a etica da reciprocidade - dial - luiz jose verissimo

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  • A tica da reciprocidade: dilogo com Martin Buber

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  • A tica da reciprocidade: dilogo com Martin Buber

    Luiz Jos Verssimo

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  • 2010, by Luiz Jos Verssimo

    Editora UapAv. Olegrio Maciel, 511/303 CEP. 22621-200 Tel. (21) 2493-9175homepage: www.uape.com.br e-mail: [email protected]

    Editora Responsvel: Leda Miranda HhneAssistente de editorao: Thereza Martins de OliveiraReviso: Michele SudohDiagramao: Nathanael SouzaIlustraes: 1a Foto do autor

    2a Tela de Monet - As papoulas 3a Pintura de Helena Felicidade Contracapa: Pintura de Helena Felicidade

    Direitos de edio da obra adquirida pela UAP Espao Cultural Barra Ltda. Av. Olegrio Maciel, 511/303 CEP 22621-200 Rio de Janeiro Tel/fax: (21)2493-9175.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    V619e Verssimo, Luiz Jos A tica da reciprocidade : dilogo com Martin Buber / Luiz

    Jos Verssimo. - Rio de Janeiro : Uap, 2010. 201p. : il.

    Inclui bibliografia ISBN 978-85-85666-85-9 1. Buber, Martin, 1878-1965. 2. tica. 3. Filosofia e religio.

    4. O sagrado. 5. Misticismo. I. Ttulo.

    10-0119. CDD: 170 CDU: 17 11.01.10 12.01.10 017071

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    Ag r A d e c i m e n t o s

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnol-gico, pela concesso de bolsa de estudos de doutorado.

    Ao meu orientador Professor Doutor Olinto Antnio Pego-raro, pelo calor humano, apoio repleto de confiana, ensinamen-tos, modo de concepo da existncia, e por me ensinar, at pelo seu exemplo vivo, o valor tico da pessoa.

    Ao meu eterno mestre Leonardo Boff pelo seu apoio em todas as minhas caminhadas, desde o mestrado, sempre com so-licitude e zelo nas suas avaliaes, e com muita fraternidade nos encontros, abrindo luzes para a construo do meu pensamento na religio, na psicologia e na filosofia, ajudando-me a compreen-der um pouco mais, a cada dia, o significado do cuidado.

    s professoras Doutoras Maria Helena Lisboa Cunha e Ma-ria Luiza P.F. Landim pelo seu toque feminino, tecendo valiosas observaes, com a anima inspirada pela esttica do imaginrio e pela natureza.

    Ao Professores Doutores Emmanuel Carneiro Leo e Luiz Eduardo Bicca pelas suas aulas, palestras, escritos, seu esprito acolhedor, orientador, sua solicitude, pelos seus ensinamentos que ajudam a tantos alunos como eu a esforar-se para aprender a pensar.

    Mestra, Tereza Cristina Saldanha Erthal, por se fazer pre-sente e inspirar a mais autntica f na existncia.

    s alunas Ana Maria Abreu Pereira da Silva e Tssia Dona-dello Ferreira por sua reflexo a respeito da relao entre tica e psicologia.

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    Dedico esse trabalho s pessoas muito queridas que se fazem presentes nas conversas mesa, nas aprendizagens do dia a dia, caminhando pela Vida, para quem o compartilhar ainda faz sentido.

    Marilda, por partilhar a experincia do encontro.

    Famlia, que me mostra o exemplo vivo da Comunidade.

    Aos queridos Mestres, cuja ddiva do Cuidado no tem preo.

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    O cuidado somente surge quando a existncia de algum tem importncia para mim. Passo ento a dedicar-me a ele. Disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.

    Leonardo Boff

    No basta ser senhor de si; ningum tico para si mesmo. Ningum virtuoso diante do espelho. Somos ticos em relao aos outros, visto que o comportamento sempre transitivo e recproco.

    Olinto Pegoraro

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    su m r i o

    Prefcio ............................................................................................. 13

    Introduo ........................................................................................ 17

    Captulo I Matrizes da experincia religiosa: o totalmente outro e a metafsica ......................... 29

    O totalmente outro e o ocaso do ser humano ........................ 31O nada, o tudo e o trgico ........................................................ 36Confronto da fenomenologia de Otto com a metafsica ...... 41O renascimento do ser humano luz do Ser ......................... 48O esquecimento do ser humano e o esquecimento do sagrado .............................................................................. 53

    Captulo II Interpretao do sagrado a partir da leitura de Martin Buber ............................................................ 55

    Eu e Tu como uma relao originria entre o ser humano e o sagrado ..................................................... 57Interpretando o sentido de reciprocidade .............................. 67Caminhar pelo abismo .............................................................. 72

    Captulo III A condio humana e o sentido tico e psicolgico da pessoa .......................................... 83

    A interface da imanncia com a transcendncia ................... 85

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    O modo Eu Isso e o encontro Eu e Tu. ................................ 87O falar com e o falar sobre ........................................................ 99O carter originariamente simples do encontro .................. 112Consideraes sobre o sentimento ........................................ 127O encontro da pessoa com o Tu envolve a mstica .............. 146Sobre a noo de comunidade ............................................... 161A construo da pessoa e o modo de ser egtico ............. 176Perspectiva tica acerca da psicologia da pessoa ................. 184

    Bibliografia ..................................................................................... 193

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    Pr e f c i o 1

    Luiz Jos Verssimo acede ao tema da tese com uma bagagem considervel. J fizera sua tese de mestrado nesta mesma Casa2, sobre a Experincia religiosa como expresso de si-mesmo a partir de C.G. Jung. Agora no dialoga apenas com C.G. Jung, mas convoca para a mesma roda Martin Buber, Rudolf Otto, Mir-cea Eliade, Schleiermacher, Kierkegaard e outros. So autores se-minais dos quais podemos aprender sempre.

    O trabalho de Verssimo mostra um imenso aprendizado no apenas no convvio com esses mestres, o que seria j muito, mas a partir deles, de suas provocaes e evocaes. Ele prprio pensa por si mesmo municiado por tudo aquilo que aprendeu deles. E deveria ser assim, pois se trata de uma tese de doutorado em filosofia.

    1 Apreciao de Leonardo Boff da tese de doutoramento A experincia religiosa segundo uma tica da reciprocidade: dilogo com Martin Buber, orientada pelo Professor Olinto A. Pegoraro, 2002. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. A tese foi o ponto de partida para o presente texto.

    2 Referncia ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UERJ. A tese de mestrado, orientada pelo Professor Boff, foi publicada com o ttulo A psicologia do self e a funo religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.

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    O candidato deve mostrar que sabe pensar e no apenas que sabe e conhece. E na minha apreciao cumpriu esse preceito b-sico de todo filosofar, desde os tempos pr-socrticos. E quero parabenizar a Luiz Jos Verssimo por este brilhante trabalho de pensamento.

    Ele muito bem escrito em termos de dico do discurso e bem urdido em suas conexes. Mas o que importa mesmo o contedo, tratado com cuidado e profundidade.

    rduo o tema em tela: o sagrado, a experincia religiosa, a tica. Rudolf Otto viu a realidade do sagrado, do santo, na oposi-o entre racional e irracional. o que diz claramente o sub-ttu-lo de seu livro clssico Das Heilige de 1917: Sobre o irracional na ideia do Divino e sua relao para com o racional. Mircea Eliade coloca o sagrado na tenso e oposio entre o cotidiano e o ex-traordinrio.

    Todos viram algo verdadeiro. Mas o sagrado possui uma raiz mais funda. E ela foi vista especialmente por Martin Buber. O sa-grado emerge da relao eu tu e, no seu termo, do Tu eterno. no campo da relao do inter, do intercurso, no interativo que emer-ge tanto o sagrado quanto o tico. Numa palavra o nicho gerador de tudo a reciprocidade como jogo de relaes envolvendo a to-dos e a tudo. T-lo demonstrado o maior mrito deste trabalho.

    O totalmente outro, tremendo e fascinante simultaneamen-te a presena do Tu infinito. O totalmente outro que me faz fugir um momento do totalmente outro que me chama de volta. Pois ele est num e noutro momento sempre presente e na forma do tu. Essa presena carregada de espessura filosfica. Presena no estar-a como pode estar uma pedra. Presena significa uma densificao do ser, uma irradiao especial que fala e convence por si. Pois tal a natureza do sagrado.

    O suporte de toda experincia religiosa reside no sagrado. A se fundam as religies e os caminhos espirituais e se mantm vi-vos na medida em que organicamente bebem desta fonte.

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  • PREFCIO

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    A tica emerge desta mesma experincia do sagrado. Sempre que o outro fascinante e tremendo se faz presente, estabelece a reciprocidade de eu-tu, a nasce a tica como o jogo das relaes que devem ser boas para todos, para a vida e para a Terra. O sa-grado a aura que alimenta a tica e que impede que decaia no moralismo e no fundamentalismo.

    Estas e outras ressonncias se encontram ao largo de toda a elaborao da tese de Verssimo. No contexto atual de crise dos fundamentos, esta reflexo ganha relevncia pois ajuda a criar luz num mbito to complexo e com bases geralmente to escorrega-dias. Verssimo no apenas discorre sobre tais coisas. Mais ainda: revela um engajamento pessoal pela causa do sagrado e do tico seja manifestados nas linhas e entrelinhas do texto, seja em sua vida profissional. Vale ainda ressaltar que mostra segurana e boa orientao sempre que acena para temas teolgicos.

    Uma vez mais, felicitamos o autor. Ele honra a Casa e forta-lece uma tradio que se quer fundar de seriedade, criatividade e contemporaneidade do fazer filosfico em nosso pas.

    Leonardo BoffPetrpolis, 25 de maio de 2002

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    in t r o d u o

    A existncia se apresenta sob incontveis formas. Importa, nes-se momento, para ns a compreenso da modalidade da existn-cia fundamentada no dilogo. Assumir esse desafio convida a observar como se constitui a relao que o ser humano estabelece com uma experincia radical: a experincia de um outro, por ve-zes sentido e designado como o totalmente outro, como Isso, como Tu, como o infinito... O que essa experincia radical e relacional do eu com o outro? o horizonte a partir do qual de-sejamos lanar luzes ao nosso estudo.

    Seria impossvel catalogar todas as formas como o outro vivenciado e compreendido. A relao eu outro se ilumina de plenitude e transcendncia quando revela a constituio da pes-soa. Ela formada por uma trama de relaes, e seu sentido mais prprio em Martin Buber (1878-1965) apresentado na perspec-tiva da relao Eu e Tu.

