a violenta irritação
causada pelo gás pimenta domina meus olhos, e os filhos-da-puta começam a atirar na
multidão. Da esperançosa visão do povo em movimento nasce uma verdadeira
cena de horror. Uma terrível elegia formada pela alternância entre o barulho de pequenas
explosões de pólvora das pistolas, de grandes explosões das bombas de gás, e de
medonhos gritos de milhares de pessoas, é a triste trilha sonora que
acompanha o injusto conflito. Tento não ser tomado pelo desespero; achego-
me num muro próximo e aperto meus olhos para tentar ver o que se passa. Toda a
leva de policiais que vinham pela retaguarda da manifestação está em posição ofensiva:
uma primeira linha da força tática nos empurra para frente com seus escudos e
cassetetes, enquanto uma segunda atira rajadas de bala de borracha e uma terceira
ocupa-se do lançar bombas. A grande inclinação do terreno é bastante vantajosa, faz com
que eles possam atirar a vontade sem ter que se preocupar em acertar algum dos seus.
Estamos fodidos, concluo. Tentando manter a calma, lentamente volto para o mar – tenho
que sair daqui! Contudo, é certeza de que esta mesma preocupação ocupa o trapézio da
mente de todas as outras pessoas. Atrás de mim corre-se para todos os lados, o
nervosismo é bastante maior – já que é para lá que caem as bombas. Todo e qualquer
lugar ou passagem torna-se uma rota de fuga: um barzinho da região é completamente
invadido, enquanto outra centena de manifestantes derruba a grade de um pequeno
parque-praça. Alguns tentam se refugiar num espaçoso estacionamento, enquanto
outros tentam forçar a entrada num prédio de apartamentos. Estou num campo de
batalha! O caos paira na pesada atmosfera.
Logo fica claro que o caminho da minha fuga não será subindo a rua,
entretanto, abaixo está a outra tropa de gambés. Ao meu redor a tensão cresce
vertiginosamente: o que podemos fazer? Paulatinamente avançamos na direção
deles – estamos encurralados e não temos para onde ir! Aos poucos nosso fronte vai
forçando a linha de policiais a recuar. Vejo o suor escorrendo à face de um deles, os
músculos de seu rosto estão todos enrijecidos numa bruta careta. Quase todos os
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 35 / 182
fardados estão assim. Miro num outro em específico, próximo a fronteira do
conflito, sinto o medo em seus olhar; talvez esteja ainda mais amedrontado do que
nós – e a multidão continua avançando em sua direção – um covarde disciplinado
que passa sua inteira vida só obedecendo ordens obviamente não sabe como agir
quando uma situação extrema o obriga a tomar uma decisão. Consigo perceber a
tremedeira de seus contornos – o cara está no seu limite. Quem só obedece
não pensa, não desenvolve consciência, não se diferencia dos animais não-
humanos; e, obviamente, quando se vê forçado a fazer algo por si próprio, faz merda. E
dessa vez não é diferente: esse policial, um mulato de média estatura
derretendo em suor, enfia a mão na sua cintura, pega uma bomba e a arremessa.
Apreensivo, acompanho a trajetória balística do artefato, ele sobe acima de
toda a confusão para vagarosamente cair próxima de mim, bem em cima de uma garota,
que vai ao chão ferida, não sei em que gravidade..
É o estopim. A panela não resiste a pressão, explode. Todo o cardume se poe a
nadar em pânico – eu junto. Como num estouro de manada, saímos atropelando tudo e
todos pelo caminho. Os nossos inimigos veem-se obrigados a fugir avexados do
local: alguns abandonam suas armas e pertences ali mesmo e loucamente correm por
suas vidas, enquanto os poucos que ficam são furiosamente espancados e pisoteados.
“Venceremos! Venceremos!” - penso por um mínimo átimo, mas lembro-me de que a
maior parte dos legionários está na nossa retaguarda. Então, ponho-me a correr – a
situação aqui só vai piorar, certeza, talvez até teremos mortes.
Transponho a quebrada linha de frente policial, e, ao passar, dou uma olhadela
na meia dúzia de gambés ali abatidos, mas sem perder o passo. Acabou. O
protesto, por hoje, acabou.
Já começando a me distanciar, ouço, próximo de mim, um único barbudo rapaz
gritar o conhecido lema antigo: “Amanhã, vai ser maior! Amanhã, vai ser
maior!”. Imediatamente eu e todos do arredor engrossamos o coro, sem pararmos a
fuga: “Amanhã, vai ser maior! Amanhã, vai ser maior!”. Então, todos os milhares de
insatisfeitos com o atual sistema de iniquidades estouram suas cordas vocais,
em uníssono, com toda a força de nossos cansados pulmões: “AMANHÃ, VAI
SER MAIOR! AMANHÃ, VAI SER MAIOR!”. O grito ecoa e reverbera por todos os
altos muros das pesadas construções de concreto do centro; talhando a ameaça, com
lâminas feitas de pesadelos, no âmago da alma do Rei dos Oceanos, o Inimigo do
Povo. O grito acorda não só a sua casa, mas a vizinhança inteira – e não só acorda, como
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 36 / 182
atordoa, e atordoados permanecemos atentos. É um momento sublime, todavia, eu
aborto uma gota de lágrima que vem incomodar meus ardentes olhos. Nesse exato
momento, sinto a locomotiva do Brasil tremer sobre seus trilhos. Nesse exato
momento, sinto-me parte integrante, e ativa, de minha era.
“Venceremos! Venceremos!” - cantam os chilenos.
Parte VI (Epilogo) - “Deberemos Resistir!”
Corro, corro e corro. Desconfio que, agora, qualquer lugar no centro é perigoso
– vi policiais prendendo jovens aleatoriamente, e não estou nem um pouco interessado
em ser engaiolado. Subo, desço, ando, ando e me perco. Meu conhecimento sobre o
centro noturno tende a zero, apesar disso, tento me movimentar por ruas ermas. Passo
por vias e vielas, desço viadutos e escadões. Canso-me: a manifestação durou horas e
horas, foi do final da tarde até o prenuncio da madrugada. A exaustão me ataca, e eu jogo
a toalha.
Sento-me aonde estou: curiosamente parece que já estive neste local, mas ainda
não me vem a memória o quando. Vou ficar aqui um pouco pra me recompor. Procuro
em minha mochila a caixa de fósforos com as pontas que fumei estes dias,
enquanto procuro em minha caixa mental os fragmentos do que nestes mesmos dias vivi.
Um tumultuado começo de vida em São Paulo. Parece-me que ficarei por aqui
mais tempo do que imaginara. Sem pressa abro a primeira ponta, a que teve seu
momento ainda em santos. E para lá esta me leva, à minha pasárgada: onde as mulheres
são mais belas, onde sou amigo do rei, e onde tem erva de sobra. É uma pena, mas sei
que por aqui ficarei por mais alguns invernos, ainda não tive tempo para
saudades sentir, porém, a nostalgia sempre baterá em minhas costas, com a frequência
das ondas de minha praia.
Tenho muitos castelos a construir. Muitas batalhas a serem vencidas. Uma fração
de meu tempo ficará aqui, e também uma fração de mim. Ficarei mais
altivo, mais arrogante, por estar no topo da Serra? Espero que não. Mas conseguir
fincar minha rubro-negra bandeira no pico do Jaraguá eu espero. Quero ver ela
furar o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio – como a Rosa do povo um dia jura que fez.
Abro a segunda ponta, a que foi consumida no bosque. Penso nas pessoas que já
conheci e nas que ainda conhecerei. Nos eventos culturais que participarei:
debates, palestras, espetáculos teatrais, musicais. Tenho tanto a aprender, tantas
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 37 / 182
pessoas a conhecer. Muitas não digo, mas algumas coisas há para se fazer nesse
imenso e decadente cinzeiro. Admiro muito o enigma que é a humanidade. Sou da
opinião de que somos demasiados complexos para nos entendermos – nenhuma
ciência, esotérica ou não, irá nos desvendar por completo. A nossa razão é
obviamente bastante limitada – aposto que nunca seremos capaz de prever o
movimento dos astros de nosso interior universo.
Abrindo as terceiras, paro por um instante. Uma passageira rajada de luz
ilumina uma poça próxima. Não havia ainda reparado nesta até o momento, depois fico
secando-a até ela se revelar – estranho líquido, estranha poça. Percebo, então, que é
uma mancha de sangue envelhecido. “Será?” - pergunto-me. Olho para cima, carros
passam sobre um viaduto, sobre o viaduto do chá. Sim, estou bem no X do
suicida. Pasmo.
Tenho certeza de que este homem não se matou, contudo, deixou-se
morrer. Desistiu da luta, desistiu da vida. Tenho certeza, também, de que não quero
o mesmo para mim. Um fim tão pateticamente trágico. Pateticamente covarde.
Muito pior do que perder é se entregar – disto, dúvidas não tenho. Posso sim
ser derrotado, as chances são altas; e provavelmente serei, como meus antepassados de
luta o foram – sou um autentico filho da derrota. Mas, com muito orgulho desta – eles
morreram na luta com armas em punhos, soltando esperançosos gritos de revolta e
liberdade, até a última gota de suas veias se esvair. Não, não me entregarei. Não, não
cederei. Não, não desistirei. Morrerei também de armas em punhos.
Sim, quero estar vivo no momento de minha morte.
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Fecho o cigarro e minha mente, em silencio fumo. Em nada mais penso: entrono
minha quietude. Meto a cabeça por entre os joelhos, e num transe adentro – resultado da
mistura da verde brisa com meu cansaço e sono. Logo, uma música rasga meu crânio e
invade meu pensar. Uma canção a qual nunca antes havia ouvido, numa língua que não
domino. Tenho a mais transcendental das certezas de que são meus ancestrais catalães
a sussurrar em meu ouvido. Respeito minhas raízes, cantando para todos ouvirem:
A Geografia e o Calendário – Perdido na Poluída Polis – 39 / 182
"El Ejécito del Ebro
Rumba la rumba la rumba la!
El Ejécito del Ebro
Rumba la rumba la rumba la!
Una noche el río pasó
Ay Carmela! Ay Carmela!
Una noche el río pasó
Ay Carmela! Ay Carmela!
Pero nada pueden bombas
Rumba la rumba la rumba la!
Pero nada pueden bombas
Rumba la rumba la rumba la!
Donde sobra corazón
Ay Carmela! Ay Carmela!
Donde sobra corazón
Ay Carmela! Ay Carmela!
Contraataques muy rabiosos
Rumba la rumba la rumba la!
Contraataques muy rabiosos
Rumba la rumba la rumba la!
Deberemos resistir
Ay Carmela! Ay Carmela!
Deberemos resistir
Ay Carmela! Ay Carmela!
Pero igual que combatimos
Rumba la rumba la rumba la!
Pero igual que combatimos
Rumba la rumba la rumba la!
Prometemos resistir
Ay Carmela! Ay Carmela!
Prometemos resistir
Ay Carmela! Ay Carmela!”
Autonomia sindical e as eleições
Assim que o espetáculo eleitoral entra em cartaz, assistimos passivamente o
desenrolar do mesmo roteiro de sempre: velhos e novos rostos sujam nossos espaços
públicos com velhas promessas ocas, nos forçando a escolher como será a
distribuição dos privilégios e poderes entre as diferentes facções mafiosas do
atual cenário político. Lideranças comunitárias aderem às campanhas, grandes
empresas as financiam, associações de bairro se enchem de faixas, e alguns
trabalhadores cansados agitam bandeiras nas avenidas, enquanto outros distribuem
panfletos; em todo lugar, e a todo momento, candidatos esmolam votos para seus
números identificadores. E tudo isso – todos nós sabemos – sumirá, num passe
de mágica, ao término de um punhado de meses: a interação com o espetáculo da
política parlamentar voltará a ser, para a grande maioria do povo, uma série de shows
transmitidos pelos canais de televisão estatais (tevê senado, tevê câmara, tevê justiça,
etc.), aos quais os jornais e revistas dão especial atenção. Com a redistribuição de
cadeiras terminada, a oligarquia dos representantes retorna às frias, secas e distantes
câmaras palacianas do planalto para continuarem seus vis jogos de poder e opressão.
Nosso mundo sindical não foge à regra, é igualmente tomado pela sazonal
febre das urnas: os espaços de nossas sedes são usados para comícios
eleitorais, showmícios, ou mesmo como base estratégica de candidaturas;
congressos sindicais são usados como apoio para presidenciáveis, centrais
sindicais apoiam e participam abertamente de campanhas eleitorais; revistas e jornais
servem como veículos de propaganda, diversos sindicalistas anunciam suas
candidaturas. Todo espaço sindical sofre constante ameaça de ser
transformado num palanque eleitoral. Enfim, a estrutura sindical inteira do país, a qual
deveria servir exclusivamente para defender os interesses das diversas categorias que
constituem a classe trabalhadora, é colocada a serviço das camarilhas
eleitorais. Inclusive, já tomamos essa sequência de cenas como normal e
quotidiana – afinal de contas até nosso atual presidente, nosso patrão maior da
política, fez seu nome no sindicalismo.
Contudo, quanto mais o fenômeno da parlamentarização/burocratização se
dissemina pelo movimento sindical, mais seus males tornam-se realidade, e, portanto,
ficam facilmente visíveis. Estes “efeitos colaterais” podem ser entendidos como
A Geografia e o Calendário – Autonomia sindical e as eleições – 40 / 182
consequências de duas contradições intrínsecas ao sindicalismo eleitoral: 1. os
interesses particulares dos conluios eleitorais constantemente entram em conflito
com os da categoria, e, de maneira geral, os sobrepõem; 2. O movimento sindical, assim
como qualquer outro movimento social, constrói sua força política através da
mobilização de massas, sendo assim, ele não deve, de maneira alguma, se tornar a
extensão de um partido eleitoral – pois no universo de qualquer categoria de
trabalhadores existem eleitores de diferentes partidos, ou mesmo de nenhum – e
sindicato nenhum pode se dar ao luxo de contar apenas com eleitores
simpatizantes duma determinada facção, sem pagar o preço de perder sua força política.
Quanto mais os trabalhadores são colocados em segundo plano, e seus
interesses traídos incessantemente, menos estes se sentem representados por suas
entidades (que de fato não o representam), menos veem a luta colectiva como alternativa
para melhora da situação da categoria e da classe como um todo, resultando numa busca
de melhoria de vida através de saídas individuais (ascensão na hierarquia da empresa por
exemplo). A consequência final do sindicalismo eleitoreiro é uma apatia despolitizadora
da categoria em geral, um distanciamento cada vez maior da direção à base da categoria
– que tende a ser tratada como gado. Distância esta que, pouco a pouco, se transforma
em repúdio.
Não por acaso o ápice de combatividade – e também da capacidade
de mobilização – do sindicalismo CUTista fora nos anos oitenta, precisamente
quando as ambições parlamentares das pessoas envolvidas na CUT/PT não
passavam de sonhos longínquos. Durante esses anos, esta central conseguiu mobilizar
diversas greves fortes e importantes. Mobilizou, até mesmo, greves gerais, as quais
foram importantíssimas para a situação política nacional, e também para conquista de
direitos para a classe trabalhadora. Nossa categoria, por exemplo, arrancou sua merecida
jornada de trabalho de seis horas nessa época. Contudo, quanto mais o projeto CUT/PT
se orientava para a conquista de espaço – e aceitação – dentro da instituição política da
classe dominante (o Estado), mais os interesses da classe trabalhadora entravam em
conflito com os interesses partidários. Até chegarmos aos dias atuais: como justificar,
perante os interesses da categoria bancária, um calendário de “enrolação permanente”
que se estende até depois do primeiro turno eleitoral? Isso sendo sabido que o momento
imediatamente anterior ao eleitoral é estrategicamente benéfico aos trabalhadores e
suas reivindicações; a eleição é um momento de vulnerabilidade para os poderosos, pois
estes são forçados a evitarem atitudes antipopulares, ao custo de perderem votos e,
A Geografia e o Calendário – Autonomia sindical e as eleições – 41 / 182
consequentemente, assentos na máquina estatal.
A única explicação plausível para a nossa campanha salarial ser jogada para
depois das eleições é a priorização dos interesses partidários em detrimento dos
interesses dos trabalhadores bancários. Nossos dirigentes não querem: 1.
correr o risco de que uma greve forte em instituições do governo federal venha a manchar
a imagem da candidata deles à sucessão do trono brasiliense; 2. trabalhar numa
campanha salarial no momento, pois, é nítido que estes preferem dedicar seu
tempo às suas próprias candidaturas do que à defesa de nossos direitos trabalhista.
Apesar disso, não devemos nos surpreender com esta postura das pessoas
envolvidas na CUT/PT, já que, hoje, o interesse principal desse grupo tornou-se
a manutenção de sua inserção na máquina estatal, isto é, manter os privilégios, o poder,
e as mamatas, conferidos aos “iluminados” de Brasília.
Também não é por acaso que o auge do movimento sindical, em
terras brasileiras, tenha se dado no primeiro quarto do século passado. Os nossos
pioneiros sindicalistas, já nessa época, tinham consciência da importância da autonomia
para a construção da força do movimento. E de fato este princípio permeou toda a malha
de organizações de trabalhadores: estava presente nos documentos de sindicatos,
federações e confederações. A força deste sindicalismo “sem rabo preso” fora
demonstrada em diversas manifestações, greves (a primeira greve geral do Brasil fora
deflagrada ainda em 1913, e já em 1917 outro importante movimento paredista estoura
em nossas terras), e até mesmo numa desastrada, porém corajosa, tentativa de
insurreição em 1918 no Rio de Janeiro. Os frutos colhidos pela classe advindos desse
período intenso de luta abrangem todos os direitos trabalhistas, que futuramente serão
concentrados e “oficializados” pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) – a jornada
de trabalho de 8 horas, por exemplo, fora conquistada já em 1908 pelos trabalhadores
da construção civil.
Entretanto, gostaria de deixar claro que meu esforço não é no sentido de
glorificar de maneira mistificadora o passado brasileiro do movimento dos
trabalhadores, mas sim de estudar os acertos e as limitações das diferentes propostas
sindicais já tentadas na terra do pau-brasil, de maneira a termos um terreno sólido para
edificarmos um novo sindicalismo capaz de superar a atual crise do movimento. Crise
esta caracterizada pela burocratização, partidarização (subordinação do sindicalismo
aos interesses eleitorais) e engessamento despótico da estrutura sindical, e que tem,
como outra face da moeda, a apatia, a despolitização, e o repúdio ao sindicalismo.
A Geografia e o Calendário – Autonomia sindical e as eleições – 42 / 182
Fora eleitoreiros dos sindicatos!
Sindicato é para lutar, não para eleger novos e velhos abutres de colarinho!
Bancários de base por um sindicalismo classista, autônomo e democrático!
A Geografia e o Calendário – Autonomia sindical e as eleições – 43 / 182
A Urgência da Auto-Organização
Vivemos um momento de transição, o fim de uma era política brasileira, marcada
pela ascensão e degeneração do PT e suas ramificações (como a CUT). Esta inicia-se no
turbilhão ascendente das lutas populares dos anos 80, e termina com o segundo
degenerado mandato do presidente Lula. O fim dessa corresponde aos limites reais de
um projeto político específico da esquerda brasileira, que, se era difícil de se avaliar a
priori e também enquanto a maré ainda estava viva e forte, hoje, a vista da completa
crise deste, não só podemos como temos o dever moral de nos curvar sobre esta, afim de
fazer as críticas necessárias à sua superação – não podemos nos dar ao luxo de repetir
os mesmos equívocos de ontem.
Mas, em linhas gerais, qual era este projeto? Para entender este, e seus
motivos, faz-se necessário uma pincelada conjuntural:
Nos anos 80 as brasileiras ainda viviam sob a lâmina da espada militar. A grande
onda de mobilização popular desta época mostra, por um lado, o grande desgaste que o
regime totalitário passava (interessante notar que não só o Estado do pau-brasil estava
em maus lençóis: as ditaduras da latino america em geral igualmente gemiam, como
também as do império-sol soviético). Mas mostra também, por outro lado, a insatisfação
da população com a completa não participação na vida do país, e consequentemente, na
sua própria vida. Isto tanto em âmbito sociopolítico, quanto em âmbito econômico.
Dentro desta conjuntura, as propostas majoritárias da nascente esquerda podem
ser vistas como duas: forçar a “abertura política”; e a criação de organizações capazes
de disputar os poderes instituídos com as facções políticos tradicionais do país.
A primeira deve ser entendida não somente como o fim da ditadura militar
(obviamente classista e pró-classe dominante), mas também como o retorno de um
sistema liberal burguês pretensamente “democrático”. Assim chamado porquê nos dá a
possibilidade de escolhermos qual algoz mais nos apetece (ainda assim limitado somente
àlguns níveis da burocracia estatal), mas também por ser, pelo menos na teoria, mais
tolerante a manifestações contrarias. Isto é, a repressão estatal precisa ser feita de
maneira mais sutil e burocraticamente justificável. O que não significa, de maneira
alguma, que o estado deixou de cumprir seu papel militar, mas somente que é necessário
mais papelada e moderação no seu uso – em números absolutos, temos muito mais
presos do que há trinta anos: a panela de pressão do sistema penitenciário apita cada
A Geografia e o Calendário – A Urgência da Auto-Organização – 44 / 182
vez mais intensamente, o Estado continua assassinando cotidianamente – tanto
populações de baixa renda, quanto militantes políticos – em todo o país são assassinados
um Carandiru por dia, 111 pessoas; e mais recentemente começamos a conviver com
uma intervenção cada vez mais direta e intensa das forças armadas nas comunidades
periféricas, como o caso da invasão dos morros do Rio pelo exército. Três fatores
típicos dum estado totalitarista: encarceramento em massa, alta taxa de homicídio
cometido por agentes da lei ou grupos paramilitares ligados a estes, e uso das forças
armadas para reprimir o inimigo interno; o povo brasileiro insatisfeito. O que por si só já
nos deixa claro que não há paradoxo, tampouco contradição, alguma no
termo “democracia totalitária”, pelo contrário, é cada vez mais comum Estados
absolutamente totalitários se vestirem com a máscara da farsa democrática. É verdade
que a intensidade e a frequência das pauladas ideológicas é menor do que nos anos de
chumbo, todavia hoje a classe trabalhadora está muito mais domesticada e fiel à
ideologia da classe dominante do que nos anos sessenta e setenta. Nestes anos o
fantasma do socialismo, encarnado em Chê Guevara, atormentava o sono da velha e
arcaica classe dominante. Hoje não temos mais Chê – a burguesia dorme tranquila,
confiante de seu poder imperial. Contudo, isto não significa que os privilégios capitalistas
são pacificamente aceitos, mas somente que hoje temos muito mais ações sem
consciência, inconsequentes e extremamente violentas de contestação da
ordem dominante, e sua propriedade privada dos meios de reprodução da vida humana –
como assaltos, sequestros, roubos, tráfico e todo tipo de transgressões a legislação
burguesa – do que ações conscientes e classistas – como ocupações, manifestações,
sabotagens, greves e insurreições.
Já a segunda proposta, a de criação de organizações, vem a reboque da primeira.
Era necessária uma abertura política para que então a esquerda pudesse institucionalizar-
se e disputar os poderes instituídos com a tradicional classe dominante. Sendo assim,
a tal da democracia burguesa tornou-se a panaceia de todos os problemas brasileiros.
Chegando o dia em que “amanhecêssemos” democráticos, era só o povo se organizar em
uma central sindical e em um partido, ambos dentro das estreitas paredes da legalidade
burguesa, que tudo se resolveria. Por isto, mesmo antes da abertura, a esquerda se
esforçou para desviar as forças populares em movimento de suas respectivas lutas para a
criação dessas instituições. Desse desvio nasce a CUT e seu partido, o PT, mas também
o grande projeto central para as trabalhadoras do Brasil: eleger o carismático sr. Luís
Inácio.
A Geografia e o Calendário – A Urgência da Auto-Organização – 45 / 182
Entretanto a nossa esquerda não foi capaz de perceber as falhas estratégicas e
conceituais destas duas propostas, e consequentemente do seu projeto de poder. Ao criar
organizações dentro dos padrões legais e institucionais da classe dominante, acabou-se
por criar organizações também dominantes, que igualmente oprimem a classe
trabalhadora – que outro resultado poderíamos esperar ao usar como modelo a fôrma
dos opressores? Já quanto a questão da abertura política, não foi percebido que
independente do adjetivo que o Estado receba (popular, democrático, totalitário,
monárquico, vermelho, azul, verde, indígena, bolivariano) a natureza deste
mantêm-se inalterada: todo Estado existe para fazer a defesa e a manutenção dos
privilégios da classe dominadora, tanto da tradicional oligarquia proprietária dos meios de
produção (economia), quanto da autoritária burocracia estatista (os proprietários da
política instituída). Em outras palavras, todo Estado existe para manter a cisão classista
de nossa sociedade, e o seu principal núcleo: a possibilidade de algumas poucas pessoas
e grupos controlarem os meios de reprodução da vida de todo povo. E para tal, este se
usará tanto da repressão moral quanto da repressão física: a lei e sua inseparável
polícia/exército, a caneta e a metralhadora. Enfim, era de se esperar que nada de
fundamental mudasse nas disputadas políticas de nosso país – novos rostos para jogar o
mesmo velho jogo, e a sagrada propriedade privada continua intocada.
Sabendo disso tudo, nós também nada deveríamos ter esperado do grande projeto,
nascido nos anos oitenta e concluído somente na primeira década deste novo século,
que era a eleição do sr. Lula. Ou melhor, deveríamos ter esperado sim uma coisa:
a degeneração do PT e de sua central sindical, a CUT. Um mergulho de
cabeça na institucionalidade burocrática burguesa não poderia resultar em outra coisa
senão no aburguesamento do PT/CUT. A própria forma de funcionamento do modelo
burgues de organização impõe esta degeneração: estruturas hierárquicas e
burocratizadas incentivam a corrupção, o clientelismo, o populismo, o puxa-saquismo,
o autoritarismo e seu par o servilismo, o pessoalismo, enfim, são um terreno fértil para
todo tipo de oportunista político. E se no seu início o PT/CUT era cheio de correntes que
defendiam propostas de base, propostas que visavam o fortalecimento do Poder Popular,
quanto mais este toma para si a missão de chegar ao trono do palácio, mais essas são
enfraquecidas, e as correntes oportunistas fortalecidas (como a Articulação). Aqueles que
se mantem fiel ao projeto popular de esquerda vão, aos poucos, sendo expelidos do
partido/central sindical.
No âmbito sindical a situação é semelhante. Se com a abertura “ganhamos” o
A Geografia e o Calendário – A Urgência da Auto-Organização – 46 / 182
direito de entrarmos em greve, os problemas para exercermos este são enormes (cito
somente alguns):
– As retaliações patronais continuam cada vez mais forte. Principalmente para os
trabalhadores de empresas privadas, os quais sofrem com a constante ameaça de
demissão. Já nas empresas públicas a ameaça costuma ser a de perda de função, o que
implica em diminuição salarial;
– As greves devem se manter dentro das absurdas exigências legais do estado,
isto é, não há mais autonomia alguma para a classe trabalhadora, o que leva ao
movimento tornar-se meramente simbólico – não há real prejuízo aos descomunais
lucros empresariais, tampouco ação direta. E até mesmo pior, diversas greves acabam via
decisão judicial (a realização do sonho fascista do Estado fazendo o papel de arbitro da
luta de classes), o que é sempre péssimo para os trabalhadores por 2 motivos. Primeiro
devido ao caráter classista dessa piada que se chama Justiça brasileira. Segundo porque,
mesmo com um resultado hipoteticamente favorável aos trabalhadores, a autonomia
sindical é completamente esmagada sob o martelo do sr. juiz;
– Com uma estrutura sindical fortemente burocratizada, centralizada, verticalizada
e organicamente subordinada ao Estado, os trabalhadores muitas vezes necessitam lutar
tanto contra seu patrão, quanto contra seu próprio sindicato. Se essa era uma situação
rara antigamente, hoje é cada vez mais comum. Cito, como exemplo, a greve dos correios
do ano passado, que acabou por decreto da direção sindical e muita pancadaria; a greve
dos bancários de São Paulo de 2004, onde os trabalhadores repudiaram por diversas a
direção; a recente greve dos servidores municipais de Suzano; entre outras. A situação é
pior nos casos em que a direção sindical e o patrão se confundem, como atualmente é o
nosso caso: temos um sindicato filiado a CUT, logo centralizado pelo PT, e o nosso patrão
é o governo federal também do PT. Não há absolutamente nenhum confronto entre o
sindicato e o patrão, e o primeiro acaba sendo usado para CONTER as lutas trabalhistas
no lugar de as INCENTIVAR. Exatamente o que queria Getúlio Vargas com a estatização
dos sindicatos! E a CUT, no lugar de ter aproveitado o ascenso popular dos anos oitenta
para garantir a autonomia sindical perante o governo e seus partidos, usou-se deste para
tomar o poder – trocamos seis por meia dúzia!
Diante dessa imensa muralha chinesa de problemas, nós do coletivo Bancários de
Base vemos somente uma única solução possível: a retomada das mobilizações
populares de base. Somente através da participação efetiva da massa dos trabalhadores
nos espaços sindicais poderemos retomar o que deveria ser nosso por direito: a
A Geografia e o Calendário – A Urgência da Auto-Organização – 47 / 182
associação de resistência da nossa categoria, o nosso Sindicato. E, desta vez, evitarmos
os erros do passado: exigir a nossa autonomia sindical – não podemos aceitar que nosso
sindicato seja subordinado ao estado e seus partidos políticos; exigir a democratização
real da estrutura sindical inteira – quem deve deliberar sobre as questões sindicais são os
próprios trabalhadores em assembleia, não dirigentes sindicais “profissionais”, é
necessário des-hierarquizar as nossas associações, federações e confederações, para
que estas sirvam para defender de fato os interesses dos trabalhadores, não como moeda
de troca em espúrios jogos políticos partidários.
Gostaria de terminar citando trechos da música popular do Rappa: “A minha alma
tá armada e apontada para cara do sossego. Pois paz sem voz, pois paz sem voz, não é
paz é medo. (…) É pela paz que eu não quero seguir, é pela paz que eu não quero seguir,
é pela paz que eu não quero seguir... Admitido!”.
À luta companheiros!
Bancários de Base por um sindicato autônomo, democrático e classista!
A Geografia e o Calendário – A Urgência da Auto-Organização – 48 / 182
Crônica de Gre ve
Não tenho como negar que quanto mais o calendário se aproximava de setembro,
mais a minha ansiedade crescia; afinal meu heróis de adolescência – e juventude –
eram os sindicalistas revolucionários da guerra civil espanhola (os quais
implementaram com sucesso impressionante a autogestão em metade da
produção econômica do país). Porém, eu já não era tão ingenuo, meus escassos
contatos com o movimento sindical atual me davam uma idéia do que eu ia encontrar pela
frente (era uma criança, mas ainda lembro-me de meu pai contando de um dirigente
sindical de sua categoria [petroleiro] que sumiu com alguns milhares de reais do sindicato,
fato que fez com que ele nunca mais se aproximasse da luta sindical; ou os meus
superficiais contatos com o sindicato dos funcionários da universidade). Enfim, eu
tinha consciência de que iria me decepcionar, contudo o conhecer não é suficiente para
evitar a decepção.
Na assembleia de inicio da greve senti certa euforia no ar, todos
comentavam "o movimento está forte esse ano, bastante gente". Eu pelo meu lado revi
as pessoas que fizeram seminário de integração comigo, recolhi os diversos jornais e
panfletos comuns a qualquer evento com participação da esquerda, e procurei o pessoal
da INTERSINDICAL, por ter algum contato prévio com ela (porém só encontrei
a ala do PSOL, que recentemente rachou a INTERSINDICAL para formar uma
nova central junto com o CONLUTAS do PSTU). Fiquei nisso até o inicio da
assembléia, que para minha surpresa, foi limitada a uma meia dúzia de falas dos
dirigentes sindicais, e um longo e inflamado discurso do presidente do sindicato
(aparentemente uma versão bancária do Lula). Diante disto o principal pensamento que
ficou perambulando na minha cabeça foi “O que que eu vim fazer aqui?”, pois assistir um
showmício da CUT/PT não era meu interesse. Foi um choque grande, nunca havia antes
participado d'uma assembléia tão espetacular: os bancários na platéia assistindo o
show dos burocratas sindicalistas no palco, sem nenhuma participação efetiva dos
trabalhadores. Eu na minha ingenuidade (será que seria melhor dizer “na minha
experiência prévia em coletivos e movimentos que valorizam a democracia de fato, não a
democracia meramente formal representativa”?) achava que algo sobre a greve seria
debatido e deliberado; talvez uma tática, talvez as nossas reivindicações, ou pelo
menos uma polemicazinha qualquer, porém... Nada. Enfim, assim que a assembléia
terminou fomos chamados para conversar sobre os piquetes de nossa região. Na verdade
A Geografia e o Calendário – Crônica de Greve – 49 / 182
não houve conversa, recebi uma camiseta e alguns adesivos da CUT e fui informado
sobre onde seria o lugar de encontro da regional no dia seguinte.
Sobre os piquetes uma das coisas que mais me chamou atenção foi a atuação
dos empregados do sindicato, fiquei me perguntando ironicamente se eles também
entram em greve e se possuem um sindicato próprio; o aburguesamento do
sindicato torna-se evidente quando este utiliza-se da forma de relação trabalhista
típica do dominador, a mão de obra subordinada. O que justifica a ambigüidade de uma
entidade querer ser representativa de alguns trabalhadores e ser patroa de outros?
Será que é isto que significa ser a “vanguarda do movimento sindical”, como tanto é
dito e repetido pelos atuais dirigentes? Bom, nós, os poucos (bem poucos) meros
bancários que fomos ajudar nos piquetes, acabamos seguindo os dirigentes sindicais.
Foi, apesar dos pesares, uma experiência válida; senti na pele como uma greve pode
ser burocratizada ao limite de quase não ter participação ativa da categoria em questão
(evito a discussão se burocrata sindical é bancário ou não), não que eu ache que a greve
deva ser feita exclusivamente por bancários – acharia ótimo conseguirmos ajuda de
outras categorias e movimentos sociais – mas me parece essencial o nosso
envolvimento. Andávamos de agencia em agencia tentando as fechar, a maioria
concordava em fazer um acordo que garantisse a entrada de alguns funcionários
“essenciais”, enquanto os outros eram direcionados para agencias da redondeza e
alguns poucos iam para casa (se o essencial continua trabalhando, e os
“supérfluos” vão para outra agencia, qual o real sentido da greve?). A paralisação era
aceita com a passividade que se aceita a lei.
Dei-me conta tardiamente no que havia me metido, se eu quisesse ter uma
atuação efetiva no movimento sindical, obviamente não seria sozinho e desorganizado.
E esta organização não poderia ser construída somente no momento da greve, mas no
dia-dia e principalmente nos locais de trabalho. Somente assim voltaríamos a ter um
movimento grevista de fato dos bancários.
Contraditoriamente ouvi de burocratas da CUT falas semelhantes sobre a
importância da OLT (organização no local de trabalho), porém quando saímos do campo
da fala e vamos para a prática vemos exemplos como o da eleição de delegados sindicais
somente em agencias com candidatos pró-situação. Que tipo de OLT é esta? Uma OLT
de rebanho em torno dos pastores petistas?
Outro fato que me deixou perplexo foi a assembleia inicial da greve ser
de toda a categoria, e a final ser dividida por banco: seria o velho e
A Geografia e o Calendário – Crônica de Greve – 50 / 182
conhecido “dividir para conquistar"? Começa-se a greve com o apoio dos
bancários de bancos públicos, geralmente mais dispostos. Mas quando o sindicato
resolve que é a hora de voltar ao trabalho, faz-se assembleias separadas para acabar
com o movimento nos privados, deixando os bancários públicos isolados – e por
consequência enfraquecidos. O próprio discurso final é bastante complicado, num dia os
burocratas fazem discursos dos mais empolgados sobre a importância da greve,
noutro, como que por mágica, dizem “o movimento atingiu seu limite”.
Comparando as conquistas salariais dos metalúrgicos neste ano compreende-se um
pouco melhor isto: nos sindicatos ligados a CUT houve uma média de 6,53% de
aumento (ainda assim maior do que o nosso 6%), enquanto nos ligados a CONLUTAS ou
a INTERSINDICAL o aumento variou de 8% a 10%. Parece-me que o problema é o tal
“limite” ser tão rebaixado... É realmente difícil de acreditar que 6% era um limite quando
olhamos para os lucros dos bancos, a CEF, por exemplo, uma semana depois do fim
da greve anunciou um aumento de 20% no lucro do período.
A contradição entre a prática e a teoria é típica nas instituições burguesas. Ao
olharmos com profundidade para o sindicato vemos que na teoria este é o representante
legal dos trabalhadores (eu particularmente só acredito em representação na tela do
cinema, no palco do teatro ou na mesa de RPG), porém na prática exerce o papel de
controlador e de mediador do movimento sindical, opondo-se a qualquer iniciativa
de organização autônoma ou de oposição. Bom, vamos lá: qual ideologia política
defende que o estado, isto é a estrutura burocrática legal, deve ser a mediadora entre
os conflitos da classe trabalhadora e da classe patronal, e, por isto mesmo, não poupa
esforços para reprimir qualquer tipo de organização autônoma, tentando assim
centralizar em si todo o poder político? Esta ideologia é a fascista, e não por acaso a
nossa atual estrutura sindical foi criada pelo representante tupiniquim desta,
Getúlio Vargas (uma observação: que comentários seriam tecidos se uma das
maiores universidades da Alemanha fosse da FAH – Fundação Adolfo Hitler? Bem
uma de nossas maiores universidades é vergonhosamente a FGV).
Gostaria de acabar com um trecho d'um documento publicado pela FAU
(Federação Anarquista Uruguaia) em 1972. Este me parece bastante atual e válido,
tanto para a situação como para as oposições eleitoreiras: “O reformismo coloca a
insurreição no céu dos ideais inalcançáveis. Exaltando-a verbalmente trata – nos fatos –
de impedir que se prepare. Neste desencontro, nesta incoerência entre sua prática
política contra-revolucionária e seu verbalismo sobre um desenlace insurrecional final,
A Geografia e o Calendário – Crônica de Greve – 51 / 182
buscam fundamentar sua eterna afirmação de que “faltam condições” cada vez que se
tenta fazer avançar o processo da luta política, aplicando meios não incluídos em seu
muito limitado receituário. Este se limita basicamente a duas coisas: a) no
nível econômico da luta de classes, ação reivindicativa salarial, desenvolvida com o
maior respeito pela “legalidade” burguesa e pacífica; b) no nível político,
parlamentarismo, eleitoralismo, como forma de capitalizar politicamente os resultados da
luta econômica. Confinando sua prática a todos os níveis dentro dos marcos
cada vez mais estreitos da legalidade burguesa, o reformismo cria as
condições para sua integração cada vez maior no sistema. Cria obstáculos e
trata de impedir o desenvolvimento das condições para destruição deste.” (Tradução
de Evandro Couto, edição Combate, Porto Alegre 2009).
A Geografia e o Calendário – Crônica de Greve – 52 / 182
Nem vanguarda nem retaguarda
contribuições à intervenção libertária em movimentos sociais
I. Proposta
De forma sucinta, a ideia deste texto é oferecer algumas reflexões sobre a atuação
libertária em movimentos sociais, afim de aprofundarmos – ou pelo menos mantermos em
pauta – o debate consideravelmente em voga em nossas fileiras acerca de tática-
estratégia-programa. Um diferencial que tentarei dar a este é trazer mais reflexões
advindas de experiências práticas coletivas, do que teóricas. Este esforço não deve ser
compreendido como uma posição anateórica ou pragmática, até mesmo porque apesar
da discussão teórica não ser o foco, sem dúvida este se encontra dentro dos marcos do
discurso especifista. Ademais deve-se considerar a centenária dose de inspiração do
seguinte trecho de Bakunin “Quem se apoia na abstração, nela encontrará a morte. A
maneira viva, concretamente racional de avançar, no domínio da ciência, é ir do fato real
à ideia que o abarca, o exprime e por isso o explica. No domínio pratico, o caminho da
vida social leva à maneira mais racional de organizá-la, de acordo com indicações,
condições, necessidades, exigências mais ou menos apaixonadas da própria vida.”
Um objetivo imediato deste texto é contribuir para a imersão da tendência
estudantil libertária Rizoma, já que durante esta realizaremos – em algum grau – o debate
sobre estratégia, tática e programa. Desta maneira, este texto é mais voltado para o nível
de tendência – apesar de muitos aspectos da discussão serem válidos também para a
organização política.
Gostaria de colocar que quando digo programa refiro-me a objetivos e
planejamento de longo prazo, não a totalidade do planejamento organizativo. Isto é uma
diferença em relação, por exemplo, a como este termo é utilizado muitas vezes por José
Antonio Gutiérrez – sem dúvidas um dos grandes motivadores deste pequeno texto
juntamente com Felipe Corrêa, Frank Mintz, e outros libertários mais antigos como Nestor
Makhno, Errico Malatesta e Mikhail Bakunin.
II. Tática, estratégia e programa
Dentro duma discussão sobre militância organizada junto a movimentos, estes
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 53 / 182
termos basicamente se referem a um significado semelhante, e estão inexoravelmente
entrelaçados. Os três dizem respeito às nossas expectativas e intenções com o
movimento – o caminho que nós gostaríamos que este percorresse – a diferença
essencial entre estes conceitos é de escala: a tática nos dá as orientações para este
trajeto numa escala bastante grande, o programa numa escala pequena, enquanto a
estratégia se localiza numa escala intermediária. Ou seja, na construção da tática
procuramos traçar uma via próxima e bem detalhada; um planejamento de curto prazo.
Na construção programática pincelamos a extensa estrada que expressa os nossos
objetivos finalistas para com o movimento – esta que muitas vezes quase até se perde de
vista... – um esboço de longo prazo. Já na construção estratégica desenhamos o trajeto
intermediário que faz a ponte lógica entre nossas distantes ambições e a imediata
realidade.
Dentre estes três, o programa deve ter o conteúdo mais geral, enquanto a tática o
mais detalhado possível. O programa deve nos dar apontamentos de onde queremos
chegar – é o sul de nossa bússola. Isto faz com que ele seja bem mais constante e,
consequentemente, é importante que ele não seja muito específico tampouco extenso, de
maneira a evitar um engessamento da atuação militante e uma prática tendendo a
pregação semi-religiosa. É muito importante que o nosso programa não nos impeça de ter
jogo de cintura, habilidade bastante importante para nos sairmos bem na dança política.
Já a tática deve ser a mais esmiuçada possível, pois diz respeito aos nossos imediatos
próximos passos – o que acarreta imprescindivelmente uma séria análise de conjuntura
afim de nos dar o mapa dos trajetos possíveis e dos impossíveis. Quando comparada
com o programa e a estratégia, o debate tático deve se mostrar também mais flexível e
aberto a experimentações e inclusive erros. Já a estratégia fica no meio termo – é papel
desta dar concretude aos ideias mais gerais apontados pelo programa, indicando o
possível processo para os conquistar mas, ao mesmo tempo, dar significados e sentidos
mais ideias para o planejamento tático. É esta característica que faz com que
preocupações como a expansão espacial, a continuidade temporal, a construção de
alianças com movimentos de outros setores da classe e o fortalecimento tanto em
quantidade de braços quanto em organicidade estejam no âmbito estratégico. Assim
sendo, cabe acrescentar que enquanto a tática deve ser discutida a cada reunião
ordinária – podendo nesta ser praticamente toda alterada – a estratégia costuma ser
discutida somente semestralmente ou anualmente em reuniões de planejamento/imersão
– e tende a ser modificada lenta e processualmente – e já em relação aos objetivos de
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 54 / 182
longo prazo, pode-se passar anos sem que eles se alterem substantivamente.
No universo político libertário compreende-se que a relação entre estas três deve
ser de complementariedade e conformidade, isto devido a nossa compreensão de que os
meios na verdade determinam os fins, ou como expresso poeticamente por Bakunin, que
“A liberdade só pode ser criada pela liberdade”. Agindo de maneira outra estaríamos
cometendo o erro de “pegar um ônibus para o Rio de Janeiro querendo chegar no Rio
Grande do Sul” – como muitas vezes é dito (e também realizado...). A tática deve apontar
e necessariamente estar de acordo com a estratégia, e esta por sua vez apontar e estar
de acordo com os objetivos finalistas. Assim sendo, uma vitória tática que não traz
avanços para nossa estratégia não deve ser encarada como uma real vitória. Todavia, é
importante compreender que os três são frutos das mesmas práticas políticas históricas, e
que o caminho, no fundo, se faz caminhando – com isto quero dizer que é a prática
política que constrói táticas, estratégias e programas, não o oposto.
Atuar num movimento sem um programa formulado – ou pelo menos esboçado –
implica numa falta de orientação que de maneira geral leva o grupo ou a girar em círculos
e “atirar para todos os lados” – caminhando a cada momento para um rumo – ou a “ser
levado pela onda” – acabando por ser utilizado como “massa de manobra” colocada à
serviço dos interesses de outros grupos mais organizados. Por outro lado, atuar num
movimento sem tática e estratégia implica tanto um eterno improviso e espanto, quanto
tende a levar o grupo à posições principistas, sectárias e dogmáticas – de que adianta
sabermos aonde queremos chegar se não tivermos noção alguma de onde estamos nem
de qual caminho podemos tomar? Discursar e gritar que deveríamos ir para Pasárgada,
sem termos um mínimo roteiro de como lá chegar, pouco ou nada ajuda.
Todavia, mesmo sendo o caminho um só, há particularidades que só são visíveis
em determinada escala – a tática tem suas questões específicas, assim como a estratégia
e como o programa. Gostaria eu, então, de ressaltar algumas destas.
III. Programa
O nosso programa de atuação num movimento deve expressar o melhor possível o
nosso ideal, por trazer nossas aspirações e desejos mais revolucionárias extraídos dos
momentos de maior ascenso da luta classista e transformação social, este tende a ser
pouco mutável – de certa forma o programa de longo prazo se aproxima do âmbito
ideológico. Se compararmos, por exemplo, um programa sindical revolucionário
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 55 / 182
contemporâneo com o programa da ala libertária da AIT, veremos que há uma coluna
vertebral praticamente inalterada. Mas se o programa é algo mais genérico e quase
sempre muito distante, qual é sua necessidade e utilidade? Assim como a utopia, ele
serve para nós mostrar o horizonte em direção a qual caminhamos.
Ponto comum de qualquer programa libertário é a libertação absoluta de algum
aspecto específico da opressão capitalestatista. No movimento estudantil por exemplo,
faz sentido ter como ponto programático a destruição total da educação disciplinadora e
autoritária, e a construção duma educação libertadora – o que parece incluir a
expropriação das universidades e escolas afim de universalizar o acesso a estes
conhecimentos e as organizar com base na autogestão, na democracia direta e na
horizontalidade.
Contudo, afim de conseguirmos a transformação revolucionária de qualquer
aspecto da sociedade, faz-se necessário termos movimentos fortalecidos, combativos e
autônomos – objetivo que sem dúvida deve constar num programa revolucionário
libertário. Todavia, além disto, é igualmente evidente que há um limite a partir do qual só
se faz possível continuar avançando nas conquistas do movimento caso haja um ascenso
generalizado dos diversos setores oprimidos da sociedade (trabalhadores rurais e
urbanos, sejam eles empregados, precarizados, estudantes, escravizados,
desempregados, sem terra, camponês, associados, cooperados, subempregados etc). É
difícil acreditar que o exemplo citado no parágrafo anterior possa ser alcançado sem uma
ampla aliança entre os oprimidos. O que nos leva a um outro ponto que normalmente
deve marcar presença num programa libertário – a solidariedade de classes.
Um terceiro ponto se relaciona com os princípios libertários organizativos, é comum
desejarmos que o movimento organize amplamente o setor da classe a qual se refere
com base na autogestão e no federalismo, e tenha a ação direta como método prioritário
de luta. Este ponto somado aos do parágrafo anterior se referem ao que chamamos de
construção do Poder Popular.
IV. Estratégia
Como já fora escrito anteriormente, a função da estratégia em grande medida é
fazer a ponte entre os anseios e o planejamento de longo prazo e a prática militante
cotidiana – característica que faz dela imprescindível e absolutamente central para toda
prática militante que de fato se pretenda continua, transformadora e eficaz. Em outras
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 56 / 182
palavras, geralmente devemos organizar estratégias para cada ponto programático afim
de processualmente o alcançar. Por exemplo, se temos a construção do Poder Popular
como um objetivo programática, devemos ter como preocupações estratégicas tanto o
acumulo máximo e progressivo de força social, quanto a construção/fortalecimento de
alianças com movimentos de outros setores da classe. Entretanto, o planejamento
estratégico deve ser bem mais detalhado e concreto do que o programa: é necessário
pensar com quais movimentos a aliança deve ser prioritária, e com base em que ações
concreta esta será construída. É evidente a importância duma realista leitura do histórico
e das possibilidades do movimento afim de embasar a construção da estratégia.
Mas para avançar no planejamento estratégico visando o acumulo da força social,
faz-se necessário nos debruçar em questões de como podemos fazer para: (1) maximizar
a quantidade de pessoas que compõem o movimento e também a quantidade de pessoas
militando organizadamente para o nosso projeto; (2) maximizar o tamanho do território
nos quais o movimento está inserido e também em quanto deste nós estamos inseridos;
(3) maximizar a organicidade (que no fundo é o mesmo que dizer a liberdade coletiva) e a
memória tanto do movimento quanto do nosso grupo; (4) maximizar a combatividade e
outros aspectos libertários, além da atividade em geral, do movimento e do nosso grupo;
(5) maximizar a inserção do movimento na luta mais geral da classe, e por sua vez,
maximizar a inserção do nosso agrupamento no movimento. Digo maximizar pois o
comum para movimentos (e também para os grupos mas em menor escala) é funcionar
em ondas – ter ascensos e descensos de acumulo de força – dentro deste padrão, cabe a
nós atuarmos dentro duma traçada estratégia afim de que os picos sejam cada vez mais
longos e altos, e os vales cada vez mais curtos e rasos. Conseguir detalhar uma
estratégia que abarque satisfatoriamente todos estes aspectos obviamente não é nada
simples – é necessário estabelecermos quais serão os nossos espaços principais de
atuação; quais serão as nossas ferramentas de propaganda mas também como esta será;
com quais outros setores (organizados ou não) do movimento nós devemos
potencialmente nos aliar e nos aproximar; quais serão os nossos eixos de atuação, e as
reivindicações e pautas que defenderemos como prioritárias, etc.
Um terceiro ponto estratégico – o qual se refere mais diretamente a questão da
destruição das opressões e construções de práticas libertadoras, mas de maneira alguma
deixa também de se relacionar com o acumulo de força social – é planejar como
impulsionar e fortalecer práticas e experiências expropriativas pontuais de libertação. Na
questão da educação, pensar como fortalecer e aprofundar práticas libertárias de
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 57 / 182
expropriação-apropriação da educação das classes dominantes. É importante ter claro
que em toda prática revolucionária estas duas dimensões (expropriação e apropriação)
invariavelmente andam juntas – mesmo que em níveis ínfimos. É disputando a hegemonia
territorial através de greves e ocupações que de fato abrimos espaços para construir e
experimentar práticas autogeridas de educação. (Teço uma longa discussão sobre este
tema num texto outro)
V. Tática
Tendo o programa e a estratégia esboçados, a tática acaba por se mostrar como a
arte de alocar a quantidade de hora.militantes (total de horas de militância com que
contamos para a realização de nosso projeto) disponível nas diferentes atividades
possíveis do movimento afim de conseguirmos avançar rumo aos nossos objetivos com
eficiência. Contudo, apesar da aparência de simplicidade da discussão tática, é nela que
muitas vezes se encontrarão as maiores polêmicas e também os maiores equívocos –
pois é nela que saímos do mundo das ideias, para efetivamente contaminarmos nossas
mãos com a suja e áspera realidade – isto faz com que a tática deva ser pensada com
tanto – senão mais – zelo e dedicação quanto a estratégia e o programa.
Na prática o debate tático se dá em cima de quais atividades, dentre as possíveis,
deve o nosso grupo: (1) impulsionar/bancar – dedicando parte considerável de nossos
esforços e expectativas, e sendo o protagonista ou estando entre eles; (2) quais ele deve
apoiar – colocando a disposição algum esforço mas tendo consciência que algum outro
setor do movimento terá que protagonizar a atividade; (3) quais ele deve ignorar –
praticamente “fingindo” a inexistência daquela iniciativa; e (4) quais ele deve boicotar –
lutar contra. De maneira esquemática são estas quatro possibilidades que temos frente a
cada ação do movimento – e escolher qual postura tomar é a parte mais refinada e
importante do debate tático, já que está escolha não pode de maneira alguma ser
aleatória ou irrefletida, pelo contrário, o critério central deve sempre ser a possibilidade de
avanços rumos ao nosso planejamento de médio e de longo prazo. Não podemos em
hipótese alguma desvincular a tática da estratégia e do programa – agindo assim
estaríamos correndo o risco tanto do oportunismo quanto da incoerência, além de
estarmos rompendo com a premissa libertária já citada de que os meios devem estar de
acordo com os fins. É necessário sempre nos perguntar se impulsionar uma determinada
ação poderá, por exemplo, contribuir para o acumulo de força social do movimento, ou
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 58 / 182
fortalecer os aspectos libertários deste, ou promover avanços no campo expropriativo-
apropriativo etc. Alguns exemplos: o movimento entra em processo eleitoral afim de trocar
e legitimar as direções de suas entidades – devemos nós participar com peso, participar
como apoio, ignorar completamente, ou lutar contra estas eleições? O mesmo deveria nos
perguntar na ocasião da deliberação dum ato, por exemplo. Entretanto, além das
atividades saídas do conjunto do movimento, podemos também pensar em atividades
organizadas tão somente por nosso setor do movimento – neste caso ou as bancamos,
ou elas obviamente não se realizarão.
VI. Considerações finais – Nem Vanguarda Nem Retaguarda!
Espero que estas passadas páginas breves possam contribuir para a atuação
libertária em movimentos sociais, mas também ajudem a reforçar a imprescindibilidade do
planejamento tático, estratégico e programático. Somente assim é possível termos uma
efetiva militância que seja de fato coerente com a tradição libertária. Somente assim é
possível fugirmos da posição de vanguarda que, com muita arrogância, se autoproclama
superior ao movimento e seus diferentes setores, levando invariavelmente ao sectarismo
e ao dogmatismo, senão até mesmo ao paralelismo e a total desvinculação do grupo com
o movimento – tirando-o da realidade política e o isolando, eliminando assim qualquer
possibilidade real de intervenção nesta e no movimento. Mas também, somente assim é
possível fugirmos da posição de retaguarda que, com muita ingenuidade, cegamente
segue qualquer atitude que o movimento tomar, independente de onde este trajeto irá nos
levar, independente dos avanços e retrocessos que esta pode trazer para o nosso projeto
– perdendo assim toda a capacidade propositiva e, na prática, qualquer possibilidade de
intervenção real e orientada no movimento. Somente assim é possível achar o equilíbrio
entre a vanguarda – que boicota todas as ações que não protagoniza – e a retaguarda –
que desempenha sempre um papel passivo e de coadjuvante. Intervir no movimento é
remar com este, mas remar tentando orientá-lo em direção aos nossos ideias.
Por fim, gostaria de compartilhar duas passagens das “Considerações sobre o
programa” de Gutiérrez:
“Entre as lutas que travamos hoje e a sociedade ideal do futuro que aspiramos
existe um enorme abismo. Somos utópicos no pior sentido da palavra. Ou reformistas, na
medida em que a luta pelas reformas não se liga (para além de nossos desejos) a uma
estratégia revolucionária. Entre nosso utopismo e nosso reformismo é onde devemos
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 59 / 182
encontrar o caminho para a política revolucionária, que unifique nossa participação na luta
por reformas e transformações no presente, com aquelas grandes aspirações que nos
inspiram.”
(...)
“Porém, o pensamento programático não serve somente como uma maneira de
enfrentar com propostas construtivas os problemas sociais (…) mas, além disso, permiti-
nos acabar com duas características do movimento libertário: primeiro com a política de
satélite em torno do resto da esquerda, que nos converte em meros contraditores ou
seguidores de outras alternativas, sem um desafio próprio e sem ser, por conseguinte,
uma alternativa em direito próprio. Por outro lado, ele também nos ajuda a superar os
desvios sectários, já que muitas vezes o sectarismo e a incapacidade de assumir
corretamente uma política de alianças deve-se a falta de clareza dos próprios libertários
em torno de seus próprios objetivos imediatos. O desenvolvimento de programas
concretos, em conclusão, fortalece nossa presença nas lutas populares, com força própria
à nossa bandeira.” Bandeira a qual muito anseio ver novamente ser hasteada para o
triunfo de nossa emancipação – como nos diz uma antiga, porém ainda viva, canção
popular libertária.