    O Tu liga-se dinmica relacional Eu e Tu formulada por Martin Buber em sua obra de mesmo nome3. Essa dinmica en-volve um encontro mtuo, reciprocidade, dilogo, troca, abertura comunicao. Admitir o Tu remete ao reconhecimento do ou-tro enquanto tal. O eu4 s faz sentido numa relao com o outro.

    3 2a edio revista. So Paulo: Moraes, 1977.4 A noo de eu aqui no deve ser confundida com a noo de ego, tanto na

    psicanlise quanto na psicologia analtica. A noo de eu aqui apresentada

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    O eu no constitudo pelo outro, antes, ele constitudo com o outro: ele vai emergindo na medida das suas relaes, uma teia de relaes que se estende ao infinito, que pode incluir a natureza, a comunidade, o sagrado (um sentido tomado de valor). Buber de-signa uma palavra para expressar, com toda a intensidade, o sen-tido do Tu em nossas vidas: encontro.

    Na apreciao, em toda a sua amplitude, do pensamento de Buber, observamos que no basta dirigir a ateno somente ao eixo Eu e Tu. Faz parte da existncia tambm a relao Eu Isso. A representao do outro oscila, ele apreendido como familiar e como um estranho por ser deixado como algo parte, que pouco ou nada tem a ver comigo, um forasteiro, e deve permanecer dis-criminado, contido e controlado, quando no subjugado, mesmo torturado, mutilado e morto. Familiar, enquanto o outro assimi-lado a mim, de tal forma que ele se torna uma projeo da subje-tividade desejante. Esses so determinados modos que compem o campo Eu Isso.

    Por outro lado, o outro pode se tornar familiar se ele con-vocado para um encontro que propicie uma relao dialogada e recproca. Pode surgir como estranho porque ele subverte todas as representaes que so feitas sobre ele. Nessas duas ltimas referncias, temos pistas do que se quer pronunciar com a pala-vra-princpio Eu e Tu. O outro, por fim, atrai e assusta, encanta e amedronta, seduz e suscita sentimento de ameaa. Tomando em-prestadas expresses do campo do sagrado, admitimos que o ou-tro fascinante e amendronta.

    O Tu e o Isso se alternam e se misturam nas diversas formas

    fundada numa perspectiva fenomenolgica e dialgica, vale dizer, o eu entendido basicamente como pessoa: uma totalidade de sentido constitu-da no s por racionalidade, como por emoo, desejo, corpo, energia vi-tal, paixes, atravessado pela temporalidade e espacialidade (o habitar) e que se constitui junto ao n de relaes pela qual transita em comunicao e dilogo.

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  • INTRODUO

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    com que as pessoas se dirigem umas s outras, visam o mundo, lidam com o conhecimento, estimam a natureza e o insondvel. Ao longo de nosso estudo, pareceu-nos que, para Martin Buber, o fundamento tico da existncia o Eu e Tu, mas na existncia ele no se mantm permanentemente atualizado, ou seja, viven-ciado como presena. Frequentemente, o Tu negligenciado, es-quecido, e mesmo renegado. Quando o outro enquadrado como Isso, as pessoas o avaliam, seja como um mundo parte, objetal, caindo em um esquema que modela um totalmente outro (completo estranho, estrangeiro), seja sob a aparncia familiar, sujeito a toda sorte de projees psicolgicas, expectativas e es-quemas diretivos que antecipam conceitualmente ou experi-mentalmente o que o ser humano , e tentam prever a sua ao. O jogo do Tu com o Isso constantemente tematizado por Buber ao longo da obra Eu e Tu. Atravs de Buber, notamos que no tarefa das mais fceis acolher o outro, arranc-lo da condio de objeto para reconhec-lo como existente, e, dessa forma, afastar-nos da arena onde se disputa o tudo ou nada. Essa simplificao do viver e do conviver se resume em duas atitudes, que so, ao mesmo tempo, sentimentos bsicos, sugeridas pelas assertivas-modelo: No sou nada, Tu s Tudo, meu projeto girar em tor-no de Ti, submeter o meu desejo ao teu desejo, ou, ainda, Eu sou o centro, Tu s o meu apndice, o meu projeto aplicar o meu desejo sobre o teu desejo.

    Abrimos nossos trabalhos procurando levantar algumas possibilidades vivenciais do Tu quando compreendido luz da experincia religiosa. Em sentido bastante amplo, a experincia religiosa tem a ver com a adoo de um fundamento que religa todas as coisas. Em sentido mais especfico, a experincia religio-sa a experincia do sagrado. Se trabalhamos com essa ideia, jul-gamos importante apresentar um apanhado geral e introdutrio do sagrado, ao menos em algumas de suas formas caractersticas de vivncia e de concepo; por exemplo, o sagrado como fasci-

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    nante, temido, trgico, irracional, metafsico, paradoxal. O sagra-do nomeado por Buber como o Tu Eterno, mas pode ser toma-do, decifrado, e, mesmo, apropriado, como um Isso. Ento, ele se torna familiar, decomposto em frmulas doutrinrias, e en-quadrado em conceitos que passam ao largo da vivncia. O sagra-do reduzido ao Isso cria um ambiente de esquematizao e nor-matizao das problemticas emergentes, facilitando a adoo de um ponto de vista bastante extremado, dogmtico ou ctico: No sou nada, Tu (o sagrado) s Tudo, ou, ainda, Tu (o sagrado) s nada, ests morto, eu, sujeito, de agora em diante sou o nico sentido que importa na existncia.

    Na sequncia de nossa pesquisa, abrimos as trilhas para dar passagem pessoa e comunidade. Partindo de algumas consi-deraes complementares acerca da experincia religiosa, toma-mos o rumo para chegar vivncia cotidiana, onde encontramos algumas perspectivas de dar sentido ao ser humano que no se encerram numa singularidade solipsista, nem o achatam frente a um coletivo indiferenciado ou ideolgico-dogmtico que abafa o si-mesmo no ruidoso som das normas indicativas de caminhos previamente estabelecidos.

    Trata-se, nesse ngulo, de uma ontologia, vale dizer, do estu-do de um ser, o ser humano, que aponta para o vislumbre do ou-tro enquanto Tu. S penetraremos no cerne de nossa questo caso no nos percamos no labirinto de divagaes que nos afastem cada vez mais da vivncia. O professor Zuben considera que na e pela vivncia que poderemos ter oportunidade para abrir clarei-ras que permitam acessar a ao recproca entre o Eu e o Outro.

    A relao Eu Tu seria uma relao ontolgica e existencial que precederia o relacionamento cognoscitivo. Poderia mes-mo afirmar que, antes de conhecer a vivncia, o homem a vive e a relao objetivante um empobrecimento da densi-dade vivencial originria. A contemplao no face a face no

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  • INTRODUO

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    uma intuio cognoscitiva, mas doao de um Tu a um Eu. Este se realiza na relao a um Tu.5

    Gostaramos de aproveitar a introduo de nosso dilogo para justificar a reciprocidade relacional como uma tica, de acor-do com a proposio de nosso tema, a compreenso da existncia segundo uma tica da reciprocidade e uma psicologia da pessoa.

    Trabalhamos a noo de tica baseando-nos na tese de que a tica se fundamenta nas interaes humanas. Na prpria etimolo-gia da palavra, j temos essa indicao. Um dos significados de ethos morada, isto , o mundo que os indivduos compartilham. Entendemos mundo como a totalidade das vivncias de cada pes-soa, seu modo de compreenso da existncia, sua interao com as demais pessoas, com a cultura, a sociedade, a natureza. Dito de outro modo, o ethos diz respeito ideia de comunidade como a morada em comum na qual edificamos as nossas interaes, o nos-so conviver, o nosso viver junto. Esse convvio se d de muitas for-mas: na relao com o outro, com os diferentes grupos, com a co-munidade, com a natureza, nas instituies e nas prticas sociais.

    A convivncia, o viver junto, o grande desafio tico, pois cada um tem uma forma prpria de ser, o que gera conflito. Na convivncia, est em jogo uma multiplicidade de valores, crenas, possibilidades. Diante da infinidade de modos de ser, de interes-ses, de mentalidades, de perspectivas do agir humano que com-pem as diversas formas de convivncias e interaes, o viver se-gundo um sentido tico nos leva a conscientizar que os pronomes eu e meu sozinhos no expressam a tica em amplo sentido. A expresso tica mais apropriada o eu articulado e confrontado com o outro, ou seja, o ns: o nosso com-viver, os nossos projetos em comum, as nossas relaes, nossos conflitos, diferenas, iden-

    5 Zuben, Newton Aquiles von. Martin Buber. Cumplicidade e dilogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.151.

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    tificaes, a nossa convivncia. O pronome ns , portanto, um pronome importante para expressar um sentido tico, ou, mais precisamente, como ressalta Buber, o entre a melhor expresso para o ethos.

    A tica no somente um conjunto articulado de ideias com ideais. Ela se torna no campo religioso um profundo ofcio de f, e, no campo das diversas relaes que se estabelecem, uma prti-ca consistente e coerente justamente no nosso viver cotidiano, quando temos de lidar com outras pessoas, diferentes de ns, com desejos diferentes, com a quebra de expectativas, a reformu-lao das nossas avaliaes, e devemos levar em conta a relao com as pessoas, com os grupos com os quais interagimos, e com a natureza, segundo um sentido orientado pela gesto da recipro-cidade e do dilogo. Tal sentido se d a partir da perspectiva do Eu com Voc. No se trata de colocar o eu em primeiro lugar e visar somente a si, desejar o outro apenas como meio de satisfa-o de desejos prprios, nem de colocar o outro como o centro das decises e da vida, o que significa anular-se perante o outro, mas de visar um projeto e uma praxis em comum com o outro, o que implica superao de conflitos, participao, incluso, ternu-ra e cuidado no trato.

    A tica consegue integrar, a um s tempo, a dimenso racio-nal, pois devemos ponderar a medida de nossas aes e intenes, e a dimenso afetiva. nesse ponto que se desvela, no cenrio dialgico, uma tica que enfatiza a alteridade. Ela acredita que a visada ao Tu promove a ligao fundamental entre mim e o outro. E isso uma prtica incessante, ou seja, um exerccio de elaborar a convivncia atravs da atitude fundamental do dilogo: o de-senvolvimento de um pathos relacional nos permite desenvolver o cuidado, a empatia e a compaixo (de com-paixo, sentir jun-to). O Tu evoca o reconhecimento, e, mais do que isso, o diligente interesse pela presena do outro na existncia de cada pessoa. E assim tornamo-nos seres atuais uns para os outros, na medida em

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    que atualizao a realizao da interao com a alteridade in-tencionada como um Tu. A atualizao implica uma empatia fun-damental: colocar-se no lugar do outro, interessar-se por ele, for-mar a noo de um destino comum. O destino em comum nada mais do que a conscientizao de que as aes, os projetos de vida, os modos de ser tm uma amplitude mtua, uma repercus-so recproca nos integrantes da relao. Quando estamos inte-ressados no destino nosso e do outro, conseguimos vislumbrar que o que fazemos, o que desejamos, o que sentimos ou deixamos de sentir pode promover o bem comum, assim como pode ins-taurar e sustentar a dor, a excluso e o sofrimento. Assim, quando estamos predispostos a assumir uma tica no sentido dialogal po-demos vivenciar a solidariedade, a compaixo, o cuidado, enfim, o revelador e preciso sentido do encontro.