A Geografia e o Calendário – Nem vanguarda nem retaguarda – 60 / 182
Movimento Estudantil Revolucionário
- 0. Motivação:
O que principalmente me leva a redigir este texto é a criação da frente estudantil da
OPA, e a possibilidade próxima de construção dum coletivo estudantil libertário. Apesar de
não ser o primeiro contato entre os libertários e a estudantada, é a primeira vez que este
assunto é discutido nesta organização – o que tem rolado não sem levantar muitos ruídos,
questões e questionamentos. Contudo, parte destes igualmente são evocados ao se
pensar e/ou falar no movimento de aglutinar estudantes secundaristas e universitários de
diversas instituições, tanto privadas quanto estatais, sob uma perspectiva libertária. Vejo a
priori, então, a ambição destas linhas dialogarem com ambos espaços.
Intencionando clarear o trajeto, posso dizer que a dupla de interrogações pelos
quais este debate gravitará serão: é possível um movimento estudantil revolucionário?
Para quê um coletivo estudantil libertário? Estas, por sua vez, desdobram-se em algumas
outras, como por exemplo: O que seria uma prática estudantil, uma prática enquanto
estudantes, revolucionária? Este segundo grupo de questões, por sua vez, também pode
ser desdobrado em algumas outras ainda mais específicas, formulando ao final uma
especie de programa, num tom bastante – digamos – didático. Entretanto, cometeríamos
aí um equívoco, pois este texto não chegará tão longe, no máximo tangenciará questões
mais específicas. Voltando a metáfora gravitacional digo que a massa das duas
interrogações iniciais será exponencialmente maior. Todavia, além de pensar somente em
torno destes conjuntos, acredito que é importante para a melhor compreensão deste
esforço vê-lo também sobre uma mais geral ótica outra: ambos processos demandam
legitimação, pedem um corpo discursivo que os explique, justifique e ajude a organizá-los.
Pois, todo (contra)poder necessita dum saber que dialeticamente o complete,
conformando um (contra)poder-saber. O que aqui se segue deve ser visto, então, também
como um esforço nesta direção. Um esforço somente: nem pioneiro, tampouco finalista.
Sei que talvez estas tortuosas iniciais linhas soem como uma
desesperada tentativa de explicar o também tortuoso caminho o qual tomará o texto.
Entretanto, talvez olhando de cima este se torne até quase óbvio, já que é em grande
parte uma linha do mais geral ao mais específico, quase que um movimento de
ampliação de escala. No trecho primeiro vou de revolução, para concepção libertária de
revolução, daí para prática revolucionária libertária, daí então para movimento e
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 61 / 182
coletivo revolucionários. Numa segunda parte vou de revolução estudantil, para
concepção libertária de revolução escolar, daí para prática libertária revolucionária
escolar, daí então para movimento e coletivo estudantis revolucionários. E por último
pretendo chegar a algumas possibilidades de bandeiras de longo prazo para o movimento
estudantil revolucionário.
Enfim; caso aches o texto excessivamente panfletário, leia-o como um manifesto.
Caso o aches demasiadamente abstrato, leia-o como um artigo. Caso aches o texto
excessivamente floreado, leia-o como uma poesia. Porém, caso aches o texto ruim, foda-
se: este não foi escrito exclusivamente para seu deleite.
I. Um passo para trás: revolução, prática, movimento e coletivo
revolucionários
.I
Parece-me bastante razoável começar com o que está aquém, com o que, de certa
maneira, é pré-requisito. Mas, sem ter pretensão alguma de “limpar” estes conceitos de
todo resíduo externo a este discurso; o que indubitavelmente seria, além de
extremamente exaustivo, inútil pois impossível. Ainda assim parece-me importante montar
um pequeno filtro de referências afim de estreitar o diálogo. Sendo assim, lembrando que
a ideia é discursar a respeito da possibilidade dum mer e da prática dum cel, extrai-se que
o conjunto de pré-conceitos necessários é basicamente centrado na questão da revolução
social – da leitura libertária da transformação social revolucionária.
Esta inclui logo de início um corte: trata-se duma revolução social, isto é,
uma transformação profunda nas relações que estruturam internamente a sociedade. Não
se trata aqui, por exemplo, duma revolução tecnológica – ou pelo menos duma
revolução que se limite exclusivamente a técnica. Daqui chegamos a um
primeiro pedido de definição: mas quais aspectos das relações sociais os
libertários desejam ver transformados?
A interpretação que nós fazemos da sociedade contemporânea é que
esta é fragmentada em classes sociais, definidas por complexas malhas
relacionais de dominações entre diferentes grupos sociais, configurando assim uma
estrutura piramidal de sociedade. Uma sociedade onde uma irrisória minoria
domina a imensa maioria. Desejam os libertários destruir todas as relações
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 62 / 182
de dominações da sociedade, reformulando estas relações a partir de malhas com
bases igualitárias, abrindo assim a possibilidade de plena realização da liberdade
mulherana. O que configuraria uma estrutura horizontal de sociedade. Uma
sociedade sem fragmentação em classes. Geralmente estas relações de
dominações são analisadas a partir da interdependência estrutural das esferas
ideológica, econômica e política. O que resulta, entre outras coisas, na necessidade de
sincronia na luta contra a dominação ideológica, econômica e política.
Parece-me necessário, agora, um pequeno desvio no caminho para dar maior
concretude ao parágrafo anterior. Ao escrever dominação vou na linha da
definição proposta por Bertolo como interpretada por Felipe Correa: ““A dominação
define, então, as relações entre desiguais – desiguais em termos de poder, ou seja, de
liberdade –, define as situações de ‘supraordenação’ e subordinação; define os
sistemas de assimetria permanente entre grupos sociais.” A dominação, neste
sentido, implicaria as desigualdades de poder que definiriam relações de
mando/obediência permanentes, também em nível macro, não entre indivíduos, mas
entre grupos sociais (castas, classes etc.). (..) Assim, a dominação estaria ligada
fundamentalmente à “expropriação da função de regulação exercida por uma minoria”,
responsável por impor suas regras “ao resto da sociedade” – ou seja, estaria ligada à
imposição. Portanto, se a “função social de regulação” de uma sociedade é “exercida
somente por uma parte da sociedade, se o poder é então monopólio de um setor
privilegiado (dominante), isso dá lugar a outra categoria, a um conjunto de relações
hierárquicas de mando/obediência que proponho chamar de dominação”. A dominação,
assim definida, implicaria monopólio do poder e hierarquia.” (grifos meus). O que nos
faz chegar a dois grupos de instituições fundamentais na manutenção da
dominação de nossa sociedade, dando-nos maior clareza de nossos inimigos: o Estado
e seus braços – pois monopoliza o poder de regulamentação de muitos setores da
sociedade além de instituir hierarquias através de diversas instituições
disciplinares (escola, clínica, penitenciária, exército/polícia etc); e as empresas capitalistas
dos diversos ramos (industrial, comunicações, financeiro, etc) – pois através
da propriedade privada e do assalariamento (das relações entre capital e
trabalho) monopolizam a gestão da produção e distribuição de riquezas da economia
social, mas também instituem hierarquias através dos códigos disciplinares típicos das
oficinas (como o neotoyotismo).
A partir daqui, é possível ler a revolução (enquanto destruição das relações de
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 63 / 182
dominação) como intimamente ligada a uma prática revolucionária, e, consequentemente,
um momento histórico revolucionário (a Comuna de Paris por exemplo) como
intensificação no espaço e no tempo de práticas revolucionárias – assim se resolve, de
certa maneira, a dicotomia reforma-revolução na tradição libertária. Contudo, mesmo
embora se concordarmos com a ideia de Malatesta de que devemos sempre nos engajar
nos momentos revolucionários afim de reforçar seus aspectos libertários, nem toda prática
que visa alterar as estruturas sociais é necessariamente compatível e interessante para o
projeto libertário – consequência negativa da ideia do anarquista italiano, e positiva do
filtro anti-dominação libertário dos aspectos a serem revolucionados. Ou seja, é possível
pensar numa forma concreta de prática revolucionária especificamente libertária (prl) e
suas características próprias. Dedicar-me-ei, então, a destrinchá-las em alguns aspectos:
suas dimensões, suas direções, seus possíveis sujeitos, para finalmente pincelar sua
espacialidade e a sua temporalidade.
.II
a) a-propriação – ex-propriação
Toda prática revolucionária libertária é constituída de duas dimensões simultâneas
e conjuntas. Em outras palavras, a dimensão expropriativa e a apropriativa acontecem
necessariamente no mesmo tempo e no mesmo espaço. A-propriação – ex-propriação
devem ser compreendidas como duas dimensões presentes em cada momento da prática
revolucionária. O “positivo” e o “negativo” dum mesmo processo, configurando o duplo
dialético destruição-criação presente em todo processo revolucionário.
Apropriação pressupõe expropriação, assim como o inverso.
Com ex(-)propriar me refiro à dimensão destrutiva intrínseca da prática
revolucionária. A parte do processo revolucionário de anulação do poder das instituições
de dominação (as instituições de monopólio de poder [e saber],
hierarquizantes e hierarquizadas). Isto é, o fim das propriedades sobre o tempo e o
espaço humanizados das instituições de dominação. Ocupações de prédios são
exemplos de práticas revolucionárias em que o aspecto expropriativo salta a
vista, pois o poder político-econômico expresso no direito a propriedade privada do
espaço urbano é violentamente rasgado.
Contudo, toda prática revolucionária é constituída também de sua
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 64 / 182
dimensão a(-)propriativa. Com isto quero me referir à radicalização democrática daquele
aspecto da vida mulherana. O empoderamento coletivo dos sujeitos envolvidos
na prática revolucionária. A autogestão econômica é o que cito como prática
revolucionária com forte traço apropriativo, já que esta representa o empoderamento
coletivo e popular da gestão duma parcela da economia. Numa sociedade em que
poucos dominam o todo, é necessário tanto a criação de espaços de liberdade para
tornar possível a destruição da dominação, quanto a destruição desta dominação para se
tornar possível a criação de espaços de liberdade.
b) direção
Num primeiro momento, toda prática revolucionária pode ser considerada como um
movimento paralelista, não-institucional (de fora para dentro) – ao menos as convergentes
com a concepção libertária de transformação social, já que esta dúvida da possibilidade
das instituições de dominação revolucionarem a si mesmas, e desacredita também de
qualquer emancipação que não seja conjugada em primeira pessoa – pois
necessariamente tem como sujeito coletivos não dominantes. Porém, olhando duma outra
perspectiva mais distante, pode-se considerar a direção da prática revolucionária como
entrista (de dentro para fora), já que os sujeitos revolucionários são parte constituinte da
sociedade de dominação. O que de fato acontece é que toda prática
revolucionária libertária possuí aspectos entristas e aspectos paralelistas, mesmo que
em diferentes escalas e quantidades.
Todavia, ainda assim é possível classificarmos as direções das práticas
revolucionárias como paralelistas e entristas, isto caso nos atermos na direção primeira
desta e em sua maior proporção. Por exemplo, pode-se falar que as
práticas revolucionárias desenvolvidas por movimentos de economia autogestionárias de
maneira geral são paralelistas (pois tendem a ter como direção primeira a economia
como um todo), enquanto as desenvolvidas pelos movimentos sindicais são de
maneira geral entristas (pois tendem a atingir a economia através da
mediação de empresas capitalistas). Este exemplo está esboçado no gráfico abaixo,
mas é importante lembrar que a sociedade conforma, na verdade, uma só totalidade.
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 65 / 182
c) possíveis sujeitos
Tomando as características da proposta libertária de transformação social
revolucionária, é possível chegar em alguns critérios definidores do possível
sujeito revolucionário (o “praticador” revolucionário).
Como foi escrito no trecho anterior, os libertários não acreditam na possibilidade de
transformação social de dentro pra fora, por vias institucionais. Temos aqui uma primeira
característica: o sujeito revolucionário não pode estar submetido as instituições
dominantes. Um governo não pode ser revolucionário, tanto quanto uma multinacional
capitalista. Aspecto na literatura socialista conhecido como autonomia ou independência
de classe.
Outro traço extraído do mesmo trecho é a descrença libertária numa transformação
de caráter vanguardista ou representativo – esta corrente socialista ainda mantém vivo e
ao pé da letra o antigo lema da AIT que dizia “a emancipação dos trabalhadores será obra
dos próprios trabalhadores” – não é possível emancipar outrem. A importância desta
orientação pode ser entendida através de vários ângulos, o que proponho é
que o anarquismo compreende a transformação social revolucionária como uma
transformação profunda nas relações e instituições sociais, mas também nas
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 66 / 182
próprias mulheres e homens. Ademais, lembrando que o caminho se faz caminhando, que
a emancipação é fruto da própria luta emancipatória, chegamos então num
imprescindível aspecto do sujeito revolucionário: os próprios interessados devem
organizar e realizar a luta, ou seja, a prática revolucionária libertária tem sempre o caráter
de ação direta, enquanto o sujeito revolucionário, por sua vez, de democracia direta
(também conhecida como autogestão ou democracia de base).
Todavia, como temos a ganância de erradicarmos todo tipo de dominação da
mulher sobre a mulher presente em toda mulheridade, uma ação que possua os aspectos
para caracterizá-la como revolucionária, mas que tenha como sujeito uma
parcela excessivamente reduzida da sociedade, pode ter sua importância – geralmente
orbitando entre a função pedagógica e a de propaganda – porém, olhando da perspectiva
libertária, sua eficácia para a luta emancipatória esta diretamente relacionada com a
quantidade de pessoas participantes. “Melhor um passo com mil, do que mil com um”,
como nos diria um outrora teólogo da libertação. À dupla formada pelos dois aspectos
anteriores do sujeito revolucionário, poderíamos chamar de democracia direta e popular.
Contudo, este termo acaba por obscurecer um dos aspectos que deve ser ressaltado do
sujeito revolucionário – especialmente numa sociedade extremamente fragmentada
como a nossa: essa necessidade de ser “popularizante”, de tender a abarcar e
aglutinar setores amplos da sociedade. Pensando nisto, parece-me fundamental
desmembrarmos em um segundo aspecto: solidariedade das classes oprimidas.
Um último traço que gostaria de pintar no quadro do possível sujeito revolucionário
é que este deve ter disposição para a luta. Deve ousar a insubmissão à
ordens institucionais, não deve ser condizente com governo, patrões, gestores
etc. A este chamamos de combatividade.
Fechamos assim o grupo de características do possível sujeito da
prática revolucionária libertária: autonomia, democracia direta e popular,
solidariedade das classes oprimidas e combatividade. Entretanto, por motivos
analíticos mas também práticos (no sentido da realidade prática militante
demandar), a partir desta caracterização, parece-me necessário o esmiuçamento
deste em dois grupos concretos.
O primeiro, e também mais evidente, é formado pelos diversos movimentos sociais
que abarcam ou possam vir a abarcar largos setores da sociedade, como por exemplo
movimentos que lutam por terra, por moradia, por melhores condições de trabalho ou por
transporte coletivo livre. Todavia, é importante explicitar que os movimentos socais são
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 67 / 182
de, maneira geral, sujeitos revolucionários em potência, pois mesmo aglutinando uma
parcela considerável da sociedade, não necessariamente os outros aspectos
imprescindíveis para a prática revolucionária são respeitados. Não é comum
encontrarmos movimentos sociais burocratizados – o que inviabiliza a democracia direta
popular e tende a minar a combatividade, incentivando a ação indiretas – e aparelhados
por agrupamentos hierárquicos ligados ou não aos poderes dominantes – o que inviabiliza
a autonomia e também a democracia direta popular. Um último aspecto
negativo geralmente presente nos movimentos é a persistente fragilidade conjuntural:
mudanças de porte relativamente pequeno podem implicar num inchaço ou num
esvaziamento, numa radicalização ou num “acovardamento”. Esta certa “instabilidade
revolucionária” dos movimentos de massa se dá fundamentalmente devido ao
fato destes deverem ser abertos, agregando assim pessoas e agrupamentos de
diversas matizes ideológicas e com divergentes aspirações e objetivos. Por exemplo,
partidos políticos de concepção vanguardista tendem a intentar aparelhar os ms,
visando assim “dirigir” as classes. Já partidos reformistas tenderão a fortalecer os
aspectos institucionalistas presentes na organização do ms (a associação, o
sindicato, o dce etc), contribuindo assim para a burocratização deste. Ou, por exemplo,
uma imensa queda do número de sindicalizados devido a uma situação de refluxo.
Contudo, assim como há agrupamentos que atuam no sentido de abafar
a possibilidade emancipatória dos movimentos sociais, os libertários devem intervir no
seio destes a fim de fortalecer seus aspectos revolucionários. Chegamos aqui, no
segundo grupo: os coletivos revolucionários. Estes apesar de não terem como função
primeira a realização de práticas revolucionárias propriamente ditas (pois estas teriam seu
aspecto emancipatório bastante enfraquecido, por serem restritos), tem sua importância
pois se relacionam indiretamente com estas, ao funcionarem como “fermento”
revolucionário, como incentivadores de práticas revolucionárias. Mais correto é pensar, a
fim dum maior rigor, os coletivos revolucionários como sujeitos pró-revolucionários,
enquanto os movimentos sociais como possíveis sujeitos revolucionários. A
potencialidade revolucionária escorre por entre os finos dedos dos coletivos, assim como
a conjuntura – com a qual os coletivos são forçados a dialogar, e a qual impacta
diretamente nos movimentos sociais. Estes quase sempre vulneráveis à chuvas e
tempestades. Esta é a relação dialética que caracteriza a abstração concreta de sujeito
revolucionário, que, contudo, pode se intensificar, se massificar, se constituir no espaço
e no tempo, dando origem à momentos de profunda afirmação do potencial popular
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 68 / 182
libertário como a Comuna de Paris, ou a Revolução Espanhola, para me conter em dois
exemplos.
A este projeto utópico-militante produto do que aqui foi esboçado de maneira geral
como fortalecimento dos movimentos sociais, em si e entre si, mas também
e concomitantemente de seus aspectos revolucionários, chamamos de construção do
Poder Popular. Finalmente, entendo que a proposta da OPA (e de organizações similares)
é a de organizar/compor coletivos revolucionários que atuem em movimentos
sociais, proporcionando também este espaço de organização estratégica entre os
grupos de militantes libertários de cada MS.
d) Espacialidade e temporalidade das práticas revolucionárias
Com o que foi escrito até agora, é possível ver a espacialidade da
luta revolucionária como intimamente relacionada a dupla apropriação-expropriação
intrínseca a prática, e que, assim como esta, está inexoravelmente presente. Pensar
a prática revolucionária como apropriação-expropriação leva a lê-la como uma disputa
social em que suas marcas podem ser vistar no espaço e no tempo. A partir das práticas
de ação direta e autogestão se expressa a espacialidade das lutas revolucionárias, sendo
então possível definir uma especie de territorialidade dos sujeitos revolucionários. Para
citar alguns exemplos: “a manifestação de rua, a ocupação e a greve. O primeiro consiste
na literal tomada temporária das vias públicas por uma determinada reivindicação, o
segundo no controlar hegemonicamente um espaço ligado ao estado ou a iniciativa
privada, já o terceiro consiste em inviabilizar a produção econômica de
determinado local”. Mas esta não se manifesta exclusivamente nas práticas com maior
teor expropriativo: a autogestão de empreendimentos solidários – sejam eles
fábricas recuperadas ou não – também circunscreve um óbvio corte territorial. As lutas
revolucionárias sindicais possuem, por exemplo, como um território privilegiado o
da própria empresa. Obviamente esta não se dá em termos absolutos, de hegemonia
sobre o espaço, entretanto se dá em termos da disputa pelo domínio do espaço. Ou seja,
a partir desta perspectiva, a territorialidade dos sujeitos revolucionários é inserida numa
malha de múltiplos territórios sobrepostos.
Já a temporalidade das práticas revolucionárias é melhor captada indiretamente
através de seus sujeitos revolucionários. Enquanto para a espacialidade se vai da prática
até o sujeito, o campo da temporalidade é melhor compreendido ao se fazer o movimento
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 69 / 182
oposto: ir do sujeito à prática. Incluindo neste movimento a dialética própria
deste incompleto sujeito, percebe-se que a temporalidade deste se manifesta
de maneira intermitente nos movimentos sociais, e permanentemente porém
diluidamente nos coletivos revolucionários. Enquanto o sujeito revolucionário como
movimento social está sempre nascendo, se desenvolvendo e morrendo, ele
como coletivo revolucionário mantém sua continuidade temporal – possibilitando
assim, entre outras coisas, tanto a reflexão acerca do acumulo teórico-prático, quanto
a cristalização teórico-prático numa doutrina monolítica e acronológica. A partir daí,
entende-se a distribuição temporal das práticas revolucionárias: concentrada e
intermitente pelos MSs, dispersa e diluída pelos CRs.
Não pretendo me alongar nesta discussão, pois sei o quanto ela pode dar pano
para manga. Minha intenção é simplesmente demonstrar que é possível realizar estas
duas perguntas para qualquer prática revolucionária: qual é sua expressão espacial?
Qual sua distribuição temporal? Do ponto de visto do sujeito intrínseco a
prática, a primeira pergunta se relaciona com a constituição de suas territorialidades, e a
segunda com a de suas “histórias”.
II. Um passo (in)certeiro: revolução, prática, movimento e coletivo
estudantis revolucionários
.I
A partir daqui, entro de fato no esforço de formular um discurso para
legitimar/organizar/fortalecer uma possível prática revolucionária estudantil. Dada esta
conceitualização mais geral de revolução, prática, movimento e coletivo revolucionários,
discutirei a possibilidade duma revolução, prática, movimento e coletivos revolucionários
estudantis. Isto tudo, como já foi escrito, dentro duma ótima libertária. O caminho da parte
anterior do texto será repercorrido, mas desta vez olharemos especificamente para a
questão estudantil.
Todavia, logo de partida nos deparamos com um problema: na outra parte fui de
revolução para prática revolucionário, daí só então para sujeito revolucionário; no entanto,
nesta segunda parte já começo com um corte que adiciona um sujeito – o estudante. A fim
de resolver esta situação, mantendo-me fiel ao caminho antes proposto, gostaria de
começar esta segunda parte com uma proposição: a possibilidade/necessidade
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 70 / 182
da revolução escolar/universitária.
A escola (usarei a palavra escola referindo-me a esta como um todo, incluindo suas
divisões; universidade, secundarista etc) tem como função a educação da sociedade, ou
seja, de maneira geral é uma das responsáveis pela formação social e pela
difusão/produção do conhecimento. Entretanto, ela é também uma das
principais instituições disciplinares – tem papel central no processo de domesticação
dos corpos humanos. Pois é através de seus exames, suas punições e recompensas,
suas redes hierárquicas, seus micropoderes, sua permanente fiscalização, sua imposição
do tempo mecânico absoluto, do conhecimento cientifico verdadeiro e de regras de
correta postura social (etc), que são formados indivíduos cidadãos – curiosas invenções
modernas que rondam ruas em busca de amos. A escola, por ser a instituição disciplinar
primeira a qual a (quase) totalidade das populações contemporâneas passa muitos de
seus anos, é fundamental no desenvolvimento da submissão, da passividade, da apatia,
da alienação; de tudo aquilo que Michel Foucault expressa como criação de corpos
dóceis. Estranhas qualidades que, contudo, são como uma base para o pacífico
desenrolar no caminho da vida, já que muitas outras instituições (como as empresas...) as
demandarão.
Partindo da compreensão desta parte negativa da função educativa
numa sociedade capitalista, e da essencialidade das disciplinas na manutenção e
ampliação da dominação, entende-se a importância de se revolucionar as instituições
escolares. Isto é, destruir as escolas disciplinares promovendo uma apropriação
criativa e coletiva da educação. Assim como nós libertários lutamos pela revolução
econômica, a destruição da economia capitalista concomitantemente com sua
reorganização autogestionária, devemos lutar pela revolução escolar, a
destruição da escola disciplinar concomitantemente com sua reorganização
libertária. Pois, será somente com suas chamas, que a escola poderá iluminar a
sociedade. Defino, então, revolução escolar como uma revolução num bloco específico
da sociedade de dominação, as instituições disciplinares escolares – o que acarreta uma
luta revolucionária correlata com sua real importância, dada a interdependência das
esferas.
Este debate inclusive não é novidade entre os libertários: é de se impressionar a
preocupação que estes demonstraram e demonstram com relação a pedagogia. Há uma
vasta literatura sobre o conhecimento, a difusão deste, a educação, a formação. Há um
longo passado de experiências pioneiras de escolas modernas, escolas livres,
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 71 / 182
de pedagogias libertadoras, emancipadoras, revolucionárias. É sabido, por exemplo,
que milhares dos trabalhadores espanhóis que realizaram a revolução de 36 passaram
por escolas de orientação libertária. O anarquismo não subestimou a importância da
formação prática-teórica, nem o papel ideológico da oficialização do conhecimento:
sempre se soube que a esfera social da produção e difusão do saber deve
ser expropriada e apropriada pelo povo.
Mas, como caracterizar uma prática revolucionária escolar?
.II
A Geografia e o Calendário – Movimento Estudantil Revolucionário – 72 / 182
Balanço crítico da representação discente
Hugo Scabello numa fria noite de julho de 2012
I. O que esperar das próximas páginas
Vendo se aproximar o término de meu “mandato” de um ano como Representante
Discente (RD) no Conselho Departamental da geografia (DGEO), senti, durante esta
longa noite de insonia, a necessidade de elaborar de maneira minimamente sistematizada
um balanço dessa experiência. Isto porque acredito ser importante haver continuidade e
acumulo por parte do movimento estudantil (ME) sobre estes espaços de poder afim de
evitarmos a “reinvenção da roda” a cada nova temporada – o que parece demandar
ainda mais do que em outras situações o registro escrito, já que uma das características
intrínsecas ao movimento é a grande rotatividade e a rápida renovação continua de seus
componentes. Mas, além deste aspecto, o que me motiva a este esforço discursivo é
também a vontade e a necessidade de compartilhar algumas avaliações pessoais, as
quais me levam a trazer propostas que incluem descontinuidades na postura que até
agora nós enquanto movimento estudantil temos tido frente aos Conselhos
Departamentais e outros espaços de poder institucionalizado da USP.
É claro que não pretendo encerrar o assunto e a discussão, tampouco abranger
todos os aspectos desta – este texto se propõem a ser tão somente um balanço crítico e
propositivo advindo essencialmente dum sentimento de compromisso para com os
colegas de curso que confiaram a mim a função de levar e defender as nossas posições
coletivas enquanto movimento estudantil da geografia para o DGEO, não um tratado
praxiológico sobre estrutura de poder. Ou seja, minhas expectativas com este texto estão
muito mais dentro do âmbito da estrategia do que do âmbito acadêmico e teórico. Este
não é um texto da academia, mas sim na academia.
II. O começo da experiência e o sentido inicial desta
Fui escolhido para ser RD num momento de considerável marasmo nas
movimentações estudantis do curso de geografia. Tentar explicar este marasmo não é
uma tarefa que coloco para este texto, mas acredito ser pertinente pincelar alguns
aspectos do quadro conjuntural – não contar todo o filme, mas ressaltar alguns detalhes
A Geografia e o Calendário – Balanço crítico da representação discente – 73 / 182
da foto.
Estávamos na metade para o final do segundo semestre de 2011. Depois de um
primeiro semestre com uma relativa agitação na plenária departamental – que incluíra até
mesmo uma concreta e madura proposta de paralisação do curso durante uma semana, a
qual não acontecera (na minha humilde opinião) por pura covardia do movimento
estudantil – esta encontrava-se absolutamente inativa, não acontecendo nem mesmo
suas reuniões ordinárias. Alguns professores interessados se dedicavam a processos
burocráticos-eleitorais afim de relegitimarem o espaço da plenária, mas desta vez de
maneira bastante mais amena – como um mero espaço de debates, não como um espaço
deliberativo – pois a já citada proposta de paralisação assustara os setores mais
atrasados do departamento, o que motivou uma ofensiva reacionária ao espaço. Com o
fim da importância da plenária departamental, o Conselho do DGEO se torna o espaço
inquestionável e único de poder institucional do departamento – a partir de então e até os
dias de hoje, a plenária se torna um mero fórum de bate-papo, servindo na prática tão
somente para fomentar discussões entre discentes e docentes, e dar um patético véu
“democrático” a gestão do departamento. A calmaria daquele momento era dessas que
antecedem grandes tempestades, pois pouco tempo depois a onda rebentaria e
ocuparíamos a administração da FFLCH e a reitoria, e daríamos inicio a uma greve
estudantil – uma das raras que não ficou submissa a movimentos de trabalhadores da
USP (sejam eles docentes ou não). As assembleias gerais e de curso começariam a ser
frequentes e cheias – tanto de pessoas quanto de polêmicas. Todavia, na assembleia em
que fui escolhido para ser RD, esta ainda encontrava-se vazia tanto de pessoas quanto
de polêmicas. O esvaziamento e a ausência de polêmica era tamanha que resultou numa
escolha por consenso de quais seriam os próximos RDs, fora assim que eu e o Túlio
assumimos esta tarefa no Conselho.
Entretanto, ainda que pese a calmaria do momento, essa escolha foi antecedida
por um rico e saudável debate sobre quais seriam as funções dos RDs e quais as
expectativas que teríamos. Gostaria de relembrar dois pontos específicos deste, pontos
os quais entendo como os mais relevantes.
Primeiro, que não fomos escolhidos para “representar os estudantes”, mas sim
fomos escolhidos para levarmos as posições do movimento estudantil (isto é, não dos
estudantes em abstrato, mas sim dos estudantes que possuem interesse em construir
uma posição e uma política coletivas) e trazermos informes sobre os debates que se
passavam no Conselho, de maneira a coletarmos subsídios para construir um mapa das
A Geografia e o Calendário – Balanço crítico da representação discente – 74 / 182
posições políticas no departamento, sabendo assim com quais professores poderíamos
contar, e com quais não poderíamos – o que mostra que desde o inicio de meu mandato
nós já não tínhamos ingenuas ilusões com o Conselho (não muito ingenuas pelo menos).
Ressalto este ponto pois pessoalmente considero toda representação política impossível,
e mesmo se assim não o fosse, ainda a acharia absolutamente indesejável. A lógica e o
método político que os estudantes defenderam naquela assembleia não se referenciava
nos rituais da falsa democracia representativa, mas sim nos rituais da democracia direta –
não fomos escolhidos para sermos representantes, mas sim para sermos delegados (e
delegado obviamente não no sentido policial, mas sim no sentido político, mas sim
querendo designar uma pessoa para qual fora delegada uma determinada tarefa, no caso,
levar e defender as posições do ME no Conselho).
Segundo, que já naquele momento tínhamos como reivindicação do movimento
estudantil a extinção do Conselho departamental, e o reconhecimento da Plenária
departamental como o espaço deliberativo “oficial” da geografia – e não só o
reconhecimento desta, mas também fazer com que ela funcione pela lógica de um voto
por cabeça, isto é, pondo um fim na supervalorização da opinião dos trabalhadores
docentes, e transformando a Plenária numa especie de assembleia unificada do
departamento. Uma das provas de que esta não fora uma bandeira pontual entre os
estudantes da geografia é o fato desta ser novamente afirmada e exigida durante a greve
que estava para chegar – Plenária deliberativa com um voto por cabeça era uma das
reivindicações específicas do curso de geografia durante as lutas de fim de 2011.
Enfim, estes são os aspectos que gostaria de ressaltar do momento em que fui
escolhido como RD: 1 a inatividade da Plenária e a consequente “hegemonia” do
Conselho; 2 a proposta de sermos “delegados discentes”, não representantes discentes; 3
a proposta de tornar a Plenária o centro deliberativo do departamento.
III. A experiência na prática
Assumimos a representação discente por volta da época da assinatura do
deplorável convênio entre a PM a reitoria da USP. Todavia, os pontos de pauta debatidos
no Conselho passavam longe deste assunto, ou de qualquer outro assunto de relevância
política para o corpo estudantil – o que nos obrigava a tão somente acompanhar
bocejando as esvaziadas e desinteressantes reuniões. As pautas orbitavam por temas da
gestão burocrática do departamento, temas os quais nós estudantes não possuímos
A Geografia e o Calendário – Balanço crítico da representação discente – 75 / 182
acumulo algum, e que, entendo eu, nem há porque termos acumulo, já que o nosso
objetivo não deve ser o de formar burocratas estatais tampouco estatistas.
Mas, depois de iniciarmos as grandes mobilizações do ano passado – as ocupas e
a greve – tornou-se possível pautar questões políticas dentro do Conselho. Os três eixos
do movimento (fora rodas, fora PM e fim dos processos) acabaram por invadir as
entendiantes reuniões, junto com questões que diziam respeito ao próprio movimento,
como por exemplo a posição do departamento frente à greve estudantil. Entretanto, se
com a pressão da ação direta massiva conseguimos ao menos “colocar as cartas na
mesa”, não fora possível um debate real, tampouco um avanço ou vitória qualquer por
dentro das estruturas institucionais. As pautas dos estudantes da geografia que
levávamos para o Conselho – muitas das quais aprovadas em assembleias lotadas, e
depois referendadas e reiteradas em plenárias igualmente cheias – passavam
primeiramente por um “corredor polonês” de ataques por parte dos professores
reacionários e conservadores do departamento (que são quase a totalidade dos
professores de geografia física e cartografia, e uma parte considerável dos professores de
geografia humana, isto é, a maior parte do DGEO). Em segundo lugar, ou elas eram
esquartejadas até perdem por completo sua relevância e características originais, ou
eram encaminhadas para algum outro fórum, fazendo assim com que o DGEO não se
pronunciasse sobre o assunto – tática conhecida como “sabonetar”. Este foi o caminho
percorrido pelas propostas em geral no período de mobilização. A única questão que na
verdade sobreviveu a sabatinada do Conselho, fora a carta de posicionamento do DGEO
sobre os processos de eliminação de estudantes – e ainda assim bastante mutilada e
sequelada.
Passando o período de mobilização, as reuniões do DGEO retornaram a seu
tradicional marasmo e a seu obstinado e não declarado apolitismo.
IV. Crítica
Acredito que a partir desta experiência seja possível delimitar o que podemos
esperar e querer do Conselho; tanto quando estamos desmobilizados, quanto quando
estamos protagonizando ações diretas.
No primeiro caso, tudo que podemos esperar ter como resultados são: informações
acerca dos próximos movimentos por parte do poder institucionalizado e impressões
superficiais sobre o posicionamento político dos professores. Em outras palavras, temos
A Geografia e o Calendário – Balanço crítico da representação discente – 76 / 182
como conseguir informações sobre as táticas da reitoria, talvez inferir algumas das
estratégias desta, e observar mais ou menos como os docentes se colocam frente a estas
– quais se calam de maneira submissa perante a hierarquia acadêmica, quais ativamente
defendem e “militam” por esta hierarquia, e quais ousam e lutam para ter voz e espaço
afim de contestar esta.
Já na segunda situação, quando estamos mobilizados, é possível impormos que
pautas interessantes para o movimento estudantil da geografia entrem para a ordem do
dia. Contudo, ainda assim não é possível conseguirmos que estas sejam aprovadas – o
que ficara bastante evidente durante o último período de luta. Mas a mera ocupação do
Conselho por estas gera uma polarização política capaz de derrubar as máscaras dos
diferentes professores, revelando a nós o verdadeiro posicionamento político e os reais
interesses de cada um deles.
Esta limitação extrema que caracteriza as nossas possibilidades no Conselho do
DGEO não deve muito nos surpreender – já que obviamente não são possíveis mudanças
qualitativas e estruturais por dentro das estruturas de poder. Importante notar que esta
impotência na verdade não é nem mesmo uma questão exclusivamente nossa – não é
por termos uma representação absolutamente injusta e desigual no Conselho que não
conseguimos os avanços e mudanças que queremos através deste. Mesmo se
tivéssemos uma representação paritária ou proporcional, pouco conseguiríamos do
Conselho, isto tanto porque este espaço pouco pode além de encaminhar as questões
burocráticas do departamento, quanto porque este espaço deve necessariamente se
manter submisso as estruturas superiores de poder da universidade e do Estado.
Estas constatações deveriam nos levar a um saudável ceticismo quanto as
propostas de reforma nas estruturas de poder na universidade. Deveriam desfazer nossas
ingenuas ilusões quanto a possibilidade de conquistarmos uma real democracia na usp
através de reformas estatutárias. Faz-se necessário entendermos que Estado
democrático é uma contradição em termos, e que a democracia representativa é uma
falácia. Sendo assim, que é impossível uma universidade ser de fato democratizada
enquanto permanecer sendo estatal.
“[...] nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima, porque todo
A Geografia e o Calendário – Balanço crítico da representação discente – 77 / 182
Estado, mesmo o mais republicano e mais democrático, mesmo pseudopopular […] não é outra coisa, em sua essência, senão o governo das massas de cima para baixo, com uma minoria intelectual, e por isso mesmo privilegiada, dizendo compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo.” - Mikhail Bakunin – Estatismo e Anarquia.
V. Propostas – continuidades e rupturas
Das duas propostas apresentadas quando fui escolhido RD – a questão da
delegação, e a de defendermos a plenária como o espaço deliberativo do DGEO –
acredito que a primeira deva ser mantida inteiramente, e a segunda ser um pouco
repensada. Acredito ser essencial mantermos a subversão da lógica representativa na
nossa cadeira do Conselho. É importante que o estudante que desempenhe este papel
esteja submisso as posições do movimento estudantil da geografia tiradas em
assembleia, afim de que este não se descole da realidade do movimento e comece a
pautar e defender posições tiradas de sua própria cabeça ou da cabeça das direções de
algum partido ou organização – como antes já acontecera no DGEO. É importante
também mantermos nosso maduro ceticismo quanto as limitações deste espaço. Acredito
inclusive que podemos até mesmo avançar na lógica da delegação aumentando a
rotatividade desta função, tornando-a assim ainda mais impessoal. Já sobre a nossa
defesa da plenária como o espaço deliberativo, acredito que é possível amadurecermos
mais este debate. É interessante refletirmos sobre a questão de que, mesmo existindo
uma “tradição” do departamento de respeitar as decisões tiradas em plenária, no
momento em que esta aprova uma proposta com teor político um pouco mais contestativo
– por exemplo a paralisação de uma semana – a ortodoxia legalista é evocada, o poder
da plenária é questionado, e na sequência facilmente derrubado, como um frágil cenário
de cinema. Isto pois, o movimento estudantil, a única força que poderia ter “lastreado”
politicamente a plenária, manteve-se imóvel, decidiu pela abstenção. O que me leva a
reforçar a ideia de que de fato só podemos contar com a força de nossa própria
mobilização.
A Geografia e o Calendário – Balanço crítico da representação discente – 78 / 182
Assembleia, au togestão e democracia direta; eleição, heterogestão e democracia representativa
Por participar duma tendencia estudantil que possui como dois pilares a autogestão
e a democracia direta, considerei como importante elaborar um texto visando destrinchar
estes, além de construir uma defesa a eles e criticar a forma representativa de se fazer
política – a qual atualmente disputa espaço, poder e legitimidade com a direta no
movimento estudantil. Em outras palavras: como entendemos que a política deva ser
organizada e executada, porquê entendemos assim, e porquê somos contra a forma
representativa de se fazer política.
I.I Democracia direta e autogestão
Democracia direta é uma forma coletiva e horizontal de fazer política onde todos os
interessados podem participar efetivamente da construção desta. A democracia direta
usualmente possuí como espaço central a assembleia e seus rituais, sendo que esta é
caracterizada por ser realizada necessariamente no cara-a-cara, por todos os
participantes possuírem o mesmo direito a esporem suas posições e propostas, e, caso
não haja consenso, todos possuem o mesmo poder de voto. O que não significa que não
possa haver divisão das tarefas e funções: é normal e necessário para o funcionamento
da democracia direta que sejam escolhidos responsáveis (delegados) para desempenhar
tarefas específicas. Apesar disto, e convergente com as práticas de democracia direta,
defendemos também a ação direta como método de se fazer a luta política, ou seja,
entendemos tanto que a política deva ser organizada por todos os interessados, quanto
que as práticas de luta possibilitem o envolvimento direto destes. Se o ritual de
assembleia é a pedra angular da democracia direta, manifestações de rua, sabotagens,
greves e ocupações são os principais exemplos de ação direta de massas. A assembleia
até pode eventualmente tirar comunicados e moções em nome do movimento, contudo, a
sua função primordial é a de debater e deliberar ações.
A legitimidade da democracia direta não é advinda da quantidade de pessoas
presentes na assembleia, tampouco da representatividade. Aqueles que criticam – e
muitas vezes tentam até mesmo inviabilizar – uma assembleia com base no argumento
de que “não há quorum”, de que “ela está esvaziada” e, assim sendo, ela não teria
A Geografia e o Calendário – Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e
democracia representativa – 79 / 182
legitimidade para tomar decisões em nome dos estudantes, confundem a lógica da
democracia direta com a lógica da democracia representativa: uma assembleia não toma
(ou pelo menor não deveria tomar) decisões em nome dos estudantes, mas sim em nome
do movimento estudantil; uma assembleia não deve representar ninguém, mas sim
organizar a luta. A assembleia não se legitima pela lógica da representatividade, mas sim
por seus rituais, mas sim por ser um fórum aberto a todos interessados e que funciona de
maneira horizontal. Assim sendo, é extremamente absurdo propor um quorum mínimo
para o funcionamento da assembleia: trata-se geralmente duma manobra que visa
enfraquecer e atravancar a democracia direta. Isto não significa de maneira alguma que é
razoável, por exemplo, uma assembleia com meia dúzia de pessoas decidir por organizar
uma greve numa categoria de milhares, pois é simplesmente impossível que uma duzia
de braços executem esta deliberação. Este tipo de proposta fora da realidade acaba
servindo basicamente para desmoralizar a assembleia frente ao restante dos estudantes.
É possível também organizar instrumentos e entidades com base e legitimados na
lógica política da democracia direta, os quais são conhecidos como autogestionários. Isto
porque as decisões sobre a gestão destes são tomadas em assembleias, assim como os
responsáveis para encaminhá-las também são escolhidos nestas. Um bom exemplo de
instrumento organizacional autogestionário foi o comando de greve, enquanto que um de
entidade autogestionária são os CAs com estatutos (e prática e claro) autogestionários.
I.II Democracia indireta e heterogestão
Democracia representativa é uma forma de fazer política onde esta é organizada e
construída por um grupo, grupos e/ou indivíduos, eleitos a partir duma eleição por urna.
Está na base da legitimidade da democracia representativa a ideia de representação
política, ou seja, de que por intermédio da eleição é possível compor uma casta que
represente os interesses da maioria ou da totalidade das pessoas. Em momentos nos
quais se demanda maior legitimidade para o poder dos representantes, pode-se fazer
plebiscitos – os quais possuem basicamente a mesma lógica das eleições. Importante
notar que há uma cisão a priori em dois grupos quanto ao poder de participar
efetivamente da política: o grupo daqueles que constroem a política – os eleitos, e o grupo
daqueles que assistem passivamente ao espetáculo – os eleitores. Além disto, quem de
fato faz e garante a execução das deliberações políticas não costuma ser o grupos dos
A Geografia e o Calendário – Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e
democracia representativa – 80 / 182
eleitos, mas sim um corpo de funcionários e burocratas subordinados a este (caso dos
governos representativos).
Apesar de as vezes entidades de resistência que se pautam essencialmente pela
lógica representativa se utilizarem da ação direta como método de luta esporádico, a
principal e convergente forma de se fazer política na democracia representativa é –
obviamente – através da representação: emitir opiniões, juízos e posições em nome dos
representados.
Atualmente quase a totalidade das organizações políticas que detêm poder se
pautam e se legitimam essencialmente através da democracia representativa: seja o
moderno Estado-nação de origem capitalista e seus braços, sejam as entidades de
resistência das classes dominadas; as quais infelizmente também estão contaminadas e
corrompidas pela lógica dominante de representação.
II. Crítica
II.I A impossibilidade da representação (citado de “Democracias”)
“Para um parlamentar representar de fato os interesses de seus eleitores seria
necessário, no mínimo, que ele conhecesse com perfeição toda a gama de interesses e
opiniões políticas de cada um deles. Contudo, temos já aqui alguns agravantes
pesados... Os interesses e opiniões de cada um dos eleitores não são fixos, eles mudam
no tempo, mas também mudam de acordo com a situação. Isto é, o ser humano não é
uma individualidade monolítica, imutável, movida exclusivamente pela razão e
completamente autoconsciente de si própria – o ser humano não é o Robson Crusoé.
Não bastaria fazer uma conversa previa com estes eleitores tampouco um plebiscito
(mesmo que esta e este fossem possíveis), assim como não bastaria seguir um
programa político “a risca”.
No limite, para um parlamentar poder representar os interesses de todos os seus
eleitores, ele teria que ser de fato todos os seus eleitores. O que é, obviamente,
impossível.
Outro fator que aumenta a impossibilidade da representação é o fato dos
interesses dos eleitores dum único parlamentar serem divergentes. É comum ter, entre
os votantes dum mesmo político profissional, diferentes e contraditórias matizes
ideológicas, e, consequentemente, diferentes interesses políticos. Um exemplo
contemporâneo e tupiniquim é o dos eleitores do Partido (dito) dos Trabalhadores, que
A Geografia e o Calendário – Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e
democracia representativa – 81 / 182
vão de bancários a banqueiros, de miseráveis a milionários, de feministas a machistas,
de umbandistas a crentes e a ateus. Como, por exemplo, um parlamentar pode
representar – espelhar – os interesses de todos estes grupos na questão do aborto?
Um segundo problema relacionado, que fica visível ao olharmos a questão da
representatividade a nível do parlamento como um todo (não somente para um
parlamentar e seus eleitores), é o da representação dos interesses do povo. Mas como
representar os interesses desta totalidade se ela é, na verdade, divida em diferentes
classes econômicas antagônicas entre si? Como representar os interesses dos
trabalhadores sem terra – que querem expropriar e redistribuir as propriedades agrícolas
– e os interesses dos barões latifundiários – que querem manter seus reinos e privilégios
– simultaneamente?”
II.II A dupla “liberdade” política
“Votar é dar-se um senhor” Élisée Reclus
“não sentis o perigo de dizer ao povo (…) que seu dever é pôr
uma vez de quatro em quatro anos, um minuto a cada mil e quinhentos
dias, religiosamente, tranquilamente, sem esforço e sem perigo, uma
cédula numa urna? A batalha exige outra coisa bem diferente desse
gesto periódico, distante. Exige uma atividade constante” Sébastien
Faure
Assim como com o fim do modo feudal de produção e com o advento do
capitalismo se deu um processo de dupla liberdade na esfera econômica de poder – dum
lado a liberdade negativa do trabalhador livre dos meios de produção de vender sua força
de trabalho; do outro a liberdade positiva do capitalista livre para gerir despoticamente a
produção e explorar a força de trabalho – com o fim do regime político feudal e com o
advento dos modernos Estados nações democráticos se deu um processo de dupla
liberdade na esfera política – dum lado a liberdade negativa do eleitor livre dos “meios de
produção” política de “vender” seu voto, e do outro a liberdade positiva da camarilha dos
eleitos livre para gerir o Estado e dominar politicamente o povo.
Esta “dupla liberdade” gera por um lado alienação, apatia, desconhecimento e
irresponsabilidade, frente aos processos políticos: a ampla massa fica aparte das
deliberações – meramente as recebe passivamente – não entende o funcionamento e as
possibilidades da política, e muitas vezes se coloca numa confortável – porém tosca –
posição apolítica, criticando moralmente as deliberações tomadas pelos profissionais –
confundindo assim uma falha estrutural da maneira da classe dominante de se fazer
A Geografia e o Calendário – Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e
democracia representativa – 82 / 182
política, com uma falha moral daqueles que atuam neste palco: não compreendem que o
verdadeiro problema é o trono, não o rei.
Esta mesma “dupla liberdade” gera por outro lado uma casta supervalorizada,
sobreresponsabilizada, profissionalizada e necessariamente hipócrita, frente aos mesmos
processos e estruturas políticas. O restrito bando dos eleitos detém “superpoderes” nas
decisões governamentais, o que acarreta “superresponsabilidades” na quase irrestrita
rede da esfera política. Por melhores que os macacos humanos escolhidos para estes
cargos sejam, eles não conseguirão deliberar com qualidade sobre todas as questões
políticas, e ao mesmo tempo responder as alienadas expectativas das massas excluídas
destas – as quais devido este afastamento, este apartheid político, são incapazes de
compreender de fato a política dominante e sua funcionalidade.
Interessante notar que os problemas referentes a “dupla liberdade” causados pela
representação são encontrados integralmente em entidades de resistência corrompidas
por este método dominante e segregacionista de se fazer política: basta olharmos para os
CAs e DCE da USP. Importante também perceber como a representação é uma arma
extremamente eficaz para gerar imobilidade e passividade nestas entidades – o que casa
perfeitamente com os interesses dos setores cooptados e/ou reformistas.
II.III Concepção de indivíduo e sociedade/coletividade por detrás das
democracias (também citado de “democracias”)
1. Democracia representativa
“Qual sentido é expresso no termo “liberdade política”, tão usual neste sistema
de governo? Sabemos que com ele não se quer dizer liberdade de fazer política
institucionalizada, isto é, de participar com voz e voto nas decisões políticas da
sociedade, já que este poder é restrito ao grupo social dos parlamentares. O que se quer
dizer, então, com este termo? Que liberdade é essa?
Trata-se da possibilidade de emitir opiniões políticas dentro dos limites impostos
pela lei, isto é, pelo parlamento (esta ressalva é especialmente importante para nós que
vivemos sobre o domínio da oligarquia dos eleitos do Estado brasileiro, que por tantas
vezes no passado próximo perseguiu pessoas devido suas opiniões); e da possibilidade
de participar do pleito eleitoral. Ou seja, é uma qualidade estritamente individual, e
absolutamente concedida dentro das paredes construídas numa instancia outra, a do
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parlamento. Que tipo de liberdade é essa?
Trata-se do conceito de liberdade burguês-iluminista que tem por trás uma
concepção de ser humano a-histórico como um indivíduo com motivações estritamente
racionais, absolutamente indivisível e autoconsciente, e completamente apartado da
coletividade. Formulação a qual normalmente é ilustrada pela mítica figura do Robson
Crusoé, e que traz consigo a ideia de sociedade como uma mera soma destes Robsons,
no limite chega-se a repisada frase de Margaret Tatcher: “Não existe essa coisa de
sociedade, apenas indivíduos e as suas famílias". Somente assim é possível
compreender em que sentido a soma dos votos de todos os eleitores expressa a
“vontade popular”, e porque isto é entendido como liberdade política.
Não por acaso é possível traçar paralelos entre a ideia de liberdade econômica
no capitalismo e a de liberdade política na oligarquia dos eleitos: ambas compartilham a
mesma concepção de ser humano, e são manifestações da mesma ideologia em
aspectos diferentes da sociedade. Assim como nesta ideologia a liberdade política é –
como antes disse – uma qualidade estritamente individual, e absolutamente concedida
dentro das paredes construídas numa instancia outra, e que se expressa de fato no ato
ritualístico também individual do voto e da possibilidade de emitir opiniões políticas, não
uma característica da coletividade onde a política é gerida e construída
participativamente por meio dum ritual específico; a liberdade econômica também é uma
qualidade estritamente individual e absolutamente concedida dentro das paredes
construídas numa instancia outra, que se expressa no ato individual do consumo de
mercadorias e na possibilidade de as criticar, não uma característica da coletividade
onde a economia é gerida participativamente através dum ritual específico.”
2. Democracia direta (igualmente citado de “Democracias)
“Já por detrás da proposta de democracia está uma concepção de política como
algo estritamente coletivo e frequente. A construção desta não se dá pela soma das
opiniões individuais, pela soma dos votos, o resultado do método político democrático é
algo novo e essencialmente coletivo, despersonalizado. Não se dá num plebiscito, mas
sim através dum ritual de discussão coletiva que valoriza o diálogo, de forma a se chegar
a uma proposta comum, a um consenso. E caso este não seja possível, usa-se o voto
como instrumento de deliberação. Entretanto, é importante frisar que democrático se
refere ao processo como um todo – o qual necessariamente tem caráter de permanência
no tempo – de forma nenhuma à votação pontual exclusivamente. Neste sentido, um
plebiscito nada tem a ver com a concepção de política democrática.
Enquanto a oligarquia dos eleitos tem como pilar uma visão ideológica de ser
humano “Robson Crusoé” e de sociedade como a mera soma aritmética destes, a
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democracia se apoia numa concepção de humano como uma criatura imanentemente
coletiva – não se pensa este separado da coletividade a qual ele pertence. Desta
maneira, a noção de liberdade é igualmente coletiva, onde a liberdade do outro no lugar
de ser uma barreira a minha, no lugar da minha liberdade terminar onde começa a do
outro, “a minha liberdade é estendida ao infinito ao se encontrar com a do outro” . Isto
devido ao fato de se compreender que somente dentro da organização coletiva da
sociedade é possível se falar em liberdade, a coletividade é vista como a mãe – a que dá
a luz e amamenta – da liberdade. A partir daí, é possível compreender o que Bakunin
quer dizer ao escrever que “enquanto existir um único ser humano escravizado, a minha
liberdade não será completa”.
Trata-se, então, duma metodologia política vinculada necessariamente a um
determinado agrupamento orgânico – não a um agrupamento fictício formada pela soma
de “Robsons”(...)”
III Caso e conjuntura do ME da USP
III.I Um “frankenstein” político
Depois desta simplória explanação é possível compreender a lógica do ME da USP
como um amalgama contraditório entre a lógica representativa dominante e a direta: as
entidades se legitimam essencialmente pela lógica representativa e pelas urnas, todavia o
ME ainda muito depende das assembleias e da ação direta para ter eficácia nas lutas
políticas (o que é óbvio se lermos a luta dos estudantes como de resistência e
potencialmente antisistêmica [ou ao menos antigovernista], e sua força com base
principalmente nas ações diretas massivas – uma ação vale mais do que mil discursos).
Esta contradição é reforçada ao lembrarmos que a democracia eleitoral parte duma
concepção abstrata e falsa de coletivo, enquanto a democracia direta se pauta numa
coletividade concreta: enquanto as urnas veem erroneamente a soma atomizada dos
indivíduos que estudam numa mesma faculdade como um coletivo – mesmo que somente
na teoria, mesmo que estes nunca levantem de suas respectivas carteiras, mesmo que
estes nunca construam decisões e ações juntos – e os convida/intima a escolhes/eleger
um único setor organizado em chapa do ME como dirigente; a assembleia é composta
pelos setores em movimento, formando uma coletividade real – que decide, atua e luta
junto – aglutinando os grupos e indivíduos que de fato fazem a política estudantil. Isto é, a
partir dum prisma libertário (ou ao menos combativo), o movimento é formado por aqueles
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que se movimentam, e o que as eleições fazem é dividir e hierarquizar estes: no lugar de
todos atuarem em pé de igualdade na construção coletiva da luta estudantil, é eleito um
único grupelho para a dirigir. O que – caso entendermos que a força do movimento dos
estudantes vêm basicamente do grande número de pessoas que o compõem – têm como
imprescindível resultado o enfraquecimento da luta.
Assim sendo, é um equívoco ler a proposta de democracia direta como
vanguardista por defender que aqueles que se movimentem deliberem sobre os rumos e
destinos da luta, enquanto a proposta de democracia indireta possibilitaria a participação
de todos. Isto basicamente porque a participação na democracia dos eleitos é uma
falácia: permitir que todos escolham quem irá fazer política em substituição, em nome da
coletividade, não é participação – muito pelo contrário, é um ato de autoalienação política
– é abrir mão da participação e da responsabilidade política em favor dum circulo restrito
de dirigentes. Nada mais justo que aqueles que compõem e se responsabilizam de fato
pelas decisões políticas do movimento sejam os que construam os rumos deste.
III.II A proposta rizomática de se fazer política
A proposta da tendência libertária e autônoma Rizoma para o ME USPiano, uma
proposta que se inspira na experiência histórica da práxis anarquista na luta de classes, é
de organizarmos este com base e legitimado exclusivamente através da lógica da
democracia direta, da lógica da assembleia. As pessoas que compõem o Rizoma não
possuem interesse em falar em nome dos estudantes, tampouco em os dirigir. O nosso
interesse é em contribuir na auto-organização e na autogestão do movimento,
independentemente e preferencialmente sem depender em nada da legitimidade das
urnas. Nosso interesse é em participar e construir a política de fato, promovendo e
fomentando ao máximo a ação direta de massas como método de luta.
Temos a “ganancia” de incentivar um ME que seja forte e ativo, e que não realize
nem dependa de eleições e de urnas para afirmar esta força e legitimidade perante os
setores dominantes da educação classista e disciplinar, mas também perante ao próprio
conjunto dos estudantes.
Viva a autogestão!
Viva o poder estudantil!
Viva a luta de classes!
A Geografia e o Calendário – Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e
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Nomoespacialização, normalização social e sociedade de classes: o Anjo Exterminador e o projeto de poder da modernidade
Professor Valverde
1° Semestre de 2011, geografia noturna
Hugo Scabello de Mello – 5383056
A escolha e sua justificativa, além dum pouco de biografia
Escolhi para discutir neste trabalho o filme L’ange Exterminateur (O Anjo
Exterminador) dirigido por Luiz Buñuel e lançado em 1962. Apresentarei uma
interpretação do filme que possui como pano de fundo tanto conceitos e construções
marxistas, mas que muitas vezes são comuns a outras correntes socialistas, como por
exemplo, a luta de classes e a exploração econômica (estes podem ser encontrados em
Proudhon, Bakunin, ou mesmo em Blanqui); quanto conceitos e construções mais
tipicamente libertárias – com este termo querendo me referir tanto a autores da corrente
anarquista do socialismo (sejam eles clássicos ou atuais), quanto a autores de filosofia
contemporânea que criticam, desconstroem, às instituições disciplinares e os discursos
que a legitimam – mas que até muitas vezes também são comuns a autores do marxismo,
como por exemplo, a dominação, a subordinação ideológica e a resistência. Por fim,
pretendo relacionar criticamente a noção de nomoespaço, ou melhor, de
nomoespacialização com esta interpretação.