    A partir da convivncia recproca, dialogada e responsvel, est fundamentado um dos sentidos fundamentais da pessoa: manter-se fiel aos valores que levem em considerao no apenas a nossa individuao (o processo de se converter no modo de ser prprio, um modo exttico, ou seja, que se desenvolve nas diversas interaes estabelecidas), como valores que considerem diligente-mente os integrantes da relao, suas particularidades e identida-des, a comunicao entre eles. A individuao e a relao rematam um sentido de f como uma lealdade repleta de confiana no que se afirma e se experimenta como uma existncia autntica, com-partilhada e dialogada. A forma dialogal envolve reciprocidade, responsabilidade, cuidado, empatia, deciso, amor, capacidade de formar e de cultivar vnculos, reconhecimento da diferena.

    Buber estima que a condio relacional expressa em toda a sua amplitude a condio humana. As relaes que o ser humano estabelece no envolvem apenas a considerao para com o outro. Elas envolvem, igualmente, o dio, a indiferena, a alienao, a negao do outro, a manipulao e o desejo de posse do outro como um objeto-para-mim. A reciprocidade formulada por Bu-

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    ber quer dizer, tambm, que se trato o outro dessa forma, eu mes-mo me torno um objeto. De acordo com a forma com que deseja-mos e reconhecemos o outro, estaremos nos projetando como um Isso ou como um Tu nas relaes. E no pouco comum nos pro-jetarmos de forma ambivalente em nossas interaes. O Isso con-vive com o Tu, ambos se alternam. Podemos romper com o mun-do do Isso, e nos envolver com a dinmica do Eu e Tu, da mesma forma que, a todo momento, estamos retomando o mundo da causalidade, da necessidade, do objeto e da fascinao por man-ter-se parte o eu isolado, relacionando-se como um tomo so-breposto ao outro, e, independentemente da relao ser tomada eventualmente como ntima, relacionar-se com ele como se fosse um forasteiro, mesmo convivendo no mesmo espao, ou ainda, mesmo que o espao entre os corpos seja zero.

    Uma ltima observao diz respeito presena de uma orientao no apenas filosfica como psicolgica em nosso tra-balho. No de hoje que nutrimos um acentuado interesse pela analtica junguiana. Jung ressaltou o desdm que uma tradio cientificista e racionalista nutre contra a psicologia, acusando-a de mero psicologismo. A psicologia deve ser entendida em amplo sentido, fenomenolgico e existencial.

    A psicologia nos conduz a uma hermenutica que atende a uma abertura do logos psique. Entendemos psicologia como um discurso, uma compreenso, um estudo (logos) acerca da alma humana (psiqu). Desse modo, a psicologia no se livra to facil-mente da esfera metafsica: em algum momento, seus autores mais arrojados tangenciam com a radicalidade do pensar acerca dos fundamentos originrios do ser humano.

    Ocorre que, neste trabalho, em nenhum momento nos permitimos esquecer que Buber manteve uma acirrada pol-mica com Jung em torno de certas discusses, principalmente, sobre a transcendncia e imanncia de Deus. Buber ataca Jung, acusando-o de ter reduzido Deus imanncia. Jung se defende

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    argumentando que nada tem a objetar quanto tese do Eu e Tu; ele est analisando Deus do ponto de vista psicolgico, e no metafsico, e que a primeira questo to decisiva quanto a ltima. Enquanto para Buber interessa como o ser humano se relaciona com o Tu eterno, Jung se dedica ao estudo das for-mas como o indivduo e as culturas produzem, interpretam e reproduzem os contedos simblicos no campo da experin-cia religiosa.

    H quem aposte nas noes de Deus como relao e alterida-de, enquanto, por outro lado, encontramos quem se concentre na avaliao da imagem de Deus como uma imagem originria in-dissocivel do psquico, sobretudo do si-mesmo, dos arqutipos do inconsciente coletivo e da individuao da pessoa. Colocadas, a grosso modo, as afirmaes lado a lado, as primeiras assertivas pendem mais, digamos assim, para o pensamento de Buber, as ltimas se afinam especialmente com o sistema de Jung6. Mas, ressaltemos que essas apreciaes so meras generalizaes, pois, por exemplo, o pensar complexo no admite que a viso de Buber seja considerada um pensamento do sagrado apenas do ponto de vista transcendente. Da mesma forma, no aceitamos que Jung se contente com uma superestima da interioridade em prejuzo da tica em sua perspectiva relacional. Jung no deixa passar em branco a considerao da relao para a constituio do ser hu-mano. Ainda que as projees psquicas de um determinado sujeito sejam analisadas retrospectivamente at a sua origem, mesmo assim, permanece a demanda por parte do paciente de relacionar-se com um ser humano. Aqui, entendemos no apenas a relao paciente-analista, como todas as perspectivas das rela-es humanas. E essa exigncia deveria ser satisfeita, pois o ho-

    6 Sobre a importncia capital que Jung confere psique, veja Verssimo, Luiz Jos. A psicologia do self e a funo religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.

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    mem, totalmente sem qualquer espcie de relao humana, cai no vazio.7 O sofrimento humano no apenas uma questo pura e simplesmente individual.

    O ponto de vista clnico, por si s, no abarca, nem pode abarcar, a essncia da neurose, pois ela muito mais um fe-nmeno psicossocial do que uma doena estrito senso. A neurose obriga-nos a ampliar o conceito de doena alm da ideia de um corpo isolado, perturbado em suas funes, e a considerar o homem neurtico como um sistema de rela-o social enfermo.8

    At mesmo uma relao etiquetada de profissional pode evocar a relao no modo dialgico. Com relao ao encontro paciente-analista, ele visto como uma parceria: Esta relao de pessoa a pessoa a pedra de toque de toda anlise que no se d por satisfeita com um pequeno resultado parcial. Nessa situao psicolgica, o paciente se coloca diante do mdico em igualdade de condies, esta forma de relacionamento pessoal corresponde a um compromisso ou a uma ligao livremente assumida, em oposio aos grilhes da transferncia.9

    Para aqueles que tiverem interesse no fogo cruzado do deba-te envolvendo Jung e Buber, recomendamos a leitura do livro Eclipse of God. tudies in the elation Beteen eligion and hi-tudies in the elation Beteen eligion and hi-losophy (Eclipse de Deus. Consideraes sobre a relao entre reli-Consideraes sobre a relao entre reli-gio e filosofia), de Martin Buber10, e os textos de Jung Religio e

    7 Jung, C.G. Ab-reao, anlise dos sonhos, transferncia. Petrpolis: Vozes, 1987, p.8, par. 285 (Obras completas, vol. XVI/2).

    8 Idem. A prtica da psicoterapia. 3a ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p.22, par. 37 (Obras completas, vol. XVI/1).

    9 Ibidem (mesma obra), p.8, par. 286, 289 e 290.10 New Jersey: Humanities Press; Sussex: Harvester Press, 1979 (edio brasilei-

    ra: Campinas Verus, 2007). O livro do comentador Maurice Friedman To

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  • INTRODUO

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    psicologia: uma resposta a Martin Buber (em A vida simblica, Obras completas, vol. XVIII/2) e Introduo problemtica da psicologia religiosa da alquimia (em sicologia e alquimia, Obras completas, vol. XII)11, onde, apesar de Jung no se referir direta-mente a Buber, as problemticas levantadas concernem ao debate em questo.

    Entrar no confronto direto do pensamento de Buber com o de Jung exige um trabalho todo parte, assim como teramos de fazer o mesmo para acompanhar integralmente as diferenas co-locadas por Buber quanto ao budismo, ao hindusmo, mstica em geral, a Kierkegaard, a Heidegger, a Plato.

    Temos aqui um sonho mais modesto: o projeto de desenvol-ver uma interpretao de Buber que nos ajude a elucidar aspectos fundamentais da existncia quanto ao que religa o ser humano com os seres humanos e com uma concepo de totalidade, fonte de nossas pesquisas h alguns anos. Nesse sentido, somos gratos a uma releitura acerca da existncia sob a fonte do pensamento de Buber. O filsofo inspirou, no somente em nossa conscincia, mas, sobretudo, em nosso corao, a perspectiva relacional de uma tica do dilogo, que acreditamos ter se insuflado definitiva-mente em nosso percurso de vida, numa trajetria que provoca constantemente a conscincia da alteridade no horizonte da des-coberta do si-mesmo.

    Deny Our Nothingness. Contemporary Images of Man tambm se refere ao de-bate entre Jung e Buber. Veja os captulos VI.9 e IX.16.

    11 Ambas as obras publicadas pela Editora Vozes.

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  • Captulo I

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    o totAlmente outro e o ocAso do ser humAno

    Iniciemos o nosso exame do sagrado observando uma forma frequente pela qual ele experimentado. Essa forma o reconhece apenas como uma realidade transcendente ao indivduo, seguin-do o sentido convencional de transcendente como aquilo que se inscreve fora do mundo, e, consequentemente, alm do mbito humano. Quando o sagrado aparece sob a forma exclusivamente transcendente, mal podemos vislumbrar uma relao: trata-se, antes, da marcao de uma posio hierrquica, onde o sagrado ocupa o lugar central, e o ser humano apresentado como a figu-ra de um astro que gira em torno de uma estrela.

    Esse ponto de vista reproduz um modo tpico de se com-preender o sagrado: ele supe a existncia de uma realidade que se impe ao indivduo, hierarquicamente superior, que no raras vezes entendida como regente do tempo e do destino. Segundo essa perspectiva, estamos diante de uma relao desigual (se que podemos chamar de relao) entre o ser humano e o sagra-do, caracterizada por um imenso abismo entre a pessoa e o sa-grado, marcada por categorias como o temor, o terror, a nadifica-o do eu, a concepo do indivduo como finito diante de uma infinitude ao qual ele dever se submeter se quiser sublimar a sua condio trgica. De acordo com essa mentalidade, se resta ao

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    homem algum campo de possibilidades e de liberdade, ele jamais pode afrontar os desgnios divinos, pois jamais se nivelar ao fun-damento sagrado que cultua.

    Tal aspecto no ignorado por Rudolf Otto ao fazer uma apreciao fenomenolgica do sagrado. O autor procura analisar, em O sagrado, como ele sentido pelo homem que se dirige a ele em orao, no culto, etc. A sua obra se inicia com a descrio do aspecto mais assustador do sagrado, o tremendum. O sagrado de tal maneira grandioso, fora de qualquer medida conhecida, dotado de um incomensurvel poder, manifesta-se de forma to imprevisvel e indomvel, que para designar tal quadro a cons-cincia mtico-religiosa apela para o termo tremendo.

    O tremendo um sentimento caracterstico da pessoa que se defronta com o sagrado. Ela sente um verdadeiro terror, que no se confunde com o que possamos entender ordinariamente como medo. O terror se apresenta para quem se encontra diante de um poder avassalador e, de fato, tremendo, que envolve o que con-siderado sagrado. Trata-se de um terror cheio de horror interno que nenhuma coisa criada, mesmo a mais ameaadora e mais po-derosa, pode inspirar. Otto v nesse terror justamente a origem do fenmeno religioso. Aqui est a origem dos demnios e dos deuses e de tudo que a percepo mitolgica ou imaginao produziram para objetivar este sentimento.12

    O tremendo causa temor, faz tremer a alma e gera um espan-to na conscincia. Uma primeira impresso que nos deixa a leitu-ra de Otto a de que o sagrado experimentado de tal forma que diante dele o ser humano se v esmagado, reduzido a p e cinzas. Para ilustrar tal situao, Otto cita a ousadia de Abrao ao diri-gir-se a Deus: Tive a ousadia de falar contigo, eu que no passo de p e cinzas (Gnesis 18,27). Otto observa que, para tal com-preenso do sagrado, trata-se do apagamento e do aniquilamento

    12 O sagrado. Lisboa: Edies 70, 1992, p. 23-24.

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    da criatura perante um poder soberano numinoso. Isso constitui nada menos que o sentimento do estado de criatura, ou seja, o sentimento da criatura que se abisma no seu prprio nada e desa-parece perante o que est acima de toda a criatura.13

    Nesse cenrio, imaginamos que onde entra em cena o sagra-do, o ser humano se nadifica, submete-se a um poder infinita-mente superior a ele. Assim, nada menos surpreendente do que se estabelecer uma relao de terror e temor entre Deus e o ser humano. Otto nos mostra na clera de Jav um exemplo do que institui esse tipo de relao.

    A clera de Jav apresenta um carter estranho que sempre nos impressionou. Em primeiro lugar, ressalta claramente de vrias passagens do Antigo Testamento que esta clera, ori-ginariamente, no tem relao alguma com os atributos mo-rais. Inflama-se e revela-se, misteriosamente, como diz-se uma fora escondida da natureza, como a eletricidade acumulada se descarrega sobre quem dela se aproxima. incalculvel e arbitrria. Quem habitualmente apenas conceber a divindade sob a forma dos seus predicados racio-nais, ver na clera um capricho e uma paixo. Mas os ho-mens piedosos da antiga aliana teriam decerto rejeitado energicamente esta forma de a considerar. (...) Com efeito, esta ira apenas o prprio tremendum, o qual, no sendo de modo algum racional, deixa-se captar exprimindo-se aqui de forma primitiva, por analogia com um termo emprestado ao domnio natural, vida espiritual do homem. 14

    13 Ibid., p.19. Otto cita, na p.31 de O agrado, G. Greith: O homem afunda-se e dissolve-se no seu nada e na sua pequenez. Quanto mais se descobre, clara e pura a seus olhos, a grandeza de Deus, tanto melhor reconhece a sua prpria pequenez.

    14 Ibid., p.28.

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    A cada indivduo resta a impotncia em face da absoluta su-perioridade de poder; quando se revela o sentimento do nada da criatura. Ele conduz ao aniquilamento do eu, e afirmao da absoluta e nica realidade do transcendente.15

    A verso do sagrado com o hemisfrio tremendo voltado para a janela do indivduo que o espia encontrada em tradies como o islamismo, o judasmo, o cristianismo16, em imagens da mitologia grega (veja, mais adiante, a apreciao da noo grega do destino) etc., e, igualmente, at hoje, na mentalidade de muitas pessoas.

    As observaes de Rudolf Otto com relao ao aspecto tre-mendum do sagrado acentuam uma formulao desenvolvida a partir da vivncia do sagrado como o totalmente outro. Essa ideia da alteridade absoluta nos fornece o nosso ponto de partida, porque o nosso estudo vai procurar circunscrever os limites dessa concepo, e sublinhar o carter dialogal da experincia religiosa a partir do estudo da perspectiva de Martin Buber. Por outro lado, no se trata de rejeitar a observao de um totalmente outro, ou mesmo de negar que ele constitua uma das formas mais destaca-das da experincia religiosa: gostaramos de ressaltar que essa proposio no esgota todas as possibilidades de vivncia, ex-presso e interpretao do sagrado.

    Se nos detivermos unicamente no totalmente outro, corre-mos o risco de negligenciar os demais aspectos do sagrado. Por

    15 Ibid., p.30.16 Para Karen Armstrong, Os profetas de Israel experimentaram o seu Deus

    como uma dor fsica que torcia cada membro e enchia-os de fria e exaltao. A realidade a que chamavam de Deus foi repetidas vezes vivenciada pelos monotestas sob um estado de [condio] limite: leremos sobre o cume das montanhas, trevas, desolao, crucificao e terror. A experincia Ocidental de Deus pareceu particularmente traumtica. A History of God. New York: Ballantine Books, 1994, p.xxii (edio brasileira. Uma histria de Deus. So Paulo: Companhia Das Letras, 1994, p.12).

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    exemplo, o sagrado afirmado como uma mstica associada ao amor, compaixo, solidariedade, comunho. Eis outro as-pecto complementar do tremendum que nos faz admitir o sagra-do como uma noo complexa: o sagrado apresenta-se tambm como o fascinosum. O fascinante a modalidade do sagrado que encanta, fascina, irradia amor e misericrdia, que suscita compai-xo, suprema e doce paz, aquieta a alma, oferece ampla consola-o. Mesmo na instncia atrativa, o sagrado permanece em Otto como uma instncia completamente extra-humana:

    Afirmamos, portanto, de acordo com a via eminentiae et causalitatis, que o divino a realidade mais elevada, mais poderosa, melhor, mais bela e mais querida, coroamento de tudo o que um homem pode conceber. Mas, de acordo com a via negationis, dizemos que no s o fundamento e o su-perlativo de tudo o que concebvel; Deus , em si mesmo, uma essncia parte.17

    Da mesma forma que a experincia religiosa pode suscitar o sentimento do nada da criatura, essa mesma experincia pode se revelar como a celebrao de uma tica afirmadora da existncia, uma tica cuja fatalidade possibilidade. Uma tica da f fun-dada no dilogo uma forma fundamental de religare: ao desco-brir o sagrado, revela a natureza mais ntima de cada um que se inclina a ele. Como nas convices do fundador do hassidismo, Israel Baal Shem Tov, que tentava descrever a interdependncia entre Deus e a humanidade. Deus no era nenhuma realidade externa. Os hassidim acreditavam que, ao tomar conscincia da centelha divina dentro deles, se tornariam plenamente humanos.

    Nosso comeo pretende interrogar o que significa ser nada perante um tudo, ser nada mais que p e cinzas. Da, seguire-

    17 O sagrado, p.59.

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    mos desenvolvendo temticas que emergem a cada passo, quase infindavelmente, tentando amarrar um fio condutor que pode se desfazer a cada noite. A elaborao de um estudo exige uma tare-fa heroica de no se apavorar e prosseguir em frente tecendo la-boriosamente o fio do sentido. No fundo, no nos iludiremos: cada ponto ser apenas uma vrgula, e, cada concluso, uma pau-sa no pensar para irrigar o vigor desse mesmo pensar.

    o nAdA, o tudo e o trgico

    Procuramos descrever que o modo de apario do sagrado sob o aspecto revelado por Otto, segundo as palavras evocadas por ele em nome de Abrao no sou nada, tu s tudo18 traz mostra o apagamento e o aniquilamento da criatura perante um poder soberano. Tal poder expressa, no raras vezes, o seu aspecto as-sustador, como nos mostram vrios relatos mticos. Os deuses gregos podiam tanto auxiliar e proteger os homens quanto ani-quil-los de um s golpe, ou podiam armar uma trama que re-dundaria num destino trgico. Na Bblia, quando o culto a Jav subvertido ao paganismo popular (o culto a Baal), Jav expressa todo o seu aspecto tremendum, como nos conta Jack Miles:

    Moiss volta ao monte por 40 dias e 40 noites, desaparecen-do em meio a fogo e fumaa (...) O Senhor (...) indica que, com todo o seu aspecto aterrador, agora veio para ficar. Em meio a essas instrues, o Senhor prescreve um ritual de sanguinolncia sem precedentes para a investidura dos sa-cerdotes. Moiss retorna do monte e descobre que o povo mergulhou na idolatria. Em sua ira, quebra as tbuas da lei e induz os levitas a uma sangrenta e indiscriminada represlia

    18 Ibid., p.31.

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    contra os israelitas. Milhares morrem, e, alm disso, Deus atinge a nao com uma praga. Deus prova que em suas aes junto ao seu povo escolhido ser to violento e perigo-so quanto em sua primeira e assustadora apario a eles.19

    Estamos diante de uma imagem dramtica, em que o ser hu-mano parece no ter qualquer outra possibilidade a no ser sub-meter-se ao sagrado da melhor forma que puder, a fim de no provocar a ira divina e conseguir manter-se sob a sua proteo.

    Apesar de reconhecermos o que descrevemos como um sen-timento frequente em muitas pessoas ao procurarem uma ligao com o sagrado, no consideramos que os problemas religiosos ter-minem aqui. Ao contrrio, o cenrio descrito o nosso comeo, o ponto em que daremos incio a nossa prosa, levantando algumas questes. O que significa esse aspecto tremendo do sagrado? Em que medida ele resulta num esmagamento do ser humano, cuja insurreio contra os mandamentos divinos, sob forma, por exem-plo da hybris grega (a temida perda da medida divina) ou do pe-cado judaico-cristo, acarreta um desfecho trgico?