Apesar de acatar a amplamente difundida tese contemporânea de que “o autor esta
morto” – o que significa explicitar que a interpretação que farei deste filme de maneira
alguma se pretende a ser exclusiva, e também não se preocupa em absoluto em
equivaler à interpretação que supostamente o autor tinha imaginado ao elaborar a obra –
acredito ser interessante dar uma rápida pincelada sobre alguns aspectos da biografia de
Luiz Buñuel (o que, entretanto e ironicamente, parece reforçar a interpretação que farei, já
que há proximidade entre o pano de fundo da interpretação e as ideias do diretor).
Este é conterrâneo e contemporâneo de artistas como Pablo Picasso, Garcia Lorca
e Salvador Dali – uma geração de artistas espanhóis ainda não superada – e ainda jovem
se revela, com o curta o Cão Andaluz, como expoente do movimento surrealista no
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Exterminador e o projeto de poder da modernidade – 87 / 182
cinema. Outros filmes que merecem destaque desta primeira fase de Buñuel são: o L'age
dor (“censurado nos cinemas franceses depois de poucas semanas de exibição devido
seu conteúdo anárquico”) e o Las huerdes, tierra sin pan – um cru retrato da Espanha
agrícola e miserável. Interessante lembrar que muitos artistas das diferentes facetas do
movimento modernista se engajaram nos embates políticos de sua época: os futuristas
italianos, por exemplo, em sua maioria aderiram ao fascismo de Mussolini; já uma boa
parcela do movimento surrealista aproximou-se das lutas socialistas – ou mesmo mais
especificamente das anarquistas (ver Surrealismo e Anarquismo). Caso este que fora o
de Luiz Buñuel – mas não o de Dali, que aderirá ao fascismo franquista – motivo pelo qual
fora considerado inimigo nacional durante todo o reinado de Franco na Espanha, e
obrigado ao exílio.
Depois dum breve período no Estados Unidos (onde ele escreve roteiros sobre a
Guerra Civil Espanhola que nunca foram filmados), o cineasta radica-se no México. Aí
inicia-se sua segunda fase: onde a produção é grande, diversa e instável, entretanto
alguns filmes muito bons foram rodados, como El (“O Alucinado”) e los olvidados (“os
esquecidos”).
A terceira e última fase da obra do velho surrealista e anticapitalista espanhol se dá
na década de 60 com seu retorno a Europa, e se inicia com a filmagem do muito polêmico
“Viridiana”. Além deste, muitos de seus principais filmes são filmados nesta época: “O
Discreto Charme da Burguesia”, “Esse Obscuro Objeto de Desejo” “O Fantasma da
Liberdade”, e também “O Anjo Exterminador”, que, como dantes já escrevi, é o que
analisarei.
Alongada sinopse:
O filme Anjo Exterminador (L’ange Exterminateur no original, lançado em 1962) nos
conta a história de um surreal jantar burguês. Neste, diversos gentlemen da alta
sociedade, acompanhados de suas damas, se reúnem numa imensa e luxuosa mansão –
que poderíamos chamar de colonial ou quinhentista aqui no Brasil – para degustarem
dum opulento manjar, debaterem desde as últimas e incontornáveis polêmicas políticas,
às antigas e irrelevantes futilidades literárias, além de apreciar uma requintada música
clássica. Claro que sem nunca perder de vista as eternamente consagradas regras de
convivência e moralidade que a etiqueta e as boas maneiras cristãs a todos impõem –
A Geografia e o Calendário – Nomoespacialização, normalização social e sociedade de classes: o Anjo
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mas com especial afinco às pessoas de tal posição social. Todavia, já no iniciar da festa,
protocolos são quebrados, fazendo com que o inesperado ruidosamente venha sentar à
mesa: a massa dos empregados que servem à casa – por oculto motivo – abandona o
trabalho, restando talvez somente um único mordomo.
Apesar da continuidade do jantar ser mantida, a partir deste estranho episódio a
abalada normalidade é colocada numa inexorável espiral degenerante: aos poucos e
quase imperceptivelmente as boas maneiras vão se revelando como hipócritas máscaras
sociais. Paralelamente – mas de maneira alguma independentemente – a este se dá outra
situação surrealista: estes nobres senhores, senhoras e senhoritas, sem exceção – por
um também oculto motivo – se recusam a voltar para seus lares. O jantar se estende
indefinidamente pelo tempo, enquanto o dia e a noite, então, se fundem num pasmante
mistério.
Contudo e paradoxalmente, mesmo com novas investidas do caos e do absurdo à
casa – como por exemplo a inexplicável aparição de animais selvagens na cozinha – a
neblina, o smog, que a envolve aos poucos vai se dissolvendo para revelar a verdadeira e
material realidade: o todo que se forma a partir do belo discurso, da rigorosa moralidade,
da impecável etiqueta, da disciplinada e obstinada obediência a hierarquia e a tradição,
da imaculada fé, da prepotente intelectualidade, da aristocrática cultura etc, não é, senão,
um corpo ideológico de legitimação e prestidigitação da opressão, da exploração e da
dominação, perpetuadas pelo sistema capitalista em sua totalidade. A mansão – esta que
até os últimos segundos do filme é o único cenário exibido – se revela como o espaço da
classe dominante, para então, na última e curtíssima cena, o espaço das classes
dominadas ser revelado, com toda a crueldade e violência das relações classistas.
Desnuda-se a simbologia do Anjo Exterminador: aquele que possibilita a segurança
e a existência da casa burguesa; aquele que reprime, explora, controla e domina a casa
trabalhadora, enquanto aqueles degustam jantares, apreciam cultura e debatem idéias. O
Anjo Exterminador é o conjunto de instituições que efetivam e perpetuam a cisão classista
da sociedade moderna. O Anjo Exterminador não é nada senão o próprio capitalismo.
Nomoespacialização, normalização social e sociedade de classes: o
Anjo Exterminador e o projeto de poder da modernidade
Acredito que partindo desta interpretação (abertamente motivada pelos discursos
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citados na primeira parte deste texto) torna-se possível fazer uma crítica a ideia de
nomoespaço (talvez também a de genoespaço, porém, quero evitar a megalomania num
trabalho de graduação) sem cair numa superficialidade, contida no “entender a lei e direito
no sentido dos dez mandamentos, enquanto mandamentos e proibições, cujo único
sentido consiste em que eles exigem obediência(...)” (Arendt, H. O que é política?. Todas
as citações desta parte estão no livro A Condição Urbana). Isto é, sem cair na
ingenuidade de ler a lei como uma mera barreira a liberdade humana – a velha postura
individualista-liberal. O que ouso propor é um discurso que aceite que “a lei é
circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem, dentro da qual nasce então o
espaço da verdadeira coisa política”, ou seja, um discurso que aceite que a liberdade só
existe na política, no coletivo, mas que não se esqueça do aspecto histórico que envolve
toda sociedade humana, e que hoje resulta na cisão da sociedade em classes.
Por um lado, o filme nos faz pensar que os esforços de nomoespacialização e de
normalização dos espaços humanos e de suas condutas respectivamente, possuem, por
detrás de toda esta complicada malha de belos discursos muitas vezes cientificamente e
moralmente legitimados, intima relação com a manutenção da sociedade de classes e
suas instituições: a casa da burguesia tece discursos para legitimar o Anjo Exterminador,
enquanto este garante a segurança e a situação privilegiada; ou ainda melhor: a casa da
burguesia é parte integrante do todo que simboliza o Anjo Exterminador. Possibilita,
assim, uma visão historicizada e crítica frente ao sistema capitalista e seus discursos.
Mesmo se aceitarmos como verdade a ideia de que “a obediência à lei prescrita por nós
mesmos é liberdade” (Rosseau, Jean-jacques. Discour sur l'origine et les fondements e
l'inegalité parmi les hommes), esta perspectiva nos lembra que hoje as leis são
prescritas, de maneira geral, pelas classes dominantes para serem executadas nas
classes dominadas – mesmo que estas muitas vezes tenham que recorrer a justificativas
aparentemente éticas (“existe ética para além da classe?” questionar-me-ia um colega)
para as legitimarem – o que resulta numa liberdade torpe e opressiva a insignificante elite,
a custo duma completa tirania à massiva plebe. Chega-se a constatação de que o
processo de nomoespacialização e normalização contemporâneo é um processo
classista, não é de maneira alguma neutro.
Todavia, se também aceitamos a tese de que uma pessoa sozinha – um indivíduo –
sem dúvida está condenado ao despotismo da natureza, de que só faz sentido entender a
liberdade como um poder-fazer positivo, e, sendo assim, que a liberdade só é possível na
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coletividade humana – como de certa maneira a entende Hanna Arendt em O que é a
política?, mas também Mikhail Bakunin, como expresso na famosa frase “a minha
liberdade é estendida ao infinito ao se encontrar com a do outro” – faz-se imprescindível,
então, para a emancipação (a conquista do pão e da liberdade) das classes dominadas
que estas criem e fortaleçam suas próprias formas de organização social, incluindo suas
próprias leis, agregando poder político e construindo assim espaços de liberdade em
franca contradição com os espaços da sociedade capitalista. Isto porque: 1, as
instituições (o todo que forma o Anjo Exterminador) não são neutras, servem
essencialmente para a manutenção da dominação e daí se alimentam, o que torna
impossível o seu uso num projeto que não vise a dominação duma classe(s) sobre
outra(s) – a forma possuí relação com o conteúdo; 2, a liberdade é a própria construção
coletiva e ativa das regras de funcionamento dum determinado agrupamento humano
num determinado espaço físico. Desta perspectiva tanto a proposta de tomada do poder
concentrado teoricamente no Estado, quanto a de derrubada deste e eliminação violenta
de membros das classes dominantes, tornam-se inúteis.
O filme acaba, então, por nos trazer esta conclusão: caso ainda queiramos nutrir a
esperança de vermos o fim da sociedade de classes capitalista – sem vermos a ascensão
duma outra sociedade igualmente classista – este é o caminho que temos. Um caminho
ainda e para sempre incompleto, já que este se faz durante o próprio caminhar. Caminho
atualmente conhecido como o da construção do Poder Popular.
Filmes e livros:
Arendt, Hanna: O que é a política?;
Buñuel, Luiz: O Anjo Exterminador;
Buñuel, Luiz: O Alucinado;
Correa, Felipe: Criar um Povo Forte (excertos);
Gomes, Paulo Cesar da Costa Gomes: A Condição Urbana (parte)
Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou, Legrand (organização Plínio
Augusto Coelho): Surrealismo e Anarquismo;
López, Felipe López: Poder e Domínio (excertos)
As informações biográficas foram retiradas dos extras do DVD de “O Alucinado”.
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Democracias
0. Motivação
A ideia de escrever este texto simultaneamente revelou-se para mim a partir de
duas situações:
1. Na minha primeira participação na plenária departamental da geografia USP
(vale a pena registrar que, até onde sei, esta é a única da universidade onde todos os
estudantes podem participar e possuem direito a voz e voto, a regra é somente o
representante discente possuir estes poderes) tivemos como um dos pontos de pauta a
questão da eleição duma nova dupla de pessoas para desempenharem a função de
coordenador e de vice coordenador de plenária. Houveram duas propostas de como
realizar este pleito:
1. Divulgar este no prédio, e instalar uma urna para que toda a comunidade da
geografia possa votar;
2. Divulgar a plenária e realizar este na própria. Os candidatos se apresentariam e
debateriam suas propostas e ideias. Por fim, caso não houvesse consenso
sobre qual dupla deva suceder, esta seria escolhida através do voto dos
presentes.
Apesar desta discussão na prática ser irrelevante – pois a função desta dupla é
basicamente a de convocar as reuniões, e fazer o papel de mesa e de redator de ata, isto
é, poderíamos inclusive abolir estes cargos, e a cada reunião elegermos uma pessoa pra
fazer a ata, e outra para a mesa – ela esconde por detrás duas concepções distintas do
que seria democracia;
2. Dentro do coletivo sindical autônomo Bancários de Base temos acordado que a
nossa participação em eleições sindicais é uma questão tática. Assim sendo, toda vez que
se aproxima uma disputa por aparato começamos por debater se participaremos
diretamente desta ou não. Hoje, quando começo esta escrita, três processos eleitorais
estão acontecendo ou para acontecer na categoria bancária da nossa região: o da
APCEF/SP (Associação de Pessoal da Caixa Econômica Federal / São Paulo), o da
FENAE (Federação Nacional das Associações de Empregados) e o SEEB-SP (Sindicato
dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de São Paulo, Osasco e Região).
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Decidimos participar da chapa do primeiro. Na do segundo não discutimos muito bem e
acabamos comendo bola e ficando de fora. Já a participação no terceiro processo ainda
não fora completamente discutida, nem encaminhada.
A relação deste texto com a segunda situação é um pouco mais indireta, mas a
tange ao questionar a concepção de democracia desses processos, e,
consequentemente, dessas organizações;
Um terceiro fator que influenciou-me na construção deste texto foram minhas
recentes leituras de alguns textos de Morray Bookchin acerca da discussão de
municipalismo libertário.
I. Definição: as muitas democracias
Vejo como único ponto de partida possível para uma discussão conceitual a
respeito de democracia definir a que me refiro por este termo. Ainda mais nesta confusa e
movediça época pós-moderna onde alguns denominam uma invasão brutal seguida por
amplos massacres, saques de recursos naturais e estabelecimento dum governo títere –
tudo isto recheado por lucros descomunais - de “levar a democracia à um país”.
Democracia vem do grego, demo significando “povo” e cracia “governo”, sendo
assim, democracia designaria o governo exercido pelo povo. Apesar deste termo parecer
autoexplicativo a ponto de não suscitar muitas dúvidas sobre o que seria uma
democracia, é possível identificarmos pelo menos dois campos distintos dentro desta,
expressando duas compreensões distintas e acarretando dois processos metodológicos –
dois “rituais democráticos” – igualmente distintos. Sendo o primeiro designado pelo
adjetivo representativa, e o segundo designado, em contraposição a este, pelo adjetivo
direta.
Vejamos o que esta por detrás destas duas formulações d”o governo exercido pelo
povo”.
I.I Democracia representativa
Democracia representativa é o tipo específico de “governo exercido pelo povo”
indiretamente. Isto é, o governo é exercido pelo povo por mediação de seus
representantes eleitos através do voto. Fica claro que a fundamentação teórica deste tipo
A Geografia e o Calendário – Democracias – 93 / 182
de governo tem como premissa básica para legitimá-la a validade da ideia de
representação; isto é, que de fato estes representantes do povo o representam e
defendem seus interesses. No limite este conceito nos diz que o parlamento é um espelho
em menor escala de toda a população contida num determinado território dominado por
um determinado Estado, ou melhor, de todos eleitores dispostos a participarem do pleito
parlamentar.
Temos como exemplos de democracia representativa a maior parte dos governos
contemporâneos; de Cuba ao Brasil, da Venezuela à França, da Africa do Sul ao Japão.
Esta proposta de democracia divide o povo quanto ao seu papel politico em três:
1.Parlamentares (políticos profissionais)
2.Eleitores
3.Não eleitores
Gostaria de tecer algumas considerações sobre esta divisão:
1. Ela se estabelece em círculos concêntricos
Uma observação talvez óbvia, todavia, acredito que necessária: o grupo 1. está
contido no 2., mas também é possível entender, por sua vez, o grupo 2 como contido no
grupo 3. Com isto quero dizer que os poderes políticos institucionalizados que os não
eleitores possuem, são propriedade também dos eleitores e dos parlamentares; e que os
poderes dos eleitores, por sua vez, são possuídos também pelos parlamentares.
2. Ela hierarquiza a população quanto a responsabilidade e o poder político
Os parlamentares possuem a responsabilidade e o poder de falarem e tomarem
decisões políticas em nome dos interesses dos eleitores. Já o poder destes está em
escolher – claro que dentre os elegíveis, os candidatos – quem irá representá-lo, quem irá
tomar as decisões políticas em seu nome. Por fim, o terceiro grupo político duma
democracia representativa não possui poder político algum.
Bom lembrar que estou falando em termos de poder político institucional, isto é,
mesmo pensando numa situação na qual a legislação do Estado proíba qualquer tipo de
manifestação e organização política não institucionalizada, ainda assim é possível que
pessoas dentro de qualquer um desses grupos se organizem e imponham algumas
A Geografia e o Calendário – Democracias – 94 / 182
posições políticas através de ação direta (protestos, ocupações, greves, sabotagem,
rebeliões, insurreições etc).
3. A cada grupo cabe um ritual político específico
Ao grupo 3 normalmente não cabe ritual político algum, o máximo que os não
eleitores podem fazer, dentro da política institucionalizada, é assistir passivamente as
duas outras camadas de rituais políticos.
Ao segundo grupo cabe o ritual pontual de escolher periodicamente através do voto
a composição do terceiro grupo. Opcionalmente os eleitores podem acompanhar
passivamente os debates e embates entre os candidatos ao terceiro agrupamento e
compará-los, ou, até mesmo, fazer campanha para alguns destes. Evito chamar este
grupo político de cidadãos (como é comum acontecer) a fim de evitar uma confusão com
o grupo deste nome presente na democracia direta, já que as características destes são
absolutamente distintas.
Já ao grupo parlamentar cabe o ritual da assembleia, o qual possuí dois momentos:
um primeiro no qual as propostas são formuladas, apresentadas e debatidas, onde todos
do agrupamento possuem direito a opinarem, direito a voz; e um segundo momento no
qual estas propostas são encaminhadas, consensualmente, ou, caso este não seja
possível, através do voto paritário.
I.II Democracia direta
Cabe aqui colocar que o complemento “direta” foi adicionado mais recentemente
para se referir aquilo que antigamente era conhecido tão somente como democracia (fato
que nada importa neste debate). Em contraposição a democracia representativa, este
segundo tipo é aquele onde o “governo do povo” é exercido diretamente por este.
Entretanto, a democracia direta também dividi o povo em grupos políticos macros,
contudo de maneira mais simples, binária: os cidadãos – aqueles que possuem direitos
políticos plenos e podem participar do ritual democrático – e os não cidadãos – que não
possuem direitos políticos.
Desta maneira, temos, obviamente, somente um tipo específico de ritual político:
aquele praticado pelos cidadãos. Este consiste na construção coletiva da política por
intermédio duma assembleia: todos os cidadãos podem formular, apresentar e debater
A Geografia e o Calendário – Democracias – 95 / 182
propostas. Tendo, usualmente, como método de deliberação o voto, caso durante o
embate não se estabeleça o consenso.
O principal exemplo que temos de democracia direta é o da antiguidade grega,
tendo como caso mais emblemático o ateniense. Contudo, temos na modernidade alguns
exemplos e tentativas de estabelecimentos de regimes que podem ser interpretados como
dentro desta categoria, ressalvada as peculiaridades de cada um: a Comuna de Paris, os
Sovietes livres durante a revolução russa (aqui incluída as terras coletivizadas da Ucrânia
com apoio das milícias lideradas pelo camponês Nestor Makhno), as coletividades
autogeridas da Revolução Espanhola, além das tentativas anarquistas de
estabelecimento de comunidades alternativas (como na Colonia Cecilia). As
contemporâneas experiências de municipalismo libertário também se inspiram nesta
concepção política. Outras organizações atuais que possuem uma intima relação com o
conceito de democracia direta são os coletivos autogestionários; sejam eles
especificamente políticos (como as organizações políticas anarquistas), sejam eles
relacionados a uma determinada questão (como coletivos de mídia independente, rádios
livres e outros coletivos de cultura, coletivos sindicais autogeridos ou coletivos feministas),
sejam eles de caráter econômico (como os EES e as cooperativas), sejam eles centros de
cultura social, ou tenham eles caráter de movimento social (como o Movimento Passe
Livre).
Uma diferença fundamental entre a democracia direta grega e as experiências
modernas é o fato de que na primeira o grupo dos não eleitores equivale à classe
econômica dos escravos (esqueço aqui das mulheres assim como os gregos a
esqueciam), e nas segundas, não existem classes econômicas (ou pelo menos tenta-se).
I.III Considerações secundárias
Existem diversas características que podem variar de democracia para democracia,
independente do tipo. Dois exemplos são: o voto secreto ou aberto e os critérios que
definem os grupos políticos (eleitores e não eleitores, cidadãos e não cidadãos). Este
segundo ponto por exemplo pode ter como critério a idade, a renda, a origem familiar, o
sexo, entre outros. Contudo, como estas características não são as que diferenciam os
dois tipos de democracia, não vejo necessidade de as discutir por ora. Mas, um
comentário que talvez aqui caiba é que o que faz um governo ser classificado como
democrático não é a proporção do povo que participa dos rituais políticos, mas sim as
A Geografia e o Calendário – Democracias – 96 / 182
características deste ritual.
II. Representação
Já que basicamente o que diferencia os dois tipos de regime que chamamos de
democracia é a questão da representação, a questão do povo exercer o poder político
diretamente ou através de representantes, é importante, então, discutirmos este conceito
afim de aprofundarmos nossa discussão comparativa acerca das democracias.
II.I Crítica a representação
"Se começássemos a dizer claramente que a
democracia é uma piada, um engano, uma
fachada, uma falácia e uma mentira, talvez
pudéssemos nos entender melhor.´
Zé Saramago
É fácil chegarmos as mesmas conclusões de Saramago ao deitarmos um olhar
minimamente mais apurado sobre o conceito de representação. A própria realidade
exaustivamente nos dá casos onde podemos supor, com bastante segurança, que se o
governo fosse exercido pelo povo diretamente teríamos como resultado decisões politicas
muito diferentes. Em outras palavras, que os interesses dos eleitores não são de fato
representados pelos parlamentares, que o parlamento não é uma “miniatura” do povo.
Alguns exemplos recentes: os pacotes de medidas antipopulares impostas por diversos
governos, mas mais emblematicamente o caso da Grécia e da França, onde milhões de
pessoas participaram de ações direta de resistência a estes; a decisão do governo inglês
de declarar guerra ao Iraque, a revelia da maior parte da população que era contra esta
agressão; por último o absurdo aumento dos rendimentos dos parlamentares, que causou
uma indignação generalizada na população contida dentro das terras do Brasil – apesar
de não ter as levado a ações diretas massivas. Temos aqui a “demolidora crítica dos
fatos”.
Entretanto, podemos fazer a crítica à representativa por vias mais teóricas também:
A Geografia e o Calendário – Democracias – 97 / 182
1. A impossibilidade da representação
Para um parlamentar representar de fato os interesses de seus eleitores seria
necessário, no mínimo, que ele conhecesse com perfeição toda a gama de interesses e
opiniões políticas de cada um deles. O que, talvez, já fosse impossível dada a grande
quantidade de eleitores. Além disso, contudo, temos já aqui alguns agravantes pesados...
Os interesses e opiniões de cada um dos eleitores não são fixos, eles mudam no tempo,
mas também mudam de acordo com a situação. Isto é, o ser humano não é uma
individualidade monolítica, imutável, movida exclusivamente pela razão e completamente
autoconsciente de si própria – o ser humano não é o Robson Crusoé1. Não bastaria fazer
uma conversa previa com estes eleitores tampouco um plebiscito (mesmo que esta e este
fossem possíveis), assim como não bastaria seguir um programa político “a risca”.
No limite, para um parlamentar poder representar os interesses de todos os seus
eleitores, ele teria que ser de fato todos os seus eleitores. O que é, obviamente,
impossível.
2. Heterogeneidade e povo
Outro fator que aumenta a impossibilidade da representação é o fato dos
interesses dos eleitores dum único parlamentar serem divergentes. É comum ter, entre os
votantes dum mesmo político profissional, diferentes e contraditórias matizes ideológicas,
e, consequentemente, diferentes interesses políticos. Um exemplo contemporâneo e
tupiniquim é o dos eleitores do Partido (dito) dos Trabalhadores, que vão de bancários a
banqueiros, de miseráveis a milionários, de feministas a machistas, de umbandistas a
crentes e a ateus. Como, por exemplo, um parlamentar pode representar – espelhar – os
interesses de todos estes grupos na questão do aborto?
Um segundo problema relacionado, que fica visível ao olharmos a questão da
representatividade a nível do parlamento como um todo (não somente para um
parlamentar e seus eleitores), é o da representação dos interesses do povo. Mas como
representar os interesses desta totalidade se ela é, na verdade, divida em diferentes
classes sociais antagônicas entre si? Como representar os interesses dos trabalhadores
sem terra – que querem expropriar e redistribuir as propriedades agrícolas – e os
interesses dos barões latifundiários – que querem manter seus reinos e privilégios –
1 Robson Crusoé é um personagem literário normalmente utilizado para exemplificar o conceito liberal de ser humano, pois trata-se duma vitima de naufrágio que isoladamente começa a realizar atividades econômicas.
A Geografia e o Calendário – Democracias – 98 / 182
simultaneamente?
II.II Conclusões e novas perguntas sobre representatividade
Tendo em vista que o conceito de representatividade como “espelho” é falso,
deduz-se imediatamente que a ideia de democracia representativa como “governo
exercido pelo povo” indiretamente é igualmente falha, ou, como diria Saramago, “uma
piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira”. Todavia, duas perguntas se
formam ao notarmos que o termo democracia representativa é uma contradição em si (ou
o governo é exercido pelo povo, ou ele não é: um governo exercido pelos ditos
representantes do povo não é um governo exercido pelo povo): se o representante não é
o espelho dos representados, o que ele é; o que é a representação? Se o governo
exercido pelo povo é incompatível com a representação, o que é este tipo de governo que
convencionamos chamar indevidamente de democracia representativa; o que está por
detrás desta “fachada”?
1. O que é, então, representação?
Temos na contemporaneidade uma outra compreensão da ideia de representação
que vem a calhar para entendermos o que seriam estes representantes políticos; trata-se
da leitura jurídica. Nos termos desta, representante (também chamado de procurador) é
alguém que possuí poderes de falar, negociar e tomar decisões em nome de outrem, seja
em algum assunto ou situação determinada (procuração específica) ou em qualquer
assunto ou situação (plenos poderes), seja durante um certo prazo previamente
estipulado ou indefinitivamente. Uma pessoa torna-se representante dalguém ou devido
ao fato do primeiro ser considerado juridicamente incapaz – por ser menor de idade ou
por possuir alguns tipos específicos de doenças mentais – ou através duma procuração,
isto é, um instrumento jurídico no qual uma pessoa concede voluntariamente este poder a
outra. No primeiro caso, como é avaliado que o representado não possui capacidade para
representar a si mesmo, somente o seu procurador pode assinar ou contrair
compromissos em seu nome, esta procuração é necessariamente do tipo que concede
plenos poderes. Já no segundo caso, o representado ainda mantém o poder de falar por
si mesmo.
Transportando esta ideia para a nossa discussão anterior, notamos que o tipo
A Geografia e o Calendário – Democracias – 99 / 182
específico de representação presente na formulação do governo dos representantes traz
aspectos destes casos previstos pelo direito:
– O parlamento possuí o direito de falar e deliberar em nome do povo a respeito de
todo e qualquer assunto político – logo se revela como um misto duma procuração
específica com uma de plenos poderes, pois ela dá plenos poderes dentro dos assuntos
políticos;
– O mandato dos parlamentares possui uma duração acordada a priori (entretanto,
o parlamento como um todo não possui uma limitação temporal);
– O eleitor, ao passar esta procuração para seu candidato, aliena seus direitos
políticos, similarmente ao caso da representação dum incapaz. Ele não pode tomar
decisões politicas por si, tampouco entrar no parlamento e participar dos debates e das
votações;
Entretanto, que momento, que ato, expressa o “ao passar esta procuração para
seu candidato” do parágrafo anterior? Seguindo esta linha de pensamento, este paralelo,
provavelmente chegaríamos a comparar o voto com a procuração. Isto é, através do voto
o eleitor aliena seus direitos políticos, e os transfere para o parlamento. Entretanto, esta
construção de pensamento é visivelmente falaciosa...
O mero fato de que independentemente de participarmos ou não do processo – de
votarmos nulo, branco ou em um candidato – termos estes direitos políticos alienados já
indica isto. Mesmo quem vota nulo é obrigado a se submeter ao parlamento. Mesmo
quem vota nulo não pode participar do ritual da assembleia. Mesmo quando a maior parte
duma população não participa do processo, esta como um todo é obrigada a manter-se
submissa a autoridade do Estado. Em outras palavras, a legitimidade do governo dos
representantes não vem do voto dos representados – ideia que muitas vezes é usada
para justificar o voto nulo – ela é um a priori.