    Esse aspecto tremendo expressa simbolicamente certas con-dies da existncia. Todos experimentamos a experincia da di-lacerao, do sentimento de ser como que despedaado, seja por pessoas ou situaes que nos do a impresso de nos machucar profundamente. Alguns golpes do destino, algumas situaes da existncia so sentidos como dilaceradores, devastadores, esma-gadores, e podem afetar sensivelmente o sentimento de determi-nao de nosso destino e de nossa personalidade. Ocorre-nos uma passagem do mito de Dioniso, quando o deus ainda se chamava Zagreu. Os Tits o dilaceraram criana pequena, cozinharam-no, e, a seguir, o devoraram. Essa criana pode ser interpretada como a nossa prpria inocncia diante de algumas situaes que se apre-

    19 Deus. Uma biografia. So Paulo: Companhia Das Letras, 1997, p.136.

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    sentam a ns. E algumas delas soam como titnicas. Sentimo-nos como se fssemos dilacerados, a seguir cozidos e devorados, ou seja, sentimo-nos como se no sobrasse nada de ns, em outras palavras, o que parece restar , de fato, o sentimento do nada da criatura.

    No sentimento do nada da criatura, o indivduo se sente anu-lado e impotente perante o sagrado. Tal feio nos leva a pensar o destino. O sagrado confunde-se com a noo de destino. O pen-samento grego expressou bem isso: nem Zeus pode com as Moi-ras, quando muito o pai dos deuses e dos homens nivelado a elas, mas nunca lhes superior. As Moiras determinam o destino sem apelao. As Moiras so smbolos da fatalidade. Significam, literalmente, o destino. Essa noo mtica grega acabou desmem-brando-se em trs personagens: Cloto a fiandeira. Ela tece nada menos que o fio das tramas da vida de cada pessoa. Lquesis aquela que mede o tamanho do fio, a extenso da vida. E, final-mente, tropos, do verbo trepein, voltar, logo tropos a que no volta atrs, a que corta o fio. Elas constituem as tramas de nossa vida, de nosso destino. Sua tecedura no tem apelao, o destino inevitvel, quanto ao qual nada se pode fazer, nem Zeus, o todo-Poderoso pai dos deuses e dos homens pode com elas! Ele uma espcie de zelador do que est decretado pela Moira. Quando tropos, a que no volta atrs, corta o fio da vida, os liames so todos desfeitos. Esses liames podem ser compreendidos simboli-camente como os sentidos que tecemos ao longo de nossa vida, todos desamarrados, atravs do ato do corte.20 Ao experimentar-mos algumas formas do trgico, como a morte, a dilacerao, o sofrer, o sentimento de ser violentado, estamos soltos, desligados

    20 Montaigne refletindo sobre a morte observa que a sorte aguarda por vezes nosso ltimo dia, a fim de nos fazer compreender o poder que possui de der-rubar em um instante o que custou longos anos para edificar. Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida. Em Ensaios I (cap. XIX). So Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores), p.43.

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    do que nos amarrava, desligados daquelas realidades com as quais nos identificvamos, estamos, afinal, imersos no no sentido.

    Volta e meia a vida nos apresenta a morte. A morte como fato inexorvel, como envelhecimento, como a perda de entes queridos, ou a morte simblica, quer dizer, as perdas sentidas por ns como irreparveis, traumticas e dolorosas. Estamos volta e meia diante de golpes do destino. No campo da religio, certos acontecimentos de conotao aparentemente trgica fazem parte do destino das divindades, tanto quanto os acontecimentos subli-mes, beatficos e conciliadores. A dupla condio finitude-trans-cendncia aparece bem ntida no jogo morte-renascimento que envolve Dioniso, Cristo e Osris em um simbolismo afim. Todos foram deuses que sofreram um violento martrio e, a seguir, res-surgiram renovados. Osris foi assassinado por seu irmo Set. Seus pedaos foram recuperados por sua irm-esposa sis, que, sendo a deusa da magia, promoveu o seu renascimento e, desde ento, Osiris se torna tambm o deus dos mortos. Na Grcia antiga podemos reconhecer o tema do despedaamento ou fim trgico que implique no apenas em uma morte, mas em um re-nascimento transmutado no mito de Zagreu, despedaado bru-talmente pelos Tits e renascido sob o nome e forma definitiva de Dioniso, o grande deus das religies populares. Cristo pregado na cruz uma imagem da tenso culminante entre a finitude e a transcendncia. Ele, nada menos que um princpio divino, deve morrer para poder ressurgir transmutado. Nesses mitos, observa-mos que o prprio princpio sagrado se submete a uma espcie de finitude para poder revelar a sua transcendncia, e, assim, rein-gressar na infinitude.

    Essa conjugao de vida e morte, gerao e destruio, con-ciliao e dilaceramento compem o sagrado. Vrios povos no olvidam esse duplo aspecto da existncia. Eles celebram, tambm, o aspecto tremendum dos deuses. Vendo-os, espelham a si pr-prios, a sua condio, a sua existncia, o mistrio que permeia as

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    definies e as concepes tradicionais, mistrio que deixa a to-dos espantados, tentando responder s inquietaes atravs de mitos, ideias, smbolos e ritos para fazer frente torrencial ava-lanche de situaes-limite postas diante de ns e impostas pelo prprio existir. As diversas culturas e tradies interpretam e ex-pressam a existncia em sua complexidade, desenvolvendo no-es acerca do que bom, assim como do que mau, na tenta-tiva de organizar, tecer e manter ligadas as tramas dos sentidos que se formam e com os quais as pessoas se identificam. Dessa forma, a religio celebra a existncia em todos os seus matizes: celebra o trgico, a vida, a morte, o xtase, a superao.

    Ao expor o estado de criatura cuja mxima reza que o indi-vduo afirma-se como no sou nada, tu s tudo, e sente o sagrado como um totalmente outro21, constatamos em tal concepo um fosso entre o ser humano e o sagrado. A distino entre a condi-o humana e o sagrado encontramos, tambm, por exemplo, na teologia e na metafsica ocidental, sem, no entanto, reconhecer-mos uma separao to drstica entre o humano e o sagrado.

    O estado de criatura, apresentado por Otto faz vir a lume um sentimento que se apresenta ao longo de nossa existncia, portan-to, de carter ontolgico, qual seja, o sentimento de dilacerao do eu, de no ser nada, de se ver reduzido a p e cinzas, quando, por exemplo, encontramo-nos diante das perdas, das rupturas, da dor. Essa dimenso ontolgica nos faz lembrar que a esfera reli-giosa permite experimentar as condies radicais da existncia: a morte, o renascimento, o tempo. Elas apontam para uma articu-lao entre o sagrado e a noo do destino, como observamos nas Moiras. No toa que a escatologia, a preocupao com os fins ltimos da alma, uma constante em diversas religies. Quem evoca uma manifestao do sagrado est, de uma forma ou de

    21 O sagrado, cap. 5, B. (Mysterium Tremendum).4. O totalmente outro, p.38 e ss.

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    outra, defrontando-se com a mais extrema experincia, o destino: seja pelo desejo de alter-lo, de barganhar com ele, de aceit-lo, de compreend-lo, de recri-lo.

    Quando lanados na experincia religiosa, o sagrado como um orculo onipresente, cujas respostas suscitam novas inquieta-es, para o qual apelamos incessantemente uma imagem ou pa-lavra que faa sentido, quando, na verdade, essa vivncia estranha e arrebatadora quem nos interpela sobre um sentido para a exis-tncia. E a existncia nada mais do que o nosso prprio destino.

    confronto dA fenomenologiA de otto com A metAfsicA

    A afirmao de uma absoluta realidade transcendente vai fundar, na filosofia, o campo da metafsica, articulando, numa unidade indissocivel, o ser e o princpio transcendente. No pensamento metafsico, o homem mantm uma relao com o ser: mediante a elaborao racional, ele pretende ascender ao conhecimento das realidades em si mesmas; visa o supremo bem pelo desenvolvi-mento da ao virtuosa; empenha-se em elevar a sua alma a um mundo perfeito; mas, por mais que sua alma se esforce, o funda-mento absoluto atribudo ao ser. Quer dizer: o homem no se nivela em dignidade, perfeio e verdade ao fundamento supre-mo, esfera divina.

    Para Otto, semelhante ao que postula a metafsica, o sagrado associado a categorias como o ser e o absoluto. Ele as relaciona com o sentimento da soberania absoluta, isto , do sagrado en-quanto poder soberano: essa soberania transforma a plenitude de poder do tremendum em plenitude de ser22. Se Otto reconhe-ce um carter ontolgico do sagrado, sua imbricao com o ser, as semelhanas de seu pensamento com a metafsica se detm a.

    22 Ibid., p. 31.

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    A principal diferena entre as anlises de Otto e o pensamen-to metafsico reside no papel da razo, e tudo que est implicado na razo como fundamento metafsico: a tica, o valor do ser hu-mano, a racionalidade como ascese ao sagrado, isto , a justifica-o da ideia de uma esfera divina por um crivo que visa transfor-mar o mistrio no inteligvel. Para Otto, somente a razo no pode dar conta dos fenmenos sagrados. O que tem carter sa-grado basicamente sentido. Mas no devemos tomar um passo em falso e concluir que isso interdita o pensamento a contemplar o sagrado. Ele pode ser pensado. Otto procura desvendar a rela-o entre os elementos racionais e irracionais nos sentimentos, nas imagens e nas conceituaes do sagrado. Os elementos so para ele formas a priori do fenmeno religioso. Pareceu-nos, no entanto, que Otto avalia que o mais fundamental a dimenso de mistrio, para alm da moral e da metafsica.23

    O sagrado sentido em primeiro lugar como inefvel, irra-cional e a-moral. A seguir, ao longo do desenvolvimento das con-cepes referentes ao sagrado, ele penetrado pelos elementos racionais. O estado rude ultrapassado medida que o numen se revela conscincia e ao sentimento. Esse o processo pelo qual o numinoso penetrado por elementos racionais, graas aos quais entra no domnio do compreensvel. No entanto, permane-ce sempre no fundo o elemento imperscrutvel, que supera todas as categorias conceituais, como na msica: O que na msica se pode captar por conceitos j no a prpria msica.24

    Assim, Otto procura destrinchar o trao mais marcante do sagrado, a que chama o numinoso. O sagrado , antes de mais nada, uma categoria de interpretao e de avaliao complexa:

    23 Talvez aqui possamos reconhecer indicaes da influncia do pensamento de Schleiermacher. Otto afirma que a religio no est sob a dependncia nem do telos, ou seja, de uma finalidade metafsica, nem do ethos (no sentido de mo-ral). Ibid., p.177.

    24 Ibid., p.173-4.

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    compreende um elemento com uma qualidade absolutamente es-pecial, que escapa a tudo o que chamamos racional, constituindo, enquanto tal, algo de inefvel. Apesar de no ser muito proveitoso achar um nome especial para identificar a natureza mais prpria do sagrado, Otto escolhe um termo, ao menos provisoriamente, para designar o elemento que bem caracterize o sagrado, abs-traindo do seu elemento moral e, acrescente-se, de todo elemento racional. Otto designa tal elemento como o numinoso.25

    Falo de uma categoria numinosa como de uma categoria es-pecial de interpretao e de avaliao e, da mesma maneira, de um estado de alma numinoso que se manifesta quando esta categoria se aplica, isto , sempre que um objeto se con-cebe como numinoso. Esta categoria absolutamente sui generis; como todo o dado originrio e fundamental, obje-to no de definio no sentido estrito da palavra, mas so-mente de exame.26

    Observando a metafsica seguindo as coordenadas de Otto acerca do fenmeno religioso, conclumos que ela representa um esforo de domesticao do avassalador poder do sagrado, a que Otto chama majestas. Esse poder no pode ser comparado com nada conhecido, corresponde a uma preponderncia absoluta, que se acrescenta a uma inacessibilidade absoluta.

    A metafsica, no que diz respeito referncia a uma realida-de divina, passou a montar, atravs do discurso, um sistema te-rico para justificar a relao entre o divino e o ser. Julin Maras nos d um fiel retrato dessa mentalidade, quando procura descre-ver o momento do surgimento da filosofia na Grcia. Ele conclui

    25 De numen, designao latina para divindade, poder divino, vontade divina. Tambm significa, em sentido abstrato, majestade poder, grandeza.

    26 O sagrado, p. 13-5.

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    que o homem-filsofo comea a dispensar a magia e o mito: sua investigao acerca do transfundo oculto das coisas manifestas, ou seja, em ltima anlise acerca do ser, j no mais um passivo recorrer ao orculo; dirigir-se ao que toma como realidade e obrig-la a responder.27

    No desenvolvimento da metafsica grega, o fundamento divi-no se torna o resultado de um debate em praa pblica, de um combate entre ideias. O ser resulta de uma pesquisa operada por um logos que passa a significar o discurso produzido pelo pensa-mento racional, imbudo de uma lgica que procura anular as contradies. Tal proposta de racionalidade tenta colocar, de um lado, o verdadeiro, o ser, o divino, o bem, o belo, a virtude, a me-dida, a alma, o conhecimento, e, de outro, combatendo-o sistema-ticamente, o falso, o nada, o mal, o erro, a desmesura, a ignorn-cia. Roberto Machado comentando a obra de Nietzsche Assim fa-lou Zaratustra, entende a metafsica como uma mquina de pro-duo de dicotomias: um mecanismo criado para cindir as inter-pretaes da realidade, a fim de dar ordem ao sentimento de caos no mundo, mais exatamente, segundo o pensamento de Machado, a metafsica incapaz de expressar o mundo, em sua tragicidade, pela prevalncia que concede verdade em detrimento da iluso, ou pela oposio que estabelece entre a essncia e a aparncia.28

    Esbocemos uma definio genrica de metafsica.29 Ela de-signa os sistemas de pensamento que pretendem dizer o que o

    27 Idea de la metafsica. 3a ed., Columba, 1962, p.15.28 Zaratustra, tragdia nietzscheana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.12. Gos-

    taramos de acrescentar que o mundo em sua tragicidade significa aceitar o sofrimento como parte integrante da vida. Palestra proferida no ciclo de de-bates A cena cultural, I Os heris: pico e trgico. Rio de Janeiro, 1999.

    29 Uma apreciao ampla e que considera meticulosamente inmeros aspectos relevantes da metafsica, assim como a sua articulao, podemos encontrar no texto de Emmanuel Carneiro Leo Metafsica e pensamento. Em Aprenden-do a pensar Vol. II. Petrpolis: Vozes, 1991, p. 121-9.

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    ser, em que ele consiste, o que ele funda, qual a sua origem, assim como situar o ser humano em relao ao ser. O conceito de ser adquire tamanha importncia, na Grcia filosfica, que se torna associado ideia de uma divindade ou princpio supremo: Apolo (Scrates), Demiurgo (Plato), Deus (Aristteles).

    Ao lermos Otto, voltamo-nos para observar de perto uma das faces do sagrado, aquela em que ele sentido como o indo-mesticvel, o que no se enquadra em nenhum conceito, e, acres-centamos, o que abre sempre para novas possibilidades de signi-ficao, institui um permanente mistrio, no se sujeita a uma nica logia (psicologia, teologia, antropologia, sociologia, cos-mologia etc.). O sagrado irracional na medida em que se ope s metafsicas que elaboram valores e definies unilaterais. Esse tipo de arquitetura mental acerca do ser omite a complexidade das vrias dimenses que interagem permanentemente umas com as outras. A tica (concepes do bem e do mal), o conheci-mento, o divino, o ser humano, a natureza, os smbolos se articu-lam intimamente. Tudo isso se encontra imbricado mutuamente, de tal forma que se torna insuficiente deter-se na proposio da ciso radical entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o ser e o nada, a imagem e o discurso.

    interessante, no estudo desenvolvido por Otto acerca do fenmeno religioso, a considerao do sagrado de forma mais abrangente do que as ideias que tiveram a sua gestao na pers-pectiva metafsica racionalista grega, conferindo ao fenmeno religioso, ou melhor, restituindo a ele a dimenso do sentimento, da corporeidade, do mistrio. Deus no apenas objeto de uma razo rigorosamente ordenadora das realidades a partir do enfo-que discursivo. Deus compreendido por uma vivncia, pelo sentimento. Ao mesmo tempo, o autor nos faz lembrar que Deus tem vida, o que aparece nas expresses simblicas de paixo, von-tade, fora, movimento, excitao, atividade, impulso. De acordo com Otto: A omnipotentia Dei afirmada por Lutero no De servo

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    arbitrio unicamente a sntese entre majestas, enquanto sobera-nia absoluta, e a energia enquanto fora do Deus que no conhe-ce nem obstculo nem repouso, que age e subjuga, do Deus vivo [grifos nossos]. Otto prossegue a sua anlise em um estilo arre-batador:

    No misticismo tambm aparece este elemento de energia na sua poderosa vitalidade, pelo menos no misticismo vo-luntarista, o do amor. Encontramo-lo sob uma forma ver-dadeiramente impressionante, no ardor devorador e na impetuosidade do amor cuja aproximao o mstico mal pode suportar; esmagado por este poder, pede que se atenue, para no morrer.30

    Vitalidade quer dizer tambm que o sagrado apresenta uma espcie de temperamento, ele pulsa, por vezes at carregado de eletricidade que descarrega sobre o povo quando irado. Se o sa-grado, at na forma de Deus, pode mostrar ira31, provocar temor, podemos, ento, admitir que no h soluo de continuidade en-tre os deuses e o Deus monotesta. Para Otto, o parentesco teria a ver com o sentimento do majestas, do tremendum, do terror que inspira o que possui o carter sagrado. O elemento de terror

    desconcerta quem na divindade apenas quer admitir bonda-de, doura, amor, familiaridade e, em geral, os atributos que unicamente se relacionam com a sua face voltada para o mundo. Esta ira, que muitas vezes se chama natural e que, na realidade, no nada natural, j que numinosa, se ra-cionaliza, saturando-se de elementos ticos, de ordem racio-

    30 O sagrado, p. 34-5.31 Segundo um mstico que Otto no revela, o amor no mais do que uma

    clera extinta. Ibid., p.35.

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    nal, os da justia divina, justia distributiva que pune as transgresses morais. Mas importa observar que na noo bblica da justia divina este novo contedo permanece sem-pre misturado com o elemento primitivo.32

    Os filsofos metafsicos rejeitaram um temperamento para Deus, ou, pelo menos, um carter irascvel, acusando tal avalia-o de antropomorfismo. No percebem, no entanto, que o Deus-logos racional um Deus igualmente antropomrfico. Um Deus com a cara dos valores cultuados por grupos intelectuais e reli-giosos, que se esforavam por conferir ao ser absoluto um carter de objetividade e moralidade, e basear tal proposio somente na argumentao. Mas, como lembra Jung, provavelmente inspirado em Kant,

    qualquer pensador honesto obrigado a reconhecer a inse-gurana de todas as posies metafsicas, (...) a natureza in-sustentvel de quaisquer afirmaes metafsicas e admitir que no existe uma possibilidade de provar que a intelign-cia humana capaz de arrancar-se a si mesma do tremedal [pntano], puxando-se pelos prprios cabelos.33

    A metafsica antiga e medieval tentou demonstrar a existn-cia de um princpio divino. E imaginou o seu projeto atravs de um pensamento que engendra uma lgica que acolhe certas rea-lidades em detrimentos de outras, sem se dar conta de que, como bem apontou Nietzsche, encontramos valores em jogo por detrs do cenrio fleumtico dos debates filosficos. Se esse mtodo problemtico para a filosofia (especialmente a partir do pensa-

    32 Ibid., p.29.33 sicologia e religio oriental. 3a ed. Petrpolis: Vozes, 1986 (Obras completa,

    vol. XI), p.3, 764.

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    mento moderno), para Otto, tal procedimento no passa de uma crena supersticiosa e soberba: que reduzindo a variedade das re-presentaes mtico-religiosas a um Deus nico, e submetendo esse Deus razo, estaremos decifrando integralmente o que o sagrado e, por extenso, que estaremos resguardados do caos, do sofrimento, da injustia, do mal, da ignorncia, do absurdo, do trgico, do esquecimento. Para Otto, Deus origina-se de uma ex-perincia originria, o sagrado, e, portanto, no se submete a nada, pelo contrrio, escapa a todos os conceitos, s apreciaes morais, enfim, a qualquer expectativa.

    o renAscimento do ser humAno luz do ser

    Diante de tal levantamento de problemas para a presente investi-gao, o que resta ao pensamento perante o sagrado? Admitimos as problemticas levantadas por Otto no estudo da religio, mas consideramos que elas no devem intimidar o pensamento, ao contrrio, o pensamento deve abordar o sagrado como se fosse uma provocao, um evocar o sagrado para uma apario diante de ns, como bem situou Gilberto Kujawski: Como posso saber que o transcendente no me responde, se no o interrogo? Toda interrogao uma provocao, e provocare significa chamar para fora. S interrogando a transcendncia esta se manifesta, vem para fora, quebrando o selo do indevassvel. 34

    No vo para o pensamento o esforo de penetrar no mundo do sagrado. Nesse caminhar, procuramos nos familiarizar com a estranheza originria que suscita o numinoso. Ela se origi-na, segundo Otto, na relao fundamental constituinte do fen-meno religioso, a relao entre o ser humano e um outro de car-ter sagrado. Verificamos que tanto na metafsica quanto na ima-

    34 O sagrado existe. So Paulo: tica, 1994, p.18.

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    ginao que somente admite o sagrado como o totalmente outro existe uma separao entre o ser humano e o sagrado. Na metaf-sica, essa separao no atinge o extremismo e a dramaticidade que apresentam as anlises de Otto acerca da concepo de uma alteridade absoluta. Se, por um lado, tal concepo recusa-se a adequar o sagrado aos moldes da metafsica, por outro lado, ela no s mantm uma separao entre o ser humano e o sagrado, como a amplia consideravelmente.