Esta discussão tem bastante a ver com a teoria política contratualista, a qual tem
como característica ser a-histórica: nunca na história da humanidade um governo foi
formado pela vontade consensual de toda a população. Nunca na história da humanidade
um povo voluntariamente alienou seus “direitos políticos” em favor da organização dum
Estado. O contrato social, a sociedade “do homem lobo do homem”, não passam de mitos
que visam legitimar e justificar a formação dos Estados modernos: basta olhar para a
formação do Estado italiano e do alemão no século XIX – ou melhor, olhemos para a
gênese do Brasil, na qual não houve participação popular alguma...
Chegamos, por fim, que um representante é uma pessoa escolhida através dum
A Geografia e o Calendário – Democracias – 100 / 182
ritual político determinado e pontual – o voto – para participar do seleto grupo que
governa um determinado Estado. Afim de diminuirmos as confusões de termos, mais
correto seria chamarmos os parlamentares deste tipo de sistema político de eleitos, não
de representantes.
2. O que é, então, o governo dos representantes?
Tendo desvendado o conceito de representação, o governo dos representantes nos
revela como uma instituição na qual uma irrisória minoria exerce poder político sobre uma
imensa maioria. Tipo de governo conhecido como oligarquia.
Entretanto, esta possui uma qualidade específica que a diferencia de outras
oligarquias: o ritual político do grupo dos eleitores é o que escolhe a constituição desta
irrisória minoria. Isto é, pelo menos aparentemente, os eleitores possuem o direito de
decidir quem irá os governar (ou, usando termos comuns a tradição libertária, escolher
qual algoz mais lhe apetece). Sendo assim, poderíamos intitular coerentemente este tipo
de governo como a oligarquia dos eleitos.
(Jogo uma ideia, mas não a desenvolverei por ora: independentemente do fato dos
parlamentares serem eleitos, este agrupamento político possui seus próprios interesses
específicos. E, um traço genérico destes é que eles se aproximam dos interesses da
classe econômica dominante, no sentido de que ambos grupos são beneficiados pelo
sistema classista, logo tendem a desejar a manutenção deste).
Mas, importante lembrarmos: constatar que “democracia representativa” é na
verdade uma oligarquia na qual os eleitores escolhem quem irá os governar, isto é,
desmistificar o conceito, não significa necessariamente ser contra este sistema de
governo. Muitos autores reconhecem a farsa democrática, e, ainda assim, são a favor
desta (Schumpeter?). Soa como uma hipocrisia. Soa como um ateu defendendo a
monarquia legitimada pelo direito divino, contudo, é um posicionamento possível e
existente, apesar de usualmente se justificar num puro pragmatismo.
Entendo – como Gramsci – que todo governo exerce seu poder através duma
composição entre submissão voluntária à ideologia dominante e coação física através da
força bruta propriamente dita. Isto é, quanto mais a ideologia for hegemônica, quanto mais
ela for internalizada pelas pessoas, menos é necessário o uso das forças militares. Leio,
então, o fenômeno do encarceramento massivo e da crise de “criminalidade”, presentes
em diferentes locais do globo, como um indício de descredito generalizado à ideologia
A Geografia e o Calendário – Democracias – 101 / 182
dominante. Muito mais ao estilo “Se for pra ser mendigo, doutor, eu prefiro uma glock com
silenciador! Come seu lixo não é comigo, morô! Desce do carro, se não tá morto! Essa é a
lei daqui, a lei do demônio! Isso aqui é uma guerra!” (Facção Central), do que ao estilo
“Proletários do mundo, uni-vos!” (Marx e Engels). Desenvolvo melhor esta ideia num
artigo outro (“Um programa socialista de combate ao crime?”).
II.III Diferenças entre delegação e representação
Enquanto democracia representativa trabalha com a representação, a democracia
direta se usa da delegação. Apesar de serem conceitos que possuem uma certa
similaridade entre si, as suas diferenças são muito importantes na definição destes
dois regimes.
Delegado é uma pessoa escolhida numa assembleia para realizar uma
determinada tarefa pontual, isto é: ele não possui poder de deliberação, ele não pode
emitir sua opinião, tampouco tomar decisões de acordo com a sua consciência, ele deve
meramente executar o que lhe foi designado coletivamente; além disso, cada delegação
se refere a uma tarefa pontual.
O caso mais comum que temos de delegação – e que muitas vezes esta
relacionado a acordos e discussões federalistas – é o do porta-voz: a assembleia discute
e delibera sobre determinado assunto, e escolhe uma ou mais pessoas para levarem esta
discussão e esta deliberação para uma outra determinada estancia.
Obviamente as vezes é necessário que o delegado tenha alguma flexibilidade nas
deliberações as quais ele irá levar. As vezes até mesmo é possível que haja uma certa
continuidade no tempo da delegação. Contudo, está não é a proposta de delegação.
Estas são exceções que servem mais para comprovar a regra do que para a questionar.
III. Rituais políticos
Afim de aprofundar o processo de dissecação deste sistema de governo que se
coloca como hegemônico em nossa época dissertarei sobre uma de suas especificidades
mais importantes: o ritual político do qual participam os eleitores, mas também, pensando
em traçar um contraponto, sobre o ritual político da democracia de fato. Começo, então,
com um alerta provocativo emitido ainda no século XIX:
A Geografia e o Calendário – Democracias – 102 / 182
III.I Crítica a eleição
“Enquanto não houver igualdade
econômica, a igualdade política não passará
duma mentira” - Miguel Bakunin
Não é muito difícil de perceber que a regra de “um voto por cabeça” não é capaz de
garantir a igualdade política de fato, ela garante somente uma igualdade em termos
jurídicos. O que Bakunin está tentando nos dizer é que falar de liberdade política numa
sociedade marcada pela escravidão econômica da maioria de sua população é uma
grande bobagem. Novamente voltamos a heterogeneidade da sociedade contemporânea:
numa sociedade dividida entre classes o peso político das classes dominantes é muito
maior do que o das classes dominadas, mesmo tendo como regra a imensa superioridade
numérica destas (já que aqui não me uso de poder no sentido de força física, mas sim
poder enquanto uma relação social definida pela posição que um determinado indivíduo
ou grupo de indivíduos ocupa nas sociedades hierarquizadas, exemplificado na frase:
quem possui poder não é o rei, mas sim o trono do rei). Pois essas usam de seus poderes
econômicos e políticos para interferir nos resultados eleitorais por diversos meios: seja
com o velho hábito de comprar votos, seja pelo igualmente velho hábito de trocar votos e
apoio eleitoral por favores pessoais, seja pela coerção econômica – “ou vocês apoiam o
meu candidato, ou vocês serão demitidos”, seja pela coerção política – “ou vocês apoiam
o meu candidato, ou não mais receberão nosso apoio político”, seja pela coerção político-
econômica – “ou vocês apoiam o meu candidato, ou o projeto de vocês não será mais
financiado”, seja pela pura e simples coerção física. Ou mesmo pelo uso de seus poderes
para fraudar e manipular resultados e pesquisas eleitorais. Além da própria posse de
poder econômico-político estar diretamente vinculada com a possibilidade de se fazer
campanhas, já que estas possuem um alto custo.
Contudo, mesmo na hipótese duma sociedade economicamente homogênica, a
igualdade política dentro dum sistema de oligarquia dos eleitos continuaria sendo falsa.
Como apontei na parte I.I, este estabelece uma diferenciação política na sociedade entre
eleitores e parlamentares (além dos não eleitores). Isto é, a desigualdade política é
intrínseca.
(na verdade, entendo que é impossível a existência duma sociedade sem
diferenciação em classes econômicas mas com diferenciação em “classes” políticas. Isto
porque política e economia são aspectos sociais, na prática, inseparáveis – que sempre
A Geografia e o Calendário – Democracias – 103 / 182
andam juntos – inclusive na definição das características das próprias classes).
III.II A concepção que esta por detrás
Por detrás da ideia de democracia e de oligarquia dos eleitos (como chegamos a
conclusão de que o termo “democracia representativa” é indevido, incoerente, não mais o
usarei) há duas concepções divergentes de ser humano – e consequentemente de
sociedade – que servem de pilar de sustentação a estas. Estudemo-las:
1. A concepção ideológica da oligarquia dos eleitos
Qual sentido é expresso no termo “liberdade política”, tão usual neste sistema de
governo? Sabemos que com ele não se quer dizer liberdade de fazer política
institucionalizada, isto é, de participar com voz e voto nas decisões políticas da
sociedade, já que este poder é restrito ao grupo social dos parlamentares. O que se quer
dizer, então, com este termo? Que liberdade é essa?
Trata-se da possibilidade de emitir opiniões políticas dentro dos limites impostos
pela lei, isto é, pelo parlamento (esta ressalva é especialmente importante para nós que
vivemos sobre o domínio da oligarquia dos eleitos do Estado brasileiro, que por tantas
vezes no passado próximo perseguiu pessoas devido suas opiniões); e da possibilidade
de participar do pleito eleitoral. Ou seja, é uma qualidade estritamente individual, e
absolutamente concedida dentro das paredes construídas numa instancia outra, a do
parlamento. Que tipo de liberdade é essa?
Trata-se do conceito de liberdade burguês-iluminista que tem por trás uma
concepção de ser humano a-histórico como um indivíduo com motivações estritamente
racionais, absolutamente indivisível e autoconsciente, e completamente apartado da
coletividade. Formulação a qual normalmente é ilustrada pela mítica figura do Robson
Crusoé, e que traz consigo a ideia de sociedade como uma mera soma destes Robsons,
no limite chega-se a repisada frase de Margarida Tatcher: “Não existe sociedade, somente
indivíduos e suas famílias”. Somente assim é possível compreender em que sentido a
soma dos votos de todos os eleitores expressa a “vontade popular”, e porque isto é
entendido como liberdade política.
Não por acaso é possível traçar paralelos entre a ideia de liberdade econômica no
capitalismo e a de liberdade política na oligarquia dos eleitos: ambas compartilham a
A Geografia e o Calendário – Democracias – 104 / 182
mesma concepção de ser humano, e são manifestações da mesma ideologia em
aspectos diferentes da sociedade. Assim como nesta ideologia a liberdade política é –
como antes disse – uma qualidade estritamente individual, e absolutamente concedida
dentro das paredes construídas numa instancia outra, e que se expressa de fato no ato
ritualístico também individual do voto e da possibilidade de emitir opiniões políticas, não
uma característica da coletividade onde a política é gerida e construída participativamente
por meio dum ritual específico; a liberdade econômica também é uma qualidade
estritamente individual e absolutamente concedida dentro das paredes construídas numa
instancia outra, que se expressa no ato individual do consumo de mercadorias e na
possibilidade de as criticar, não uma característica da coletividade onde a economia é
gerida participativamente através dum ritual específico.
Vejo, inclusive, que assim como o capitalismo possuí uma tendência inerente ao
oligopólio / monopólio, o governo dos eleitos também tende, quando as instituições
políticas estão bem enraizadas – que ainda não é o nosso caso, ao regime de dois (ou
poucos) partidos eleitorais. Tende ao oligopólio eleitoral.
Também não por acaso o mesmo profissional responsável por construir a imagem
dum produto visando aumentar a sua aceitação no mercado é também responsável por
construir a imagem dos candidatos visando sua aceitação no eleitorado; a este
chamamos de marqueteiro. Não por acaso as disputas eleitorais hoje são estudadas
como disputas de mercado. É possível pensar, por exemplo, que “para a venda da
mercadoria Dilma foi fundamental a participação nos comerciais das diferentes mídias,
enquanto garoto propaganda, do artista-político internacionalmente reconhecido, Lula “.
Os paralelos são quase ilimitados...
Cabe, também, lembrar que esta concepção de sociedade como soma de
indivíduos “livres” esconde por trás de si a verdadeira composição da sociedade em
classes. Ao traçar um pretenso sinal de igual entre todos os indivíduos, ao se falar em
nome do “bem nacional”, da pátria, oculta-se as contradições antagônicas de interesses
entre as diferentes classes sociais. Oculta-se que os antagonismos se dão muito mais
entre classes sociais do que entre as ficções territoriais.
O governo dos eleitos está necessariamente relacionado a uma estrutura de
dominação sociopolítica piramidal e excludente conhecida como Estado moderno, que se
baseia numa ficção geográfica de território nacional, derivada da ideologia nacionalista.
Esta, por sua vez, está relacionado impreterivelmente com a manutenção duma
sociedade divida em classes, uma sociedade baseada na dominação econômica, política
A Geografia e o Calendário – Democracias – 105 / 182
e moral (cultural) da imensa maioria da humanidade em detrimento de uma irrisória
minoria. Isto é, é um método de como exercer esta dominação política, e ajudar na
manutenção da dominação econômica (exploração) e da dominação moral cultural.
2. A concepção ideológica da democracia
Já por detrás da proposta de democracia está uma concepção de política como
algo estritamente coletivo e frequente. A construção desta não se dá pela soma das
opiniões individuais, pela soma dos votos, o resultado do método político democrático é
algo novo e essencialmente coletivo, despersonalizado. Em outras palavras: o poder
político não é pessoal, não é dado por uma determinada posição ocupada por um
determinado indivíduo, mas sim um produto da coletividade como um todo. Não se dá
num plebiscito, mas sim através dum ritual de discussão coletiva que valoriza o diálogo,
de forma a se chegar a uma proposta comum, a um consenso. E caso este não seja
possível, usa-se o voto como instrumento de deliberação. Entretanto, é importante frisar
que democrático se refere ao processo como um todo – o qual necessariamente tem
caráter de permanência no tempo – de forma nenhuma à votação pontual exclusivamente.
Neste sentido, um plebiscito nada tem a ver com a concepção de política democrática.
Enquanto a oligarquia dos eleitos tem como pilar uma visão ideológica de ser
humano “Robson Crusoé” e de sociedade como a mera soma aritmética destes, a
democracia se apoia numa concepção de humano como uma criatura imanentemente
coletiva – não se pensa este separado da coletividade a qual ele pertence. Desta
maneira, a noção de liberdade é igualmente coletiva, onde a liberdade do outro no lugar
de ser uma barreira a minha, no lugar da minha liberdade terminar onde começa a do
outro, “a minha liberdade é estendida ao infinito ao se encontrar com a do outro” . Isto
devido ao fato de se compreender que somente dentro da organização coletiva da
sociedade é possível se falar em liberdade, a coletividade é vista como a mãe – a que dá
a luz e amamenta – da liberdade. A partir daí, é possível compreender o que Bakunin quer
dizer ao escrever que “enquanto existir um único ser humano escravizado, a minha
liberdade não será completa”.
Trata-se, então, duma metodologia política vinculada necessariamente a um
determinado agrupamento orgânico – não a um agrupamento fictício formado pela soma
de “Robsons” – chamado de polis nas democracias antigas, e que, hoje, pode ser
aproximado à ideia de comunidade ou comuna (normalmente quando falamos em comuna
A Geografia e o Calendário – Democracias – 106 / 182
pensamos um conceito que extrapola o aspecto que classificamos como político, engloba
também a gestão econômica). Esta forma de gestão da política precisa ser feita no nível
do micro. Ou melhor, ela precisa ser feita inicialmente no micro, no local, mas ela pode ser
estendida a qualquer escala através do federalismo – o qual sempre andou lado a lado
com a democracia.
Cabe aqui um comentário: considero um equivoco chamarmos as polis gregas de
cidades-estado, pois este termo dá a impressão de que a diferença entre o brutal Estado
moderno e a democracia de fato é uma mera questão de escala – percepção claramente
falaciosa, pois a escala do macro – equivalente a do Estado – é existente sim na
democracia grega, e é dada pelos acordos federativos entre as polis (assim como as
organizações anarquistas contemporâneas também podem ter abrangência macro
através do federalismo – como é o caso do FAO2 aqui no que chamamos de Brasil).
IV. Inconclusa conclusão
A mais óbvia das conclusões que chego é que usamos um único termo para
designarmos dois conceitos políticos absolutamente distintos: a palavra democracia é
tanto usada para se referir a um método popular e coletivo de se construir a política,
quanto a um método para escolher a elite que irá fazer a política dentro duma estrutura de
Estado moderno. Duma certa maneira, definir as imensas diferenças qualitativas entre a
oligarquia dos eleitos e a democracia é atacar um dos pilares de legitimação da primeira:
é mostrar que a “época de ouro” grega não possuí similaridade alguma com a “época de
chumbo” que vivemos. E não só isto, mostro, inclusive, que a democracia como método
político é contraditória com o Estado moderno, isto é, a ideia de democracia e a ideia de
Estado são como água e óleo: não se misturam de maneira alguma. E, assim sendo, é
mostrar também que aqueles que lutam inspirados por valores democráticos, lutam
necessariamente contra o que é indevidamente nomeado como “democracia
representativa”.
Contudo, constatar este oximoro não é necessariamente ser contra a oligarquia dos
eleitos. Sei que meu posicionamento político ideológico transparece nas anteriores linhas
– não faço questão alguma de o esconder, já que não acredito na objetividade, na
imparcialidade cientifica – entretanto sei também que a oligarquia dos eleitos não se apoia
2 Fórum do Anarquismo Organizado. Espaço de articulação de diversos coletivos políticos anarquistas locais, que pretende vir a ser a Confederação Anarquista do Brasil
A Geografia e o Calendário – Democracias – 107 / 182
exclusivamente no pilar helênico: é possível sustentar ideologicamente uma defesa deste
sistema de governo sem recorrer a Atenas. Mas, além disto, é importante lembrar que a
hegemonia ideológica como um todo é somente uma parte da sustentação dum governo;
que a coerção física do aparato policial-militar é igualmente – ou até mesmo mais –
essencial. Sintetizando: ataco um dos pilares ideais da oligarquia contemporânea, mas sei
que este não é único a sustentar esta estrutura, e sei também que a luta ideológica não é
eficaz nem completa sem a luta prática. A mais bela e perfeita contestação da ideologia
que sustenta o capitalismo e seu regime político de nada servirá caso o povo não tome as
ruas e destrua de fato as instituições dominantes, expropriando e reorganizando o poder
político e econômico. A luta ideológica só é completa com uma correspondente dialética
material (desta maneira, talvez pudesse dizer – beirando a ironia – que o único local de
observação privilegiado é o do intelectual orgânico gramsciano).
Entendo, então, este texto como uma especie de investida guerrilheira contra um
dos armazéns de mantimentos da oligarquia representativa – o principal regime de
governo do Estado moderno. Como uma batalha que possuí sua relativa importância, mas
que – sem dúvidas – não é capaz de decidir o resultado da guerra.
IV.I Conclusões colaterais
Uma conclusão, digamos, colateral é a invalidade do argumento a favor do
abstencionismo, de que seria através do voto que o regime dos eleitos se legitima. Os
partidários do voto nulo devem usar de outros de seus argumentos.
IV.II Voltando as motivações
Por fim, volto as duas situações que motivaram esta dissertação: o que estas mais
de dez páginas nos dizem sobre a eleição para coordenador de departamento e sobre as
eleições sindicais?
1. Eleição para coordenador de departamento
De maneira quase anedótica conto que esta primeira questão perdeu por completo
sua pertinência prática ao passar estas quase duas semanas, tempo que demorei para
chegar até esta parte do texto. Isto porque ao se consultar o regimento da plenária
A Geografia e o Calendário – Democracias – 108 / 182
departamental da geografia foi descoberto que as eleições, segundo este, devem
necessariamente acontecer através de urnas, para que assim todos possam participar.
Cabe aqui, então, somente tecer algumas considerações.
A primeira é que não há uma clareza teórica a cerca do que é democracia neste
espaço; ao menos a definição e divisão que estabeleço entre democracia e oligarquia dos
eleitos não é observada. Apesar de existir uma sincera intenção de ir além dos limites do
que coloco como oligarquia eleitoral, de, até mesmo, subvertê-la – o que pode ser intuído
por exemplo na não diferenciação hierárquica entre docentes e dissentes – os dois
conceitos políticos distintos e contraditórios de alguma maneira se misturam nesta
plenária. Para as questões cotidianas é utilizado o método democrático – a construção da
política é feita pelos diretamente interessados num espaço coletivo com permanência no
tempo etc – todavia, para a questão da eleição, recorremos a um instrumento típico da
oligarquia dos eleitos: o plebiscito. Caímos no equívoco de achar que voto é equivalente a
participação política democrática; caímos na armadilha de achar que quanto mais
pessoas votarem, mais democrático será o processo. Isto é, caímos na concepção liberal
de democracia, que possuí por detrás de si a concepção individualista de ser humano.
Democracia aqui deixa de ser vista como um processo de construção coletiva da política,
e passa a ser uma soma de votos individuais e absolutamente apartados.
Concluindo: caso achemos importante a continuidade da figura do coordenador de
plenária, e caso achemos importante que esta funcione segundo os preceitos do ritual
democrático, na minha opinião, deveríamos realizar esta deliberação como realizamos as
outras: no espaço da plenária, no cara-a-cara. Democrático seria valorizar este espaço e
sua permanente construção, não jogar o poder de deliberação para fora deste, para que
mais pessoas possam votar.
Quem sabe em algum momento esta polêmica retorne...
2. Eleições sindicais
Já no âmbito sindical a discussão se complica muito mais. Diferente da plenária
geográfica, normalmente não há intenção alguma de se subverter, de se questionar, a
oligarquia dos eleitos nos espaços sindicais. Mesmo aqueles que falam em “democracia
operária” costumam estar motivados principalmente pelo conceito leninista de centralismo
democrático – o qual é próximo, talvez até mesmo similar, aos rituais próprios da
oligarquia eleitoreira. A estrutura sindical é construída basicamente em e por cima da
A Geografia e o Calendário – Democracias – 109 / 182
concepção ideológica da falsa democracia, da democracia liberal. Entretanto, é preciso
reconhecer que há traços duma democracia direta, que seriam talvez resquícios –
resíduos – do que já fora o sindicalismo. Isto é, que o sindicalismo atual é um espécime
de híbrido histórico, uma mistura entre uma organização autônoma de resistência
corporativa da classe trabalhadora – que valorizava muito o método coletivo de
construção política pautado na assembleia, na democracia direta cara-a-cara – e uma
organização burocrática típica dos Estados modernos – que não possuí simpatia alguma
por organizações horizontais e politicas de assembleia, mas sim por hierarquias.
Sendo direto: a complexidade da discussão democrática no sindicalismo demanda
um outro texto. Fica a ideia (a promessa?).
Mas, pincelando um pouco: vejo a assembleia como o principal destes traços. O
que explicaria porque as gestões sindicais mais burocráticas e aparatistas chamam tão
poucas assembleias, e ainda assim se preocupam tanto em controlá-las, manipulá-las. Se
preocupam tanto que estas sejam breves, que não haja discussões, que não exista direito
a voz. Se preocupam tanto que a assembleia se resuma a votação, ou, como se diz no
“sindicales”, ao ato de levantar crachás. Daí entendemos a importância do muro que
separa os sindicalistas – que possuem direito a voz, a participar da discussão, e dividem
entre si a posse do microfone – e os trabalhadores – que podem assistir a assembleia, e
devem levantar seus crachás na correta hora. Daí é possível ver algumas semelhanças
entre este muro, e o que separa os parlamentares dos eleitores; lembrando devidamente
que a origem histórica do parlamento é bastante diferenciada. Mas, o que fica é uma
tentativa de explicar aquele sentimento trazido pelo perceber que a burocracia sindical vê
a assembleia como um incômodo.
Uma segunda e imensa problemática inerente ao atual sindicalismo é a falta de
autonomia. Uma boa parte de sua forma de funcionar, de como se organizar, é
estabelecida pela legislação. E se, aceitamos como premissa a tese de que os métodos,
as formas, interferem nos resultados – de que os meios possuem relação com os fins –
temos que aceitar que esta intervenção jurídica necessariamente altera os resultados da
politica sindical.
Por fim, acho importante registrar que toda esta discussão ainda está longe de
chegar numa resposta satisfatória a questão inicial, a saber: deve o coletivo Bancários de
Base participar das eleições sindicais?
A Geografia e o Calendário – Democracias – 110 / 182
Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo
I. Colocando a questão
Não é raro a sopa visivelmente heterogênea e arbitrariamente misturada –
conhecida pela problemática alcunha de “pós-modernidade” – ser associada ao
individualismo. Por sua vez, esta forçada aproximação é recolada dentro do atual
debate libertário/anarquista como uma relação entre individualismo, estilo de vida
e – finalmente – o tal do “pós-modernismo” – como Bookchin o faz de maneira
exemplar no livro “Anarquismo social e anarquismo como estilo de vida; um
abismo intransponível”1. Curioso e interessante é perceber que embora os ditos
“pós-modernos” recusem esta associação, tendo ela sua origem geralmente nas
críticas a que eles são dirigidos, a associação correlata dentro do campo libertário
tende a adquirir um status de consenso – já que geralmente tanto aqueles que
assumem, quanto aqueles que negam o individualismo, tendem a realizar estes
vínculos. Entretanto, independentemente das minhas – ou das vossas – pretensas
simpatias ou antipatias com os muitos e diversos discursos contemporâneos
agrupados naquele termo, parece-me pouco plausível e coerente este vínculo.
Pretendo aqui, de maneira – espero eu – sucinta, esteticamente bela e
retoricamente convincente, realizar a desconstrução desta indevida associação;
e/para depois realizar um provocativo desvio num aspecto do pensamento de
Bakunin afim de dar uma humilde pincelada no quadro-tese da desconstrução-
construção do anarquismo com base nos discursos contemporâneos. Um dos
objetivos colaterais desta parte final deste texto é exatamente “sacudir a poeira”
acumulada devido a perigosa cristalização desta divisão dicotômica e binária de
anarquismo enquanto “anarquismo social”, “organizacionista”, ou anarquismo
enquanto “anarquismo estilo de vida”, “antiorganizacionista”.
Usemos aqui individualismo no seu sentido quase literal, ou seja, como a
defesa exacerbada da soberania do indivíduo frente à sociedade. Definição esta
que já nos coloca em contato com duas noções, a de indivíduo, e a de soberania.
Contudo, faz-se imprescindível notarmos que é uma noção específica e “forte” de
indivíduo, pois só assim é possível este ser pensado como soberano. Ao
1 Para citar tão somente um trecho exemplar: “O anarquismo egocêntrico de Bey, com seu afastamento pós-modernista em direção à “autonomia” individual, às “experiências-limite” foucaultianas, e ao êxtase neo-situacionista, ameaça tornar a palavra anarquismo política e socialmente inocente – uma simples moda para o gozo dos pequenos burgueses de todas as idades.”
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 111 / 182
realizarmos uma investigação genealógica desta noção chega-se na época
fundante da modernidade; é durante o Renascimento, com sua revisitação da
antiguidade que o conceito forte de indivíduo é reinterpretado e reinventado, tendo
o famoso cogito, ergo sum (penso logo existo) cartesiano como sua expressão
característica e, talvez, também caricatural. Através desta repisada tautologia se
expressa a noção dum indivíduo capaz de descobrir/apreender verdades absolutas
tão somente através de sua razão. As verdades já não são mais fruto duma
revelação divina, mas sim dum esforço da razão de um ser-aí (um ser reduzido a
sua presença) monolítico, estável e praticamente livre, no sentido negativo da
palavra, de sua origem histórica e geográfica. Simultaneamente e interrelacionada
com a reinvenção do indivíduo se dá a reinvenção da soberania nacional e
secular; é a partir também do Renascimento (a origem da época moderna) que se
(re)coloca em debate, por meio dos discursos políticos contratualistas, os limites,
combinações e conflitos entre indivíduo, Estado e soberania – tendendo a uma
sobreposição/justaposição que normalmente dava maior valor para o segundo em
sua batalha contra o primeiro.
Caminhando por sobre este fio estórico, chega-se à época das luzes, onde
estas duas noções (indivíduo e Estado) se intensificam, se fortalecem e se
aprofundam organizando, assim, o terreno adequado para a germinação tanto de
defesas exacerbadas do primeiro – individualismo – quanto de apelos fanáticos ao
segundo – nacionalismo-estatismo. É somente no desenvolvimento das utopias
iluministas do fim do século XVIII e do inteiro século XIX que a noção de
individualismo (e correlatamente a de nacionalismo-estatismo) é capaz de se
formar – tendo Max Stirner2 como seu representante mais simbólico, e –
inevitavelmente – mais patético, todavia, é claro, não o único; pode-se citar, a
título de exemplo, aspectos de Godwin e também de Thoreau além de inúmeros
pensadores liberais.