    Rudolf Otto enriquece a paisagem do sagrado ao dilatar o horizonte da sua apreciao. Temos a um considervel ganho na pesquisa sobre religio. As consideraes do autor nos permitem descobrir que o sagrado uma noo complexa, o que abre as portas para o enriquecimento da investigao. No entanto, se o totalmente outro no for suficientemente pensado e experimen-tado, pode reduzir a sua ampla significao a um sentido que pa-rece deixar completamente de lado o ser humano, qual seja, o sentido de que a realidade humana se anula completamente fren-te realidade sagrada.

    Otto nos orienta para a dimenso do tremendum, aquela em que o sagrado instiga o sentimento do nada que se perante o tudo do sagrado, o que pode alcanar extremos de se pensar que se nada mais do que p e cinzas. E na dimenso fascinosum, na qual o ser humano, geralmente em xtase, aspira a uma unio com o numen, quer ascender a ele ou ser tomado por ele, o sa-grado permanece como uma realidade absolutamente distinta da condio humana. Para ilustrar tal distino, Otto cita in-meros autores: msticos, telogos, religiosos e filsofos, entre eles Goethe:

    As pessoas tratam o nome divino como se o Ser supremo, incompreensvel e absolutamente inimaginvel fosse igual a elas. Caso contrrio, no diriam: O Bom Deus. Se estives-sem penetradas da sua grandeza deixar-se-iam de palavras

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    e, como venerao, no ousariam sequer pronunciar o seu nome.35

    Na metafsica, apesar de se considerar o ser humano distinto da pura essncia transcendente, ele, ao menos, vale alguma coisa, no se anula completamente perante o divino. S para citar al-guns exemplos clssicos: Scrates d um vigoroso impulso filo-sofia para pensar o ser humano, fundando a antropologia filos-fica, promovendo uma virada no pensar, na medida em que abre mo de especular sobre a realidade cosmognica para centrar suas atenes na alma; na metafsica de Plato, que desenvolve, at certo ponto, o pensamento socrtico, o ser humano um ser passvel de evoluo cognitiva, espiritual, tica, poltica. Em Aris-tteles, a referncia a um plano arquetpico como modelo para o ser humano deixada um pouco de lado em prol da edificao de uma tica constituda no mundo, o que significa uma valorao ainda maior da existncia e dos problemas humanos.

    E aqui reside a principal contribuio do pensamento meta-fsico para a nossa investigao do campo da religio: a dimenso antropolgica. A metafsica no desconsiderou o ser humano como determinadas vivncias do estado de criatura, em que o indivduo p e cinzas. O indivduo, na metafsica, no se reduz a ver-se submetido ao divino como um boneco manipulado por cordas invisveis e irrevogveis. Ao contrrio, o ser humano apa-rece como corresponsvel pelo seu destino. A tica se constitui com o sagrado. Se na metafsica ela no se justifica sem a realida-de supra-humana, seu telos (meta) a exaltao da existncia, se-gundo um sentido de divinizao da existncia. O ser humano torna-se um ser que deve se elevar aos valores divinos, assim for-ma-se a ideia de um ser-para o divino. No h mais o ser humano

    35 Escrito a Eckermann, em 31 de dezembro de 1823. Citado por Otto, O sagra-do, p.46, nota 2.

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    de um lado, anulando-se completamente, reduzido a cinzas e, de outro, a realidade suprema descarregando todo o seu incomensu-rvel poder. H um ser relacionado com o transcendente. Se ele quer ser assimilado ao princpio originrio, unir-se a ele, seja ex-taticamente, seja pela prtica da devoo, seja pela caridade, seja por uma compreenso racional do divino, o fundamento de exce-lncia o alicia, ao invs de esmag-lo e anul-lo.

    No contexto do mundo medieval, o ser humano deseja uni-ficar-se com Deus. Mas, talvez, seja mais exato pensarmos num projeto da metafsica que visa a integrao do indivduo com Deus do que numa anulao do indivduo perante Deus. E, para promover tal integrao, o indivduo deve desenvolver uma tica. Isso de sua responsabilidade. Na metafsica, no basta apenas a praxis ritual: o indivduo tem que manter uma ao tica cons-tante se quiser religar-se com o divino.

    Deixando de lado o ser humano, a concepo que s reconhe-ce o sagrado como um totalmente outro isola ambas as instn-cias, o sagrado e o humano, tornando invivel uma efetiva relao. O outro do sagrado se torna de fato um completo estranho, um totalmente outro. Otto pergunta qual a natureza e a qualidade do objeto, exterior ao eu, que pressentimos, ou seja, o que o numi-noso em si mesmo. Ele define esse mesmo objeto como inacessvel e inconcebvel, perante o qual minha conscincia mais do que es-pantar-se, recua: o totalmente outro. O totalmente outro algo que no entra em nossa esfera de realidade, mas pertence a uma ordem de realidade absolutamente oposta realidade huma-na, que provoca na alma um interesse que no se pode dominar.36

    Jung discorda de Otto quanto a se tornar o cerne da expe-rincia religiosa a partir do horizonte de um totalmente outro. E Jung se refere, nessa pontuao, a uma das formas do numinoso, mais elaboradas, Deus: totalmente impensvel, do ponto de

    36 O sagrado, p.41.

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    vista psicolgico, que Deus seja apenas o totalmente outro, pois o totalmente outro no pode ser o ntimo mais ntimo da alma e Deus .37 Pode-se contra-argumentar que o totalmente ou-tro seria uma noo mais adequada a um estdio pr-religioso, ou seja, restrito magia, ao rito e aos rudimentos de uma mitolo-gia. Mas, lembremo-nos que Otto se refere ao totalmente outro quando pensa em Abrao, quando ele se depara com a absoluta superioridade de poder: o sentimento do nada da criatura. Des-sa forma, Jung nota o amplo alcance da ideia de um totalmente outro, pelo menos, com raras excees, no Ocidente, e conclui com relao ao homem ocidental:

    Para ele, a criatura humana algo de infinitamente pequeno, um quase nada. Acrescenta-se a isso o fato de que, como diz Kierkegaard, o homem est sempre em falta diante de Deus. O homem procura conciliar os favores da grande potncia me-diante o temor, a penitncia, as promessas, a submisso, a au-to-humilhao, as obras e os louvores. A grande potncia no o homem, mas um totaliter aliter, o totalmente outro, abso-lutamente perfeito e exterior, a nica realidade existente.38

    De fato, a concepo de um totalmente outro no leva em conta a totalidade da experincia originria promovida por uma vivncia do sagrado, no que concerne a sua dimenso que se es-tende na direo do humano e do mundo. Ou seja: para Otto, o ser humano, ao se deparar com o que toma por numinoso, v-se despertado pelo sentimento do numinoso, mas toma o numinoso necessariamente como fora dele.

    37 sicologia e alquimia. Petrpolis: Vozes, 1991 (Obras comp., vol. XII), p.23, 11, nota 4.

    38 sicologia e religio oriental, p.8, 772.

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    o esquecimento do ser humAno e o esquecimento do sAgrAdo

    O totalmente outro uma proposio que nos interessa. Ela o contraponto de nossa argumentao que reconhece o sagrado tambm a partir de um modo relacional, segundo um pensamen-to que considera o ser humano como uma trama de relaes. O nosso ponto de partida residiu na tentativa de compreender um pouco melhor a concepo do sagrado como o totalmente ou-tro. O sagrado sob essa imagem frequentemente adquire feies dramticas: o tremendo, o terrvel, o que causa tremor e te-mor, o que mostra uma ira tenebrosa, por vezes sinistro. Essas significaes nos fizeram estabelecer uma associao entre o sa-grado e o aspecto trgico da existncia. Interpretamos os deuses nessa forma como a expresso fiel de como nos sentimos perante a existncia quando lanados no trgico: na dor, no sentimento de aniquilao do eu, na perda do sentido, no absurdo.

    Estabelecemos, a seguir, uma comparao entre a concepo do totalmente outro e a metafsica, que procura trazer ao campo religioso a dimenso tica. Ao visar uma tica que rene o ser hu-mano ao fundamento sagrado (o ser, Deus), a metafsica tenta res-gatar o ser humano do trgico, retomar o fio do sentido, perdido no aniquilamento de um indivduo reduzido a cinzas. Nisso, ela resgata a polaridade antropolgica da relao entre o ser humano e o sagrado, mas acaba levando a associao entre o ser e o divino a uma espcie de domesticao aos moldes de determinados valo-res: o bem, a lgica que rejeita a contradio, o belo, a desconside-rao das paixes e do desejo. Maria Helena Cunha nota que

    prpria do pensamento reflexivo a dissociao dos referen-ciais sujeito-objeto, enquanto no pensamento intuitivo e na vivncia processa-se o contrrio. O homem aparece, por um lado, como um ser livre, inventando e fundando a sua exis-

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    tncia, e por outro, submetido a limitaes, a contrarieda-des. (...) O universo mitolgico no conhece distino entre mundo do ser imediato e mundo da significao mediata. A imagem no representa a coisa, ela a coisa.39

    E assim, tanto a convico que s reconhece um totalmente outro quanto a metafsica deixam de considerar devidamente as-pectos relevantes da relao entre o ser humano e o sagrado. A primeira porque, basicamente, esquece a pessoa, e a metafsica porque no mais tem em conta o sagrado em sua totalidade, e tenta dom-lo na medida em que nos apresenta um discurso que anseia por encontrar respostas racionais, e com isso invade o ter-ritrio do mistrio, discurso esse que s se detm em parte peran-te a exaltao da f na filosofia e na mstica medieval.

    Acompanhemos, daqui em diante, uma proposio de reli-gao com o sagrado, que se recusa a considerar a experincia religiosa como da ordem exclusiva do que est parte da existn-cia, permanecendo mais do que um estranho, um interdito ao ser humano; nem considera o sagrado inteiramente deduzido de cri-trios racionais.

    39 Espao real, espao imaginrio. 2a ed. Rio de Janeiro: Uap, 1998, p.108.

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    Captulo II

    Interpretao do sagrado a partir da leitura de Martin Buber

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    eu e tu como umA relAo originriA entre o ser humAno e o sAgrAdo

    Na leitura de Martin Buber, chamou-nos a ateno a apresenta-o de uma determinada modalidade da experincia religiosa em que o sagrado se inscreve como relao, quer isso dizer: ele constitudo na relao Eu e Tu. Ele apresentado como funda-mento constituinte de uma relao. No mais o nico polo cen-tral da experincia religiosa.