Cabe, agora, pensar qual a relação entre as rupturas e continuidades,
deslocamentos e desvios, caminhos e descaminhos, propostas pelos discursos
“pós-modernos” e os traços essenciais deste pensamento moderno que se mostra
2 Bookchin possui uma opinião parecida: “Sua linha ideológica é basicamente liberal, fundamentada no mito do indivíduo completamente autônomo cujas reivindicações da própria soberania se valem de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do eu transcendental kantiano produtor de toda a realidade cognoscível. Essas tradicionais visões vêm à tona no “eu” ou no único (ego) de Max Stirner, que tem em comum com o existencialismo a tendência a absorver toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das escolhas do indivíduo auto-orientado.” (Anarquismo social ou anarquismo de estilo de vida)
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 112 / 182
como premissa necessária para o desenvolvimento do individualismo.
II. O ocaso do sujeito e do indivíduo
“God is dead, and he died when angels felt” -
Mayhem ao vivo na Itália no Mediolanum Capta Est
A base filosófica do pensamento pós-moderno é quase que invariavelmente
identificada como o profético anuncio nietzschiano da morte simbólica de Deus.
Esta alegoria deve ser entendida como “a desvalorização dos valores supremos”.
O niilismo enquanto possibilidade, “o que acontece hoje em relação ao niilismo é o
seguinte: começamos a ser, a poder ser, niilistas consumados” 3. Este termo se
refere a uma personagem da obra de Nietzsche, “é aquele que compreendeu que
o niilismo é a sua (única) chance”4. Ou seja, não me refiro aqui ao niilismo vulgar
– uma especie de pessimismo misantropo exaustivo – tampouco ao niilismo
“terrorista” – a corrente política que se desenvolveu principalmente na Rússia
czarista do século XIX; os quais obviamente possuem muitos dos traços
característicos do individualismo moderno e liberal.
Esta compreensão niilista e pós-moderna de que se vive num momento de
desvalorização/dissolução dos valores fortes, leva a entender diversos projetos de
“reapropriação”, de fundação de novas origens e valores supremos “mais
verdadeiros”, de um novo “Deus” como reações “patéticas e metafísicas”. 5 Este
“esforçar-se para restabelecer um “próprio” contra essa dissolução é sempre ainda
niilismo reativo, esforço para derrubar o domínio do objeto, estabelecendo um
domínio do sujeito que, no entanto, se configura reativamente com as mesmas
características de força coercitivas próprias da objetividade. O processo, descrito
exemplarmente por Sartre na Crítica da Razão Dialética como recaída na
contrafinalidade e no prático-inerte, mostra, de maneira inequívoca, o destino
desses tipos de reapropriação.”6
Uma das consequências disto é “a tese de que o humanismo está em crise
porque Deus está morto”7. A morte de Deus, a desvalorização dos valores
3 Vattimo, Gianni “O fim da modernidade”, I -345 9-126 12-137 18
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 113 / 182
supremos acarreta também uma “crise do sujeito”, em especial uma crise do
sujeito forte, exatamente como o desenhado por Descartes, ornamentado pelo
pensamento iluminista e que, finalmente, vem a intencionar substituir o lugar de
Deus em seu altar em diversos projetos utópicos reapropriativos do século XIX e
XX. Mesmo este “sujeito forte” não sendo exclusividade dos discursos
individualistas, sem dúvidas ele constitui um dos aspectos daquele terreno
adequado necessário ao floreamento deste. Não é difícil de perceber que para
uma postura niilista ativa, como de maneira geral é a dos pós-modernismo, que
aceita a “morte de Deus” e a consequente “crise do sujeito”, o individualismo não
passa de um “patético e metafísico” projeto de reapropriação. É evidentemente
impossível a reivindicação individualista no discurso pós-modernismo – ao menos
não dentro dos discursos de inspiração niilista “consumada”.
III. Um ousado desvio bakunianista
Embora seja sabido que o conjunto do discurso de Mikhail Bakunin esteja de
maneira geral contido no materialismo ateu do século XIX, o qual a partir da
perspectiva niilista pode ser entendido como um projeto reapropriativo que intenta
substituir a ciência, a economia e sua história e a “matéria”, por “Deus” em seu
altar; gostaria de terminar este texto com um ousado desvio niilista e niilizante em
uma parte específica do pensamento de Bakunin – a qual será extraída de trechos
de “Deus e o Estado” – afim de contribuir com uma pincelada no quadro de
aproximações possíveis entre a proposta anarquista duma sociedade sem
dominação a partir principalmente dum movimento de “baixo para cima” 8, de
generalização da autogestão, e o pensamento niilista.9
No livro citado, Bakunin crítica, em nome da ciência, da economia social e
privada e da liberdade, a máxima voltairiana de que “se Deus não existisse seria
preciso inventá-lo”. Sua argumentação caminha para uma identificação de Deus
com a origem do idealismo, da metafísica mas também da servidão. Na sequência,
ele propõem uma in-versão daquela frase, dizendo “se Deus existisse, seria
preciso aboli-lo”10; isto em nome da evolução, da verdade, da justiça e da
8 O próprio Bakunin usa este termo diversas vezes neste escrito, mas também em muitos outros9 De certa maneira, mesmo que por outros termos, Todd May também contribui para esta pintura em “Pós-
estruturalismo e anarquismo”10 “Deus e o Estado” p 32
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 114 / 182
liberdade. Uma antecipação da “morte de Deus” nietzschiana? Ao menos a priori,
não; ainda que seja possível enxergar aí semelhança, esta seria demasiadamente
apressada e simplória, pois esta se reduz principalmente a coincidência de termos
– já que a “morte de Deus” em Nietzsche não se reduz ao seu ateu sentido literal
tampouco se relaciona somente com as instituições religiosas. Ademais, este
trecho do discurso de Bakunin sozinho além de ser bastante típico ao século XIX
em diversos de seus aspectos, se coloca de maneira evidente e quase que
assumida dentro do que se entende hoje por discurso reapropriativo: devido a um
imperativo de verdade ainda “mais verdadeira”, se destrói o ídolo de Deus. Pode-
se ironicamente dizer – parafraseando a crítica de Nietzsche à Sócrates – que os
materialistas são de certa maneira os mais idealistas dos idealistas – já que estes,
em nome da crítica ao pensamento idealista, baseiam seus discursos em ideias de
matéria, de ciência (a definição que Bakunin nos dá em passagens como “A
ciência é a bussola da vida; mas não é a vida. A ciência é imutável, impessoal,
geral, abstrata, insensível como as leis das quais ela nada mais é do que a
reprodução ideal, refletida ou mental”11 é bastante significativa), de história
(econômica) e de economia (histórica) bastante “idealistas”, fortes (monolíticas,
universais, evolutivas, neutras, impositivas, estáveis etc).
Não quero com isto diminuir o pensamento de Bakunin do “Deus e o
Estado”, sem dúvidas um texto que discorre sobre diversas noções – verdade,
ciência, educação, técnica, natureza, fé, Deus, autoridade, servidão, governo,
Estado, liberdade, indivíduo, revolução – com muita destreza e habilidade.
Entretanto, se me permitirem estabelecer um corte grosseiro e arbitrário neste
texto propondo olhá-lo como uma esforço que oscila na tentativa de responder
duas perguntas a respeito das relações entre estas diversas noções – um por
quê? e um como? – o que me parece mais inquietante neste livro de Bakunin, não
é sua resposta à primeira (por quê?) – sua crítica de cunho materialista ateia ao
idealismo, mas sim a resposta ao como? – pela revolução social entendida sempre
e necessariamente como movimento de “baixo para cima”. Isto porque ainda que
suas críticas ao idealismo nas diversas facetas que Bakunin o apresenta sejam
muito interessantes e afiadas, ele se vê constantemente forçado a, digamos,
divinizar o materialismo ateu e seus aspectos constitutivos, reconstruir uma
ontologia de autoridade tão forte, impositiva, quanto as religiosas-idealistas que
11 “Deus e o Estado” p62
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 115 / 182
ele crítica. Já quando Bakunin se propõem a discursar sobre as maneiras de
conseguir o “desenvolvimento humano, coletivo ou individual” (um aspecto inicial
do como?), logo na definição dos princípios necessários a estas se mostra algo
interessante12: Bakunin não diferencia os elementos do “desenvolvimento humano”
coletivo, do individual – ao contrário disto, deixa até a entender que estes
estariam num mesmo plano. Na justa entre indivíduo contra coletivo, ele se
esforça para evitar cair tanto numa posição de supremacia do indivíduo frente à
coletividade (individualismo), quanto no inverso (autoritarismo, tendo o estatismo-
nacionalismo como exemplo comum) – como fica evidente no decorrer de sua
argumentação. E, o que torna este recorte (que responde ao como?) do texto
ainda mais significativo é que esta postura é sempre mantida: Bakunin, ao lidar
com as propostas de como se alcançar esta especie de utopia anarquista de
cunho materialista ateu, tenta sempre manter uma leveza 13, alertando ele próprio
para perigos e emboscadas (possibilidades de “recaída na contrafinalidade e no
prático-inerte” no sentido sartriano?). Bakunin coloca o pensamento reduzido à
ciência como um de seus princípios de desenvolvimento humano, porém, poucas
páginas depois ele estará anunciando como “monstruosidade” uma sociedade que
imponha e seja comandada pela ciência e pelos cientistas 14. O que explica este
comportamento típico de Bakunin – e que talvez seja também o que
principalmente o diferencia de muitos outros que com ele compartilharam
geografia e calendário – é sua insistência que o movimento de desenvolvimento se
dá necessariamente de “baixo para cima”. Este é o argumento central do porquê
apesar da ciência ser tão essencial ao “desenvolvimento humano”, suas verdades
não podem ser impostas. A mesma estrutura argumentativa também se mantém,
12 Bakunin inicia seu texto com o seguinte trecho: “Três elementos ou três princípios fundamentais constituem, na história, as condições essenciais de todo desenvolvimento humano, coletivo ou individual: 1º) a animalidade humana; 2º) o pensamento; 3º) a revolta. À primeira corresponde propriamente a economia social e privada; à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade.”
13 talvez este termo seja o que melhor ilustra esta maneira de proceder14 P 35. Além deste trecho, outros dois que se tornam interessantes contrapostos um ao outro são quando
Bakunin coloca que “Reconhecemos a autoridade absoluta da ciência, mas rejeitamos a infalibilidade e a universalidade do cientista” (p18 da versão virtual) mas reconhece que “Em sua organização atual, monopolizando a ciência e permanecendo, assim, fora da vida social, os cientistas formam uma casta à parte, oferecendo muita analogia com a casta dos padres. A abstração científica é seu Deus, as individualidades são suas vítimas e eles são seus sacrificadores nomeados.” (p32). São muitos os exemplos de que Bakunin se coloca ao mesmo tempo como um grande apologista da ciência enquanto ideia, e do discurso cientifico como produtor ideal de verdade, e como um grande crítico da ciência e dos cientistas de sua época . O anarquista coloca como crítica ao pensamento idealista e sua pretensão a perfeição, a promessa de um pensamento cientifico (já que Bakunin critica boa parte da ciência de sua época) que contenha a promessa de uma verdade progressivamente mais verdadeira – um pensamento por sua vez bastante idealista
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 116 / 182
por exemplo, na crítica da imposição do comunismo através duma ditadura do
proletariado – como queria Marx. É devido a insistência no de “baixo para cima”
que o materialismo ateu de Bakunin não poderia o levar de maneira alguma a
defender a ditadura do proletariado, embora compartilhando noções de classismo,
história e progresso com grandes semelhanças.
O desvio que gostaria de propor é ler o não dito deste comportamento
insistente de Bakunin ao tratar da questão do como? como um esforço em tentar
não reconstruir ídolos – o que obviamente está ao menos parcialmente em
contradição com o Bakunin que se apoia em ídolos afim de destruir o Deus, o
Estado, seus idealismos e suas autoridades. Todavia, parece-me que é
exatamente aí que se faz possível relacionar Nietzsche e Bakunin, anarquismo e
niilismo. Exatamente aí é possível perceber que o anarquista ao construir suas
verdades de “baixo para cima” não terá e não pode ter como consequência as
mesmas características duma verdade “vinda de cima”, esta verdade não poderá
nunca ser impositiva, não poderá ser uma verdade forte tampouco externa. Deve-
se, então, compreender o projeto anarquista como uma generalização de muitas
“verdades” construídas de “baixo para cima” (sem imposição), não como uma
universalização de poucas verdades absolutas. Reforço que sei que isto é
contraditório com diversos aspectos do pensamento de Bakunin no próprio “Deus
e o Estado”, contudo, esta contradição – que pode também ser colocada como a
contradição entre uma ontologia forte no momento da crítica, e uma ontologia mais
enfraquecida no momento da proposição – esta presente no próprio discurso
bakunianista, já que um desvio é tão somente uma consequência não antes
explicitada.
IV. Conclusão: apenas uma pincelada, mesmo que concreta
Realizando este desvio torna-se possível reinterpretar o projeto anarquista
de generalização da autogestão, como generalização de verdades não impositivas
(fortes). O que, inclusive, se relaciona igualmente bem com a insistência de
Proudhon de que no federalismo o de baixo sempre manda mais 15, seguida de sua
constatação de que “Se fosse de outro modo, a comuna seria uma comunidade; a
15 “...as atribuições federais, nunca podem exceder em número e em realidade as das autoridades comunais ou provinciais, do mesmo modo que estas não podem exceder os direitos e prerrogativas do homem e do cidadão.” Proudhon em “O princípio federativo”
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 117 / 182
federação tornar-se-ia uma centralização monárquica; a autoridade federal, de simples
mandatária e função subordinada que deve ser, seria olhada como preponderante; em
lugar de ser limitada a um serviço especial, ela tenderia a abarcar toda a atividade e de
toda a iniciativa; os Estados confederados seriam convertidos em prefeituras,
intendências, sucursais ou diretorias. O corpo político, assim transformado, poderia
chamar-se república, democracia ou tudo o que vós apetecer: não seria mais um Estado
constituído na plenitude das suas autonomias, não seria mais uma confederação. A
mesma coisa se passaria, com mais razão ainda, se, por um falso motivo de economia,
por deferência ou qualquer outra causa, as comunas, cantões ou Estados confederados
encarregassem um deles da administração ou governo dos outros. A república, de
federativa, tornar-se-ia unitária; estaria no caminho do despotismo”. O que pode ser
interpretada de maneira semelhante ao feito com o de “baixo para cima” de Bakunin 16:
uma sociedade federalista nunca se equivalerá à uma sociedade centralista, isto porque,
dentre outros motivos, ela não será monolítica, homogênea, universalista, etc. O que de
maneira alguma deve ser confundido com um aspecto atomista – o que seria tanto
incompatível com o que os anarquistas clássicos defendiam, quanto, e talvez ainda mais,
com a pós-modernidade, já que de maneira geral se defende o “princípio de conexão” 17. É
base do pensamento pós-moderno desbravar conexões e interrelações entre diversos
aspectos.
Todavia não entendo que este desvio se configure tão somente como
esforço teórico, abstrato, sem vínculo com uma estrategia e uma prática de
intervenção política. Entendo sim que esta humilde pincelada no quadro das
relações entre anarquismo e niilismo tenha sim suas consequências – inclusive
por achar que mesmo antes de qualquer escrito sobre esta relação, esta já possuí
suas implicações práticas18. Pretendo, então, concluir com alguns pontos que
entendo serem afetadas.
Voltando a nossa discussão inicial acerca do individualismo, pós-
modernismo e anarquismo, parece-me que olhar este debate entre “anarquismo
16 Não é difícil também relacionar com o que coloca Bookchin como os “princípios básicos” do “anarquismo tradicional”: “uma confederação de municipalidades descentralizadas, uma firme oposição ao estatismo, uma crença na democracia direta e um projeto de uma sociedade comunista libertária.”
17 Deleuze e Guatarri elencam este como um dos princípios do rizoma na introdução de mesmo nome ao “Mil platôs”
18 Por exemplo, entendo que independente de nem mesmo este texto ter pincelado uma crítica à ontologia forte presente em diversos momentos no anarquismo “clássico”, a associação entre o niilismo e o anarquismo deve trazer como consequência uma postura menos arrogante e criticista às militâncias anarquistas – postura a qual leva anarquistas a se colocarem de forma vanguardista/sectária, ainda que, nos momentos de luta, se coloquem presentes no ombro-a-ombro
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 118 / 182
social e anarquismo estilo de vida” a partir da perspectiva niilista nos leva a um
deslocamento. Não se chega nem a uma escolha de uma em detrimento do outro,
tampouco a uma negação de ambos, ou mesmo a uma síntese do tipo dialética.
Se por um lado a ontologia forte de sujeito que se mostra como condição
necessária a qualquer pensamento individualista o repele intensamente do
pensamento niilista e também o revela como um “patético e metafísico” projeto de
reapropriação; já por outro a constatação da interconectividade e da
interdependência entre os diversos aspectos do mundo humano, evidencia a
necessidade da construção de estratégias de “baixo para cima” também para a
subversão das relações de poder que se estabelecem, por exemplo, na
sexualidade e no gênero – o que reaproximaria ao menos um pouco o anarquismo
estilo de vida do niilismo pós-moderno, isto se houvesse de fato semelhanças
entre a noção de estratégia/estilo no anarquismo individualista e no pós-
modernismo, o que não me parece o caso. Por ser todo baseado na ortodoxia
liberal de indivíduo, pouco resta ao se olhar o individualismo a partir da
perspectiva pós-moderna. De certo modo, concordo com a proposição de que o
anarquismo originado no final dos anos 60, e hegemônico nos anos 70 e 80, se
caracteriza em grande parte por uma negação binária do socialismo real e do
marxismo hegemônico – o apelo ao indivíduo autônomo é uma negação do
autoritarismo presente nos discursos marxistas impregnados de estatismo. Por
outro lado, o anarquismo social não pode se limitar a ser a negação binária desse
anarquismo estilo de vida, tampouco a ser um movimento de retorno a origem, um
Renascimento anarquista. Pois, se é possível realizar associações entre o
pensamento anarquista e o niilismo (como o fiz a partir de um desvio neste texto),
faz-se também imprescindível abandonarmos toda nostálgica ortodoxia anarquista
(do tipo bakunianista) – a qual satura qualquer pensamento de características
reapropriativas em sua busca pela origem, pelos fundamentos puros e mais
verdadeiros, ainda não contaminados com as malignas revisões. Todo projeto que
se cristaliza e se fecha em si mesmo evitavelmente tem como destino se tornar
uma seita e perder qualquer capacidade efetiva de intervenção na realidade.
A meu ver, tanto o pós-modernismo quanto o anarquismo tem a ganhar com
estas associações. Para o primeiro, gostaria de jogar a hipótese polêmica de que
é o anarquismo é sua (única) chance, pois somente através da autogestão faz-se
possível retirar a experiência pós-moderna de verdade ( lichtung, meia-luz,
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 119 / 182
clareira) enquanto uma experiência estética e retórica do seu isolamento às artes
– afim de inundar as diferentes facetas da vida de estética e retórica. Já para o
segundo, entendo que uma descontrução-construção, uma reinvenção, de suas
noções e práticas se faz necessário inclusive para que o anarquismo social seja
capaz de atingir seus objetivos, de fato se coloque enquanto alternativa e força
social – pois esta releitura das noções anarquistas a partir da lente da pós-
modernidade é também uma forma de atualização de seu projeto à época e
conjuntura contemporânea. Esta tarefa já fora iniciada dentro do especifismo – por
exemplo, relendo o conceito de poder a partir dos discursos de Foucault, ou
negando (ainda que parcialmente) o materialismo ateu do século XIX – o que, por
si só já foi uma verdadeira injeção de vida no projeto anarquista. Entretanto, não
podemos nos contentar com tão pouco; muito ainda há de ser feito...
A Geografia e o Calendário – Individualismo, “pós-modernidade” e anarquismo – 120 / 182
10`
Se pudesse ter pulado estes últimos dias
teria o feito sem hesitar!
Pois como meses estes se dilataram...
Entretanto,
ainda assim,
estes últimos minutos finais
prefereria ainda mais saltar
pois estes não passam...
E se arrastam...
E não passam... E não passam...
E se arrastam... E se arrastam...
A ansiedade é tanta,
que o peito tanto me aperta...
É tanta a ansiedade,
que em meu tabaco logo penso..
Mas não o aperto,
pois a ansiedade é tanta
que cada detalhe
torna-se um receio...
um medo...
um devaneio...
Ao sanitário
algumas vezes já me fui.
Mas nada do tic-tac
que ecoa e recoa em minhas veias
passar...
Nada destes últimos átimos de angústia
passarem...
A Geografia e o Calendário – 10` – 121 / 182
Pelo contrário,
estes se arrastam...
E não passam... E não passam... E não passam...
E se arrastam... E se arrastam... E se arrastam...
Com o encurtamento da distância
e do tempo,
do calendário
e da geografia,
sinto mais um aperto
de tanto
mas tanto
desejo
pelo teu contato,
pelo nosso primeiro aureo beijo!
Tua nuvem se atrasa...
E teu vento,
o que houve com ele???
Mais 10 minutos nos separam;
10 minutos lisérgicos...
10 minutos daquele aperto...
10 minutos que não passam...
E se arrastam... E se arrastam... E se arrastam... E se arrastam...
10 minutos que se arrastam...
E não passam... E não passam... E não passam... E não passam...
E este tenso e intenso desejo que só cresce
pelo nosso primeiro tão desejado e onírico beijo...
E logo logo...
Logo ali...
Logo aqui...
E logo logo...
A Geografia e o Calendário – 10` – 122 / 182
Tu surgirás!
Como tantas outras vezes
em minhas alucinadas visões
tu já surgiras!
E através dum abraço,
num terno contato,
mergulharei.
Tendo a certeza de que aí
afogar-me-ei no desabrochar
deste belo porvir!
A Geografia e o Calendário – 10` – 123 / 182
A autogestão processual
A autogestão processual,
se o exemplo é a Harmonia
explodir-me-ei em desgosto
e isto satisfazer-me-á.
Ao menos por momentos intercalados
nos quais estarei ofuscado
pelo brilho estrondoso do espetáculo
da revolução
do sangue
do suor
da luta
da vitória
e de outras coisas mais que não me interessam
A Revolução do desencanto
o desencanto da revolução
O tsunami do estatismo é um ciclope caolho
de descomunal força
e plena estupidez
não vê o que come
pois nada mastiga
tudo engole
não sabe o que toca
e petrifica
tudo o que toca
Não sente que o mais valioso
em um poema é o ritmo
o glorioso movimento torto
das veias orgânicas
envenenadas em lótus letárgica
A Geografia e o Calendário – A autogestão processual – 124 / 182
À luz
À luz
da miséria de minha luz
vejo a miséria alheia
espalhada equitativamente
por todos
que vivem à luz
da miséria alheia
A Geografia e o Calendário – À luz – 125 / 182
A quimera da distancia
Num canto de meus olhos
aborto uma lágrima,
mas não o fado
que ela carrega.
Por mais uma vez,
entre poucas que se foram
e muitas que virão,
nos separamos...
E mesmo sabendo que
é somente a fronteira geográfica
a nos apartar, a nos dividir,
entristeço-me ao ver
o uno que tantas vezes já fomos
impossibilitado de assim
prosseguir a ser...
Todavia;
alegro-me ao perceber que,
indubitavelmente,
uma parte de ti
comigo levo,
e uma parte de mim
contigo fica.
Assim,
num canto de meus lábios
nasce um sorriso,
com o puro êxtase
que ele carrega:
A Geografia e o Calendário – A quimera da distancia – 126 / 182
Pois percebo -
sinto -
que esta minha parte
que aí deixo,
que esta tua parte,
que para lá levo,
é na verdade
o mais belo de nós...
É o que nos faz
transcender o paradoxo...
É o que nos deixa
juntos a ponto
de até poder sentir
(te juro!)
teu úmido e nauseante calor,
teu sedutor e macio sabor,
teu visceral e irresistível odor,
nosso intenso e tão avassalador,
perfeito e delicioso amor!
É o que nos deixou,
deixa e deixará,
próximos - lado a lado - mesmo que
aparentemente apartados!
A Geografia e o Calendário – A quimera da distancia – 127 / 182
A vida...
A vida...
A vida não é.
Este é o encanto
que talvez gere o desencanto
A dúvida
que traz a possibilidade,
do diverso ao subverso
A vida...
A vida está.
(e) A plenitude constrói seu lar
se avizinha à indiferença
Assim, ri-se do desespero,
é superficial.
... tanto faz …
A Geografia e o Calendário – A vida... – 128 / 182
Amélia
Com suas tranquilizadoras palavras desviadas
dialeticamente navego e vacilo formalmente
entre a beleza de tua inteligencia
e a inteligencia de tua beleza
sinto-me como que levado levemente
e acariciado pelas suas polêmicas mãos
nesta cordilheira de questionamentos contemporâneos
tu puxas minha visão par os picos
contudo sempre a partir da extensa base
utopicamente militando para estas montanhas mover
reconstruindo-nos enquanto um nivelado rizoma
extasiamente inspira-me a ousadia
mas alertando para o perigo emboscador
de cairmos no tecnocrático cortejo
da voz grossa do Zeus estado-nação
Intenciono assim,
então,
agradecer-te por trazer esta motivadora e geográfica
provocação
nas terças de meu calendário
A Geografia e o Calendário – Amélia – 129 / 182
Ao empurrar o ar para dentro da gaita da namorada
Ao empurrar o ar
para dentro da gaita da namorada
embriago-me de loucura e tesão
minha pressão sobe a cabeça em
uma lobotomia de sensações inexoráveis,
um brainstorm de sentimentos musicais
da pauta de um bêbado
(hm... tonturas de wormwood...)
ou espasmo atordoante da emancipação?
A arritmia frenética
do perfeito atonalismo;
o calor feroz
daqueles não-virgens
belos belas
delícias!
Ah! O ápice!
O ápice culmina no cheiro doente,
Obsessivo!
da sua úmida profundidade do sonho!
do desejo do ser
da felicidade de poder possuir
mesmo que efêmero
e que etéreo
e hétero
pois em minhas ambições
torno-me o sonhador,
deliro com o átimo no qual
o segundo conceitual nega a si mesmo na síntese do absurdo:
A Geografia e o Calendário – Ao empurrar o ar para dentro da gaita da namorada – 130 / 182
a convocação de uma só ideia,
uma só abstração real,
que nos separa
ao tempo de nos unir
A nota perfeita não é nota,
é movimento, é dança
é cheiro
é loucura
é vida
é amor
é você Lorena meu amor
que nos une ao tempo
de nos separar
A Geografia e o Calendário – Ao empurrar o ar para dentro da gaita da namorada – 131 / 182
Biopsicoterrorismo
Minha pasárgada é cheia de altruístas,
... Todos a pensar no meu bem-estar ...
e eu, misantropo, a los rejeitar ...
A sociedade é uma halucinação,
biopsicoterapia nada resolveria,
só a química,
só o químico
Das imagens turvas espelhadas; aterradoras!
Não quero?
Quero só a minha redoma!
quero o mundo
o multiverso inteiro está em meu umbigo!
e meu alimento seguro e nutricional seria só a minha pequena porquinha
SMeu lombo!
A me morder a barriga minha.
Só solapar a sopa de solipsismo
olhando com a ajuda da máquina da fome
da halucinação da fome
vejo o fundo do fundo prato:
bi-solipsismo interdimensional
- um poema radical!
algo completamente patético...
quase tão quanto rimar o próximo verso
com um azedo sarcasmo perverso...
rimar é brincadeira de infante com problemas
- odeio repetição de fonemas... -
A Geografia e o Calendário – Biopsicoterrorismo – 132 / 182
Biopsicoterrorismo:!
! Literal e Visceral !
A desestruturação do coletivo visto a
aletheia
Inventamos tanto... De deus a humanidade...
Só para nos esquecermos que somos
fera,
e como fera
devemos agir!
A Geografia e o Calendário – Biopsicoterrorismo – 133 / 182
Cafajeste
seria eu um cafajeste
por amar uma, duas
três, quatro, cinco!
Mulheres simultanea-
mente?
Ou seria eu um grande
amante
um grande amador
no sentido daquele
que muito ama
mas, sente a dor
de não poder
com o mundo compartilhar
tanto amor?
Como nos inqueriria o poeta:
como podes,
entre humanos,
senão amar?
Como evitar
amar
muitos diversos indivíduos
desta épica espécie
eternamente
em epopeias?
A Geografia e o Calendário – Cafajeste – 134 / 182
A vida é real demais
para cairmos em privadas propriedades
e regras matrimoniais
a vida é real demais
para vivermos em monogâmicas
utopias umbilicais...
mas não é tanto
para vivermos em horizontes
surreais..
banhados
de amor e de novos
ideais!
A Geografia e o Calendário – Cafajeste – 135 / 182
Caravela
Quando a caravela que ostenta a rubro e sagrada bandeira do por completo a ti entregar
conquista aquele velho porto meu que - sem dúvidas - outras senhoras já teve, este torna-
se tabula rasa e põe-se, com ternura, a acariciar o aveludado lençol marítimo. Como se
estas águas fossem ainda terras não desbravadas tão somente por serem novas...
Contudo, aí não há erro tampouco ilusão, pois o nosso amar é como uma social
revolução, não como um simplório golpe de Estado jacobino. Não é uma mera troca de
nomes onde as normas são mantidas.
Pois, ao jogar meu olhar para trás, abrigando-me em teu porto, nada mais vejo!
Pois, a tua - a nossa - intensidade é tamanha que nosso passado ofusca!
Pois, a tua - a nossa - intensidade é tamanha a ponto de todo o resto tornar-se
insignificante, irrelevante, incompleto...
Pois, a intensidade é de tão abissal tamanho que faz-me pensar: "Será que dantes já
amara?".
Faz-me sentir-te como a minha pioneira e única amada!
A Geografia e o Calendário – Caravela – 136 / 182
Deveria, poderia, gostaria
Deveria eu, tê-la conhecido?
Poderia eu, ter tido escolha?
Como uma leve ensaboada bolha
toda resposta estoura, se suicida
Mas, em não mais de um átimo,
o pra sempre rapidamente passa
o embasado eterno torna-se passado
enquanto o futuro certo, volta a ser aberto
Deveria eu, por tantas horas e horas,
em tão poucos e breves dias e noites,
ter me entretido tanto com teu falar
e me perdido naquele terno fugaz agora?
Poderia eu, ter covardemente evitado?
Fugido da realidade como um cândido crente?
ou da revolução como um rico burguês?
Interrompido o fluxo não-mais-que-de-repente?
Tanta interrogação,
que, como ensaboadas bolhas de sabão,
estouram e se vão,
estouram em vão...
Deveria eu, tê-la beijado?
Desde o início a anaconda de centenas
e centenas de metros de distancia
apavorava-me com sua seca dura pena...
A Geografia e o Calendário – Deveria, poderia, gostaria – 137 / 182
Mas, poderia eu, ter a contornado?
O contato úmido de nossos corpos quentes,
quando estes transbordavam de desejo,
ficara sim somente em nossas mentes...
Mas persiste! Reverbera forte em meu pensar!
Será que sentirei, vindos do sul, ecos?
Sei que sinto-me como um jovem adolescente
atordoado com seus primeiros ingênuos xavecos...
Enfim;
Deveria eu, tê-la conhecido?
Poderia eu, tê-la beijado?
Gostaria eu, de tê-la beijado?
Sim.
A Geografia e o Calendário – Deveria, poderia, gostaria – 138 / 182
Duas Gatinhas
Dentro de meu coração,
duas doces gatinhas,
com capricho e paixão,
constroem suas acolhedoras tocas
aos poucos e sem pressa
pedra por pedra, folha por folha.
Pois de todo um longo trajeto,
muito ainda nos resta!
Dentro meu templo de eros
duas gatinha se abrigam;
E como muito as quero,
ir e vir livremente as deixo;
Pois sei que um roçar mero,
certamente é incapaz de cortar,
nossos laços tão sinceros!
Dentro deste sentimental dândi,
duas gatinhas carinhosas ronronam;
São minhas queridas amantes,
uma gaucha outra caipira,
uma pequenina outra gigante;
Duas das mais charmosas felinas,
uma chamada Eliete,
e a outra, Mandi!
A Geografia e o Calendário – Duas Gatinhas – 139 / 182
Em todo e qualquer
Em todo e qualquer quadro
que minha muito afobada imaginação
pincele nas entranhas de minha mente
encontrarás aquele tão prometido vinho
e ti, em meus braços presente
Em todo e qualquer pensamento
que, por mero acaso, por mim passe,
parar e o ler nem se faz necessário,
saibas que lá tu estarás independente
da geografia e do calendário.
Em todo e qualquer sonho
que por ventura venha me alegrar
és tu, dúvidas não tenha
que, nesta onírica nuvem,
sempre estás a me acompanhar
Em todo e qualquer momento
que em devaneios eu me perder
é certo que a única culpada
pelo meu imutável sorriso bobo
é somente tu, ó minha amada.
A Geografia e o Calendário – Em todo e qualquer – 140 / 182
Em todo e qualquer quadro
de todo e qualquer pensamento,
Em todo e qualquer sonho
E em todo e qualquer momento
cá estou;
de bobeira sim, mas sem ti...
cá estou;
mas sempre contigo em meu divagar...
cá estou;
de corpo sim, mas na real não aqui...
cá estou;
mas sempre, sempre desejando aí estar...
A Geografia e o Calendário – Em todo e qualquer – 141 / 182
Leilane
Leilane, leilane;
O que sou?
O que tu es?
O que somos?
O que sou para ti?
O que tu es para mim?
O que somos??
Sou eu somente mais um caso?
De muitos que tu já tevês...
Seria eu somente um mero acaso?
Ou teríamos uma certa relação?
Por mais fraca que seja...
Seria ao menos uma mini-relação?
Ou um ébrio desvio, uma traição?
Uma loucura indevida, mas recíproca...
Seria uma paixão, uma convicção?
Será que poderíamos falar em amor?
Será que ousaríamos, deveríamos?
Seríamos ao menos amantes?
Seremos ao menos amantes?
Leilane, leilane;
o que somos?
o que somos?
A Geografia e o Calendário – Leilane – 142 / 182
Leilane,leilane;
só o tempo, só o tempo;
leilane,leilane;
nos dirá
se o nosso caso,
o nosso acaso,
a nossa relação,
ou mini relação,
nossa traição,
ou convicção,
o nosso amor,
ou minha amante,
já teve,
seu meio e seu fim
e seu desnorteador começo!
ou se tivemos ainda,
tão somente um prenuncio
do romance que virá
a um dia se desenrolar...
para então,
num outro dia de verão,
vir a novamente se consumar
e fugazmente se findar...
A Geografia e o Calendário – Leilane – 143 / 182
ou quem sabe;
quem sabe;
Leilane;
leilane;
venha o tempo nos contar,
nos mostrar;
que a nossa história,
nosso calendário;
não terá,
nem fim nem meio...
Permanecerá,
mesmo sem ter palavras
para se nomear...
Mesmo sem ter formas
de a si mesmo
analisar.
A Geografia e o Calendário – Leilane – 144 / 182
Nada Falar
Quero vê-la Mila
mas nada falar
quero ver tua boca
mas nada falar
quero ver teu olhar
mas nada falar
quero ver teu corpo
mas nada falar
quero nada falar
mas não por covardia
queria eu ter coragem
para nunca nada falar
ao menos não agora
ao menos não
neste dia...
Pois o que devo te falar
ainda eu que
certamente o saiba que
Não irá me agradar
e irá me amargar
e irá te brochar
ainda assim eu
devo te falar...
A Geografia e o Calendário – Nada Falar – 145 / 182
Talvez tu compreendas
trata-se duma questão disciplinar
que eu devo acatar
todavia eu
devo ser homem para declarar
que é sim uma escolha
inclusive acredito
que nunca temos a escolha
de não optar
a abstenção é uma escolha
a liberdade não é uma opção
é uma condenação
intrínseca parte indelével
da humana condição
Porém o que devo te falar
tu até já sabes
mas com estes prolixos versos
tento doutra forma me expressar
Quero tê-la Mila
mas nada falar
queria beijar tua boca
mas nada falar
queria sentir teu olhar
mas nada falar
queria ter teu corpo
mas nada falar
Nada... Nada...
Nada além de ternos gemidos
e insensatos e delirantes
juras de amor
para um hipotético
poético futuro...
A Geografia e o Calendário – Nada Falar – 146 / 182
Nas Nuvens
Volto em meio as nuvens.
E sobre elas caminho;
E sobre elas vislumbro;
nosso avoado destino...
E daqui do alto
d'onde tu me lançaras
pasmo ao intuir
que este é tão belo e único e forte
como a mítica e envolvente magia
do mais deslumbrante
raiar da aurora
dum novo dia.
A Geografia e o Calendário – Nas Nuvens – 147 / 182
Neste Ruminar de Plástico
Neste ruminar de plástico...
...e artificialidade
tudo que mais quero...
...é tão somente
viver...
...com alguma autenticidade!
Neste torpor de apatia...
...e arbitrariedade
tudo que espero...
...é que se arrebente
agora...
...e não mais tarde!
Neste ruminar de plástico...
...e artificialidade
Nada mais belo...
...que uma semente
de opaca...
...e feroz vivacidade!
Neste torpor de apatia...
...e arbitrariedade
Nada mais digno...
...que de repente
ROMPER!...
...Os grilhões que nos prendem,
e descoisificar a mulher...
...e o homem;
do campo...
...e da cidade!
A Geografia e o Calendário – Neste Ruminar de Plástico – 148 / 182
O Rio das Mágoas
O rio das mágoas
cheira a sal
tão forte
que censura
o fedor
fétido
dos peixes mortos
da motivação
Desgosto de sal:
rochas raladas
que me estressam
e equalizam
todos os sabores
dos mais belos pratos,
suculentos para os olhos,
simplórios
para o tato ousado
A vanguarda cambaleia
desencantada
perdida
tateando as sombrias
paredes arenosas
do labirinto misterioso e
do desconhecido que
está por vir
A Geografia e o Calendário – O Rio das Mágoas – 149 / 182
Os tornados destroem
todas estruturas
das areias
só para recriar
a
aleatoriedade
mística que nos drena
para o fundo
das movediças
fossas abissais
Possamos nós?
Posso eu?
levantar a cabeça
empinar as furadas narinas
e andar ereto
em dissimulada
linha reta
Ignorando a
força confusa
intravenosa
ébria
que nos obriga a
entrelaçar
pensamentos
e me derruba para o fundo
das chapadas fossas abissais
A Geografia e o Calendário – O Rio das Mágoas – 150 / 182
E os guetos?
tão sóbrios
tão monótipos
tão sábios
tão conhecedores
dos seus respectivos próprios umbigos coletivos ficcionais
tão cegos quanto eu
porém fingem visão
e nada tateiam
e do seu lugar não saem...
e do estômago
o sal não sai
A besta sabedoria
da besta popular nos diz:
"Todos os caminhos levam a Roma"
Contudo;
Toda Roma tem seu Nero...
A Geografia e o Calendário – O Rio das Mágoas – 151 / 182
Passe Livre Já!
Os sotoporitanos gritam
que por suas praças
esta indigesta tarifa
não, não vai passar!
Enquanto que em floripa
já ouço a bateria anunciar
uma nova batalha da tarifa
a se aproximar!
Já os gaúchos
gritam que está tri caro
e lá pelo ir e vir
2,70 ainda pagam!
Enquanto isso nós
da capital de são paulo
exaustivamente gritamos que
"três três reais não dá"!
Andemos pelo norte
ou andemos pelo nordeste...
Andemos pelo sul
ou andemos pelo sudeste...
Ou até mesmo, quem sabe,
andemos pelo centro-oeste...
A Geografia e o Calendário – Passe Livre Já! – 152 / 182
Nas diversas geografias
desta extensa terra,
ouviremos as gritarias
desta interna guerra!
Sentiremos o eco no ar
da voz do povo ameaçar,
que "a cidade vai parar
se esta tarifa não baixar"!
E se conseguíssemos?!
Concretizar estas palavras...
E se conseguíssemos!?
Todas estas ruas ocupar...
Não seria, então,
mais correto gritar:
que se "a tarifa não baixar
é o Brasil que vai parar"?
E assim,
sigo meus versos
e é assim,
que eu reclamo
contra este
sistema perverso!
em meio as lutas
minhas rusgas declamo!
A Geografia e o Calendário – Passe Livre Já! – 153 / 182
Pois,
mais me apetece
palavras que como pedras
voem
e doam!
e poemas que como molotovs
queimem
e explodam!
Mas,
voltando a nossa bandeira,
a nossa discussão,
voltando ao principal cerne
da nossa questão:
Uns lutam contra 3,14
outros contra três
Uns lutam contra 2,70
outros contra dois ponto seis
Entretanto, pergunto:
quanto querem estes que gritam?
Quanto o silêncio deles custa?
Por quanto eles se resignarão
e deixarão vazias estas ruas?
A Geografia e o Calendário – Passe Livre Já! – 154 / 182
Dois e cinquenta é suficiente?
Não... Não...
Dois reais os acalmará?
Não... Também não...
Um e cinquenta os satisfará?
Não, não e não...
Um misero real que seja!
Será talvez capaz
desta voz calar?
Também não...
Também não!
Pois,
o que é que eu espero;
O que é que nos fará calar...
- a única coisa capaz de nos fazer calar -
É somente...
A tarifa zero!
É somente...
O passe livre já!
A Geografia e o Calendário – Passe Livre Já! – 155 / 182
Poema a uma Bela Jovem Guria
Noutro dia, deste calendário
Conheci uma bela jovem guria,
Nos campos da uspiana geografia
Neste mesmo dia,
esta jovem guria,
Contou-me que fora seu pai
que, de outras geografias,
trouxera aquele forte e marcante
contorno de seu suave semblante
e tintura de sua pele macia
Todavia;
Naquele conjunto de dias,
aquela bela guria,
daquela geografia,
impressionar-me-ia
mostrando-me uma terna mistura
de intensa sinceridade
com coragem para maturidade.
(a essencia
que transforma em mulher uma guria,
eu diria,
que não é o quanto da vida ela sabe,
mas o não hesitar em carregar responsabilidades)
A Geografia e o Calendário – Poema a uma Bela Jovem Guria – 156 / 182
E como,
durante estes dias
na específica geografia,
por tal bela jovem guria,
fui eu muito bem recebido
escrevo-te esta poesia,
que,
embora, talvez, não tenha valor
possua sim, um certo calor,
para mostrar-te que
estou muito bem
agradecido!
A Geografia e o Calendário – Poema a uma Bela Jovem Guria – 157 / 182
Poema Sem Nome (I)
Somente por cima de ti
tenho certeza
piamente acredito em minha
abstrata existência
sinto o urgir de tamanha
capacidade e potencia
fora de ti sou pura inconstância
um passivo ator
ora emulo a paulistana arrogância
ora a geminiana insegurança
ora a sagrada e santista rebeldia
ora tão só niilista covardia
mas não, não, não
não diga nunca
não, não, não
nem diga agora
pois mesmo muito embora
tu não sendo minha senhora
não se vá!
nunca vá embora!
pois além de tanto querer-te
tanto de ti, sou dependente
A Geografia e o Calendário – Poema Sem Nome (I) – 158 / 182
dependente
viciado
escravo
destes suspiros e sussurros em sua nuca
destes beijos e mordidas de sua boca
deste ir e vir de sua cintura
deste tremer de tanto gemer
deste não mais poder
nem querer!
o grito segurar
deste amar amar amar...
por favor, então,
com ingenuidade suplico-te:
não não diga nunca
não nem diga agora
esqueça
essa
pressa
dilatemos esta dionísica dança, ao máximo!
assim como se dilatam as minhas pupilas
ao desbravarem sua graça
voltemos
para
grécia
estendamos esta festa
pois na síntese
do instantâneo com o infinito
habita a esperança!
A Geografia e o Calendário – Poema Sem Nome (I) – 159 / 182
ou pelo menos gatinha
não se esqueça
que somente por cima de ti
tenho certeza
somente dentro de teu mundo
sei quem e o que sou
sei que insisto e existo
desbravo a geografia donde resido
e intuo o inventado calendário
Somente dentro de teu mundo
sei sem hesitar que vivo
por isto mia senhora:
não diga nunca
nem mesmo agora
não ouse ficar
muito menos ir embora!
não se abra assim
nem me deixe de fora
façamos então
deste nosso momento nostro
a fusão do eterno
com o agora
A Geografia e o Calendário – Poema Sem Nome (I) – 160 / 182
Poema Sem Nome (II)
Queria te dar uma poção de esquecimento
para que tu esqueceste
todo mal que já te fiz
e tão somente recordaste
os momentos indeléveis que compartilhamos.
Queria voltar ao passado
e refazer os equívocos que cometi
engolir as durar palavras que vomitei
permutar as infantes ofensas
por ternos afagos em ti
Queria ir ao futuro
para juntos e felizes nos ver
somente para certeza ter
que nosso amor é intenso e extenso
e assim de vez abortar a insegurança
Mas não posso...
nem mesmo estes tortos versos,
recitar para ti eu posso...
Mas não posso...
nem mesmo ti sussurrar:
Vem pra mim...
... vem meu bem...
vem fazer de mim...
... um melhor alguém...
A Geografia e o Calendário – Poema Sem Nome (II) – 161 / 182
Poema sobre coragem
"Teto, tierra, trabajo, paz, salud, educação, independencia, democracia, libertad, estas
foram nostras demandas em la larga noche de los 500anos, estas son, hoy, nostras
exigencias!"
Parte I:
- Quem ousará desistir?
- Quem?
Num mundo submerso em redemoinhos,
em permanente e humana crise;
Crise do trabalho
e crise financeira.
Crise do estado
e crise popular.
Crise de violência
e crise produtiva.
Crise do espetáculo
e crise burocrática.
Crise da ordem
e crise sistêmica.
Crise de nervos
e crise depressiva.
Crise do humano
e humana crise do capital!
- Quem ousará desistir?
- Quem?
A Geografia e o Calendário – Poema sobre coragem – 162 / 182
Num mundo revirado ao avesso,
de pernas para o alto,
onde por papel se morre;
e pior!
Por papel também se vive!
- Diga-me quem?
- Quem!?
Ao se deparar com tamanha pedra no caminho!
Com tão grande desafio!
(O de regenerar uma desumana humanidade)
Não se sentiras,
tão somente por isto,
tão somente pela extensão da muralha,
pela espessura da parede,
e pela altura da montanha;
- Diga-me quem!?
Não se sentirás
energicamente motivado?
- Quem ousaria desistir?
- Quem?
A Geografia e o Calendário – Poema sobre coragem – 163 / 182
Numa sociedade em incontesta decadência.
Onde os ideológicos sermões
dos sacerdotes da submissão
em seus consumidos templos do consumo
não mais atingem as mentes.
Tão somente as genitálias...
De um povo que em barbárie respira.
Mas; não seria este não-mais-ouvir
um claro sintoma da ebúrnea fragilidade
de um sistema em descrédito, em falência?
(lembremos que quando os escravos não aceitam sua "inferioridade"
somente o político chicote policial pode impor a "superioridade"
e destruir a originária, esperada e desejada,
entre humanos macacos da mesma espécime,
igualdade.)
- Quem ousaria desistir?
- Quem?
Nada mais natural,
nada mais próximo do ethos,
mas também da ética,
Que a mulher
(e o homem),
depois dessa titânica visão,
sorrir
erguendo as mangas da camisa
como quem diz:
"Vamos lá?
Todos prontos?"
A Geografia e o Calendário – Poema sobre coragem – 164 / 182
Como manter a dignidade,
como manter a humanidade,
senão desta maneira?
senão dentro da sofrida,
todavia muito querida,
trincheira da luta classista?
- Quem de vocês ousará desistir?
- Quem?!
Interlúdio:
Acorda,
ó dragão adormecido!
Acorda,
mostra o dente, o sopro
e o sorriso!
Parte II:
E acredites
Meu caro amigo,
que conheço
uma cara compa,
que ao se deparar com aquela imensa montanha,
não desistiu
e não desistirá!
A Geografia e o Calendário – Poema sobre coragem – 165 / 182
Uma lutadora!
Que tem sua própria lunar beleza
reforçada e ao horizonte ampliada
por uma contagiante coragem.
Uma destemida combatente!
Uma mulher-soldada!
Que, nesta cruel guerra da humanidade contra sua negação,
contra seu fim e sua destruição,
não carece dos louros da vaidade
nem de sua graça autografada na estória,
para empunhar seu preciso armamento
e desalambrar as terras da história!
E, saibas:
Que nestes dias de grande crise
deste mundo revirado,
que nesta desumana humanidade
desta decadente sociedade,
Nada pode ser mais belo,
mais admirável e sensual,
do que o seu engajamento moral
e do que sua inspiradora coragem!
A Geografia e o Calendário – Poema sobre coragem – 166 / 182
Uma fêmea que é como a "uma flor que nasceu na rua!"
A "uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto!"
A uma flor do povo!
É forte! "Mas é uma flor!
Fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."
De todo esse entediante, nojento e odioso
cotidiano que, sem mastigar e no seco,
diariamente engolimos!
Somente para depois,
Sem querer e em asco,
com os olhos muito bem cerrados,
o regurgitar!
A Geografia e o Calendário – Poema sobre coragem – 167 / 182
Quando Fizer um Filme
Quando fizer um filme
as vaquinhas serão minhas atrizes
todas de argola no septo,
como meu amor,
e vida na boca,
que vai e vem
vem e vai
ruminando...
um caminhar sem pressa
e sem sentido.
Não que belas sejam vacas
sim que feias são humanas
toda humanidade
tão idosa na conservação
na sua cultura idiossincrática
com tanta bobagem airada
quero amar as vacas
amar como as vacas
sem pressa
indo e vindo
vindo e indo,
sem sentido
ruminando a vida,
com argolas no septo,
tudo está tão certo!
enfim,
pois
nada
errado é!
A Geografia e o Calendário – Quando Fizer um Filme – 168 / 182
Quem é Aquela que Se Vai?
Quem é aquela que se vai
e por que se vai?
Por que se vai
se nossa maloca
nossa humilde potoca
resistira a tantas investidas,
tanto do terremoto da mineira
saíra ilesa, inteira,
quanto do maremoto santista.
Já fora, até mesmo,
reconstruída
ao passar aquele terrível
incêndio paulista
Quem diria
que seria
o vento
não o tempo
que viria
a demolir?
Quem diria
que aquela suave brisa
certo dia
arrasaria a mão que àlisa
e voltaria
a ser um selvagem tufão
com sua arredia
instabilidade, inconstância e confusão.
A Geografia e o Calendário – Quem é Aquela que Se Vai? – 169 / 182
É a ventania
que pode estar calma e tranquila
mas nunca, nunca controlada!
É a rebeldia
que com as certezas aniquila
com a vorpal lâmina de sua espada!
Você é perfeita,
mas perfeição não é o que procuro...
Eramos felizes,
sim, sonhávamos com o futuro...
Todavia
todavia
eramos...
Mas em não menos de um átimo
o para sempre rapidamente passa
o pesado eterno torna-se passado
enquanto o futuro certo, volta a ser
aberto
A Geografia e o Calendário – Quem é Aquela que Se Vai? – 170 / 182
Sua lacrimosa voz diz-me:
"Tires uma foto do meu eu interno
que terás a imagem dum deserto".
Mas ouça-me, saiba que até mesmo teu choro
decerto, é capaz de irrigar-te,
e fazer novamente florescer
a bela!
a linda!
a gostosa!
a sábia!
a sensata!
a sensível!
a companheira!
a empática!
e a ética!
(a potota);
que existe em você!
A Geografia e o Calendário – Quem é Aquela que Se Vai? – 171 / 182
Se São os Astros
Se são os astros que me dizem,
quem serei eu para negar?
Que tanto me atrai tua forte personalidade
herdada pelo exato posicionamento lunar...
Se é meu coração que me diz,
como poderei eu simplesmente relevar?
Esta curiosidade que tanto me instiga
a pelo menos tentar ser teu par...
Se é meu tesão que me arrepia,
como poderei eu timidamente disfarçar?
Pois ao deitar o olhar por sobre seu corpo
sinto o arder de teu fogo, irradiar...
Se são os astros que nos dizem,
quem seremos nós para negar?
Este felino desejo de nos ver, nos falar, nos roçar
convivendo juntos neste mesmo retomado lar...
A Geografia e o Calendário – Se São os Astros – 172 / 182
Socrática Musa
Conta-se num novo mito
(o qual conheço sem nunca
- até agora -
tê-lo ouvido)
que no desabrochar dum dia
(o qual acriticamente acredito
que fora
o mais intenso de todos dias)
viera o primeiro dos quentes raios
(o qual fora bastante destemido
- já que -
ceifara seu próprio caminho)
a mais oriental das terras de cá
(a qual também parece-me que é
- quem sabe -
a mais fértil para o germinar)
tão somente para iluminar
esta vida em potencia
com este cativar em latência...
Surgira, então, assim
aquela que ainda viria a ser
ti!
minha terna musa
platônica
socrática
e aristotélica!
A Geografia e o Calendário – Socrática Musa – 173 / 182
Solidariedade
Somos todos sem terra!
Seja na paz,
seja na guerra!
Somos todos sem teto!
Seja na velhice,
seja no feto!
Somos todos sem emprego!
Seja agora,
seja amanhã cedo!
Somos todos sem salário!
Seja na vida,
seja no mortuário!
Somos todos sem busão!
Somos todos sem educação!
Seja no inverno
seja no verão!
Somos todos sem trégua!
Seja na paz,
seja na guerra!
Somos todos insurretos!
Seja na velhice,
seja no feto!
A Geografia e o Calendário – Solidariedade – 174 / 182
Somos todos sem medo!
Seja agora,
seja amanhã cedo!
Somos todos revolucionários!
Seja na vida,
seja no mortuário!
Somos todos sem opção!
Somos todos pela expropriação!
Seja no inverno,
seja no verão!
Que seja de paz,
não seja de guerra!
Quero ver outro mundo nesta terra!
Que desde a velhice,
até o feto!
Todos recebam o devido afeto!
Que seja agora,
não amanhã cedo!
O raiar deste formoso enredo!
Que espalhemos vida,
não mortuários!
Em nossa geografia e calendário!
Que seja no inverno,
e seja também no verão!
Queremos ver
- lutar e construir -
um mundo sem patrão,
e sem estado-nação!
A Geografia e o Calendário – Solidariedade – 175 / 182
Sou Caçador de Sonhos
Sou caçador de sonhos,
um sonhador em coma,
em torpor induzido pela fome de algum.
como um vampiro agarro minha presa pelas veias e a absorvo em cruel ansiedade
em um momento é quente
pulsante
cheia de vida e verdade
apos um piscar...
só os vermes remexem por cima de sua carcaça
é durante este curtíssimo instante
nos quais meus olhos estão cerrados
que me sinto satisfeito;
para depois tilintar com o frio
deste cadáver ilusório - cético
Cuspo no prato que comi
Desdigo tudo aquilo que eu disse antes
Mas;
é imprescindível,
continuo a caçada
Já aceito até pesadelos
pois, as vezes, estes demoram mais para serem digeridos
e de qualquer jeito
o importante é ter estômago forte
e andar armado
com o martelo da filosofia
e a foice da maldita colheita dos poetas malditos
subversivados
Com a bandeira negra
nos explosivos corações
A Geografia e o Calendário – Sou Caçador de Sonhos – 176 / 182
Sou Incapaz
Sou incapaz
por livre espontânea pressão
da própria determinada pessoa
que os românticos chamam de
"EU"
De ser
aquele mítico fruto histórico
pretensamente eterno e perfeito
que os cientistas denominam
"homem racional"
Contudo
Capaz sou de contar com os olhos
quantos instantes
duram o eterno
quantos erros
compõem o perfeito
A Geografia e o Calendário – Sou Incapaz – 178 / 182
Te Quero!
Imagina-me
ouça-me!
Sussurrar-te baixinho:
"Te quero...
E como te quero...
...Quero-te como a ninguém"
Imagina-me
sinta-me!
Saturar-te de carícias,
te banhar de beijos
como uma linda gatinha,
tanto carece e merece
Imagina-me
lembra-te!
Quando nossas respectivas trilhas
tangeram-se, se relaram
e como que, de imediato,
intensamente se abalaram
A Geografia e o Calendário – Te Quero! – 179 / 182
Saiba te...
que entorpeço-me!
Juro-te...
que entorpeço-me
Juro-te...
que perco-me!
Juro-te...
que perco-me a divagar
... como será
como tão bom será
voltar a tanger,
voltar a relar,
teu caminho... teus cabelos
teus sorrisos e teus risos
e teu suave sotaque sulista
e juro-te!
que desta vez
colidir-nos-emos
inexoravelmente
e juro-te!
que desta vez
faremos tudo o que ficara
somente nas ideias,
somente nos poréns
e juro-te!
que desta vez
com tanta,
mas tanta vontade,
amar-te-ei
que não saberás
que não saberei
se fora como a última
ou como uma nova
primeira vez...
A Geografia e o Calendário – Te Quero! – 180 / 182
Imagina-me
ouça-me!
Sussurrar-te baixinho:
"Te quero...
E como te quero...
...Quero-te como a ninguém"
A Geografia e o Calendário – Te Quero! – 181 / 182
Versos Subversos
Versos subversos
submergidos em
páginas amareladas
de papel reciclado
reciclam a vida de piratas
submersos
em pretensos náufragos
mas que em algum lugar,
de insignificante significância,
ainda respiram
ao comando
d'algum necromante
que bobos versos escreve
no passado
ao lado da pretensa
revisão do cálculo
A Geografia e o Calendário – Versos Subversos – 182 / 182