    No mbito do Eu e Tu, procuramos um pensar que no sub-meta o ser humano a uma concepo de experincia religiosa em que ele se mantm como uma pea secundria. O que anuncia o pensamento dialgico a modo Eu e Tu que o cenrio religioso, ao invs de excluir o ser humano, evoca-o para a relao com o sagra-do. A tese que aceita o sagrado como um Tu a de que o sagrado, a pessoa, a comunidade formam uma identidade relacional.

    A confrontao entre um pensamento que adota a perspectiva relacional e dialogal e a fenomenologia de Otto concernente a de-terminadas concepes acerca do sagrado atinge o ponto mximo de tenso quando Otto descreve uma imagem do sagrado segundo a forma dicotmica que marca uma rigorosa separao entre o eu e a realidade objetiva, ou melhor, entre um eu e um objeto exte-rior a ele, o sagrado, com o qual o eu se depara. Quando o numi-

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    noso experimentado sob a forma de um totalmente outro, ocor-re uma ciso completa entre sujeito e objeto: o sagrado s admi-tido como um absoluto transcendente e como uma realidade em tudo superior esfera humana. Segundo essa forma, observa Otto: s aqui que se experimenta a presena do numen, como no caso de Abrao, em que se pressente algo de carter numinoso, em que a alma se desvia de si prpria para este objeto.40

    A alma se desvia de si prpria? A experincia do sagrado tambm remete a alma a si prpria. Entendemos esse desvio da alma para o objeto numinoso como algo distinto da experin-cia mstica, quando ela prope um sair de si (carter de xtase). No confundimos o desviar de si prpria da alma com o sair de si da alma (caracterstico da mstica). Pois, segundo Otto, o desviar da alma est relacionado ao numinoso como objeto exte-rior ao eu, est relacionado ao objeto existente fora do eu. Na p-gina 59 de O sagrado, Otto afirma, referindo-se ao aspecto atrati-vo do sagrado, que Deus uma essncia parte.

    Da mesma forma em que no h sempre desvio, mas, igual-mente, remetimento, tampouco o encontro com o sagrado pro-duz necessariamente um recuo, perante a estupefao que susci-ta41. Na introduo da clebre obra de Santa Teresa dvila Castelo interior ou moradas, Jacyntho J.L. Brando ratifica uma identi-dade de essncia entre a alma e Deus.

    Pois esta a grande descoberta que Teresa pretende divul-gar: Deus habita no mais ntimo da alma. Tal verdade com-preendida por ela atravs da experincia das formulaes mais antigas de seu pensamento. Contra ela se posicionaram inclusive vrios de seus confessores, que admitiam essa pre-

    40 O sagrado, p.20.41 Otto acredita que, frente ao numinoso, debato-me com uma realidade inco-

    mensurvel perante a qual recuo, tomado de estupefao. Ibid., p.41.

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  • INTERPRETAO DO SAGRADO A PARTIR DA LEITURA DE MARTIN BUBER

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    sena divina apenas atravs da graa, nunca em essncia. Teresa, porm, clara: Deus se encontra na alma como se encontra no cu. Por isso mesmo a prpria alma outro cu, no qual se pode entrar atravs da orao.42

    Ocorre-nos, alm da mstica, o que estudamos em Jung: o ca-rter religioso dos smbolos. Ao se remeter ao que sentido como sagrado, o ser humano v sua alma tomada pelos smbolos que ex-pressam a transcendncia, assim como por imagens e ideias que expressam as formas constituintes de sua existncia: a morte, o re-nascimento, o despedaamento, o feminino, o masculino, o heroi-co, o trgico, o sublime, a salvao, o caos etc.43

    Buber acentua que, antes de mais nada, no somente Deus se faz presente, como presena. Sem dvida Deus o totalmente Outro, Ele porm o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dvida, ele o mysterium tremendum cuja apario nos subjuga, mas Ele tambm o mistrio da evidncia que me mais prximo do que meu prprio Eu.44

    A experincia religiosa enquanto Eu e Tu concebe o divino em um modo relacional e dialogal. Buber aposta que o princpio sagrado existe na medida de sua relao com o ser humano: na medida no somente em que o indivduo o evoca, mas, igualmen-te, na medida em que o sagrado tambm se dirige a cada um. Essa relao no est dada. Ela uma descoberta, uma revelao que se abre na medida em que se aceita o sagrado como relao, ao invs de meramente colocar-se sob a sua proteo ou a sua supos-ta lei. O sagrado com o indivduo. Assim, estabelece-se uma re-lao nica, um encontro singular.

    42 Rio de Janeiro: Paulinas, 1981, p.8-9.43 O smbolo religa o ego ao si-mesmo (self), totalidade humana. Esse foi o tema

    de nosso trabalho citado A psicologia do self e a funo religiosa da alma.44 Eu e Tu, p.92.

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    Isso nos permite concluir que as imagens do sagrado for-madas pela humanidade so criadas a partir de genunos encon-tros com o sagrado. Concebemos smbolos no apenas por ra-cionalizaes das formas (a geometria, o plano bidimensional em perspectiva, uma mandala representando a terra em relao ao cosmo, por exemplo) e abstraes da linguagem, mas tam-bm, e sobretudo, a partir da nossa vivncia. O sentido do sim-blico liga-se a uma vivncia que ao mesmo tempo um encon-tro com o sagrado. Se Deus, por exemplo, permanece sobretudo como um princpio conceitual, por mais excelente que seja a forma de sua concepo, a sua verdade (a sua argumentao), se Deus se mantm numa metafsica e numa teologia sem que essa reflexo se insira na existncia, a modo de um permitir a existncia igualmente revolver o pensamento, Deus permanece apenas um Isso, uma coisa, um objeto, manipulvel pelas cate-gorias a Ele imputadas pela excessiva formalizao de ritos, pela pregao sacerdotal, por dogmas impostos a partir de relaes hierarquizadas.

    O sagrado pode ser experimentado e pensado como um ob-jeto da minha crena, do meu estudo; como uma total alteridade; como produto de uma fantasia; como uma mscara; como um grande pai simblico; como um ser ordenador do mundo, que d guarita e sentido que insufla a salvao e a esperana, sublimando a angstia e o desespero. No entanto, ele escapa a todas essas achegas. Por exemplo, ele aparece igualmente como uma grande me acolhedora (por vezes acolhedora e simultaneamente tem-vel), como o Si-mesmo, como o totalmente prximo, como transgressor de todos os limites e ordenaes. O sagrado da es-fera do simblico, e pela sua prpria natureza, nunca totalmen-te acabada a sua feio, os seus contornos so meros esboos, suas aparies, as formas de culto e venerao so esquecidas, reme-moradas, comemoradas, renovadas, transformadas. Em suma, pela sua prpria essncia o Tu Eterno no pode, Ele prprio, tor-

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    nar-se um Isso, apesar de ser manipulado e intencionado, volta e meia, como um objeto.

    Os homens tm invocado o seu Tu eterno sob vrios nomes. Quando cantavam aquele que era assim chamado, pensavam sempre no Tu; os primeiros mitos foram cantos de louvor. Os nomes entraram, ento, na linguagem do Isso; um impul-so cada vez mais poderoso levou-os a pensarem no seu Tu Eterno e falar dele como de um Isso. Todos os nomes de Deus permanecem, no entanto, santificados, pois, no se fala somente sobre Deus, mas tambm se fala com Ele.45

    A letra viva da palavra que se dirige a Deus e que se origina do encontro com Ele, que aparece em revelaes, relatos e dog-mas, tem o seu sentido rematado na confrontao de um existen-te com o Outro existente. O carter existente de Deus amarra, por assim dizer, uma identidade ntima entre a pessoa e Deus, mas, no por isso, reduz Deus imanncia. Para Buber, Deus no se circunscreve nem num alm, nem num aqum, ou seja, Deus no pode ser afirmado apenas como um totalmente outro, tampou-co, por exemplo, apenas antropologicamente, como produto da viso de mundo de alguns povos, ou, apenas psicologicamente, como uma imagem psquica originria de uma instncia profun-da do inconsciente. O que ressalta uma argumentao dialgica a articulao radical do pensamento com a vivncia. Donde se justifica a afirmao de que no apenas se fala sobre Deus, mas, igualmente, se fala com Ele.

    Dessa forma, a experincia religiosa desenha uma noo complexa: simultaneamente afetiva e cognitiva. A nfase no as-pecto vivencial da experincia religiosa no nos convence a confin-la no campo do irracional, do incognoscvel, do inefvel.

    45 Ibid., p. 87.

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    A experincia religiosa apresenta uma abertura compreenso e ao pensamento na medida em que possibilita um desvelamento do mistrio que anuncia o fundamento sagrado. O ser humano na f se depara a um s tempo com o desconhecido e com o fami-liar, descobrindo o sagrado pela relao que estabelece direta-mente com ele, e no fora dela (atravs exclusivamente de mensa-gens reveladas, sujeitas a interpretaes exteriores ao sujeito que se submete experincia religiosa). Assim, a f evoca o princpio sagrado como presena. A religio entendida mais exatamente

    como um contato mtuo, como o encontro genuinamente recproco na plenitude da vida, entre uma existncia ativa e outra. Analogamente, entende-se f como a insero nesta reciprocidade, como o ligar-se numa relao com o Ser in-demonstrvel e no comprovvel, mas, ainda assim, numa relao com o Ser cognoscvel de quem deriva todo signifi-cado.46

    Aqui, acentuamos a noo de existncia referida ao campo do sagrado. No apenas o ser humano um existente. O Tu eter-no, sem deixar de ser um transcendente, tambm um existente. Quando estudamos a experincia do sagrado como encontro, conclumos que, segundo essa perspectiva, com respeito ao ma-go da experincia religiosa, chama-nos a ateno que no se trata de conceb-la como mera oposio metafsica entre o homem e o numinoso, entre sujeito e objeto, e sim contempl-la como um genuno encontro recproco, nada menos que um encontro en-tre duas existncias. Martin Buber confere no s uma dignidade ao ser humano quando se projeta numa dimenso religiosa da existncia, pois antes ele se via reduzido a no muito mais do que p e cinzas, como lhe confere um carter ontolgico de mesmo

    46 Eclipse of God, III, 3, p.33.

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    peso que a realidade sagrada, ao admitir a copertinncia do ser humano e do sagrado esfera da existncia.

    Nesse ponto, Buber promove uma ruptura com a noo tra-dicional que pe de um lado o sagrado como o Ser, a essncia, e, de outro, o ser humano como existente. A proposio de que a essncia fundamenta a existncia uma tese me